Você está na página 1de 5

Pais da Igreja – A Tradição

Originando-se destes de quem falamos acima (Marcião), já surgiram muitas


ramificações das muitas heresias, pelo fato de muitos deles, ou melhor, de todos eles
quererem ser mestres. Afastando-se da seita em que se encontravam, derivando uma
teoria da outra e desta, outra; ensinando sempre algo de novo, apresentam-se a si
mesmos como inventores da teoria por eles arquitetada.

O problema que se apresentou dentro da Igreja no segundo século, em grande medida se


diferenciou dos que foram enfrentados pelos apóstolos, uma vez que, estando os apóstolos
vivos não havia muita abertura para discussão a respeito da autenticidade de seu Evangelho.
Paulo enfrentou esse problema (Gl 1.6), mas mesmo aqueles que se desentendiam com a
doutrina da graça em Paulo, se abrigavam debaixo das pregações de Pedro ou de Tiago, e
isso aconteceu até que todos chegassem à maturidade espiritual e compreendessem que não
havia Evangelho de Paulo, Pedro, Tiago ou qualquer outro, mas apenas um único Evangelho, o
de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como temos visto, a Igreja do segundo século foi assolada por
uma série de novas ideias, e todas elas tinham como raiz um mesmo erro: imaginar que a
sabedoria de Deus é semelhante à sabedoria humana.

“Nosso Senhor é Soberano e tremendo o seu poder; é infinita sua sabedoria.” – Sl 147.5

Ao olhar para a mitologia greco-romana, muitos da Igreja encontraram no Evangelho uma


pobreza filosófica, pois não havia riqueza de detalhes doutrinários e muito menos celestiais,
uma vez que não apenas o Evangelho era muito mais simples que a Lei, como também
Yahweh era apenas um, contra todo um panteão de divindades. Assim como Raquel roubou os
ídolos de seu clã (Gn 31.19), cristãos do primeiro século também roubaram as divindades da
mitologia grega e tentaram transformar o Cristianismo em uma religião humanamente rica,
ignorando que “Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias”1. Irineu
confrontou esse sistema em uma estratégia complementar à do apóstolo, uma vez que àquele
foi dada autoridade para estabelecer a doutrina, e a este poder para defendê-la. Esse trabalho
conjunto entre apóstolos e apologistas é um padrão na história da Igreja, uma vez que o Corpo
de Cristo avança no tempo em dois movimentos constantes: crescimento e estabelecimento.
Se em um primeiro movimento, o Corpo cresce e alcança novos campos, no movimento
seguinte o Corpo consolida o que foi conquistado e cria bases para que o campo alcançado
não mais se perca. Após a solidificação do novo território, a Igreja avança novamente em
busca de novos territórios. Esse “pulsar” de fé impulsiona a Igreja para fora, é o que
conhecemos como o trabalho missionário, onde a Igreja avança em busca de alcançar novos
povos para Cristo. Após o sucesso da missão, a Igreja faz um movimento contrário e retorna
para dentro do Corpo de Cristo, dessa vez com as novas almas conquistadas, as quais
encontram na congregação, lugar “até que todos alcancemos a unidade da fé e do
conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade, atingindo a medida da estatura da

1
I Co 1.27.

1
plenitude de Cristo”, é o trabalho doutrinário.2 Crescer (evangelismo), estabelecer (doutrinar),
crescer (evangelismo), estabelecer (doutrinar)... esse é o movimento eterno do corpo de Cristo.

Em seu Contra as Heresias, Irineu luta contra aqueles que entendiam que o Evangelho deveria
se assemelhar às filosofias daquele tempo, e para isso utilizavam de conhecimento humano a
fim de construir, no Edifício de Cristo, novas paredes por meio de uma gnose que não a
apostólica3. O erro de Uzá (I Sm 6.6,7) foi repetido por homens que tentaram ajudar Cristo a
construir a Santa Igreja, e ao longo da História veremos que sempre haverá homens que se
veem como necessários para o Criador4. Um desses homens foi Marcião, que “dizia que se
salvam somente as almas que aprenderem a sua doutrina”5, que consistia na complementação
da obra herética de outro homem chamado Cerdão, pai da ideia de que o Deus da Lei e dos
Profetas não é o mesmo da Nova Aliança, “o primeiro é conhecido, o segundo é incognoscível;
um justo, o outro bom”6, desenvolvendo a heresia de Cerdão, Marcião “ampliou a doutrina,
blasfemando despudoradamente o Deus da Lei e dos profetas, chamando-o autor do mal,
desejoso de guerras, inconstante nos sentimentos e em contradição consigo mesmo”7. Mas
como sustentar essa heresia quando toda a Torah e os escritos apostólicos a impedem de se
sustentar de pé?

“Fez crer aos seus discípulos ser ele mais verídico do que os apóstolos que
transmitiram o evangelho, entregando-lhes nas mãos não o evangelho, mas uma parte
do evangelho” – Irineu, sobre Marcião

O herege simplesmente se tornou partícipe de uma linha de pensamento bastante comum já no


fim do primeiro século: a de que os judeus eram malditos e deveriam ser desprezados (e
muitas vezes, até mesmo perseguidos)8. Como uma heresia nunca nasce e morre sem dar
seus frutos malditos, após detestarem os judeus tais homens viam no Evangelho de Cristo uma
abolição da Lei e dos Profetas, o que lhes permitia desprezar todo o Escrito Sagrado
veterotestamentário, ou utilizar a seu bel prazer os textos da forma que lhes fosse aprazível.
Não fosse suficiente, já que os judeus eram malditos e a Torah não era divinamente inspirada,
todo o judaísmo precisava ser revisto e, consequentemente, os apóstolos – que não tiveram
essa “clareza” – também estavam errados, e precisavam ser corrigidos. Note como toda a
estrutura do cristianismo vai ao chão quando parece ser retirado apenas um pequeno tijolo do
Edifício, Israel. Esse erro se repetirá ao longo da História da Igreja por diversas vezes, quando
cristãos se esquecerem de sua origem no Vale do Jaboque9. Não é possível retirar o Israel

2
Ef 4.13.
3
Contra as Heresias, Livro III, 1.1.
4
Esse é o conceito presente em O Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski (Os irmãos Karamázov), onde o autor
imagina um retorno de Cristo à Espanha em meio à Inquisição. Quando o Filho de Deus surge entre o povo oprimido e
necessitado, encontra não uma Igreja que o adora, mas que vê em seu retorno um empecilho à conclusão da missão
que Ele mesmo entregara à Igreja. A ideia de autonomia do Corpo para com a Cabeça é diabólica pois os cristãos
jamais podem se esquecer de que não são o centro da tomada de decisão, e sim o corpo que recebe as decisões da
Cabeça, que é Cristo.
5
Op. Cit., Livro III, 27,3.
6
Op. Cit., Livro III, 27,1.
7
Op. Cit., Livro III, 27,2.
8
O antisemitismo foi um sentimento presente na Igreja desde sua formação, uma vez que a perseguição dos judeus
contra o Cristo se estendeu também a seus apóstolos, resultando no martírio de São Tiago em 44 d.C – após o que
Herodes, “observando que essa atitude agradava aos judeus” (At 12.3), passou a perseguir os demais apóstolos de
Cristo. Essa perseguição se estendeu até seus limites, quando a Igreja foi advertida pelo Senhor a fugir de Jerusalém e
ir para Pella, conforme relato minucioso de Eusébeio em História Eclesiástica, Livro III, V.
9
Ler Gn 32.22-32 e depois Gl 6.16 e Rm 9.6-8.

2
carnal sem retirar o Israel espiritual, pois “não foi o espiritual que veio primeiramente, mas sim
o natural”10.

No Livro II, 18, Irineu condena a ideia agnóstica de que a sabedoria humana seja uma
ferramenta eficiente de busca da Verdade. Contra a heresia valentiniana de que Sofia
(Sabedoria) saiu em busca da virtude, o apologista inicia dizendo que é loucura imaginar a
própria existência da Sabedoria na ignorância, paixão ou degradação. Com essa abordagem
crítica ao “panteão cristão” criado por Valentim, onde no topo da divindade existia o Pai
Inefável (Deus), superior ao Pai Invisível (Demiurgo) – sendo o Pai Inefável composto de Mente
(Nous) e Pensamento (Ennoia) – Irineu demonstra a inutilidade da sabedoria humana na busca
pela Verdade. No gnosticismo valentiniano, da união do Homem com a Igreja, surge Sofia
(Sabedoria), o que concederia aos cristãos a dádiva de, por meio da gnose cristã, abraçarem a
Sabedoria para voltar ao Pai Inefável. Isso para Irineu é ridículo, uma vez que Cristo não foi
encontrado pelos apóstolos, sequer compreendido... mas revelado!11

O Cristianismo não é uma filosofia, não pode ser compreendido por busca humana uma vez
que sua fonte, assim como a Torah, não tem origem rastreável, pois encontra-se no Logos, que
é Cristo, o Alpha e o Ômega, o Princípio e o Fim (Ap 22). Assim como Cristo é a Palavra de
Deus para Moisés no Monte Sinai, Cristo é a Palavra para os apóstolos. Da mesma forma que
Moisés é a única fonte confiável a descer do monte, pois traz em suas mãos o Logos gravado
nas Tábuas da Lei, os apóstolos também são a única fonte confiável pois também eles trazem
o Evangelho recebido diretamente do Cristo, gravado não em pedra, mas em seus corações~.

Não será como a Aliança que firmei com seus antepassados quando os tomei pela mão
para tirá-los do Egito, pois eles não honraram o meu pacto, mesmo sendo Eu o Marido
divino deles!” assevera Yahweh. “Eis, no entanto, a Aliança que celebrarei com a
comunidade de Israel passados aqueles dias”, afirma o SENHOR: “Registrarei o
conteúdo da minha Torá, Lei, na mente deles e a escreverei no mais íntimo dos seus
sentimentos: seus corações. Assim, serei de fato o Deus deles e eles serão o meu povo!
Ninguém mais terá a necessidade de orientar o seu próximo nem seu irmão, pregando:
‘Eis que precisas conhecer quem é Yahweh, o SENHOR!’, porquanto serei conhecido
no interior do ser de cada pessoa, desde os mais jovens até os idosos, dos mais pobres
aos mais ricos.”, garante o SENHOR. “Porque Eu mesmo lhes perdoarei a
malignidade e não me permitirei recordar mais dos seus erros e pecados! – Jr 31.32-34

A economia da salvação
No Livro III, 1,1, Irineu passa a falar sobre a base fundamental da fé cristã:

Não foi, portanto, por ninguém mais que tivemos conhecimento da economia da nossa
salvação, mas somente por aqueles pelos quais nos chegou o Evangelho, que eles
primeiro pregaram e, depois, pela vontade de Deus, transmitiram nas Escrituras,
para que fosse para nós fundamento e coluna da nossa fé. Nem é lícito afirmar que
eles pregaram sem antes possuir a gnose perfeita, como ousam dizer alguns que se
gloriam de corrigir os apóstolos.

10
I Co 15.46.
11
Lc 24.45.

3
O Bispo de Lyon traz um testemunho inacreditável, contando-nos que homens daquele tempo
clamavam de dentro da Igreja serem mais sapientes que os apóstolos, e sendo o Evangelho
matéria de inteligência humana, eles eram mais habilitados para a Verdade que os homens
que andaram com Cristo. Veja como é vital para a heresia se despir do substrato da fé, seja ele
a origem de Israel, o gênesis de Moisés, o Tabernáculo no deserto, o nascimento virginal de
Maria, ou Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida.

“E, proclamando-se a si mesmos como sábios, perderam completamente o bom


senso.” – Rm 1.22

Para defender-se de tais erros a Igreja não pode se esquecer de sua Pedra Fundamental, e por
isso Irineu ressalta (no texto acima) que a doutrina cristã foi dada à Igreja pelos apóstolos, que
são o novo receptáculo do Logos em sentido literal, uma vez que receberam do próprio Cristo
as palavras de vida (Jo 6.66-68). E em matéria de inteligência, como se fosse de inteligência
que se trata a questão, Irineu ressalta que “não é lícito afirmar que eles pregaram sem antes
possuir a gnose perfeita”, ou seja, os apóstolos não foram para o campo missionário e
doutrinário antes de terem seus olhos abertos para compreenderem a verdade. É o que vemos
claramente nas Escrituras, com os apóstolos:

“Então, se lhes abriu o entendimento para que pudessem compreender as


Escrituras.” – Lc 24.45

E com Paulo

“Caros irmãos, quero que saibais que o Evangelho por mim ensinado não é de
origem humana. Porquanto, não o recebi de pessoa alguma nem me foi doutrinado;
ao contrário, eu o recebi diretamente de Jesus Cristo por revelação” – Gl 1.11

Irineu passa então a defender que a sucessão apostólica na Igreja garante a transmissão do
conhecimento, sendo impossível que alguém fora da sucessão apostólica venha dizer que teve
acesso a um evangelho mais autêntico, pois não sendo sucessor de algum apóstolo, seu
evangelho naturalmente é espúrio. Essa defesa é a base da Tradição da Igreja, que em Irineu
tem papel vital para resistir às heresias do segundo século, um tempo em que era patente aos
olhos de “todos os que queiram ver a verdade”12 ter acesso à lista de sucessão apostólica de
cada Igreja13. Sendo a transmissão do conhecimento algo palpável no segundo século, Irineu
afirma que “os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar”, e que a Tradição é fonte
de informação verídica não apenas para os letrados, mas também aos iletrados, e isso faz com
que o apóstolo (e seus sucessores) sejam anunciadores da salvação não “escrita com papel e
tinta”, mas “guardada escrupulosamente em seus corações”, e essa verdade é:

[...]crêem num só Deus, Criador do céu e da terra e de tudo o que está neles e em
Jesus Cristo, Filho de Deus, o qual, pela sua imensa caridade para com os homens, a
obra por ele modelada, submeteu-se à concepção da Virgem para unir por seu meio o
homem a Deus; padeceu sob Pôncio Pilatos, ressuscitou, foi assunto na glória e, na

12
Livro III, 3,1.
13
No Livro III, 3,3, Irineu faz a lista partindo de Pedro e Paulo, fundadores da Igreja em Roma, e segue até Eleutério, o
décimo segundo Bispo de Roma, ainda em atividade quando da elaboração da obra aqui tratada.

4
glória, virá como Salvador dos que se salvarão e Juiz dos que serão julgados e
enviará ao fogo eterno os deformadores da verdade e os que desprezam seu Pai e sua
vinda.14

A defesa da fé cristã está irremediavelmente alinhada para com a Verdade transmitida dos
apóstolos, e à Igreja é dada a missão de guardar a fé e transmitir o Evangelho da Salvação, em
pulsação eterna pela força do Espírito.

Fernando Melo
Brasília, 4 de maio de 2022

14
Op. Cit, Livro III, 4,2.

Você também pode gostar