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Santo Agostinho

Concede-me, Senhor, que eu ouça e compreenda como no princípio criaste o céu e a


terra. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste mundo, para onde lhe falaste,
para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-lo-ia, e dele
indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria com atenção as
palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, em vão sua voz
bateria em meus ouvidos, e nenhuma idéia chegaria à minha mente; mas se me
falasse em latim, eu compreenderia suas palavras. Mas, como saberia eu se ele dizia
a verdade? E, posto que o soubesse, sabê-lo-ia por seu intermédio? Não, mas seria
dentro de mim, no íntimo recesso do pensamento que a Verdade, que nem é hebraica,
nem grega, nem latina, nem bárbara, sem auxílio de lábios ou de língua, sem ruído de
sílabas, me diria: “Ele fala a verdade.” – e eu, imediatamente, com a certeza da fé,
diria àquele teu servo: “Tu dizes a verdade!”.

Mas, como não posso consultar a Moisés, é a ti, ó Verdade, cuja plenitude ele possuía
quando enunciou tais palavras, é a ti, meu Deus, que dirijo minha súplica, perdoa
meus pecados. Concedeste que um tem servo dissesse essas coisas: faze agora com
que eu as compreenda.

Agostinho descreve em suas confissões a adolescência distante da obediência a Deus,


passando a falar sobre a fase da juventude – que na cultura helênica começava aos 30 anos
de idade – quando entregou sua mais preciosa posse ao Criador, como está escrito: “et omnem
altitudinem extollentem se adversus scientiam Dei, et in captivitatem redigentes omnem
intellectum in obsequium Christi”1, traduzido pela King James como “destruímos vãs filosofias e
a arrogância que tentam levar as pessoas para longe do conhecimento de Deus, e dominamos
todo o pensamento carnal, para torná-lo obediente a Cristo”. O “pensamento carnal” aqui foi
escrito pelo apóstolo Paulo com νόημα (no grego), referindo-se à mente carnal, o pensamento
natural humano, que corresponde exatamente à transformação pela qual passou o jovem
garoto libidinoso que se tornaria bispo de Hipona. Foi apenas quando Agostinho submeteu o
intellectum a Deus que sua vida foi transformada, e toda a intransponível barreira do pecado foi
vencida2.

A partir do momento imediato de sua conversão, o filho de Santa Mônica agora alcançado pelo
redentor de sua mãe perdeu todo o prazer por aquilo que não era Deus “Quão suave foi para
mim a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las, como agora sentia prazer em deixá-

1
I Co 10.5, Vulgata.
2
No Livro VIII-6 de Confissões, o autor passa a narrar o episódio de sua conversão que se deu quando Ponticiano lhe
contou a história de Santo Antão do Egito, cristão eremita considerado pai de todos os monges. A narrativa
desencadeou em Agostinho uma terrível contrição que lhe levou a chorar copiosamente, percebendo a miséria de sua
existência apartada do ser de Deus. É imprescindível a leitura de VII-18 quando diz “buscava um meio que me desse
força necessária para gozar de ti, e não a encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o
homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu sou o
caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o Verbo
se fez carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de nossa infância.” O pecador que
reconhecia o Criador, havia sido criado debaixo do saber religioso e buscava vencer a incontinência sexual desde os
16 anos, só conquistou sua liberdade quando descobriu Jesus Cristo, homem. Santo Agostinho é testemunho para
toda a Igreja do poder libertador que só pode ser encontrado na pessoa de Jesus.

1
las!”3, e por poucos dias continuou trabalhando pois estavam próximas suas férias na
instituição de ensino na qual lecionava oratória; chegando os dias de descanso, Agostinho se
foi do trabalho secular para nunca mais voltar a trabalhar para o fim salarial, mas pela salvação
de almas.

Todo o trabalho de Agostinho teve um único objetivo: “em tua presença conto estas coisas aos
da minha estirpe, ao gênero humano, ainda que estas páginas chegassem às mãos de poucos.
E para que então? Para que eu, e quem me ler, pensemos na profundeza do abismo de onde
temos de clamar por ti.”4, e é meta alcançada não sem grande esforço do autor, assim como
também com grande esforço e submissão do leitor pois “Deus resiste aos soberbos, mas dá
graça aos humildes”5. Ler a obra agostiniana é esclarecedor pois o autor se debruçou de corpo,
alma e com integridade de tempo a estudar a ciência de Deus e dos homens, a gnose e a
Sophia escondidas em Cristo (cf. Cl 2.2,3). Temos então ao longo da vasta bibliografia de
Agostinho tratados sobre temas compreendidos à luz da Luz, como expresso na súplica do
santo quando disse “Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me
ensine falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade,
dize-me...”6. O doutor da Igreja não buscava as respostas no conhecimento deste mundo, mas
submetia a gnose à Sophia, que é Cristo, assim como os artesãos no deserto que, cheios do
Cristo de Deus, produziram as vestes sacerdotais de Arão para santificá-lo (Ex 28.3), e Deus
que é rico em misericórdia e não rejeita a sabedoria aos que lhe buscam, antes “a todos dá
livremente, de boa vontade” (Tg 1.5), foi generoso com seu filho e por meio dele alcançou a
todos nós como pedido por aquele em suas confissões. Aqui, nosso objetivo é entender alguns
temas à luz da obra agostiniana e, assim, vermos as evidências de sua primazia sobre a
teologia após a Patrística.

Comecemos por onde começou Agostinho: o Conhecimento de Deus.

Conhecimento de Deus
O maior empecilho do homem para entender a Deus não é serem os mistérios do Criador
profundos, mas puros. Deus não está distante do homem pelo espaço tempo, mas pela
santidade; melhor dizendo, o homem que tem origem no Criador se distanciou d’Ele pelo
pecado. Aqui está a percepção de um homem que estudou a filosofia grega e leu seus poetas,
Agostinho, que apesar de não ter sido versado em grego e hebraico (e ele mesmo o confessa
em suas confissões7) foi excelente no latim. Àquela altura, fins do século IV, a produção em
língua latina já era extensa, contando não apenas com os escritos filosóficos da Academia e do
Liceu como também tradução das Escrituras8.

Com essa compreensão, o recém-convertido Agostinho vinha ao Reino de Deus municiado dos
ensinamentos da gnose grega, entendendo porém que aquele saber era humano (aqui o
intellectus), que necessitava de ser subjugado pelo Espírito pois primeiro vem o carnal, depois

3
Ibid., IX-1.
4
Ibid., II-3.
5
Tg 4.6.
6
Ibid., XIII-6.
7
Ibid., I-14.
8
O Velho Testamento já havia sido traduzido no primeiro e segundo séculos para o latim, gerando a versão conhecida
como Vetus Latina, justamente para suprir a demanda pelos Escritos Sagrados utilizados no culto cristão para os
convertidos que não dominavam o grego e o hebraico. Nos tempos de Agostinho, São Jerônimo produziu a Vulgata,
vertendo diretamente do hebraico os textos do Velho Testamento, e da língua grega traduziu os textos
neotestamentários para o latim comum, diferente da Vetus Latina que utilizava o latim clássico, de difícil compreensão
para o público em geral.

2
o Espiritual9. Ao submeter seu vasto conhecimento à Escritura, o ex-maniqueu resolveu
primeiramente seus conflitos interiores “eu te conjuro por aquele que está sentado à tua direita,
e que intercede por nós, no qual estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do
conhecimento que procuro em teus livros”10, e consequentemente produziu exímia defesa da
doutrina cristã por meio de ataques escritos contra os acadêmicos, que inclusive é o título de
uma de suas obras onde o santo se dedica à discussão sobre “a verdade”. O objetivo do agora
autor cristão era o de demonstrar que a verdade não é uma argumentação ou constatação,
mas uma pessoa, o Cristo de Deus, o mistério que esteve oculto durante séculos e gerações,
mas [que] agora foi revelado aos seus santos11. Esse é o primeiro tema sobre o qual o doutor
se dedica porque sabedor de que o homem é transformado pela renovação da mente (cf. Rm
12.2) e de que o primeiro mandamento é “amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração,
de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força”12, não pode Ele iniciar
sua jornada n’O Caminho sem primeiro aprender como compreendê-Lo.

Ler as Escrituras com Agostinho é um exercício inteligente elevado à máxima potência, uma
vez que sua escola é a alexandrina, o que significa que para Agostinho as Escrituras não
apenas devem ser alvo de estudo hermenêutico, mas exegético13. A escola de interpretação
das Escrituras Sagradas onde mestraram Orígenes, Atanásio e Cirilo entendia que a Escritura
Sagrada é a Palavra de Deus, e como tal não poderia conter conhecimento, mas revelar a
Verdade de Deus, que é seu Logos, Jesus, o qual não pode ser contido pois é infinito, sendo
apenas revelado em partes infinitas como diz outro grande intérprete das Escrituras, João: “a
vida era a luz dos homens; e a luz resplandece nas trevas”14. Por acreditar profundamente ter
em mãos não um texto de Jerônimo, mas a encarnação do Logos que outrora se apresentou
aos homens em carne e agora em palavras que jamais passarão (cf. Mt 24.35), Agostinho lia a
Vulgata em oração, rogando sempre a Deus que lhe fosse comunicado o significado dos
santos signos de Deus por meio de seu Espírito “aproximo de ti meu coração para que não me
ministre ensinamentos vazios.”15

O primeiro ensinamento de Agostinho era vital de ser entendido não apenas por Ele, que já o
absorvera junto com o leite de suas amas16, mas por todos os inimigos de Cristo17 que
trocaram a glória do Deus imortal por imagens18. Mestre em filosofia platônica, Agostinho sabia
da necessidade de ressignificar o conceito de imagem19 entre os intelectuais de seu tempo,
pois Platão havia encontrado o significado de real, e este não era o de material, mas o de
verdadeiro, porém o verdadeiro não é absorvido e contido na mente humana, mas presenciado
e reproduzido. Por isso, o autor de Confissões escreve:

“Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memória que também os


animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E
cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí não te

9
I Co 15.46
10
Ibid., XI-2.
11
Cl 1.26.
12
Mc 12.30.
13
A hermenêutica é a ciência que estuda não apenas o significado do texto, mas também de seu contexto; enquanto a
exegese se atém, e imerge, no significado dos signos, sendo por isso mesmo mais profunda que aquela – que por sua
vez é mais abrangente.
14
Jo 1.4.
15
Ibid., XIII-6.
16
Ibid., I-7.
17
Ibid., XII-14.
18
Rm 1.23.
19
Do grego eikōn, imagem, reflexo; no latim imago, simulacrum.

3
encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na memória – porque
também o espírito lembra de si mesmo – mas nem ali estavas. Isso porque não és
imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o desejo, o temor,
a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és meu próprio espírito,
porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso é mutável, enquanto permaneces
imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te dignaste habitar em minha
memória desde que te conheço.”20

O que Agostinho está buscando demonstrar é que Deus não está em corpo (espiritual ou
carnal), pois sendo infinito não pode ser contido, e por isso não se materializa em seus filhos,
mas faz neles morada (tabernáculo, morada temporária cf. II Co 5.1,2). Sendo infinito contém
todas as coisas e em nada é contido, de forma que tudo o que existe, existe n’Ele, o que
claramente demonstra que tudo o que é real, o é em Deus. Essa afirmação de ordem filosófica
ressignifica o conceito de imago, que no mundo platônico era representado em sua Teoria das
Ideias21 e que agora, na doutrina cristã era reconstruído uma vez que o significado real dos
signos, só é encontrado quando refletido no Cristo de Deus. Por isso, quando Jesus é
questionado pelos fariseus em relação ao adultério, responde “Moisés vos deixou escrita essa
lei por causa da dureza dos vossos corações! Entretanto...”22. Atenção máxima ao “entretanto”
do Logos de Deus, pois ele irá ressignificar o que até o momento era tido como “a verdade”
quanto ao casamento, diz a Palavra “...no princípio da criação Deus ‘os fez homem e mulher’.
‘Por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua esposa, e os dois se tornarão
uma só carne’. Dessa forma, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que
Deus uniu, não o separe o ser humano!”. Jesus reconstrói o imago casamento e adultério,
evidenciando que o anterior, o de Moisés, foi entregue de forma imperfeita por misericórdia
divina, que antevendo a decrepitude do povo hebreu os livrou da devassidão suportando a
ofensa do adultério.

Sendo a verdade não mais a descoberta do homem, mas o próprio Cristo, não há mais o que
fazer em continuidade à produção intelectual atual; é mister repetir o Cristo e voltar no tempo
não apenas com a questão casamento adultério, mas com tudo o mais. E Agostinho o faz,
iniciando os estudos da Escritura em Gênesis 1.1, indo verso a verso até a conclusão do
Apocalipse de João.

20
Ibdem., X-25.
21
A Teoria das ideias de Platão encontra-se espalhada em vários de seus diálogos, e tinha como objetivo buscar
responder o questionamento quanto à realidade das coisas e as relações entre substância e ideia. Para o filósofo
grego, o homem apreende a realidade em sua mente por meio de ideias, imagens daquilo que presenciou, e quando
lida com o real lida não com o substancial-material, mas com o ideal. Ao ver um cachorro, o homem não apreende o
cachorro-substância em sua mente, mas constrói um esquema mental cachorro que passa a habitar sua memória;
adiante, ao pensar no cachorro o homem não pensa no cachorro-substância, mas no cachorro-ideia, que não é menos
real que o substancial-material.
22
Mc 10.

4
Fernando Melo
Brasília, 29 de junho de 2022

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