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HISTÓRIA DAS
HERESIAS PRIMITIVAS
EGUINALDO HÉLIO DE SOUZA
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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Sumário
03 u Introdução - Verdade versus Heresia

05 u Capítulo 1 q O período apostólico


06  Os judaizantes
07  Filosofia e religião grega
08  Gnosticismo embrionário

12 u Capítulo 2 q Gnosticismo e montanismo


12  Literatura gnóstica
13  Conceitos principais do gnosticismo
15  Cerintianismo
16  Maniqueísmo
16  Outros nomes do gnosticismo
18  Os pais antignósticos
19  Montanismo
20  A posição da Igreja

22 u Capítulo 3 q Monarquianismo e arianismo


23  A controvérsia monarquianista
25  A controvérsia ariana
30  Os partidos de Niceia
35  O retorno do arianismo
40  Efeitos de Niceia

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HISTÓRIA DAS
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41 u Capítulo 4 q Novas controvérsias cristológicas


42  Apolinarianismo
43  Nestorianismo
43  A história do Concílio de Éfeso
47  Eutiquianismo ou monofisismo
48  Monotelismo – a última controvérsia cristológica

50 u Capítulo 5 q Pelagianismo
51  Fundamentos do pelagianismo

52 u Conclusão - Panorama Geral

53 u Referências bibliográficas

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HISTÓRIA DAS
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q Introdução – Verdade versus Heresia

“E stas coisas vos escrevi acerca dos que vos enganam.” (1Jo 2.26)
A distorção do ensino cristão não é uma exclusividade de nossa época. Aliás,
em cada período da Igreja se levantaram homens que de uma forma ou outra de-
turparam a mensagem da salvação.
A Igreja primitiva, desde o período apostólico, teve de lidar com este fator.
Além da perseguição externa que buscava levar os cristãos a renegar sua fé, havia
ainda ensinos errôneos que comprometiam a mensagem. Cabia, pois, aos líderes
de cada época, manterem-se firmes contra a perseguição e ao mesmo tempo re-
bater os ensinos heréticos por meio das Escrituras.
Estes falsos ensinos foram, muitas vezes, completamente vencidos, ressurgindo
tempos depois na história da Igreja. Outras vezes, formaram seitas particulares que
duraram anos até se extinguirem por si só. Na verdade, a primeira área desenvolvi-
da dentro do ensino teológico foi a apologética. O primeiro desafio foi defender a
fé diante dos falsos ensinos e mostrar a superioridade do cristianismo sobre as filo-
sofias e religiões vigentes.
Vale lembrar que o Evangelho surge dentro de um contexto cultural, tanto judai-
co, quanto greco-romano e, portanto, era impossível evitar a influência desse contex-
to sobre a mensagem. Era muito fácil para um indivíduo ou grupo, misturar elementos
evangélicos com a filosofia grega, ou com a religião judaica ou mesmo com as “sei-
tas de mistério” existentes na época. O sincretismo predominou inúmeras vezes.

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HISTÓRIA DAS
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Nesse ínterim, é importante salientar a mensagem do Evangelho em dois aspectos:

 Uma nova manifestação de Deus para a humanidade


“E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a gló-
ria do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1.14). Embora a vinda
de Jesus tenha sido o cumprimento de promessas milenares, agora não se tratava
mais de mera continuação do Antigo Testamento, mas a introdução na história hu-
mana do próprio Filho de Deus, possibilitando um novo relacionamento com este
Deus (Ef 3.1-8).

 Uma nova realidade expressa de forma escrita e inspirada divinamente


Não se tratava de simples reflexão sobre os acontecimentos, mas de uma men-
sagem revelada: “Mas faço-vos saber, irmãos, que o evangelho que por mim foi
anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem aprendi de ho-
mem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo” (Gl 1.11,12). Embora a transmissão
da mensagem pudesse se utilizar do contexto dos mensageiros, a essência da men-
sagem era originária em Deus. Não era uma apropriação de conceitos já existen-
tes, mas a proclamação da verdade divina.
A luta interna dos líderes cristãos foi justamente manter pura esta revelação,
protegendo-a da infiltração das ideias pagãs ou mesmo judaicas correntes. Con-
forme a mensagem do Evangelho sofria influência do meio, tornava-se necessário
a formulação de conceitos bem definidos. A formação do Cânon, os Concílios e os
Credos foram necessidades cristãs históricas como meio de proteger a mensagem
das distorções.
Principalmente em sua infância, quando a Igreja ainda estava em fase de for-
mação, esse tipo de cuidado era relevante. O cristianismo poderia ter-se diluído
em meio aos inúmeros movimentos e às variadas filosofias da época, como quase
aconteceu, se não fosse a firmeza das posições apresentadas pelos apóstolos e
apologistas da Igreja primitiva.
Porém, esta luta tem prosseguido através dos séculos. As heresias renascem e
crescem nesta Era de rápida informação. E o passado tem muito a nos ensinar so-
bre esta batalha. O campo da ortodoxia cristã também gerou muitos heróis. Dignos
de serem lembrados e imitados não são apenas aqueles que foram instrumentos de
Deus para divulgação do Evangelho (os evangelistas), mas também aqueles que
dedicaram suas vidas a manter esse mesmo Evangelho puro (os apologistas).
“Amados, procurando eu escrever-vos com toda a diligência acerca da salva-
ção comum, tive por necessidade escrever-vos, e exortar-vos a batalhar pela fé que
uma vez foi dada aos santos.” (Judas 3).
Que assim seja!

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Capítulo
q O período apostólico
1
O período apostólico pode ser considerado, por convenção histórica, como
abrangendo a história da Igreja desde a sua formação no dia de Pente-
coste (At 2), até a morte do apóstolo João, cerca de 90 d.C. Isto significa cerca de
57 anos em que a Igreja se desenvolveu, tendo a supervisão direta ou indireta de
algum apóstolo. Durante este tempo, não foram poucas as vezes em que houve não
só desvios morais, mas também doutrinários entre aqueles que receberam a Palavra.
Isto levou os apóstolos a escreverem suas epístolas, que eram verdadeiros tratados,
com teores doutrinários, teológicos e apologéticos. Não só as epístolas, mas até
mesmo os demais escritos do Novo Testamento apresentam caráter apologético em
algum ponto, visando corrigir inverdades históricas e doutrinárias correntes.
Ao lermos os escritos apostólicos, nem sempre há declarações evidentes sobre
as distorções que o Evangelho estava sofrendo. Mas é bastante evidente que as
epístolas, de uma forma especial, foram motivadas por ideias errôneas entre os des-
tinatários. Poderíamos classificar estes desvios em duas correntes principais. Uma
tinha sua origem no judaísmo, com sua ênfase sobre a lei e as cerimônias. A outra,
era de origem religiosa-filosófica, com profundas raízes no mundo grego.
Estas tendências não morreram juntamente com os apóstolos, mas se desen-
volveram em grandes sistemas como o gnosticismo ou em pequenas seitas como os
ebionitas. Todavia, os escritos apostólicos já haviam erguido os muros da verdade
contra os embaraços das heresias. Mesmo que, algumas vezes na história, falsos
conceitos tenham penetrado na igreja, observamos que aqueles documentos inspi-
rados foram a base para defesa e correção dos desmandos, sempre que alguém se
dispôs a usá-los com coragem e sinceridade. A manutenção da verdade tornou-se
possível, pois conceitos e ideias falsas já haviam sido devidamente rebatidos pelos
escritos neotestamentários. As heresias prosseguiram, mas a verdade também.

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 Os judaizantes

O rompimento doutrinário com o judaísmo não se deu sem muita luta. O


cristianismo poderia ter permanecido uma mera seita judaica, não fosse a
visão e a persistência de Paulo frente às tentativas de alguns grupos em transformar
a mensagem do Evangelho em uma extensão da lei mosaica. Ele foi o homem usa-
do por Deus para fazer a conexão entre os mundos judaico e gentio. Seu conheci-
mento de ambos os mundos foi um importante fator de ligação.

Ao ler os escritos paulinos, é fácil perceber que este foi um dos piores proble-
mas enfrentados pelo apóstolo. Sua insistência na salvação pela graça à margem
da lei mosaica, valeu-lhe a inimizade de pregadores com fortes raízes judaicas.
Para atacar Paulo, estes opositores buscavam invalidar sua autoridade apostóli-
ca, uma vez que ele não fazia parte dos doze. Por consequência, ele se via obri-
gado a defender não apenas o Evangelho que pregava, mas também sua própria
autoridade.

Dos escritos mais significativos sobre este debate, temos a epístola aos Gálatas.
Nesta, ele defende tanto sua autoridade apostólica, quanto combate elementos
judaizantes que estavam se introduzindo nas igrejas daquela região. Definitivamen-
te, ele exorta os seus destinatários cristãos a não aceitarem “outro evangelho” sob
pena de maldição (Gl 1.8,9). Em seguida, faz toda uma defesa de seu apostolado
e suas relações com os apóstolos em Jerusalém (Gl 1.11-20).

Ao ler os capítulos seguintes, podemos ter uma ideia das heresias judaizantes
que estavam para ser introduzidas ali. O tom da carta é severo, pois caso estas
heresias não fossem rejeitadas, o cristianismo não seria mais do que um judaísmo
com um Messias. E Paulo sabia muito bem que não se tratava disto. Em meio aos
elementos judaicos existentes entre eles, podemos identificar:

 A prática da circuncisão

A circuncisão era um sinal do pacto de Deus com o povo de Israel, a descen-


dência física de Abraão (Gn 17.10). Mas os judaizantes exigiam dos convertidos a
Cristo que se circuncidassem. Assim, Paulo protesta veementemente contra aque-
les que se deixaram circuncidar (Gl 5.3,4). Mostrou que os que assim procederam,
o fizeram por motivos falsos. E que estas coisas não tinham valor em si mesmas, mas
que o valor estava em se tornar nova criatura em Cristo e viver uma vida de fé e
amor (Gl 6.15). Para o apóstolo, a verdadeira circuncisão era a do coração e isto
estava de acordo com a lei e os profetas (Rm 2.28,29; Dt 30.6).

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 A guarda de dias especiais e das festas judaicas


Quando os gálatas começaram a guardar as festas judaicas, tanto o sábado
quanto as luas novas e outras festividades (Gl 4.10), Paulo viu isto como um retro-
cesso (Gl 4.11), chegando a duvidar da eficácia da mensagem do Evangelho entre
eles (Gl 3.3). Na epístola aos colossenses, entre os quais parece ter havido uma
heresia semelhante, ele mostra que as festas eram apenas “sombras”, em contraste
com a realidade revelada em Cristo (Cl 2.16,17).

 A lei como padrão de comportamento para o crente


O terceiro elemento da judaização do Evangelho envolvia a questão da santifi-
cação. A lei não era mais o padrão para o viver diário e Paulo vai colocar a lei como:
provisória (2Co 3.11), como aio (Gl 3.24,25), como algo por meio do que seria impos-
sível herdar as promessas (Gl 4.30). Ele contrapõe o Espírito Santo à lei, como vemos
em outros escritos seus, como no terceiro capítulo da segunda epístola aos coríntios,
por exemplo (2Co 3.6). Classifica a tentativa de aperfeiçoar-se pela lei, como uma
tentativa carnal (Gl 3.3). Condena o pecado tal qual a lei fazia, mas coloca a cruz e o
Espírito Santo como os meios existentes para levar o crente à santificação (Gl 5.24,25).
No tempo em que foi escrita a primeira epístola a Timóteo, este problema subsistia
ainda, pelo que ele teve de mostrar o verdadeiro caráter da lei (1Tm 1.8-10).
Esta foi sua postura frente às heresias judaizantes. Suas colocações inspiradas
foram causas de uma ruptura definitiva entre cristianismo e judaísmo. Seria só ques-
tão de tempo e estes elementos desapareceriam do seio da igreja, pelo menos
nestes moldes.

 Filosofia e religião grega

E
m Atos 17.18 vemos Paulo debatendo com os epicureus e estóicos, duas das
principais correntes filosóficas do mundo greco-romano. Era difícil impedir
que estas correntes de pensamento viessem a influenciar a doutrina cristã. Parece
que, na epístola de Paulo aos colossenses, podemos ver alguns movimentos heréti-
cos surgindo. Lemos sobre:
O cuidado com palavras persuasivas (Cl 2.4);
As filosofias, vãs sutilezas, tradição dos homens e rudimentos do mundo que
são opostos a Cristo (Cl 2.8);
A guarda dos sábados e dias de festas, questões alimentares (Cl 2.16);
O culto aos anjos e falsas visões (Cl 2.18);
E, finalmente, o ascetismo1 (Cl 2.20-23).
1
Moral filosófica ou religiosa, baseada no desprezo do corpo e das sensações corporais, e que tende a assegurar, pelos
sofrimentos físicos, o triunfo do espírito sobre os instintos e as paixões.

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O apóstolo mostra Cristo como sendo aquele sobre o qual estamos edificados e
enraizados (Cl 2.7); Cristo como a realidade representada nas festas (Cl 2.17) e todo
ascetismo como sendo de nenhum efeito contra a cobiça da carne (Cl 2.20-23). Esta
é uma pequena amostra de como o Evangelho sofria ataques doutrinários desde as
suas raízes.

 A questão da ressurreição

Um dos problemas enfrentados por Paulo entre os cristãos de Corinto foi a ques-
tão da ressurreição. Este era um conceito estranho à cultura grega e logo não
tardou quem colocasse a ressurreição de Cristo como algo duvidoso. O capítulo
quinze da primeira epístola aos coríntios é um verdadeiro tratado apologético da
ressurreição, visando combater essa heresia.

O capítulo começa com o apóstolo dos gentios mostrando que a ressurrei-


ção era parte essencial do Evangelho (1Co 15.1-4). Em seguida, ele relaciona as
testemunhas históricas da ressurreição de Cristo (1Co 15.5-8). Era uma forma de
fundamentar a pregação evangélica não apenas com especulações teológicas,
mas com fatos concretos que dispunha de inúmeras testemunhas (1Co 15.6). Em se-
guida ele passa a apresentar os efeitos de uma negação da ressurreição de Cristo
sobre a mensagem do Evangelho (1Co 15.12-19). Até o final do capítulo ele discorre
profunda e amplamente sobre os detalhes ligados à ressurreição, desde a natureza
dos corpos ressuscitados até a natureza completa do evento (1Co 15.20-58).

Sem este maravilhoso capítulo paulino, com certeza perderíamos este precioso
material expositivo sobre um dos pontos centrais do Evangelho. Mais tarde, Paulo
expõe novamente o conceito de ressurreição aos coríntios (2Co 5.1-10). Era impor-
tante que esta verdade não se perdesse, pois faz parte do cerne do Evangelho.

Todavia, vamos encontrar posteriormente outra heresia em torno da ressur-


reição. Alguns a anunciavam como se já tivesse acontecido (2Tm 2.18). Paulo
identificou isso como uma gravíssima corrupção do Evangelho, classificando-a de
gangrena 2 ou câncer (2Tm 2.17) e tomou atitudes extremas contra os hereges de-
turpadores (2Tm 2.19).

 Gnosticismo embrionário

E
mbora o gnosticismo tenha se desenvolvido plenamente após o período
pós-apostólico, encontramos vestígios do mesmo por meio de algumas epís-
tolas, principalmente as de João, embora em alguns escritos paulinos possamos
perceber o mesmo também, bem como em outros escritos.

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Necrose de tecidos causada por defeito na contribuição de oxigênio pelo sangue, seguida de decomposição e apo-
drecimento.

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Quando começamos a ler a respeito desta heresia nos tempos posteriores, logo
percebemos que muito do que foi escrito teve como propósito rebater estas falsas
doutrinas. Isto foi de grande valia, pois quando o gnosticismo se desenvolveu em
um sistema complexo, os pais chamados apostólicos dispunham dos escritos inspi-
rados para desmascarar a falsidade desse sistema.
Alguns líderes da Igreja primitiva fizeram retroceder a doutrina gnóstica até Si-
mão Mágico, personagem citado em Atos 8, que teve uma falsa conversão e que
tinha profundas raízes na magia grega. Não é possível confirmar essa afirmação
pelos escritos do Novo Testamento, mas faz parte das tradições da Igreja primitiva.
Eusébio de Cesareia, o grande historiador da Igreja no século IV, apoiando-se em
outro historiador (Hegesipo), coloca a origem do gnosticismo em seitas judaicas.
Ainda outros apontaram para a filosofia grega. É bem possível que se tratasse de
um sincretismo que utilizou elementos religiosos-filosóficos de diversos grupos.
Paulo, em sua primeira carta a Timóteo, diz para este evitar conversas vãs e pro-
fanas e as oposições “da falsamente chamada ciência (gnose)” (1Tm 6.20). É bem
possível que certas ideias gnósticas já circulassem neste período.
Entretanto, o principal tratado contra o gnosticismo se encontra nas epístolas
joaninas. O ponto central é quanto à encarnação do Verbo. Os gnósticos em sua
aversão à matéria, não podiam conceber um Salvador de carne e osso. A matéria
era má e, portanto, Jesus não poderia ter vindo em carne. Neste aspecto havia
duas saídas: ou ele não teve um corpo verdadeiro, mas era puro espírito, ou se fazia
distinção entre Jesus e o Cristo, sendo que este último desceu sobre o homem Jesus
no dia de seu batismo.
Pelo que podemos deduzir de 1João 2.26, havia grupos começando a distor-
cer a mensagem do Evangelho. Pelos versículos 18 e 19 podemos perceber que
estas pessoas já haviam participado do cristianismo de alguma forma e agora co-
meçavam a propagar falsos ensinos. Em 1João 4.1-5 parece haver um grupo com
estas características. João classifica-os como “anticristos” e falsos profetas. Em sua
segunda epístola ele insiste no mesmo ponto, dizendo que “muitos enganadores
entraram no mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Este
tal é o enganador e o anticristo.” (v. 7). Mesmo no evangelho de João, a questão
da encarnação do Verbo (Jo 1.14) também é uma refutação à doutrina gnóstica.

 Nicolaítas
Este é um termo que aparece nas cartas do Apocalipse por duas vezes e por
isso ganhou a atenção dos estudiosos das heresias primitivas. Se considerarmos o
ano 90 d.C. como data provável para o livro do Apocalipse, então já temos aqui
uma seita bastante desenvolvida, mas de difícil identificação. O Novo Testamento
fala em “obras dos nicolaítas” (Ap 2.6) e em “doutrina dos nicolaítas” (Ap 2.15) o
que dá a entender um grupo organizado com práticas e doutrinas.

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Temos uma referência de Irineu sobre o assunto: “Os nicolaítas têm por mestre
Nicolau, um dos sete primeiros diáconos que foram constituídos pelos apóstolos.
Vivem sem moderação. O Apocalipse de João manifesta plenamente quem são:
ensinam que a fornicação e o comer das carnes oferecidas aos ídolos seja coisa
indiferente”.

Também Tertuliano de Cartago atribui ao diácono helenista a paternidade da


seita: “Nicolau de Antioquia, um gentio que seguia a religião judaica, menciona-
do em Atos 6.5, teria, para se justificar, apresentado sua esposa à assembleia dos
crentes dizendo: ‘Quem a quiser pode desposá-la, pois é necessário ter em pouca
estima a carne’ (isto é, é preciso ter desprezo à carne)”.

Embora combatido, este movimento herético conseguiu sobreviver até por vol-
ta do ano 200, quando então se dissolveu em um tipo de gnosticismo denominado
Ofita , ligado ao culto às serpentes.
Como podemos ver, o desenvolvimento de certas heresias a partir da doutri-
na cristã foi bastante amplo. Esse seria o segundo desafio que a Igreja do próxi-
mo período teria de enfrentar. O primeiro era a perseguição. O risco de perder a
identidade em meio a tantos desvios diferentes era grande. Mas a Igreja reagiu
nos momentos certos e se não conseguiu refrear completamente certos elementos,
conseguiu firmar sua doutrina de modo coerente, deixando fundamentos que mais
tarde possibilitariam o renascimento do cristianismo bíblico no século 16.

 Ebionitas

Os ebionitas tiveram sua origem no cristianismo judaico de Jerusalém. Embora


alguns tenham tentado criar um certo “Ebion” como sendo o fundador desta seita,
o fato é que o nome deriva da palavra hebraica evjonim , que significa “os pobres”.
A princípio, este era um nome honroso para os cristãos em Jerusalém. Mas neste
contexto se refere a uma seita herética que emigrou para leste do Jordão e mistu-
rou de forma inadequada elementos judaicos e cristãos.

A diferença substancial que separava os ebionitas dos demais judeus-cristãos


e dos helenistas consistia na maneira de conceberem a pessoa e a obra de Jesus.
Por seu monoteísmo restrito, não admitiam qualquer insinuação sobre a divindade
de Jesus.

Alguns supõem que os ebionitas se misturaram e consequentemente recebe-


ram forte influência dos essênios, povo que praticava um judaísmo ascético e vivia
na região do Mar Morto. Com o pouco material existente sobre eles, é impossível
fazer uma descrição minuciosa, mas podemos ter um pequeno vislumbre do pensa-
mento desta seita. Vejamos:

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Influência do judaísmo
Tal qual os judaizantes da época de Paulo, os ebionitas insistiam na guarda
da lei de Moisés, não só para si, mas para todos os que se convertessem entre os
gentios. Como consequência disso, rejeitavam os escritos paulinos e se recusavam
a aceitar suas epístolas.

A cristologia do ebionismo
Os ebionitas rejeitaram completamente a divindade de Cristo. Colocavam-no
no mesmo nível dos demais profetas do Antigo Testamento. Ele nada mais era do
que o novo Moisés. Negavam sua preexistência, sua encarnação e seu nascimento
virginal. Em seu conceito, embora ele fosse o Messias, era puramente humano. So-
mente no batismo ele foi ungido como o Messias, ou seja, adotado como Filho de
Deus. Jesus era para eles um judeu, fiel, piedoso, profeta e mestre inigualável.
O ebionismo não durou mais que 350 anos. Logo se dividiu em diversas seitas e
desapareceu sem deixar qualquer marca forte na teologia cristã. Todavia, exerceu
forte influência sobre a teologia islâmica e não é difícil enxergar semelhanças entre
o pensamento islâmico e o pensamento ebionista.

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Capítulo
q Gnosticismo e Montanismo
2
F
oi uma das piores doutrinas inimigas do cristianismo. Embora existissem vá-
rias correntes diferentes de gnosticismo, todas elas foram influenciadas pelo
neoplatonismo e pelo pensamento grego em geral. Segundo o historiador Edward
Gibbon, havia mais de 50 grupos gnósticos diferentes. Não podemos chamar o
gnosticismo de seita ou religião. O mais correto seria classificá-lo como uma corren-
te de pensamento, dividida em vários sistemas e escolas. Ao que parece foi uma
das primeiras heresias cristãs visto que, conforme a opinião de alguns, os escritos
do apóstolo João foram concretizados visando combater essas ideias errôneas a
respeito de Cristo.
Podemos classificar o gnosticismo como a tentativa racionalista grega, de in-
cluir o cristianismo em um sistema filosófico-religioso, com forte predominância do
elemento cognitivo3. Em outras palavras, embora a fé fosse o elemento primordial
no cristianismo apostólico, este movimento tratou de transformar o conhecimento e
a sabedoria em elemento-chave, bem ao sabor da cultura grega.

 Literatura gnóstica

Ao invés dos quatro evangelhos adotados pela Igreja, os gnósticos produzi-


ram uma literatura numerosa, com uma multidão de histórias fictícias, nas
quais as ações e discursos de Cristo e de seus apóstolos foram adaptados segundo
as tendências dos diversos grupos. Embora a maior parte dessa literatura tenha
chegado até nós somente por meio dos escritos dos pais apostólicos, recentemente
(1946) foi descoberto em Luxor, no Egito, manuscritos de conteúdo gnóstico. Foram
encontrados cerca de 13 códices, contendo cerca de 48 escritos gnósticos.

3
Aquisição de um conhecimento.

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 Conceitos principais do gnosticismo

E mbora variassem os costumes litúrgicos e os elementos mitológicos, é possí-


vel descobrir os conceitos básicos principais:

 Dualismo da natureza

O gnosticismo enfatizava a dualidade da natureza. Havia o mundo físico e o


mundo espiritual. Até este ponto, nenhum problema. Mas o mundo físico era identi-
ficado com o mal, como algo inferior, enquanto o mundo espiritual era identificado
com o bem, sendo superior àquele. A partir deste princípio, originado do platonismo
e do neoplatonismo, o cristianismo foi desfigurado. Este conceito atingiria toda a
doutrina cristã.

 O Deus criador

Pelo fato de o mundo físico ser mal, ele não poderia ter sido criado por um Deus
bom. Logo, a criação não foi obra do Pai de Jesus Cristo, o Deus do Novo Testamen-
to, mas foi obra do Deus judaico, que se revela no Antigo Testamento. Esse “deus”
criador foi chamado de Demiurgo, um Deus inferior uma vez que era o criador da
matéria. Também por causa disto, o gnosticismo era contraditório a tudo o que
dizia respeito ao Antigo Testamento, rejeitando a lei e ensinando que o homem se
libertava dela adquirindo “percepções superiores”.

Os pais eclesiásticos, principalmente Irineu, combateram esse ensino, mostran-


do que só havia um Deus único que foi o criador de todas as coisas e que se revelou
aos profetas e por fim revelou-se a si mesmo em seu Filho.

 A doutrina dos éons

Para explicar essa distinção entre o Deus verdadeiro e o Demiurgo, entre o


mundo espiritual e o mundo material, os gnósticos criaram a doutrina dos éons. Um
dos principais gnósticos, Valentino, ensinava que existia uma corrente de 30 éons
que emanavam da Divindade, sendo que o mundo material fora originado pelo
mais baixo éon da cadeia, não como resultado de um desejo criativo, mas como
resultado de uma queda. O Deus supremo ou progenitor formava o primeiro éon,
também conhecido como buthos (abismo). Depois vinham, em ordem, o silêncio ou
ideia e o espírito e a verdade. Depois, por sua vez, vieram razão e vida e desta veio
o homem e a igreja. A partir daí outros dez éons apareceram. O último éon teria
caído como resultado de um ataque de paixão e ansiedade e foi por causa desta
queda que o mundo material chegou a existir. O Demiurgo – que criou o mundo –
procedeu deste éon caído.

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 A soteriologia do gnosticismo
Os éons mais elevados teriam dado origem a Cristo e ao Espírito Santo. A tare-
fa de Cristo seria livrar as almas dos homens de seu cativeiro no mundo material e
trazê-las de volta ao mundo dos espíritos. Este era o conceito gnóstico de salvação
– um retorno das almas do mundo material, onde tinham caído e sido aprisionadas,
para o mundo espiritual.
Mas esta salvação só era possível por meio da percepção superior ( gnosis ).
Era um tipo de sabedoria esotérica que proporcionava conhecimento relativo ao
pleroma ou mundo superior espiritual e ao caminho que conduzia para lá. Nem
todos podiam alcançar esta salvação, apenas os chamados pneumatólogos, que
possuíam o poder necessário para receber este conhecimento. Os que não eram
capazes disso, eram classificados como materialistas. Alguns gnósticos criaram uma
classificação intermediária chamada de “psíquicos”, na qual os cristãos eram ge-
ralmente inclusos.
A grande refutação dos polemistas (pais da igreja que combateram esse e
outros tipos de heresias), era que os gnósticos excluíram a fé do seu sistema, substi-
tuindo-a por um conhecimento pertencente a um pequeno grupo seleto.

 A cristologia do gnosticismo
A posição gnóstica a respeito de Cristo recebeu o nome de “docetismo”, pa-
lavra originária do grego dokeo, que significa parecer. Como a matéria era má,
Cristo não podia ter um corpo humano apesar de a Bíblia dizer o contrário. Como
“bem” espiritual absoluto, Cristo não se misturava com a matéria. O homem Jesus
era ou um fantasma com aparência de corpo material ou o Cristo tomou seu corpo
por ocasião do batismo e o deixou no começo de seu sofrimento na cruz.

 Gnosticismo e Cristianismo
Embora existisse uma grande diferença entre cristianismo e gnosticismo, este to-
mou vários conceitos daquele e atribuiu características diferentes. Cristo, por exem-
plo, era considerado como salvador, por ter ele trazido conhecimento salvífico ao
mundo. Mas este Cristo não era o Filho de Deus que encarnou, mas uma essência
espiritual que havia emanado. Este Cristo não podia ter assumido a forma de ho-
mem, uma vez que então seria matéria e consequentemente seria mal. Ele apenas
parecia ter corpo físico. E da mesma forma ele não sofreu nem morreu, visto ser isto
característica da matéria. Este ensino foi chamado de docetismo (ver a seguir).
O sacrifício de Cristo na cruz não tinha importância alguma dentro do sistema
gnóstico. Ele foi apenas o transmissor daquele conhecimento de que o homem precisa
para iniciar sua jornada de volta ao reino da luz – a jornada em direção ao pleroma.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

O gnosticismo utilizava certos mistérios que lhe eram característicos. Tomou em-
prestado do cristianismo o batismo e a Ceia do Senhor de formas deturpadas. Além
de vários ritos sagrados de natureza similar. Por meio deles, os gnósticos diziam rece-
ber os segredos da salvação. Eram fórmulas místicas que segundo eles os protegiam
e lhes davam forças para vencer o mal e caminhar nesta jornada ao pleroma.

 Gnosticismo e ética

Sua noção de dualismo influenciava também seus conceitos éticos. Pois se a


matéria é má em si, então um afastamento físico dela tem sentido de purificação.
Certos grupos, como os chamados encratitas (citados por Eusébio em sua História
Eclesiástica, IV, 28-29), observavam um comportamento de abstinência excessiva.
Alguns acreditam que foi este ascetismo que originou o movimento monástico den-
tro do cristianismo. De fato, o isolamento dos monges, em princípio individual como
no caso dos anacoretas egípcios, e depois coletivo no Ocidente, identifica-se mui-
to com a moral ascética gnóstica. Senão diretamente, ao menos pode ter tido
influência indireta.

Em alguns casos, porém, o efeito deste conceito de matéria conduzia ao outro


extremo. Como a matéria não tinha valor algum, certos grupos gnósticos entrega-
vam-se a um comportamento libertino, manifestando todo tipo de concupiscência
como sendo algo indiferente e que não podia afetar o espírito. Vejamos dois grupos
gnósticos, o cerintianismo e o maniqueísmo.

 Cerintianismo

A ntiga religião que recebeu o nome de seu fundador, Cerinto (por volta de
100 d.C.), primeiro mestre gnóstico, judeu de raça. Gnóstico cujas ativida-
des se intensificaram no fim do primeiro século. Segundo Irineu de Lião, ele ensinava
que não foi Deus quem fez o mundo, mas uma Virtude ou Potência separada por
uma distância considerável da Suprema Virtude. E também ensinava que Jesus não
nasceu de um virgem, mas foi simplesmente produto de uma relação normal entre
José e Maria. Foi somente no seu batismo que um Princípio Superior veio sobre ele
em forma de pomba. Antes de Jesus morrer o Cristo se retirou dele e depois reapa-
receu impassível, visto ser apenas um espírito.

Seu gnosticismo apresenta outras características fortemente judaizantes e


ideias correntes entre o meio místico-judaico. Baseado em uma citação do histo-
riador eclesiástico Eusébio, parece que ele foi contemporâneo do apóstolo João
e é bem possível que tenha sido este tipo de gnosticismo combatido através de
suas cartas.

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 Maniqueísmo

A ntiga religião que recebeu o nome de seu fundador, o sábio persa Mani,
ou Manes ou ainda Maniqueu (216 –276). Ele acreditava que um anjo lhe
havia aparecido e o nomeara profeta de uma nova e última revelação. Pregou
por todo Império persa, inclusive enviou missionários ao Império romano. Foi preso,
acusado de heresia e morreu pouco tempo depois.
O maniqueísmo reflete uma forte influência do gnosticismo. Sua doutrina ba-
seia-se em uma divisão dualista do Universo, na luta entre o bem (Deus) e o mal
(Satã). Esses dois âmbitos estavam separados, porém a escuridão invadiu a luz e se
mesclaram. A espécie humana é o produto desta luta. Com o tempo, poder-se-ia
resgatar todos os fragmentos da luz divina e o mundo se destruiria; depois disso, a
luz e a escuridão estariam novamente separadas para sempre. É difícil não notar a
forte influência do zoroastrismo nos conceitos estabelecidos por Mani.
Podemos dizer que era uma combinação do pensamento cristão, do zoroastris-
mo e de ideias religiosas orientais. Em muitos pontos se assemelhava a outros ramos
do gnosticismo. Seu ascetismo, por exemplo, era extremo, exaltando o celibato
como a maior das virtudes.
Os maniqueístas dividiam-se em duas classes: os eleitos, celibatários rigorosos,
eram vegetarianos e se dedicavam somente à oração; e os ouvintes, cuja esperan-
ça era voltar a nascer convertidos em eleitos.
O maniqueísmo exerceu influência durante um bom tempo após a morte de
Mani. Agostinho por exemplo, no século IV, foi discípulo deles por 12 anos, pois esta
seita era bastante numerosa na África. Agostinho se viu atraído por eles, devido à
sua explicação racional do mundo, bem como pelo seu código moral ascético,
que temporariamente lhe ofereceu uma solução para os seus problemas espirituais.
Com o tempo, o caráter fraudulento da doutrina maniqueísta foi se tornando evi-
dente para Agostinho, até que decidiu deixá-la. Depois de sua conversão, porém,
trabalhou arduamente para refutá-los.

 Outros nomes do gnosticismo


 Marcião
Mesmo que alguns não o considerassem estritamente um gnóstico, devido a
algumas características distintivas, muitos pontos de sua doutrina se harmonizavam
com o gnosticismo. Rejeitou os elementos mitológicos utilizados pela maioria dos
gnósticos, bem como qualquer tipo de sincretismo, mas recebeu bastante influên-
cia do gnóstico sírio Kerdo, a partir de quem desenvolveu toda sua teologia.

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Dizia que sua intenção era purificar o Evangelho de coisas que ele considerava
alheias a este. Neste sentido, fez uma separação radical entre lei e Evangelho. Como
consequência, manifestou forte tendência antijudaica. Tudo o que se referisse aos
judeus de forma boa, foi por ele rejeitado. Logo, acabou caindo em certas ideias
predominantemente gnósticas. Não é difícil imaginar porque a teoria dos dois deu-
ses, um do Novo e outro do Antigo Testamento, foi bastante atraente para Marcião.
O Deus do Novo Testamento era um Deus de amor, que se manifestou entre os
homens através do Cristo. Todavia, seu conceito cristológico era ainda carregado
de gnosticismo. Por ser ele distinto do Criador, não podia ter carne humana seme-
lhante à nossa. Logo sua cristologia foi docética, embora ele acreditasse no valor
redentor de sua morte. Neste ponto ele tornou-se um pouco confuso.
Embora o Deus de Marcião fosse excessivamente bom, diferente do Deus da
Antiga Aliança que manifestava ira, ele ensinou uma moralidade extremamente
ascética. Condenou o matrimônio e ensinava que só uma vida regida por estes
princípios poderia libertar o homem do demiurgo, o Deus criador.
Chegou a Roma por volta do ano 140 d.C. Ao ser expulso da congregação
local por causa de suas ideias, organizou sua própria igreja, que em pouco tempo
cresceu consideravelmente. Vestígios dessa organização ainda puderam ser en-
contrados em vários lugares até mesmo no século VI.

 Saturnino
Apareceu na Síria no início do segundo século. Seu gnosticismo possuía forte
influência oriental

 Basilides
Foi o líder do gnosticismo egípcio por volta do ano de 125 d.C. Era um gnosticis-
mo bastante filosófico, de forte influência grega. Sua teoria docética era ainda mais
estranha. Ele sugeriu que Simão Cireneu foi crucificado no lugar de Cristo e assim Je-
sus escapou da morte na cruz. Insistia que a salvação só se referia à alma e o corpo
é naturalmente incorruptível. A lei não foi mais do que um produto de Moisés. Sua
ética pendeu para a sensualidade, uma vez que as questões da matéria são indife-
rentes. Por isso chegou até mesmo a aceitar o sacrifício aos ídolos como permitido.

 Valentino
Foi o líder da corrente romana do gnosticismo. Pregou em Roma de 135 a 160
d.C.. Podemos dizer que ele propagou a versão clássica do gnosticismo. O livro II da
obra de Irineu, Adversus Haereses (Contra as Heresias), que versa sobre a existência
de um demiurgo distinto de Deus, foi escrito para responder às heresias de Valentino.

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 Os pais antignósticos

D entre os líderes que devotaram sua vida à refutação do gnosticismo, pode-


mos apontar três principais: Irineu, Tertuliano e Hipólito. Vejamos algo sobre
cada um deles:

 Irineu

Nasceu na Ásia Menor e foi aluno de Policarpo em sua juventude, que por sua
vez havia sido discípulo do apóstolo João. Tornou-se bispo de Lyon em 177 d.C.,
permanecendo ali até a morte. De seus escritos, apenas dois chegaram até nós.
Um deles Adversus haereses , ou seja, Contra as Heresias. Restam desse escrito um
fragmento do original grego e uma tradução latina. O segundo escrito, Epideixis ,
apresenta as doutrinas básicas da “proclamação apostólica”. Para ele, a Bíblia era
a única fonte de fé, o que o tornou um teólogo verdadeiramente bíblico.

Este apego à Bíblia ia contra as afirmações gnósticas, que baseavam suas afir-
mações em revelações de sabedoria oculta independentes das Escrituras Sagra-
das. Tendo isto em conta, vemos que as fontes para o conhecimento da verdade
divina para um e outro eram muito diversas. Irineu colocava o Antigo e o Novo
Testamento como regra de fé e referia-se à Igreja na pessoa de seus líderes como
guardiã da fé apostólica, em oposição aos gnósticos que não tinham fundamen-
tação histórica para suas afirmações. Para Irineu, a salvação se realizava dentro
do processo histórico, primeiramente com a encarnação do Verbo e depois com a
ressurreição no final dos tempos, enquanto a salvação gnóstica se realizava tirando
o homem do contexto temporal.

Sua obra Adversus Haereses é um verdadeiro tratado antignóstico. Ponto a


ponto ele analisou e refutou esses ensinos, reconhecendo a matéria como criação
de Deus, levando-a à necessidade de restauração através do poder da ressurrei-
ção. É importante lembrar que Irineu fez amplo uso da filosofia grega e mesmo
assim não comungou da visão grega de rejeição à matéria, mas foi totalmente
bíblico em sua teologia.

 Tertuliano

Tertuliano de Cartago foi o primeiro grande teólogo ocidental e o fundador da


teologia latina. Foi um escritor bastante original que dedicou sua vida a defender
a fé cristã e instruir os fiéis. Era advogado e por isso sua obra está repleta de ideias
jurídicas. Tanto quanto Irineu, ele considerava o gnosticismo o pior inimigo do cris-
tianismo. Para combatê-lo escreveu duas importantes obras: Adversus Marcionem;
De praescriptione Haereticorum.

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Este seu envolvimento na refutação dos gnósticos condicionou bastante sua te-
ologia. Isto se vê principalmente em sua oposição à filosofia. Diferente de Irineu e
outros pais apostólicos, ele rejeitou a filosofia grega como algo nocivo ao verdadeiro
cristianismo, visto esta estar por trás das deturpações gnósticas. Isso fica claro nesta
declaração: “Que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que tem a academia (grega) a
ver com a Igreja? [...] Nossa doutrina flui da sala de pilares de Salomão que aprendera
que é preciso buscar o Senhor com inocência de coração [...] Os gnósticos vão além
da fé na sua sabedoria. O cristão pelo contrário, adere à fé simples que é revelada
nas Escrituras e preservada pela tradição apostólica. Nada conhecer em oposição à
regra de fé é conhecer todas as coisas” (De praescriptione Haereticorum, 14).
O que pesou contra Tertuliano foi o fato de o mesmo ter, em determinado tem-
po, se unido ao montanismo, movimento considerado herético. Até hoje não foram
encontradas explicações satisfatórias para esse deslize, mas talvez o caráter místi-
co o tenha atraído, visto que, como podemos perceber, ele nutria forte aversão à
filosofia grega.

 Hipólito
Foi bispo em Roma. Sua obra mais famosa intitula-se Philosophoumena ou “Re-
futação de todas as heresias”. Trata-se de um apanhado enciclopédico das ideias
filosóficas que derivaram dos filósofos naturalistas gregos, de vários conceitos mági-
cos e religiosos de sua época, bem como outras heresias eclesiásticas que a seu ver
tinham raízes na filosofia grega. Foi um importante apanhado sobre as diversas es-
colas então existentes. O material polêmico enfocou especialmente os gnósticos.

 Montanismo

O montanismo foi uma reação ao desaparecimento dos dons espirituais na


Igreja do século II d.C. Foi um movimento bastante forte, principalmente
na região da Frígia. Seu fundador foi Montano. Ele intitulava seu movimento de
“Nova Revelação” ou “Nova Profecia”. Rejeitava a crescente autoridade dos bis-
pos (como sendo sucessores herdeiros dos apóstolos) e a autoridade dos escritos
apostólicos. Considerava as igrejas e seus líderes espiritualmente mortos e reivindi-
cava uma “nova profecia” com todos os sinais e milagres dos dias da Igreja primiti-
va no pentecostes.
Ele alegava ter recebido uma revelação direta do Espírito Santo de que ele,
como representante do Espírito, lideraria a Igreja durante o último período dela
aqui na terra. Por isso se intitulava porta-voz do Espírito Santo e acusava os líderes
da igreja de prender o Espírito Santo dentro de um livro, pois limitavam a inspiração
divina apenas aos livros apostólicos. Não é difícil identificar outros grupos dentro da
história da Igreja que caíram no “desvio pneumatológico” dos montanistas.

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HISTÓRIA DAS
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Montano acreditava na inspiração contínua e colocou-se como alguém por


meio de quem o Espírito Santo falava, no mesmo nível que falara através de Paulo
e dos outros apóstolos. Segundo seu entendimento, “o mais elevado estágio da
revelação” havia sido atingido nele. O fim do mundo estava próximo e o Espírito o
havia escolhido, juntamente com duas profetisas, Maximila e Prisca, para falar à hu-
manidade sobre os últimos julgamentos de Deus sobre o mundo. Montano cria que
era o último profeta escolhido por Deus para revelar seus eternos planos.
Tertuliano, o mais famoso adepto do montanismo, em sua obra De Anima (So-
bre a Alma), deu o seu relato sobre o movimento. Falando sobre uma das profeti-
sas, ele disse o que segue: “Nós temos entre nós uma irmã que tem sido agraciada
com muitos dons de revelação, os quais ela vivencia no Espírito, por meio de visões
extáticas, na Igreja, no meio dos ritos sagrados do Dia do Senhor. Ela conversa com
anjos e, às vezes, até com o Senhor. Ela vê e ouve comunicações misteriosas. Ela
consegue discernir o coração de alguns homens e recebe instruções para a cura
sempre que precisa. Seja lendo as Escrituras, cantando salmos, pregando ou ofere-
cendo orações – em todos estes serviços religiosos, oportunidades são oferecidas a
ela para que tenha visões”.
Além das visões e conversas com anjos, uma das profecias do movimento era a
de que, após a morte de uma de suas profetisas, Maximila, viria o fim, com tumultos
e guerras por toda a parte. A história provou a falsidade desta profecia. O movi-
mento também se caracterizou por uma moral ascética em que o casamento era
proibido e, algumas vezes, até mesmo as relações sexuais dentro do casamento. Os
jejuns eram extremamente severos.

 A posição da Igreja

A Igreja cristã reagiu fortemente contra o montanismo. O fanatismo e as rei-


vindicações de possuir revelações superiores às do Novo Testamento fize-
ram do montanismo uma ameaça à Palavra de Deus.
Na medida em que os profetas do movimento consideravam suas revelações
como sendo últimas, a revelação bíblica dada por Deus através dos profetas e
apóstolos ficava rejeitada a um segundo plano.
Diante desta ameaça à Palavra de Deus, a posição da Igreja foi condenatória.
Um grupo de bispos da região onde morava Montano se reuniu secretamente e la-
vrou um documento excomungado-o, bem como as duas profetisas e todos os seus
seguidores. Este talvez tenha sido o primeiro cisma dentro do cristianismo emergen-
te, pois desde o ano 160 d.C. começou a existir dentro da região da Frígia, tanto
igrejas que diziam seguir a tradição apostólica, como igrejas que diziam seguir o
movimento “espiritual” de Montano.

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HISTÓRIA DAS
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Em seu desejo de reavivar os dons espirituais na Igreja, Montano acabou pro-


vocando justamente o contrário. Levou os bispos a proibirem manifestações como
profecias, línguas, interpretações e outras manifestações sobrenaturais, mesmo as
legitimamente bíblicas.
Em 381 d.C., o Concílio de Constantinopla, condenou o movimento como
herético.

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34 HERESIAS PRIMITIVAS

Capítulo
q Monarquianismo e Arianismo
3
Q uem foi, teologicamente, Jesus de Nazaré? A natureza do Filho de Deus
esteve em questão, logo nos primeiros séculos da Era Cristã. Ele era o
próprio Deus aqui na Terra ou um mero subordinado? Sua natureza era divina ou
humana?
Ao contrário do que muitos pensam este assunto é vital para o entendimen-
to do cristianismo. Uma definição falsa sobre a natureza de Cristo comprometeria
toda a mensagem de salvação.
Devemos lembrar as palavras do apóstolo Paulo: “E até importa que haja entre
vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós” (1Co 11.19).
Sempre foram as falsas afirmações sobre o Evangelho que obrigou a Igreja a se
posicionar de forma clara e definitiva. Sem este processo que houve através dos sé-
culos II e VI, ficaria uma grande lacuna e incerteza acerca de assuntos tão vitais.

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HISTÓRIA DAS
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 A controvérsia monarquianista

O monarquianismo foi a primeira das controvérsias ligadas ao relacionamen-


to entre o Pai e o Filho. Começa a surgir já no final do século II e embora
tivesse duas correntes bem distintas, ambas receberam o mesmo nome. Esta con-
trovérsia prosseguiu por todo o século III da Era Cristã, e foi combatendo esta here-
sia que o dogma da Trindade foi devidamente formulado. Podemos encontrar nos
trabalhos de Tertuliano diversas referências a esta heresia.
Era uma negação aberta da divindade do Filho, com o propósito de resolver o
conflito entre a unidade da divindade, diante da divindade de Jesus. Em resumo,
podemos dizer que o monarquianismo repudiava a ideia de “economia”, segundo
a qual Deus, que certamente é um, revelou-se de tal maneira que apareceu como
o Filho e como o Espírito Santo. Uma forma de monarquianismo foi chamada de
dinâmica (ou adocionista) e a outra foi chamada de modalista.

 Monarquianismo dinamista
O primeiro representante do chamado monarquismo dinamista foi o curtidor Teo-
doto, que chegou a Roma, vindo de Bizâncio em 190 d.C., fugindo da perseguição.
Em geral, negava por completo a divindade de Cristo. Julgava-o superior aos
outros homens, somente pela sua justiça. Em sua concepção, Jesus foi como os
demais homens até o tempo do seu batismo, quando então o Cristo veio sobre ele
como um poder e começou a atuar. Logo, o elemento divino que estava em Cristo
era apenas um poder outorgado por Deus. Por isso este tipo de monarquismo rece-
beu o nome de “dinamista” (do grego dynamus = poder). O bispo de Roma, Vítor,
excomungou Teodoto por esta heresia.

Paulo de Samósata
Entretanto, o mais destacado defensor desta posição foi Paulo de Samósata.
Ele acumulava as funções de bispo de Antioquia e de importante autoridade políti-
ca no governo de Zenóbio, rainha de Palmira, por volta do ano de 260 d.C. Era um
demagogo. Buscava na Igreja de Antioquia aplausos e acenos. Chegou mesmo a
organizar um coro feminino para cantar louvores a ele mesmo. Sua fortuna sempre
esteve sob suspeita, uma vez que não recebera nenhuma herança.
Paulo de Samósata ensinava que Cristo não era mais que um mero homem,
que pela justiça e penetração do seu ser pelo divino Logos alcançou a divindade
e o caráter de salvador. Isto não o fazia divino, apenas lhe conferia qualidades di-
vinas. Sua concepção era de que o Filho foi um simples homem e o Espírito Santo
nada mais era do que a graça derramada nos apóstolos.

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Em 264 d.C. foi realizado um Sínodo em Cesareia da Capadócia, onde suposta-


mente houve uma “conversão” do bispo Paulo. Para afastá-lo da heresia, os bispos
redigiram uma “fórmula de fé”, à qual ele foi obrigado a assinar. Todavia, após o
Sínodo, ele voltou à mesma vida anterior, de fausto, luxo e licenciosidade.

Os bispos tornaram a convocar um segundo Sínodo em Antioquia, no qual ele


foi declarado herético, no ano de 268 d.C. e deposto de seu cargo.

 Monarquianismo modalista

Este tipo de monarquianismo surgiu primeiramente na Ásia Menor e foi levado


para Roma por Noeto e seus discípulos. Foi em Roma que surgiu Praxeas, o repre-
sentante do modalismo contra quem escreveu Tertuliano.

Noeto não negava a divindade de Cristo, porém negava a distinção das pes-
soas. Para ele, o Pai e o Filho eram a mesma pessoa. Eram apenas “modos” diferen-
tes pelo qual a divindade se manifestava – por isso o nome de “modalismo”. Para
ele, era a mesma coisa dizer que o Pai sofreu ou que o Filho sofreu, pois apenas os
nomes eram diferentes, a pessoa era a mesma. Praxeas tentou atenuar um pouco
esta posição, dizendo que o Pai sofreu com o Filho, mas sua posição também foi
rejeitada. Tertuliano chamou esta posição também de “patripassionismo”.

Sabélio
Entretanto, o principal representante desta escola foi Sabélio, que viveu em
Roma por volta de 215 d.C. Daí o nome de sabelianismo ser aplicado a esta heresia.
Ele desenvolveu de forma mais ampla e minuciosa esta doutrina herética. Afirma-
va que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um; são uma única substância, isto é, só
podem ser distinguidos um do outro, pelo nome. Foi atribuída a ele a frase: “Deus,
com respeito à hipóstase (natureza) é um, mas foi personificado nas Escrituras de
várias maneiras segundo a necessidade do momento”. Sendo assim, ele não ape-
nas acreditava que a substância das três pessoas da Trindade era uma só, mas
também que as três pessoas são a mesma.

Isto não quer dizer que ele ensinasse que Deus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo
ao mesmo tempo. Eram formas de manifestação diferentes em tempos diferentes.
Eram distintas apenas em modo e tempo e não como pessoas. Era uma posição
bem semelhante ao unicismo moderno.

Como a heresia de Sabélio foi se tornando mais e mais evidente e o número de


seus adeptos foi crescendo, o bispo de Roma daquela época, Calixto, excomun-
gou-o. Ele então fugiu para o Oriente e depois para o Egito, onde veio a morrer em
260 d.C. Sua seita subsistiu até o final do século IV.

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 A controvérsia ariana

O arianismo foi a principal heresia que envolvia a identificação da natureza


do Filho e seu relacionamento com a pessoa do Pai. Tinha suas raízes nas
controvérsias cristológicas precedentes, mas por ter surgido em um período de ofi-
cialização da Igreja foi a que mais agitou o cristianismo nos tempos primitivos e que
de certo modo deu origem à dogmatização da fé e à tradição conciliar da Igreja
para resolver questões teológicas.

Constantino, através do Edito de Milão, deu ao cristianismo um caráter oficial


e as disputas eclesiásticas tendiam a afetar diretamente o Império. Uma Igreja di-
vidida enfraqueceria Roma e por isso o imperador teve de intervir para resolver a
questão ariana que ameaçava dividir o Império ao meio.

A grande questão envolvida neste embate, que se arrastou pelos séculos IV e V,


se referia à relação entre a pessoa de Cristo e a sua divindade. Jesus poderia ser cha-
mado de Deus, no mesmo sentido que o Deus do Antigo Testamento? Se a resposta
deveria ser afirmativa, isto não comprometeria a doutrina da unicidade de Deus?
Por outro lado, se ele não era Deus, porque as Escrituras se referem a ele nos mesmos
termos que confere a Deus aplicando-lhe os mesmos atributos?

Já desde o final do século II, algumas correntes teológicas, as correntes de-


nominadas de monarquianismo, haviam se desviado da ortodoxia, negando uma
divindade plena para o Filho de Deus e foram condenadas como heréticas. Ter-
tuliano, que teve grande influência na teologia ocidental, foi muito claro em sua
concepção da Divindade como uma unidade de três Pessoas (unidade composta).
Mas após o período de perseguição, a questão centralizou-se principalmente na
área oriental do Império.

 Raízes do conflito

Por volta do ano de 318 d.C., um bispo da cidade de Alexandria, chamado


Alexandre, discutiu com seus presbíteros “A Unidade da Trindade”. Dentre eles es-
tava Ário, um erudito asceta e pregador popular, provavelmente nascido na Líbia,
por volta de 258 d.C., que viria a ser o grande pivô desta discussão que duraria
séculos.

Ário foi discípulo de Luciano de Antioquia, bispo que já estivera envolvido com
outros falsos conceitos cristológicos. Ele foi ordenado sacerdote e encarregado
pelo bispo de Alexandria da Igreja de Baucalis. Aparentemente, ele era uma pes-
soa carismática e atraiu tantos seguidores devotos que desafiou abertamente o
bispo alexandrino a respeito da sua teologia sobre Cristo e a Trindade, e muitos
cristãos de Alexandria tomaram o seu partido.

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HISTÓRIA DAS
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Baseando-se em um texto isolado de Provérbio 8.22, em que diz que Deus “criou”
a sabedoria desde o princípio (a tradução mais aceita, seria “possuiu”) e identifican-
do a sabedoria com o Logos, Ário classificou o Filho como sendo uma mera criatura,
ainda que fosse a maior das criações de Deus. Desejando evitar uma posição que
parecesse um politeísmo, ele acabou negando a divindade do Filho de Deus.

Na verdade, o presbítero alexandrino estava imbuído de um conceito filosófico


de Deus, que recusava a possibilidade deste conferir a qualquer outro sua essência,
pelo fato de ser uno e indivisível. Sendo assim, o Logos (Verbo) só poderia vir a existir
por meio de um ato criador. Concluindo, Cristo não poderia ser Deus, em sua opi-
nião. Como resultado desta concepção, o Filho acabou adquirindo uma natureza
intermediária, sendo um ser menor que Deus e maior que os homens e anjos. Ele
teria sido criado junto com o tempo, ou mesmo antes do tempo.

Seu credo foi assim expresso: “O Filho não existiu sempre, pois quando todas as
coisas emergiram do nada e todas as essências criadas chegaram a existir, foi en-
tão que o Logos de Deus procedeu do nada. Houve um tempo em que ele não era
( een pote hote ouk een), e não existiu até ser produzido, pois mesmo ele teve um
princípio quando foi criado. Pois Deus estava só e naquele tempo não havia nem
Logos nem sabedoria. Quando Deus decidiu criar-nos, produziu, em primeiro lugar,
alguém que denominou Logos e Sabedoria e Filho, e nós fomos criados por meio
dele” (Atanásio, Orationes contra Arianos, I, 5).

 A reação do Bispo Alexandre

O bispo Alexandre era, segundo se relata a seu respeito, um bispo meigo e to-
lerante, que não tinha prazer nos conflitos, mas que finalmente resolveu responder
às críticas de Ário a respeito de Deus e de Jesus Cristo, tentando corrigi-lo por meio
de correspondências e sermões, e quando essas coisas mais brandas não surtiram
efeito, convocando um sínodo de bispos em Alexandria a fim de examinar as opini-
ões de Ário e de tomar uma decisão sobre sua ortodoxia ou a falta dela.

Antes, porém, de o sínodo reunir-se, Ário convocou seus seguidores cristãos e


começou a marchar pelas ruas da cidade, passando pela grande igreja e pela
casa do Bispo, levando cartazes e entoando lemas como: “Tempo houve em que
o Filho não existia”. Utilizando cânticos com este conteúdo doutrinário, conseguiu
atingir a camada operária de Alexandria. Logo, os que seguiram Ário, o fizeram
mais por questões emotivas, atraídos pela música e pelo carisma, pois não compre-
endiam plenamente as questões teológicas que estavam envolvidas. Algo muito
semelhante ao que aconteceu na Revolução Russa do século 20, quando os prole-
tários deixaram-se influenciar por Lênin, sem, contudo entenderem profundamente
as questões políticas envolvidas.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Alexandre convocou um sínodo que se reuniu em 318 d.C., com cerca de cem
bispos de vários lugares do lado oriental do Império. Alexandre acusou Ário de res-
suscitar a heresia de Paulo de Samósata, negando a Trindade e a divindade do
Filho. Para o bispo, esta negação comprometia a salvação, uma vez que segundo
esta heresia aquele que efetuara a salvação não era o próprio Deus.
Ário respondeu na mesma altura, alegando que era impossível a Divindade e a
humanidade se unirem em um único ser.
Os cento e tantos bispos reunidos em Alexandria condenaram Ário e seus ensi-
nos a respeito de Cristo como heréticos e o depuseram de sua condição de presbí-
tero. Ele foi obrigado a deixar a cidade, mas não considerou o assunto como encer-
rado. Foi refugiar-se com seu amigo, Eusébio da Nicomédia, que nesta época já era
um bispo importante e o recebeu amigavelmente. Juntos começaram um trabalho
de persuasão, correspondendo-se com os bispos que não fizeram parte do sínodo.
Esta extensa correspondência se perdeu, não restando senão aquilo que se
pode retocar dos escritos de seus oponentes. Ário também pretendia escrever uma
grande obra em verso, chamada de Thalia (Banquete), de fácil recitação para os
simples. Uma de suas declarações típicas referentes à relação entre o Pai e o Filho
declara o seguinte:
“E Cristo é o Verbo de Deus, mas por participação [...] até ele foi feito Deus [...]
O Filho não conhece o Pai com exatidão e o Logos não vê o Pai com perfeição e
ele não percebe o Pai com exatidão e nem o Logos o compreende; isto porque ele
não é o verdadeiro e único Logos do Pai, mas somente em nome ele é chamado
Logos e Sabedoria, e pela graça é chamado Filho e Poder”.
Como vemos, sua noção do Logos envolvia profundas questões filosóficas e es-
tava em clara oposição ao que Jesus disse com respeito ao relacionamento entre
o Pai e o Filho em Mateus 11.27.
Ário, contraditoriamente, reconhecia três seres divinos (Pai, Filho e Espírito San-
to), sendo que somente um deles é verdadeiro Deus. Continuou, na sua profissão
de fé, afirmando que somente o Pai é sem princípio e que o Filho, embora criatura
grandiosa que compartilha de muitos atributos de Deus, não existia antes de ser ge-
rado pelo Pai. Era uma posição um tanto ambígua para quem pretendia defender
a Unidade de Deus, pois neste caso o Filho seria uma espécie de semi-deus, o que
era completamente contrário à doutrina cristã.
Quando Alexandre, bispo de Alexandria, soube das maquinações de Ário, es-
creveu para o bispo de Roma, Silvestre, a fim de que este se resguardasse das da-
nosas heresias de Ário e se esforçasse em combatê-lo. Para combater as heresias
arianas, escreveu um trabalho intitulado Deposição de Ário, em que buscava expli-
car os motivos de sua excomunhão. Exortava a que ninguém o recebesse, pois se
tratava de um herege com o qual ninguém deveria ter comunhão.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Em sua exposição dos falsos ensinos de Ário, Alexandre fez um resumo de seu
erro teológico que bem sintetiza o arianismo:
“E as novidades que inventaram e publicaram contra as Escrituras são as seguin-
tes: Deus não foi sempre o Pai, mas houve tempo em que Deus não foi Pai. O Verbo
de Deus não existiu sempre, mas se originou de coisas que não existiam; porque o
Deus que existe, fez aquele que não existia, a partir daquele que não existia; portan-
to, houve tempo em que ele não existia; pois o Filho é uma criatura e uma obra. Ele
não é igual ao Pai em essência, não é o verdadeiro e natural Logos do Pai e nem é
sua verdadeira Sabedoria; mas ele é uma das coisas feitas e criadas e é chamado
Verbo e Sabedoria por um abuso de termos, pois ele mesmo se originou do verda-
deiro Verbo de Deus, e pela Sabedoria que existe em Deus, mediante o qual Deus,
não apenas criou todas as coisas, mas ele também. Portanto ele é, por natureza,
sujeito a mudanças e variações, assim como todas as criaturas racionais”.
Para termos ideia da contaminação e do entusiasmo que suscitaram as ideias
de Ário, basta pensar que tudo se deu no prazo de um ano: Palestina, Síria, Ásia
Menor, Egito estavam tomados por suas ideias, surgindo uma comunidade ariana
ao lado da Igreja ortodoxa.
Bispos reunidos num sínodo em Cesareia da Palestina puseram-se ao lado de
Ário e o autorizaram a reassumir suas funções sacerdotais em Alexandria. Alexandre,
porém, recusava-se a aceitá-lo, novamente, em sua diocese. Incentivado por seus
adeptos, Ário desembarcou em Alexandria. Sua chegada provocou grande agita-
ção, pois molineiros, marinheiros, viajantes, mercadores, camponeses e o povo mais
simples cantavam suas canções pelas ruas e praças. O arianismo tornou-se então,
uma questão popular.

 A entrada de Constantino no conflito


Constantino ficou sabendo do conflito através de seu capelão, o bispo Ósio,
que o informou a respeito e relatou que os bispos do Oriente estavam se dividindo
devido a uma rixa entre Ário e Alexandre. Como o conflito estava concentrado
mais na parte oriental do Império, os bispos do Ocidente não estavam completa-
mente a par do que estava acontecendo.
Tendo nas mãos as correspondências de Eusébio da Nicomédia e de Alexandre,
em que cada um fazia a apologia de seu ponto de vista da melhor maneira possível,
a questão parecia um tanto confusa, deixando os bispos ocidentais inteiramente
perplexos. Quase de forma invisível, a Igreja se encontrava à beira de um cisma, e
se uma providência não fosse tomada, em breve isto seria uma realidade. Ninguém
queria isso e o imperador Constantino seria o último a desejar tal coisa. Para ele, o
cristianismo seria o cimento que haveria de dar ao Império a unidade e estabilida-
de que ele tanto desejava. Dividir a Igreja seria o equivalente a dividir o Império.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Não era nada agradável ver os bispos tornarem-se inimigos devido a questões me-
tafísicas a respeito de Deus.
Para resolver a questão e temendo que esta fosse provocar um cisma dentro
do Império, o imperador Constantino convocou um concílio na cidade de Niceia,
que pudesse resolver de forma definitiva essa controvérsia. Reunindo cerca de 318
bispos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, este Concílio marcou para sempre
a história da Igreja. Era um acontecimento até então único dentro da história da
Igreja. Os líderes cristãos, até então perseguidos e martirizados por Roma, eram
agora convocados pelo próprio imperador e às custas do mesmo, para resolverem
questões relativas à fé cristã.
Constantino escolheu esta cidade (Niceia) porque já há muito estabelecera
residência nela, pois a nova capital do Império, Constantinopla, estava sendo cons-
truída. Dali ele administrava as questões do Estado e da Igreja. Havia trazido gran-
de número de súditos e conselheiros, estando assim cercado por toda a sua corte.
É importante destacar o fato de que até mesmo o bispo da cidade de Niceia,
Teogno, estava inclinado à causa de Ário, principalmente devido à influência de
Eusébio da Nicomédia. Com isto, é possível perceber que o conselho já estava de
certa forma dividido mesmo antes do entrave. A questão estava demasiadamente
arraigada em meio ao povo e a Igreja para poder ser resolvida de forma definitiva
em um único concílio.
Embora Eusébio de Cesareia tivesse feito um relato do Concílio, não temos
informações detalhadas das atas e relatórios do mesmo. Ao que parece, Constan-
tino estava assentado em um trono acima da sala onde os bispos se reuniam e dali
intervia como mediador quando julgava que isto era necessário. Esta atitude desa-
gradou alguns bispos, ao ver o imperador se intrometendo em questões que para
eles não eram da alçada do poder temporal. Mas o imperador não pensava desta
forma e com certeza os bispos não ousariam desafiá-lo.
O Concílio durou cerca de dois meses e tratou de muitas questões que confron-
tavam a Igreja. Cerca de vinte decretos diferentes foram promulgados, que trata-
vam de diversas questões, que iam desde deposição de bispos relapsos até a or-
denação de eunucos. Também foi em Niceia que foi concedido ao bispo de Roma
uma posição de liderança para a Igreja do Ocidente, mostrando que esta posição
não era originada da época apostólica e mesmo assim, nem mesmo agora, incluía
as Igrejas do Oriente, que passaram a ser regidas pelo bispo de Alexandria, o bispo
Alexandre.
Todos estes assuntos, porém, eram de importância secundária. A questão cen-
tral e motivadora da reunião foi a controvérsia ariana e era a respeito disso que os
bispos queriam debater.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

 Os partidos de Niceia

F ormaram-se três partidos diferentes em Niceia. O primeiro partido pode ser


chamado de arianismo puro e era apoiado por Eusébio da Nicomédia e
mais uma minoria de presentes. No total não passava de uns vinte e oito bispos,
mas mesmo assim tinham esperança de convencer a maioria e mesmo o próprio
Constantino. O próprio Ário foi proibido de participar do Concílio. Este grupo insistia
em Cristo como um ser criado antes do tempo. Para eles Cristo seria de essência
ou substância diferentes do Pai. Era divino, mas não era Deus, nem co-igual, nem
co-eterno.
O segundo grupo teve a liderança de Alexandre, auxiliado por seu jovem assis-
tente Atanásio, dentro daquilo até hoje considerado a posição ortodoxa. Para ele
e seu grupo, Cristo era co-igual e co-eterno, da mesma substância e essência que
o Pai, embora fossem personalidades distintas.
Atanásio era uma dessas raras personalidades que deriva incomparavelmente
mais de seus próprios dons naturais de intelecto do que do fortuito da descendên-
cia ou dos que o rodeiam. Sua carreira quase personifica uma crise na história da
cristandade, e pode-se dizer dele que mais deu forma aos acontecimentos em que
tomou parte do que foi moldado por eles. A esta descrição psicológica devemos
acrescentar sua fé profunda e inabalável, a serviço da qual colocou suas qualida-
des naturais. De estatura abaixo da média (pelo que foi objeto de sátira por parte
do apóstata Juliano), segundo seus biógrafos, era de compleição magra, mas forte
e enérgico. Tinha uma inteligência aguda, rápida intuição, era bondoso, acolhe-
dor, afável, agradável na conversação, mas alerta e afiado no debate. A história
não guardou o nome de seus pais. Pela elevada formação intelectual que ele de-
monstrara ainda jovem, julga-se que pertencia à classe mais elevada.
Por sua firme posição contra as afirmações de Ário, a vida desse grande de-
fensor da fé tornou-se uma história de exílio (cinco ao todo) e perseguição, da qual
ele sairia por fim vitorioso.
O terceiro partido foi liderado pelo célebre historiador eclesiástico, Eusébio de
Cesareia. Por sua natureza branda e avessa a controvérsias, ele tentou uma posi-
ção conciliatória que agregasse a opinião de ambos e pudesse ser aceita pelos
dois grupos. Mais de duzentos participantes seguiram de início suas colocações.
Para ele, Cristo não foi criado do nada como dizia Ário, mas foi gerado antes da
eternidade. Foi a proposição de Eusébio de Cesareia que foi aceita pelo Concílio.
A verdade é que nem todos os presentes estavam profundamente inteirados
das questões que envolviam o conflito, que como dissemos, concentrou-se na re-
gião oriental. Nem mesmo o imperador tinha conhecimento teológico para tal. So-
bre isto observou Justo Gonzales, historiador eclesiástico:

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HISTÓRIA DAS
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“A vasta maioria dos bispos parece não ter entendido a importância da ques-
tão em pauta e o receio do sabelianismo deixou todos relutantes para condena-
rem o subordinacionismo de forma contundente. Além disso, o imperador, que se
interessava mais pela unidade do Império que pela unidade de Deus, mostrou-se
disposto a encontrar uma fórmula que fosse aceitável ao maior número possível
de bispos”.

É bom lembrar que embora nos sínodos e decisões anteriores buscou-se com-
bater qualquer posição de inferioridade do Filho, tanto em natureza quanto em
posição e que pais como Tertuliano já houvessem formulado um certo conceito de
Trindade, não havia uma formulação definitiva. De certa forma, a questão estava
aberta e muitos temiam pender para posições que já haviam sido consideradas
heréticas. Isto enfraqueceu um pouco as posições dos bispos.

Portanto, é importante que o aluno compreenda que Niceia não criou a dou-
trina da Trindade. Apenas se repetiu aquilo que havia acontecido diversas vezes
na história do cristianismo, inclusive no próprio Concílio de Jerusalém narrado em
Atos 15, quando uma questão que estava conturbando a Igreja foi analisada de
forma ampla e detalhada, para então se chegar a uma posição ortodoxa. Con-
ceitos teológicos aceitos eram definitivamente reunidos e esclarecidos dentro de
uma fórmula doutrinária, que tinha por objetivo refutar falsos ensinos e simplificar os
verdadeiros.

 A primeira reação

Alguém sugeriu que o primeiro passo fosse ler as proposições de Ário. O partido
ariano o fez de um modo que perturbou a todos os presentes ao afirmar que Jesus
era mera criatura, em uma declaração que negava de forma direta a divindade
do Filho de Deus afirmando que não era de modo algum igual ao Pai.

Antes mesmo que Eusébio da Nicomédia terminasse a leitura, alguns bispos já


tamparam seus ouvidos com as mãos e pediram que se calasse, pois não estavam
a fim de escutar aquela blasfêmia. Um bispo que estava próximo a Eusébio deu um
passo à frente, arrancou o manuscrito de sua mão, lançou-o no chão e pisoteou-o.
Houve grande tumulto entre os bispos, que só foi interrompido pela intervenção do
imperador.

Esta reação se deve ao fato de que até então, as cartas escritas tanto por
Ário quanto por Eusébio, não eram explícitas em suas posições (eram proselitistas),
e foram escritas com intenção de atrair adeptos para seu partido. Não era o caso
agora, em que a afirmação simples e clara de Jesus como uma mera criatura ofen-
dia toda a teologia da Igreja. Esta era uma proposição claramente herética e com
certeza nenhum bispo a aceitaria.

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HISTÓRIA DAS
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 O credo de Niceia

Pouco a pouco foi surgindo a ideia de escrever um credo que exprimisse a


“fé antiga da Igreja”. O termo escolhido para descrever a relação entre o Pai e o
Filho foi homoousios – consubstancial – que deriva de duas palavras gregas “uma”
e “substância”. Os arianos ficaram horrorizados com esta posição e os partidários
de Alexandre e Atanásio ficaram jubilosos. Somente alguns manifestaram a preo-
cupação de que o Pai e Filho fossem confundidos com a mesma pessoa, tal qual
ensinava o modalismo. Este primeiro credo de Niceia foi assim redigido:

“Cremos em um só Deus Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e in-


visíveis; em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado de seu Pai, unigênito,
isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz verdadeira de Luz verdadeira, gera-
do, não criado, consubstancial com o Pai ( homoousios), por quem todas as coisas
vieram a existir, tanto no céu como na terra, que por nós homens e pela nossa sal-
vação desceu e encarnou, tornou-se humano, padeceu e ao terceiro dia ressusci-
tou e subiu ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo”.

Ao se utilizar a expressão “gerado não feito”, este credo “atingia em cheio” o


arianismo, uma vez que este se apoiava muito na palavra “gerado” utilizada por
João para justificar uma origem para o Filho de Deus. O credo mostrava que embo-
ra o termo “gerado” fosse aplicado, nunca foi utilizado o termo “criado”, que fora
tão comumente usado para as demais coisas. Portanto, a palavra “gerado” não
podia por si só justificar uma origem ao Filho.

Por fim, foi acrescentado um “anátema” para aqueles que ensinassem o opos-
to: “Mas quanto aos que dizem, houve um tempo quando o Filho não existia, que
antes de nascer não existia, que veio a existir a partir do nada ou que asseveram
que o Filho é de substância diferente da do Pai, ou que é criado e sujeito a altera-
ção e mudança, a esses a Igreja anatematiza”.

Isto definitivamente colocava Ário como herege e depunha a ele e aos bispos
que o apoiavam. Pela primeira vez um herege cristão era condenado e deposto
por um governante secular.

O imperador exigiu que todos os bispos assinassem o credo. Apenas Eusébio


da Nicomédia e Teogno de Niceia se recusaram. Devido a sua influência, ficava
patente que a questão não fora resolvida definitivamente. Este primeiro credo de
Niceia era um tanto ambíguo e, portanto, deixava possibilidade de contestação,
como de fato aconteceu. A ortodoxia teve uma vitória temporária em Niceia, com
a afirmação da eternidade de Cristo e a identidade de sua substância com o Pai.
Mas o conhecido Credo Niceno, só seria definitivamente formulado tempos depois,
baseado nas decisões do Concílio de Niceia.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Como resultado, haveria mais meio século de combate ariano. Imperadores


arianos e semi-arianos tornariam a causa uma questão política e por vezes parecia
que a doutrina da Trindade estava destinada a mergulhar no esquecimento. Isto
só não aconteceu devido a corajosa posição de homens como Atanásio, que de
forma quase épica lutou para que a ortodoxia prevalecesse.
Existe também o Credo de Atanásio, derivado deste, porém, mais detalhado
e que busca evitar interpretações errôneas. Ao usar o termo “mesma substância”,
corria-se o risco de cair no sabelianismo, por falta de distinguir as pessoas dentro da
Trindade. Por isso vale a pena conhecer o chamado Credo Atanasiano:

“E a fé católica (universal) é esta: adoremos um Deus na Trindade, e a Trindade


na unidade.

Não confundimos as Pessoas, nem dividimos (separamos) a Substância.

Pois existe uma única Pessoa do Pai, outra do Filho e outra do Espírito Santo.

Mas a Deidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é toda uma só: a glória é
igual, a majestade é co-eterna.

Tal como é o Pai, tal é o Filho e tal é o Espírito Santo.

O Pai não foi criado, o Filho não foi criado, o Espírito Santo não foi criado.

O Pai é incompreensível (imensurável), o Filho é incompreensível (imensurável),


e o Espírito Santo é incompreensível (imensurável).

O Pai é eterno, o Filho é eterno, o Espírito Santo é eterno.

E, no entanto, não são três (seres) eternos, mas há apenas um eterno.

E não há três (seres) que não foram criados e que são incompreensíveis (imen-
suráveis).

Há, porém, um só que não foi criado e é incompreensível (imensurável).

Assim sendo, o Pai é Todo-Poderoso, o Filho é Todo-Poderoso, o Espírito Santo é


Todo-Poderoso.

E, no entanto, não são três (seres) Todo-Poderosos, mas um só é Todo-Poderoso.

Assim, o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus.

E, no entanto, não são três deuses, mas um só Deus.

Igualmente, o Pai é Senhor, o Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

E, no entanto, não são três Senhores, mas um só Senhor.

Pois da mesma forma que somos compelidos pela verdade cristã a reconhecer
cada Pessoa, por si mesma, como Deus e Senhor, assim também somos proibidos
pela religião católica (universal) de dizer: Existem três deuses ou três senhores.

O Pai não foi feito de ninguém: nem criado e nem gerado.

O Filho vem somente do Pai: não foi feito nem criado, mas gerado.

O Espírito Santo vem do Pai e do Filho: não foi feito nem criado, e nem gerado,
mas procedente.

Assim há um só Pai, e não três Pais; há um só Filho, e não três Filhos; há um só


Espírito Santo, e não três Espíritos Santos.

E nessa Trindade nenhum é antes ou depois do outro. Nenhum é superior ou


inferior ao outro.

Mas todas as três Pessoas são juntamente co-eternas e co-iguais de tal modo
que, em todas a coisas, foi dito, a Unidade na Trindade e a Trindade na Unida-
de deve ser adorada.

Aquele, pois, que quiser ser salvo, deve pensar assim sobre a Trindade.

Também é necessário para a salvação eterna que se creia, fielmente, na en-


carnação de nosso Senhor Jesus Cristo.

Pois a verdadeira fé é que creiamos e confessemos que nosso Senhor Jesus Cristo,
o Filho de Deus, é Deus e Homem.

(Concordia Triglotta)

Deus da Substância do Pai, gerado antes dos mundos, e Homem da substância


de sua mãe, nascido no mundo.

Perfeito Deus e perfeito Homem, tendo alma e subsistindo em carne humana.

Igual ao Pai, referindo-se à sua divindade, e inferior ao Pai, referindo-se à sua


humanidade;

O qual, embora seja Deus e Homem, contudo não é dois, mas um só Cristo.

Um, não mediante a conversão da divindade em carne, mas por ter tomado a
humanidade em Deus.

Um, juntamente; não por confusão de Substância, mas por unidade de Pessoa.

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HISTÓRIA DAS
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Pois tal como a alma e a carne formam um só homem, assim Deus e o Homem
é um só Cristo;

O qual sofreu pela nossa salvação; desceu ao inferno, ressuscitou dentre os


mortos ao terceiro dia.

E ascendeu ao céu. Está assentado à direita do Pai, Deus Todo-Poderoso, de


onde virá para julgar os vivos e os mortos.

Por ocasião de sua vinda, todos os homens ressuscitarão em seus corpos e pres-
tarão contas de suas próprias obras.

Aqueles que praticaram o bem irão para a vida eterna; e aqueles que pratica-
ram o mal obterão as chagas eternas.

Essa é a fé católica (universal), a qual pode salvar o homem. Basta que ele
creia nela fiel e firmemente”.

 O retorno do arianismo

O imperador Constantino tinha uma irmã de nome Constança, que devido


a amizade com Eusébio da Nicomédia, se sensibilizara com a causa dos
arianos. Batalhou junto a seu irmão até que conseguiu a suspensão do exílio do
bispo Eusébio. Uma vez na corte, Eusébio da Nicomédia trabalhou juntamente com
Constança, para convencer o imperador a trazer de volta o próprio Ário. Torna-se
então o novo grande defensor do arianismo e começa uma campanha juntamente
com a irmã do imperador, atacando os principais bispos que ficaram contra Ário.
Sua vingança caiu fortemente sobre Atanásio de Alexandria, que fora o prin-
cipal expositor da posição ortodoxa, conseguindo autorização junto ao imperador
para exilá-lo. Em seguida consegue também o exílio de Eustácio de Antioquia e
Marcelo de Ancira. Muitos sacerdotes tiveram a mesma sorte e foram obrigados a
substituir as fórmulas de fé de Niceia pelas proposições dos arianos.
Eusébio conseguiu trazer Ário de volta em 331 d.C. o qual apresentou uma fór-
mula ambígua e amorfa (informe) ao imperador, a fim de ser isento do exílio. Era
esta a situação quando o imperador Constantino morreu, no ano de 337. Após a
morte de seu filho Cosntantino II, o Império foi dividido entre Constante no Ocidente
e Constâncio, no Oriente.
Sob Constâncio a perseguição contra os ortodoxos foi interrompida e Atanásio
pôde retornar do exílio e as sentenças que o condenaram foram anuladas em 340
d.C. O credo de Niceia foi substituído por quatro fórmulas diferentes nas quais não
aparecia de forma alguma a palavra “consubstancial”.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

O sucessor de Constantino foi seu filho Constâncio, que permitiu que Atanásio
retornasse à sua sé em Alexandria. Porém, sua restauração não seria permanente.
O relacionamento entre Atanásio e o imperador Constâncio era tempestuoso. O
imperador, que governou até a sua morte em 362 d.C., constantemente perseguia
o bispo, que parecia ser o último e principal baluarte de resistência da ortodoxia
trinitária ante o arianismo e o semi-arianismo.

O imperador queria paz e a uniformidade era o caminho para ela. Chegou a


achar que o termo homoousios, ironicamente, sugerido e imposto por seu pai, Cons-
tantino, deveria ser substituído no Credo de Niceia por homoiousios, que significa
“de substância semelhante” e era aceitável para os semi-arianos e até mesmo para
muitos trinitários. A nova terminologia teria tornado ortodoxa, se aceita, a crença
de que o Pai e o Filho compartilham de “substância semelhante” em vez de se crer
que são da mesma substância ou existência.

Os que faziam pressão em favor dessa mudança são geralmente considerados


”semi-arianos” e suas estrelas brilharam na igreja e no Império por volta de 360 d.C.,
quando Constantino passou a apoiá-los. A mudança teria excluído a interpretação
sabeliana da Trindade, deixando claro que o Pai e o Filho não são idênticos. Mas
também teria aberto a porta para uma interpretação ariana “subordinacionista” ao
subentender que talvez o Filho não seja Deus da mesma maneira que o Pai é Deus.

Atanásio resistiu com teimosia à mudança e até mesmo a condenou como he-
resia e a equiparou com o anticristo os que a apoiavam. Sua preocupação não era
simplesmente defender uma linguagem sacrossanta, mas defender o próprio Evan-
gelho. Para Atanásio e seus partidários, a própria salvação dependia do Filho ser o
próprio Deus e não uma grandiosa criatura semelhante a Deus. Para ele “a questão
fundamental é que somente o verdadeiro Deus pode unir a criatura a Deus” e a
“salvação não é possível mediante uma corrente hierárquica, do Pai através de um
Filho intermediário até as criaturas. Um intermediário, portanto, tanto separa quanto
une as criaturas com o Pai”. Ele se recusava terminantemente a aceitar a afirmação
ariana que dizia que “houve um tempo em que o Filho não existia”. Era inaceitá-
vel porque o Evangelho inteiro dependia de Jesus Cristo ser tanto verdadeiro Deus
quanto verdadeiro homem.

Acusou-se Atanásio de ser intransigente por estar provocando a divisão do


Império Romano, apenas por uma letra – “ i ”. É verdade que era apenas uma letra,
mas a diferença entre homoousios e homoiousios , tratava-se aqui da diferença
entre Criador e criatura. A primeira diz que o Filho é Deus. A segunda que ele é
apenas semelhante a Deus. Se um ser é Deus, é totalmente errado dizer que ele é
apenas semelhante a Deus. Esta pequena alteração revestia-se, portanto, de uma
importância extrema.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Todavia, Constâncio mostrou-se extremamente simpático ao arianismo. Não


demora a surgir uma nova onda de perseguição aos antiarianos, principalmente a
Atanásio. Em 357 d.C., os arianos triunfam no Oriente e no Ocidente.

Entretanto, os arianos não conseguiram manter a unidade. Começaram a surgir


diversas correntes dentro do próprio arianismo, que, como resultado, os enfraque-
ceu. As duas principais correntes foram o anomeísmo e o homeusianismo. Os pri-
meiros ensinavam que o Filho era de natureza completamente diferente da do Pai,
enquanto os últimos admitiam que eram de substância semelhante. Foi necessário
que o Imperador convocasse um Concílio em Constantinopla no ano de 360 d.C.
para resolver a questão.

 Novas ações de Atanásio

Em um de seus últimos exílios, Atanásio viveu durante cinco ou seis anos entre
os monges no deserto, até que a situação se acalmasse. Conseguiu convocar um
Concílio em Alexandria, que embora não possa ser considerado ecumênico não
teve o apoio, nem do imperador nem dos principais bispos da Igreja, mas abriu o
caminho para o segundo Concílio Ecumênico em Constantinopla, que seria rea-
lizado após a sua morte. Seu sínodo reuniu-se em Alexandria no ano de 362 d.C.,
reafirmando homoousios como a única descrição válida para o relacionamento
entre o Filho e o Pai. O homoiosios dos semi-arianos foi rejeitado como heresia
pelagiana.

Os principais tratados teológicos de Atanásio foram De incarnatione, traduzido


como “Da Encarnação do Verbo”, e quatro discursos contra os arianos. É óbvio que
também escreveu numerosas cartas, panfletos teológicos e livros pequenos. Mas
essas são as obras principais a respeito da Divindade e da salvação. Entre outras
obras de menor importância está “A vida de Antão” e “Contra os pagãos”.

“Da Encarnação do Verbo” continua sendo um grande clássico cristão e ainda


é publicado dezessete séculos mais tarde. É uma obra clássica da teologia constru-
tiva cristã primitiva. É possível que Atanásio a tenha escrito em seu primeiro exílio em
Tréveris. É um livro sobre a necessidade de uma encarnação genuína de Deus na
humanidade, para a salvação dos homens e ressalta a divindade de Jesus Cristo.

“Contra os arianos” é a obra mais polêmica de Atanásio e é dirigida contra


os arianos e semi-arianos. Foi escrita entre 356 e 360 d.C. quando então a heresia
ariana, na forma de semi-arianismo estava para se tornar a ortodoxia obrigatória
da Igreja inteira. A mensagem era muito parecida com aquela “Da Encarnação
do Verbo”, mas expressa de modo negativo, para desmontar o subordinacionismo
radical.

MATERIAL EXCLUSIVO PARA ALUNOS 37


HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Atanásio morreu em 373 d.C. na cidade de Alexandria. Passou os últimos sete


anos de sua vida em sua cidade natal como bispo dela, em relativa paz e quietude.
O imperador Valente, embora fosse ariano e o condenasse ao exílio, teve depois
compaixão e permitiu que ele voltasse para casa. Em seguida, o próprio imperador
também morreu.

 Os três capadocianos
Fundamental para a vitória trinitária, foi também a contribuição dos chamados
“Três Capadocianos”.
Basílio – o Grande, arcebispo de Cesareia, foi o principal artífice da assim cha-
mada teologia proto-nicena, que finalmente derrotou o arianismo. Seu irmão mais
novo, Gregório de Nissa, desenvolveu o mesmo ponto de vista ortodoxo de modo
mais especulativo e Gregório de Nazianzo interpretou-o de maneira retórica em sua
obra intitulada Orationes.
Enquanto Atanásio salientava vigorosamente a ideia de “uma substância” e
partia deste ponto para a descrição da Trindade, os capadocianos partiam da
ideia de “três pessoas distintas” e desenvolviam uma terminologia que descreve
tanto a unidade como a Trindade. Assim fazendo, aceitaram a teologia grega an-
terior que concebia três pessoas em níveis distintos no Ser Divino, conforme defen-
dera Orígenes.
Com sua colocação teológica, era possível rejeitar o arianismo por meio da
fórmula “o Filho da mesma substância que o Pai”, sem cair no modalismo, que
não deixava espaço para distinguir o Pai do Filho. Para isto, era necessário dei-
xar claro que embora Pai, Filho e Espírito Santo fossem da mesma substância una
( homoousios ), não eram a mesma pessoa. São três pessoas ( hypostases ) distintas
e não três máscaras ou três manifestações do único Deus – sendo isto o que o
sabelianismo afirmava.
Parece que finalmente a Igreja tinha chegado à definição trinitária latina de
Tertuliano, apresentada contra Praxeas um século e meio antes – una substantia,
tres personae. Mas em 362 d.C., esta conclusão ainda estava longe de ser univer-
salmente aceita.

 A solução definitiva – O Concílio de Constantinopla


Após a morte de Constâncio, surgem diversos governos curtos. O imperador
Valente (364-378 d.C.), no Oriente, foi favorável ao arianismo. Mas seu sucessor, Te-
odósio, um general e hábil administrador, era simpático à doutrina do Ocidente e
ao Credo Niceno. Empreende então uma campanha contra o arianismo e o varre
de forma definitiva do Império.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Em 381 d.C. aconteceu o Concílio de Constantinopla que colocou as decisões


de Niceia como a posição ortodoxa. Este era o segundo concílio de caráter ecu-
mênico, por reunir bispos de todas as partes do Império. O credo que aqui se origi-
nou, juntamente com o Credo de Atanásio e o Credo dos Apóstolos, são os grandes
credos universais da Igreja. O arianismo foi completamente rejeitado como heresia
e a divindade de Cristo estabeleceu-se como artigo de fé.
“Creio em um só Deus, Pai Todo Poderoso, criador do céu e da terra, de
todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, gerado do Pai
antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Por ele todas
as coisas foram feitas. E por nós homens, e para nossa salvação, desceu
dos céus: e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da virgem Maria, e se fez
homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi
sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras e subiu aos
céus, onde está assentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua
glória, para julgar os vivos e os mortos e seu reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo, Senhor que dá vida, e procede do Pai (e do Filho);
E com o Pai é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas.
Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo
para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do
mundo que há de vir. Amém”.
Um novo documento foi promulgado contra os heréticos a partir deste Concílio,
buscando estabelecer definitivamente a doutrina ortodoxa e rejeitando o arianismo e
o semi-arianismo como heréticos: “Sejam absolutamente excluídos dos edifícios ecle-
siásticos, pois não estão autorizados a celebrar suas assembleias ilegais dentro dos
povoados. Se tentarem qualquer distúrbio, ordenamos eliminar e expulsar das cidades
esses frenéticos, de modo que as autoridades possam ser restauradas, no mundo intei-
ro, e recolocadas em mãos dos bispos ortodoxos que confessam o credo de Niceia”.
Mas o presente Credo Niceno, na verdade, foi aprovado na Calcedônia, em
451 d.C., com toda probabilidade baseado em Credos sírio-palestinenses como o
de Jerusalém dos escritos de Cirilo. Este Credo, o Credo dos Apóstolos e o Credo de
Atanásio são os três grandes credos universais da Igreja. O arianismo, ao qual estão re-
lacionados o modernismo e o unitarianismo de hoje, foi rejeitado como doutrina não-
ortodoxa; a verdadeira divindade de Cristo foi colocada como artigo de fé. Embora
a decisão tomada em Niceia tenha se tornado um fator de separação entre as Igrejas
oriental e ocidental, não devemos esquecer o valor desta decisão para a nossa fé.
O arianismo estaria para sempre banido da doutrina ortodoxa da Igreja.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

 Efeitos de Niceia

N iceia custou à Igreja a sua independência. Embora a questão fosse solucio-


nada, abriu precedente para a interferência do Estado em questões ecle-
siásticas. Com isto, o Estado passaria a estar cada vez mais dominando a Igreja. No
Ocidente, a Igreja se livraria deste jugo e inverteria os papéis, passando a dominar
no âmbito secular. Enquanto no Oriente, a Igreja jamais se libertou deste domínio.
Todavia, este envolvimento da Igreja com o Estado só vai ser definitivamente
rompido após o período da Reforma, pois nem mesmo o luteranismo e o calvinismo
se desligaram completamente. Foram grupos mais radicais como os anabatistas
que insistiram na igreja como algo independente do Estado.
Outro efeito de Niceia é que a partir de então a Igreja estaria apelando para os
Concílios para resolver suas questões teológicas e mesmo práticas, a ponto de em
certos momentos da história do cristianismo indagar-se sobre a fonte da autoridade
da Igreja, se era o Papa ou os Concílios.
Ainda um terceiro elemento que tem sua origem em Niceia é a importância do
dogma. O dogma cristão era uma afirmação de cunho doutrinário que expressava
de forma minuciosa e definitiva uma verdade, que não poderia de forma alguma
ser contestada. Embora já houvesse outros credos anteriores, em Niceia eles ga-
nharam importância extrema, principalmente dentro do catolicismo romano.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Capítulo 4
q Novas controvérsias cristológicas

E ra de se esperar que o reconhecimento da divindade do Filho pusesse fim


a qualquer controvérsia nesta área. Todavia, ocorreu justamente o oposto.
Não agora no sentido de relacionar o Pai com o Filho, mas em compreender o senti-
do da união entre homem e Deus na pessoa de Jesus. Por vezes tendia-se a ressaltar
sua natureza divina em detrimento da humana e por vezes tendia-se a destacar sua
natureza humana em detrimento da divina.
Os séculos posteriores foram testemunhas de outras disputas teológicas, quan-
do novos dogmas, credos e definições foram levantados, no sentido de salvaguar-
dar a doutrina cristã de novas interpretações errôneas.
Estas novas disputas em torno de conceitos teológicos servem para comprovar
o cuidado da Igreja em não se desviar do ensino correto. O conflito com Ário e seus
seguidores quase deturpou completamente a natureza divina e afastou a Igreja da
verdade. Os bispos não estavam dispostos a incorrer em novos riscos.
Neste ponto, a fusão entre Igreja e Estado já se encontra em um estágio bas-
tante avançado. Mais do que nunca, a interferência de governantes e imperado-
res nas questões teológicas se fazia necessária. A Igreja estava bastante politizada
e mais do que nunca se escondiam jogos de poder por trás das decisões. (Todavia,
isto não é motivo para duvidarmos da credibilidade das decisões). O critério con-
tinuava sendo as Escrituras Sagradas, embora nem sempre isto transparecesse. O
que temos apenas é a expressão da fé bíblica, utilizando-se da linguagem rebusca-
da da filosofia grega para tornar as profundidades da doutrina cristã claras e livres
de falsas interpretações.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

 Apolinarianismo

A polinário, o Jovem, era bispo de Laodiceia da Síria. Nasceu por volta de


310 d.C., filho de Apolinário, o Velho, que também foi bispo. Viveu com seu
pai nos tempos do imperador Juliano, o Apóstata, que rejeitou o cristianismo e bus-
cou de todas as formas reimplantar o paganismo dentro do Império.
Foi um incansável adversário do arianismo e buscou de todas as maneiras con-
firmar as decisões do Concílio de Niceia. Entretanto, achava que as respostas fi-
caram incompletas. Afirmar que Jesus era verdadeiro homem e verdadeiro Deus,
não explicava, contudo, como se dava esta união das naturezas e ele se propôs a
responder.
Apolinário, a fim de resolver o problema das duas naturezas (humana e divina),
aceita a posição tricotômica, ou seja, o homem como constituído de corpo, alma
e espírito. Tomou a posição de que o Logos (Verbo) assumiu o lugar da alma no ho-
mem, que ele considerava como a sede do pecado. Assegurava assim a unidade
da pessoa de Cristo sem sacrifício da sua divindade e resguardava a impecabilida-
de de Cristo.
As discussões geradas por suas afirmações levaram à realização do concílio de
Alexandria em 362 d.C., no qual a doutrina de Apolinário foi condenada, mas não
sua pessoa. Ele particularmente continuou gozando de grande prestígio de modo
que ganhava muitos adeptos em diversas igrejas.
Entretanto a completa humanidade do Salvador foi perdida dentro do concei-
to apolinarista, e sua teologia foi rejeitada no Concílio de Constantinopla em 381
d.C., levando em consideração os seguintes pontos:
1. Gregório de Nazienzo já havia colocado na argumentação contra o arianis-
mo: “Aquilo que não foi assumido não foi salvo; mas o que foi unido a Deus, foi
salvo”, isto é, o homem todo tinha de ter sido assumido pela Divindade, para
que pudesse ser salvo e não apenas parte dele.
2. Além disso, se a alma humana foi substituída pelo Verbo de Deus, este se tor-
na parte integral da natureza humana e é diminuída em sua divindade. O que
é impossível.
3. Enfim, sem alma humana, sem inteligência e vontade própria distinta da de
Deus, Cristo não pode nos dar a salvação porque são por nossos atos livres e
deliberados que nos apropriamos daquilo que Deus nos dá gratuitamente.
Com a morte de Apolinário em 390 d.C., seus adeptos se dividiram. Um partido
mais radical acabou se aliando aos monofisistas (ver a seguir). O outro partido, mais
moderado, tornou a unir-se com a Igreja em Roma.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

 Nestorianismo

S eria mais sincero de nossa parte, como apologistas que somos, tentar res-
gatar a imagem de Nestor, bispo sírio que foi condenado como herege no
Concílio de Éfeso de 431 d.C., ao tentar negar o título de mãe de Deus à Maria. É
importante frisar, que embora a questão tenha sido colocada como sendo acerca
da natureza de Cristo, havia outros elementos envolvidos, como rixas pessoais e
políticas e mesmo o culto à Maria, que embora não fosse tão desenvolvido e forte
como em nossos dias, já era bastante comum.

 A história do Concílio de Éfeso

“E (Paulo) de Mileto mandou a Éfeso, a chamar os anciãos da Igreja. E, logo


que chegaram junto dele, disse-lhes [...] Porque eu sei isto que, depois da
minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis, que não pouparão ao reba-
nho. E que de entre vós mesmos se levantarão homens que falarão coisas perver-
sas, para atraírem os discípulos após si” (At 20.17,29,30).

Fala-se muito hoje do Concílio de Éfeso como “uma questão cristológica”. O


que estava em jogo não era se Maria deveria ser chamada de “Mãe de Deus” ou
não, mas se o Filho nascido dela possuía apenas a natureza humana ou se possuía
tanto a natureza humana quanto a divina. O resultado positivo deste Concílio foi o
estabelecimento da natureza teantrópica de Cristo, isto é, Jesus é verdadeiro Deus
e verdadeiro homem.

Mas a deturpação veio de “carona”. Todo o ambiente que cercou este Concílio
foi repleto de intrigas, corrupções, ódios e idolatria, mais especificamente a idolatria
mariana (adoração a Maria). O historiador Edward Gibbon, se referiu a ele como um
“tumulto episcopal, que na distância de treze séculos assumiu o venerável aspecto
de Terceiro Concílio Ecumênico” (Declínio e Queda do Império Romano, Vol II ).

Na Síria, a escola de Nestor tinha sido ensinada a rejeitar a confusão das duas
naturezas, e suavemente distinguir a humanidade de seu mestre Cristo da divinda-
de do Senhor Jesus. A bendita virgem era honrada como a mãe do Cristo, mas os
ouvidos de Nestor foram ofendidos com o irrefletido e recente título de “Mãe de
Deus”, que tinha sido insensivelmente adotado desde a controvérsia ariana.

Do púlpito de Constantinopla, um amigo de Nestor e depois o próprio Nestor, re-


petidamente pregou contra o uso, ou o abuso, de uma palavra desconhecida pelos
apóstolos, não autorizada pela Igreja, e que apenas tendia a confundir os simples,
entreter os profanos e justificar, por aparente semelhança, a genealogia do Olimpo,
pois era comum na mitologia grega as deusas conceberem filhos humanos.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Em seus momentos mais calmos, Nestor confessou que poderia ter tolerado
ou desculpado a união das duas naturezas, mas ele ficava exasperado pela con-
tradição de negar adoração a um recém-nascido, um Deus infante, comparado
inadequadamente aos padrões de vida conjugal, (O Pai é Deus, a mãe é Maria e
o Filho desta relação é Jesus) e descrever a humanidade de Cristo como apenas
uma roupa (uma fantasia), um instrumento ou Tabernáculo de seu Deus. Ao som
destas blasfêmias os pilares do cristianismo foram sacudidos. Os fracassados com-
petidores de Nestor induziram seu ressentimento pessoal e pior, o clérigo bizantino
foi secretamente desprezado pela invasão do estrangeiro, Cirilo de Alexandria, seu
adversário. Todavia, tudo o que era supersticioso ou absurdo era protegido pelos
monges; o povo estava interessado na glória de sua Virgem Patrona. Os sermões do
arcebispo e o serviço do altar foram perturbados por sediciosos clamores; sua au-
toridade e doutrina foi rejeitada pela sua própria congregação; cada vento espa-
lhou ao redor do Império as folhas da controvérsia. E a voz dos combatentes ecoou
como num sonoro teatro.

 A oposição de Cirilo de Alexandria


Era dever de Cirilo iluminar o zelo e a ignorância de seus monges. Na escola de
Alexandria ele tinha embebido e professado a encarnação de uma natureza; e o
sucessor de Atanásio consultou seu orgulho e ambição ao levantar armas contra
“outro Ário” (Nestor), mais formidável e mais culpado, o segundo trono da hierar-
quia. Após uma curta correspondência, na qual o prelado rival disfarçou seu ódio
na linguagem vazia de respeito e caridade, o patriarca de Alexandria denunciou
ao príncipe e ao povo, ao Oriente e ao Ocidente, os daninhos erros do pontífice
bizantino. Do Oriente, mais especificamente de Antioquia, Cirilo obteve o ambíguo
conselho de tolerância e silêncio, que foram dirigidos a ambas as partes enquanto
se favorecia a causa dos nestorianos.
Mas Roma recebeu os mensageiros egípcios da parte de Cirilo de braços aber-
tos. A vaidade de Celestino, bispo de Roma na época, foi adulada pelo apelo e a
versão parcial de um monge que decidiram a fé do papa, que por sua vez, com
seus clérigos latinos, era ignorante da linguagem, das artes e da teologia grega. À
testa de um Sínodo italiano, Celestino pesou os méritos da causa, aprovou o credo
de Cirilo, condenou os sentimentos e a pessoa de Nestor, baniu o herético de sua
dignidade episcopal, permitiu uma suspensão de dez dias para retratação e peni-
tência, e delegou ao seu inimigo a execução desta sentença precipitada e ilegal.
Mas o patriarca de Alexandria (Cirilo) expunha os erros e paixões de um mortal;
e suas doze maldições 4 ainda torturam a escravidão da ortodoxia que adora a
memória de um santo (Cirilo) sem perder sua lealdade ao Sínodo da Calcedônia.
Estas corajosas afirmações são indelevelmente tingidas com as cores da heresia
Apolinária.

4
Nos concílios era comum colocar uma lista de maldições sobre quem discordasse das conclusões do Concíllio.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Nem ainda o imperador, nem o prelado do Oriente estavam dispostos a obe-


decer ao mandado do sacerdote italiano; e um sínodo católico, ou melhor, de gre-
gos, foi solicitado pela Igreja como único remédio que poderia conciliar ou decidir
esta disputa eclesiástica. Éfeso, acessível tanto por mar quanto por terra para os
dois lados, foi o local escolhido e o dia de Pentecostes foi a data do encontro. Um
escrito sumariando tudo foi despachado a cada metropolitano, e um guarda foi de-
signado para proteger e confinar os pais até que estivessem de acordo “os mistérios
do céu e a fé da terra”. Nestor apareceu não como um criminoso, mas como um
juiz. Ele dependia mais do peso do que do número de seus prelados, e seus resolutos
escravos estavam armados para cada injúria ou defesa. Mas seu adversário, Cirilo,
era mais poderoso nas armas, tanto da carne quanto do espírito. Desobediente à
carta, ou ao menos ao seu significado do resumo real, ele foi atendido por cinquen-
ta bispos egípcios. Ele tinha contraído uma íntima aliança com o Bispo Mennon de
Éfeso. O despótico primado da Ásia dispôs prontamente de trinta a quarenta votos
episcopais: uma multidão de camponeses, os escravos da Igreja, foram derrama-
dos na cidade para sustentar com barulhos e clamores um argumento metafísico;
e o povo zelosamente afirmou a honra da Virgem, de quem o corpo repousava
dentro dos muros de Éfeso. O navio que havia transportado Cirilo de Alexandria foi
carregado com as riquezas do Egito; e ele desembarcou um numeroso corpo de
marinheiros, escravos, e fanáticos, aliciados com cega obediência sob a bandeira
de São Marcos e a mãe de Deus. Os pais e ainda os guardas do concílio estavam
receosos devido àqueles desfiles esplendorosos de roupas guerreiras; os adversários
de Cirilo e Maria foram insultados nas ruas ou destratados em suas casas; sua elo-
quência e liberalidade fizeram um acréscimo diário ao número de seus aderentes;
e os egípcios logo computaram que ele poderia comandar a atenção e as vozes
de duzentos bispos. Mas o autor das doze maldições previu e temeu a posição de
João de Antioquia, que com uma pequena, porém respeitável comitiva de metro-
politanos, estava avançando em vagarosa jornada da distante capital do Oriente.
Impaciente com uma demora que ele classificou como voluntária e culpável, Cirilo
anunciou a abertura do Sínodo apenas dezesseis dias após a Festa do Pentecos-
tes. Nestor, que dependia da chegada de seus amigos do Oriente, persistiu, como
seu predecessor Crisóstomo, a negar a jurisdição e desobedecer ao chamado de
seus inimigos; eles apressaram seu processo e seus acusadores presidiram no trono
de seu julgamento. Sessenta e oito bispos, vinte e dois de posição metropolitana,
defenderam sua causa através de um modesto e temperado protesto; eles foram
excluídos dos concílios de seus irmãos, Candidianos, em nome do imperador, re-
quisitando uma demora de quatro dias; o profano prelado dirigiu-se com ultrajes
e insultos à assembleia dos santos. O conjunto desta momentosa transação ficou
repleto para um dia de verão: o bispo entregou suas opiniões separado dos demais;
mas a uniformidade de estilo revelou a influência ou a mão de um mestre, que ti-
nha sido acusado de corromper a evidência pública de seus atos e subscrições.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Sem uma voz dissidente eles reconheceram nas epístolas de Cirilo o Credo Niceno
e a doutrina dos Pais, mas as porções parciais das cartas e homílias de Nestor foram
interrompidas por maldições e anátemas; e o herético foi degradado de sua dig-
nidade episcopal e eclesiástica. A sentença, maliciosamente escrita para o novo
Judas, foi afixada e proclamada nas ruas de Éfeso: os cansados prelados, assim
que publicaram para a Igreja com respeito à mãe de Deus, foram saudados como
campeões; e sua vitória foi comemorada por luzes, cantos e tumultos noturnos.
No quinto dia, o triunfo dos partidários de Cirilo foi obscurecido pela chegada e
indignação dos bispos Orientais que, por sua vez, eram partidários de Nestor. Em um
cômodo da pensão, antes que João de Antioquia tivesse limpado o pó de seus pés,
ele deu audiência para Candidian, ministro imperial, que relatou seus infrutuosos
esforços para impedir ou anular a violenta pressa dos egípcios. Com igual violência
e rapidez, o Sínodo Oriental de cinquenta bispos degradou Cirilo e Memnon de
suas honras episcopais; condenou, em doze anátemas, o mais puro veneno da he-
resia apolinária; e descreveu o primado alexandrino como um monstro, nascido e
educado para a destruição da Igreja. Seu trono era distante e inacessível; mas eles
instantaneamente resolveram conceder ao rebanho de Éfeso as bênçãos de um
fiel pastor. Pela vigilância de Memnon, as igrejas foram fechadas contra eles, e uma
forte guarnição foi colocada na catedral. As tropas, sob o comando de Candidian,
avançaram para o assalto; as sentinelas foram cercadas e mortas à espada, mas o
lugar era inexpugnável; os sitiantes retiraram-se; sua retirada foi perseguida por um
vigoroso grupo; eles perderam seus cavalos e muitos soldados foram perigosamen-
te feridos com paus e pedras. Éfeso, a cidade da virgem, foi profanada com ódio e
clamor, com sedição e sangue; o sínodo rival lançou maldições e excomunhões de
sua máquina espiritual; e a corte do imperador Teodósio ficou perplexa diante das
belas narrativas diferentes e contraditórias dos partidos da Síria e do Egito.
Durante um período tumultuado de três meses o imperador tentou todos os
meios, exceto o mais eficaz, isto é, a indiferença e o desprezo, para reconciliar
esta disputa teológica. Ele tentou remover ou intimar os líderes por uma senten-
ça comum de absolvição ou de condenação; ele investiu seus representantes em
Éfeso com amplos poderes e força militar; ele escolheu de ambos os partidos oito
deputados para uma suave e livre conferência nas vizinhanças da capital, longe
do contagioso frenesi popular. Mas os orientais se recusaram a ceder e os católi-
cos, orgulhosos de seu número e de seus aliados latinos, rejeitaram todos os termos
de união e tolerância. A paciência do manso imperador Teodósio foi provocada,
e ele dissolveu este tumulto episcopal, que na distância de treze séculos assumiu
o venerável aspecto de Terceiro Concílio Ecumênico. “Deus é minha testemunha”,
disse o piedoso príncipe, “que eu não sou o autor desta confusão. Sua providência
discernirá e punirá o culpado. Voltem para suas províncias, e possam suas virtudes
privadas reparar o erro e escândalo deste encontro”.

MATERIAL EXCLUSIVO PARA ALUNOS 46


HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

“Os abades Dalmácio e Êutico tinham devotado seu zelo à causa de Cirilo, o
adorador de Maria, e à unidade de Cristo. Desde o primeiro momento de sua vida
monástica eles nunca tinham se misturado com o mundo ou pisado o chão profano
da cidade. Mas neste terrível momento de perigo para a Igreja, seus votos foram
suplantados por um mais sublime e indispensável dever. À frente de uma ordem de
eremitas e monges, carregando archotes em suas mãos e cantando hinos à mãe
de Deus, eles foram de seus mosteiros ao palácio do imperador”5.
Como podemos notar, não apenas questões teológicas, mas questões políticas,
e porque não dizer, estratégias políticas, foram aplicadas neste Concílio. Nestor
não tinha o propósito de negar a divindade de Cristo, mas apenas de refrear uma
possível divinização de Maria. Todavia, era difícil confirmar a natureza de “Deus” ao
Filho e ao mesmo tempo negar o título de “mãe de Deus” a Maria, embora esta seja
a verdade. Assim, Nestor foi condenado como herege e a Igreja somente perdeu
com isto, pois este fato fomentou ainda mais a mariolatria.

 Eutiquianismo ou monofisismo

C
omo uma reação contra Nestor, muitos assumiram uma posição comple-
tamente oposta. Insistiam tanto na perfeita união das duas naturezas que
acabavam por não distingui-las de forma alguma.
Entre os que por este motivo acabaram distorcendo a natureza de Cristo, es-
tava Eutiques, monge de Constantinopla e amigo de Cirilo de Alexandria, nascido
em 378 d.C. Era muito estimado e influente no ambiente eclesiástico e também no
meio político, todavia, era pouco inteligente para a tarefa a que se propusera.
Eutiques e seus seguidores assumem a posição de que a natureza humana de
Cristo foi absorvida pela divina, ou que as duas naturezas se fundiram resultando
numa única natureza. Este conceito recebeu o nome de monofisismo (mono = um,
único e fysis = natureza). Sua declaração sumária foi considerada herética:
“Confesso que nosso Senhor teve duas naturezas antes da união (num momen-
to hipotético, em que de fato não existia se não a natureza divina, mas de forma
alguma ainda a natureza humana), mas depois da união, não reconheço senão
uma só natureza”.
O Concílio de Calcedônia, em 451 d.C., condenaria todo conceito diferente
da crença na unidade da pessoa de Cristo e na dualidade das duas naturezas. Esta
controvérsia produziria o famoso documento “Tomo de Leão”.
Na verdade, se Eutiques e seus seguidores fossem um pouco diferentes em suas
afirmações, o resultado teria sido outro. Se tivesse apenas declarado que a huma-
nidade de Cristo havia sido divinizada, essas declarações não seriam tão estranhas.

5
Traduzido de Decline and Fall of Roman Empire, Edward Gibbon, Encyclopaedia Britannica ,INC. Vol II, pp 140-142.

MATERIAL EXCLUSIVO PARA ALUNOS 47


HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Mas sua concepção na verdade era de que em Jesus havia um ser completamente
híbrido, nem totalmente homem, nem totalmente Deus, mas uma mistura de ambos,
em que a parte humana praticamente se tornava inexistente, pois era absorvida
na divina. Isto anulava Jesus como homem e logo como substituto da humanidade
sobre a cruz. Segundo esta concepção não era um homem “igual a nós em tudo”
que estava perecendo no Calvário.
A controvérsia, como as anteriores, envolvia questões mais amplas e manifesta-
va a secular rivalidade entre as escolas de Antioquia e Alexandria. Foi convocado
um Sínodo em Constantinopla para condenar Eutiques. Depois, um novo Sínodo foi
convocado em Éfeso, mas a questão só seria mesmo definitivamente resolvida no
Concílio de Calcedônia, iniciado em 08 de outubro de 451 d.C., com a presença
de bispos, dezoito oficiais de alto escalão do Estado, inclusive o casal Imperial. No
dia 25 de outubro foi terminada a declaração doutrinária no intuito de resolver esta
questão. A declaração assim dizia:
“Em concordância, portanto, com os santos pais, todos nós ensinamos una-
nimemente que devemos confessar que nosso Senhor Jesus Cristo é um só mes-
mo Filho, igualmente perfeito na Divindade e igualmente perfeito na humanidade,
verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, que consiste de alma e corpo
racionais, consubstancial com o Pai na Divindade e igualmente consubstancial co-
nosco na humanidade, semelhante a nós em todas as coisas, à exceção do peca-
do, gerado pelo Pai antes de todos os séculos no tocante à sua Divindade e assim
também nestes últimos dias por nós e por nossa salvação, foi gerado pela virgem
Maria, theotokos, no que diz respeito à sua humanidade; um só e o mesmo Cristo,
Filho, Senhor, Unigênito, revelado em duas naturezas sem confusão, sem mudança
e sem divisão, sem separação; a diferença de naturezas não pode ser eliminada
de modo algum por causa da união, mas as propriedades de cada natureza são
preservadas e reunidas em uma só pessoa (prosopon) e uma só hypostasis , não se-
parada ou dividida em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, Unigênito, Verbo
divino, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas do passado e o próprio Jesus
Cristo nos ensinaram a respeito e o credo dos nossos pais nos transmitiu”.

 Monotelismo – a última controvérsia cristológica

E sta controvérsia começa quando Sérgio, patriarca de Constantinopla, que-


rendo reconciliar aqueles que não ficaram satisfeito com a condenação de
Nestor, formulou uma cristologia baseada não nas naturezas humana e divina de
Cristo, mas na sua vontade. Sendo assim, afirmou que o Cristo, pela sua perfeita
união das duas naturezas, não possuía senão uma única vontade (monos-thelema =
uma única vontade), daí, monotelismo.

MATERIAL EXCLUSIVO PARA ALUNOS 48


HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Embora Sérgio conseguisse o apoio de Ciro de Fásis, bispo de Alexandria, o


bispo de Jerusalém, Sofrônio, julgou que esta era apenas uma forma disfarçada de
reafirmar o monofisismo condenado no Concílio da Calcedônia. Na época, o bispo
de Roma, Honório, que já possuía autoridade para resolver certas questões, pediu
que ambos deixassem de lado a disputa, alegando que apenas causaria mais di-
visões dentro da Igreja e que se tratava apenas de uma forma diferente de ver as
coisas. Devido a esta posição e por ter feito declarações que pareciam pender
para o monotelismo, foi considerado mais tarde como herege.
Houve neste caso a intervenção do imperador Heráclito, que desejava apro-
veitar-se desta disputa para impor sua autoridade. Decretou que todos deveriam
reconhecer em Jesus uma única vontade.
Os monotelistas foram por fim condenados no terceiro Concílio de Constantino-
pla, inclusive o bispo de Roma, Honório. Depois de repetir as decisões e afirmações
promulgadas no Concílio da Calcedônia sobre a pessoa de Cristo, este Concílio em
Constantinopla afirmou:
“Pregamos também duas vontades naturais Nele (Jesus), bem como duas ope-
rações naturais, sem divisão, sem mudança, sem separação, sem partilha, sem con-
fusão. Isto pregamos de acordo com a doutrina dos santos padres. Duas vontades
naturais, não contrárias, como afirmam os ímpios hereges, mas sua vontade huma-
na seguindo sua vontade divina e onipotente, não lhe resistindo, nem se lhe opon-
do, antes se sujeitando a ela. Pois a vontade da carne tinha de ser dirigida e estar
sujeita à divina, segundo o sapientíssimo Atanásio, porque assim como se diz que
sua carne deve ser e é a carne de Deus Verbo, como de fato pertence; ele mesmo
diz: ‘...Desci do céu não para fazer a minha própria vontade, mas a vontade do Pai
que me enviou’” (Jo 6.38).
Portanto, assim como a sua santíssima e imaculada carne, vivificada pela alma,
não foi destruída ao ser deificada, mas continuou no seu próprio estado e esfera,
assim também a sua vontade humana não foi destruída ao ser deificada, mas antes
foi preservada, como diz Gregório, o teólogo; “Pois o querer que entendemos ser um
ato de vontade do Salvador não é contrário a Deus, mas é inteiramente deificado”.
O imperador reagiu negativamente a isto, mas acabou sendo deposto. E com
isto se encerravam as questões cristológicas que por cerca de seis séculos haviam
agitado o cristianismo. Outros desafios surgiriam com o passar dos anos, mas as
questões a respeito da pessoa de Cristo ficariam fixadas até os dias atuais. Somente
no século 19, o protestantismo germânico levantaria a questão do Jesus histórico.
Mas isto já em outros tempos bem diferentes.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

Capítulo
q Pelagianismo
5
P ouco se sabe a respeito de Pelágio. Nasceu na Grã-Bretanha por volta do
ano de 350 d.C. e o que se conhece dele vem dos escritos de seus oposi-
tores. Chegou em Roma em 405 d.C. e seguiu para a África do Norte. Em seguida
seguiu para a Palestina e escreveu dois livros sobre pecado, livre arbítrio e graça:
“Da natureza e Do livre arbítrio”. Agostinho e Jerônimo, os grandes representantes
do cristianismo na época, opuseram-se duramente aos seus conceitos.
Conseguiu ser inocentado do crime de heresia no Sínodo de Dióspolis na Pales-
tina, no ano de 415 d.C. Neste Sínodo ele afirmou que a possibilidade de o homem
viver sem cometer nenhum pecado era teórica e não real, embora afirmasse antes
disso que bastava o homem desejar e ele viveria sem pecado. De qualquer manei-
ra, ele foi mais tarde condenado como herege no Concílio de Éfeso, em 431 d.C.
Morreu por volta do ano de 423 d.C. sem se retratar dos seus ensinos. Como pode-
mos perceber, quando sua doutrina foi reprovada, ele já estava morto.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

 Fundamentos do pelagianismo

O pelagianismo sustenta basicamente que todo homem nasce moralmente


neutro, e que é capaz, por si mesmo, sem qualquer influência externa, de
converter-se a Deus e obedecer à sua vontade, quando assim o deseje. Uma das
grandes disputas durante a Reforma protestante versou sobre a natureza e a exten-
são do pecado original. Ele afetou Adão somente, ou todo o gênero humano? A
vontade do homem decaído é ainda livre ou escravizada ao pecado? No século
V Pelágio havia debatido ferozmente com Agostinho sobre este assunto. Agostinho
mantinha que o pecado original de Adão foi herdado por toda a humanidade e
que, mesmo que o homem caído retenha a habilidade para escolher, ele está es-
cravizado ao pecado e não pode não pecar. Por outro lado, Pelágio insistia que a
queda de Adão afetara apenas Adão, e que se Deus exige das pessoas que vivam
vidas perfeitas, ele também dá a habilidade moral para que elas possam fazer as-
sim. Ele reivindicou mais adiante que a graça divina era desnecessária para salva-
ção, embora facilitasse a obediência. Negava de forma definitiva a existência do
pecado original. Assim ele escreveu:
“Eu disse de fato que um homem pode ficar isento do pecado e seguir os man-
damentos de Deus, se assim desejar; essa capacidade, pois, lhe foi outorgada por
Deus. No entanto, não declarei que existe um homem que nunca tenha pecado
desde a infância até a velhice, mas que, ao ser convertido de seus pecados, pode
permanecer isento do pecado por seus próprios esforços e pela graça de Deus,
embora, mesmo assim, seja capaz de mudar no futuro”.
Agostinho dedicou muita energia para refutar os ensinos de Pelágio. Foi neste
combate que ele desenvolveu sua teologia sobre graça, livre arbítrio e soberania
de Deus. Seus principais trabalhos nesta direção foram, nesta ordem: “Do espírito e
da letra”, “Da natureza e da Graça”, “Da Graça de Cristo e do Pecado Original”,
“Da Graça e do Livre Arbítrio”, “Da Predestinação dos Santos”.
Agostinho teve sucesso refutando Pelágio, mas o pelagianismo não morreu.
Várias formas de pelagianismo recorreram periodicamente através dos séculos. Lu-
tero escreveu um livro – “A Escravidão da Vontade” – em resposta a uma diatribe
(discussão filosófica) de Erasmo, em que o mesmo defendia conceitos pelagianos.
Lutero acreditava que Erasmo era “um inimigo de Deus e da religião Cristã” por
causa do ensino dele sobre o pecado original. É bom notar que o catolicismo me-
dieval, sob a influência de Aquino, adotara um semi-pelagianismo, mesmo que na
Antiguidade houvesse rejeitado o pelagianismo puro.

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

q Conclusão – Panorama geral

E mbora paralelamente a esta luta pela verdade tenha se desenvolvido prá-


ticas e ensinos antibíblicos, as doutrinas fundamentais do cristianismo foram
confirmadas e definidas nestes primeiros séculos de lutas contra as heresias. O cris-
tianismo, como vemos, corria sério risco de desaparecer em meio às filosofias e
crenças do mundo de então.
Mesmo que nossa mentalidade atual considere um pouco extremas algumas
atitudes tomadas durante esse tempo, não podemos ignorar que o zelo pela dou-
trina correta ajudou a Igreja a escapar de certos erros. A mentalidade moderna
é superficial e altamente relativista e, portanto, o pensamento dogmático lhe é
um tanto estranho. Mas definir com exatidão nossas crenças nos livra de inúmeros
enganos. Senão, como diz o teólogo Jacques Doyon, “nossa fé não terá nenhum
conteúdo preciso e dela se poderá dizer o que quer que seja sem o risco de se en-
ganar. Se Deus se dignou falar-nos é justamente porque tinha alguma coisa a dizer
e é uma tarefa difícil, mas necessária, tentar compreendê-lo”.
A Reforma Protestante, ocorrida no século 16, aceitou as decisões concilia-
res estudadas aqui, porque tinham fundamentação nas Escrituras, de acordo com
seu critério de Sola Scriptura (Somente as Escrituras). Outros concílios que vieram
depois, já estavam tão mergulhados em um tipo de cristianismo degenerado, que
estabeleceram dogmas antibíblicos, como na questão dos iconoclastas que deci-
diram a favor das imagens ou o concílio que decidiu sobre a infalibilidade papal ou
pela imaculada concepção de Maria.
De modo geral, o balanço foi positivo. Mesmo que muitas destas heresias te-
nham retornado no decorrer da história, já estavam devidamente refutadas. Mui-
tas delas estão vigentes nos dias de hoje, seja em seitas pseudocristãs, mas já não
exercem tamanha influência sobre a verdadeira Igreja de Cristo, especialmente
se você, aluno deste curso teológico, procurar vacinar a Igreja acerca dessas dis-
torções. Não há dúvidas que o aluno que se propôs a desenvolver este curso atrai
para si uma grande responsabilidade diante da Igreja. Assim, como nos dias re-
motos os apologistas bradaram em oposição às heresias, esta é tarefa de todo
aquele que entende a importância desse ministério e sente-se vocacionado para
desempenhá-lo.
Sobretudo, e finalmente, a lição permanece. Sem rejeitar novos enfoques e no-
vas formas de expressar a fé, a preocupação com a sã doutrina deve permanecer
este elemento solidificador da fé cristã. “Examinai tudo. Retende o bem”, disse o
apóstolo Paulo (1Ts 5.21).

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HISTÓRIA DAS
34 HERESIAS PRIMITIVAS

q Referências bibliográficas
CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos . São Paulo: Editora Vida
Nova, 1998.
OLSON, Roger. História da teologia cristã. São Paulo: Editora Vida, 2001.
FANGIOTI, Roque. História das heresias. São Paulo: Paulus, 1995.
HAGGLUND, Bengt. História da teologia. Porto Alegre: Concordia, 1981.
GIBBON, Edward. Decline and Fall of Roman Empire. São Paulo: Enciclopédia
Britânica, 1955.
DOYON, Jacques. Cristologia para o nosso tempo. São Paulo: Edições Pauli-
nas, 1970.
FILHO, Tácito da Gama Leite. História da Igreja. CETEO, 2002.
CHANPLIM, R.N. & BENTES, J.M. Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia. São
Paulo: Editora Candeia, 1997.
MATHER, G.A. & NICHOLS, L.A. Dicionário de religiões, crenças e ocultismo.
São Paulo: Editora Vida, 2000.
CHANPLIM, R.N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São
Paulo: Editora Candeia, 1997.

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