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25/10/2022

Introdução
• O tema da revelação ocupa um primeiro plano na
consciência cristã dos três primeiros séculos. Os
Teologia Fundamental cristãos são aqueles que conhecem a Deus. O
Incognoscível saiu do seu mistério e manifestou-
se aos homens.
Revelação na Patrística • As primeiras gerações cristãs estão sob o impacto
da grande epifania de Deus no Cristo. As
testemunhas do acontecimento ou seus discípulos
vivem e proclamam o Evangelho da salvação.

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• Há a preocupação de aproximar-se dos pagãos, • Dada a proximidade com o evento Cristo, o


o que leva os pensadores cristãos a procurar pensamento patrístico está todo envolto pela
pontos de aproximação entre o cristianismo e o visão de conjunto do mistério cristão. Todo
pensamento contemporâneo. Exemplo é o uso discurso é discurso sobre Deus que cria, que
do conceito de Logos, comum às religiões e salva e que revela. Em toda reflexão há uma
teologia implícita da revelação.
sistemas filosóficos do século III.
• Diante das objeções e heresias, alguns temas vão
• Os primeiros hereges levaram os pensadores ganhando destaque e convergência no pensamento
cristãos ao terreno da revelação. Eles se dos Padres: 1) Os dois Testamentos; 2) Teologia do
defrontam com os pensadores gnósticos, Logos; 3) Economia e pedagogia da revelação; 4)
mostrando que o cristianismo é a verdadeira Centralidade de Cristo; 5) Mediadores da
gnose, evidenciando, porém, que é ao mesmo Revelação; 6) Inesgotabilidade da Revelação; 7)
tempo e inseparavelmente vida e conhecimento. Conhecimento natural e sobrenatural; 8) Dupla
dimensão da Revelação; 9) Três linhas da Patrística

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1) Os dois Testamentos: unidade e • Os Padres salientam a unidade profunda entre


progresso AT e NT: um só e mesmo Deus é o autor da
• Nessa questão há duas tendências contrárias: judeus
revelação por seu Verbo ou Logos, sendo a
preservam a primazia da revelação profética e marcionitas criação, as teofanias, a Lei, os Profetas, a
estabelecem oposição entre os Testamentos. encarnação, etapas dessa única e contínua
• Marcião se distinguiu pela sua concepção que separava o Deus
mau do AT e o Deus bom do Novo Testamento. manifestação de Deus através da história
• O Deus do Antigo Testamento é mau. Ele é o criador do mundo, humana.
mas não tem valor por causa do seu caráter vingativo. É o Deus • Salientam ainda o progresso de uma revelação
da Lei e dos Profetas, e deseja as guerras. A materialidade é má
porque provem desse Deus mau. a outra, cada um de modo diferente.
• Cristo é filho do Deus bom, que o enviou ao mundo para a • Irineu destaca no AT uma preparação, educação
salvação das almas. Só ele é que tem valor como revelação.
• O corpo de Cristo não seria real, mas sim apenas aparência da humanidade, esboços e promessas da
de corpo. O valor da revelação feita por ele estaria portanto no encarnação e no NT a consumação e dom de
seu conteúdo oral, aquilo que foi falado pela boca de Cristo. Cristo.

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2) A teologia do Logos: ponto de • Clemente de Alexandria (+215) funda sua reflexão na


teologia do Logos salvador e revelador. Ele dá prioridade
encontro entre as culturas ao conhecimento de Deus sobre a salvação. Propõe a
revelação como “gnose” cristã, correspondente ao desejo
• Para tornar o evangelho acessível aos pagãos, a reflexão de conhecimento que animava seu ambiente cultural.
cristã adotou uma filosofia elaborada pelo platonismo e • O Logos é quem revela tudo o que é ao mundo, tornando o
pelo estoicismo, com o risco de esquecer o caráter homem capaz de compreender a si mesmo e participar da
histórico da revelação. vida de Deus. Somos “alunos de Deus: é seu próprio
• Justino tenta criar uma ponte entre a filosofia grega e a Filho que nos dá uma instrução verdadeiramente
revelação, apresentando Cristo com função mediadora. Ele santa” (Str. I, 98,4; Prot. 112,2). A superioridade do
entende a revelação como um processo soteriológico, mas cristianismo advém do fato de ter o Logos por mestre
tende a atribuir a Cristo-Logos um valor universal. (Str. II, 9,4-6), do qual recebe um ensinamento superior.
• Surge aqui o tema do Logos spermatikós. Antes de Cristo • Antes de Cristo, a filosofia foi dada aos gregos como um
havia sementes do Verbo, que participam num conhecimento terceiro testamento para conduzi-los a Cristo. Agora ela
ínfimo, parcial, de que só Cristo, Logos encarnado, dará a está a serviço da fé. O Logos é o pedagogo universal que
perfeição. Assim, os pensadores pagãos puderem perceber reúne lei, profetas e evangelho. A dimensão da história da
algum raio de verdade e merecer o título de cristãos (I Apol. salvação é mantida em suas etapas, mas subordinada ao
46,2.3). Situando o Logos como centro da perspectiva, princípio da gnose total.
Justino coloca a revelação sob o signo do conhecimento.

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• A reflexão dos alexandrinos representa, 3) Economia e pedagogia da revelação


positivamente, o desejo de reconciliação com o • Se o pensamento patrístico dos primeiros séculos soube evitar o
perigo de entender a revelação como puro conhecimento, é
mundo antigo, mas corre o risco de uma porque não se desvinculou das categorias bíblicas e com isso
“intelectualização” excessiva da revelação, não deixou de refletir sobre a história da salvação. Isso aparece
sobretudo no pensamento de Irineu contraposto aos gnósticos.
entendendo-a como gnose, ensinamento,
• Para os gnósticos, o conhecimento de Deus vem do alto, por
doutrina superior. Corre o risco de desligar a iluminação, sem ligação com a história. Cristo teria sido o
revelação de seu vínculo histórico. revelador porque nos entregou um conjunto de ensinamentos
proposicionais salvíficos (conjunto este chamado de gnose).
• Ela teve repercussões na teologia posterior até Cristo revela todos os pontos fundamentais do conhecimento,
necessários para o batismo. Cristo é revestido só em aparência
pouco antes do Concílio Vaticano II. A revelação de um corpo humano.
será entendida como comunicação de um • Tal conjunto de verdades reveladas por Cristo compunha-se
sistema de ideias, em vez de ser manifestação de especialmente de ensinamentos secretos (esotéricos)
destinados ao conhecimento de algumas pessoas selecionadas.
uma pessoa que é Verdade em pessoa. Era difícil entrar num grupo gnóstico. Os futuros adeptos tinham
uma etapa probatória de vários anos, e eram obrigados a manter
segredo do que ali aprendiam.

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• No contexto antignóstico que opõe AT e NT, Irineu sublinha • Quase todos os Padres insistem no caráter de
a unidade da história da salvação. Com o conceito de “economia” da revelação: ela apresenta-se como um
“economia”, ele dá unidade a essa história: o mesmo Deus plano de salvação infinitamente sábio, concebido
realiza, em seu único Verbo, um só plano de salvação, por Deus desde toda a eternidade e pacientemente
desde a criação até a visão. Sob a guia do Verbo, a
realizado segundo os caminhos por ele escolhidos,
preparando e educando a humanidade, fazendo-a
humanidade nasce, cresce e morre até a plenitude dos tempos
amadurecer e revelando-lhe progressivamente
(Adv. Haer. IV, 38,3). aquilo que é capaz de acolher.
• Diante da oposição gnóstica entre o Cristo e o Jesus segundo • Desenvolve-se também a tese da pedagogia divina:
a carne, Irineu apresenta a encarnação como clímax desta Deus educa a humanidade para receber a
economia iniciada no AT. O Verbo está presente desde o plenitude dos dons divinos da encarnação.
início, desde a criação, que revela o Deus criador. A • Evocando as etapas dessa economia e pedagogia,
encarnação é uma teofania do Verbo de Deus e o progresso afirma-se o caráter histórico da revelação: sua
consiste na presença humana e carnal do Verbo, tornado ligação profunda com a história na preparação e no
visível e palpável entre os homens para manifestar o Pai que anúncio, na plenitude em Jesus Cristo, na extensão ao
permanece invisível (Ib. IV, 24,2). Cristo é a chave de mundo por meio dos apóstolos e da Igreja.
abóboda do edifício inteiro.

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4) Centralidade de Cristo • Embora reconhecendo o papel central de Cristo, a


teologia grega é menos sensível ao papel da
• Os Padres veem em Cristo o ápice, a consumação da assunção da carne.
história da salvação. Verbo de Deus, Filho do Pai, ele
assume todos os caminhos da encarnação, tanto a • Justino e Clemente veem em Cristo sobretudo o
palavra, quanto a ação para dar-nos a conhecer o Pai e Mestre, fonte de toda verdade, e, na revelação, a
seu projeto de salvação. comunicação da verdade absoluta, da
• Para Inácio de Antioquia, Irineu e Atanásio, encarnação e verdadeira filosofia.
revelação estão intimamente ligadas entre si. • Orígenes vê Cristo como revelador, enquanto,
• Irineu destaca que o Filho encarnado não proporciona através da carne, podemos fazer-nos uma ideia
somente um conhecimento abstrato do Pai, mas Ele é sua
manifestação viva. Cristo ou o Verbo encarnado é o visível do Verbo e no Verbo, imagem do Pai, uma
que manifesta o Pai, ao passo que o Pai é o invisível, ideia do próprio Deus.
manifestado pelo Filho encarnado e visível. Há uma • Os alexandrinos veem em Cristo aquele que traz
equivalência prática entre a encarnação, considerada a luz às inteligências imersas nas trevas.
concretamente e a revelação: as duas são intercambiáveis.

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5) Mediadores da Revelação 6) Inesgotabilidade do mistério de Deus


• Os profetas: além desse título tradicional, são chamados de • Eunômio sustentava que aquilo que Deus havia
instrumentos de Deus, testemunhas de Deus etc. Sua função mostrado em Cristo haveria terminado com o
é anunciar o Cristo, anunciar os mistérios da salvação,
anunciar a verdade, testemunhar, ensinar as vontades de mistério divino. Uma vez plenamente revelado,
Deus. Deus não seria mais mistério.
• Cristo: o título mais frequentemente usado para designar • Frente a esse erro, os Padres Capadócios
Cristo como revelador é o de Mestre. O Cristo é o Verbo de professam que Deus permanece inefável e
Deus, o Filho encarnado que veio para ensinar aos homens o inacessível, mesmo depois de ter se revelado. O
caminho da salvação. Para os alexandrinos, Cristo é o que que sabemos de Deus foi-nos revelado por meio de
traz a luz às inteligências mergulhadas nas trevas. Cristo.
• Os apóstolos: são os mensageiros da Boa-nova, os • Sob a ação do Espírito se pode penetrar sempre
pregadores do Evangelho, os doutores e mestres das nações, mais os mistérios do Pai e do Filho. É uma busca
as testemunhas do Cristo.
da verdade sempre mais ardente e que nunca se
• A Igreja: guarda fielmente, conserva, ensina sem falhar e acaba.
transmite. A ideia de tradição ocupa sempre o primeiro
posto.

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7) Conhecimento natural e 8) Dupla dimensão da Revelação


conhecimento sobrenatural • Os Padres insistem numa dupla dimensão da revelação: à ação
exterior de Cristo que fala, prega e ensina, corresponde uma ação
• O conhecimento de Deus, em sua natureza íntima, não
se obtém a não ser por graça. Só Deus pode instruir-nos a interior da graça, que os Padres, segundo as Escrituras, denominam
respeito de Deus, dizem todos com Atenágoras. Esse revelação, atração, adesão interior, iluminação, unção, testemunho.
conhecimento é o que se chama de sobrenatural. • Ao mesmo tempo em que a Igreja proclama a boa notícia da
• Mas também que Deus pode ser conhecido até certo salvação, o Espírito opera por dentro para tornar assimilável e
ponto, sem a revelação, por um duplo caminho: a partir fecunda a palavra ouvida.
do mundo visível pode-se deduzir a existência de seu • Agostinho se destaca nesse tema. Para ele, a palavra ouvida
autor, e conceber algo de seus atributos: poder, sabedoria, exteriormente não é nada, se o Espírito de Cristo não agir interiormente
beleza, providência; o segundo caminho é o da para fazer-nos reconhecer, como palavra dirigida pessoalmente a nós, a
consciência ou o do testemunho espontâneo da alma. palavra ouvida: “Jesus Cristo é nosso mestre e sua unção nos instrui. Se
Esse caminho natural, porém, é precário. esta inspiração e esta unção faltarem, em vão as palavras ressoam em
• Entre um e outro caminho não há oposição, mas nossos ouvidos” (Ep. Jo. 3,13). Essa graça é, ao mesmo tempo,
continuidade, pois é o mesmo Logos que se manifesta num atração e luz. Atração que solicita as faculdades do desejo, luz que
e noutro. faz ver em Cristo a verdade em pessoa.

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9) Três linhas da Patrística


• A revelação é em geral vinculada às ações e às palavras de Jesus
Referências bibliográficas
Cristo, mas com nuances importantes:
• Há os que seguem mais de perto a apresentação realista da Bíblia, • DICIONÁRIO DE TEOLOGIA
realismo este marcado pela mentalidade semita, ao invés daquela
grega. Por realismo queremos indicar a intuição básica de que Deus se FUNDAMENTAL. Verbete “Revelação: V) O
revelou plenamente na existência carnal e visível de Jesus. Exemplos
de Padres da Igreja que adotam essa linha: Inácio de Antioquia, tema da Revelação nos Padres da Igreja”.
Atanásio e Irineu. p.825-830.
• Nota-se em Orígenes certo distanciamento dessa apresentação
realista. Ele sustenta que pela carne de Jesus se pode fazer uma ideia • LATOURELLE, René. Teologia da Revelação.
do Verbo divino, e daí podemos chegar a compreender a revelação de
Deus. São Paulo: Paulinas, 1985. p.158-164. (para
• Há enfim os que se afastam mais do realismo bíblico. Levam menos aprofundamento: 89-164).
em consideração a importância essencial, na revelação acontecida em
Jesus Cristo, da carne do Verbo. Jesus é o Mestre por excelência, que
comunica acima de tudo verdades de revelação. Há nisto um nítido
influxo da mentalidade grega. Os Padres da Igreja que adotam essa
linha tinham em geral grande familiaridade com a Filosofia grega.
Exemplos são Clemente de Alexandria e Justino.

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