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Santo Agostinho – Livre-arbítrio

“Penso, portanto, que tu te lembras como em nosso primeiro diálogo (I,11,21) ficou
suficientemente estabelecido que nada pode sujeitar o espírito à paixão, a não ser a
própria vontade. porque nem um agente superior nem um igual podem constrangê-la
a esse vexame, visto que seria injustiça. Tampouco, um agente inferior, porque esse
não possui poder para tal.” – O livre-arbítrio, Livro III, 2.

No livro III, Agostinho relembra um de suas principais conclusões no trato para com a questão
da vontade do homem e suas consequências no desenvolvimento da História: a culpa pelo
pecado é do pecador, e suas ações são movidas por vontade própria (Rm 3.23,24; 6.23). Essa
conclusão é um ponto importantíssimo no desenvolvimento da teologia da Igreja, pois ainda
que seja pilar da fé cristã e tenha sido abordado exaustivamente pelas epístolas paulinas –
principalmente na carta Aos Romanos –, na Patrística a Igreja construía a argumentação
teológica para baixar as questões de fé ao campo da razão, e
assim provar ao mundo (sociedade e Estado) que o cristianismo
não tinha apenas o lado místico, mas era defensável também
intelectualmente (At 17.16-21). No fim do século IV Agostinho de
Hipona se envolvia em outro trabalho adicional a este, debatendo
também questões interna corporis como quando entrou em disputa
com os donatistas e, principalmente, contra os pelagianos1. A
ferramenta de Agostinho era a filosofia, e suas explicações não
eram dogmáticas, mas inteligentes. A ação do bispo de Hipona se
dava não para impor a vontade da Igreja, ou informar os néscios,
mas para conformar a linguagem doutrinária à linguagem filosófica,
e por essa característica foi adotada como forma para a definição
da teologia dogmática. Quando Agostinho diz que um agente
superior ou igual não pode constranger a vontade do homem, pois
sendo-lhe superior naturalmente é mais puro, e sendo mais puro
não pode corromper (Tg 1.13), o teólogo está construindo a
sustentação filosófica para entregar aos inteligentes (incluindo aqui
os inteligentes ímpios) uma argumentação inquestionável quanto à
culpabilidade do homem e a justiça na condenação eterna, pois se
as forças superiores ao homem não podem corrompê-lo, muito
menos as inferiores pois lhe são submissas por serem menores.
Assim, após Agostinho, as palavras do apóstolo Paulo se tornam
inquestionáveis quando diz “portanto, és inescusável, ó homem, Figura 1 – Sant'Agostino, Palermo,
qualquer que sejas”2. Cappella Palatina, 1154-1166

1
Os seguidores de Pelágio da Bretanha (350 – 423) defendiam que o pecado original havia atingido apenas Adão,
sendo seus descendentes livres da prisão do pecado, cabendo-lhes obediência à fé cristã para caminhar em direção ao
Redentor. Para Agostinho, o homem é sim portador do livre-arbítrio, mas incapaz por si mesmo de ascender aos céus
pois sua vontade está condicionada ao pecado. A partir da desobediência no Éden – e sua consequente expulsão da
presença de Deus – a humanidade tende a se afastar do Bem, sendo necessária sua reaproximação a Deus pela graça
(Rm 6.20-23; Ef 2.8-10).
2
Rm 2.1.

1
Presciência de Deus
Após o esgotamento da questão da culpabilidade do homem em sua vontade pecaminosa,
Evódio chama seu mestre a responder outro questionamento, correlacionado ao anterior, mas
em algo diferente: “como não admitir contradição e repugnância no fato de Deus, por um lado,
prever todos os acontecimentos futuros e, por outro, nós pecarmos por livre vontade e não por
necessidade?”3 Tiremos proveito da teimosia de Evódio! Não é todo dia que encontramos
alguém tão teimoso quanto nós, e que não tem vergonha de expressar sua ignorância.

A pergunta do aluno diz respeito a um tema que não pode ser confundido sem causar grandes
danos: o que é a presciência de Deus e qual sua relação com o futuro?

Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo. E
nenhum tempo pode ser coeterno contigo, pois és imutável; se, o tempo também o
fosse, não seria tempo. Que é, pois, o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira
breve e fácil?4

Sorte de Evódio que Agostinho já tinha pensado bastante sobre a questão e entendido que o
tempo não é um ente real, mas uma ferramenta de medida humana. Sendo Deus “a realidade
verdadeira e suma”5 e não estando ele submisso ao tempo, mas acima e fora, o tempo não é
real em si, mas real em Deus6. Na teologia agostiniana, o homem está submisso (inserido) ao
tempo, e o tempo existe em Deus de tal forma que, para se relacionar com o homem, Deus
dirige-se a Seu interior e entra no tempo para resgatar o homem de sua temporalidade, e retirá-
lo do domínio dos dias para inseri-lo na eternidade.

Quando olhamos com a ótica de Agostinho é fácil entender que Deus não vê o futuro do
homem, mas ordena à humanidade que escolha o Bem e resista ao Mal pois “o salário do
pecado é a morte”, sendo necessário escolher a obediência a Deus para receber sua benção
(Dt 11.26-28). Deus não vê o pecado que será cometido, mas chama todos ao arrependimento
para que não pequem, abrigando-se debaixo de suas asas (Lc 14.34). Não existe destino
predefinido na teologia agostiniana, apenas futuro certo: a benção aos que obedecem; a
maldição aos que desobedecem. A vontade do homem lhe é submissa, e é essa vontade que
conduz seus passos “Portanto, sujeitai-vos a Deus. Resisti ao Diabo, e ele fugirá de vós!”7
Como alguém que outrora dominado pela sensualidade, Agostinho sabia muito bem que era
impossível ao homem ter vontade sublime e, por isso, todos os homens estão condenados a
receber o justo pagamento por seus pecados. A única forma de ser liberto do destino certo da
vida submissa à vontade pecaminosa é se refugiando na cruz de Cristo:

“Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um lado


para outro, o tempo passava, e eu retardava minha conversão ao Senhor. Adiava de

3
Livro III, 3, 6.
4
Confissões, Livro XI, 14.
5
Livre-arbítrio, Livro II, 15, 39.
6
Sendo Deus a realidade suma, apenas aquilo que está nele tem realidade, e só a tem enquanto n’Ele. Assim, o tempo
é real não sobre Deus, mas em Deus. O tempo é trabalhado por Deus como mais uma das ferramentas que servem a
seu propósito, a qual Ele dispõe em sua infinita misericórdia para que também beneficie em tudo seus filhos (como no
episódio em que Josué deu ordem ao sol para que parasse – Js 10.12-15). Em seu Fenomenologia do espírito, G. W.
F. Hegel dirá a respeito da dificuldade do homem em conceber a realidade na sequência de eventos temporais “[...]a
consciência que apreende essa contradição não sabe geralmente libertá-la – ou mantê-la livre – de sua unilateralidade;
nem sabe reconhecer no que aparece sob a forma de luta e contradição contra si mesmo, momentos mutuamente
necessários”. O cristão, ainda que incapaz de entender, crê que “todas as coisas contribuem juntamente para o bem
daqueles que amam a Deus” – Rm 8.28.
7
Tg 4.7.

2
dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mim mesmo. Amando a
vida feliz, temia buscá-la em sua morada; procurava-a fugindo dela! Pensava que
seria mui desgraçado se me visse privado das carícias da mulher. Não pensava ainda
no remédio de tua misericórdia, que cura esta enfermidade, porque nunca o havia
experimentado. Julgava que a continência fosse obra de nossa própria força, que eu
pensava não ter. Eu era bastante néscio para ignorar que ninguém, como está escrito,
é casto sem que tu lhes dê a força. Essa força certamente ma darias se eu ferisse teus
ouvidos com os gemidos de minha alma, e com fé firme lançasse em ti meus
cuidados.”8

Prossegue:

Buscava um meio que me desse força necessária para gozar de ti, e não a encontrei
enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo
Jesus, que está sobre todas as coisas.”9

Apenas em Cristo o homem pode se libertar dos laços do pecado e, assim, quebrar a fatídica
consequência temporal do pecado seguido de morte, sendo perdoado dos pecados cometidos
até sua conversão por meio do sacrifício do Cordeiro Santo de Deus, e conformando sua
mente à nova natureza livre da obediência à carne (Rm 6.1-7).

Sobre o primeiro pecado


Ao fim do terceiro livro, o autor passa a resolver uma série de questões menores que podem
afligir não apenas seu aluno, mas todo estudante das Escrituras que passar a analisar a origem
do mal e o pecado. Dentre as questões abordadas, algumas são de maior interesse geral e,
portanto, destaco-as em nossa abordagem uma vez que terão maiores consequências para a
História da Igreja.

No Livro III, 24, 71, Agostinho passa a falar sobre a condição original do homem no Jardim do
Éden:

Ora, alguns imaginam propor a dificuldade com habilidade ao indagar: Se o


primeiro homem foi criado sábio, como se explica ter sido ele seduzido? E caso tenha
sido criado insensato, como não há de ser Deus o autor dos defeitos dele, visto que a
insensatez (stultitia) é o maior de todos? Como se a criatura humana não fosse
suscetível entre os dois extremos: insensatez e sabedoria, de conhecer um estado
intermédio, o qual não possa ser denominado nem uma coisa nem outra.

O autor destaca uma curiosidade que pode passar despercebida ao leitor do Gênesis, a de que
o homem não foi criado sábio e nem insensato, mas disposto a conhecer tudo o que lhe estava
disposto – com exceção do “bem e do mal”, pois conhecendo-o, necessariamente perderia a
eternidade. E ainda, o homem foi colocado não apenas no Éden, mas no Jardim do Éden,
cercado por toda uma criação perfeita e bela, contando inclusive com a presença corpórea de

8
Confissões, Livro VI, 11.
9
Ibid., Livro VII, 18.

3
YHWH, e mesmo diante de tudo isso optou por servir à uma sugestão desobediente e deixar
de gozar da bondade plena para conhecer “o bem e o mal”.

Uma terceira observação é a de que a consequência de comer o fruto proibido foi


essencialmente má, ainda que tenha dado ao homem conhecer também o bem. O texto do
Gênesis deixa claro que, após a desobediência de Adão, a humanidade passa a viver não para
o mal unicamente, mas a viver entre o bem e o mal, alternando a busca pela sabedoria
(Sophia) e seu afastamento (stutitia) como Abel que desejou agradar a Deus e Caim que
desejou matar seu irmão. A partir do pecado original, a humanidade passaria a desejar tanto
um quanto outro, conheceria e desconheceria, tornar-se-ia sábio, outrora estulto. Esse titubear
de passos faz com que o homem se afaste de Deus, como alertou o profeta Elias “até quando
coxeareis entre dois pensamentos?”10

Por último, precisamos nos lembrar de que não foi o homem o primeiro a pecar, sua
desobediência foi sugestionada pela Serpente, “a antiga serpente chamada Diabo ou
Satanás”11, e a respeito desse primeiro pecado escreveu Agostinho a Evódio:

“Que a alma mutável possa se contemplar, comprazer-se de certa maneira em si


mesma, na contemplação da suprema sabedoria, a qual sendo imensa não é a própria
alma, isso vem de que ela, por não ser igual a Deus, possui, entretanto, belezas que,
depois de Deus, podem encantá-la. Sua beleza torna-se perfeita quando, perdendo-se
de vista no amor de Deus imutável, esquece-se totalmente em sua presença. Mas se,
ao contrário, indo por assim dizer a seu próprio encontro, ela se compraz em si
mesma, como por uma espécie de arremedo perverso de Deus, até pretender
encontrar o seu gozo na própria independência, então se faz tanto menor quanto mais
deseja se engrandecer.”12

Quando Lúcifer estava diante do Trono de Deus contemplando a beleza do Altíssimo, se


afastou do Bem pela contemplação do reflexo de Deus em si mesmo, anjo de luz, ao invés de
adorar o Belo real “subirei acima das nuvens mais altas e serei como o Deus Altíssimo”13.
Assim, o anjo passou a adorar uma irrealidade que é a glória de Deus fora de Deus, um
simulacro do Belo, e esse orgulho deu nascimento ao primeiro ser corrompido que veio a se
tornar o tentador dos homens.

Fernando Melo
Brasília, 13 de julho de 2022

10
1 Rs 18.21
11
Cf. Ap 12.9
12
Livro III, 25, 75.
13
Is 14.14

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