Você está na página 1de 6

A LIBERDADE SEM A AUTORIDADE

É ilusão demoníaca pensar que a obediência a Deus aprisiona o ser humano,


quando é só nos conformando à Sua vontade que seremos realmente livres.

Prossegue o Papa Pio XII em sua reflexão, dizendo que o inimigo


também propugnou “a liberdade sem a autoridade" [1].

Sem dúvida, uma das manifestações magisteriais mais importantes


sobre a liberdade humana está contida na encíclica Libertas praestantissimum,
do Papa Leão XIII. Nela, o Santo Padre recorda que, mais importante que a
liberdade, é o modo como ela é exercida:

“O homem pode, com efeito, obedecer à razão, perseguir o bem moral,


dirigir-se pelo caminho reto até o fim. Mas o homem pode também seguir uma
direção totalmente oposta e, perseguindo enganosas ilusões de bens, perturbar
a devida ordem e correr à sua voluntária perdição." [2]

Trata-se de uma constante na história da humanidade: o homem pensa


poder ser livre prescindindo de Deus. Ao cair em tentação, Adão e Eva foram
seduzidos pela ideia de ser como deuses, sobrepondo sua liberdade à
autoridade de Deus, como alguém que procura fazer-se a medida de si próprio.

A sedução do mundo é de que, obedecendo à Palavra de Deus e a


mandamentos tidos como difíceis de suportar, estaríamos nos privando da
própria liberdade. Assim, a submissão a Deus é comparada, erroneamente, a
um sistema de escravidão, no qual a nossa liberdade seria diminuída, quando
não totalmente aniquilada.

É verdade que o salmista levanta os seus olhos ao Senhor “como os


olhos dos escravos estão fitos nas mãos do seu senhor, como os olhos das
escravas estão fitos nas mãos de sua senhora" [3]. E também é verdade que
São Luís Maria Grignion de Montfort propõe, para melhor servir a Deus, o
método de escravidão a Nossa Senhora. Porém, isso não significa extinguir a
nossa própria vontade. É justamente o contrário! Geralmente, as ilusões que
chamamos de “a nossa vontade" não são nada mais que as nossas paixões
desordenadas, tentando levar-nos... rumo a lugar nenhum. Aponta o Papa Pio
XII que “as faculdades inferiores da natureza humana, em consequência da
queda do nosso primeiro pai, resistem à reta razão" [4]. E ainda: “Infelizmente,
depois do pecado de Adão, as faculdades e as paixões do corpo, estando
alteradas, não só procuram dominar os sentidos, mas até o espírito,
obscurecendo a razão e enfraquecendo a vontade" [5].

Uma pessoa que, por exemplo, contrai determinado vício – que é, mais
que um pecado, a “disposição má da alma (...), causada pela frequente
repetição dos atos maus" [6] –, ao olhar para dentro de si, percebe que a
prática daquele ato, ao invés de libertá-la – como a tenta enganar o demônio –,
só a escraviza mais e mais. Então, no fundo do poço do pecado, ela se vê
incapaz de deixar determinada conduta, como um dependente químico que não
consegue mais viver sem a droga.

Se a sua consciência, no entanto, parece “relaxada" e ela sequer sente


remorso pelos atos que comete, resta lembrar que, mais que simplesmente
submeter as paixões à razão, é preciso que elas sejam submetidas à reta
razão, isto é, à consciência retamente formada, em conformidade com a lei de
Deus. Assim como alguém que bebe veneno inevitavelmente faz mal a si
mesmo, uma pessoa que usasse o argumento da consciência para fazer algo
objetivamente errado, ainda assim se destruiria. Muito se fala hoje sobre não
invadir o território “sagrado" da consciência humana. Está certo, mas o terreno
da consciência só é sagrado se bem formado; se já foi vilipendiado, deve, por
assim dizer, ser consagrado de novo. Assim como uma imagem sacra, se se
quebra, precisa ser novamente abençoada.

Por isso, “a liberdade não consiste em cada um fazer o que bem


entende" [7]. Isso significaria verdadeiramente a confusão e destruição da
sociedade. Remata o Papa Leão XIII:

“Por sua natureza, pois, (...) a liberdade humana supõe a necessidade de


obedecer a uma regra suprema e eterna; e esta regra não é outra senão a
autoridade de Deus impondo-nos as suas ordenações ou as suas proibições,
autoridade soberanamente justa que, longe de destruir ou de diminuir, de
qualquer modo, a liberdade dos homens, a protege e a leva à sua perfeição;
porque a verdadeira perfeição de todo o ser é tender e atingir o seu fim: ora, o
fim supremo, para o qual deve tender a liberdade humana, é Deus." [8]

“O fim supremo, para o qual deve tender a liberdade humana, é Deus".


Louvemos a Ele pelo dom do livre-arbítrio. Como preleciona Santo Agostinho,
“embora nem toda criatura possa ser feliz (pois não alcançam nem são
capazes de tal graça as feras, as plantas, as pedras e coisas assim), a que
pode sê-lo não o pode por si mesma, mas por Aquele que a criou" [9]. É ilusão
demoníaca pensar que a obediência a Deus aprisiona o ser humano, quando
só nos conformando à Sua vontade seremos plenamente felizes, como diz
Nosso Senhor no Evangelho: “Conhecereis a verdade e a verdade vos tornará
livres" [10].

Referências
1. Pio XII, Discorso agli uomini di Azione Cattolica, 12 ottobre 1952
2. Libertas, 20 de junho de 1888, n. 1: DS 3245
3. Sl 122, 2
4. Sacra Virginitas, 20
5. Ibidem, 34
6. Catecismo de São Pio X, 956
7. Libertas, 20 de junho de 1888, n. 12: DS 3249
8. Ibidem, n. 13
9. De Civitate Dei, XII, 1
10. Jo 8, 32
PRIMEIRO A VERDADE,
DEPOIS O AMOR E A MISERICÓRDIA
O amor e a misericórdia são belos, mas devem ser precedidos pela verdade.
Não podemos nos esquecer de que servimos um Senhor que foi morto pelo
que disse, embora ninguém tenha amado seus inimigos mais do que Ele.

Um dos problemas da cultura ocidental moderna é a tendência a


priorizar sentimentos e emoções em lugar da verdade e da razão. A Igreja
também foi contaminada por isso: muitas vezes, prefere-se evitar que uma
pessoa se sinta ofendida a ensinar de forma inequívoca a doutrina e as
verdades da fé.

Em seu mais novo livro, Christus Vincit, Dom Athanasius Schneider diz o
seguinte:

A atual crise na Igreja tem como causa o descaso com a verdade e,


especificamente, uma inversão na ordem da verdade e do amor. Atualmente,
tem-se propagado na Igreja um novo princípio de vida pastoral que diz: amor e
misericórdia são os critérios supremos, e a verdade deve se subordinar a eles.
De acordo com essa nova teoria, se houver um conflito entre amor e verdade, a
verdade deve ser sacrificada. Trata-se de uma inversão e uma perversão, no
sentido literal da palavra.

Trata-se de um argumento importante sobre a ordem da verdade e do


amor. Como nos recorda o bispo, a verdade precede o amor, e serve também
como fundamento para o amor perfeito e verdadeiro.

Dom Athanasius mostra que esse insight está enraizado não apenas na
natureza das coisas, mas na ação de Deus, que primeiro envia sua verdade na
Lei por meio dos profetas e, de modo perfeito, por seu Filho, o Verbo feito
carne. Então, após nos transmitir a verdade, Ele envia o Espírito Santo, a
Pessoa da Santíssima Trindade associada ao amor. “O amor de Deus foi
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,
5). Portanto, a verdade precede o amor e molda suas bênçãos e exigências.
A precedência da verdade é importante por outra razão: hoje, muitas
vezes, o amor é reduzido à afabilidade, que é um aspecto do amor, assim
como a correção e a repreensão. Em nossa cultura, se não aprovarmos
cordialmente qualquer coisa que outros querem fazer, corremos o risco de ser
chamados de odiosos. Muitas vezes o amor é igualado à aprovação, à
“camaradagem”.

Segundo essa atitude que contaminou a Igreja, frustrar as pessoas,


magoá-las ou fazer com que se sintam “excluídas” é praticamente a pior coisa
que podemos fazer. Não importa o fato de o Jesus bíblico frustrar mais do que
um punhado de pessoas; Ele “excluiu” aqueles que “não podiam ser seus
discípulos” porque não carregariam sua cruz e não o amariam acima de todas
as coisas. Na Igreja de hoje, temos de pisar em ovos para não ofender os
outros, e falamos incessantemente sobre ser uma “comunidade acolhedora”.
Para conseguir, muitos membros do clero e líderes de todas as posições na
Igreja parecem dispostos a deformar a veracidade de nossa doutrina por meio
do ensino seletivo, do silêncio, ou mesmo de uma completa deturpação do que
ensinam o Senhor e as Escrituras. Muitas vezes, a misericórdia é ensinada
sem qualquer referência ao arrependimento, que, no entanto, é a própria chave
que abre a porta para a misericórdia! O Senhor vincula o chamado ao
arrependimento à boa-nova da salvação (cf. Mc 1, 5).

Naturalmente, nosso objetivo não é ofender, mas o Evangelho possui


uma estranha capacidade de afligir os acomodados e confortar os aflitos, e
cada um de nós é um pouco das duas coisas. Não podemos nos esquecer de
que servimos um Senhor que foi morto pelo que disse, embora ninguém tenha
amado seus inimigos mais do que Ele.

Precisamos mobilizar o clero, os pais e todos os líderes na Igreja para


ficarem atentos ao problema descrito com tanta precisão por Dom Athanasius
Schneider. Não podemos ignorar a ordem correta: a verdade precede o amor e
é fundamento dele. As coisas na Igreja muitas vezes estão desordenadas, pois,
quando invertemos a ordem, as coisas se tornam — por definição —
desordenadas.
Todos nós temos de ser mais corajosos ao falar a verdade. Quando faço
uma pregação sobre um assunto difícil ou controverso, muitas vezes preparo
meus ouvintes dizendo: “Amo-vos demasiado para mentir para vós”. Em
seguida, digo a verdade sobre os ensinamentos de Deus, mesmo que estejam
“fora de moda”. Faço isso não apenas para prepará-los, mas para ilustrar que a
verdade do Evangelho precede e molda meu amor por eles. Não posso
simplesmente dizer que os amo sem considerar a veracidade do Evangelho.
Mentir ou silenciar enquanto o lobo do engano os devora não é amor; é ódio,
ou até pior, indiferença. Privar as pessoas da verdade que pode libertá-las não
é uma atitude amorosa nem misericordiosa.

O amor e a misericórdia são belos, mas devem ser precedidos pela


verdade. Sou grato a Dom Athanasius por nos lembrar disso.

Você também pode gostar