Você está na página 1de 8

A Era-cristã – Sucessão apostólica e desafios

O Império Romano e a Igreja no Século II

100 200 d.C


100 107
Clemente, Tito, 155 165 186
romano de Creta Pápias, Justino Mártir Teófilo,
de Hierápolis de Antioquia
Inácio, de
Antioquia Policarpo, 180
de Esmirna Melito,
Timóteo, de Sardes
de Éfeso

Para a Igreja, o primeiro século da Era Cristã fechou com a morte do último dos apóstolos,
João, o amado do Senhor. Segundo os escritos de Eusébio e Varazze, João foi condenado
pelo Imperador Domiciano a ser lançado em uma cuba de óleo fervente, à Porta Latina (Roma),
porém, “saiu dela são e salvo, porque vivera livre da corrupção da carne”. O discípulo amado
tem sua biografia registrada como tendo sido, ainda virgem, chamado pelo Senhor ao
ministério. Em castidade permaneceu ao longo de toda sua vida, marcada no Caminho por
uma doutrina do amor. Em suas cartas à Igreja encontramos “Vede quão grande amor nos tem
concedido o Pai: que fôssemos chamados filhos de Deus” (I Jo 3.1), “Filhinhos, ninguém vos
engane” (I Jo 3.7), “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus” (I Jo 4.7),
“Amado, não sigas o mal, mas o bem” (III Jo 11) e tantos outros exemplos que podem ser
retirados do autor do Evangelho que começa com uma ode em louvor àquele que “estava no
princípio com Deus” (Jo 1.2) e termina dizendo que “nem ainda o mundo todo poderia conter os
livros que se escrevessem” para relatar tudo o que seu Amado fez durante seus dias na Terra
(Jo 21.25). Após ser livrado da morte no óleo fervente, João foi exilado na ilha de Patmos (uma
ilha grega, no Mar Egeu) da qual saiu apenas após a morte do imperador, ao que João voltou
para Éfeso, onde foi recebido com grande alegria pela Igreja que permanecia em oração pelo
apóstolo. Eusébio registra1 em sua História o escrito de Polícrates, onde lemos “João, o que
recostou sobre o peito do Senhor e que foi sacerdote portador do pétalon, mártir e mestre; este
repousa em Éfeso”. A morte do último dos 12 é datada em 103, em Éfeso como afirma o
historiador.

Esta era a situação dos judeus, enquanto os santos apóstolos e discípulos de nosso
Salvador haviam se espalhado por toda a terra: a Tomás, como quer uma tradição,
coube a Partia; a André a Cítia, a João a Ásia, entre os quais se estabeleceu,
morrendo em Éfeso.

1
História Eclesiástica, V, XXIV.

1
Pedro, segundo parece, pregou no Ponto, na Galácia e na Bitínia, na Capadócia e na
Ásia, aos judeus da diáspora; por fim chegou a Roma e foi crucificado com a cabeça
para baixo, como ele mesmo pediu para sofrer.

E o que dizer de Paulo, que desde Jerusalém até o Ilírico cumpriu com a pregação do
Evangelho de Cristo e finalmente sofreu martírio em Roma sob Nero?2

É comum ao falarmos sobre a Igreja, tanto atual como antiga, nos referirmos à Igreja
Apostólica, aquela comunidade vigorosa onde podia-se ir ao culto no domingo pela manhã e
escutar uma pregação do apóstolo Paulo, ver dois ou três paralíticos se levantarem, um cego
enxergar e o Espírito Santo descer sobre todos os presentes distribuindo dons e ofícios com
palavras de profecia. Tudo isso é verdade e realmente era assim que acontecia, esses são os
registros não apenas bíblicos (que em nosso tempo são visto como não-históricos, mas
religiosos), mas também literários como os de Fílon3, um filósofo do primeiro século. Mas a
Igreja Apostólica teve também outras importantes marcas, e nem todas boas, algumas na
verdade muito ruins e que fazem as primeiras comunidades cristãs se parecerem mais com
nossas igrejas atuais.

A heresia no primeiro século


Ao ler Eusébio, Irineu de Lyon (130 – 202)4, Clemente Romano (35 – 100) e tantos outros que
escreveram no início da Era Cristã, vemos um tema ainda mais frequente que o milagre, a
heresia. Os apóstolos já haviam dito que seria assim:

“Assim como, no passado, surgiram falsos profetas entre o povo, da mesma forma,
haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias
destruidoras, até ao cúmulo de negarem o Soberano que os resgatou.” – II Pe 2.1

“Eu sei que, logo após minha partida, lobos ferozes se infiltrarão por entre a vossa
comunidade e não terão piedade do rebanho. E ainda mais, dentre vós mesmos
surgirão homens que torcerão a verdade, com o propósito de conquistar os discípulos
para si.” – At 20.29,30

“O Espírito Santo afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns se desviarão
da fé e darão ouvidos a espíritos enganadores e à doutrina de demônios, sob a
influência da hipocrisia de pessoas mentirosas, que têm a consciência cauterizada.
São líderes que proíbem o casamento e ordenam a abstinência de alimentos que Deus
criou para serem recebidos com ações de graças pelos que são fiéis e estão bem
firmados na verdade.” – I Tm 4.1-3

“[...]certos indivíduos, cuja condenação já estava sentenciada há muito tempo,


infiltraram-se em vossa congregação com toda espécie de falsidades. Essas pessoas

2
História Eclesiástica, III, I.
3
Citados no capítulo anterior e encontrados em História Eclesiástica.
4
A partir de agora falaremos invariavelmente do tempo “d.C – depois de Cristo”, assim passarei a omitir essa sigla por
questão de conveniência, fazendo uso da mesma ou de suas semelhantes apenas quando necessário.

2
são ímpias e adulteraram a graça de nosso Deus em libertinagem e negam Jesus
Cristo, nosso único Soberano e Senhor.” – Jd 4

São diversos os textos que exortam a Igreja quanto ao que haveria de vir, e em alguns casos
quanto ao que já havia chegado como vemos na epístola de Judas. “Heresias” (Pedro),
“verdade torcida” e “doutrina de demônios” (Paulo), “falsidades” e “graça adulterada” (Judas),
essas expressões já nos dão um bom significado do termo heresia. Quero complementar ainda
mais para que estejamos certos quanto ao que estamos falando.

Heresia, (gr. hairesis) escolha.

Com o passar do tempo o termo heresia se tornou didático para definir aqueles que escolhem
acreditar em algo que vai contra o que já é estabelecido pela maioria 5, e com enfoque no
campo religioso. É interessante notar que à Igreja de Corinto, Paulo fala que “se faz necessário
que haja divergências entre vós, para que os aprovados se tornem conhecidos”, e aqui o que
foi traduzido para o português como “divergência”, no texto original grego é justamente o termo
“haireseis”, o ato de “fazer heresias” por um grupo de pessoas. Paulo está dizendo que em
Corinto, haver um grupo de pessoas que estivessem escolhendo como crer, ou no quê crer
relacionado ao Evangelho era necessário (gr. dei, necessário, preciso, en. must be), “para que
os aprovados se tornem conhecidos”.

Nesse estranho caso de Corinto, nós temos uma ação do mesmo Espírito que anunciou pelos
profetas a vinda do Ungido, aplainou os caminhos da Judéia por meio da dura pregação da voz
do que clamava no deserto, guiou o Messias no deserto e no Calvário, distribuiu os dons e
ofícios no Pentecostes, e agora trabalhava na construção da sã doutrina por meio de um
processo de depuração do ensinamento apostólico (que nada mais era que o ensinamento do
Mestre Jesus, pois para ser apóstolo era necessário ter sido discipulado pelo próprio Filho de
Deus). Deus não estabelece a ortodoxia antes da heresia, e constatar isso é romper com a
ideia comum (doxa) que temos sobre o assunto.

“É a heresia que vem em primeiro lugar, e não a ortodoxia. A ortodoxia, como a


pensamos, foi a imposição de um espectro mais estreito de crença sobre o que até
então era uma gama de perspectivas ricamente diversificada, para ordenar ou
proteger uma posição dominante.”6

No princípio de uma organização de ideias e crenças não há um pensamento estabelecido,


mas uma sopa de argumentações que ao longo do tempo são submetidas a provas, como uma
barra de ferro impuro que é trabalhada na bigorna por um ferreiro. A cada nova batida do
martelo, as impurezas voam pelos ares e o metal é esfriado e reaquecido para novas batidas
até tornar-se puro. A mesma lógica é utilizada pelos apóstolos no primeiro século da Igreja,
onde a doutrina estava sendo submetida à forja dos intelectuais para que, no fim, fosse não
apenas mais uma doutrina, mas uma sã doutrina.

5
O que seria justamente a ortodoxia (gr. orthós, justo, alinhado + doxa, opinião popular, crença comum). A heresia
seria uma escolha feita por um indivíduo que vai em posição contrária ao que já é aceito por todos daquela sociedade.
6
DAVIDSON. I. J. The birth of the church. From Jesus to Constantine. Baker Books. USA, 2004. Davidson citando
Walter Bauer (tradução nossa).

3
É importante entendermos esse ponto e por isso devemos nos alongar ainda um pouco mais
com um estudo de caso do primeiro século: o cristianismo e o judaísmo.

Ao longo de dois mil anos, Yahweh tratou com Abraão e sua descendência para chegar à
plenitude dos tempos e enviar Seu Filho à Terra, como homem em Cristo Jesus. Por todo esse
tempo Deus ministrou um ensino que podemos resumir de forma simplista em a) oferecimento
de sacrifício de sangue (Abel e Aarão); b) exortação quanto à inutilidade do culto humano como
meio de propiciação (primeiro templo); e c) chamado à obediência física consequente à
obediência espiritual. Assim vemos que Deus ensinou, ao longo de dois milênios, que é
necessário ter um sacerdócio escolhido (judeus) e que esse sacerdócio deve render-Lhe culto,
mas que esse culto não é uma ferramenta de unificação do homem pecador com o Deus santo,
sendo necessário que o próprio Deus faça essa unificação por meio de Si mesmo, na pessoa
do Filho, e que após o sacrifício os adoradores passem a realizar materialmente (obras) aquilo
que já vivem espiritualmente (fé). Todo o Novo Testamento é explicado pelas sombras do
Velho Testamento – a sã doutrina vem justamente para esclarecer essas sombras e nos
mostrar o elemento real.

Agora imagine que, depois de dois milênios de pedagogia gloriosa, vem um grupo de uma
centena de homens dizendo que tudo aquilo que havia sido lecionado tinha um significado
superior que precisava ser apreendido, e que esse processo de anagogia havia sido revelado a
eles pelo próprio Professor, o Rabi. Quem eram os hereges e quem eram os ortodoxos?

“Após três dias o acharam no templo, sentado na companhia dos mestres, ouvindo-os
e propondo-lhes questões. Todos os que o ouviam ficavam maravilhados com a sua
capacidade intelectual e com a maneira como comunicava suas conclusões.” – Lc
2.46,47

Jesus, aos doze anos de idade começou seu ministério de quebra da ortodoxia judaica com
filigranas hermenêuticas, Lucas diz “propondo-lhes questões”. É maravilhoso imaginar o Mestre
sabedor de todas as respostas -- pois além de viver com o Pai e os anjos nas regiões
celestiais, Ele mesmo é a Palavra – fazendo perguntas para os religiosos judeus. Jesus,
porém, não lhes dava a palavra, mas questões.

O mesmo trabalho de quebra de ortodoxia foi feito pelos apóstolos, e não apenas até a
instalação da Igreja, mas principalmente depois de lançada a Pedra Fundamental. As colunas
foram erigidas (Gl 2.9) em meio a esse trabalho de proposição de questões para os aprovados
tornarem-se conhecidos. Os convertidos a Cristo devem ser circuncidados? Os crentes que
não forem judeus estão proibidos de comer carne com sangue como os judeus? Posso pecar
cada vez mais para ser perdoado cada vez mais? Se vivemos pela fé, podemos ignorar o
mundo? Sendo o cristão livre, no casamento o marido e a mulher estão desobrigados um para
com o outro?7 Todas essas questões foram não apenas expostas intelectualmente, mas vividas
dentro da Igreja Apostólica, e isso não foi uma atuação prejudicial à constituição firme do
edifício de Cristo, foi justamente o meio pelo qual cada pedra dessa construção foi bem
ajustada às estruturas do Espírito Santo de Deus. Assim, podemos concluir que a heresia não
foi uma ferramenta de destruição ou atraso da obra do Espírito, mas uma das ferramentas

7
Sobre a Circuncisão, ver Cl 2; carne com sangue, ver Rm 14; pecar para ser perdoado, ver Rm 6; fé e obras, ver Tg
2; liberdade matrimonial, ver I Co 7.

4
utilizadas por Deus para a edificação da Igreja. Nenhuma divisão (hairesis) prevalece sobre a
Igreja, sempre a ajuda a crescer mais e mais.

A doutrina como antídoto às primeiras heresias


Ao verem a reta final da Igreja Apostólica, os próprios apóstolos passam a se encarregar de
perpetuar a sã doutrina, para que a partir dali a Igreja não mais se preocupasse em perscrutar
o Espírito de Deus quanto ao que deveria ser “o Cristianismo”, mas apenas seguisse o que já
estava estabelecido. Quando Deus disse ao povo no deserto que não deveriam acrescentar
nem tirar nada da Lei, como também ordenou a João escrever no fim do pergaminho de
Apocalipse8, estava se referindo claramente a esse dois textos específicos (Lei e Apocalipse),
mas vemos aqui claramente um ensinamento que foi absorvido pelos apóstolos, educados que
foram na Lei e nos Profetas. A escrita é a ferramenta que estabelece e dá o rumo da prática. O
primeiro século termina com o que havia sido ensinado por meio da tradição apostólica e das
cartas9 sendo escriturísticamente definido.

“Tu, no entanto, permanece no ensino que recebeste e sobre o qual tens plena
convicção, sabendo perfeitamente de quem o tem aprendido. Porque desde a infância
sabes as Sagradas Letras que têm o poder de fazer-te sábio para a salvação, por
intermédio da fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e proveitosa
para ministrar a verdade, para repreender o mal, para corrigir os erros e para
ensinar a maneira certa de viver; a fim de que todo homem de Deus tenha capacidade
e pleno preparo para realizar todas as boas ações”. – II Tm 3.14-17

Com relação à vida da Igreja Apostólica e construção do corpo doutrinário, J. G. Davies


escreveu:

A necessidade de algum tipo de resumo doutrinário, compreendendo o conteúdo


essencial da crença ou o centro real do evangelho, deve ter estado presente desde os
primeiros dias da Igreja. Mas, embora se possa dizer que os primeiros cristãos
compartilharam uma fé comum, eles não tinham formulário ou credo, no sentido de
uma declaração oficial e textualmente determinada. No entanto, há no Novo
Testamento indicações de que havia um padrão recorrente de crença.10

Esse padrão “recorrente de crença” ao qual Davies se refere pode ser encontrado ao fim da
segunda epístola aos Coríntios, quando Paulo conclui com a conhecida benção apostólica
repetida ainda hoje nas Igrejas ao fim das reuniões: “a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor
de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós”11. Os apóstolos viveram já em
seus tempos a necessidade de lidar com padrões de afirmações que defendessem os pontos
vitais da fé cristã, como a plenitude humana e a plenitude divina de Jesus Cristo, a Triunidade

8
Dt 4.2; 12.32, assim como Ap 22.18,19
9
Observe que na epístola Aos Tessalonicenses, escrita no ano de 51, Paulo fala sobre as tradições e cartas, e na
epístola a Timóteo, escrita provavelmente em 64, Paulo já omite a tradição. Isso não se dá por uma mudança de fonte
de informação autêntica – pois a tradição na Igreja é eterna uma vez que o [mesmo] Espírito age através dos tempos –
mas por termos já na sexta década do primeiro século os três evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), Atos
dos Apóstolos, as Epístolas de Paulo, a carta aos Hebreus, Tiago, e as Epístolas de Pedro, ou seja, como o próprio
Pedro diz (II Pe 3.16), a Igreja já possuía um Escrito Sagrado do Cristianismo.
10
DAVIES. J. G. The apostolic age. The formulation of belief. In: ______ The Early Christian Church. Barnes and
Noble, Inc., USA, 1965. p. 56 (tradução nossa).
11
II Co 13.14.

5
de Deus e a ressurreição dos corpos no último dia, crenças sem as quais o cristianismo seria
fragilizado doutrinariamente diante de heresias como a corrente filosófico-religiosa do
gnosticismo.

Como vimos no início deste trabalho, a Era pré-Cristã foi marcada pela sociedade helênica
alcançando o ápice imaginativo humano. A corrida da inteligência foi de tal forma acelerada
que teve de parar após o aristotelismo, a fim de que a humanidade tivesse quase dois mil anos
para materializar toda aquela inteligência em ferramentas de medição, e assim proporcionasse
ao homem a constatação das teorias gregas, o que de fato só veio a ocorrer após a
renascença italiana (Séc. XIV), e assim entrasse novamente em uma era científica (que
chamamos de Era Moderna).

Porém, no campos filosófico e religioso, as teorias pré-socráticas e socráticas não entraram em


torpor, ao contrário vicejaram em toda a Era Cristã, ajudando em alguns pontos e atrapalhando
em outros. O estoicismo ajudou evidentemente na solidificação do estilo de vida justo pregado
pelo cristianismo, assim como a Justiça em Platão e as Virtudes em Aristóteles prepararam a
Ética de tal forma que, para os cristãos, não foi necessário romper com o que já estava
pacificado no mundo mediterrâneo, mas oferecer uma força libertadora que potencializava a
bondade humana, tornando o homem apto a ser bom de fato. Mas nem tudo na filosofia grega
tinha cunho pré-cristão (permitam-me a expressão), havia dentre o platonismo elementos que
precisavam ser tratados, arestas que precisavam de ser aparadas, como a abordagem da alma
realizada pelo fundador da Academia, que creditava ao mundo espiritual a precedência sobre o
mundo material, e assim via espírito em tudo. Após Platão pregar que os homens possuíam
demônios (daemon, genius), que seriam personalidades imateriais referentes às
personalidades materiais, o mundo mediterrâneo quando da chegada do Evangelho era
tomado por misticismo. Não por outro motivo vemos ao longo de todo o Novo Testamento
infindáveis relatos de possessões demoníacas e desbaratamentos de mágicos e falsos
profetas. Pululava nas sociedades de todo o Império Greco-Romano a espiritualidade de tudo e
todos.

Quando o Evangelho uniu debaixo de um mesmo teto, tanto judeus quanto não-judeus, o
resultado foi uma comunidade onde havia não apenas dúvidas comportamentais de toda
ordem, como também convicções espirituais das mais absurdas. Imagine agora que, a própria
Igreja foi fundada debaixo de um evento onde 120 pessoas viram línguas de fogo descerem
sobre suas cabeças e, a partir daí, cada uma passou a anunciar maravilhas divinas em outros
idiomas.

O estabelecimento da doutrina cristã no primeiro século não foi tarefa fácil, por isso não era
permitido a ninguém que não aos apóstolos doutrinar a Igreja. A autoridade apostólica
assegurava os limites do lançamento das bases doutrinárias pois cada apóstolo havia recebido
do próprio Deus o ensinamento, assim o que diziam não era “de si mesmos”, mas de Deus (I
Co 11.23 e Gl 1.6,7). Esse trabalho doutrinário não poderia ter sido realizado de outra forma,
pois trazia a necessidade de uma batalha em duas frentes, ao mesmo tempo em que o
Evangelho precisava ser pregado com realização de maravilhas (Mt 10), precisava conter o
misticismo e a espiritualização de tudo. Alguns alegavam que os aspectos espirituais da fé
eram falsos, dando origem a uma visão materialista do cristianismo, como foi com o arianismo;
outros, negavam todo o mundo material, afirmando que apenas o que era espiritual era bom,
como se deu com o marcionismo. Ambos eram visões distorcidas da realidade cósmica
revelada em Cristo, e o cristianismo precisava caminhar em meio a todas essas armadilhas, e

6
caminhar com firmeza e velocidade pois, afinal, era preciso ir a todo o mundo pregando o
Evangelho ainda.

Gnosticismo
O termo Gnosticismo é derivado da palavra grega para “conhecimento”, gnosis. “As seitas do
segundo século reclamavam a possessão de um “conhecimento” especial que transcendia a
simples fé da Igreja”, nos informa Chadwick12. Essa simples observação vai muito além de algo
sintético, pelo contrário, o Gnosticismo nos dois primeiros séculos da História da Igreja grassou
em grande parte das cidades onde o cristianismo reunia uma comunidade em oração e estudo
das escrituras. Na Igreja de Corinto alguns crentes passaram a se ver como uma elite espiritual
(muito provavelmente por terem recebido certos dons do Espírito, como dá a entender o 12º
capítulo da primeira epístola do apóstolo à essa Igreja), e assim colocaram-se em um patamar
superior da vida espiritual, dando início à uma pregação onde o cristianismo era ascendido por
etapas, que poderiam ser visivelmente constatadas por meio das manifestações das
maravilhas operadas por esses cristãos. Assim, em Corinto o cristianismo passava a ser não
uma forma de atender à vontade de justiça a qual Deus chamava seu povo desde os profetas
(Am 5.6,7), por meio da libertação das amarras que prendiam os homens ao pecado (Rm 6),
mas sim um conhecimento que fornecia aos cristãos acesso a um caminho de purificação da
alma rumo ao Trono do Criador13. Paulo escreve a essa Igreja clamando por ortodoxia:
“Suplico-vos, queridos irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que concordeis uns
com os outros no que falam, a fim de que não haja entre vós divisões; antes, sejais totalmente
unidos, sob uma mesma disposição mental e no mesmo parecer”14. Não foi, porém, o único
caso, na Igreja em Colossos iniciou-se um culto de reverência a anjos, onde os cristãos eram
persuadidos a tratar os seres celestiais como intermediários dos homens para com Deus, em
uma deformação do ministério angelical encontrado no judaísmo, onde os anjos são
mensageiros de Deus para com os homens. Paulo alertou os colossenses: “Não aceiteis que
alguém seja árbitro contra vós, fingindo humildade ou culto a anjos, fundamentando-se em
visões, ostentando a inútil arrogância do seu conhecimento carnal”.

Ambas as igrejas sofreram com o fenômeno do Gnosticismo, que não surgiu e desapareceu no
início da Era Cristã, mas vive até hoje em formas teosóficas (onde algumas se intitulam até
cristãs!). A ideia de que Deus se revela em mistérios e esses mistérios podem ser acessados
por meio do conhecimento humano, obtido na transcendência da alma para com o corpo
terrestre. A Timóteo, Paulo resumiu todas essas loucuras a “doutrinas de demônios”.

O Gnosticismo foi, indiscutivelmente o maior problema do cristianismo primitivo, e no segundo


século alcançaria níveis ainda maiores de problematização da fé no Corpo de Cristo. Até que
Jesus, o autor e o consumador da nossa fé (Hb 12.2), levantou um teólogo mestre em filosofia
para estabelecer marcos intransponíveis à correta fé cristã. Vejamos quem foi Irineu de Lyon.

12
CHADWICK. H. The Penguin History of the Church. The Early Church. Penguin Books. England, 1967.
13
Essa visão da ascensão da alma rumo aos céus por meio de níveis espirituais já havia sido pregada por Platão,
podemos vê-la, por exemplo, no Fedro, onde diz “Quando se dirigem para o banquete que os espera, os carros sobem
por um caminho escarpado até o ponto mais elevado da abóbada celeste. Os carros dos deuses que se mantêm em
equilíbrio, graças à docilidade dos corcéis, sobem sem dificuldade. Os outros grimpam com dificuldade porque o cavalo
de má raça inclina e puxa o carro para a terra. Isso dá então grande trabalho para a alma. As almas daqueles que
chamamos imortais, logo que atingem a abóbada celeste aí se mantêm; movem-se em grandes círculos e podem então
contemplar tudo o que fora dessa abóbada abarca o Universo”.
14
I Co 1.10.

7
Fernando Melo
Brasília, 13 de abril de 2022

Você também pode gostar