Você está na página 1de 18

Capítulo VI

Neopentecostalismo e sua
Adequação Cultural

A igreja de crente, a loja de umbanda e a academia de musculação são


os três símbolos metropolitanos da civilização brasileira.
Reginaldo Prandi (1991:259)
Assim, se no Natal vamos sempre à Missa do Galo, no dia 31 de
dezembro vamos todos à praia vestidos de branco, festejar nosso
orixá ou receber bons fluidos da atmosfera de esperança que lá se
forma. Somos todos mentirosos? Claro que não! Somos, isso sim,
profundamente religiosos.
DaMatta (1987:117)

É fácil, muito fácil mesmo, criticar o neopentecostalismo por


seu sincretismo e suas práticas culturais religiosas modernas,
como se todos os demais segmentos cristãos fossem
absolutamente “puros”. A religião cristã não é originalmente
“pura”, pois é derivada do judaísmo e com grande influência da
cultura helênica (Green, 1998, Kee, 1983 e Boff, 1982). Portanto,
tudo não passa de um processo de adequação cultural, ou como
a missiologia denomina, “contextualização do evangelho”. A
questão grave e profunda é: por que podemos contextualizar
valores culturais judaicos, anglo-saxônicos, norteamericanos (de
ricos, brancos, do wasp), mas não de africanos, indígenas,
nordestinos (de pobres)?
Para Lutero, foi fácil “contextualizar” o evangelho para
benefício dos príncipes alemães, mas impossível fazer o mesmo
para os camponeses98. Como foram plenamente condenáveis o
sincretismo e a “perversão” dos pentecostais, no início do século
XX, em misturar negros e brancos para as celebrações. Pior ainda:
98
Algo, aliás, que Weber (1998:348) percebe na combinação entre luteranismo e o
poder principesco.
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

com mulheres na liderança. Enfim, errado apenas o sincretismo


dos outros.
Atenção: aqui o que não estou dizendo é mais importante do
que o que estou dizendo. Explico. Não estou dizendo, nem
insinuando, que o cristianismo não é a revelação vinda de Deus.
Estou afirmando (lembra da história do anão nos ombros de
gigantes?), junto com diversos autores, bem mais importantes que
eu, que o cristianismo recebeu – e recebe ainda hoje – influências
culturais em todas as épocas e lugares.
A hipótese central deste capítulo é que o neopentecostalismo
é a expressão mais brasileira do protestantismo. Aviso aos
navegantes: não estou afirmando que o neopentecostalismo está
certo ou errado. Afirmo apenas que, pelas características
apontadas a seguir (algo que evidentemente, não esgota o
assunto), ele é a expressão que mais se aculturou. Ou de outra
forma, o neopentecostalismo é o espaço religioso onde o potencial
secularizante do protestantismo99 se manifestou com maior força.
Poderia ser diferente?
l. Crescimento numérico. É mais “adequado” e por isso cresceu
mais que as outras expressões religiosas? Neste caso, os cultos
afros deveriam também ter crescido, no mínimo, em paridade
com o pentecostalismo. Peter Fry (1975) faz uma pergunta crucial
em “Duas respostas à aflição: Umbanda e Pentecostalismo” – ambas
as manifestações religiosas são respostas, mas por que uma
pessoa é atraída por uma e por outra não, ou por que adere a
esta e não àquela?
Todas as análises sobre o pentecostalismo, desde a década
de 1960, justificam seu crescimento como resultado do processo
de urbanização, industrialização e anomia social (Souza, 1969).
No entanto, isso também poderia servir como explicação para o
crescimento, menor e/ou maior, dos cultos afros. As
99
Sobre o potencial secularizante do protestantismo, remeto aos clássicos de Peter
Berger, A construção social da realidade (1978) e O dossel sagrado – elementos
para uma teoria sociológica da religião (1985). Uma visão filosófica do tema
encontra-se em Tarnas (1999), particularmente o cap. IV.

84
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

manifestações afro, particularmente a umbanda e o candomblé,


também são fenômenos urbanos (Prandi, 1991).
Uma explicação repetida por diversos autores para aceitação
social urbana do candomblé é sua falta de exigência de membresia
e compromisso religioso dos adeptos, aliás “consumidores”
(Prandi, 1991). Mas isso também poderia ser a causa do
crescimento do neopentecostalismo no Brasil: uma religião liberal
nos costumes, com espaços eticamente mais elásticos, onde a
classe média, que ironicamente é também a mais atraída para o
Candomblé, pode se sentir “bem” sem o policiamento típico das
igrejas pentecostais e o conservadorismo das chamadas igrejas
tradicionais (Campos, 1999; Mariano, 1999).
Por que o pentecostalismo, antes religião de pobres, negros
e marginais periféricos, agora atinge a classe média? Porque a
classe média só olha para cima. Anódina, quer a todo custo subir
na vida, transpondo seu estado intermediário para um superior.
Quer riqueza e poder, daí carimbar o passaporte para a Revista
Caras, Miami, o Céu (?).
O filósofo Renato Janine (2000), em seu livro A Sociedade contra
o social, diz que o brasileiro está sempre sonhando com a “sorte
grande”; e nasce dessa mentalidade mágica imediatista a
dificuldade da ação social e construção de um espaço público.
Somos persistentemente messiânicos. Estamos sempre à espera
de um milagre; em suma, a questão brasileira é a “necessidade
de laicização” (Couto, 2000:80).
2. O neopentecostalismo é a cara do Brasil sincrético. Freston (1995),
em sua palestra no I Congresso da AEVB em Brasília, onde a
temática do dia era ética, fez uma grave denúncia de que, em
nome do crescimento, adesão de diversos grupos e
enriquecimento dos mesmos, estava se pondo em risco o próprio
movimento. Daí, ele inventou a roda: quanto mais a igreja cresce,
mais ela fica parecida com a sociedade na qual está inserida. Básico.
Ricardo Mariano (1998), num texto presunçosamente
“profético”, insinua que o protestantismo que está crescendo e
se tornando hegemônico, perdeu as marcas originais se
aculturando de tal forma que deixou de ser “protestantismo”.

85
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

Bobagem. Este protestantismo, ou seja lá o nome que se dê ao


mesmo, é nossa construção possível. Nem melhor nem pior do
que nós mesmos, mas a nossa cara. Independente do juízo de
valor que se faça dessa expressão religiosa chamada
pentecostalismo moderno, ela é o que existe de mais entranhável na
cultura brasileira. Mal ou bem é uma designação teológica (muito
acostumada a dogmatismo e juízo) de que estamos longe.
Apesar do caráter antiafro do neopentecostalismo, ou mais
particularmente de algumas igrejas, é esta expressão que resgata
os instrumentos de percussão. As igrejas tradicionais sempre
tiveram total desconexão musical com o Brasil. Música “sacra”
para essas, sempre foi apenas o que vinha da Europa e EUA.
Posteriormente, o pentecostalismo também se manteve longe
da música brasileira. A Congregação Cristã tem um “purismo”
de permitir apenas instrumentos clássicos e a AD optou pela
“Banda de Música”, numa versão militarizada do evangelho.
Portanto, toda nossa riqueza de instrumentos de percussão
sempre foi “satanizada” por todas as expressões protestantes.
Aubré (1996:85) chama atenção para isso, inclusive, por ser “uma
das bases da originalidade musical brasileira”. Mas o
neopentecostalismo, atualmente, com seus grupos de pagode e
similares, resgatou a percussão.
Chegou às minhas mãos um convite que é um primor de
inculturação: Arraial Gospel; com forró, fogueira, tapioca, baião de
dois, bolo de milho, fogos e uma quadrilha. Não pude participar
e minha principal curiosidade ficou no ar: tinha simpatia na
fogueira? A Igreja Católica que se cuide, pois os evangélicos pelo
Brasil inteiro aderiram às Festas Juninas, aliás, uma AD, no Rio
de Janeiro, originalmente, neste período realiza a “Festa Jesuína”!
Festas Juninas são manifestações culturais que juntam a
religiosidade católica, daí os santos celebrados, com nossas
origens agrícolas; são celebrações de agradecimento aos santos
pelas safras. Neste caso, quando realizadas em ambientes
urbanos seculares elas já perdem seu caráter sacro e agrícola.
Como, então, evangélicos podem realizar tais celebrações?
Podem ter músicas, comidas típicas, danças, brincadeiras, correio

86
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

do amor. Mas o limite é tênue. O casamento matuto “precisa”


ter algo de transgressor. A noiva deve estar grávida, o noivo
deve fugir ou ter outra mulher, o padre bêbado, o delegado
subornável. Aliás, toda a brincadeira, não só da quadrilha, só
tem graça exatamente por seu caráter transgressor. Tudo bem
que, dependendo do ambiente, é fácil montar uma quadrilha,
mas isso é outra história.
Talvez o neopentecostalismo esteja criando o samba do
teólogo doido, pois, em tese, toda religiosidade sincrética é
tolerante, menos ela. Ela é antiafro. Freud explica (desculpem,
mas o chavão é inevitável). Você odeia e acusa no outro o que
lhe é mais caro. Ultrapassando este psicologismo barato, talvez
como Weber analisa em seu clássico Ética protestante e o “espírito”
do capitalismo, as conseqüências das posturas religiosas nem
sempre se concretizam nas suas motivações originais. As
“afinidades eletivas” provocam resultados não necessariamente
esperados e causam uma boa confusão, tanto interna como
externa. Externa porque se tipifica como um grupo que antes
sofria perseguição religiosa, mas agora rico e poderoso efetua a
perseguição ao ridicularizar as demais expressões religiosas.
Identificar teologicamente determinadas entidades como
demônios é uma coisa, expor as pessoas na televisão relatando
problemas pessoais de seus casamentos ou de sua sexualidade é
outra bem diferente. Desde menino, em minha vida de
assembleiano, vi possessão e expulsão de demônios, mas a regra
na AD é: demônio manifesto é expulso, sem nenhum show ou
exposição de pessoas.
A confusão interna se dá porque o neopentecostalismo usa
os mesmos elementos dos cultos afro. Ora, o objetivo é a
desqualificação, mas na medida em que se usa esses elementos –
sal grosso, folha de arruda –, admite-se, no mínimo, que eles
têm algum poder. Então, ironicamente, isso serve de legitimação.
Além de, absurdamente, ser uma apropriação indébita. É como
se descobríssemos que um terreiro de candomblé realiza santa
ceia, ou usa textos de Calvino e Lutero em suas celebrações.

87
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

3. Samba, futebol e carnaval. Mesmo de forma estereotipada,


esse trinômio é marca registrada desse “país tropical abençoado
por Deus” (DaMatta, 1990, 1997: Ortiz, 1985). DaMatta chega,
inclusive, a falar do trinômio “umbanda, futebol e caranval” como
matriz brasileira – e porque não: “pentecostalismo, futebol e
carnaval”? Já que o trinômio brasileiro é bem flexível, se fala em
“samba, futebol e cerveja”, “cerveja, futebol e mulher” etc.
Poderíamos especular que, para algumas denominações
brasileiras, poderia ser: “Maçonaria, educação e liturgia”, “Música,
reunião e Tio Sam”. Esta não é uma obra de ficção, qualquer
semelhança com pessoas e/ou instituições não é mera
coincidência.
Pergunta-se: quais afinidades eletivas (Weber) teria o
protestantismo com o samba, futebol e o carnaval? Até então
nenhuma, mas agora com o neopentecostalismo começa a ter.
Nos anos 70, a brasilidade foi concebida como estando ancorada numa
república de malandros na qual o carnaval ocuparia a posição culminan-
te. Esta rica interpretação antropológica nos proporciona entrever a car-
navalização da existência como uma marca básica do nosso imaginá-
rio, no qual a festa, como a ritualização do social, se inscreve de modo
fundamental (Birman, 2001:146, grifo no original).

É necessário cuidado para não ter preconceito positivo ou


negativo em relação a essas realidades. No início do século, o
pentecostalismo é alvo de muito preconceito, tanto pelas demais
igrejas evangélicas como pela academia e as razões não eram,
como se podia esperar, teológicas ou científicas, mas racistas.
Pentecostalismo é uma manifestação religiosa de negro e pobre,
nasce entre ex-escravos, algo bem próximo da perseguição
efetuada aos grupos afros, tanto no Brasil como em demais
países. Samba, futebol e carnaval também já foi coisa de pobre e
negro. “Malandros” nos morros do Rio de Janeiro eram
chegados ao samba, a elite gostava de música clássica – algo
muito próximo ao que acontecia nas igrejas tradicionais. A
diferença é que o país se atualizou, o morro desceu e tomou os
estádios, as gravadoras e a avenida. Os protestantes, clássicos e

88
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

reacionários, continuam cantando Mozart virando nariz para o


samba e satanizando o carnaval.
4. A Marcha para Jesus: “carnavalização gospel”. A Marcha é a
cara do neopentecostalismo moderno: desordenada, lúdica,
diversificada, liberal nos costumes (bem ao contrário da
ordenação do desfile do Dia da Bíblia), não precisa afirmar alguma
coisa. A Marcha seria um rito de reforço ou rito de inversão? Na
teoria teológica (a Marcha se propõe à evangelização) seria um
rito de reforço, mas na sua prática festiva e liberal como se
apresenta, se inserem características de inversão: pode tudo e
cabem todos. Está mais para Carnaval do que desfile de Sete de
Setembro. O que é a Marcha para Jesus? É a Marcha PARA Jesus, é
óbvio. A favor de que e/ou contra o quê? É melhor não pedir
razões teológicas, porque “a galera está a fim de louvar”.
Entendeu? Inclusivista, nela cabem todos (todas as denominações
que queiram participar), de qualquer forma (roupa social,
bermuda, boné) e sem nenhum estilo. À “imagem e semelhança”
do participante: cada um montando seu “kit evangélico”
(Amorese, 1995).
Como ela foi instrumentalizada por uma denominação (para
benefício próprio, obviamente), as demais têm dificuldade de
aderir ou se envolver. Mas não temos certeza de que outra, em
seu lugar, faria diferente. Talvez instrumentalizasse diferente.
Resultado: a Marcha se tornou demonstração de força de um
grupo e, neste caso, passa a ser Marcha pára Jesus.
Já que a Marcha é ambígua, e pode parecer exagero falarmos
em carnavalização, o que dizer dos assumidos desfiles de Escolas
de Samba evangélicos? Ora, procissão e desfile combinam no
ordenamento, e ordenamento combina com religião. Já carnaval
evangélico é, por natureza, uma contradição em termos. Até
porque o carnaval evangélico é de um amadorismo singular.
Paupérrimo. Um pastiche mal engendrado, porque precisa ser
igual – para concorrer – sendo diferente; pois quanto mais
conseguir ser carnaval mais deixará de ser evangélico. Quanto
mais autêntico carnaval pior para ele, pois ficará próximo do
real carnaval, e perde sua razão “evangelística” de ser. Se for

89
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

para brincar o carnaval (note o verbo associado automaticamente


ao carnaval, algo para que DaMatta chama atenção, 1990:67),
por que brincar(!) de evangelizar(sic) no carnaval? Não seria
uma tentativa suicida? DaMatta diz que o carnaval “é a
glorificação das coisas que ocorrem da cintura para baixo” (1990:96,
grifo no original). Mas não há no protestantismo nenhuma
“teologia da cintura para baixo”; toda teologia é cerebral, para
ser pensada e realizada racionalmente. Da “cintura para baixo”
há, dentre outras coisas, sexo, mas este está na categoria da
negação. Sexo é “apenas” uma atividade normal no casamento,
e “glorificação” só para coisas espirituais.
Pelo sim, pelo não, a tentativa evangélica de “brincar/
evangelizar” no carnaval é uma demonstração concreta da
adesão cultural. Neste caso, o protestantismo em nada altera
(não há juízo nesta palavra, estamos usando alterar no sentido
de modificar) a cultura, mas apenas assimila.
Richardson Halverson, capelão do Senado americano, disse:
No início, a igreja era um grupo de homens e mulheres centrados no
Cristo vivo. Então, a igreja chegou à Grécia e tornou-se uma filosofia.
Depois, chegou até Roma e tornou-se uma instituição. Em seguida, à
Europa, e tornou-se uma cultura. E finalmente, chegou à América,e
tornou-se business.
Aqui, do lado de baixo do Equador, onde não existe pecado,
ela se tornou a “Igreja Cristã do Jeitinho”. Pergunta-se: essa
adequação cultural é de “inspiração” diabólica ou o “princípio
protestante” tillichiano ressurgindo e alterando as matrizes
brasileiras?
5. Adequação da teologia do corpo. Nunca houve antes algum
grupo protestante que, oficialmente em seus órgãos de imprensa,
falasse positivamente do lazer ou dos cosméticos, numa postura
hedonista – daí o ineditismo da Folha Universal100. Prandi diz
100
Devo esta observação a socióloga Maria das Dores que, numa exposição oral na
USP, em 1998, chamou a atenção para esta questão. Aliás, sua fala era uma analogia
entre a Folha Universal, da IURD, e o Mensageiro da Paz, da Assembléia de Deus.
O primeiro como modelo de liberalismo, o outro, conservadorismo. A Folha “in-
centiva” o Mensageiro “condena”. Na medida em que, a Folha ensina o uso de
cosméticos, dá conselhos sobre vestidos e roupa de praia, o Mensageiro jamais fala

90
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

que os três símbolos metropolitanos da civilização brasileira são


a “igreja de crente, a loja de umbanda e a academia de aeróbica”
(1996:259) na mais perfeita exemplificação do mundo moderno
e hedonista. O prazer de viver bem consigo mesmo, em desfrute
do corpo, da riqueza para benefício próprio, que na tradição
puritana sempre foi negada e condenada, agora é componente
importante da teologia da prosperidade. Weber (1996:120)
lembra a aversão que o ascetismo protestante tem pelo esporte,
em sua valorização única do trabalho. No pentecostalismo
original, este ideal ainda persiste: Simon Lungren, missionário
sueco, lembra com orgulho que, ao se converter em 1916,
abandonou o atletismo e jogou fora suas medalhas. Atualmente,
esporte se tornou uma ferramenta evangelística. Mais que isso,
temos hoje uma “teologia do corpo saudável”; um encontro, até
então improvável da academia (de ginástica) com a igreja.
Dia 8 de abril de 2001, domingo pela manhã, no Rio de Janeiro,
38 graus, fui ao culto na Catedral Mundial da Fé. Um grandioso
prédio com ar condicionado, som ideal, berçário funcionando,
estacionamento em perfeito uso, orientadores em todas as portas
dando informações e facilitando lugares. A platéia, masculina e
feminina, de bermuda, chinelo de dedos, camiseta cavada,
dançando e recebendo a benção – um ambiente confortável e
libertário. Na mesma manhã, peguei um táxi correndo e fui à
Assembléia de Deus, sede do Ministério de São Cristóvão – era
a Santa Ceia Geral onde todas as igrejas e congregações do
Ministério estavam reunidas. Casa lotada, todos os homens-

sobre isto e quando cita é apenas para condenar o uso. Outra observação importan-
te é que a IURD, apesar de sua imensa membresia feminina, não tinha mulheres na
liderança, falando na TV ou escrevendo no jornal. Enquanto nas publicações e
programa de TV da AD (ela falava, na época, do programa Movimento Pentecostal),
tinha mulheres escrevendo e apresentando. Pouco tempo depois, o programa da AD
saiu do ar e nos programas da IURD e jornais, as mulheres apareceram agora não
apenas como “endemoninhadas”. Coincidência? Cheguei, posteriormente, a pergun-
tar para um bispo iurdiano se a igreja reconhecera isto, daí a oportunidade para as
mulheres. Disse-me que as mulheres sempre tiveram o devido lugar na igreja e não
seria por causa da crítica de uma socióloga que a IURD mudaria. Não tiro a razão do
bispo, mas o aparecimento de mulheres (repito, não apenas possessas) na telinha
iurdiana não deixa de ser um “atrativo” para sua imensa clientela feminina.

91
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

obreiros de paletó e gravata, calor insuportável, e um desfile de


avisos, cânticos de conjuntos, duetos, coral de senhoras, e
palavras dos pastores – um ambiente austero e conservador.
Poderia exemplificar também com as liturgias das igrejas
tradicionais: enfadonhas, repetitivas e completamente distantes
da informalidade brasileira. Neste país de “rito frouxo”, como
bem sintetiza Holanda (1999:151), e com “aversão ao ritualismo”,
toda nossa pretensão de liturgia é simulacro anglo-saxônico.
Resultado: nem somos autênticos protestantes latinos, nem
austeros britânicos reverentes.
Para um visitante de primeira viagem, qual reunião ele vai
achar mais “confortável”, na hipótese de um retorno?
Nesse aspecto, o neopentecostalismo é expressão mais
aculturada que já tivemos neste país. A Igreja Universal é
paradigma da cultura do self-service religioso, do que Prandi
chama de “religião paga” e prestação de serviço religioso (1995).
E se ela e suas congêneres não chegam à “glorificação da cintura
para baixo” (DaMatta), servem como legitimação. Como explicou
o Pr. Wesley Bandeira, da Comunidade Sara a Nossa Terra:
As pessoas têm idéia de que ser evangélico é fazer muitos sacrifícios.
Não há sacrifícios, é liberdade total. (...) A maior parte das igrejas
prega, primeiro, a mudança de comportamento, depois promete o amor
de Deus. Aqui, é o contrário, Deus está em primeiro lugar e recebe todo
mundo. Até porque Jesus vivia rodeado de ladrões e prostitutas 101.
Sabonetes, perfumes, óleos, músicas, são todos vendidos
como qualquer outro produto. Então, o culto, a oração, a benção,
idem. A questão é que se o cliente/fiel não ficar plenamente
satisfeito com o “produto”, não poderá se dizer ludibriado por
“propaganda enganosa” e reclamar no Procon, Delegacia do
Consumidor ou Conar. Então a criação de um “Procon
Espiritual”, como sugeriu o historiador Ziel Machado, numa
palestra no ICEC, seria uma boa providência.
Esta seria, então, a razão porque vips, ricos, famosos e
emergentes estão aderindo? Já ouvi em um debate, alguém dizer

101
Revista da Folha, 24/06/01, pg. 20.

92
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

que isto é marketing de artista em final de carreira para voltar à


mídia com um “público de cabresto”. Aderir à “indústria do
testemunho” é a forma mais simples (?) de encher as burras de
dinheiro. Penso que, isto é um julgamento muito grave que eu
não me atrevo a fazer. Mas não podemos escapar do conceito
de “religião como espetáculo”. Tudo hoje é midiático e a vida é
uma realidade imagética. Um reality show com diversas cenas.
Portanto – Deus me perdoe a blasfêmia –, o culto, o testemunho
são apenas algumas das cenas. O corpo, sadio e feliz, é
fundamental para implementação do show. Perdão, do culto.
E como esta adequação da teologia do corpo não tem limites,
há na praça um CD gospel chamado de “Bonde do Ungidão”
uma paródia do Bonde do Tigrão. A música é igual, muda apenas
a letra. Como ouvi apenas o CD, fiquei curioso para saber como
as “popozudas” e os “tigrões”, devem fazer a coreografia
“ungida”.
6. Independência institucional. São igrejas que surgiram de forma
autônoma, na maioria das vezes, como um projeto pessoal. Nem
calvinistas, nem arminianistas, nem trinitarianistas, nem
renovadas, nem pentecostais. Nenhuma dessas tradições ou
talvez com uma mistureba a la Brasil de todas elas. Algo assim
teologicamente hermafrodita.
Atenção: “projeto pessoal” não é indicado como menosprezo
ou desqualificação, afinal nenhuma igreja nasceu como projeto
do coração ou revelação expressa de Deus, apesar de algumas
insistirem nesta falácia. Até as seculares, tradicionais e
respeitáveis denominações nasceram – também – a partir de um
projeto, sonho e obra de uma pessoa. Ou divisão. Evidentemente,
que o Zezinho da Vila Vintém que se atreve a fundar uma igreja
é “herege”, “rebelde”, “divisionista do Corpo de Cristo”, o que
jamais diríamos de Lutero, Calvino ou Wesley.
A questão básica para essas novas igrejas é: como elas não têm
tradição podem fazer qualquer coisa. Ouvi um pastor batista americano
dizer que há um provérbio entre eles que diz: “Qual a definição
de eterno? Eterno é tudo o que começa numa igreja batista”.

93
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

Numa escala hierárquica, por exemplo, como a da Igreja


Presbiteriana, uma questão é discutida no Presbitério local, sobe
ao Sínodo e vai até o Supremo Concílio. E neste processo muitos
dogmas são lembrados, confissões consultadas, muitas leis
aplicadas e decide-se a partir da tradição da Igreja. Numa dessas
igrejas modernas, o líder carismático (Weber) decide, “inspirado
por Deus”, e a coisa se realiza. Deu certo? Vira padrão “sagrado”.
Modelo a ser imitado pelas concorrentes. Deu errado? Bate-se a
poeira, e, no próximo momento, tem-se nova “revelação”. E não
é mera coincidência que nesses tempos neoliberais tenhamos uma
produção descartável de espiritualidade, ou algo similar. A
indústria cultural mandou lembranças.
Assistindo a um desses programas evangélicos na TV vi o
apresentador convocar o povo para uma nova “campanha de
oração da sexta-feira forte”, da seguinte maneira: “Prestem
atenção, nós vamos fazer uma coisa que ninguém fez! Ninguém
fez ainda! O Missionário recebeu a revelação de Deus para ungir
o dedão do pé! Prestem atenção, ninguém fez isto! Venha para a
Campanha nesta sexta-feira forte...”. Básico. Funcionou? Se já
existisse o “Procon Espiritual” saberíamos.
7. Personalismo versus hierarquia. No Brasil, casa/rua e público/
privado não são áreas distintas, mas complementares – na pior
acepção da palavra (DaMatta, 1990, 1997). O limite entre o legal
e o ilegal, o cidadão e o marginal, a pessoa e o indivíduo, é
nossa maior “atração”, ou em português claro, nosso “jeitinho”102.
Nessa “dialética da malandragem”, na expressão de Antonio
Cândido, todos os valores são relativizados. Até onde isso
contaminou o protestantismo?
Será que as denominações – seculares e tradicionalístas –
também não foram atingidas pela síndrome do “sabe com quem
está falando?103” (DaMatta, 1990). Há muito personalismo ou

102
Uma discussão da relação evangelho e o jeitinho brasileiro é feita por Lourenço
Stélio Rega, em Dando um jeito no jeitinho (2000). Conquanto sua preocupação
(dogmática) teológica seja exclusivamente de condenação. Não há mérito, segundo
Rega, nesta faceta cultural brasileira.
103
Na dúvida de que isto aconteceu, veja a análise arrasadora que João Dias Araújo
(1972) faz da Igreja Presbiteriana em Inquisição sem fogueiras.

94
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

“liderança carismática” (Weber), que a despeito da tradição ou


denominação, imprime sua idiossincrasia. Holanda diz que uma
das características mais marcantes da cultura brasileira, além de
nossa cordialidade, é a “cultura da personalidade” (1999:32).
Apenas perguntas: será que a Presbiteriana seria a mesma
sem a existência de José Manuel da Conceição, Boanerges Ribeiro,
Caio Fábio? A Assembléia de Deus sem o Emílio Conde, Paulo
Macalão e José Wellington? A Batista seria a mesma sem o
Fannini? A Betesda sem o Gondim? A Renascer sem o Estevan?
Pois até a Igreja Católica no Brasil seria diferente se não fosse
um Paulo Arns e um Hélder Câmara. Lembremos que a cúpula
da Igreja apoiou o golpe militar e continuaria apoiando se não
fossem alguns acidentes e alguns “profetas desviados da
tradição”104. Idem para grupos evangélicos.
Na Assembléia de Deus, foi o “purismo” de Emilio Conde e
o “nacionalismo” de Macalão que impediram-na de ter atuação
política e estabelecer uma estrutura eclesiástica nacional,
possibilitando o surgimento do “caciquismo”, ocasionando seu
esfacelamento nos chamados “Ministérios” (Alencar, 2000). Na
Batista, o apoio à ditadura se deu pela conveniência do Fannini
receber uma concessão de programa de TV (Freston, 1993). Ora,
se isto aconteceu em igrejas seculares com todo o peso da
tradição para norteá-las, o que não poderia acontecer no
“pentecostalismo autônomo?”
Lutero é “maior” que a Igreja Luterana, Calvino é “maior”
que a Presbiteriana, Wesley é “maior” que a Metodista. Assim
como no Brasil, RR Soares é “maior” que a Igreja Internacional;
Edir Macedo, “maior” que a Universal; Faninni, “maior” que a
Batista, Gondim é “maior” que a Betesda, assim como Caio Fábio
104
Este discurso católico de apoio aos pobres e ser contra o governo está mais para
acidente de percurso que sua própria natureza. Desde Constantino, passando pelo
fascismo na Itália, a ditadura do Estado Novo com Getúlio até os militares em 64
sempre teve apoio institucional da Igreja. A Catedral de Brasília, originalmente, foi
construída ecumênica. A Igreja Católica a recebeu de “presente” e a tradição, a
família e a propriedade agradecem penhoradamente. Hoje não é muito diferente – o
Núncio Apostólico que o diga. Há alguns grupos de plantão para reclamar e masca-
rar a atuação oficial da Igreja.

95
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

era “maior” que a Presbiteriana105 (Essa, inclusive, foi uma das


razões dos seus problemas).
O temperamento centralizador de Caio Fábio não pode ser
desconsiderado nesse processo. Como ele mesmo afirma: “não
sou tirano, não sou despótico, dialogo, converso, mas quando eu me
convenço de alguma coisa em alguma direção eu não tenho nenhum
problema de tomar a decisão, assumir a responsabilidade e arcar com as
conseqüências”. Assim, quando seguro de suas decisões, à equipe
de Vinde só restava obedecer-lhe e segui-lo, pois, como afirma
um ex-assessor direto, “quando ele decide, está decidido” (Fonseca,
1998:95, grifo no original).
A igreja evangélica brasileira é uma instituição de grandes
personalidades. O que há de errado nisto? Em tese nada. Aliás,
uma igreja que não tem uma figura carismática (e mais uma vez
é bom lembrar: o conceito não é da teologia pentecostal, mas da
sociologia weberiana) não se desenvolve. Não cresce. Terá muita
dificuldade de agregar pessoas em torno de idéias, estilos,
tradição. E a liderança, seja lá qual for, é imprescindível para
seu desenvolvimento. Por mais tradição secular que a Igreja
Católica tenha, ela precisa do Papa, uma figura carismática
essencial em seu agregamento. Ele, como qualquer outro líder
religioso, é símbolo de tudo o que esta igreja quer e precisa ter.
Idem para nossos pastores. Repito: isso, em si, nada tem de
errado. Religião precisa, mais do que qualquer outro fenômeno,
de símbolos. O problema é que alguns destes símbolos, além de
representarem o ideal religioso do grupo, significam também
outras coisas...
Ora, se um ministério como o de Caio Fábio, que, durante
algum tempo foi a grande referência evangélica, era
personalístico, quanto mais uma igreja autônoma, sem tradição,
à imagem e semelhança de seu dono/fundador. São instituições,
por conseqüência, onde a personalidade é mais importante que
a hierarquia. O protestantismo, portanto, como DaMatta
(1990:191) analisa a sociedade brasileira, é formado por

105
Uma análise da “liderança carismática” de Caio Fábio foi feita pelo sociólogo
Alexandre Brasil Fonseca (1998).

96
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

“medalhões, aqueles que não nasceram, foram fundados”. Por


eles próprios.
8. Big Brother Gospel. De início, é bom lembrar: isto não é uma
tara tupiniquim ou sintoma de nosso subdesenvolvimento
cultural. É mania mundial. Aliás, mais uma peça da tal
globalização. Idéia holandesa originalmente, alastrou-se por este
mundão como praga. Todos querem olhar pelo buraco da
fechadura. É a curiosidade inerente da natureza humana.
Portanto, esta briga entre Globo e SBT pelos direitos autorais
(será que a briga não faz parte do marketing?) é apenas cena.
Deveríamos, de fato, pagar royalties para Eva, pois, na falta de
comadres ou concorrentes, ficou a tricotar com a serpente.
O fascínio que o outro – seja lá o que ou quem for – nos
provoca é indiscutível. Num psicologismo barato: somos
(a)traídos pelos erros de nossos semelhantes porque nos
identificamos neles. Simples, adoramos condenar o que mais
gostamos; de outra forma, somos extremamente severos com
determinados erros. Dos outros.
Adicione-se à esta espetacularização da natureza mórbida os
interesses dos fabricantes de móveis, edredons (o tudo explícito
aborta a fofoca), carros, produtos diversos numa disputa
milionária na TV – e então o show se completa. Quem é o grande
beneficiado, afinal? A rede de TV, os anunciantes, as cobaias de
artista, a patuléia assistente. Todos ganham (?). A rede de
televisão e os anunciantes têm apenas um objetivo: faturar. É a
lógica do quanto pior melhor. Eles, então, descobriram o mapa
da mina: o melhor do pior!
As cobaias que se prestam a isso estão (apenas) querendo
uma oportunidade de aparecer. Pelado, vestido, tramando,
dando rasteira e golpes, exibindo bíceps e nádegas. E daí? Se
cada cria da ninhada humana tem direito a quinze minutos de
fama, isto sendo em rede nacional por uma quarentena de dias,
apenas valoriza o conjunto da obra. O “artista” se valoriza na
hora de assinar o contrato e a publicação vende mais porque a
“peça” já é conhecida.

97
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

Já a patuléia telespectadora fica salivando como os


cachorrinhos do Pavlov. Ensandecida, quer sangue, suor e
lágrimas. E sexo. Porque pimenta nos olhos dos outros é ponto
no Ibope. Se Roma tinha seus shows de gladiadores e os medievais
a queima dos hereges em praça pública, nós hoje temos os reality
shows. Charles Darwin deve estar batendo palmas, sua teoria da
evolução está sendo confirmada. Não precisamos de estádios
ou fogueiras para matar hereges ou nos divertirmos. Somos
modernos. Moderníssimos. Usamos internet, TV,
sofisticadíssimos sistemas de comunicação; elegemos quem
perde ou quem ganha por telefone, email e diversos outros
balangandãs eletrônicos. Na era da cibernética, nossa tecnologia
a serviço do golpe, da trama, da rasteira no concorrente, da
armação, do ciúme, da dissimulação, do falsear, da
instrumentalização das amizades e das pessoas é bem superior.
Evoluímos. E os cachorrinhos de Pavlov agradecem
penhoradamente. E pensar que tudo isto ainda pode piorar...
Uma sugestão (apenas sugestão): que tal um big brother gospel?
Convenhamos, nada mais gospel que o brother, e nada mais brother
que o gospel; é a fome com a vontade de comer. Como diria o
sábio artista Alexandre Frota: “Brother, seria uma parada
maneira!” O critério de seleção não seria a vulgaridade de bíceps
e nádegas, mas, digamos, algo mais teológico: um calvinista,
um arminianista, um pentecostal, um tradicional, um renovado,
um unicista, um trinitarista, um ecumêmico, um gedozista. Seria
uma boa oportunidade de sabermos, afinal, quem são os big e os
chart brothers. Realmente. Marketeiros a postos, patrocinadores
é que não faltam: óleo sagrado, sal grosso santificado, rosa
ungida. E as competições? Prefiro não falar, mas tenho diversas
em mente. Daria uma audiência...
9. Quadro “Os dois caminhos”. Um quadro muito antigo,
denominado de “Dois Caminhos”106, talvez a única representação
artística da época, e mesmo assim, rejeitada por muitas igrejas,
106
O modelo que disponho não tem registro de editora nem data, me parece uma leitura
iconográfica do livro “O Peregrino”, de John Bunyan (1628-88), até porque os
desenhos são idênticos.

98
N E O P E N T E C O S TA L I S M O E S UA A D E Q UA Ç Ã O C U LT U R A L

é um bom exemplo da adequação cultural do neopentecostalismo.


No caminho largo – o caminho da perdição –, está o cinema, o
teatro, o cassino, as festas, pessoas (muitas) bem vestidas com
chapéus, luvas, casacos, cartolas, guarda-chuvas etc. Muitos
enfeites. No jargão evangélico: muita vaidade. Muito espaço.
Repetindo, o caminho é largo. Uma grande porta de entrada
com uma faixa de Bem-Vindo. No prédio do teatro tem uma
frase: “Profanação do domingo”, uma das grandes ênfases de
teologia em décadas passadas.
No outro lado, no caminho estreito – o caminho da salvação –,
templos, casas de oração, tendas, pessoas (poucas) vestidas sem
ostentação, com muita simplicidade, nenhum sinal de festas ou
“coisas mundanas”. Nem precisa dizer que não há nenhum
cinema, teatro ou jogo. do lado de cá. Ao lado de todos os
prédios, episódios e atitudes existem versículos bíblicos para
“fundamentar” a aprovação (caminho estreito), ou condenação
(caminho largo), dos mesmos.
Por mera especulação: como seria atualmente o quadro “Dois
Caminhos” em sua versão gospel? O cinema, o teatro, a dança, as
belas roupas, as festas, os muitos enfeites, todos mudaram de
lado, estão (também) no “caminho estreito”. Aliás, agora, por
causa da multidão que aderiu, tiveram que “alargar” a estrada
para caber tanta gente... De forma iconográfica, sejamos sinceros,
não dá para retratar atualmente o caminho largo e o estreito.
Não há, pelo menos na estética, nenhuma diferença. Ressalva
seja feita: o cassino não mudou de lado. Ainda.
Foram as coisas que mudaram de lado ou foram as pessoas?
Apesar de estarmos falando do neopentecostalismo, isso não
atinge apenas este grupo. Nas chamadas igrejas tradicionais
também houve mudança de costumes. Os jornais batista,
metodistas e presbiterianos, nas primeiras décadas do Século
XX, condenavam o cinematógrafo, o baile, a vaidade, o trabalho
que fosse realizado no domingo – dia do Senhor – e tudo o que
na época se considerava “mundano”. Repito: as coisas mudaram
de lado ou foram as pessoas?

99
P RO T E S TA N T I S M O T U P I N I Q U I M

Em 1987, trabalhei como assessor de Recursos Humanos de


uma rede de supermercados em Fortaleza, realizando entrevistas
com novos funcionários. A entrevista tinha um roteiro e uma
das questões era sobre o lazer do candidato. Certa vez entrou
em minha sala uma moça que, pelo cabelo e vestimentas,
“adivinhei” que era assembleiana ou algo similar. Quando
perguntei sobre lazer ela se assustou e repetiu:
– Lazer?
– Sim, eu respondi profissionalmente, mas já sabendo que
aquilo não iria terminar bem. Como você preenche seu tempo
de lazer? Quais são suas diversões? Segundo o questionário da
entrevista: praia, cinema, tevê... ela interrompeu minha lista e
respondeu secamente:
– Eu não tenho lazer, eu sou crente!
No dia 22 de dezembro de 2001, apenas 14 anos depois, no
programa de TV Vitória em Cristo, o pastor assembleiano Silas
Malafaia fez uma longa reportagem no navio Esplendor dos Mares.
Foi a divulgação de um “cruzeiro evangélico” pelas praias
nordestinas com direito a saunas, piscinas, salão de beleza,
esportes e, segundo o pastor, “reuniões para deleite espiritual”.
Amém.
Repito: as pessoas mudaram de lado ou foram as coisas?
O gospel, portanto, poderia ser acusado de estrangeirismo?
Talvez pudéssemos resumir assim:
– O primeiro grupo legalmente (imigração) não podia
influenciar e não tentou;
– O segundo (missão), pensava que podia e tentou apenas na
educação;
– O terceiro (pentecostal), sabia que não devia e não tentou;
– E o quarto (neopentecostal) acha que já conseguiu.

100

Você também pode gostar