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TEOLOGIA SISTEMÁTICA I

autor
PEDRO PAULO ALVES DOS SANTOS

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2018
Conselho editorial  roberto paes e gisele lima

Autor do original  pedro paulo alves dos santos

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  gisele lima, paula r. de a. machado e thamyres mondim


pinho

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  antonio sérgio giacomo macedo

Imagem de capa  vovan | shutterstock.com

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

S237t Santos, Pedro Paulo Alves dos


Teologia sistemática I / Pedro Paulo Alves dos Santos.
Rio de Janeiro: SESES, 2018.
136 p: il.

isbn: 978-85-5548-595-4.

1. Revelação Natural. 2. Revelação Especial. 3. Atributos divinos.


4. Vida religiosa. I. SESES. II. Estácio.
cdd 260

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário
Prefácio 7

1. Revelação natural 11
Criação: Contexto do encontro com Deus com os homens 13
O livro da criação: Gênesis 15
O Pentateuco 16
Tradições bíblicas 17
Javista – Eloísta – Sacerdotal e Deuteronomista 18

O livro do Gênesis 20
A história das origens (1,1-11,32) 23
Criação do universo e dos seus habitantes (Gn 1,1-2,4a). 23
O Salmo 19: Deus se autocomunica na criação 24
Revelação natural: Entre a idolatria e o louvor da criação 25

O Novo Testamento e Revelação natural 29


Jesus e a Revelação natural 30
São Paulo e nova criação 34

2. Revelação especial 37
A Revelação: conceito fundamental para a teologia e a religião 40
Em torno do conceito de Revelação na teologia 42
Modernidade e religião: contexto das discussões atuais da Revelação 45
A Revelação e a história das religiões 47

Uma tipologia da religião? 48


A religião eclesiástica 48
A religião política 49
A religião cultural 50
A religião popular 50
A religião pessoal 51

A religião e a Revelação no antigo testamento 51


Contexto das religiões antigas 51
A compreensão da revelação no AT 53

O Cristo e a revelação plena de Deus 58


A compreensão da revelação do Novo Testamento 60

Quatro princípios da Revelação especial 63

3. Modos de revelação divina 67


Os modos da Revelação Divina 69

A história e a Revelação especial 70

História da salvação: um conceito prévio à Revelação? 76


Deus e história: a crise moderna 77
A perspectiva judaico-cristã da história: o testemunho da fé. 82

O Cristianismo e a história: cumprimento ou futuro? 90


Filosofia da religião, theologia da história ou cultura política? 92
Heródoto, Tucídides e Políbio: o contexto ‘historiográfico’
de Agostinho 93
Teologia do tempo e eternidade: uma ‘Dialética’ historiográfica
em Agostinho 95

Conclusões 96

4. Atributos divinos 99
Os nomes de Deus: as tradições de Israel 102

Abraão e os nomes divinos 105


O livro do Gênesis e os nomes divinos 107
Deus se dá conhecer a Abraão pelo nome divino 109
Gn 17: a renovação da Berith 109

Moisés e os nomes de Deus 111

Os nomes de Deus no antigo testamento 115


5. Implicações da Revelação na vida religiosa 119
As relações entre Revelação especial e história 121

Agostinho de Hipona e as relações entre Revelação e história 122


Filosofia da religião, ‘theologia’ da história ou cultura política? 123
Heródoto, Tucídides e Políbio: o contexto ‘historiográfico’ de
Agostinho 124
Teologia do tempo e eternidade: uma ‘Dialética’ historiográfica
em Agostinho 126
Conclusões: Agostinho e a Revelação na história 127

Criteriologia religiosa da Revelação judaico-cristã 128


A perspectiva judaico-cristã da história: o testemunho da fé. 129
O Decálogo (Ex 20): salvação e conhecimento de Deus 131
Direitos de Deus: Ex 19, 2-11! 132

Revelação e sabedoria 133


Prefácio

Prezados(as) alunos(as),

Este livro se insere no percurso do aprendizado da Teologia em suas premissas,


isto é, aquilo que a teologia precisa explicar primeiro, o que inaugura e justifica
seu percurso acadêmico.
São conceitos indispensáveis ao pensar teológico, aqueles do conhecimento
de Deus, que se recebe através da Revelação. Conhecer a Deus pela intervenção
especial de Deus, mas também pela sua obra criadora, a revelação natural.
O conhecimento de Deus é a base do conhecimento teológico. O saber e a
pesquisa que caracterizam a teologia baseiam-se na Verdade da Existência de Deus
e naquilo que Ele nos revelou sobre Si mesmo.
Por isso, o estudo da teologia deve percorrer os caminhos da ‘fala’ de Deus
aos homens e mulheres. A este processo de ‘expor-Se’ aos homens, a teologia o
denomina de Revelação.
O termo Revelação, tirar o véu, define toda a Ação de Deus, ao longo da História
da Salvação, para que conhecêssemos a Verdade e fôssemos salvos: ‘Pois isto é bom e
agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade’ (1 Timóteo 2, 3-4). Este ter-
mo possui duas acepções: a Revelação Natural e a Especial ou Sobrenatural.
Nosso livro está organizado em cinco capítulos que disporão os conteúdos
sobre Deus em sua Revelação, isto é, os conceitos fundamentais da Teologia.
O Primeiro Capítulo foi denominado ‘A REVELAÇÃO NATURAL’. Nele
iremos conhecer a os significados do conhecimento de Deus que brotam da reali-
dade comunicativa da Criação.
Do que se trata? Do papel da Criação na universalização do conhecimento
de Deus. De que maneira a natureza nos ‘fala’ de Deus, ou ainda como Deus se
utiliza da sua própria obra criadora para comunicar-se indiretamente às suas cria-
turas humanas.
Vivemos imersos no mundo na natureza, contra a qual, às vezes, agimos mal
e destrutivamente. Além disso, conhecemos pessoas que se submetem inadequa-
damente à natureza, por causa de uma mentalidade supersticiosa e mítica. Estes
imaginam que animais e coisas possuem carácter divino (idolatria) e mágico.
Conhecer a verdadeira relação entre Deus, que se revela, e a Natureza será muito
importante para nosso conhecimento teológico e para a nossa experiência de fé.

7
Espero que este capítulo sobre a ‘REVELAÇÃO NATURAL’ seja uma ferra-
menta útil.
O Segundo Capítulo foi designado com o título ‘A REVELAÇÃO ESPECIAL’.
Revelação é o termo técnico pelo qual se expressa o fenômeno mais arrebatador da
Historia Humana, que Deus seja Sujeito do Conhecimento que temos d’Ele. Ele
se auto-manifestou.
Aprenderemos neste Capitulo que Deus aproximou-se de nós e livre e sobera-
namente, apresentou-Se a Si Mesmo. Revelou-se.
Assim, Deus se tornou aos nossos olhos distinto de sua Criação. A Revelação
especial envolve assim uma pergunta fundamental: Como conhecemos a Deus?
Por Ele mesmo! Conhecemos a Deus e à sua Vontade Salvífica, porque Deus mes-
mo quis auto-revelar-Se aos homens, a começar por Israel.
Outro aspecto importante é a historicidade.
Por isso, segue o terceiro Capitulo: ‘OS MODOS DA REVELAÇÃO
DIVINA’.
A Revelação como processo comunicativo ocorreu de modo exemplar no de-
correr do desenvolvimento do Povo de Israel. E teve seu auge, na Revelação do
Cristo, plenitude do Conhecimento de Deus, por Ele mesmo: “E o Verbo se fez
carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como
a glória do unigênito do Pai” (Jo 1,14).
Segundo a carta aos Hebreus 1,1, “Deus falou de diversos modos”. Isso reitera
ao menos dois elementos que são indicados na Constituição Teológica sobre a
Revelação no Vaticano II: “Dei Verbum” (A Palavra de Deus), quando afirma que
na Sagrada Escritura Deus fala com palavras e sinais conectados entre si:
O Quarto Capítulo foi denominado ‘OS ATRIBUTOS DIVINOS’.
Neste capítulo trataremos do fato que a Revelação especial, na verdade, coloca
o problema da Identidade Divina. Deus se dá a conhecer para ser invocado, cul-
tuado, amado e obedecido!
O tema em questão, portanto é aquele do Nome Divino. Deus que supera
qualquer ‘nomeação’ entrega aos interlocutores escolhidos por Ele. Abraão, Moisés
em particular. Ao longo da história da História de Israel encontramos na questão
do Nome Divino a chave para entender as diversas tradições que compõem a lon-
ga elaboração, compilação e canonização dos textos massoréticos.
Por fim, o Quinto e Último Capítulo de nosso livro sobre Teologia
Fundamental, denominado ‘IMPLICAÇÕES DA REVELAÇÃO NA VIDA
RELIGIOSA’, tratará sobre a especial relação que se estabelece ao longo da cons-
ciência religiosa de Israel entre o conhecimento especial de Deus e a vida ética.
O Deuteronômio será o livro que estrutura esta relação expressa no auge
do Êxodo: a experiência do Decálogo, no Sinai. A teologia profética estabele-
ceu o mais denso fio condutor entre o culto e a ética, entre Fé e a vida, através
dos mandamentos.
No Cristianismo, que herda esta sólida relação: o crente tem uma vida ética
baseada na religião dos mandamentos. A vida cristã deve expressar as consequên-
cias de conhecer a Verdade, isto é, a Cristo!
Espero que este exigente itinerário de estudo e de reflexão nos conduza para
dentro do núcleo central da Teologia: conhecer a Deus através da experiência
da REVELAÇÃO.

Bons estudos!
1
Revelação natural
Revelação natural
O conhecimento de Deus é a base do conhecimento teológico. O saber e a
pesquisa que caracterizam a teologia baseiam-se na verdade da existência de Deus
e naquilo que Ele nos revelou sobre Si mesmo.
Por isso, o estudo da teologia deve percorrer os caminhos da ‘fala’ de Deus aos
homens e mulheres. A este processo de ‘expor-Se’ aos homens, a teologia denomi-
na Revelação.
Conhecemos a Deus por causa de sua própria Iniciativa, assim se lê, por exem-
plo em Hbr 1, 1:

Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos
profetas, nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de
todas as coisas, e por quem fez também o mundo; sendo ele o resplendor da sua glória
e a expressa imagem do seu Ser, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu
poder, havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da
Majestade nas alturas, feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais
excelente nome do que eles.

O termo Revelação, tirar o véu, define toda a Ação de Deus, ao longo da


História da Salvação, para que conhecêssemos a Verdade e fôssemos salvos: ‘Pois isto
é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens
sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade’ (1 Timóteo 2, 3-4).
Este termo possui duas acepções: a Revelação Natural e a Especial
ou Sobrenatural.
Neste Capítulo iremos conhecer a REVELAÇÃO NATURAL.
Do que se trata? Do papel da Criação na universalização do conhecimento
de Deus. De que maneira a natureza nos ‘fala’ de Deus, ou ainda como Deus se
utiliza da sua própria obra criadora para comunicar-se indiretamente às suas cria-
turas humanas.
Vivemos imersos no mundo, na natureza, contra a qual, às vezes, agimos mal
e destrutivamente. Além disso, conhecemos pessoas que se submetem inadequa-
damente à natureza, por causa de uma mentalidade supersticiosa e mítica. Eles
imaginam que animais e coisas possuem carácter divino (idolatria) e mágico.
Conhecer a verdadeira relação entre Deus, que se revela e a natureza será mui-
to importante para nosso conhecimento teológico e para a nossa experiência de fé.
Espero que este capítulo sobre a ‘REVELAÇÃO NATURAL’ seja uma ferra-
menta útil.

capítulo 1 • 12
Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.
Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. Não
há fala, nem palavras; não se lhes ouve a voz (Sl. 19, 1-3).

Tradução de FERREIRA, João de Almeida.


Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/salmos/sl-capitulo-19/>.
Acesso em: 30 out. 2017.

Neste texto da poesia hebraica, misto de prece litúrgica e de obra literária, os


Salmos, (150 ao todo na Bíblia) encontramos uma interessante perspectiva para
entendermos o que significa a Revelação NATURAL.
Neste Capítulo iremos estudar e refletir sobre os significados bíblico-teológi-
cos do termo ‘Revelação Natural’. O que significa dizer que há uma Comunicação
Divina através da natureza? Quais são as diferentes concepções de revelação que
encontramos no Antigo e no Novo Testamento?
A Criação possui e transmite uma Mensagem da parte de Deus, que possamos
reconhecer e receber como sua Palavra?
Assim, estudaremos neste Capítulo, a partir do Salmo 19, as principais ques-
tões colocadas à teologia sobre a Revelação Divina no contexto do livro do Gênesis
e da tradição salmódica do Salmo 19.
Num segundo momento, passa-se em revista a questão da Revelação natu-
ral no Novo Testamento, primeiramente no âmbito dos Evangelhos: Jesus e a
Natureza e depois a teologia da ‘nova criação’ em São Paulo.

OBJETIVOS
•  COMPREENDER melhor o papel da Natureza, no âmbito da Sagrada Escritura;
•  ESTUDAR os aspectos principais da problemática da Criação que desempenha um papel
de revelar a ‘Glória’ de Deus a toda criatura;
•  CONHECER a teologia da Criação no Antigo e Novo testamento.

Criação: Contexto do encontro com Deus com os homens

Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos
(Sl. 19,1).

capítulo 1 • 13
E, o Salmo 19 merece especial atenção por destacar estes aspectos duplos: de
um lado, temos a experiência da Revelação, do outro, a Criação,

O Salmo 19 descreve dois modos da revelação de Deus: a “natural” (pela criação) e a


“especial” (pela Escritura). A revelação natural sugere que Deus revelou seus atributos
por meio do mundo criado. No entanto, a revelação natural precisa ser completada pela
revelação especial, que é apresentada no Salmo 19 como a constituição dos ensinos
revelados na torah (“lei”), provinda de Javé para Israel, e escrita de forma autêntica, ver-
dadeira e confiável. O Salmo 19 apresenta um enfoque especial na revelação especial,
que é descrita não somente como conceito teológico, mas também como meio através
do qual um caráter íntegro e verdadeiro é produzido naquele que crê.

PETERLEVITZ, L. A Revelação Natural e a Revelação especial no Salmo 19. In: Revista Batista
Pioneira. V. 3, n. 2, Dezembro/2014. Disponível em: http://revista.batistapioneira.edu.br/index.
php/rbp/article/view/67/83. Acesso em: 30 out. 2017.

Segundo Peterlevitz (2014), deve-se considerar o termo Revelação em dois


níveis: aquele da Revelação ‘Natural’, uma voz divina que ecoa da Criação ou da
natureza, e outra, dita ‘especial’ ou ‘sobrenatural’ que é A Voz mesma de Deus, sua
auto-Revelação (Pessoal) à Humanidade.
Trata-se de uma mesma e única Revelação. Pois não se pode imaginar que esteja-
mos falando do ‘Deus da Natureza’, ou da ‘natureza divinizada’ e do Deus de Israel.
Por isso, a história de Israel, como história da Salvação, tem nas Escrituras,
como moldura e princípio, os relatos da Criação, a afirmação teológica da interven-
ção de Deus sobre o ‘nada’ (as sombras sobre as águas, na linguagem do Gênesis).
A definição inicial de Revelação natural insere-se numa dupla fisionomia. De
um lado, trata-se do Fenômeno religioso da Comunicação Divina, isto é, Deus
que se mostra à consciência humana, do outro, que este contexto da Fala Divina
se dá na relação do homem com a natureza circundante. Como isso ocorre? Qual
seu significado?
Segundo Peterlevitz (2014): ‘A revelação natural sugere que Deus revelou seus
atributos por meio do mundo criado’. Para estabelecer o significado e a relevância da
Revelação que se dá no processo da escuta, da contemplação e do estudo da na-
tureza é preciso entender o conceito de mundo criado, ou simplesmente Criação.
Por que o salmista afirma que ‘Os céus’ proclamam a Glória de Deus? E, em
paralelo, ‘o firmamento’ anuncia a obra da Mão Divina?
Parece que devemos estabelecer pelo livro do Gênesis, uma relação entre a
Comunicação Divina e a ‘obra de suas Mãos’. Algo que na história da consciência

capítulo 1 • 14
de Israel não será trabalho simples, pois que eles conheceram o risco mais custoso
para a Fé no Deus Criador, o fenômeno da ‘idolatria’.
Falemos um pouco do primeiro livro da Bíblia. O Gênesis. Para a questão da
Revelação Natural interessa-nos os primeiros Onze Capítulos.

O Livro do Gênesis foi escrito originalmente em hebraico, língua oficial da Religião Judaica. Escrita
da esquerda para a direita, onde se lê:” Bereshit areh elohim et hashamaim ve haertez’: No Princípio
criou o Senhor os céus e a terra. Fonte: <http://kolhamashiach.org/weekly-portions.html>:

O livro da criação: Gênesis

No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas
sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. E
viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. E foi a tarde e a manhã, o dia
sexto (Gn 1, 1. 31).

Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira


-almeida-atualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso em: 30 out. 2017.

Ao primeiro livro da Bíblia dá-se o nome de GÊNESIS.


Mas antes de falarmos sobre o Gênesis, é preciso que entendamos um pouco
seu lugar na Bíblia.

capítulo 1 • 15
O Pentateuco

Divisão

Narra as origens do universo e do gênero humano até à


GÊNESES
formação paulatina do povo de Israel na sua estada no Egito

Narra a saída dos israelitas do Egito, conduzidos por Moisés aos


pés do Sinai, para aí receberem de Deus a sua lei religiosa e civil e
ÊXODO
se constituírem, por meio de um pacto sagrado, em peculiar "povo
de Deus (YAHWÉ ou Jeová).”.

Regula o culto religioso à maneira de ritual,


O PENTATEUCO
LEVÍTICO dirigido especialmente aos levitas, que formavam
(Torá para os judeus)
o clero consagrado ao serviço do santuário.

Trata do recenseamento do povo contido na primeira parte, estendendo-se, depois,


NÚMEROS em referir fatos e providências legislativas correspondentes aos cerca de 40 anos
de vida nômade no deserto da península do Monte Sinai.

A “segunda lei”, emanada pelo fim da jornada no deserto, foi escrito


quando Moisés retoma a legislação precedente para adaptá-la às novas
DEUTERONÔMIO condições de vida sedentária, em que o povo viria a se encontrar com a
conquista iminente da Palestina (Terra de Canaã = A Terra Prometida).

O livro do Gênesis encontra-se entre os livros de uma coleção de cinco livros,


intitulada posteriormente de PENTATEUCO, isto é, os cinco (penta) livros da
Lei (a Torah).
Esta coleção não se estruturou por sua vastidão narrativa, apenas através de
uma única mão escrivã, pois os cinco primeiros livros da Bíblia cobrem todos os
fundamentos histórico-teológicos da história e da memória do povo de Israel.
Uma ampla narração histórica que se inicia com a chamada de Abraão
(Gen 12) e vislumbra o conjunto da epopeia de Israel, com as narrações dos des-
centes de Abraão: Isaac, seu Filho (Gn 21-29) e de Jacó, seu neto (Gn 30-37).
E nos outros quatro livros narra-se a História de Moises (Ex 1-4), da liberta-
ção do Egito, da passagem do Mar Vermelho, da peregrinação no deserto por 40
anos, e, sobretudo, o período da Revelação da Lei (Torah) e do culto provisório
no deserto, até o momento em que, depois da entrada na Terra Prometida, será
plenamente organizado e celebrado nos dois grandiosos Templos em Jerusalém.
Os cinco primeiros livros da Bíblia cobrem um extenso panorama da Memória
das Façanhas Divinas realizadas em favor de Israel.

capítulo 1 • 16
Tudo isso para dizer que somente a partir de uma concepção baseada em tra-
dições religiosas, literárias e teológicas pode-se entender um pouco melhor a com-
plexa dinâmica da formação destes livros, que só podem ser lidos adequadamente
em conjunto, como histórias que se entrecruzam.
Mas o que são tradições bíblicas?

Tradições bíblicas

Tradição é uma palavra com origem no termo em latim traditio, que significa "entregar"
ou "passar adiante". A tradição é a transmissão de costumes, comportamentos, me-
mórias, rumores, crenças e lendas para pessoas de uma comunidade, sendo que os
elementos transmitidos passam a fazer parte da cultura.

Fonte: <https://www.significados.com.br/tradicao/>.

A palavra tradição é proveniente do latim: tradere (transmissão). Supõe uma


valiosa informação, experiência, conhecimento que deva por isso mesmo ser trans-
mitida, oral ou por escrito, de uma geração à outra.
A ideia de tradição, que inicialmente designava o ato de transmitir objetos
materiais, foi, em seguida, aplicada à perpetuação de doutrinas e de práticas reli-
giosas, e levada de uma geração à outra pela palavra e pelos exemplos vivos. Dali o
termo se estendeu ao conjunto dos conteúdos assim comunicados.
Neste contexto é preciso entender que tradições não se justificam sem a pre-
sença de uma forma social que as exijam, construam e transmitam. Ou seja, não
tem sentido falar de uma transmissão se esta não diz respeito aos afetos e interesses
de um grupo social. Por isso, o contrário da tradição é o esquecimento.
As tradições, por isso, são molduras de crenças e concepções essenciais da
identidade de um grupo (tribo, sociedade ou civilização).
As tradições funcionam como ‘cápsulas do tempo’ que permitem e doam so-
brevida e perpetuação às ideias, aos conceitos, a cosmovisões, isto é, auto-concep-
ções de vida, que determinam a identidade de uma coletividade e, por isso, exigem
sua proteção, transmissão e perpetuação por parte deste grupo social.
Ora, no longo processo histórico entre a vivência da ação divina, a Revelação e
a sua transmissão oral e, em seguida, por escrito, ocorre que estes eventos sagrados
que identificam o Povo de Israel como destinatário e portador de uma Mensagem
Divina sejam preservados e comunicados em sua plena significação.

capítulo 1 • 17
Estes fatos e narrações além de ouvidos e lidos são ritualizados pela liturgia,
e se estruturam como regras (normas) do comportamento moral da comunidade
ligada a estas tradições.
Dada a complexidade da Revelação Divina, inicialmente entregue aos pa-
triarcas (Abraão) e depois, mais efetivamente a Moisés (A Libertação Pascal e o
Decálogo), e porque isto implicou em uma grande extensão de tempo, não é de
se admirar que em torno deste legado histórico e teológico tenha-se construído
uma multiplicidade de vozes e interpretações. Tudo isso encontramos nos eventos
fundadores da história de Israel.
Desde o período patriarcal de Abraão a Jacó, incluindo seu filho José, que de-
termina a ida e permanência de Israel no Egito. E, depois a longa saga de Moisés,
entre a libertação no Egito e os ‘40 anos’ (tradição) no deserto.
Esta grande variedade de modos de ver e acentuar os significados da identi-
dade Divina (Quem era o Deus que lhes falava?) registrado nas sagas e narrações
Pentateuco apresenta e justifica os fatos e as direções tomadas por Israel ao longo
de sua História.

Javista – Eloísta – Sacerdotal e Deuteronomista

Não por acaso, as primeiras tradições em torno das quais os exegetas no fim do
século XIX, início do século XX, irão nomear serão as seguintes: Javista e Eloísta.
E por quê?
Era evidente que a designação divina nestes ambientes, reconhecidamente
presente em cada conjunto de textos ou coleções tornou-se o critério para expli-
car-lhes como pertencentes a esta ou àquela tradição. Dois ‘nomes’ Divinos se
destacam e de certa maneira organizam estas coleções: Javé e Elohim.
Nestas coleções designadas por estes dois distintos designativos divinos, perce-
bem-se características do Único Deus, tratadas de modo exclusivo.
Ora, se afirma a proximidade de Deus, acentuada pelo tratamento descritivo
de Deus, através de ‘antropomorfismos’, isto é, atribui-se a Deus adjetivos e ca-
racteres (morfismos) humanos (ântropos) como ciúme, ira, violência, paixão (...)
em busca de intensificar a proximidade divina do humano, isto é sua imanência.
Ora, ao contrário, acentua-se a sua distância da vida humana. Sendo santo,
Ele é sempre o “Outro”, não se confunde nem se mistura, como os ‘ídolos’, com
as realidades humanas, Ele é essencialmente Transcendente.

capítulo 1 • 18
Encontraremos também outras designações das tradições do Pentateuco que
indicam não somente as características divinas, mas os grupos envolvidos na ela-
boração e transmissão das tradições.
Trata-se da chamada tradição P ou Sacerdotal, (Priester – Sacerdote), pois
indica um grupo específico, portador de uma herança e de um espaço privilegia-
do de produção, comunicação e transmissão de tradições religiosas: a Liturgia, o
Templo, e a conservação das ‘Escrituras’.
Os sacerdotes, escribas e doutores são agentes especializados nesta expertise.
Pensa-se neste horizonte que a liturgia é a fonte das tradições, isto é, templos e
oratórios teriam sido as ‘fábricas’ das tradições mais arcaicas de Israel.
Por fim, percebe-se que o longo itinerário da formação do universo fundador
da Fé e da prática de formação da identidade de Israel exige constantes revisões,
seja porque a extensão narrativa tornou-se considerável, seja porque a mudança
de mentalidade no correr dos tempos exige acertos, em vista de novas perguntas,
novos contextos e novas gerações.
Pense, por exemplo, como foi diverso o entendimento do passado, cada vez
mais longínquo, entre gerações em espaços sociais tão diversos. No momento em
que Israel se estabiliza na terra prometida, constrói-se uma identidade política,
com uma soberania monárquica (Saul – Davi – Salomão), com a ereção de um
Templo Nacional em Jerusalém.
Neste contexto não se entende mais a vida e a presença de Deus como foram
sentidas e recebidas no ambiente nômade do deserto, não se cultua mais a Deus
na Tenda entre tendas (...).
Por isso, são necessárias revisões e releituras que englobem novas e permanen-
tes interpretações da Lei, da Presença de Deus, da Identidade de Israel. Por isso, a
coleção destes textos chamar-se-á ‘Deuteronomista’.
Ser fiel às origens exige constantes revisões e aprofundamentos, que, sabemos
são inspirações do Espírito de Deus e torna, assim, dinâmica a experiência viva de
Deus, aquele de Abraão e de Moisés. Tradição, ao contrário do que pode parecer é
uma realidade e uma força dinâmicas.
Pois, ao contrário, o que sobraria às novas e seguintes gerações de crentes seria
o anacronismo de antigas legendas, incompreensíveis no presente, arcaicas demais
para exprimirem no presente e no futuro da consciência dos crentes aquela Beleza
e Verdade que as fundou e que as obriga à transmissão perene.

capítulo 1 • 19
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O livro do Gênesis

Depois desta digressão, para entender o lugar do livro do Gênesis na Bíblia,


voltemos à nossa investigação sobre a questão da revelação ‘natural’ colocada pelo
Sl. 19 e que se apoia na compreensão do ato criador de Deus, nos relatos do livro
do Gênesis 1-2.
Gênesis é um termo grego e significa “origem”, “nascimento” ou ‘surgimento’.
Os livros da Bíblia Hebraica não tinham qualquer título. Eram chamados, sim-
plesmente, pela primeira ou pelas primeiras palavras. Assim, este foi denominado,
simplesmente de ‘Bereshit’1.
Os autores da tradução da Bíblia Hebraica para o grego (Bíblia dos Setenta)2
acharam por bem dar aos livros um título de acordo com o seu conteúdo. Como
este livro trata do princípio de tudo, chamaram-lhe GÊNESIS, isto é, Livro
das Origens.
1  Bereshit (do hebraico ‫ְֵּבראשיִׁת‬, Bereshít, "no início", "no princípio", primeira palavra do texto) é o nome da primeira
parte da Torá. Bereshit é chamado comumente de Gênesis pela tradição ocidental e trata-se praticamente do mesmo
livro apesar de algumas diferenças, principalmente no que lida com interpretações religiosas com outras religiões
que aceitam o livro de Gênesis. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bereshit>.
2  Septuaginta é o nome da versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o grego koiné, entre o século III a. C.
e o século I a. C., em Alexandria. Dentre outras tantas, é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego, língua
franca do Mediterrâneo oriental pelo tempo de Alexandre, o Grande. A tradução ficou conhecida como a Versão dos
Setenta (ou Septuaginta, palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois setenta e dois rabinos (seis de cada
uma das doze tribos) trabalharam nela e, segundo a tradição, teriam completado a tradução em setenta e dois dias.
A Septuaginta, desde o século I, é a versão clássica da Bíblia hebraica para os cristãos de língua grega e foi usada
como base para diversas traduções da Bíblia. A Septuaginta inclui alguns livros não encontrados na bíblia hebraica.
Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Septuaginta>.

capítulo 1 • 20
Em seus cinquenta capítulos este livro responde a duas formas de origem da
aparição de Deus aos olhos humanos. O que em suas respostas colocariam o livro
em uma ordem inversa aquela que lemos.
Primeiro teríamos o plano história de Israel (12-50,26) e depois o plano
Universal, com as narrativas da Criação e do Pecado Humano (1-11,32).
De um lado, temos as origens de Israel, uma pergunta histórica, na lógica da
Salvação, como a encontramos descrita na saga de Abrão, o Caldeu. Do outro, um
campo mais vasto, a História da Criação e do Pecado.
Mas, como afirmamos acerca das tradições, a primeira questão das ‘origens’ re-
fere-se a Deus, sua Identidade, sua Palavra e os eventos em torno de sua Revelação.
Em outras palavras, quem é o ‘Deus de Abraão, Isaac e Jacó’? E ainda, quem
é o Deus Criador?
A segunda parte do atual livro do Gênesis relata uma destas respostas:
Gn 12-50,26 nela se reúne em diversas tradições esta questão. Israel se autocom-
preende na medida em que aceita e aprofunda a Revelação aos Pais.
Enquanto isso, na primeira parte do Livro do Gênesis está a ação soberana de
Deus como criador no Universo.
Sabemos que este grau de afirmação da Fé do Povo de Israel em Deus é uma
exigência nascida da dura experiência do Exílio, isto é, em torno do sexto século
a. C. quando o povo de Israel foi conquistado e exilado para a Babilônia por
Nabucodonosor3.

3  O reino do norte (Israel) terminou em 722 com a tomada da Samaria pelos assírios e em 587, quando Jerusalém
foi saqueada e o templo destruído pelos babilônios, grande parte da população foi deportada para a Babilônia,
terminando, praticamente, também o reino do sul (Judá). Com isso, chega ao fim a monarquia em Israel. Boa parte
do povo se encontra no exílio, onde, sem templo, sem rei e sem terra, tenta se adaptar a novas formas de vida e
de compromisso com seu Deus. No exílio babilônico, floresce uma literatura que retrata certa desolação, mostra a
saudade pela terra que ficou distante, mas também tira, dessa experiência, certas lições de vida e incentiva o povo
a não desanimar. Refaz a compreensão de Deus e reconstrói sua imagem a partir dessa experiência de vida. Há
grande reflexão em torno desses fatos trágicos e o porquê disso. Desde a destruição de Jerusalém em 587 AC, por
Nabucodonosor, até 70 DC, quando acontece nova destruição, agora pelos romanos, esse período é chamado de
“período do segundo templo”. São seis séculos de incertezas e decisivos para o “futuro da religião e da sociedade
judaica”. Cf. <https://www.paulus.com.br/portal/colunista/nilo-luza/etapas-da-historia-de-israel-o-exilio-na-
babilonia.html#.WmciY7xl_IU>.

capítulo 1 • 21
Fonte: <https://www.google.com.br/search?biw=1366&bih=588&tbm=isch&sa=1&ei=
CmJnWqrSOMasU6z5iZAC&q =nabucodonosor&oq=Nabuc&gs_l=psy-ab.1.0.0l6j0i30k1l4
.708895.712347.0.716400.7.7.0.0.0.0.370.1031. 0j5j0j1.7.0....0...1c.1.64.psy-ab..0.6.1025.0
...91.1MEipzVj2X0#imgrc=YXXrT8kccD8yGM>:

Foi neste período de escravidão e exílio, que o Povo de Israel com a orientação
dos profetas (Isaias, Jeremias, Ezequiel, Daniel entre outros) aprende a superação
do modelo cosmogônico (gênesis do mundo ou do cosmos) dos pagãos.
A religião da Babilônia é politeísta e cria na divinização da natureza como
expressão dos deuses. Pela teologia da Criação de Israel torna-se possível pela afir-
mação do ‘dogma’ judeu da Criação divina pelo Deus Único e Verdadeiro, aquele
de Abrão, Isaac e Jacó. O Amigo de Moisés.
Além da questão das origens, colocada nos dois relatos da Criação, temos
também a questão delicada da origem do mal, das desgraças, colocada pela menta-
lidade pagã, comum à Israel, no Egito e na Babilônia, assim como pela Grécia, em
sua mitologia. Israel guarda e comunica uma verdade sobre o Mal humano, que se
afasta da confusão panteísta pagã e mesmo, da indiferença ética do mundo pagão,
por causa do mistério da liberdade humana.

capítulo 1 • 22
A história das origens (1,1-11,32)

No primeiro livro da Bíblia Hebraica, o Bereshit (Gênesis), encontramos dois


relatos da criação do ser humano.
O primeiro está em 1,26-27 (colocado pelos estudiosos como sendo de tradi-
ção sacerdotal) e o segundo em 2:7, 18, 21-23 (indicado como tradição Javista).
Na verdade, temos a sequência setenária da criação das coisas e das criaturas (ani-
mais e vegetais).
©© CREATIVE LAB | SHUTTERSTOCK.COM

Criação do universo e dos seus habitantes (Gn 1,1-2,4a).

Estes textos colocam o acento na certeza que o mundo não é o ‘locus malis’
(lugar do Mal), mas, que o mundo material também vem de Deus.
Por isso, depois de cada dia criado, lê-se um refrão, em cinco dias de criação
temos cinco juízos de valor positivo sobre o Criado: “E Deus viu que isso era bom”!
(cf. vv. 10, 12, 18, 21, 25). O mundo é apresentado como fruto dos ‘lábios’ de
Deus, de seu ‘Dabar’ 4, sua palavra criadora. O Deus de Israel é a Gênese de tudo!

4  O termo ‘dabar’ em hebraico significa ao mesmo tempo “palavra” e “coisa”. Cf. <http://www.deldebbio.com.
br/2009/07/27/dabar-yod-heh-vav-heh/>. Precisa-se sair de um logos grego que significa palavra e passar para o
dabar hebraico que também significa palavra, contudo a diferença gritante entre estas duas alocuções é que para o

capítulo 1 • 23
Enfim, chegamos aos v. 26, com o centro da Criação. Neste versículo ocorre
uma afirmação até então inédita, que Deus se deixa traçar em sua própria obra
criadora: “Então Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que
ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e
sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra”.

OS SETE DIAS DA CRIAÇÃO (GÊNESIS 1:1 ATÉ 2:3)

PRIMEIRO DIA APARECIMENTO DA LUZ (GÊNESIS 1:1-5).

SEGUNDO DIA CRIAÇÃO DO FIRMAMENTO (GÊNESIS 1:6-8).

A TERRA É SEPARADA DO MAR (GÊNESIS 1:9-10).


TERCEIRO DIA
SURGIMENTO DE PLANTAS (GÊNESIS 1:11-13).

QUARTO DIA CRIAÇÃO DOS LUMINARES (SOL, LUA...) (GÊNESIS 1:14-19).

QUINTO DIA CRIAÇÃO DE PEIXES E PÁSSAROS (GÊNESIS 1:20-23).

SEXTO DIA CRIAÇÃO DE ANIMAIS E DO HOMEM (GÊNESIS 1:24-31).

SÉTIMO DIA DEUS DESCANSOU E SANTIFICOU O SÉTIMO DIA (GÊNESIS 2:1-3).

O Salmo 19: Deus se autocomunica na criação

Dabar significa, em hebraico, “palavra”. Pode também ser traduzida por “coisa” ou mes-
mo “ação”. Lógos é também “palavra”, podendo ser também “coisa”, “fato” e muitas ve-
zes aparecem traduzidas como Verbo. A palavra gera uma ação em Gênesis 1,1-2,4a,
o poema da criação da escola sacerdotal. (NEGRO, 2009, p. 43).

NEGRO, M. A teologia da Revelação a partir da Escritura na Igreja: Anotações de Alguns Pontos


relativos à Teologia da Revelação. Revista de Cultura teológica - v. 17 - n. 68 - Jul/dez – 2009.

A partir da noção de ‘dabar’, categoria da teologia ou compreensão da Palavra


de Deus, a expressão de seu desempenho criador, entendemos que salmo 19 é uma
peça entre inumeráveis relatos pelos quais encontramos o cerne da ‘teologia da
Criação’ do Antigo Testamento. O Deus dos Pais, de Abraão, Isaac e Jacó é o Deus
da Criação. Mas porque isso se relaciona com a Revelação?

grego esse logos é no sentido contemplativo e para o hebreu o dabar é no sentido de ação criativa. Cf. <http://blog.
cancaonova.com/seminario/do-logos-ao-dabar/>.

capítulo 1 • 24
No ato da Criação Deus expressa-se a si mesmo, Ele, de certa forma plasma
nas coisas, algo de sua Transcendência. O mundo tem em sua estrutura ‘marcas
inefáveis’ do seu Criador. Agostinho de Hipona, no século V, chamava a Criação
de ‘vestigia Dei’ (os vestígios de Deus), porque Deus quis que se encontrasse na
beleza, na harmonia, na legalidade da Natureza um caminho para Si. O mundo
criado antes das criaturas humanas era o berço no qual, pela primeira vez se pode-
ria interpretar a Presença amorosa e onipotente de Deus:

Então plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do oriente, no Éden; e pôs ali o
homem que tinha formado. Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do
Édem para o lavrar e guardar (Gn 2, 8.15).

Fonte: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/genesis/gn-capitulo-2/>.
Acesso em: 31 out. 2017.

Segundo o livro do Gênesis no ato criador das coisas (mundo ou natureza)


Deus presenteia suas criaturas humanas, com todos os dons necessários à vida, ao
trabalho (‘para o lavrar e guardar’), à contemplação.
No centro do mundo criado, qual ‘jardim oriental’ (um oásis em meio ao
deserto) estabelecia-se o campo de relacionamento entre Deus, o Criador e suas
criaturas. O ‘Paraíso’ era um espaço de condivisão entre Deus e os homens.

Este é o motivo porque também os ídolos das nações serão julgados, porque, na criação
de Deus, eles se tornaram uma abominação, objetos de escândalo para os homens, e la-
ços para os pés dos insensatos. É pela idealização dos ídolos que começou a apostasia, e
sua invenção foi a perda dos humanos. Eles não existiam no princípio e não durarão para
sempre; a vaidade dos homens os introduziu no mundo. E, por causa disso, Deus decidiu
a sua destruição para breve. Contudo, o castigo os atingirá por duplo motivo: porque eles
desconheceram a Deus, afeiçoando-se aos ídolos, e porque são culpados, por desprezo à
santidade da religião, de ter feito juramentos enganadores (Sb 14, 11-14. 30).

Revelação natural: Entre a idolatria e o louvor da criação

Tudo seria muito simples, quase automático, isto é, encontrar a Deus em suas
coisas criadas, se não tivesse ocorrido o ‘pecado’ (Gn 3, 1- 24):
O texto pode ser visto através da ótica narrativa como uma obra de arte da
sequencialidade narrativa. Encontramos as circunstâncias do ‘delito’, no diálogo
entre a serpente, “o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus

capítulo 1 • 25
tinha formado” 5, preparando a atmosfera de leitura/audição. Algo de ruim poderia
acontecer.

Fonte: <https://int.search.tb.ask.com/
search/AJimage.jhtml?&searchfor=a+se
rpente+do+pecado+original&n=783ad9
2f&p2=%5EBYJ%5Exdm143%5ETTAB
02%5Ept&ptb=1433B53E-FB1C-4C54-
86DD-9A38B4918EF0&qs=&si=&ss=su-
b&st=sb&tpr=sbt&ts=1516727344937&i
mgs=1p&filter=on&imgDetail=true>.

A serpente é usada como símbolo da fertilidade, da prostituta sagrada. É sím-


bolo da religião Cananéia:

É símbolo da sabedoria, da esperteza (por isso tem que ser esmagada, pisada) e carre-
ga consigo o conhecimento da vida; com ela está o saber econômico, que domina o ter,
o trabalho, a mão de obra; o saber religioso e o saber político que diz ao homem ‘sereis
como deuses’, tens poder para decidir sobre a vida e a morte, o destino.

Fonte: <http://bibliaecatequese.com/genesis-3/>.

O texto com toda a sua roupagem ‘fabulística’ e legendária (cobras falam,


e andam...) mergulhando o leitor numa atmosfera mais densa que a dimensão
prosaica poderia oferecer, coloca-nos diante de um dado muito profundo, a saber,
a serpente dialoga com a consciência de Eva. Pois, ela o interroga sobre os man-
damentos de Deus no Paraíso: “Ela disse a mulher: É verdade que Deus vos proibiu
comer do fruto de toda árvore do jardim?”(Gn 3,1).
5  “A serpente é um símbolo poderoso em várias religiões. No judaísmo e no cristianismo, por exemplo, está associada
ao mal, por lembrar o fálus e o desejo sexual. No judaísmo, está ligada à transcendência humana pela ligação com
Deus, acima do pecado do comportamento sexual, relacionado a Adão e Eva”. Cf. <http://leiturasdahistoria.uol.com.
br/veneracao-da-serpente-nas-religioes/>..

capítulo 1 • 26
Está lançado o desafio e a circunstância adequada para a configuração da gra-
vidade humana do pecado: estar informado do preceito e por isso, segui-lo ou
transgredi-lo livremente! E, eles, estranhamente escolhem a parte errada!
A segunda parte do texto inicia-se com a última cena bucólica do entrecru-
zamento de Deus e do primeiro Casal, no v.8: “E eis que ouviram o barulho (dos
passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde”. O rumor
dos passos de Deus (perspectiva Javista sobre Deus) código da intimidade, agora
é alerta e sinal de terror: “O homem e sua mulher esconderam-se da face do Senhor
Deus, no meio das árvores do jardim”!
Esta reação tão paradoxal repercutirá na poesia dos Salmos, quando o cantor-
poeta se interrogará acerca deste paradoxal comportamento humano diante de Deus
(o Criador!): Sl. 139, 7: “Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua
face?” No v. 7, temos parte deste motivo ou a razão desta reação: eles estavam nus!
Diálogo denso, de novo, a partir do pretexto da ‘nudez’, que exprime um en-
contro entre o novo estado de consciência das criaturas com o Criador, no v. 11:
“O Senhor Deus disse: “Quem te revelou que estavas nu? Terias tu porventura comido
do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer?”. Deus desmascara a raiz do es-
condimento, nus? Não! Mas, despidos de inocência e pureza em sua relação a Deus!
Por fim, encontramos a maneira semítica de exprimir as irreparáveis conse-
quências da perda da intimidade absoluta com Deus: as maldições ou castigos!

v. 16: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te
impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.”

Estão associados agora, a geração e a dor (seria absurdo ler aqui o Sl. 50, 5 quan-
do diz “Eis que em iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”?)
Também o equilíbrio entre homem e mulher, harmonioso e équide na aurora
da Criação se transforma em dominação e dependência (desejo). De uma forma
inédita se afirma que as relações de dominação entre homem e mulher estão mer-
gulhadas na aurora nebulosa do pecado original!
Para o homem a situação também não permanecerá a mesma de antes:

Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proi-
bido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o
teu sustento todos os dias de tua vida” (Gn 3, 17).

capítulo 1 • 27
Suor, trabalho penoso e fatiga. O fim do estado paradisíaco? Para muitos pen-
sadores antigos, no paraíso não há trabalho servil (v. 19: “Comerás o teu pão com
o suor do teu rosto”). Sinais iniludíveis de um estado degradante de vida! Quanto
mais longe de Deus, mais a vida humana é árdua e fatigante! Não menor será o
próximo sinal do desagrado Divino com Adão:

v. 19: “até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar”.

Que declínio! Da expressão máxima do Cap. 1, 26s na qual se afirmara a ori-


gem humana como ‘imago et similis Dei’, encontramos aqui, o homem definido
como ‘pó’.
É bem verdade que no Cap. 2, fora dito que nossa origem era o ‘barro’
(2,7: “o homem do barro da terra”). Mas aqui, trata-se da perda de uma semelhança
com Deus, a vida perene! Agora a morte entrara na existência humana.
O Crepúsculo mais sombrio virá com a expulsão do Paraíso, descrito até en-
tão, como o lugar mais adequado ao humano: intimidade com Deus, fartura e
harmonia. Tudo perdido! Nos v.23 e 24 se afirma: “O Senhor Deus expulsou-o do
jardim do Éden”. Eles já não tinham as condições adequadas para permanecer na
Presença de Deus.
Neste contexto, a visão do mundo sofre uma devastadora ambivalência. De
um lado, o mundo criado não pode desmentir ou negar as marcas de seu Criador,
do outro, o homem, na situação de ‘expulsão do Paraíso’ tem uma leitura diversa
daquela em que ele tinha amizade com Deus.
Os teólogos de Israel, pelos salmos e hinos, reconhecem o canto das criaturas
como expressão da Teologia da Revelação natural, como lemos em Daniel:

Então os três jovens elevaram suas vozes em uníssono para louvar, glorificar e bendizer
a Deus dentro da fornalha, neste cântico: 57. Obras do Senhor, bendizei todas o Se-
nhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 58. Céus, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o
eternamente! 59. Anjos do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamen-
te! 60. Águas e tudo o que está sobre os céus, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o
eternamente! 61. Todos os poderes do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o
eternamente! 62. Sol e lua, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente!

capítulo 1 • 28
63. Estrelas dos céus, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 64. Chuvas
e orvalhos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 65. Ó vós, todos os
ventos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 66. Fogo e calor, bendizei
o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 67. Frio e geada, bendizei o Senhor, louvai
-o e exaltai-o eternamente! 68. Orvalhos e gelos, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o
eternamente! 69. Frios e aragens, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente!
70. Gelos e neves, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 71. Noites e
dias, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 72. Luz e trevas, bendizei o
Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 73. Raios e nuvens bendizei o Senhor, louvai
-o e exaltai-o eternamente! 74. Que a terra bendiga o Senhor, e o louve e o exalte eter-
namente! 75. Montes e colinas, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente!
76. Tudo o que germina na terra, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente!
77. Mares e rios, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 78. Fontes, ben-
dizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 79. Monstros e animais que vivem nas
águas, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 80. Pássaros todos do céu,
bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! 81. Animais e rebanhos, bendizei
o Senhor, louvai-o e exaltai-o eternamente! (Dn 3, 57-81).

Mas, por outro lado, não podem negar que o termo ‘idolatria’, como o lemos
no livro da Sabedoria (Cap. 14), a abominação da criação, é um fenômeno dis-
perso pelas culturas e experiências religiosas. A Criatura é adorada, venerada e se
torna referência de pessoas e povos.
Agora é hora de concluirmos nossa reflexão sobre a Revelação Natural com os
ensinamentos que provem do Novo Testamento.

O Novo Testamento e Revelação natural

O tema da ‘’Revelação natural’ não ocupa de modo algum, um espaço central


os escritos do Novo Testamento, em particular, nos Evangelhos.
Na verdade, Jesus, Revelador escatológico, isto é, O Definitivo, o Último,
Aquele por quem exclusivamente se vai ao Pai, ocupa todo o interesse narrativo
destes textos, fundamentos da Revelação especial ou propriamente dita.
Porém, há testemunhos espalhados por todo Novo Testamento a cerca do
papel da natureza nos discursos de Jesus, na Teologia de Paulo.

capítulo 1 • 29
©© VUK KOSTIC | SHUTTERSTOCK.COM

Jesus e a Revelação natural

Mas o que dizer sobre o papel da natureza na narrativa sobre Jesus?


Em diversos contextos a natureza aparece como ‘figurante’ do Cristo em seu
desempenho taumatúrgico ou em suas parábolas.
Ele modifica a natureza como sinal de sua potência ou simplesmente para
exemplificar os fins dos tempos.
Outras vezes a natureza constitui o contexto de suas narrações parabólicas,
ambientadas no universo campestre (O ‘semeador’, por exemplo: Mc 4,1-20).
No seu nascimento, como afirmam os Evangelhos de Lucas (1-2) e Mateus (1-2),
a natureza nada revela, simplesmente serve de contexto, Ele nasce entre animais em
um estábulo e seu berço uma manjedoura, lugar onde comem os animais domésticos.

Enquanto estavam lá, chegou o tempo de nascer o bebê, e ela deu à luz o seu primo-
gênito. Envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar
para eles na hospedaria (Lucas 2, 6,-7).

No início de sua missão, ele vai para o deserto e convive com as ‘feras’, como se
lê em Mc 1, 12s: ‘E logo o Espírito o impeliu para o deserto, onde permaneceu quarenta
dias, sendo tentado por Satanás; estava com as feras, mas os anjos o serviam’.

capítulo 1 • 30
Neste contexto a natureza simbolizada pelo deserto e as ‘feras’ indica a hostili-
dade ao bem, a proximidade do mal, os resquícios da natureza sob os auspícios do
demônio em confronto com Jesus.
Na sua ação milagrosa, diversas vezes modifica a natureza para indicar seu
poder e mistério.
©© ZVONIMIR ATLETIC | SHUTTERSTOCK.COM

O que se lê em Mc 4, 35-41: ‘Então repreendeu o vento e disse ao mar: “Aquieta-


te!”, e o vento parou, fazendo-se uma grande calma. 40 “Porque estavam com tanto
medo? Ainda não têm confiança em mim?”’.
Na verdade, a natureza não revela nada, mas é palco para que se revele o
Cristo, verdadeiro Senhor da natureza.
A não ser em Mt 24, 32, onde se lê: ‘Aprendei, pois, da figueira a sua parábola:
Quando já o seu ramo se torna tenro e brota folhas, sabeis que está próximo o verão’.
Aqui, como no sermão da Montanha, a natureza é Mestra em relação às ‘coisas’ de
Deus e do Julgamento:

capítulo 1 • 31
Logo depois da tribulação daqueles dias, escurecerá o sol, e a lua não dará a sua luz;
as estrelas cairão do céu e os poderes dos céus serão abalados. Então aparecerá no
céu o sinal do Filho do homem, e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão vir
o Filho do homem sobre as nuvens do céu, com poder e grande glória. E ele enviará
os seus anjos com grande clangor de trombeta, os quais lhe ajuntarão os escolhidos
desde os quatro ventos, de uma à outra extremidade dos céus (Mt 24, 29-31).

Nos discursos escatológicos6 (Mc 13/ Mt 24/ Lc 21) percebe-se que a natureza no
processo de destruição e de decomposição é o contexto e o argumento para o tema da
nova criação, ou do novo mundo que há de vir, ou seja, da redenção do mundo.

Por isso vos digo: Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer,
ou pelo que haveis de beber; nem, quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir.
Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para
as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai
celestial as alimenta. Não valeis vós muito mais do que elas? Ora, qual de vós, por mais
ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado à sua estatura? E pelo que haveis
de vestir, por que andais ansiosos? Olhai para os lírios do campo, como crescem; não
trabalham nem fiam; contudo vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória
se vestiu como um deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe
e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Portanto, não
vos inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? ou: Que havemos de beber? ou: Com
que nos havemos de vestir? (Pois a todas estas coisas os gentios procuram.) Porque
vosso Pai celestial sabe que precisais de tudo isso. Mas buscai primeiro o seu reino e
a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

6  “Discurso Escatológico”. Você deve estar se perguntando, o que é a escatologia? São as reflexões que nasceram
na comunidade de Marcos, sobre as últimas coisas que vão acontecer antes do fim dos tempos. Se você olhar na
margem da Bíblia de Jerusalém, no capítulo 13 de Marcos, você irá encontrar a citação de Mateus 24 e de Lucas
21, que tratam do mesmo assunto. Contudo, Mateus, por exemplo, fala sobre a ruína de Jerusalém, do Templo e
do mundo. Enquanto Marcos fala apenas, da destruição de Jerusalém. Como ele é o primeiro evangelho que foi
escrito, os estudiosos reconhecem neste texto, um pequeno apocalipse judaico, que se inspirou no livro de Daniel
e, foi completado por Jesus. Quais são estas últimas coisas que irão acontecer no fim dos tempos? São fatos
assustadores, que metem medo no povo. Este discurso em Marcos, começa com Jesus e os discípulos saindo do
templo de Jerusalém. Um dos discípulos chama a atenção de Jesus: “Mestre, vê que pedras e que construções!” É
neste momento que ele anuncia a destruição do templo ao afirmar que “não ficará pedra sobre pedra”. Mais adiante,
os discípulos lhe perguntaram quando isso iria acontecer? Jesus não responde à pergunta, mas continua o seu
discurso sobre o fim: cuidado, que ninguém vos engane, falando em meu nome, dizendo quem “sou eu”. Antes que
isso aconteça, haverá guerras, terremotos, fome, nações contra nações, o irmão entregará o irmão, o pai entregará o
filho, vocês serão odiados por causa do meu nome. E faz, ainda, outro alerta: quando estas coisas acontecerem, quem
estiver na Judéia fuja para as montanhas e quem estiver no terraço não desça, no campo não volte e, ai das mulheres
grávidas e das que amamentam, pois, vão encontrar muita dificuldade para se livrar dessa aflição. O Messias intervirá
para abreviar estes dias. Depois desta grande tribulação, o sol e a lua escurecerão, as estrelas cairão e os poderes
celestes serão abalados. Só depois de tudo isso, o Filho do Homem virá entre as nuvens com grande poder e glória.
Ele enviará seus anjos e reunirá os eleitos. E para concluir conta a parábola da figueira e adverte a comunidade dos
discípulos a vigiarem, para não serem pegos de surpresa. Cf. <https://www.paulinas.org.br/sab/pt-br/?system=pa
ginas&action=read&id=2179>.

capítulo 1 • 32
Somente em Mateus 6, 24-33 e em Lucas 12, 20-32 Jesus utiliza a natureza
para indicar um comportamento divino: a Providência.
A expressão ‘olhai os lírios do campo’ (Mt 6,28), neste ensinamento, indica que a
natureza tem algo a ensinar a explicar acerca do Comportamento Divino. Os discí-
pulos são chamados a aprender com a natureza. Trata-se, praticamente da única vez
em que o modelo da Revelação funciona diretamente como se percebe no Sl. 19.
Trata-se de uma afirmação importante. De um lado, este mundo tende a ce-
der lugar a um novo contexto, que exprimirá o encontro entre Deus e o homem
redimido, isto é, ‘novo céu e nova terra’ Do outro, a decomposição deste mundo
assinala que não se deve apegar ao transitório.
Por fim no cenário da sua Paixão, a Natureza se revela como termômetro da
sua dor, ela é apresentada, como se envolvida pelo drama da luta do bem contra o
mal travada no sacrifício de Cristo.
Lê-se por isso, em Lc 23,44: ‘E já era cerca de meio-dia, quando as trevas co-
briram toda a terra até as três horas da tarde; 45 o sol perdera seu brilho. E o véu do
santuário rasgou-se ao meio’. Ou em Mt 27, 45: ‘Então, profundas trevas caíram por
sobre toda a terra, do meio-dia às três horas da tarde daquele dia. 46E, por volta das
três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: “Eloí, Eloí, lamá sabactâni?”, que
significa “Meu Deus, Meu Deus! Por que me abandonaste?”’
©© IURII | SHUTTERSTOCK.COM

capítulo 1 • 33
São Paulo e nova criação

São Paulo, no início da magistral Carta aos Romanos, elabora à luz de Sb 14,
entre outros textos proféticos do AT, uma sofisticada discussão sobre a Revelação
natural e a idolatria. É o que se lê em Rm 1, 19-32.

Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho ma-
nifestou. 20 Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são clara-
mente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas,
de modo que eles são inescusáveis; 21 porquanto, tendo conhecido a Deus, contudo
não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações
se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. 22 Dizendo-se sábios,
tornaram-se estultos, 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da
imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis.

Fonte: <http://bibliaportugues.com/jfa/romans/8.htm>. Ferreira de Almeida atualizada.

Neste texto paulino, temos a clareza bíblica sobre a Revelação Natural em sua
relação com a Revelação Especial7.
Primeiro Paulo expõe, com extrema clareza, o princípio da Revelação:
‘Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho mani-
festou’. Ao homem criado Deus se deu a conhecer a Si mesmo.
Fundados no princípio da manifestação divina, ele então expõe a condição
inequívoca da natureza neste processo revelatório: ‘Pois os seus atributos invisíveis,
o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo
percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis’.
São Paulo ainda faz referência à ‘nova Criação’. Na mesma monumental Carta
aos Romanos 8, 18-22

7  A leitura de Karl Barth, teólogo protestante do século XX constitui uma referência nos estudos de São Paulo
na carta aos Romanos: FERREIRA, F. Karl Barth: Uma Introdução à sua Carreira e aos Principais Temas de sua
Teologia. FIDES REFORMATA. V. VIII. n. 1. Rio de Janeiro, 2003, p. 29-62. Disponível em: <http://www.mackenzie.
br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_VIII__2003__1/v8_n1_flanklin_ferreira.pdf>. Acesso 30 de
Novembro de 2017.

capítulo 1 • 34
Pois tenho para mim que as aflições destes tempos presentes não se podem comparar
com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a criação aguarda com ardente
expectativa a revelação dos filhos de Deus. Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade,
não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que tam-
bém a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da
glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e
está com dores de parto até agora.

Fonte: <http://bibliaportugues.com/jfa/romans/8.htm>. Ferreira de Almeida atualizada.

São Paulo se refere ao fato que a nossa redenção plena terá efeitos solidários so-
bre a nova Criação, assim, como o nosso pecado também teve, aliás, nosso pecado
se traduz, em parte, na desordem ambiental que se percebe neste século.
Veremos através dos ‘Atributos Divinos’ como a Revelação Sobrenatural apre-
senta aos homens os diversos ‘dotes’ Divinos, em vista de uma justa relação com
Deus, permitindo que nos comportemos adequadamente à sua Vontade!

RESUMO
Cada capítulo deve ser finalizado com uma breve reflexão sobre o assunto abordado. Um
resumo contextualizado também pode ser oferecido, sempre buscando a integração com o
aluno. Atividades implícitas em forma de reflexão são interessantes para garantir um exer-
cício mental constante do aluno. Optando por embutir atividades em forma de perguntas, é
importante oferecer respostas, para que constem ao final como gabarito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-
atualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso em: 30 de Outubro de 2017.
PETERLEVITZ, L. A Revelação Natural e a Revelação especial no Salmo 19. In: Revista Batista
Pioneira. V. 3, n. 2, Dezembro/2014. Disponível em: <http://revista.batistapioneira.edu.br/index.php/
rbp/article/view/67/83>. Acesso em: 30 de Outubro de 2017
Tradução de FERREIRA, João de Almeida. Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-
almeidaatualizada/salmos/sl-capitulo-19/>. Acesso 30 de Outubro de 2017.
< https://www.significados.com.br/tradicao/>.
NEGRO, M. A teologia da Revelação a partir da Escritura na Igreja: Anotações de Alguns Pontos
relativos à Teologia da Revelação. Revista de Cultura teológica - v. 17 - n. 68 - Jul/dez – 2009,.

capítulo 1 • 35
<http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/genesis/gn-capitulo-2/>. Acesso em: 31 de
Outubro de 2017.
<http://bibliaecatequese.com/genesis-3/>.
<http://bibliaportugues.com/jfa/romans/8.htm>. Ferreira de Almeida atualizada.

capítulo 1 • 36
2
Revelação especial
Revelação especial

©© WIKIMEDIA.ORG

Revelação é o termo técnico pelo qual se expressa o fenômeno mais arreba-


tador da História Humana, que Deus seja Sujeito do Conhecimento que temos
d’Ele. Ele se auto-manifestou.
Sobre o Deus verdadeiro não há conceituação humana, racional ou místi-
ca que dê conta da grandeza deste objeto. Só Deus pode falar claramente de si
Mesmo, como Mistério último.

A Revelação exprime propriamente o falar e o agir de Deus em relação aos homens.


Designa uma realidade expressa pela Escritura, sem ser, contudo, a própria Escritura.
A Revelação, por conseguinte, ultrapassa a Escritura na mesma medida em que a rea-
lidade ultrapassa a sua expressão escrita. Poder-se-ia também dizer que a Escritura é
o princípio material da Revelação.

RATZINGER, J. Teses sobre a relação entre a Revelação e a Tradição.


1. A Revelação e a Escritura. Disponível em: <https://firmatfides.files.wordpress.
com/2011/12/revelac3a7c3a3o-e-tradic3a7c3a3o_joseph-ratzinger.pdf.>
Acesso em: 30 out. 2017.

Mas por que falar de Revelação ‘especial’ ou sobrenatural?


No Capítulo anterior pudemos ver a relevância da Revelação Natural. De que
maneira a Criação em torno da nossa vida nos fala de Deus, ao mesmo tempo que,

capítulo 2 • 38
permanecendo natureza é cenário da Comunicação de Deus conosco, como vimos
no estudo do Salmo 19.
Mas, Deus se apresenta somente pela Natureza? Ele nos tem falado exclusi-
vamente através das coisas que Ele criou? O Judaísmo não seria o evento de uma
Palavra Pessoal, que culmina no Cristianismo?
Deus se mostrou como uma Presença na vida daquele Povo, pela sua Palavra,
dirigida pessoalmente a Abraão (Gn12) a Moises (Ex 4) e particularmente aos
Profetas (Is 5, Jer 2 e etc...): “Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua
parentela, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei” (Gn 12,1).
Aprenderemos neste Capítulo que Deus aproximou-se de nós, e, livre e so-
beranamente, apresentou-Se a Si Mesmo. Revelou-se. Assim, ele tornou-se aos
nossos olhos, distinto de sua Criação.
A natureza permanece uma fonte de conhecimento de Deus. Mas, como vi-
mos no Capítulo anterior, a natureza não é divina, não pode ser idolatrada, como
se ela fosse um Deus escondido.
A Revelação especial envolve assim uma pergunta fundamental: Como co-
nhecemos a Deus? Por Ele mesmo! Conhecemos a Deus e à sua Vontade Salvífica,
porque Deus mesmo quis auto-revelar-Se aos homens, a começar por Israel.
O conhecimento de Deus realiza-se assim, como um encontro da razão hu-
mana com a revelação de Deus, assim, nasce a teologia, seus fundamentos, sua
razão de ser. O conhecimento racional e integral da Verdade Divina apresentada
aos homens e mulheres.
Outro aspecto importante é a historicidade.
A Revelação como processo comunicativo ocorreu de modo exemplar no de-
correr do desenvolvimento do Povo de Israel. E teve seu auge, na Revelação do
Cristo, plenitude do Conhecimento de Deus, por Ele mesmo: “E o Verbo se fez
carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a
glória do unigênito do Pai” (Jo 1,14).
Vamos então mergulhar neste tema fascinante. Da Revelação especial deriva
toda a riqueza da teologia. Além disso, conhecer corretamente a Deus, isto é,
como Ele quer ser conhecido muda a vida, entra no mundo a Fé, resposta adequa-
da à Revelação. Pois Deus não se revela a nós, pelo simples conhecimento. Deus é
verdade que salva e modifica o presente e futuro da vida humana.
E por fim, vamos entender as relações que se estabelecem entre o conceito de
Revelação especial ou sobrenatural e os conceitos de Religião, em geral.

capítulo 2 • 39
OBJETIVOS
• Conhecer o conceito de Revelação Especial. Deus falou-nos de si Mesmo?
• Perceber a relevância das Escrituras, da Bíblia, no conhecimento de Deus;
• Estudar as relações entre a Revelação e as religiões;
• Analisar o desenvolvimento histórico do processo da revelação ao longo da História. Do
Judaísmo ao Cristianismo?

A Revelação: conceito fundamental para a teologia e a religião

O que é Revelação e por que é ela, apesar de sua origem imediatamente divina, o que
há de mais íntimo na história humana? Como pode ela identificar-se com a história da
humanidade, sem deixar de ser uma singular graça de Deus? Como pode a Revelação
estar sempre e por toda parte, a fim de operar sempre e por toda parte a salvação, sem,
com isto, deixar de estar aqui e agora, na carne de Cristo, na Palavra dos Profetas que
falam precisamente dela na letra da Escritura? Poderá ela ser por toda parte o “motivo”
íntimo, a força motora da história, sendo, ao mesmo tempo, uma ação libérrima de Deus,
impossível de ser medida em sentido ascendente, a partir da História? Não é, por outro
lado, o milagre uma graça divina ocorrida hic et nunc e realizada “uma vez para sempre”?

RAHNER, K. Observações sobre o Conceito de Revelação. Disponível em: <https://firmatfides.


files.wordpress.com/2011/12/revelac3a7c3a3o-e-tradic3a7c3a3o_joseph-ratzinger.pdf>.
Acesso 30 de Outubro de 2017.

Fonte: <http://www.istitutoeuroarabo.it/DM/che-significa-rivelazione/>.

capítulo 2 • 40
A experiência da Revelação como a conhecemos ou entendemos a partir das
Sagradas Escrituras e na compreensão das Igrejas, em suas ‘tradições’ hermenêuti-
cas ao longo da história das interpretações suscita pela sua grandeza, muitas inter-
rogações à inteligência e às consciências religiosas8.
Quando nos referimos ao fenômeno da Revelação devemos considerar ao me-
nos que a compreensão correta deste âmbito implique no estabelecimento de dois
polos, necessariamente implicados: “O que é Revelação e por que é ela, apesar de
sua origem imediatamente divina, o que há de mais íntimo na história humana?”,
perguntava-se o teólogo Karl Rahner.
De um lado, trata-se de um fenômeno complexo, pois envolve diretamente a
Pessoa de Deus, em sua Verdade e Ação. A Revelação aponta um processo no qual,
o conteúdo desvelado é o próprio Deus.
Não se trata de uma ‘notícia’ sobre Deus (Theologia= esforço para entender a
Deus), mas de uma ‘auto-Comunicação Divina’: “Como pode ela identificar-se com
a história da humanidade, sem deixar de ser uma singular graça de Deus?”
Do outro lado, é necessário considerar dentro da esfera da comunicação que
a Revelação é uma ação Divina na esfera humana, que se volta para a recepção e
compreensão humana, em vista da sua Salvação.
O homem para quem se dirige a Revelação Divina a recebe como Mensagem
‘conditio sine qua non’ (condição sem a qual, portanto, indispensável) para a supe-
ração de seu estado de alienação e pecado.
A Revelação, deste modo, é uma Ação Divina que resgata a consciência huma-
na, na medida em que é recebida como Verdade e Luz:

Poderá ela ser por toda parte o “motivo” íntimo, a força motora da história, sendo, ao
mesmo tempo, uma ação libérrima de Deus, impossível de ser medida em sentido
ascendente, a partir da História?

No momento em que é traduzida mística (culto/religião) e moralmente (man-


damentos/Ética) no contexto da História que se desenrola como campo de deci-
sões vitais da liberdade humana.
Os conceitos válidos de Deus que conhecemos e que constituem o conteúdo
da teologia (teo=grego, significa Deus – logia- grego, significa conhecimento) têm
sua fonte e origem nesta esplêndida experiência: Deus falou-nos de Si mesmo.
8  Um artigo interessante sobre este argumento: WIEDENHOFER, Siegried. Revelação. In: EICHER, Peter.
Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 792-800.

capítulo 2 • 41
Fonte: <http://www.istitutoeuroarabo.it/DM/wp-content/uploads/2016/10/3.-Vultus-
trifons-Scuola-di-P.-Lorenzetti-Gualdo-Tadino-PG-sec.-IX.jpg>.

Em torno do conceito de Revelação na teologia

O conceito de Revelação é de certa forma o conceito-chave da teologia atual. Para


fora (o grifo é nosso) ele funciona como categoria básica de teoria do conhecimento,
ou seja, como critério último de legitimação e delimitação com respeito a outras reli-
giões e cosmovisões, à razão, à filosofia e à ciência (revelação como origem, funda-
mento e limite da fé e da teologia) (WIEDENHOFER, 1993, p. 792).

Ser ‘conceito-chave’ já é uma definição deste conceito no universo dos estudos


teológicos. Acrescente-se a isso, ser uma referência obrigatória na compreensão
atual da teologia, isto é, a revelação especial não é um conceito secundário ou
ultrapassado na discussão da teologia, joga ainda um papel decisivo na lógica da
teologia, como conhecimento acerca de Deus, da sua Ação e dos efeitos sobre a
vida humana, a sociedade e as culturas.
A revelação é um critério externo à epistemologia (discurso do conhecimento
racional implicado no esforço da teologia) teológica: ‘como critério último de legitima-
ção e delimitação’. A revelação é entendida como a ‘identidade’ do discurso teológico.

capítulo 2 • 42
Como compreender a teologia, isto é, o discurso racional sobre Deus? Através
da experiência de Auto-Comunicação divina. O que Ele afirmou sobre Si mesmo é
o que nos permite afirmar sobre o que cremos?
Portanto, para o discurso e ação da teologia ‘ad extra’ (para fora) a revelação
funciona como uma carteira de identidade para que diversos discursos teológicos
se encontrem e se possam estabelecer formas de diálogo.
O tema da identidade teológica trazida à tona pelo conceito de revelação es-
pecial nutre, ao mesmo tempo, para dentro do mundo das religiões e das justifica-
ções religiosas, certa fronteira.
Identidades marcam e delimitam os discursos e as práxis numa ação que con-
fronta fisionomias entre aqueles fenômenos que designamos religiosos, isto é, que
dependem de uma fenomenologia da religião.

Para dentro, (o grifo é nosso!) ela (a revelação) a serve de categoria hermenêutica


básica, ou seja, como critério último de interpretação com respeito à tradição da fé, ao
seu caráter salvífico, à sua normatividade e unidade (revelação como origem, objeto
centro e norma da tradição eclesial).

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792.

Outra função de ordem interna especifica a relevância do conceito de revelação.


Para os teólogos contemporâneos o conceito de revelação continua a situar-se
nas origens do discurso teológico, serve de conceito fundador para a experiência e
a racionalização da teologia.
Por que falar de Deus, se não há ‘evidências’ de sua existência ou interesse
por nós?
Mais ainda, a revelação é um conceito que explicita o desenvolvimento da
tradição eclesial, como um mecanismo de auto-reconhecimento. Isto é, a comuni-
dade pode avaliar os processos históricos, as decisões culturais, as teologias que se
desenvolveram ou que foram refutadas no interior das Comunidades, pela análise
deste conceito-eixo.
As ‘reformas’ seriam possíveis na medida em que se reconhecem as interpreta-
ções como legitimamente inspiradas nesta visão trazida pela Revelação.
As crises entre as tradições cristãs e ao interno delas se colocam dentro deste
âmbito de compreensão trazido pela revelação, e seu papel central na lógica do
desenvolvimento de comportamentos e interpretações sobre o núcleo da Fé.

capítulo 2 • 43
Por isso, para diversos autores, como Wiedenhofer (1993), a revelação é ‘con-
dição de possibilidade’ do discurso teológico, mas também, ‘condictio sine qua
non’, isto é, condição indispensável para a formulação de Fé:

Enquanto revelação significa a condição de possibilidade da fé como seu lado avesso,


o conceito de revelação pode, por fim, designar também a totalidade da fé cristã e ser
entendida com razão como “conceito transcendental-teológico”.

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792.

É bem verdade que no contexto atual deveremos falar cada vez mais no plural,
pois não há em voga uma exclusiva teologia da revelação, dado que seu conteúdo
encontra-se espalhado e fragmentado em diversas visões, seja pelo Catolicismo
romano ao longo dos últimos séculos, seja pelas diversas tradições da reforma
protestante do século XVI, e ainda pela diversidade de experiências religiosas que
postulam na existência de Deus, que se revela no âmbito de visões e audições
extraordinárias.
A emersão da pluralidade religiosa como eixo de certa modernidade, isto é,
uma cultura que se afasta das grandes tradições religiosas e se interessa pela lingua-
gem existencial da religião, uma experiência típica de indivíduos, superiores às co-
letividades, traz consigo o problema da unidade de Deus, que parece tão afirmada
nas religiões do Livro, isto as religiões das revelações especiais, como religiões da
universalidade da identidade divina:

O contexto filosófico e social das hodiernas teologias da revelação acha-se ainda


marcado estruturalmente em larga escala pelas questões e respostas da Ilustração
europeia dos séculos XVII e XVIII (...). Pois a pretensão absoluta de verdade por parte
de uma revelação histórica de Deus continua a aparecer com frequência como con-
tradição direta à liberdade e à razão, assim como também à finitude e a falibilidade do
homem, e, sendo assim, como expressão imediata de irracionalismo e dogmatismo.

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792.

Vamos entender melhor o que é a Modernidade, na qual estão inseridas algu-


mas questões e discussões importantes sobre a Revelação, inserida no contexto do
cristianismo e da religião em geral?

capítulo 2 • 44
Modernidade e religião: contexto das discussões atuais da Revelação

Desde a Revolução Francesa são promovidos debates em diversas áreas sobre o


que é o tempo em que se vive, denominado de moderno, e como é o sujeito fruto
de seu período. Acreditou-se que esse homem, fruto de lutas históricas e sociais,
seria um novo ser, livre, emancipado das amarras religiosas, econômicas, ideológicas,
sociais, familiares, capaz de se autogerir, tornando-se o condutor de sua história.
Em outros termos, um dos universais da modernidade ocidental é a suposição
dominante de que o homem, em sua subjetividade, na sua constituição mais ínti-
ma, é o centro e o fundamento do mundo. Mas este processo tão complexo nunca
foi linear, houve em seu percurso, diversas ‘nuances’, que às vezes significaram
discordâncias, outras vezes, diversidades (ZEPEDA, 2010). Em texto antológico,
Rouanet (2001) propôs uma intensa reflexão sobre a modernidade do ponto de
vista de sua ‘crise’ ou mal-estar.
Este ‘projeto civilizatório’ da modernidade que está em plena crise, na opinião
de diversos autores, tem como ingredientes principais os conceitos de universali-
dade, individualidade e autonomia.
A universalidade significa ‘que ele visa todos os seres humanos, independente-
mente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais’ (ROAUNET, 2009, p. 9).
A individualidade significa ‘que esses seres são considerados como pessoas
concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético
à sua crescente individualização’ (ROAUNET, 2009, p. 9).
A autonomia significa ‘que esses seres humanos individualizados são aptos a
pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião, ou da ideologia, a agirem no
espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à
sobrevivência material’ (ROAUNET, 2009, p. 9).
Mas, segundo a maioria da percepção dos autores, a partir do século XX o pro-
jeto civilizatório organizado em torno desta tríade conceptual, está em plena derro-
cada para alguns, ou em transformação, para outros. Com a gênese deste projeto ci-
vilizatório, dito moderno, surgem, na mesma Europa, em particular do século XVIII
em diante diversas frentes reativas, nas artes, na literatura, na Filosofia (ZEPEDA,
2010) que buscaram desarticular a hegemonia das premissas do ‘espírito moderno’.
Quais são as maneiras pelas quais a pós-modernidade forja conceitos substitutos
e repudia conceitos da modernidade ou, de modo alternativo, até que grau procu-
ra-se construí-los em vista das recentes mudanças cognitivas, tecnológicas e sociais,
mesmo se situando, todavia, no interior do quadro referencial da modernidade?

capítulo 2 • 45
Finalmente, propor-se-á aqui uma alternativa à análise pós-moderna, uma al-
ternativa que depende de características básicas do pensamento moderno e que,
entretanto, incorpora eventos que transformaram inegavelmente o homem, a
máquina, o material e a epistemologia nas últimas décadas e que, desse modo,
redesenha o mapa da modernidade especificando os componentes e os modos de
interação e extensão alternativos.
Essa hipótese pode ser vista como uma ponte entre a modernidade clássica e a
pós-modernidade e, também como um desvio em relação a estas.
Como a Civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum ou-
tro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente
um ‘vácuo civilizatório’ (postura de Rouanet em contraste com a perspectiva de
Huntington (1996), que propõe um modelo plural (muçulmano, asiático e africa-
no) como agenda alternativa, num intenso ‘choque de Civilizações’).
Um período, segundo, Rouanet (2001), denominado como da ‘Barbárie’,
que segundo ele, estaria produzindo diversas alternativas em relação ao ‘estado da
questão’. Ele identificaria ao menos três tipologias de reação diante da ‘barbárie’
contemporânea. A primeira consistiria em ‘deixarmos em paz os bárbaros, sem
lhes infernizar a existência com valores civilizados’ (ROUANET, 2001, p. 12).
Neste universo os ‘bárbaros’ têm uma boa imagem, não incomodam, eles repre-
sentariam, inclusive, aos olhos eirênicos atuais, uma expressão saudável de atitudes
da ‘contracultura’, bem vistos, em muitos ambientes. O segundo caminho ou reação
diante da ‘barbárie’, segundo Rouanet (2001), seria um projeto antimoderno.
O terceiro e último elemento de reação à modernidade indicado por Rouanet
(2001), aí, ele o identifica com o projeto do “Iluminismo”, que propõe uma socie-
dade de natureza ‘neomoderna’: ‘Consiste na capacidade de manter o que existe de
positivo na modernidade, corrigindo suas patologias’. Na verdade, no epicentro da
Modernidade, ocorreu a sua forma mais integral, aquela do Iluminismo, do qual
a “Ilustração”, foi sua concreta expressão histórica.
Na Ilustração, pressupunha-se a validade universal desses princípios, a uni-
versalidade, o individualismo, e a autonomia (civitas máxima) por se basearem
numa natureza humana igualmente universal, no sentido que todos os homens
têm uma estrutura passional idêntica. Outra originalidade da Ilustração foi seu
foco individualizante. Nas sociedades tradicionais, o homem só existia como parte
do coletivo - do clã, da gens, da polis, do feudo, da nação.
Além disso, libertando o homem da inserção comunitária, a Ilustração os co-
loca em posição de exterioridade com relação ao mundo social, o que permite

capítulo 2 • 46
transformá-los em observadores e juízes de sua própria sociedade. Mas, segun-
do, Rouanet (2001, p. 16) nem tudo foi rosa. A radicalização da individualidade
numa sobreposição brutal, em alguns momentos levaria a perdas sociais, em ter-
mos de consciência coletiva e de ação social.
No entanto, o conceito central da Ilustração é aquele da autonomia. Este es-
tava no cerne do processo civilizatório da modernidade, pois se tratava de libertar
a razão do preconceito, isto é, da opinião sem julgamento. Até este momento a
inteligência humana era tutelada pela autoridade, religiosa ou secular.
O gênero humano para os iluministas ilustrados subjazia em estado infantil de
minoridade. Este processo de ilustração deveria liberar o homem de todo o jugo e
promovê-lo à vida adulta. Neste contexto era evidente a importância da crítica à
Religião, por parte das forças da Ilustração:
Donde a importância da educação, na perspectiva do Iluminismo, que se ex-
pressa concretamente na Ilustração. Eles a percebiam como única forma de imu-
nizar o espírito humano contra as investidas dos obscurantismos. Deste modo,
a Religião no contexto da Modernidade encontrará embates e empatias com os
projetos elaborados pelo Iluminismo, a autonomia talvez seja o elemento mais
contundente nesta tórrida relação.
Em suma, para entender melhor contexto o qual se encontra e com o qual
interage a religião na modernidade iluminista, e suas consequências para os ce-
nários da crise ‘pós-moderna’, não se pode subestimar a tensão da religião com as
decisões civilizatórias na modernidade, em particular no que se referia à ‘autono-
mia intelectual’.
Passaremos assim, à análise do fenômeno “Religião” em si para então entender
melhor as suas relações com conceitos, atitudes e convicções da Modernidade em
relação à Revelação e suas relações com a história das Religiões.

A Revelação e a história das religiões

Segundo Garcia-Alandete (2009), o fenômeno religioso, por suas caracterís-


ticas intrínsecas, reconhecidas por todos analistas e epistemologias empregadas,
torna-se um obstáculo para a ação da ciência moderna: humano complexo, poli-
morfo e poliédrico e, portanto, dificilmente controlável e manipulável dentro das
margens estreitas da perspectiva particular das ciências.
Para estes cientistas o debate em torno do conceito de Religião nasce como
vimos anteriormente na questão da cultura e da modernidade, no âmbito entre a

capítulo 2 • 47
equivocidade e a plurisemanticidade, e, por conseguinte, como exigência do con-
curso pluricientífico, em abordagens multidisciplinares que caracterizam a atual
‘mis en scene’ do conhecimento crítico.

Uma tipologia da religião?

Segundo Blackham (1967), no entanto, pensar religião necessita de algumas


referências, isto vem ocorrendo desde a antiguidade.
Varrão (116-27 a.C), o filósofo e enciclopedista romano de expressão latina,
nascido em Reate, depois viveu em Rieti e na Sabina. Autor de ‘Antiquitates rerum
humanarum et divinarum’, obra em que distinguiu três gêneros de teologia: a mítica,
narrada por poetas; a política, relativa às instituições e cultos do estado; e a natureza
do divino tal como se manifesta na natureza da realidade. Ele, influenciado pelo
pontífice Cévola, adotou uma classificação na qual distinguia mitologia, teologia
natural e teologia política, ou ainda deuses dos poetas, dos filósofos e da cidade.
As distinções parecem abstratas e primárias, mas, para Blackham (1967,
p. 4) ‘(...) é o reconhecimento dos interesses perpétuos e independentes na reli-
gião, dentro de uma sociedade’. Os poetas representam as camadas populares, os
filósofos, a cultura e a cidade, em léxico grego, a política, no qual Varrão coloca os
interesses eclesiásticos.
A idade moderna irá introduzir nesse quadro de interesses entre a religião e a
sociedade, a figura do fiel, crente ou pensador individual que não pode ser alinha-
do sob os interesses gerais de qualquer classe.
Uma tentativa de classificação ou tipologização da religião deveria, por isso,
ancorar-se sobre estes cinco interesses, segundo Blackham (1967). Extraídas da
lógica da antiguidade clássica, estes parâmetros deverão ser cabíveis para a com-
preensão contemporânea da religião.

A religião eclesiástica

Neste primeiro interesse encontramos, na tipologia da religião, a figura do


sacerdote, que caracteriza a imemorialidade das religiões: o culto. Esta forma se
desenvolve no seio de sociedades avançadas e organizadas, o que se observou cla-
ramente no antigo Oriente.
Neste âmbito, marcado pela figura do agente sacerdotal, como guardiões de uma
tradição interpretativa imemorial, o interesse é essencialmente conservador. Pois,

capítulo 2 • 48
com uma natureza tradicional e não-histórica esta resiste a qualquer visão crítica, ve-
rificação racional ou ‘revisionismo’. Mas não há de se confundir a religião eclesiástica
ou interesse eclesiástico com clero. O interesse eclesiástico pode ser representado por
profetas, videntes, médiuns, curandeiros e afins, pois se trata de manter a continui-
dade das tradições. Mesmo tendo funções diversas e às vezes contraditórias, como se
observa em geral em religiões de clero e aquela de profetas, ‘o que é comum a todas
as variedades de religião eclesiástica é uma tradição religiosa comunitariamente guar-
dada e fielmente transmitida’ (BLACKHAM, 1967, p, 6).

A religião política

Segundo Blackham (1967, p. 7) Roma, ou a ‘Romanitas’ foi o maior e primei-


ro exemplo de religião política.
A Religião na República romana era uma relação entre o Estado e os deuses.
O Estado se encarregava dos ritos, liberando os cidadãos de um sentimento de
temores supersticiosos. A ‘pax deorum’ constituía o sistema estatal de relações per-
feitas com a ordem sagrada, garantindo transações políticas favoráveis. A chegada
do Cristianismo como ‘Oficialis Religio’ do Império romano, por Constantino
(Edito de 312 d.C), não deve ser entendido como um recuo na perspectiva da
religião política, tradicional, ao contrário. Neste contexto, desde sempre, a religião
é compreendida como a base para a sociedade. Assim a religião pode prover disci-
plina social e união das seguintes formas:
1. Onde o juramento é a garantia da boa-fé e lealdade nas relações sociais, a
crença religiosa provê a sanção;
2. Onde se acredita que a prosperidade é sempre e apenas um favor dos deuses,
haverá uma atenção política que assegure os seus favores, por meio de requisitos
considerados necessários. Em suma, o comportamento religioso sofre, neste caso,
sanção social e política;
3. Uma vida comum é representada e desfrutada nos ritos religiosos. Estes são
praticados em proveito de todos, e por isso exigem e criam uma comunidade de
interesses, a harmonia do grupo;
4. Os ritos religiosos, e em particular os festivais, servem como estímulo e quei-
ma de energias necessários ao controle social, para que o povo seja purgado de seus
ressentimentos e sentimentos agressivos em relação à autoridade. Em suma, tudo
isso sem confundir a religião política como simples uso da religião eclesiástica para
fins políticos.

capítulo 2 • 49
A religião cultural

Como definição, deve a religião travar com a cultura, funções e alternâncias


de significação, de acordo com o ponto de vista teórico em que esta for analisa-
da. Aqui ocorre uma discussão entre teólogos (que estudam a religião) e outros
cientistas sociais (sociólogos, antropólogos etc...). ‘A redução’ da religião a um
fenômeno cultural com o propósito de estudá-la é, às vezes entendida como uma
rejeição de suas pretensões absolutas, levando à supressão do fenômeno como ele
existe na realidade.
Nos debates do mundo da modernidade, como ver-se-á mais adiante, a reli-
gião é vista sob o patrocínio da razão. Autores como Malinowski, entendem que a
religião não está no centro da formação humana, mas a cultura. Em consequência
desta perspectiva, a religião apareceria onde o conhecimento falha ou não alcança. A
morte, as doenças, os desastres, o destino, trazem consigo temores e questões. E isto
leva a religião a uma associação íntima com todas as formas de organização social.
O Helenismo significou, no âmbito da história das Civilizações da Antiguidade
clássica, a religião da cultura, o ideal clássico da Educação (Paideia grega), assim,
como se mostrou antes, a Romanitas, a religião do patriotismo. A procura pessoal
da perfeição através de uma vida dedicada aos estudos era a religião dos educados,
como vemos na ‘Vita Plutharchi’.

A religião popular

Neste campo, a religiosidade e a superstição mal podem ser distinguidas.


Varrão, como referimos antes, afirmava que a maioria dos mitos é na realidade,
teologia e metafísicas populares. Ao longo da história as expressões populares da
religião apresentaram-se em formas bem consistentes e às vezes radicais, dada a
sua tendência de fugir ao controle da religião eclesiástica. Eles surgiram como são:
verdadeiros movimentos religiosos populares. Uma forma diferente da religião po-
pular é representada pela voz do bom senso comum defendendo a simplicidade e o
pragmatismo. A religião popular não é desprezível, pois considera que a realidade
concreta com seus desafios cotidianos não pode ser substituída, simplesmente,
pela devoção ao passado e às tradições.

capítulo 2 • 50
A religião pessoal

A partir de Lutero, o indivíduo recebe um destaque, incomum no desenvolvi-


mento da religião, que se apresenta comumente como fato coletivo e socialmente
organizado. Segundo Blackham (1967, p. 18), a religião pessoal, ainda baseada
nos instintos primitivos da religiosidade humana, distingue-se das outras formas
de religião, ‘pois a consciência é a mola mestra da religião pessoal, como a razão o
é da religião cultural, a tradição, da religião eclesiástica, e a autoridade ou o poder
da religião política’.
Em síntese, no Judaísmo, Romanitas, Helenismo, paganismo e Cristianismo,
a tradição europeia encontra formas primitivas e clássicas das religiões eclesiástica,
política, cultural, popular e pessoal. Estes são exemplos representativos do domí-
nio dos interesses religiosos distintos. No entanto, há muitos questionamentos
graves que se colocam aos estudos sobre as relações entre a religião e a cultura em
época moderna e contemporânea, em particular, com os eventos da cruzada de
‘reeslamização’ na Europa, na Ásia e na África.

A religião e a Revelação no antigo testamento

Contexto das religiões antigas

A compreensão bíblica da revelação é incompreensível sem olhar a história das reli-


giões, afirma Wiedenhofer (1993, p. 794).

De fato, quando olhamos para as primeiras formas de cultura religiosa na au-


rora da antiguidade, como religiões de pescadores e caçadores, encontramos num
primeiro momento um dado interessante: uma imagem do mundo (cosmovisão)
que se reflete na religião. O mundo é o palco unitário do sagrado e do profano:

Uma imagem do mundo, na qual o mundo em última instância ainda representa uma
unidade não-separada, na qual, na verdade, o profano é distinguido do sagrado, mas
permanece continuamente conversível nele, na qual ainda não existe nenhuma dis-
tinção estrita de pessoal-impessoal, espiritual-material, individual-coletivo, monoteísta
-politeísta (WIEDENHOFER, 1993, p. 794).

capítulo 2 • 51
O sagrado é uma figura que emerge do cosmos9. Por isso o sagrado é entendi-
do neste contexto religioso entre os fenômenos espaço-temporais do mundo, de
modo particular na natureza e nos seus fenômenos, bem como nas narrativas fun-
damentais, os ritos e os mitos, numa forma simbólica cósmica. Isto é importante
quando se lida com religiões muito antigas, como aquelas dos chineses, indianos
e africanos entre outros.
Nas civilizações mais evoluídas, do ponto de vista socioeconômico e cultural,
como a Mesopotâmia e o Egito, encontramos, de um lado, certa continuidade
com esta visão do cosmos como berço do sagrado e do profano. Porém ocor-
rem mudanças interessantes para a nossa análise da religião bíblica no Antigo
Testamento, que se está desenvolvendo neste período:

No lugar de uma ordem cósmica originária entra cada vez mais uma rede de interações
pessoais entre homem e Deus (...). Por sua palavra poderosa a divindade intervém no
mundo e na história. Acontecimentos tornam-se revelações da ira ou da misericórdia
divina. A divindade aparece de maneira plurifacética (teofanias e epifanias).

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792.

Estas novas formas de religião avançada vão, por isso, criar técnicas de arte de
‘predição’ (mântica ou adivinhação), isto é, práticas de interpretação ou decifração
de sinais: interpretações de sonhos, astrologias, horóscopos, astrologias, oráculos
de sorte, julgamento de Deus. Assim como surgem sujeitos especializados nestas
sociedades para o exercício religioso da recepção passiva de revelações: inspiração,
profecias etc...!

Nas religiões mais evoluídas de sociedades culturalmente mais elevadas, a realidade


cinde-se em um aquém-profano e um além-sagrado. A isto corresponde a ênfase na
transcendência, personalidade e unicidade de Deus (monoteísmo), por um lado, por
outro, a crescente eticização interiorização e individualização da fé. A religião torna-se
“religião da revelação”.

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 792.

9  A palavra deriva do termo grego κóσμος (kosmos), que literalmente significa "bem ordenado" ou "ornamentado"
e metaforicamente "mundo", e é contrária ao conceito de caos (feio ou desordenado). Hoje, a palavra é geralmente
usada como sinônimo para "Universo". A palavra "cosmético" se origina da mesma raiz. Em muitas línguas eslavas
como o russo, polonês, búlgaro e sérvio, a palavra kosmos (KOMOC) também significa "espaço sideral.".Cf. <https://
pt.wikipedia.org/wiki/Cosmo>.

capítulo 2 • 52
Nas religiões mais evoluídas de sociedades culturalmente mais elevadas, a rea-
lidade cinde-se em um aquém-profano e um além-sagrado. A isto corresponde a
ênfase na transcendência, personalidade e unicidade de Deus (monoteísmo), por
um lado, por outro, a crescente eticização interiorização e individualização da fé.
A religião torna-se “religião da revelação”.
Dadas estas breves premissas de um assunto mais extenso, tão bem tratado por
Mircea Eliade10, numa perspectiva antropológica e histórico-cultural11, podemos
passar ao tema da Religião no Antigo Testamento.

CONEXÃO
Vale a pena refletir sobre estes argumentos, através do vídeo do Filósofo Felipe Pondé?
<https://www.youtube.com/watch?v=eJdkPlaKdWg>.

A compreensão da revelação no AT

Para a maioria dos autores fica claro que no Antigo Testamento não existem
‘definições’, seja de revelação, pecado ou redenção, ao menos do ponto de vista
sistemático-filosófico.
A Escritura sagrada não é um ‘dicionário de conceitos teológicos’. Nela, ao
invés, encontramos ‘um feixe de expressões concretas das quais cada uma por sua vez
designa diferentes fenômenos do evento revelação (...)’12.

10  Mircea Eliade (Bucareste, 9 de março de 1907 — Chicago, 22 de abril de 1986) foi um professor, cientista
das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno, naturalizado norte-americano em 1970. Falava e escrevia
fluentemente oito línguas (romeno, francês, alemão, italiano, inglês, hebraico, persa e sânscrito), mas a maior parte
dos seus trabalhos acadêmicos foi escrita inicialmente em romeno (depois em francês e em inglês). É um dos mais
influentes historiadores e filósofos das religiões da contemporaneidade. Fez parte do Círculo Eranos. Considerado
um dos fundadores do moderno estudo da história das religiões e grande estudioso dos mitos, elaborou uma visão
comparada das religiões, encontrando relações de proximidade entre diferentes culturas e momentos históricos.
No centro da experiência religiosa do Homem, Eliade situa a noção do Sagrado. Sua formação de historiador e
filósofo levou-o ao estudo dos mitos, dos sonhos, das visões, do misticismo e do êxtase. Na Índia, estudou ioga
e leu, diretamente em sânscrito, textos clássicos do hinduísmo que ainda não tinham sido traduzidos para as
línguas ocidentais. Autor prolífico, procurou encontrar uma síntese dos temas que abordou. Nos seus escritos, é,
frequentemente, destacado o conceito de hierofania, através do qual Eliade definiu a manifestação do transcendente
em um objeto ou um fenômeno do cosmo. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mircea_Eliade>.
11  Há muito escrito sobre este assunto. Indicamos nas referências bibliográficas uma seleção de autores e textos.
Vale a pena citar aqui: MADUREIRA LOPES, M. M. A Construção da Identidade na Construção da Identidade no
contexto religioso. Uma proposta linguística. In: Anais do SILEL. Volume 1. Uberlândia: EDUFU, 2009.
12  WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 795.

capítulo 2 • 53
Diversas são as ‘situações’ que, por isso exprimem diversas concepções do con-
ceito que denominamos ‘revelação’.
1. Aparições de Deus (Teofanias e Epifanias): em figura humana, Gn 18, na
aparição de três homens à porta de sua tenda:

Depois apareceu o Senhor a Abraão junto aos carvalhos de Manre, estando ele sen-
tado à porta da tenda, no maior calor do dia. Levantando Abraão os olhos, olhou e eis
três homens de pé em frente dele. Quando os viu, correu da porta da tenda ao seu
encontro, e prostrou-se em terra, e disse: Meu Senhor, se agora tenho achado graça
aos teus olhos, rogo-te que não passes de teu servo (Gn 18, 1-3).

a) No rumorejar das árvores (2Sm 5,24: ‘E há de ser que, ouvindo tu o ruí-


do de marcha pelas copas dos balsameiros, então te apressarás, porque é o Senhor
que sai diante de ti, a ferir o arraial dos filisteus’);
b) No leve sopro da brisa a Elias (1 Sm 19, 11-13: ‘Ao que Deus lhe disse:
Vem cá fora, e põe-te no monte perante o Senhor: E eis que o Senhor passou;
e um grande e forte vento fendia os montes e despedaçava as penhas diante do
Senhor, porém o Senhor não estava no vento; e depois do vento um terremoto,
porém o Senhor não estava no terremoto; e depois do terremoto um fogo, porém
o Senhor não estava no fogo; e ainda depois do fogo uma voz mansa e delicada.
E ao ouvi-la, Elias cobriu o rosto com a capa e, saindo, pôs-se à entrada da
caverna. E eis que lhe veio uma voz, que dizia: Que fazes aqui, Elias?’);
c) Na nuvem do Sinai (Ex 24, 15-18: ‘E tendo Moisés subido ao monte, a
nuvem cobriu o monte. Também a glória do Senhor repousou sobre o monte
Sinai, e a nuvem o cobriu por seis dias; e ao sétimo dia, do meio da nuvem,
Deus chamou a Moisés. Ora, a aparência da glória do Senhor era como um fogo
consumidor no cume do monte, aos olhos dos filhos de Israel’);
d) Ou no culto (Lv 20, 6: ‘Quanto àquele que se voltar para os que consul-
tam os mortos e para os feiticeiros, prostituindo-se após eles, porei o meu rosto
contra aquele homem, e o extirparei do meio do seu povo’.)

2. Processos e práticas de adivinhação, como por exemplo,


a) Os sonhos (Gn 20, 6: ‘o que Deus lhe respondeu em sonhos: Bem sei eu
que na sinceridade do teu coração fizeste isto; e também eu te tenho impedido
de pecar contra mim; por isso não te permiti tocá-la’);
b) Oráculos de sorte (1 Sm 10, 17-27: ‘Quando eles iam chegando ao ou-
teiro, eis que um grupo de profetas lhes saiu ao encontro; e o Espírito de Deus se

capítulo 2 • 54
apoderou de Saul, e ele profetizou no meio deles. Todos os que o tinham conhecido
antes, ao verem que ele profetizava com os profetas, diziam uns aos outros: Que
é que sucedeu ao filho de Quis? Está também Saul entre os profetas? Então um
homem dali respondeu, e disse: Pois quem é o pai deles? Pelo que se tornou em
provérbio: Está também Saul entre os profetas? Tendo ele acabado de profetizar,
foi ao alto. Depois o tio de Saul perguntou-lhe, a ele e ao seu moço: Aonde fostes?:
Respondeu ele: Procurar as jumentas; e, não as tendo encontrado, fomos ter com
Samuel. Disse mais o tio de Saul: Declara-me, peço-te, o que vos disse Samuel.
Ao que respondeu Saul a seu tio: Declarou-nos, seguramente, que as jumentas
tinham sido encontradas. Mas quanto ao assunto do reino, de que Samuel falara,
nada lhe declarou. Então Samuel convocou o povo ao Senhor em Mizpá’);
c) Julgamentos de Deus: (Nm 5, 11-31); inspirações e sugestões, audições
e visões de cunho profético: (Is 1,1: ‘A visão de Isaías, filho de Amoz, que ele
teve a respeito de Judá e Jerusalém, nos dias de Uzias, Jotão, Acaz, e Ezequias,
reis de Judá.’).

3. Acontecimentos históricos como façanhas de Javé, como revelação da sua


misericórdia ou da sua ira: (Sl. 76, Sl. 98):
a) O retorno da Diáspora (exílio na Babilônia): (Is 66, 14: ‘Isso vereis e
alegrar-se-á o vosso coração, e os vossos ossos reverdecerão como a erva tenra;
então a mão do Senhor será notória aos seus servos, e ele se indignará contra os
seus inimigos’).
b) Palavras e orientações de Javé, como por exemplo, orientações dirigidas
a Moisés (Ex 33, 11: ‘E falava o Senhor a Moisés face a face, como qualquer
fala com o seu amigo. Depois tornava Moisés ao arraial; mas o seu servidor, o
mancebo Josué, filho de Num, não se apartava da tenda’) ou aquelas dirigidas
a Josué (Js 3, 7; 5,9: ‘Disse então o Senhor a Josué: Hoje revolvi de sobre vós o
opróbrio do Egito; pelo que se chama aquele lugar: Gilgal, até o dia de hoje’),
de modo particular atingem os profetas.

O primeiro elemento que exprime a ‘novidade específica’ da revelação do


Antigo Testamento, sob o ponto de vista histórico é a ruptura com a ‘sacralidade
cósmica’, como já pudemos ver no Capítulo da ‘revelação natural’. O mundo (cos-
mo) ou natureza não possui uma identidade ou ‘alma’ divina, mas simplesmente
expressa a Presença criadora de Deus. Mais ainda, segundo Wiedenhofer (1993):

capítulo 2 • 55
(...) palavra, história, fé e agir ético tornam-se agora os meios primários do encontro
com Deus (....), mas também no lugar do sistema simbólico de universal correspondên-
cia como lei básica do cosmos sagrado entra agora como lei básica da fé de Israel
a livre relação de fidelidade entre Deus e o homem, que na dialética do chamado e
resposta, já contém sempre em si a possibilidade de nova e totalmente diversa relação
com Deus (p. 795).

A revelação especial em Israel entende-se como uma capacitação integral para


deixar dirigir por Deus ao longo da história. Uma ‘nova experiência transcendental
da revelação’ (Wiedenhofer):

Ou seja, uma experiência fundamental, por cujo conteúdo (a realidade verdadeira, in-
disponível e exclusiva, que dá a vida, é Javé) rompe-se a estrutura hierofânica* vigente
até então, do contexto da experiência religiosa e possibilita-se ao mesmo tempo um
novo contexto de experiência com nova maneira de auto-identificação, de forma que
Israel torna-se cada vez mais capacitado na sua história para experimentar, na multi-
plicidade de fenômenos empíricos de revelação, a revelação do Deus único (=Javé),
identificar-se a si mesmo, na descontinuidade de sua história, como povo de javé (...)

* Hierofania (do grego hieros (iερóς) = sagrado e faneia (φαíνειν) = manifesto) pode ser defini-
do como o ato de manifestação do sagrado. O termo foi cunhado por Mircea Eliade em seu livro
Traité d'histoire des religions (1949) para se referir a uma consciência fundamentada da existên-
cia do sagrado, quando se manifesta através dos objetos habituais de nosso cosmos como algo
completamente oposto do mundo profano (ver misticismo). Para traduzir o ato de manifestação
do sagrado, Eliade sugere o termo hierofania, é necessário, pois se refere apenas ao que cor-
responde à sagrada que nos é mostrado. Eliade explica: "Para aqueles que têm uma experiência
religiosa, a natureza como um todo é susceptível de se revelar como sacralidade cósmica. O
cosmos como um todo pode se tornar uma hierofania. O homem das sociedades arcaicas tende
a viver tanto quanto possível o sagrado ou na privacidade dos objetos consagrados. A sociedade
moderna habita um mundo dessacralizado. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Hierofania>.

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 795.

O que há de específico na experiência religiosa de Israel é que eles transforma-


ram o contexto histórico das revelações das religiões em seu entorno numa sorte
de ‘laboratório’ que lhes serviu sempre melhor para perceber o Deus único e sua
revelação.
A bíblia está, por isso, cheia de ‘pegadas literárias’ acerca desta experiência fun-
damental, a revelação do nome de Javé (Ex 3,14) que entra no lugar da imagem
de Deus e que ao mesmo tempo expressa a possibilidade de invocar Javé numa
progressiva ‘literalização’ da revelação, que permite agrupar vários grupos de textos
em textos de teologia da revelação:

capítulo 2 • 56
Esboça-se aí também uma primeira teologização do discurso sobre a revelação. Não
mais se fala da revelação ao nível da experiência da fé, mas de reflexão de fé, e não
mais se apontam só experiências, mas também já o pressuposto geral e distintivo do
encontro com Deus, o fundamento da fé e a origem última da tradição da fé .

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 795.

Existem em todo o Antigo Testamento, diversas representações da revelação,


espelhadas em diferentes tipos e gêneros literários. Podemos afirmar que a Bíblia
do Antigo Testamento exige uma imensidade de estórias e narrações sobre a reve-
lação tal é a centralidade destas experiências:
•  No discurso profético: percebe-se a representação da palavra de por detrás
da palavra do profeta (tradição do oráculo, inspiração, a ideia de duplo autor);
•  No discurso narrativo, a representação do agir e sofrer do homem, como
figuração do fenômeno do agir divino;
•  No discurso prescritivo, onde se encontra expressa a Vontade de Deus atra-
vés dos Mandamentos (dimensão ética e prática da revelação);
•  No discurso sapiencial (da sabedoria) uma superação de situações limites
individuais dos humanos, através da representação de um horizonte divino de
sentido da criação, como vimos na seção anterior, com a revelação natural;
•  No discurso lírico (os salmos) a representação de formação dos sentimentos
pelo seu idêntico objeto divino, uma forma de comunhão entre Deus e o homem;
•  No discurso Apocalíptico, o desvelamento do oculto plano histórico divino:
“A teologia da revelação do AT só pode achar na correspondente determinação de cada
uma destas representações” (Wiedenhofer, 1993, 796).

Com estas observações percebemos que sem o caminho de desenvolvimento


da compreensão da revelação, seja do ponto de vista das formas de expressão da
fala de Deus, seja aquele do registro de como se percebeu esta presença e falas
divinas, na forma de diálogos bíblicos.
Passemos agora, ao centro e auge das experiências de revelação, no Novo
Testamento. Cristo, expressão máxima da auto identificação de Deus, a aparição
do Filho Unigênito.

capítulo 2 • 57
O Cristo e a revelação plena de Deus

Esta experiência está registrada nas Sagradas Escrituras do Antigo Testamento.


E tem o auge desta narratividade, isto é, que se trata de um fenômeno que envolve
narrativas históricas, na Vinda de Cristo sobre a Terra.
Por isso, o Prólogo de São João, 1, 18 afirma: “Ninguém jamais viu a Deus.
O Filho Unigênito, que está no seio do Pai, esse o deu a conhecer”. A mediação para
a clarividência da Imagem Divina revelada se encontra plenamente expressa na
Encarnação do Verbo (Jo 1,14).
Aliás, é São Paulo através da linguagem poética do Hino aos Colossenses 1,
15s, que nos afirma de modo intenso: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primo-
gênito sobre toda a criação; porquanto nele foram criadas todas as coisas nos céus e na
terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos ou dominações, sejam governos ou poderes,
tudo foi criado por Ele e para Ele. …”
Na figura e na ação de Jesus Cristo alcançamos o auge de um processo que
começara em Abraão (Gn 12): Deus se dirige aos homens para falar-lhes de Si
mesmo e da Salvação Humana.
Revelação propriamente dita implica na experiência histórica do Transcendente,
pela mediação suprema da Palavra.

Trata-se de um fato histórico incontestável: Deus, que habita em luz inacessível (cf.
1Tm 6, 16), dignou-se falar aos homens, manifestando-lhes o mistério de sua vida e os
desígnios de sua vontade a respeito da salvação do gênero humano. Ele falou muitas
vezes e de diversos modos aos nossos antepassados por meio dos profetas; por fim,
comunicou-nos a plenitude de sua palavra por seu Filho, pelo qual criou todas as coi-
sas (cf. Hb 1, 2). A revelação divina é, portanto, sinal claro de que Deus se preocupa
conosco e deseja, sim, tornar-nos participantes de sua alegria e de seus próprios bens.

Revelação e Fé. Disponível em: <https://padrepauloricardo.org/cursos/revelacao-e-fe>.


Acesso 30 out. 2017.

Diversos elementos importantes estão presentes na compreensão da Revelação.


Primeiro, que Deus, ‘dignou-se falar aos homens’, sendo Ele mesmo, Inacessível
(cf. 1Tm 6, 16). A Revelação indica, portanto, um Ser magnânimo e livre, que sai
de Si Mesmo ao encontro do outro, no caso de suas criaturas. Ou como afirma a
Carta aos hebreus em seu prólogo, Deus sempre falou:

capítulo 2 • 58
Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos
profetas, 2 nestes últimos dias a nós nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro
de todas as coisas, e por quem fez também o mundo (Hbr 1,1-2).

Tradução de FERREIRA DE ALMEIDA, J.


Disponível em: <http://biblia.com.br/joao-ferreira-almeida-atualizada/hebreus/>.
Acesso em: 30 out. 2017.

A Revelação indica assim, a aproximação daquele que vive muito acima de


suas criaturas. “Luz inacessível” é terminologia para significar que não se trata da
comunicação entre criaturas. A Revelação é o gesto Divino, como iniciativa, que
reestabelece uma dimensão dialógica com a Humanidade.
A origem da Revelação reside na Transcendência divina que, bondosamente se
abre à razão e à alma humana. É a Palavra do Deus absconditus13 à razão e à sensibi-
lidade humana, no âmbito da compreensão possível de Deus, a História humana.
Portanto, a Revelação constituiu-se como uma experiência religiosa e trans-
cendente de Deus, que tem como origem a Vontade Divina de auto comunicar-se
a Si mesmo!14 Segundo, “manifestando-lhes o mistério de sua vida e os desígnios de
sua vontade a respeito da salvação do gênero humano”.
O Mistério da Vida Divina. A Palavra mistério15 tem origem desconhecida
e antiga. Muitos séculos nos separam deste uso, em diversas fontes. Destaca-se a
experiência grega arcaica, dos mistérios de Elêusis, que associam aos oráculos uma
experiência de comunicação divina ou espiritual.16

13  Em latim= Escondido, Misterioso, Inefável.


14  Esta conclusão no universo católica exprime-se na Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II: ‘Dei
Verbum’, sobre a Palavra de Deus: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/
vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html>. Sobre este Documento muito se tem escrito. MENDES, J. T.
REVELAÇÃO E INSPIRAÇÃO BÍBLICA Um estudo a partir da Constituição Dogmática Dei Verbum. Porto Alegre:
PUC/RS, 2007. Disponível em: <http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5291/1/000397626-
Texto%2bCompleto-0.pdf>. Acesso em: 31 out. 2017.
15  ‘Em Português, por exemplo, a palavra “mistério” apresenta três possíveis significados, a saber: aquilo que
não se consegue desvendar, compreender e explicar; aquilo que se deseja manter oculto ou escondido: segredo;
nas religiões cristãs, o que é considerado verdade revelada por Deus, que deve ser objeto de fé, dogma. Assim,
percebemos que nos dois primeiros níveis a palavra se refere a algo oculto, enquanto que no terceiro nível se refere
a algo conhecido e revelado. Isto mostra a equivocidade do termo. (Cf. “Mistério”. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE
LETRAS, Dicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008, p. 865)’. Disponível
em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/26825/26825_3.PDF>. Acesso em: 30 out. 2017.
16  Mircea Eliade, baseado em descobertas arqueológicas, afirma que o primeiro santuário dos mistérios de Elêusis
foi construído por volta do século XV a.C.. Esta afirmação nos faz perceber que os mistérios eleusianos são anteriores
ao próprio santuário, remontando as práticas religiosas agrárias do período neolítico (Cf. ELIADE, M., História das
crenças e das ideias religiosas. Da idade da pedra aos mistérios de Elêusis. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, v. 1, p. 277-
288). Contudo, o apogeu dos mistérios eleusianos e sua celebração na cidade de Atenas se dão no século VI a.C.
(Cf. ZAIDMAN, L. B., Os gregos e seus deuses. Práticas e representações religiosas da cidade na época clássica. São

capítulo 2 • 59
A palavra "revelação" se encontra cerca de cinquenta vezes na Bíblia e serve como
título para um de seus livros, o Apocalipse. O verbo grego apocaluptein, usado pelo
Novo Testamento, significa "descobrir", "revelar". Nós usamos isso, por exemplo, quan-
do puxamos a cortina de um palco de teatro no início de uma sala, ou abrimos a tampa
de uma caixa para ver o que está por dentro ou, ainda assim, ao remover a máscara
colocada em um rosto. Para revelar é tornar visível o que não era visível, para expor o
que estava anteriormente escondido.

Fonte: GOUNELLE, A. La Révélation. Disponível em: <http://andregounelle.fr/


vocabulaire-theologique/la-revelation.php>. Acesso em 30 out. 2017.

Mas o que nos tem a dizer as tradições e livros do Novo Testamento sobre a
revelação especial? Quais são elementos de descontinuidade ou de continuidade
com as experiências e conceitos que encontramos no AT? Como responder à per-
gunta: o que se entende por revelação no Novo Testamento, depois do fenômeno
Jesus, o Cristo?

A compreensão da revelação do Novo Testamento

O pressuposto para esta abordagem compreensiva da revelação é o mesmo que


se encontra no AT. Não há entre os escritos do NT uma ‘definição’, à norma de
dicionários, sobre o conceito unitário e abstrato de revelação. Mas, ao contrário,
temos uma variegada gama de conceitos de revelação, além de uma densa quanti-
dade de referências a fenômenos de revelação:
1. Processos ou práticas de adivinhação, como oráculos através de sonhos (At
1,15-26);
2. Uma grande frequência de sonhos (Mt 1, 20; 2, 12; At 16,9);
3. Visões (Mt 17,1-9; At 7, 55ss; 10, 9-23; 22, 6-11.17-21);
4. Variadas Inspirações, iluminações e forças carismáticas ‘com base na íntima
comunhão com Cristo ou no dom do Espirito’ (p. 796);
5. Atividades proféticas (2 Cor 13,3; 1Cor 12-14; At 2,11; 21, 10-12);
Não há mais ‘teofanias’ (aparições divinas), mas atividades angélicas (Lc 1; 2,
8-15, Mt 28,1-8), aparições do ressuscitado (Mc 16, 9-20; Mt 28, 9ss; Lc 24, 13-
53; Jo 20s; 1Cor 15,3-8).
Segundo Wiedenhofer (1993), ‘(...), portanto, acontecimentos, menos como
ações de Deus do que como “sinais” da proximidade escatológica do Reino de Deus,
sobretudo nos milagres de Jesus (Mt 11, 2-16; 12, 28; Jo 2,11)’ (p. 796).
Paulo: Loyola, 2010, p. 145-151). Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/26825/26825_3.PDF>.
Acesso em: 30 out. 2017.

capítulo 2 • 60
6. Palavras e orientações de Deus: raramente como expressa palavra de Deus a
um indivíduo (Lc 3,2), mas como sugestão e revelação internas ou como voz que
vem do céu (At 10, 13.15.19; 16, 6; 18,9; Jo 12, 28) e como pregação de Jesus
(Mc 2,2; 4,33; Lc 5,1).
Segundo Wiedenhofer (1993) há uma peculiaridade na visão teológica da re-
velação no conjunto dos autores e tradições do Novo Testamento:

A novidade específica da compreensão da revelação está no fato que os fenômenos


de revelação entram por assim dizer no campo da sucção da pessoa e da história de
Jesus, por isso ordenam-se funcionalmente a esta revelação definitiva de Deus é à
sua permanente presença na história e entendem-se como expressão do desenca-
deamento escatológico do Espírito de Deus com ela ligado (p. 796).

Em outras palavras, quando o Novo Testamento se refere à revelação, diferen-


temente do Antigo, é Jesus Pascal, o único protagonista da ação divina de desvela-
mento, essa é a lógica dos Evangelhos:

Uma vez mais se desvia, portanto, o centro da ideia de revelação: em conexão com a
experiência da morte e ressurreição de Jesus manifestamente foi outorgada aos dis-
cípulos uma experiência transcendental de revelação, ou seja, uma nova experiência
fundamental cujo conteúdo (a impotência do Crucificado e o reinado do amor de Deus
que irrompeu escatologicamente).

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 796

Com os Escritos do Novo Testamento, em particular os Evangelhos abrem-se


novos horizontes de interpretação da revelação, e de certa maneira, ocorre uma
descontinuidade com a mensagem do Antigo Testamento, em relação à nova ma-
neira de auto identificação e coerência da história da Salvação (Lc 24, 13-35; 1Cor
1, 18-31; Rm 12,2).
Esta experiência pascal capacita os discípulos a entender em profundidade
através das palavras e ações de Jesus a definitividade da palavra de Deus, a escato-
lógica manifestação de Deus em Jesus. Isso causa uma revolução na compreensão
da experiência de revelação, criando uma forma de ‘teologização’ desta experiência
fundamental, predicada na confissão em Jesus Cristo:

capítulo 2 • 61
Jesus Cristo não é só o revelador definitivo do Nome de Deus (Jo 17,26: ‘e eu lhes fiz
conhecer o teu nome, e lho farei conhecer ainda; para que haja neles aquele amor com
que me amaste, e também eu neles esteja’), mas o Nome do próprio Deus, a possibili-
dade de invocá-lo e a presença de Deus, o “O Deus-conosco” (Mt 1,23).

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 796.

Ele não é somente o arauto profético da palavra de Deus, mas é:


1. A “Palavra de Deus” (feito carne) (Cl 1,25-27; Ap 19,11-16; Jo 1,1-18);
2. A sua história inteira é o evento do “sim” irrevogável de Deus (2Cor 1,19);
3. Ele é “o sinal de Salvação” do próprio Deus (Lc 3,34);
4. Ele é o oculto “Mistério de Deus” que agora se revela (Col 1, 24-29; Ef 1,
8-12);
5. Não somente o mestre da verdade, mas a própria “Sabedoria de Deus” (Mt 11,
16-19; 12,42; 1Cor 1, 21.24.30).
Podemos dizer que este percurso, que representa uma ‘evolução’ de aprofun-
damento da compreensão cristã da revelação. Aquilo que se denomina “teologiza-
ção”, ‘isto é, o ato de interpretar teologicamente o novo agir salvífico de Deus em Jesus
Cristo e sua figura presente’ (Wiedenhofer, 1993, p. 797).
Os grandes teólogos do Novo Testamento, em particular Paulo e João, com
suas cristológicas, elaboram uma nova concepção de revelação com a elaboração
do ‘credo cristão’:

Este processo avançado de teologização se expressa também no fato que os meios


da revelação, palavra e história, tendem agora de modo geral a transferir-se do nível da
linguagem para o nível da reflexão teológica, que paulatinamente, vai se tornando um
conceito de revelação, determinando-se, no nível da reflexão religiosa, certos traços da
natureza da fé com a ajuda da ideia de revelação.

Fonte: WIEDENHOFER, S. Revelação, p. 796.

Sobre a Revelação Especial, partindo do princípio que se trata de algo escon-


dido que se mostra, do invisível que se visibiliza, pode-se então, segundo Gounelle
(2003), estruturar a compreensão da Revelação em quatro Princípios.

capítulo 2 • 62
Quatro princípios da Revelação especial

Segundo Gounelle (2003), trata-se inicialmente de um ato. A Revelação é


vista como uma Ação ou um evento. Ao mesmo tempo, caracterizada pela possibi-
lidade de ‘ver’ ou de ‘entender’ a realidade pessoal de Deus e o mistério do mundo,
que antes eram inacessíveis à razão humana:

Primeiro, um ato. Algo está acontecendo; ocorre um evento, um gesto é feito ou uma
palavra é dita que nos permite perceber o que anteriormente não vimos. Este ato traz
uma modificação, ele inaugura uma situação diferente colocando a luz onde antes
estava desaparecido. Revelação refere-se à passagem da escuridão para a clareza.

GOUNELLE, A. La Révélation. Disponível em: <http://andregounelle.fr/


vocabulaire-theologique/la-revelation.php>. Acesso em: 30 out. 2017.

A Revelação especial sendo ação, supõe um sujeito que é o centro deste even-
to, não há anonimato na ação de revelar.

Em segundo lugar, um sujeito que atua. Alguém intervém; Quando ocorre uma mudan-
ça, há uma razão; um evento tem causas; uma ação, um gesto ou uma palavra, vem de
um ator ou de um agente. Quando falamos de revelação, geralmente o atribuímos à
aparência de alguém ou algo que se comunica, informa, se faz conhecido.

GOUNELLE, A. La Révélation. Disponível em: <http://andregounelle.fr/


vocabulaire-theologique/la-revelation.php>. Acesso em: 30 out. 2017.

A Revelação especial indica uma ação, por isso, um sujeito que intervém, mas
também, algo que é comunicado. A revelação oferta conhecimento aqueles a que
se dirige. Ela gera um novo estado de consciência humano.

Terceiro elemento, um objeto comunicado. A Revelação tem conteúdo; revela um se-


gredo, dissipa um mistério, traz um conhecimento. Ele revela realidades ou verdades
anteriormente ignoradas. O que ela achou a torna importante ou insignificante. Seu
valor depende do que se comunica.

GOUNELLE, A. La Révélation. Disponível em: <http://andregounelle.fr/


vocabulaire-theologique/la-revelation.php>. Acesso em: 30 out. 2017.

capítulo 2 • 63
Este evento, com seu Sujeito revelador, que traz mensagem aos destinatários
da Revelação, tem, por fim, a sua situação modificada a partir deste evento ilu-
minador: ‘Existe revelação apenas se alguém começa a ver ou a saber o que antes era
obscuro para ele’.

Quarto elemento, um beneficiário ou um destinatário que o recebe e o ilumina. Existe


revelação apenas se alguém começa a ver ou a saber o que antes era obscuro para
ele. O segredo dos ouvidos de burro do Rei Midas que o seu barbeiro confia a um bu-
raco escavado no chão para que ninguém o ouça não é revelado; Só assim será que o
estremecimento indiscreto dos juncos que sussurrou aos transeuntes.

Fonte: GOUNELLE, A. La Révélation. Disponível em: <http://andregounelle.fr/vocabulaire-


theologique/la-revelation.php>. Acesso em: out. 2017.

Abordados estes temas fundamentais acerca da revelação especial, vamos então


nos ater no próximo capítulo aos ‘modos da Revelação’, que sintetizam algumas das
questões já apresentadas nos Capítulos anteriores, sobre a revelação natural e especial.

ATIVIDADES
01. Em outras palavras, quando o Novo Testamento se refere à revelação, diferentemente do
Antigo, é Jesus Pascal, o único protagonista da ação divina de desvelamento, essa é a lógica
dos Evangelhos.

A Partir desta afirmação explique como se pode relacionar a Revelação Especial e


a Páscoa de Cristo.

02.

A partir desta charge, procure explicar a seguinte questão: João 10, 16: ‘Tenho ainda ou-
tras ovelhas que não são deste aprisco; a essas também me importa conduzir, e elas ouvirão a
minha voz; e haverá um rebanho e um pastor’. Como se relacionam a Revelação de Cristo
com as religiões? Jo 17

capítulo 2 • 64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0872-
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ZEPEDA, José de Jesús Legorreta. Secularização ou ressacralização? O debate sociológico
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141, Junno 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
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Teologia. São Paulo: Paulus, 1993, p. 792-800.

capítulo 2 • 65
capítulo 2 • 66
3
Modos de revelação
divina
Modos de revelação divina

Para iniciar a abordagem dessa questão sobre a Palavra de Deus na história, buscar-
se-á estabelecer um princípio necessário, um pressuposto ineliminável que a Cons-
tituição Dogmática Dei Verbum propõe ao afirmar que “o Deus invisível (cf. Cl 1, 15;
1Tm 1, 17), no Seu imenso amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33, 11; Jô
15, 14-15) e com eles se entretém (cf. Baruc) para os convidar à comunhão Consigo
e nela os receber” (MENDES, 2007, p. 13).

Segundo a carta aos Hebreus 1,1, “Deus falou de diversos modos”. Isso reitera
ao menos dois elementos que são indicados na Constituição Teológica sobre a
Revelação no Vaticano II: “Dei Verbum” (A Palavra de Deus), quando afirma que
na Sagrada Escritura Deus fala com palavras e sinais conectados entre si:

Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente re-
lacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da sal-
vação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras;
e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido.
Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos
homens, manifestasse-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o
mediador e a plenitude de toda a revelação (DV 2).

A eventualidade da Revelação caracteriza-se por uma forma de comunicação


que se estrutura seja pela ação de Deus em relação ao homem, quanto, pela expres-
são através de uma Palavra, dirigida à consciência dos seus interlocutores.
Segundo Mendes (2007), a Revelação ganha um espaço dinâmico ao evitar
separar o aspecto doutrinal (palavras) daquele salvífica, porque por ações intervém
na história humana:

Ao declarar solenemente que a Revelação se dá por meio de “palavras e ações”, o Concílio


Vaticano II proclama que a Revelação ocorre definitivamente em uma dimensão histórica.
Antes do Concílio era mais destacado o termo “palavras”, acentuando-se, assim mais, o
aspecto doutrinal. A partir da Constituição Dei Verbum, as terminologias “palavras e ações”
têm um peso similar na interpretação acerca da maneira como Deus se revela, assim como
adquirem relevância na maneira de relacionar fé e vida no processo interpretativo da Es-
critura. Trata-se, portanto, de uma concepção que valoriza formas distintas de Deus se
manifestar à humanidade como adquirem relevância na maneira de relacionar fé e vida
no processo interpretativo da Escritura. Trata-se, portanto, de uma concepção que valoriza
formas distintas de Deus se manifestar à humanidade (MENDES. 2007, p. 17).

capítulo 3 • 68
O que chama atenção nesta caracterização é o fato de palavras e ações estarem
‘intimamente relacionadas entre si’ causando o efeito de reforça de mútua com-
preensão. O gesto e palavra se interligam oferecendo à Revelação Divina uma uni-
dade semântica que impede uma interpretação equivocada da Mensagem Divina.
Para Karl Rahner (1963), o fato da Revelação tem sempre um duplo aspecto.

Por um lado, a constituição de uma transcendência sobrenaturalmente elevada do


homem, como algo permanente, gratuito, mas nem sempre de todo positivo, ou seja, a
transcendental experiência da absoluta e gratuita participação da vida divina, mesmo
quando ela não seja concretamente objetivada em cada um, em particular.

RAHNER, K. e RATZINGER, J. Revelação e Tradição. Disponível em: <https://pt.scribd.com/


doc/93433877/revelacao-e-tradicao-joseph-ratzinger>. Acesso em: 30 out. 2017.

OBJETIVOS
•  Conhecer os modos pelos quais se opera a Revelação Divina;
•  Analisar de que maneira se opera a relação entre revelação e história.

Os modos da Revelação Divina

A Transcendência Divina mostra-se sempre como uma característica de auten-


ticidade do evento revelatório, pois, impede que este evento represente uma sorte
de manipulação humana do Divino.
Além disso, a natureza transcendental da Revelação por sua irredubilidade
pertence à universalidade de eventos humanos.
É o que se lê em Is 55, 8-917, quando Deus se dirige a Israel e lhe recorda a
sua ‘superioridade’, isto é, a mensagem entregue pelos Profetas a Israel é autêntica.

17  ‘Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos,
diz o Senhor. Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que
os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos’ Cf. <http://bibliaportugues.
com/jfa/isaiah/55.htm>. Acesso em: 01 de novembro de 2017.

capítulo 3 • 69
E, por outro lado, a mediação histórica, a objetivação concreta desta experiência so-
brenaturalmente transcendental que ocorre na história considerada em seu conjunto.
(A voluntária reflexão teológica do indivíduo também pertence a esta história, mas
não a cria primariamente nem a forma). A experiência transcendental referida chama-
se, usualmente, história da Revelação, quando ela é realmente história da verdadeira
exposição desta experiência sobrenatural e transcendental e não a sua contrafação.

RAHNER, K. e RATZINGER, J. Revelação e Tradição. Disponível em: <https://pt.scribd.com/


doc/93433877/revelacao-e-tradicao-joseph-ratzinger>. Acesso em: 30 out. 2017.

Deus se mostra também como quem quer ser visto e absorvido por nossa
consciência e, portanto, de certa maneira, tornar-se ‘Objeto’ de nossa linguagem.
O que Ele ‘diz’ sobre Si mesmo vale para nós, e podemos atribuir-lhe como algo
de sua Identidade.
Ou como afirma Rahner: ‘a objetivação concreta desta experiência sobrenatural-
mente transcendental’. A História (da Salvação) é assim uma modalidade de campo
de referência para a Revelação Divina, pois estabelece o ambiente possível da cons-
ciência humana, que recebe e acolhe a Palavra Divina.
Por isso, as tradições religiosas ao longo da história através de processos de
recepção e de interpretação irão tornar a revelação um processo vivo e ativo ao
longo da história. Por isso, é importante entender ou ao menos caracterizar a
compreensão da revelação ao longo dos séculos nas diversas tradições teológicas.
Disto se conclui que a História e a Tradição se entrelaçam como campos nos
quais Deus se auto-manifesta aos homens em todos tempos. Sendo assim, exami-
nemos como a teologia entende estas relações.
Primeiramente analisaremos as relações ente a Revelação especial e a história,
que por isso mesmo vem denominada, ‘História da Salvação.

A história e a Revelação especial

O Concílio Vaticano II18, reunião máxima da Igreja desde o Concílio de


Jerusalém, em que Pedro e Paulo se encontraram (At 15), foi celebrado nos anos
18  “O Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convocado no dia 25 de dezembro
de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo Papa João XXIII. Este mesmo Papa inaugurou-o, a ritmo
extraordinário, no dia 11 de outubro de 1962. O Concílio, realizado em 4 sessões, só terminou no dia 8 de dezembro
de 1965, já sob o papado de Paulo VI. Nestas quatro sessões, mais de 2 000 Prelados convocados de todo o planeta
discutiram e regulamentaram vários temas da Igreja Católica. As suas decisões estão expressas nas 4 constituições, 9
decretos e 3 declarações elaboradas e aprovadas pelo Concílio. Em 1995, o Papa João Paulo II classificou o Concílio
Vaticano II como "um momento de reflexão global da Igreja sobre si mesma e sobre as suas relações com o mundo".
Ele acrescentou também que esta "reflexão global" impelia a Igreja "a uma fidelidade cada vez maior ao seu Senhor.
Mas o impulso vinha também das grandes mudanças do mundo contemporâneo, que, como “sinais dos tempos”,

capítulo 3 • 70
60 do século passado e colocou algumas questões centrais sobre as relações entre
a Revelação Divina e a História humana, como um dos seus suportes que vale a
pena examinar:

Aprouve a Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer


o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo,
Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da
natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível
(cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr.
Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir
à comunhão com Ele. Esta «economia» da revelação realiza-se por meio de ações e
palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas
por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades
significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem
o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como
a respeito da salvação dos homens, manifestasse-nos, por esta revelação, em Cristo,
que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação.

Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Conc%C3%ADlio_Vaticano_II>. Acesso


em: 12 fev. 2018.

A primeira parte do texto, sobre a revelação especial já tivemos ocasião de


abordar, no capítulo anterior. Aqui nos cabe avaliar a partir dos seus fundamentos
bíblicos e teológicos a natureza da histórica da revelação!
Eis o axioma teológico19 que se infere dos textos bíblicos, como narrativas
desta extraordinária ação de Deus:

Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do
seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com
eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com Ele.

exigiam ser decifradas à luz da Palavra de Deus". No ano 2000, João Paulo II disse ainda que: "o Concílio Vaticano
II constituiu uma dádiva do Espírito à sua Igreja. É por este motivo que permanece como um evento fundamental
não só para compreender a história da Igreja no fim do século, mas também, e, sobretudo, para verificar a presença
permanente do Ressuscitado ao lado da sua Esposa no meio das vicissitudes do mundo. Mediante a Assembleia
conciliar, [...] pôde-se constatar que o património de dois mil anos de fé se conservou na sua originalidade autêntica".
Todos os concílios católicos são nomeados segundo o local onde se deu o concílio episcopal. A numeração indica a
quantidade de concílios que se deram em tal localidade. Vaticano II portanto, indica que o concílio ocorreu na cidade-
Estado do Vaticano, e o número dois indica que foi o segundo concílio realizado nesta localidade. Os concílios, que
são reuniões de dignidades eclesiásticas e de teólogos, são um esforço comum da Igreja, ou parte da Igreja, para
a sua própria preservação e defesa, ou guarda e clareza da Fé e da doutrina”. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Conc%C3%ADlio_Vaticano_II>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2018.
19  ‘Axiomas são verdades inquestionáveis universalmente válidas, muitas vezes utilizadas como princípios
na construção de uma teoria ou como base para uma argumentação. A palavra axioma deriva da grega axios,
cujo significado é digno ou válido. Em muitos contextos, axioma é sinónimo de postulado, lei ou princípio’. Cf.
<https://www.significados.com.br/axioma/>. Acesso em: 12 de fevereiro de 2018.

capítulo 3 • 71
O que o texto nos diz?
Primeiro que o modo da revelação exprime a intenção divina de ‘conviver’
com os seres humanos.
Esta expressão pode parecer banal, mas sua verdadeira compreensão se origina
do desastre da perda do Paraíso, como nos relata o livro do Gênesis, no capítulo 3:

O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado.
E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada
inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida (Gn 3, 23-24).

Isto mesmo, aqui se trata do fato que após ou em consequência do ‘pecado


original20’ perdemos o acesso a Deus e fomos ‘expulsos’ de sua Presença, que,
aliás, como afirma o amargo diálogo dos vv.8-10, tornara-se motivo de medo e
de escondimento:

E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e escon-
deram-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim.
E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz
soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me (Gn 3, 8-10).

Falar aos homens, como amigos, era algo impensável nas circunstâncias do
pecado, mas ocorreu exclusivamente em virtude da Natureza amorosa de Deus.
A revelação por isso pode ser entendida como um supremo gesto amoroso na
nossa direção, uma declaração de amor de Deus aos Homens, como lemos em Jo
3, 16: ‘Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para
que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna’.
Mas, mesmo no mais profundo antigo Testamento abundam declarações de
amor divino ao Povo de Israel21 entre outros:

20  ‘O pecado original é o que chamamos o primeiro pecado cometido por Adão e Eva, que separou a humanidade
de Deus. Todos nós somos pecadores por causa desse primeiro pecado. Mas Jesus veio para nos libertar do pecado
e restaurar nosso relacionamento com Deus’. Cf. <https://www.respostas.com.br/o-que-e-o-pecado-original/>.
Acesso em: 20 de fevereiro 2018.
21  “Com amor eterno eu te amei” é declaração que algumas vezes ocorre nas Escrituras: Dt 4,37; 10,15; Jr 31,3;
Sf 3,17; Ml 1,2. – “Eterno” quer dizer “sem começo e sem fim, indefectível, porque os dons de chamado de Deus são
sem arrependimento” (Rm 1,29) discover here. Tal afirmação ocorre não raro quando o Senhor quer consolar seu
povo depois de uma tribulação devida aos pecados de Israel. Cf. <http://www.materecclesiae.com.br/com-amor-
eterno-eu-te-amei-jr-313/>. Acesso em: 01 de março de 2018.

capítulo 3 • 72
O Senhor não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era
mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos
os povos; Mas, porque o Senhor vos amava, e para guardar o juramento que fizera a
vossos pais, o Senhor vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da
mão de Faraó, rei do Egito (Dt 7, 7-8).

Segundo o teólogo Estevão Bettencourt o conceito, a prática ou a demonstra-


ção do amor verdadeiro descrevem ação de Deus e circunscrevem seu Ser Divino:

Ao falar de Deus Amor, tocamos o âmago da mensagem bíblica, única entre as mensa-
gens religiosas da humanidade; requer a coragem de professar que Deus primeiro nos
amou, e nos amou quando éramos ingratos e rebeldes. Platão julgava que a Divindade
nem sequer respondia ao amor do homem, porque ela nada teria a ganhar com isso;
portanto, se houve alguma atitude de amor para com a Divindade, nunca houve a recí-
proca segundo o mesmo. Ora foi precisamente sobre este pano de fundo que ressoou
a pregação evangélica; esta só pode ter tido origem no próprio Deus, que assim se
revela, e não na mente do homem, por mais religioso que fosse. A singularidade do
Cristianismo está nesta afirmação de que Deus é o primeiro a nos amar.

Cf. <http://www.materecclesiae.com.br/com-amor-eterno-eu-te-amei-jr-313/>.
Acesso 01 de março de 2018.

Num segundo momento chegamos ao termo principal. A história é o campo


decidido por Deus para encontrar-se com os seres humanos:

Esta economia da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente rela-
cionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salva-
ção, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as
palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido (DV 2).

A história humana nosso ambiente exclusivo, por sermos medidos sempre nas
coordenadas de tempo e espaço, não existe significação humana sem as coordenadas.
A comunicação de nós mesmos, como seres sociáveis se dá na história e a constitui.
Paul Ricoeur22 foi um filósofo e teólogo do século XX (1913-2005) que tratou
em diversas situações do tema da história, sob o ponto de vista de fenomenologia:
22  ‘Paul Ricœur nasceu numa família protestante. Órfão de mãe, que morre pouco depois de seu nascimento,
perdeu o pai na batalha de Marne, em 1915, e foi criado por sua tia. Em 1936, licenciado em filosofia, criou a revista
Être, inspirada nos preceitos de Karl Barth, teólogo cristão suíço. Em 1939, servindo como oficial de reserva, Ricœur
foi preso pelos nazistas e enviado ao campo de Groß Born e depois a Arnswalde, na Pomerânia, atualmente Polônia.

capítulo 3 • 73
Fenomenologia é o estudo de um conjunto de fenômenos e como se manifestam, seja
através do tempo ou do espaço. É uma matéria que consiste em estudar a essência
das coisas e como são percebidas no mundo. A palavra fenomenologia surgiu a partir
do grego phainesthai, que significa "aquilo que se apresenta ou que se mostra", e
logos é um sufixo que quer dizer "explicação" ou "estudo". Na psicologia, a fenomeno-
logia baseia-se em um método que busca entender a vivência dos pacientes no mundo
em que vivem, além de compreender como esses pacientes percebem o mundo a sua

No pós-guerra foi acadêmico na Universidade da Sorbonne. Passou também pelas universidades de Louvaina
(Bélgica) e Yale (EUA), onde elaborou uma importante obra de filosofia política. Ricœur participou em debates
sobre linguística, psicanálise, o estruturalismo e a hermenêutica, com um interesse particular pelos textos sagrados
do cristianismo. Ricœur descreve assim, em 1991, suas raízes filosóficas: "Se reflito, dando um passo para trás de
meio século [...], sobre as influências que reconheço ter sofrido, sou grato por ter sido desde o início solicitado por
forças contrárias e fidelidades opostas: de uma parte, Gabriel Marcel, ao qual acrescento Emmanuel Mounier; de
outra, Edmund Husserl". Portanto, Ricoeur forma-se em contato com as ideias do existencialismo, do personalismo e
da fenomenologia. Suas obras importantes são: A filosofia da vontade (primeira parte: O voluntário e o involuntário,
1950; segunda parte: Finitude e culpa, 1960, em dois volumes: O homem falível e A simbólica do mal). De 1969 é
O conflito das interpretações. Em 1975 apareceu A metáfora viva. Em O voluntário e o involuntário, Ricœur dirige
a atenção para a relação recíproca entre voluntário e involuntário, assim como esta relação se configura na tríplice
dimensão do decidir, do agir e do consentir. Em poucas palavras, necessidades, emoções e hábitos premem sobre
o querer, que replica a eles, por meio da escolha, do esforço e do consentimento. Escreve Ricœur: "Eu suporto
este corpo que governo". Descendo ainda mais em profundidade no interior da existência humana, Ricœur vê que
o homem concreto é vontade falível e, portanto, capaz de mal. A antropologia de Ricœur delineia um homem frágil,
"desproporcionado", sempre à beira do abismo entre o bem e o mal. A fim de entender o mal e a culpa, o filósofo
deve ouvir e interpretar os símbolos que representam a confissão que a humanidade fez de suas culpas; ou seja, deve
compreender os mitos que veiculam símbolos como a mancha, o pecado, a culpabilidade etc. E, entre esses mitos,
central, no pensamento de Ricœur, é o mito de Adão: a figura de Adão mostra a universalidade do mal enquanto
Adão representa toda a humanidade. Eis, a propósito, um pensamento do próprio Ricœur (1983): "Se a pessoa voltar,
isso se dará porque ela continua o melhor candidato para sustentar as batalhas jurídicas, políticas, econômicas e
sociais". A problemática da simbólica do mal leva Ricœur ao tema da linguagem, ou melhor, ao projeto da construção
de uma grande filosofia da linguagem - projeto que encontra seus inícios num escrito sobre Freud: Da interpretação.
Ensaio sobre Freud (1965). A psicanálise interpreta a cultura e simultaneamente a modifica, assim como marca de
forma duradoura a própria ideia de consciência. A realidade é que Freud, junto com Marx e Nietzsche, é um dos três
mestres da suspeita, que levaram a dúvida para dentro da fortaleza cartesiana da consciência: para Marx, não é a
consciência que determina o ser, mas é o ser social que determina a consciência; • para Nietzsche, a consciência é a
máscara da vontade de poder; • para Freud, finalmente, o Eu é um infeliz submisso aos três patrões que são o "Isso", o
"Super-eu" e a "Realidade" ou "Necessidade". A humanidade objetiva nos símbolos, nas diversas formas simbólicas,
os significados e os momentos mais importantes da vida e de sua história. Daí - se quisermos compreender o
homem - a necessidade da interpretação. E justamente a multiplicidade de modelos interpretativos em conflito torna
urgente um escrupuloso trabalho que, enquanto de um lado bloqueia as pretensões totalizantes das interpretações
particulares, de outro lado dá razão do efetivo, embora limitado, valor de tais interpretações particulares. Mais em
particular, será necessário pesquisar, nos símbolos, o vetor arqueológico e o teleológico, ou seja, as razões de suas
raízes no passado e as motivações que os tornam úteis ou necessários para o futuro’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/
wiki/Paul_Ric%C5%93ur>. Acesso em: 02 de março de 2018.

capítulo 3 • 74
volta. O conceito da fenomenologia foi criado pelo filósofo Edmund Husserl (1859-
1938), que também trabalhava como matemático, cientista, pesquisador e professor
das faculdades de Göttingen e Freiburg im Breisgau, na Alemanha*.

* Fenomenologia (do grego phainesthai - aquilo que se apresenta ou que mostra - e logos
explicação, estudo) é uma metodologia e corrente filosófica que afirma a importância dos fenô-
menos da consciência, os quais devem ser estudados em si mesmos – tudo que podemos saber
do mundo resume-se a esses fenômenos, a esses objetos ideais que existem na mente, cada
um designado por uma palavra que representa a sua essência, sua "significação". Os objetos da
Fenomenologia são dados absolutos apreendidos em intuição pura, com o propósito de descobrir
estruturas essenciais dos atos (noesis) e as entidades objetivas que correspondem a elas (noe-
ma)’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fenomenologia>. Acesso em: 02 mar. 2018.

Ele foi também o mestre da hermenêutica no século XX:

Hermenêutica é uma palavra com origem grega e significa a arte ou técnica de in-
terpretar e explicar um texto ou discurso. O seu sentido original estava relacionado
com a Bíblia, sendo que neste caso consistia na compreensão das Escrituras, para
compreender o sentido das palavras de Deus. Hermenêutica também está presente na
filosofia e na área jurídica, cada uma com seu significado. Segundo a filosofia, a her-
menêutica aborda duas vertentes: a epistemológica, com a interpretação de textos e a
ontológica, que remete para a interpretação de uma realidade. Etimologicamente, a pa-
lavra está relacionada com o deus grego Hermes, que era um dos deuses da oratória.

Fonte: <https://www.significados.com.br/hermeneutica/>. Acesso em: 02 março 2018.

Em particular como teólogo protestante soube atrair para seus estudos a di-
mensão bíblica da hermenêutica, isto é: Hermenêutica na Bíblia é a arte que estu-
da as escrituras, o que cada palavra, frase e capítulos significam: “Existem muitos
textos na Bíblia difíceis de compreender, por isso a hermenêutica faz-se essencial para
as pessoas que não têm muito conhecimento das palavras e dos símbolos”.23

CONEXÃO
Assista ao Seminário de Hermeneutica Filosófica com Paul Ricoeur!
<https://www.youtube.com/watch?v=TkrKkywDlwk>.

23  <https://www.significados.com.br/hermeneutica/>. Acesso em: 02 de março de 2018.

capítulo 3 • 75
E por que Ricouer entre outros aplicou a fenomenologia ao estudo da histó-
ria? E por que isso nos interessa?
Partamos desta afirmação: ‘É uma matéria que consiste em estudar a essência das
coisas e como são percebidas no mundo’. O estudo da essência das coisas. A fenome-
nologia tentou vencer o impasse entre o conhecimento da essência, a coisa como
ela é, a interioridade das coisas e a percepção da aparência.
Por trás desta estratégia epistemológica (científica) esconde-se a intenção de
demonstrar que a experiência de revelação especial se funda numa possibilidade.
A história pode ser entendida como este campo da ação e da percepção própria de
Deus entre nós. Deus percebido no mundo, isto é, entre o factual e a consciência.
Por isso, é importante reiterar o conceito de História da Salvação.

História da salvação: um conceito prévio à Revelação?

Deus amantíssimo, desejando e preparando com solicitude a salvação de todo o gé-


nero humano, escolheu por especial providência um povo a quem confiar as suas pro-
messas. Tendo estabelecido aliança com Abraão (cfr. Gén. 15,18), e com o povo de
Israel por meio de Moisés (cfr. Ex. 24,8), revelou-se ao Povo escolhido como único
Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de tal modo que Israel pudesse conhecer
por experiência os planos de Deus sobre os homens, os compreendesse cada vez mais
profunda e claramente, ouvindo o mesmo Deus falar por boca dos profetas, e os difun-
disse mais amplamente entre os homens (cfr. Salm. 21, 28-29; 95, 1-3; Is. 2, 1-4; Jer.
3,17). A economia da salvação de antemão anunciada, narrada e explicada pelos auto-
res sagrados, encontra-se nos livros do Antigo Testamento como verdadeira palavra de
Deus. Por isso, estes livros divinamente inspirados conservam um valor perene: Tudo
quanto está escrito, para nossa instrução está escrito, para que, por meio da paciência
e consolação que nos vem da Escritura, tenhamos esperança (Rom. 15,4) (DV 14).

Alguns teólogos têm-se debruçado sobre a temática das relações entre Deus
que se dá conhecer a história humana.
Isto é, como estabelecer parâmetros entre a revelação divina, como experiência
transcendente e a realidade humana da história (imanência)?
Vejamos o que nos diz WERBICK, Jürgen24 em seu artigo sobre esta questão.
O mesmo tempo, em outra chave de leitura, vem tratado por LACOSTE, J.-Yves25.
24  História/Agir de Deus. In: EICHER, P. Dicionário de Conceitos Fundamentais de Teologia. Petrópolis: Vozes,
1993, p. 351-361.
25  História. In: LACOSTE, J.-Yves. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas e Loyola, 2004, p. 834-
839.

capítulo 3 • 76
CONEXÃO
Veja este vídeo do Luiz Felipe Pondé, o filósofo, sobre as relações entre tempo e religião.
Ele chama tempo sagrado e profano.
<https://www.youtube.com/watch?v=eJdkPlaKdWg&t=70s>. Acesso em: 08 de mar-
ço de 2018.

Deus e história: a crise moderna

A referência de Deus à história é considerada tema específico da experiência de Deus


e da teologia no âmbito judaico-cristão. O Deus de Israel e de Jesus Cristo revela-se
na história e age nela. Sabemos quem é Deus partindo dos “grandes atos” com que
Deus “dirige a história do seu Povo” (WERBICK, 1993, p. 351).

Esta afirmação, base e pressuposto do desenvolvimento da teologia, passou no


século XX, por uma longa reflexão. Uma onda crítica fará uma revisão dos elemen-
tos até então saldos que Deus e a história humana estavam entrelaçados por graus
seguros de relacionamento.
O pressuposto desta discussão no século XX é anterior a ele. Trata-se do ‘mé-
todo histórico-crítico’:

O método histórico, também chamado de método crítico ou crítica histórica, compreen-


de duas operações, a saber: análise e síntese. A Análise compreende, por sua vez, qua-
tro operações: a heurística, as críticas interna e externa, e a hermenêutica. Heurística
é a operação pela qual se procede a recolha das fontes de informação necessárias à
análise histórica. Crítica, onde se avalia a validade ou não das versões contraditórias.
É o mais complexo. Hermenêutica é a operação pela qual se procede a interpretação
dos documentos em termos de se saber em que medida as informações fornecidas
por estes responde a questões inicialmente levantadas.

Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo_hist%C3%B3rico>.
Acesso em: 5 mar. 2018.

capítulo 3 • 77
O problema desta relação tornou-se impossível a partir do momento em que a
história na sua concepção moderna é entendida como ‘domínio humano’, história
é a perspectiva antropológica do tempo, segundo este método, única capaz de
representar a narratividade histórica do tempo:

O método histórico-crítico entendeu a história desde o início como história dos ho-
mens, que na história se constituem o seu sujeito, uma vez que se apresentam nela
como sujeitos e como configurantes das relações históricas (WERBICK, 1993, p. 352).

Este modo de ver a história como espaço antropológico exclusivo, baseado


numa perspectiva do sujeito, típica configuração moderna, passará também por
uma contraposição, aquela dos sistemas hermenêuticos que tentará superar a visão
subjetiva da história.
Sobre a mentalidade dita moderna, aquele período que sucede o espaço me-
dieval, localizado tradicionalmente após a Reforma protestante, ou sob o signo
material, com as grandes navegações e o novo mapa colonial do século XVI, muito
já escreveu, mas alguns pontos ainda são fundamentais.
A sociedade moderna é complexa desde a sua origem. Surgiu de debates e
discussões entre vários pensadores e projetos, de diversas propostas ideológicas e
pelo inevitável caminhar do tempo histórico.
Desde a Revolução Francesa são promovidos debates em diversas áreas sobre o
que é o tempo em que se vive, denominado de moderno, e como é o sujeito fruto
de seu período histórico.
Acreditou-se que esse homem, fruto de lutas históricas e sociais, seria um novo
ser, livre, emancipado das amarras religiosas, econômicas, ideológicas, sociais, fa-
miliares, capaz de se autogerir, tornando-se o condutor de sua história.
O que nos faz modernos?
O mercado, a economia, a educação, a liberdade? Que liberdade é essa que não
livrou o sujeito moderno de antigas amarras, anteriormente abominadas? E que
emancipação é essa que, em busca de um bem e de uma verdade, foi capaz de gerar
grandes catástrofes históricas ao longo do século XX? (COLOMBO, 2013, p. 25)
A Modernidade cartesiana, no século XVI aplicava ao ‘sujeito’ o conceito de-
finidor de um novo tempo, de uma nova maneira de entender e agir no mundo,
seria daquele momento em diante uma chave hermenêutica que possibilitaria no-
vos horizontes (diversos daqueles ‘Medievais’) à humanidade.

capítulo 3 • 78
Era o grito do ‘Cogito, ergo sum’.

"Penso, logo existo" é uma frase icônica dita pelo filósofo francês René
Descartes, que marcou a visão do movimento Iluminista, colocando a razão huma-
na como única forma de existência. René Descartes (1596 – 1650), considerado o
fundador da filosofia moderna, chegou a conclusão desta célebre frase enquanto bus-
cava traçar uma metodologia para definir o que seria o “verdadeiro conhecimento”.
O filósofo e matemático desejava obter o conhecimento absoluto, irrefutável e inques-
tionável. Mesmo tendo frequentado as melhores universidades da Europa, Descartes
achava que não tinha aprendido nada de substancial (com exceção da matemática)
em seus estudos. Todas as teorias científicas acabavam por ser refutáveis e substituídas
por outras, não havia nenhuma certeza verdadeira além da dúvida. Descartes, então,
passou a duvidar de tudo, inclusive da sua própria existência e do mundo que o ro-
deava. No entanto, Descartes encontrou algo que não poderia duvidar: a dúvida. De
acordo com o pensamento do filósofo, ao duvidar de algo já estaria pensando e, por
estar duvidando, logo pensando, estaria existindo. Descartes entendeu que ao duvidar,
estava pensando, e por estar pensando, ele existia. Desta forma, a sua existência foi a
primeira verdade irrefutável que ele encontrou. Assim, Descartes publicou em seu livro
“O Discurso do Método”, publicado em 1637, o resumo de seu pensamento na frase:
je pense, donc je suis (publicação original em francês), que depois foi traduzida para
o latim Ego cogito, ergo sum sive existo. Apesar disso, em latim esta frase é traduzida
apenas como cogito ergo sum26.
26  <https://www.significados.com.br/penso-logo-existo/>.

capítulo 3 • 79
Em outros termos, um dos universais da modernidade ocidental é a suposição
dominante de que o homem, em sua subjetividade, na sua constituição mais ínti-
ma, é o centro e o fundamento do mundo:

Ao longo dos tempos, construiu-se a expectativa de cultivo e respeito à interioridade,


através da proteção da privacidade e instituiu-se uma nítida separação entre as esfe-
ras públicas e privadas da vida. No entanto, esse processo de constituição da subjeti-
vidade moderna foi longo e continua sofrendo modificações intensas até a atualidade
(MANCEBO, 2002, p. 100).

Mas este processo tão complexo nunca foi linear, houve em seu percurso, di-
versas ‘nuances’, que às vezes significaram discordâncias, outras vezes, diversidades.
Este ‘projeto civilizatório’ da modernidade que está em plena crise, na opi-
nião de diversos autores, tem como ingredientes principais os conceitos de uni-
versalidade, individualidade e autonomia. A universalidade significa ‘que ele visa
todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais’
(ROAUNET, 2009, p. 9).
A individualidade significa ‘que esses seres são considerados como pessoas
concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético
à sua crescente individualização’ (ROAUNET, 2009, p. 9).
A autonomia significa ‘que esses seres humanos individualizados são aptos a
pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião, ou da ideologia, a agirem no
espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à
sobrevivência material’ (ROAUNET, 2009, p. 9).
Mas, segundo a maioria da percepção dos autores, a partir do século XX o
projeto civilizatório organizado em torno desta tríade conceptual, está em plena
derrocada para alguns, ou em transformação, para outros.
Com a gênesis deste projeto civilizatório, dito moderno, surgem, na mesma
Europa, em particular no século XVIII em diante, diversas frentes reativas, nas
artes, na literatura, na Filosofia que buscaram desarticular a hegemonia das pre-
missas do ‘espírito moderno’
Em muitos setores significativos, mudou apreciavelmente o tom e a substância
do discurso sociológico sobre o passado, o presente e o futuro da cultura em geral,
sobre as instituições, o conteúdo das aspirações e relações individuais, e também
sobre a matéria e a organização da ciência, da tecnologia e da epistemologia.
O discurso da sociedade pós-moderna e, correspondentemente, os fenômenos
de suporte intelectual e social oferecem algum crédito para os argumentos de que

capítulo 3 • 80
o mundo de hoje e os prospectos de amanhã estão em contraste radical, e mesmo
em assimetria, com o mundo dos últimos dois séculos e meio:
Primeiro, é necessário identificar os domínios específicos nos quais as alega-
ções pós-modernas diferem das noções dominantes da representação moderna da
sociedade e da ciência.
Quais são as maneiras pelas quais a pós-modernidade forja conceitos substi-
tutos e repudia conceitos da modernidade ou, de modo alternativo, até que grau
procura-se construí-los em vista das recentes mudanças cognitivas, tecnológi-
cas e sociais, mesmo se situando, todavia, no interior do quadro referencial da
modernidade?
Segundo, o que constitui a mensagem fundamental, cultural e cognitiva, da
pós-modernidade?

Em que tal mensagem rompe autenticamente com a modernidade e onde ela procu-
ra distintamente destruir os próprios fundamentos do pensamento da modernidade?
Quais são as implicações putativas para a ciência, a tecnologia e a própria epistemo-
logia? (SHINN, 2008, p. 43).

Finalmente, propor-se-á aqui uma alternativa à análise pós-moderna, uma al-


ternativa que depende de características básicas do pensamento moderno e que,
entretanto, incorpora eventos que transformaram inegavelmente o homem, a
máquina, o material e a epistemologia nas últimas décadas e que, desse modo,
redesenha o mapa da modernidade especificando as componentes e os modos de
interação e extensão alternativos.
Essa hipótese pode ser vista como uma ponte entre a modernidade clássica e a
pós-modernidade, e também como um desvio em relação a estas.
Essa linha de pensamento pode ser por ora, grosseiramente rotulada de
"pós-pós-modernidade".

A hipótese está baseada em uma "matriz de entrelaçamento", a qual mobiliza três no-
ções fundamentais que são fortemente informadas pela experiência contemporânea
na ciência e na tecnologia, embora não exclusivamente por esses domínios. O lugar
central atribuído aqui ao conhecimento e à epistemologia não é despropositado, em
vista de sua primazia no fluxo da ação hodierna (SHINN, 2008, p. 43).

capítulo 3 • 81
Se analisarmos à luz destas premissas o quadro de sustentabilidade da ‘moder-
nidade’, observarmos em relação a cada elemento desta suposta tríade de conceitos
do ideário modernos a seguinte situação, como se expressa, Rouanet (2001, p. 10):

O universalismo está sendo sabotado por uma proliferação de particularismos – na-


cionais, culturais, raciais, religiosos (...) A individualidade submerge cada vez mais no
anonimato do conformismo e da sociedade de consumo (....) A autonomia intelectual,
baseada na visão secular do mundo, está sendo explodida pelo reencantamento do
mundo (...)

Em suma, no Brasil e no mundo, o projeto da modernidade entrou em colapso.


Depois deste percurso da crise da modernidade e, portanto de suas represen-
tações e crenças, entre elas, aquela da História, como âmbito exclusivo do sujeito,
a ‘pós-modernidade’ aposta em sistemas explicativos, a partir de noção de plausi-
bilidades, isto é, uma visão mais alargada de construção de explicações dos nexos
possíveis que constituiriam a explicação histórica como uma sucessão de explica-
ções baseadas em ‘condições históricas’ criadas por diversas circunstâncias e que
geram ‘consequências’, isso seria o jogo da história:

A história como sistema aberto de consequência ou respectivamente como ação re-


cíproca de tais sistemas abertos, ela reconstruirá, assim, as relações de condiciona-
mento-consequência sempre mais cuidadosamente como “enredamento” dos mais
diversos fatores, e precisamente por isto, rejeita interferência e influxos divinos como
categorias estranhas à ciência da história (WERBICK, 1993, p. 352).

O conceito antropológico de ‘sujeito da história’ impede, portanto, quaisquer


hipóteses de uma atuação de Deus na história. Os modernos dirão, por fim que
Deus criou o relógio, de corda e depois saiu de cena.
Neste momento de aporia e impasse, não seria bom revisitarmos o modelo
historiográfico judaico-cristão?

A perspectiva judaico-cristã da história: o testemunho da fé.

O testemunho da fé de Israel acha-se determinado historicamente e que realiza sua


vontade na história. Segundo este testemunho de fé, Javé se deu a conhecer a eles
pela experiência da eleição e da libertação prodigiosa do Povo de sua propriedade
(WERBICK, 1993, p. 352).

capítulo 3 • 82
No epicentro desta experiência do Deserto está uma Mensagem Divina a
Israel: A Fidelidade de Deus, como Deus único e verdadeiro (Vós tendes visto o que
fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e vos trouxe a mim).
A teologia profética que está por trás destes textos, projetando no passado
mais antigo de Israel toda a evolução da espiritualidade monoteísta judaica, irá
insistir firmemente nisso: Nunca houve outras divindades! A História da Salvação
(de Israel) é o testemunho fidedigno da EXCLUSIVA Salvação do Deus de Israel!
Israel deverá evoluir do ‘Henoteísmo’ 27, a crença em Deus, como principal
ou exclusivo, mas considerando a existência de outros, para o Monoteísmo28, fé e
adesão a Deus como único no Universo. Apartando-se também, obviamente do
Politeísmo29, a crença na existência de muitos deuses.
Dois elementos fundamentais da religião de Israel são apresentados como ca-
racterísticos da Religião da Aliança:
•  Ouvir a voz de Deus, sinônimo de obediência, de oração sincera, de disposi-
ção em seguir e cumprir a Vontade expressa de Deus. Este será o leitmotiv, isto é,
o tema que se repete e se renova na consciência religiosa de Israel, escuta a Deus,
segue seus mandamentos e preceitos!;
•  Guardar a minha Aliança significa viver e pautar-se (pessoal e socialmente)
pelas determinações do Decálogo. Não se deixar seduzir pelos ídolos e práticas
dos pagãos.

Tudo isso não é sem consequências: viver sob a luz das promessas e exigências
de Deus muda a vida humana. Purifica e liberta o verdadeiro significado da Vida
Humana! Assim, corresponde à adesão da Aliança viver plenamente sob o Amor
Divino, com os privilégios da eleição:

Então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra
é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo (Ex 19, 5-6).

27  ‘Henoteísmo (do grego hen theos, "um deus") é o culto de um único deus sem se negar a existência de outras
divindades’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Henote%C3%ADsmo>.
28  ‘O Monoteísmo (do grego: μóνος, transl. mónos, "único", e θεóς, transl. théos, "deus": único deus) é a crença
na existência de apenas um deus.[1] Diferencia-se do henoteísmo por ser este a crença preferencial em um deus
reconhecido entre muitos’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Monote%C3%ADsmo>.
29  ‘O Politeísmo (do grego: polis, muitos, Théos, deus: muitos deuses) no crivo bíblico consiste na crença e
subsequente adoração a mais do que uma divindade de gênero masculino, feminino ou indefinido, sendo que cada
uma é considerada uma entidade individual e independente com uma personalidade e vontade próprias, governando
sobre diversas atividades, áreas, objetos, instituições, elementos naturais e mesmo relações humanas. Ainda em
relação às suas esferas de influência, de notar que nem sempre estas se encontram claramente diferenciadas,
podendo naturalmente haver uma sobreposição de funções de várias divindades’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Polite%C3%ADsmo>.

capítulo 3 • 83
No livro do Deuteronômio encontraremos este tema da vocação de Israel,
como ‘propriedade de Deus’, e por isso, defendido por Deus, como tesouro. Isto é,
pelo amor à Aliança Israel usufrui da proteção e da Graça divinas.
‘E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo’.
Além disso, Israel é elevado de simples cumpridor de leis para a obtenção de be-
nefícios, às alturas de uma sociedade sacral, uma forma comunitária que exprime em
sua estrutura social os efeitos da Graça e da redenção que vem pela Aliança de Deus.

a) O Decálogo (Ex 20): Salvação e conhecimento de Deus

Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor teu Deus, que te
tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim
(Ex 20, 1-3).

Para entendermos bem o ‘Decálogo’ é necessário manter-se dentro de duas


lógicas inseparáveis: a Salvação do pecado (Gn 3) e a Revelação de Deus (Gn 12).
Senão encontramo-nos como os fariseus e doutores da lei, reprovados per-
manentemente por Jesus. Uma lei que não inspirava à santidade e a excitar-se ao
verdadeiro Conhecimento de Deus, tornava-se um legalismo estéril e hipócrita.
‘Então falou Deus todas estas palavras’ tudo que leremos nesta unidade, não
representa o que Moisés pensa ou proponha ao Povo. O Decálogo sai da ‘boa de
Deus’, é a mais alta materialização de sua Vontade, em vista de nossa Salvação.
Sendo código legal, instaura a ordem divina no meio de Israel. Deus implanta
um ‘éthos’ que lhe agrada e recupera em nós os princípios da santidade, isto é, da
semelhança divina nas criaturas humanas, constituindo assim o verdadeiro Povo
de Deus, por suas relações sociais sancionadas por Deus.
Se observarmos bem, o Decálogo exposto entre os vv. 2-26, pode ser dividido
em duas partes:
•  A primeira parte, entre os vv. 2- 11 é nitidamente teológica, isto é, refere-se
aos direitos inalienáveis de Deus, que, se não são reconhecidos obstaculizam rela-
ções verdadeiras entre Deus e seu Povo.

capítulo 3 • 84
A Fidelidade a Deus se vive no cumprimento do direito Divino e no reconhe-
cimento do lugar central de Deus na vida da comunidade escolhida por Ele neste
mundo. O conhecimento e a prática destes mandamentos representam a primeira
catequese judaica acerca de Deus e seus ‘direitos’ de Aliança sobre nós!
•  A segunda parte, entre os vv. 12-26 explora os aspectos comunitários da Lei
de Deus. O Decálogo define uma silhueta social da Fé.
A ética que vem esculpida pelos mandamentos vividos entre os membros do
Povo Israel servirá de reconhecimento recíproco entre os membros do Povo de
Deus, forjando assim, fortemente sua Identidade nacional.
Ao mesmo tempo, servirá de instrumento de comunicação de Deus aos povos
com os quais em diversas circunstâncias, Israel deverá se encontrar, livre ou força-
damente (exílios).

b) Direitos de Deus: Ex 19, 2-11!

Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima
nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás
a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a ini-
quidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.
E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus manda-
mentos. Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá
por inocente o que tomar o seu nome em vão (Ex 20, 4-7).

O primeiro tema exposto pelo Decálogo é a exclusividade de Deus no centro


da consciência judaica. Esta temática, na redação do texto, obviamente tem a in-
fluência da teologia profética da corrente deuteronomista.
O fim da ‘idolatria’, isto é, da religião infiel ao Único Deus verdadeiro no
meio de Israel, foi um programa bem preciso para a grande profecia judaica que
relê e radicaliza os significados dos dias fundadores do deserto, na experiência da
Aliança do Sinai!

‘Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima
nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra’.

capítulo 3 • 85
Este versículo constitui a base de uma convicção teológica e estética do
Judaísmo: a Iconoclastia:

Iconoclasta é nome dado ao membro do movimento de contestação à veneração


de ícones religiosos que surgiu no século VIII denominado Iconoclastia. O termo ico-
noclastia significa literalmente “quebrador de imagem” e tem origem no grego eikon
(ícone ou imagem) e klastein (quebrar). O significado de iconoclasta engloba os indi-
víduos que não respeitam tradições e crenças estabelecidas ou se opõem a qualquer
tipo de culto ou veneração seja de imagens ou outros elementos. O termo abrange
ainda aqueles que destroem monumentos, obras de arte e símbolos. Iconoclastia é o
nome do movimento político-religioso que iniciou no Império Bizantino no século VIII
e que rejeitava a veneração de imagens religiosas por considerar o ato como idolatria.
No ano de 730, após o édito publicado por Leão III que proibia a veneração de ícones
e ordenava a destruição de imagens, os membros da iconoclastia destruíram milhares
de ícones religiosos. As destruições cessaram em meados do século IX.

Fonte: <https://www.significados.com.br/iconoclasta/>.

Deus em sua transcendência deve ser respeitado e não pode existir reprodução
humana de sua Imagem. Para o Judaísmo, cercado de religiões com representações
animais e humanas de ‘divindades’, tratava-se de um claro diferencial.
A idolatria não era somente reproduzir divindades em imagens ou amuletos,
mas, sobretudo, dar-lhes vida e relevância em seu relacionamento com Deus.
Mas será o período profético da história e da literatura de Israel a desenvolver
de modo decisivo a sedimentação da questão de Deus, em sua Auto manifestação
e o âmbito da História.
c) A profecia e a Apocalíptica: a história do agir de Deus na história

Diferentemente dos judeus, os cristãos mantiveram, ou melhor, depois de um intervalo,


retomaram seu interesse pela história. A espera do fim do mundo era um fato muito
mais opressor entre os cristãos que entre judeus e resultou em uma nova avaliação crí-
tica contínua dos eventos como portentos. O pensamento apocalíptico era um estímulo
à observação histórica. Além disso, e isto foi decisivo – a conversão de Constantino
implicou a reconciliação da maioria dos líderes cristãos com o Império Romano (es-
pecialmente o Leste) e deu à Igreja um lugar preciso nas questões humanas (MOMI-
GLIANO, 2004: 50).

O pensamento de período profético que se constitui na literatura pré-exíli-


ca e especialmente no período pós-exílico (VI séc. a.C) destaca-se por ter feito
dos princípios básicos da fé judaica os alicerces de uma potente narração de tipo

capítulo 3 • 86
histórico, na qual eles contam de modo coerente o Agir de Deus. Eles partem da
eleição e da Páscoa até chegar aos eventos da Criação e do pecado.

A profecia tomou a história como espaço de realização da santa e justa vontade de


Deus. Mas fez falar também Javé como o Criador, que como Senhor da Criação, não
deixa disputar duradouramente sua propriedade por usurpadores, mas será Rei e Se-
nhor (WERBICK, 1993, p. 352).

Neste mesmo período, em época mais tardia, este projeto historiográfico, esta
vontade de escrever e registar o Desígnio Divino na história por parte dos teólogos
de ambiente profético ou deuteronomista, será confrontada pela apocalíptica:

d) Escatologia apocalíptica:
Temas e ideias da antiga mitologia judaica e da especulação helenística, com-
põem as diversas influências que determinamos nos escritos apocalípticos. Trata-se
de uma verdadeira cosmovisão, que podemos traçar na estrutura dos apocalipses
judaicos e cristãos.
A fonte desta visão pode ser determinada pela antiga literatura bíblico-profé-
tica. A perspectiva desta escatologia apocalíptica pode ser entendida como desen-
volvida a partir da escatologia profética: comum entre ambas as perspectivas, é a
crença que de acordo com o PLANO DIVINO as condições adversas do mundo
presente podem terminar no julgamento do mal e na vingança dos Justos, abrindo
assim uma nova era de prosperidade e paz. (Is 65,16b-17a).
A ponto de serem vistas, tanto a escatologia profética como a apocalíptica,
como dois lados da mesma moeda. O desenvolvimento de um para o outro não
é inelutavelmente cronológico, mas é inegável que ambas se entrelaçam com mu-
dança nas condições sócio-políticas. Trata-se daquelas condições de mudança que
inspiram uma interpretação baseada no desígnio Divino: o esforço humano vem
selado pela intervenção divina favorável.
Períodos de extremo sofrimento tendem a colocar em xeque a efetividade da
reforma humana e assim propiciar uma radicalização da visão que a escatologia
apocalíptica fornece da realidade, tendendo a propor uma rígida visão dualística
da salvação divina, com a destruição deste mundo e a ressurreição do crente para
uma existência celestial abençoada.

capítulo 3 • 87
e) Apocalipticismo:
Conjectura acadêmica ou escolar, assim, Hanson, entende os resultados da
discussão sobre o lugar social e político do qual proviriam os escritos apocalípticos.
Uma exceção notável é a importantíssima literatura de Qumran. Os manuscritos
ali encontrados nos expõem aquilo que se pode designar escatologia escatológica
Ali se pode afirmar que no interior da Comunidade de Qumran a perspectiva da
escatologia apocalíptica fora elevada ao status de uma ideologia (definir), funcionan-
do como interpretação da escritura, para prover a base para a compreensão dos ad-
versários judeus e pagãos, e para fornecer um ponto de vista historiográfico do qual
se desenvolve cenário detalhado para o conflito final a divina justiça para o eleito.
Apocalipses e outros escritos partilham a perspectiva escatológica origina-
da para além da comunidade de Qumran, onde ela foi copiada e estudada na
Comunidade. Tratar-se de um ambiente mais amplo de características essênias.
Contra qualquer tentação de uniformização ou reduções, Hanson, afirma cla-
ramente, a partir da comparação de 4 Esdras e II Baruch, com escritos oriundos do
ensinamento farisaico, ilustra que não todos os apocalipses provem dos Essênios.
Temas apocalípticos nos antigos escritos rabínicos indicam que um motivo
apocalítpico em uma composição literária não constitui prova de origem em um
ambiente ou movimento apocalíptico.
Esta concepção do apocalipticismo, como designação para um movimento que
adotou a perspectiva da escatologia apocalíptica como sua ideologia, deve ser usa-
da com grande cautela e somente em casos onde existam evidências suficientes
acumuladas para pontuar uma comunidade na qual constrói-se uma identidade
sobre o mundo a partir do ponto de vista da escatologia apocalíptica.
Na linguagem apocalíptica a ‘simbolização’ do cosmos serve, através do des-
vio, à causa de mostrar a dinâmica da realidade envolvida pela perspectiva de
Cristo trans-histórico.
Nada passa despercebido à experiência estética de uma linguagem que expres-
sa a ‘inaudível’ percepção poética do homem religioso diante do mundo, pós-Cris-
tificado. Parece que, em todos os níveis da criação, a linguagem simbólica rompe
com as expectativas funcionais do ecossistema. E, através da criação simbólica,
cede lugar a uma verdadeira novidade ‘cósmica’ da Vida:
Para Ugo Vanni (1982) se trata de uma linguagem no âmbito da superação do
cosmos em sua ‘empiricidade’ cotidiana. De frente ao mundo em sua complexi-
dade a linguagem apocalíptica opera um ‘salto qualitativo’, não só na observação,
mas na ‘representação’ mesma do mundo.

capítulo 3 • 88
A poética do mundo realiza uma faceta do mundo acessível somente ao poeta:
observador de segundo grau da realidade. Arquiteto da linguagem do mundo em
sua capacidade de escamotear-se diante do olhar mais curioso:
Esta linguagem caracterizada pela simbolização aponta para o fenômeno ‘ricoueria-
no’ da ‘mais valia’ da palavra poética. De fato, a natureza operativa da linguagem poética
na teologia da escritura apocalíptica é vista por Ugo Vanni como um ‘salto qualitativo’:
Na descrição poética do mundo, na perspectiva do texto (da experiência) apo-
calíptica, interessa ressaltar a novidade.
Por isso, é preciso ‘violentar’ a inércia da percepção, radicalizar a possibilidade
de ‘sentido’ das palavras. Pois, estas estão a serviço da visibilidade do imperceptí-
vel, da audibilidade do inaudito, da ascoltabilidade do indizível.
Da imagem se oferece uma catapulta para dentro do mistério, do intrigante. A
reação estética do leitor, que rodeia o texto, é se envolver no ‘realismo mágico’ da
linguagem, entre o pânico da viagem e do arrepio e o êxtase da realidade que foi
transfigurada. In sensus theologicus tocamos as ‘teophanias’.
Quanto maior for a alteração de percepção da realidade, mais próximos do ob-
jetivo do autor. O texto torna-se ícone, pela estranheza frente à realidade empírica,
da presença aproximada de Deus.
A criação quanto mais abalada em sua estrutura ‘cósmico-matemática’, me-
lhor exprime, o que há de novo: o encantamento de uma nova chance de vida!
Por isso a análise literária do efeito estético do texto apocalíptico não se mede
pela decodificação, mas ao contrário, pela capacidade textual de operar a estranhe-
za, e suscitar uma operação semântica baseada na consciência de estarmos diante
da ação da palavra em sua ‘katársis’.
Diante do passado judaico pleno de infidelidades e erros repetitivos, acompanha-
dos de castigos e falimentos, a apocalíptica propõe uma perspectivística do futuro que
nasce a partir das crises profundas ocorridas entre os exílios, repatriações e invasões:

A história perdeu sua transparência para o agir salvífico e educativo de Javé para com
o seu povo. A Apocalíptica, para manter a esperança do Deus que opera Salvação
apelou não mais para os acontecimentos passados. A História – a velha – parecia
dominada de tal forma pelo pecado e pelo mal, que parecia ir caminhando de forma ir-
redutível e irresistível rumo ao fim catastrófico (...), mas que se abreviassem as aflições
do fim dos tempos e chegasse “logo” ao fim a velha era, que se tornara insuportável,
com o seu agir salvífico escatológico, fazendo irromper em breve o seu reinado do fim
dos tempos (WERBICK, 1993, p. 353).

capítulo 3 • 89
O Cristianismo e a história: cumprimento ou futuro?

a) Jesus e o adiantamento da Parusia

A apocalíptica cruzou-se com a ilusão de uma “história da Salvação” que se imporia


sem cessar em Israel e desde Israel; este se evidenciou para a apocalíptica como ins-
trumento inútil nas Mãos de Deus; por isso não pôde mais apelar para as promessas
ou para as manifestações graciosas de Javé. Conforme essa visão apocalíptica, Javé
levaria avante o seu projeto salvífico não em “continuidade” com o sucedido até o mo-
mento, mas em radical “descontinuidade”, e seria em favor dos que não se deixaram
seduzir pela perversidade desta era (WERBICK, 1993, p. 353).

Eis um ponto fundamental de partida da obra cristã, do tempo, da palavra e


da ação de Jesus. Que se de um lado apresenta estes aspectos da “descontinuidade”
em relação à interpretação da Torah, como se lê nos quatro Evangelhos:

Senhor do Sábado ou Senhor do Sabá é um episódio da vida de Jesus que aparece


nos três evangelhos sinóticos, em Mateus 12:1-8, Lucas 6:1-5 e Marcos 2:23-28. Ele
relata o encontro de Jesus, seus apóstolos e os fariseus na primeira de suas "quatro
controvérsias sobre o Sabbath" .

No versículo referido, lê-se a marca apocalíptica por causa da auto-entitulação


como o ‘Filho do Homem’:

Porque eu, o Filho do Homem, sou Senhor do próprio sábado (Mt 12, 8).

Expressão que procede da literatura profética de Daniel, com acentuado sa-


bor apocalíptico:

CONCEITO
A expressão "filho do homem" é encontrada muitas vezes, tanto no Velho como no
Novo Testamento. Originalmente, foi usada como sinônimo de "homem". Isaías 51:12 diz:
"Eu, eu sou aquele que vos consola; quem, pois, és tu, para que temas o homem, que é mortal,
ou o filho do homem, que não passa de erva?" (Veja, também, Jó 16:21; 25:6; 35:8; Salmos

capítulo 3 • 90
8:4; 80:17; 144:3; Isaías 56:2). No livro de Ezequiel, escrito no sexto século a.C., a frase foi
uma maneira que Deus, muitas vezes, identificou o profeta Ezequiel (2:1,3,6 e muitos outros
versículos em Ezequiel). A expressão aparece duas vezes no livro de Daniel, com dois sen-
tidos diferentes. Em Daniel 8:17, o profeta é chamado de "filho do homem". Mas, em 7:13,
desce do céu (numa visão) "um como o Filho do Homem" que recebeu do Ancião de Dias
autoridade para reinar para sempre. Nesta visão profética, a frase claramente se refere a
Cristo. Chegando ao Novo Testamento, "filho do homem" é usado quase exclusivamente
para falar sobre Jesus. O próprio Cristo utilizou esta expressão (segundo os quatro relatos
do evangelho) para se identificar inúmeras vezes (Mateus 8:6; 9:20; etc.). Assim, ele enfatiza
sua própria humanidade, o fato que ele se fez carne e habitou entre homens (João 1:14). Mas
esta descrição jamais é usada para sugerir que Jesus era mero homem. Sem dúvida, o uso
no Novo Testamento elabora o tema introduzido em Daniel 7:13. O "Filho do Homem" não é
alguém que surge da terra (como a erva de Isaías 51:12). Ele veio nas nuvens do céu (Daniel
7:13, compare Mateus 20:28; Lucas 19:10; João 3:13). Contra as doutrinas humanas que
sugerem que Jesus era um homem glorificado, a Bíblia ensina que ele é Deus que se humi-
lhou. Em João 6:62 ele diz: "Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar
onde primeiro estava?" Paulo confirma a mesma coisa em Filipenses 2:5-8. Assim, o Filho do
Homem mostrou sua autoridade na terra (Marcos 2:10,28). Depois de sua morte e ressurrei-
ção, ele afirmou que tinha recebido toda autoridade (Mateus 20:28; veja Lucas 22:69). Como
Daniel o viu descendo nas nuvens, Jesus prometeu vir nas nuvens em julgamento (Marcos
13:26; 14:62; etc.). Algum tempo depois da ascensão de Jesus, Estevão foi privilegiado em
ver "o Filho do Homem, em pé à destra de Deus" (Atos 7:56) 30.

Por outro, Jesus em sua pregação e em sua práxis diferencia-se da apocalíptica


judaica ao pretender testemunhar a irrupção do Reino de Deus, esta é a categoria
mais escatológica da pregação de Jesus.
Uma realidade que se exibe no tempo, mas que se realiza no futuro. As
Parábolas do Reino, seção obrigatória nos três Evangelhos, bem demonstra isso.
Segundo Lacoste (2004) A história da revelação tem seu modo definitivo na
revelação de Jesus Cristo e seu desenrolar na Igreja.

30  <https://www.estudosdabiblia.net/bd78.htm>.

capítulo 3 • 91
b) Agostinho de Hipona: duas cidades e a história

Os Imperadores pensavam conjurar o destino ao trocar os deuses tutelares, que ha-


viam falhado, pelo Deus novo dos cristãos. A renovação constantiniana parece justifi-
car todas as expectativas: sob a égide de Cristo a prosperidade e a paz parecem voltar.
Tratou-se apenas de uma breve recuperação, e o Cristianismo era um falso aliado de
Roma. Para a Igreja, as estruturas romanas representam apenas um modelo, uma base
de apoio, um instrumento para se afirmar (LE GOFF, 2005: 21).

O estudo sobre a ‘fortuna’ de ‘De Civitate Dei’ de Santo Agostinho no contex-


to do ‘medo’ (DELUMEAU, 2004) se inscreve na trajetória consagrada de autores
que renovaram a historiografia dos séculos V-XV, denominado como ‘medieval’.
Esta renovação permitiu a redescoberta de valores, características e modelos
culturais que ‘refrescaram’ a memória dos ‘preconceitos’ gerados pelo denegrimen-
to desta etapa da história europeia e humana, em particular, aquela Ocidental (Cf.
GURIÊVITCH, 2003).
As raízes cristãs do ocidente (Cf. LE GOFF, 2007) podem, assim, ser resga-
tadas para uma análise mais apropriada de seu papel decisivo na construção da
identidade ocidental.

Entre os ‘ícones’ históricos deste resgate está o inconfundível Santo Agostinho: ‘Depois
de São Paulo, Santo Agostinho é o personagem mais importante da instalação e o desen-
volvimento do Cristianismo. É o grande Professor da Idade Média’. (LE GOFF, 2007: 31).

Os séculos IV e V são por isso, decisivos na reconstrução analítica da Europa


ocidental, pois neles encontramos os personagens, os fatos, e as obras que caracte-
rizam o período tardo-antigo, o prenúncio da plena Idade medieval.

Filosofia da religião, theologia da história ou cultura política?

Já Platão em Fédon 85d (Cf. REALE, 2002) utilizando-se da imagem de


uma nave muito frágil, havia reconhecido a precariedade e a insuficiência da razão
humana, por si mesma, para confrontar-se com o ‘mar da vida’, sendo necessária
assim, uma ‘revelação divina’ para enfrentar tal viagem.
E como não se pode ignorar a influência platônica na leitura cristã de
Agostinho, as reflexões que encontramos em suas “Confissões (XI)” indicam uma

capítulo 3 • 92
meditação ‘agostiniana’ sobre o tempo, não indiferente às questões de seu tempo e
ao mesmo tempo, consciente do desafio de formular as bases filosófico-teológicas
mais profundas sobre o tempo, a cidade, o poder, a Igreja.
O recurso à religião, como discurso ‘científico’ 31, por isso, não é indevido,
ao contrário é o único possível para aqueles que diante dos fracassos das respostas
dadas, não se acontentam em ‘saber que nada sabem’.
E para tal, uma certa compreensão histórica do Cristianismo se oferece como
uma verdadeira base na construção desta ‘aventura epistemológica’:

Mas para além dos debates dos especialistas, é preciso constatar que o próprio mundo
contemporâneo nos interpela, em sua modernidade sobre o problema da religião e do
religioso, de suas formas, de seu lugar. Onde colocá-los? Como definí-los? Sem evo-
car fatos que uma atualidade demasiado candente, como aqueles relativos ao islã, à
India, a América do Sul ou à Polônia, e permanecendo no mesmo horizonte que nos é
mais familiar, nós nos perguntaremos, com Jean Séguy, “Se não existe esfera religiosa
solta, fora das Instituições religiosas e, eventualmente, no próprio campo do profano:
religiões implícitas, religiões de substituição, religiões analógicas, religiões seculares”.
Émile Poulat chamou seu último livro de l’Église, c’est um monde. Um mundo precisa
de tudo um pouco (VERNANT, 2001: 94).

A compreensão da história própria da revelação cristã se concretiza assim em


uma teologia da história que não nega a Filosofia, mas, assumindo-a e superando-a,
obviamente a valoriza.
E de fato, a expectativa agostiniana, assume criticamente a perspectiva filosó-
fica platônica. Ele critica a religião pagã, as filosofias imanentistas, as concepções
político-sociais enclausuradas no horizonte terreno, para afirmar o destino eterno
dos sujeitos singulares e da humanidade, pela relativização de todas as realidades
e instituições terrenas, que não podem ser absolutizadas, mas utilizadas somente
enquanto sirvam para atingir o fim eterno.

Heródoto, Tucídides e Políbio: o contexto ‘historiográfico’ de Agostinho

A verdadeira questão não gira em torno da questão se os gregos tinham uma mente
histórica, mas sim em torno dos tipos de história que escreveram e que nos transmi-
tiram. Começo com a história política, mas devo remontar ao tempo em que a história
política não tinha ainda sido inventada. (MOMIGLIANO, 2004: 54).

31  VERNANT, J.-Pierre. A Religião, objeto da Ciência? In: _______. Entre Mito & Política. São Paulo: Edusp, 2001,
87-94.

capítulo 3 • 93
A obra Agostiniana de História expressa em ‘De Civitate Dei’, no entanto, não
se constitui como um fato isolado, como empresa intelectual. Ela pode ser lida à luz
dos estudos sobre a historiografia clássica, greco-romana (Cf. LITTIERE, 1988).
Heródoto, ‘Pai da história’ (484-420 a.C.), aquele grande ‘viajador’ do mun-
do antigo, nos nove livros de sua ‘História’ dispondo todo o material à sua dis-
posição em torno dos grandes eventos das Guerras Persas, organiza sua ‘história’,
através de um estilo de narração ‘impessoal’.
A ‘estilística herodoteana’, de certa maneira, é fruto de sua concepção de dis-
curso historiográfico sobre a compreensão da natureza dos fatos e relatos (fonte).
A situação histórica aparece-lhe multiforme e indefinida, e por que não con-
segue perceber-lhe a conclusão, Heródoto não pensa em poder compreendê-la e
avaliá-la em seu conjunto (Cf. HARTOG, 1999).
Tucídides (454-404 a.C.), ao contrário, de modo ‘pessoal’ (narrador), além
de referir-se aos fatos, buscava-lhe as causas. Por isso, a narrativa Tucidiana tem o
Presente e a Intervenção do historiador como pontos de vistas privilegiados.
Em sua ‘História’, obra em 8 livros, ele narra, como estrategista envolvido,
as guerras poliponésias, e na vitória de Esparta, Ele vê o declínio de Atenas.
Tucídides segue o desenvolvimento dos eventos, esforçando-se em relacionar-lhes
entre si, para colher os nexos entre os fatos e sua causa, em busca da sua racionali-
dade (Cf. MOMIGLIANO, 2002: 66-75).
Na concepção tucidiana os eventos históricos são determinados pelos homens
e por suas escolhas e assim eles carregam as razões das dinâmicas humanas e cons-
tantes que os regulam. Será Tucídide que imporá ao discurso historiográfico o
ideal de ‘historia magistra vitae’. Pois como o médico intervém para curar a doen-
ça, assim o político pode agir para modificar o curso dos eventos.
Com ele o método histórico atinge sua maturidade e a história se torna ciência
para conhecer o passado, abrem-se novas perspectivas.
No entanto, com o empréstimo das ‘racionalidades científicas’ advindas do
mundo natural, não se disporá de um instrumento de tudo adequado, para en-
frentar a complexidade do evento humano.
Por fim, a obra de Políbio (200 -118 a.C) ideólogo do grande império roma-
no. Depois da queda de Aníbal (220-168) o inteiro mundo conhecido se encontra
sob a unidade do Império Romano.
Ele se propõe em sua História (40 vol.) a descrever e explicar este fato
nunca verificado antes. Assim a um império universal corresponde a ideia de
uma história universal, que tem todos os seus eventos orientados a este fim

capítulo 3 • 94
convergente, que é o império romano e deste receberia sua significação verdadeira
(Cf. MOMIGLIANO, 2002: 75-78).
Se Heródoto é atento aos fatos e Tucídide se volta atrás em busca das causas
dos eventos, Políbio olha em frente para perceber o fim a que tendem as diversas
vicissitudes da história.
É dentro desta perspectiva de pesquisa ‘polibiana’ que se pode inserir a cons-
trução histórico-política e teológica de ‘De Civitate Dei’ de S. Agostinho (Cf.
MORAN, 1958: 24-32).

Teologia do tempo e eternidade: uma ‘Dialética’ historiográfica em Agostinho

Diferentemente dos judeus, os cristãos mantiveram, ou melhor, depois de um intervalo,


retomaram seu interesse pela história. A espera do fim do mundo era um fato muito mais
opressor entre os cristãos que entre judeus e resultou em uma nova avaliação crítica con-
tínua dos eventos como portentos. O pensamento apocalíptico era um estímulo à obser-
vação histórica. Além disso, e isto foi decisivo – a conversão de Constantino implicou a
reconciliação da maioria dos líderes cristãos com o Império Romano (especialmente o
Leste) e deu à Igreja um lugar preciso nas questões humanas (MOMIGLIANO, 2004: 50).

Tempo e eternidade constituem as diretrizes da visão transfigurada da Cidade


Eterna, que em sua ‘decadência’ histórica permite a Agostinho vislumbrar a ‘vitó-
ria final da Cidade de Deus’.
A cidade da qual ele celebra vitória se circunscreve no presente, mas não está
radicada no tempo, ao contrário, mas na eternidade, onde a glória de Deus não
tramonta e nenhuma outra potência pode sitiar a soberania de Deus que rege
a cidade.
Portanto, Agostinho inscreve sua estratégia historiográfica de escritor cristão
do novo império, à luz das complexas relações entre tempo e eternidade.
Estas relações encontram-se trabalhadas nas tradições filosóficas da grecidade
entre as várias soluções que conhecemos. Desde Platão, que cinde claramente os
termos e tem por esteio a estabilidade ou instabilidade como referência temporal.
No entanto, até o sistema platônico em temática tão fronteiriça cederá às
seduções do orfismo, donde assumirá o corolário da reencarnação, ou Aristóleles,
que em ‘De Caelo’ constrói pela ciclicidade um instrumento crítico para lidar com
estas categorias, fundando no eterno retorno, algo da semântica histórica, entre
tempo e eternidade.

capítulo 3 • 95
Os estoicos seguirão, a seu modo, a mesma medida, que permitirá a Plotino ab-
sorver o tempo na eternidade. Assim o tempo plotiniano não é outra coisa senão uma
projeção da eternidade, imagem móvel da eternidade imóvel (Cf. REALE, 2001).
No pensamento cristão, diversamente desta síntese filosófica grega do tempo,
na qual de uma forma ou de outra, por absorção do tempo pela eternidade ou
pelo seu contrário, chega-se à construção de uma semântica homogênea entre os
conceitos de tempo e eternidade, o tempo permanece o domínio do homem, efê-
mero e passageiro, enquanto a eternidade é soberania de Deus, não há chance de
‘homogeneizar’ tempo e eternidade neste campo do pensamento.
Mesmo o tempo cristão não é cíclico, porque a irrepitibilidade e a autocons-
ciência humanas não o consentem, mas, sobretudo, por que o tempo cristão tem
uma nova medida advinda dos territórios da Ressurreição de Cristo. O ephapax de
Cristo exclui qualquer noção temporal baseada na repetição32.
Por isso, na Cidade de Deus, a racionalidade da História só pode encontrar
fundamento na compreensão escatológica da História. Assim, o Fim e a Finalidade
são constitutivas internas da história.
Desta maneira, na “Cidade de Deus’, Agostinho pôde individualizar o fim da
história sem ater-se aos processos de decadência pontual nas formulações histó-
ricas imanentistas e, sobretudo, afirmar a coexistência incindível entre o mundo
material e o tempo.

Conclusões

À catástrofe romana, epílogo da história ‘Polibiana’, Santo Agostinho não jus-


tapõe ingenuamente uma nova gênesis.
Ao contrário, ele se distancia da visão pagã, na qual o homem tinha como me-
dida própria a cidade e pátria, como se pode ler na obra monumental de Platão,
a República.
Como também em Cícero, Agostinho compara a formação da virtude huma-
na com a formação cívica e urbana.
Para Agostinho a cidade não é modelo ideal, sua cidade, sua Polis é real. Ela
não é uma ficção de modelo de referimento para estabelecer um programa político,

32  Santo Agostinho discute de modo clássico a questão do ‘tempo’ em diálogo com a Revelação cristã (Eternidade)
em dois textos da tríplice obra de theologia e Filosofia, em ‘Confissões’ 11 e ‘De Civitate Dei’ 12. Cf. MORAN, J. La
Cuidad de Dios, p. 02-59; GILSON, Étiènne. Notes sur l’être et le temps chez saint Augustin. Revue Augustiniènnes,
Paris, no 2, p. 205-223, 1962; LETTIERI, G. Il senso della Storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988.

capítulo 3 • 96
pois sua existência é co-presente ao tempo e à eternidade, e pede que a vida do
tempo seja vivida em modo tal que possa ser continuada na eternidade.
Assim, a inspiração da Cidade de Deus não é uma projeção política nos mol-
des que conhecemos na cultura clássica greco-latina. Em ‘De Civitate Dei’, ao
contrário, Santo Agostinho se serve da Fé cristã e do Evangelho para explicar esta
missão da cidade de Deus peregrina no tempo.
Ao contrário, através dos modelos platônicos e estoicos ele critica a insuficiên-
cia do modelo político tardo-antigo e das soluções da moral social que daí surge,
para a problemática realidade medieval nascente.
E, nesta medida não se pode entender De Civitate Dei fora do alcance da gran-
de produção antiga de historiografia, de certa maneira, inaugurada por Heródoto
e Tucídides no século IV a.C., âmbito no qual nasce para o pensamento humano
e antigo a possibilidade da distância em relação ao mito.
A história é o espaço da narração dos eventos dos povos e sociedades sem mis-
turar-lhes com as estórias dos deuses.
Pois a experiência de crise o levou a constituir um gigantesco esforço de re-
flexão sobre o Passado para compreender o sentido e a verdade à luz do futuro
último e definitivo, constituído pela vinda de Cristo, no mesmo momento em que
faz emergir a racionalidade das escolhas corajosas que se impunham ao presente,
para que a existência humana não se perdesse, mas que se realizasse na ‘beatitude
eterna’, linguagem bíblica e extra-bíblica para designar a plenitude de vida.
Entre os Estudiosos de ‘De Civitate Dei’ coloca-se muitas vezes a questão do
valor axiológico da obra agostiniana de história como uma formulação cristã da
história entre a Filosofia e a teologia.
Para Agostinho a compreensão da história humana supõe que sua finalidade
seja analisada, ora, isto ultrapassa a capacidade de articulação do método histórico,
permanecendo em aberto.
Diante da inconclusividade do discurso histórico na formulação de premissas
escatológicas e morais surge a possibilidade de examinar o papel da revelação na
elaboração do discurso histórico.
Em outras palavras, ‘conhecer a finalidade da história seria possível, ao menos
que isto lhe seja ‘revelado’ por alguém que está além do tempo e que já atingiu o
fim da história’.
Agostinho não vê na crise da Cidade Pagã a simples ocasião de revanche, mas
o ‘kairós’ de uma novidade que emerge entre ‘escombros’. Sem precisar do recurso
à ‘Fênix’, a verdade cristã da eternidade, pela Ressurreição de Cristo, comunica

capítulo 3 • 97
ao tempo que se esgota e não se repete um novo horizonte. Este ‘tempo novo’ é
apto para atravessar as coisas ambulantes e mutantes, e assim, a própria ‘morte da
cidade’ não determina mais a ‘morte do homem’.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RAHNER, K. e RATZINGER, J. Revelação e Tradição. Disponível em: <https://pt.scribd.com/
doc/93433877/revelacao-e-tradicao-joseph-ratzinger>. Acesso em: 30 de outubro de 2017.
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Conc%C3%ADlio_Vaticano_II>. Acesso em: 12 de Fevereiro de 2018.
Cf. <http://www.materecclesiae.com.br/com-amor-eterno-eu-te-amei-jr-313/>. Acesso em: 01 de
março de 2018.
<https://www.significados.com.br/hermeneutica/>. Acesso em: 02 de março de 2018.
<https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo_hist%C3%B3rico>. Acesso em: 05 de março de
2018.
<https://www.significados.com.br/iconoclasta/>.

capítulo 3 • 98
4
Atributos divinos
Atributos divinos

Sabemos a importância que o “nome” divino assumiu na reflexão sobre a divindade,


tanto em âmbito pagão como judaico e cristão. Neste último caso, a especulação à
volta do nome divino germinou, inicialmente, sobretudo em ambiente judeu-cristão.
Tal especulação decorria no contexto da mentalidade antiga que, em geral, pressu-
punha uma forte identificação entre o “nome” e o nomeado. Por outro lado, o nome
divino permanece envolto no mesmo mistério da própria divindade, de tal modo que
tanto manifesta como oculta e protege o mesmo mistério. Na tradição judaico-cristã,
“o nome único de Deus” evoca o seu poder (cf. Zc 14,9; Fl 2,9), presença e essência
numa perspectiva semiótica. (LAMELAS, 2008, 157-8).

Como já vimos nos capítulos anteriores, a questão da Revelação especial não


é apenas aquela de uma Mensagem divina ou Transcendente transmitida a Israel
no Antigo Testamento.
A Revelação, na verdade, coloca o problema da Identidade Divina. Deus se dá
a conhecer para ser invocado, cultuado, amado e obedecido!

A questão do nome divino constituiu, como vemos, um dos pontos centrais do mistério
da revelação e do próprio mistério de Deus na busca multimilenar da humanidade. Mas
constitui também um núcleo central do fascinante problema da possibilidade e limites
do conhecimento e da linguagem humana sobre o divino (LAMELAS, 2008, 158).

O tema em questão, portanto, é aquele do Nome Divino. Deus que supera


qualquer ‘nomeação’ entrega aos interlocutores escolhidos por Ele. Abraão, Moisés
em particular.
Ao longo da história da História de Israel encontramos na questão do Nome
Divino a chave para entender as diversas tradições que compõem a longa elabora-
ção, compilação e canonização dos textos massoréticos.

capítulo 4 • 100
Texto massorético ou masorético é o texto hebraico da Bíblia utilizado com a versão
universal da Tanakh para o judaísmo moderno, e também como fonte de tradução para
o Antigo Testamento da Bíblia cristã, inicialmente pelos protestantes e, modernamen-
te, também por tradutores católicos.

Escrito em hebraico antigo, com letra quadrada, os massoretas levantaram a pronúncia tradicional
do texto de consoantes (o hebraico não tinha vogais), graças a um sistema de pontuação inventa-
do para atender a acentuação vocálica. Com isso, eles padronizaram uma pronúncia das palavras
do texto, tornando-o igual para qualquer pessoa que o lesse após a época em que iniciou-se a
compilação. Nessa época o hebraico já não era um idioma popular e havia, principalmente por
parte da comunidade hebraica muita dificuldade em pronunciá-lo corretamente, conforme a pro-
núncia original. A metodologia utilizada era bastante rigorosa: ao final de cada cópia pronta, todas
as letras eram contadas, e uma letra era estabelecida como letra central de referência. Assim, as
letras do início da cópia até a letra central teriam de estar perfeitamente iguais às do documento
original. Também eram contadas todas as letras desde a letra final até a letra central. Em caso
de discordância, todo o trabalho era destruído e uma nova compilação realizada. Por criarem
uma base para a interpretação do texto hebraico, aperfeiçoando os símbolos da escrita, já que
até então não havia um sistema definido de regras gramaticais por escrito, os massoretas são
considerados os pais da gramática da língua hebraica atual. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Texto_massor%C3%A9tico>.

Por isso, urge entender que a questão dos Nomes Divinos organiza uma série
de tradições, que por sua vez, darão à luz às coleções literárias da Bíblia.
Através da noção de tradição percorre-se um caminho bíblico entre os Nomes
de Deus que desvendam seu Mistério a Israel.
Assim, com a história de Israel, iniciada em Abraão, começa também o ciclo
dos Nomes Divinos. Em Moisés teremos o auge desta experiência véterotestamen-
tária, que perpassa toda a Sagrada Escritura.
Muitos Nomes ou Designações comporão o arquipélago da Revelação especial
no Antigo Testamento: Javé, Elohim, Deus de Abraão, Isaac e Jacó, o Deus dos
Pais, Eu sou...
O Nome de Cristo, como fonte da Salvação Humana será o ponto mais alto
desta trajetória do Nome de Deus revelado na História.

Por isso Deus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo
nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da
terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.
(Filipenses 2, 9-11).

capítulo 4 • 101
OBJETIVOS
•  Expor a questão teológica dos Nomes Divinos;
•  Entender como Abraão é o princípio da revelação do Nome;
•  Estudar a saga de Moises;
•  Conhecer a teologia dos Nomes Divinos na Bíblia.

Os nomes de Deus: as tradições de Israel

Nome est omen: Os antigos usaram este aforismo para significar que o nome é a coisa
mesma ou que a pessoa está toda no seu nome. O nome é, tanto no mundo bíblico
como extra-bíblico, como um “presságio” daquilo que a pessoa nomeada é e será. Por
outro lado, a ligação etimológica entre nomen e nosco é bem documentada nos filólogos
antigo. Nesta ordem de ideias, ter acesso ao nomen divino equivaleria a conhecer o pró-
prio Deus e permite, de algum modo, usar dos poderes que esse nome encerra (omen)
(LAMELAS, 2008, 159).

Desde a chamada de Abraão vislumbrando o conjunto da epopeia de Israel,


passando pelo périplo da libertação do Egito, da passagem do Mar vermelho, da
peregrinação no deserto por quarenta anos, e, sobretudo, o período da Revelação
da Lei (Torah) e do Culto, provisório no deserto até o momento em que, depois a
entrada na Terra Prometida, será plenamente organizado e celebrado nos dois gran-
diosos Templos em Jerusalém, a temática do Nome de Deus teve grande relevância.
Os cinco primeiros livros da Bíblia cobrem um extenso panorama da Memória
das Façanhas Divinas realizadas em favor de Israel.
Tudo isso para dizer que somente a partir de uma concepção baseada em tra-
dições religiosas, literárias e teológicas pode-se entender um pouco melhor a com-
plexa dinâmica da formação destes livros, que só podem ser lidos adequadamente
em conjunto, como histórias que se entrecruzam.
Mas, o que são tradições bíblicas?
A palavra tradição é proveniente do latim: ‘tradere’ (transmissão). Supõe uma
valiosa informação, experiência, conhecimento que deva por isso mesmo ser trans-
mitida, oral ou por escrito de uma geração à outra.

capítulo 4 • 102
Tradição é uma palavra com origem no termo em latim traditio, que significa "entre-
gar" ou "passar adiante". A tradição é a transmissão de costumes, comportamentos,
memórias, rumores, crenças, lendas, para pessoas de uma comunidade, sendo que os
elementos transmitidos passam a fazer parte da cultura.

Fonte: <https://www.significados.com.br/tradicao/>.

Segundo NEUFELD (2004), a ideia de tradição que inicialmente designava o


ato de transmitir objetos materiais, foi em seguida aplicada à perpetuação de doutri-
nas e de práticas religiosas, legada de uma geração à outra pela palavra e pelos exem-
plos vivos. Dali o termo se estendeu ao conjunto dos conteúdos assim comunicados.
Neste contexto é preciso entender que tradições não se justificam sem a pre-
sença de uma forma social que as exijam, construam e transmitam. As tradições
são molduras de crenças e concepções essenciais da identidade de um grupo (tribo,
sociedade ou civilização).
As tradições funcionam como ‘cápsulas do tempo’ que permitem a sobrevida e
perpetuação de ideias e conceitos, de cosmovisões, isto é, auto concepções de vida
que determinam a identidade de uma coletividade e por isso, exigem sua proteção,
transmissão e perpetuação.
Ora, percebe-se um longo processo histórico entre a vivência da ação divina,
a Revelação e a sua transmissão oral e em seguida por escrito. E, ocorre que estes
eventos sagrados que identificam o Povo de Israel como destinatário e portador de
uma Mensagem Divina sejam preservados e comunicados em sua plena significação,
pois além de ouvidos e lidos, eles são ritualizados, pela liturgia, e se estruturam como
regras (normas) do comportamento moral da Comunidade legada a estas tradições.
Dada a complexidade da Revelação Divina, inicialmente aos Patriarcas
(Abraão) e depois, mais efetivamente a Moisés (A Libertação Pascal e o Decálogo),
não é de se admirar que em torno deste legado histórico e teológico, construam-se
uma multiplicidade de vozes e interpretações.
Por isso, encontramos em torno dos eventos fundadores da História de Israel,
a saber, o período patriarcal, de Abraão a Jacó, incluindo seu filho José, que deter-
mina a ida e permanência no Egito, e daí a longa saga de Moisés, entre a libertação
no Egito e os ‘40 anos’ (tradição) no deserto, uma grande variedade de modos de
ver e acentuar os significados principais e sobretudo, a identidade Divina, que se
apresenta e justifica fatos e direções tomadas por Israel.

capítulo 4 • 103
Não por acaso, as primeiras tradições em torno das quais os exegetas no fim do
século XIX, início do século XX, irão nomear serão as seguintes: Javista e Eloísta.
Por quê? Era evidente que a designação divina nestes ambientes, reconhecida-
mente presente em cada conjunto de textos ou coleções, tornou-se o critério para
designar-lhes como pertencentes a esta ou àquela tradição. Dois ‘Nomes’ Divinos
se destacam e de certa maneira organizam estas coleções: Javé e Elohim.
Nestas coleções designadas por estes dois distintos designativos divinos, perce-
bem-se características do Único Deus, tratadas de modo exclusivo. Ora, se afirma
a proximidade de Deus, acentuada pelo tratamento descritivo de Deus, através de
‘antropomorfismos’, isto é, atribui-se a Deus adjetivos e caracteres (morfismos) hu-
manos (antropo) como ciúme, ira, violência, paixão (...) em busca de intensificar a
proximidade divina do humano, isto sua imanência, ora se acentua sua distância,
sendo Santo, Ele é sempre o “Outro”, não se confunde, nem se mistura, como os
‘ídolos’, e com as realidades humanas, Ele é essencialmente Transcendente.
Encontraremos também outras designações das tradições do PENTATEUCO
que indicam não somente as características divinas, mas os grupos envolvidos na
elaboração e transmissão das tradições. Trata-se da chamada tradição P (Priester –
Sacerdote), Sacerdotal, pois indica um grupo específico, portador de uma herança
e de um espaço privilegiado de produção, comunicação e transmissão de tradições
religiosas: a Liturgia, o Templo, a conservação das ‘Escrituras’. Os sacerdotes, es-
cribas, e doutores são agentes especializados nesta expertise. Pensa-se neste hori-
zonte que a liturgia é a fonte das tradições, isto é, templos e oratórios teriam sido
as ‘fábricas’ das tradições mais arcaicas de Israel.
Por fim, percebe-se que o longo itinerário da formação do universo, fundador
da Fé e da prática identitária de Israel, exige constantes revisões, seja porque a
extensão narrativa tornou-se considerável, seja porque, a mudança de mentalidade
no correr dos tempos exige acertos, em vista de novas perguntas, novos contextos,
e novas gerações.
Pense, por exemplo, como foi diverso o entendimento do passado, cada vez
mais longínquo, entre gerações em espaços sociais tão diversos. No momento em
que Israel se estabiliza na terra prometida, constrói-se uma identidade política,
com uma soberania monárquica (Saul – Davi – Salomão), com a ereção de um
Templo Nacional, em Jerusalém, não se entende mais a vida e a presença de Deus,
como foram sentidas e recebidas no ambiente nômade do deserto, não se cultua
mais a Deus na Tenda entre tendas (...).

capítulo 4 • 104
Por isso, são precisas revisões e releituras que englobem novas e permanentes
interpretações da Lei, da Presença de Deus, da Identidade de Israel. Por isso, a
coleção destes textos, chamar-se-á Deuteronomista.
Ser fiel às origens exige constantes revisões e aprofundamentos, que, sabemos
são inspirações do Espírito de Deus e tornam, assim, dinâmica a experiência viva
de Deus, aquele de Abraão e de Moisés. Tradição, ao contrário do que pode pare-
cer, é uma realidade e uma força dinâmicas.
Pois, ao contrário, o que sobraria às novas e seguintes gerações de crentes
seria o anacronismo de antigas legendas, inexperimentáveis no presente, arcaicas
demais para exprimirem no presente e no futuro aquela Beleza e Verdade que as
funda e que as obriga à transmissão perene.

Abraão e os nomes divinos

O ciclo de Abraão e Sara inicia uma série de quatro etapas. Tudo começa com
Abraão e termina com José (do Egito).
Desde Gn 12 o leitor encontra-se diante das Fundações de Israel. Com a ‘bio-
grafia’ dos Pais, os fundadores da saga do Povo de Israel, mantemo-nos no campo
das origens da Salvação, oferecida por Deus à Humanidade.

A vocação de Abraão

Ora, o SENHOR disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e
engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção. E abençoarei os que te abençoa-
rem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias
da terra (Gênesis 12,1-3).

A História de Abraão é narrada como o palco inicial da ação redentora de


Deus no Mundo. O Paraíso está fechado. A vida humana se desenvolvia no espec-
tro do pecado, como vimos antes. Desgraças e crises. Com estes versículos tudo
parece mudar.
“Ora, o SENHOR disse a Abrão”. A vocação de Abraão representa a inciativa
amorosa de Deus que vocaciona a criatura, de novo, à amizade consigo. Depois
da surdez e da ignorância em relação à Vontade Divina, a experiência abraâmica
recomeça na obediência, isto é, na escuta que inaugura um novo ciclo na dura

capítulo 4 • 105
estória humana no pecado. Com Abraão aprendemos de novo lições básicas no
relacionamento com o Criador. Um flash disso já tivemos em Noé.
É a Voz Divina dirigida ao coração humano. É a ‘Revelação sobrenatural’
iniciada em vista de novos horizontes. Em Abraão aprendemos algo sobre a escuta
de Deus. Este tema é construído na esfera da teologia profética deuteronomista:
“Escuta, Israel, o Senhor teu Deus!”, no centro da saga mosaica. Abraão não é apre-
sentado como um glorioso fundador de religião. Ele é servo da VOZ divina!
“Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te
mostrarei”.

Neste imperativo Deus retoma o ‘sano’ controle sobre a Criação humana.


Começa o desmonte da falsa liberdade humana que se nega a obedecer a Deus e
orientar sua existência humana pelos motes divinos. ‘Dirigir-se para onde Deus indi-
car’ eis a fórmula de sucesso na vida de criaturas, nas quais a liberdade vai se tornar
de novo, escutar e cumprir da salvífica e paterna Vontade Divina sobre a terra.

“E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e tu


serás uma bênção.”

Se a palavra de ordem nos primeiros onze capítulos, depois do pecado, era


maldição, destruição e dilúvios, agora a existência e a lição abraâmica são o prin-
cípio da Bênção. Abraão constitui a paternidade nova da Humanidade, o ‘sperma
Abraham’ é a origem do Povo de Deus: ‘Abraham et semini eius in sæcula’ (Lc 1, 55)
cantará a Virgem milênios depois.
Em Abraão recomeça o tempo da Bênção Divina sobre a criação. E o modelo
de Abraão será este mesmo, fonte de bênção para a descendência da Fé do Patriarca.

“E abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em


ti serão benditas todas as famílias da terra”.

Na história de Abraão não somente Israel, fruto de sua descendência, terá um


futuro de paz e abundância, como todas ‘as famílias da terra’. O universalismo da
Fé, algumas vezes negado por uma má compreensão dos privilégios de Israel é
reconhecidamente um dos mais belos projetos divinos colocados profeticamente
nas origens do antigo Povo de Deus.

capítulo 4 • 106
No entanto, Abraão e sua descendência não são e nem vivem numa esfera
idílica. O pecado existe e continuará a fazer vítimas. Em Abraão, todavia, nasce
outra realidade que se tornará definitiva no Novo Testamento, em Cristo: o regime
sacramental. De certa maneira era atuação do Mistério de Deus através de Israel.
Sacramentos como mediações eficazes do poder divino que reordenava todas as
coisas pela obediência abraâmica.
Não só o antigo povo de Deus irradiava bênção, pela aceitação dos manda-
mentos de Deus a outras nações, mas também o pecado, pela negação de Israel e
da ordem divina revelada, traria desgraça e maldição.
“Assim partiu Abrão como o Senhor lhe tinha dito, e foi Ló com ele; e era Abrão da
idade de setenta e cinco anos quando saiu de Harã” (Gn 12, 4).

Se de um lado, temos o imperativo da Vontade divina, expressa na ordem


divina, no ditame da vocação dada a Abraão, do outro temos o ato concreto de
obediência: “Assim partiu Abrão como o Senhor lhe tinha dito”. O mundo mudou
assim, Deus ordena e o homem prontamente obedece e segue seus ditames.

O livro do Gênesis e os nomes divinos

Ao primeiro livro da Bíblia – e, portanto, do Pentateuco – dá-se o nome de


GÊNESIS. É termo grego e significa “origem”, “nascimento”. Os livros da Bíblia
Hebraica não tinham qualquer título. Eram chamados, simplesmente, pela primeira
ou pelas primeiras palavras. Assim, este foi denominado, simplesmente de ‘Bereshit’ 33.
Os autores da tradução da Bíblia Hebraica para o grego (Bíblia dos Setenta)34
acharam por bem dar aos livros um título de acordo com o seu conteúdo. Como este
livro trata do princípio de tudo, chamaram-lhe GÊNESIS, isto é, Livro das Origens.
Em seus cinquenta capítulos este livro responde a duas formas de origem de
Deus, que em suas respostas colocariam o livro em uma ordem inversa aquela que
33  Bereshit (do hebraico ‫בראשיִׁת‬, Bereshít, "no início", "no princípio", primeira palavra do texto) é o nome da
primeira parte da Torá. Bereshit é chamado comumente de Gênesis pela tradição ocidental e trata-se praticamente
do mesmo livro apesar de algumas diferenças, principalmente no que lida com interpretações religiosas com outras
religiões que aceitam o livro de Gênesis. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Bereshit>.
34  Septuaginta é o nome da versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o grego koiné, entre o século III
a. C. e o século I a. C., em Alexandria. Dentre outras tantas, é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego,
língua franca do Mediterrâneo oriental pelo tempo de Alexandre, o Grande. A tradução ficou conhecida como a
Versão dos Setenta (ou Septuaginta, palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois setenta e dois rabinos
(seis de cada uma das doze tribos) trabalharam nela e, segundo a tradição, teriam completado a tradução em setenta
e dois dias. A Septuaginta, desde o século I, é a versão clássica da Bíblia hebraica para os cristãos de língua grega e
foi usada como base para diversas traduções da Bíblia. A Septuaginta inclui alguns livros não encontrados na bíblia
hebraica. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Septuaginta>.

capítulo 4 • 107
lemos. Primeiro teríamos o plano história de Israel (12-50,26) e depois o plano
Universal, com as narrativas da Criação e do Pecado Humano (1-11,32).
De um lado, temos as origens de Israel, uma pergunta histórica, na lógica da
Salvação, como a encontramos descrita na saga de Abrão, o Caldeu. Do outro, um
campo mais vasto, a História da Criação e do Pecado.
Mas, como afirmamos acerca das tradições, a primeira questão das ‘origens’ re-
fere-se a Deus, sua Identidade, sua Palavra e os eventos em torno de sua Revelação.
Em outras palavras, quem é o ‘Deus de Abraão, Isaac e Jacó’? E ainda, quem é o
Deus Criador?
A segunda parte do atual livro do Gênesis relata uma destas respostas:
Gn 12-50,26 nela se reúne em diversas tradições esta questão. Israel se autocom-
preende na medida em que aceita e aprofunda a Revelação aos Pais.
Aliás, a História do Patriarcado de Israel situa a origem histórico-salvífica da
Comunidade da Aliança. A tradição nestes capítulos transmitiu a convicção das
origens de Israel, na ‘Berit’ 35, na Aliança, o Deus que se dirige a Abrão o torna
participante de uma relação estreita com Deus, e ao mesmo tempo, fonte de uma
nova forma de humanidade, a sua descendência.
Na Bíblia, o termo Aliança (em hebraico: berith; em grego, diatheke) é utili-
zado para definir o pacto divino entre Deus e os homens. Em ambas as partes, a
iniciativa é sempre divina. Na segunda, tudo começa com uma palavra divina que
oferece e estabelece Aliança, pela escolha de Abrão e sua Família (mulher e sobri-
nho) em vista de eventos futuros: “E, Deus disse a Abrão” (Gn 12,1).
A partir da resposta abraâmica, isto é, um ato de obediência e adesão à ordem
“Sai da tua terra e vai para onde eu te enviar” (v.1), lemos de fato, no v.4, que ele
partiu: “Abrão partiu como o Senhor lhe tinha dito, e Lot foi com ele”.
Aqui estão as primícias ou as origens de Israel, um Povo nascido da obediência e
da Fé abraâmica, que parte para onde Deus quer e envia, em detrimento de seus in-
teresses ou condições (v. “Abrão tinha setenta e cinco anos, quando partiu de Harã”).
Não se tratava de um jovem atrás de aventuras e emoções novas. Abrão e sua
mulher Sarai eram maduros quando são interpelados por Deus a abandonar o que
tem em busca do desconhecido e do arriscado.

35  Berith: Embora a etimologia de berith não esteja ainda de todo clarificada, algumas derivações têm sido
sugeridas, devendo ser estas as seguintes: 1. Berith é a forma feminina de brh , "comer pão, alimentar - talvez fazer
uma refeição" (II Sm 3:35; 12:17; 13:5,6,10; Sl 69:22; Lam. 4:10), e refere-se à refeição festiva que acompanhava
a cerimónia pactual. Poderíamos comparar a isto, o termo grego ‘spondê’ (= libação) para "pacto, aliança" o qual
refletia a cerimónia executada quando o pacto era concluído. Cf. <https://pt.scribd.com/doc/36505825/69-Berith-
O-conceito-Alianca-Concerto-Pacto-Hebraico>.

capítulo 4 • 108
Este ciclo abraâmico deverá concluir-se com o ciclo narrativo de José, seu
bisneto, filho de seu neto, Jacó. Veremos em cada um destes ciclos como Deus
age e como interpela Israel a comportar-se diante d’Ele e diante dos povos pagãos.
Enquanto isso, na primeira parte do Livro do Gênesis está a ação soberana de
Deus como criador no Universo. Sabemos que este grau de afirmação da Fé do
Povo de Israel em Deus é uma exigência nascida da dura experiência do Exílio,
quando a superação do modelo cosmogônico (gênesis do mundo ou do cosmos)
dos pagãos é possível pela afirmação do ‘dogma’ judeu da Criação divina pelo
Deus Único e Verdadeiro, aquele de Abrão, Isaac e Jacó. O Amigo de Moisés.
Além da questão das origens, colocada nos dois relatos da Criação, temos
também a questão delicada da origem do mal, das desgraças, colocada pela men-
talidade pagã, comum à Israel, no Egito e na Babilônia, assim como pela Grécia,
em sua mitologia. Israel guarda e comunica uma verdade sobre o Mal humano,
que se afasta da confusão panteísta pagão e mesmo, da indiferença ética do mundo
pagão, por causa do mistério da liberdade humana.

Deus se dá conhecer a Abraão pelo nome divino

Ele deve aprender a esperar e confiar em Deus. É Deus que liberta, Moisés
conduz. Além disso, aqui se apresenta o modelo da ação ‘salvífica’ de Deus, de
Abraão, Isaac e Jacó.
Não haverá simples intervenção divina a cada dificuldade ou contrariedade.
Israel é o campo de batalha da Fé.
Nestes anos de deserto se aprenderá a crer e obedecer em Deus, Único e
Verdadeiro, pelas sendas da História, humana e conturbada.

Gn 17: a renovação da Berith

Gn 17: a unidade apresenta a renovação da Berith, da Aliança de Deus com


Abraão, a mudança de nome e a reafirmação das promessas com a circuncisão:

Sendo, pois, Abrão da idade de noventa e nove anos, apareceu o SENHOR a Abrão, e
disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso, anda em minha presença e sê perfeito. E porei
a minha aliança entre mim e ti, e te multiplicarei grandissimamente (Gênesis 17,1-2).

capítulo 4 • 109
Esta afirmação enraíza as bases autênticas da relação entre Abrão e Deus: ‘Eu
sou o Deus Todo-Poderoso’, Deus é suprema autoridade na vida e nas decisões de
Abrão. Ele não deve dar ouvido a outrem.
Reafirma-se a trajetória da aliança iniciada lá em Gn 12. Aliança que supõe
dependência plena de Deus, que oferece em seu enorme poder, Salvação humana:

E estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua descendência depois de ti em


suas gerações, por aliança perpétua, para te ser a ti por Deus, e à tua descendência
depois de ti (Gênesis 17,7).

Ao mesmo, tempo, a Aliança com Deus é patrocínio de ‘mudança’ de vida, de


santificação.
No desenrolar-se da história da Salvação, de fato, teremos o Código da
Santidade para todo Israel: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso, anda em minha presença
e sê perfeito” (Gênesis 17,1). Sê perfeito, segue meus caminhos, anda na minha
Presença. Um programa de vida fantástico, depois dos equívocos anteriores.
A vida na presença de Deus é o primeiro fruto da Aliança, e ao mesmo tempo,
constitui uma exigência no estabelecimento de relações tão precisas, como aquelas
entre Deus e o homem. Depois do esquecimento e do medo de Deus, nasce a
memória e a consciência do primado de Deus, na vida, no mundo, no coração.
Seguem-se outras exigências que ‘provem’ e, demonstrem que a Casa Patriarcal
estará para sempre em sintonia com as exigências da Aliança abraâmica:

Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois
de ti: Que todo o homem entre vós será circuncidado. E circuncidareis a carne do
vosso prepúcio; e isto será por sinal da aliança entre mim e vós (Gênesis 17,10-11).

Assim, como no dilúvio, há um sinal, agora, no corpo masculino, da pertença


exclusiva a Deus.
Para o patriarca da crítica veterotestamentária, Julius Wellhausen, toda a histó-
ria sacerdotal estaria cravejada de alianças: na criação, depois do dilúvio em Noé,
no limiar da história santa com Abraão, enfim no Sinai. Livro das Quatro Alianças
podia muito bem ser o nome do escrito sacerdotal, em sigla Q (quatuor).
Replica W. Zimmerli que as alianças sacerdotais se reduzem a metade. Nem
a criação nem o Sinai têm algo a ver com aliança, na perspectiva sacerdotal. Há
apenas duas alianças em P: a de Noé (Gn 9, 8-17) e a de Abraão (Gn 17, 1-14). A

capítulo 4 • 110
primeira tem o arco-íris como sinal; a segunda expressar-se-á na circuncisão, que
distinguirá Abraão e os seus descendentes.
Outro aspecto, a pertença a Deus pela Aliança, atinge diretamente a Abrão e
Sarai, que terão seus nomes redefinidos pela lógica divina, do Deus, Todo Poderoso:

E não se chamará mais o teu nome Abrão, mas Abraão será o teu nome; porque por pai
de muitas nações te tenho posto. Disse Deus mais a Abraão: A Sarai tua mulher não
chamarás mais pelo nome de Sarai, mas Sara será o seu nome (Gênesis 17, 5. 15).

Novas denominações significam novos destinos e perspectivas de vida. Deus se


mostra, na lógica da reconstrução da história humana, destituída de pleno sentido
pelo pecado, como o Senhor e Aquele que Ressignifica a existência humana. Uma
clara contraposição com a falsa proposta da serpente: ‘sereis como deuses’.
O capítulo 17 ainda oferece-nos a questão da prole abraâmica, numa cena
inusitada, que antecipa o próximo capítulo da visita dos três homens (anjos).

Porque eu a hei de abençoar, e te darei dela um filho; e a abençoarei, e será mãe das
nações; reis de povos sairão dela. Então caiu Abraão sobre o seu rosto, e riu-se, e disse
no seu coração: A um homem de cem anos há de nascer um filho? E dará à luz Sara
da idade de noventa anos? (Gênesis 17, 16-17)

Aqui, o ‘riso’ está sobre os lábios de Abraão, que tem seus pensamentos ínti-
mos revelados pelo narrador.
Ele fadiga a crer que para além de Ismael, outro filho lhes advenha. Um misto
de adoração e dúvida. A típica oração de pecadores, que se dirigem a Deus, mas
não confiam nele!

Moisés e os nomes de Deus

O livro do Êxodo possui 40 capítulos. Estes têm um protagonista: O Deus


‘que ouve os clamores do meu Povo no Egito’:

E disse o Senhor: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho
ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores (Ex 3, 7).

capítulo 4 • 111
Isto quer dizer que no Êxodo aprofundamos ao grau mais abissal o grande
motivo e razão de ser das Sagradas Escrituras, fixar a experiência e o valor da
REVELAÇÃO DIVINA, como Auto-Comunicação de Deus.
O Concilio Vaticano II dedicou uma Constituição Dogmática a respeito dis-
so, a “DEI VERBUM’ (A Palavra de Deus):

Aprouve a Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer


o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens, por meio de Cristo,
Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da
natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível
(cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos
(cfr. Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e
admitir à comunhão com Ele. Esta economia da revelação realiza-se por meio de ações
e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas
por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades
significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem
o mistério nelas contido. Porém, a verdade profunda tanto a respeito de Deus como
a respeito da salvação dos homens, manifestasse-nos, por esta revelação, em Cristo,
que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação (DV 2).

Fonte: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents
/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html>.

No centro da experiência do Êxodo se encontra bem radicada esta verdade


sobre a decisão Divina de revelar-se a Si mesmo: ‘Aprouve a Deus na sua bondade e
sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade’.
Portanto, a leitura deste livro deve estar focada no conhecimento de Deus, que
se apresenta inaugurador com a obra da Libertação do Egito e da condução no
deserto até a ‘terra prometida’.
Ao lado de Deus, o personagem humano central na Bíblia hebraica: Moises.
Sua vocação é um momento espetacular na trajetória atormentada e abençoada
deste homem de Deus:

E apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote em Midiã; e levou o


rebanho atrás do deserto, e chegou ao monte de Deus, a Horebe. E apareceu-lhe o
anjo do Senhor em uma chama de fogo do meio duma sarça; e olhou, e eis que a sarça
ardia no fogo, e a sarça não se consumia. E Moisés disse: Agora me virarei para lá, e
verei esta grande visão, porque a sarça não se queima. E vendo o Senhor que se virava
para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça, e disse: Moisés, Moisés. Respondeu ele:

capítulo 4 • 112
Eis-me aqui. E disse: Não te chegues para cá; tira os sapatos de teus pés; porque o
lugar em que tu estás é terra santa. Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó. E Moisés encobriu o seu rosto, porque
temeu olhar para Deus (Ex 3, 1-6).

Moises tira as sandálias, o que significa, entende que os eventos maiores de sua
vida estão por começar e não dependerão mais absolutamente de sua alta forma-
ção humana (criado no palácio do Faraó), nem de seu forte carácter, mas de Deus.

a) Ex 5: Moisés aprende a fé na realidade

E disseram-lhes: O Senhor atente sobre vós, e julgue isso, porquanto fizestes o nosso
caso repelente diante de Faraó, e diante de seus servos, dando-lhes a espada nas
mãos, para nos matar (Ex 5, 21).

Esta é a percepção inicial da história da Salvação trazida por Moisés e Aarão


da parte do Povo. Deus, esse estranho do passado trouxera sofrimento. A palha
dada agora deve ser buscada e os tijolos entregues: ‘Palha não se dá a teus servos,
e nos dizem: Fazei tijolos; e eis que teus servos são açoitados; porém o teu povo tem a
culpa (Ex 5, 16)’.
A Salvação não é simples intervenção de Deus tornando nossa vida mais con-
fortável e segura. Não se confia em Deus somente porque em nossa vida tudo
esteja bem. Em Deus se confia no sofrimento.
Aqui se percebe a teologia dos milagres como um ensinamento oposto ao en-
godo e ao engano dos cristãos neopentecostais das ‘igrejotas’ de ‘milagres, bênçãos
e prosperidade’, que lamentavelmente se propagam entre nós, e quem sabe até por
nossa responsabilidade.
No fim, o próprio Moisés ainda sem Fé madura se une ao ‘coro’ lamentoso
dos judeus no Egito. Ele imaginava em sua superficialidade, Deus virá e pronto,
estaremos salvos.

Então, tornando-se Moisés ao Senhor, disse: Senhor! Por que fizeste mal a este povo?
Por que me enviaste? Porque desde que me apresentei a Faraó para falar em teu
nome, ele maltratou a este povo; e de nenhuma sorte livraste o teu povo (Ex 5, 22-23).

capítulo 4 • 113
Crises de uma vocação nascente. Ele quer enquadrar a Deus em suas estreitas
concepções de como Deus deve se comportar e agir. Moisés ainda não percebeu
que para crer em Deus, fé sadia, não se pode colocar condições a Deus. Ele não
fará nossa vontade, Ele não tem prazos impostos por nossas urgências, Ele nos
conduzirá por caminhos a nós estranhos.
Por isso, o Cap. 6 é um longo monólogo. Aos ‘por quês’ de Moises, aturdido
por sua fé insípida, Deus se contrapõe com revelação mais profunda de Si mesmo.
Não há conteúdo inédito, mas revisitação da Tradição dos Pais.

b) Ex 6: quem é o Deus que liberta Israel?

O texto possui dupla função: de um lado, aprofundar a Revelação iniciada


na sarça ardente, e ao mesmo tempo, endossar ao mensageiro aquilo que deve
comunicar. É evidente que sendo textos escritos em período profético, pós exílico,
eles expressam claramente a vocação mosaica a partir do modelo profético: escuta
e comunica ao Povo!

Falou mais Deus a Moisés, e disse: Eu sou o Senhor. E eu apareci a Abraão, a Isaque, e
a Jacó, como o Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, o Senhor, não lhes fui per-
feitamente conhecido. E também estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes
a terra de Canaã, a terra de suas peregrinações, na qual foram peregrinos. E também
tenho ouvido o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios fazem servir, e lem-
brei-me da minha aliança (Ex 6, 2-5).

Moisés a pouco reintroduzido no seio da tradição judaica dos Pais, deve cada
vez mais inserir-se neste contexto teológico da Revelação a Abraão para poder
exercer plenamente seu papel. Definitivamente ele não é o centro da solução, seus
talentos humanos não serão suficientes para libertar Israel.
Ao mesmo tempo, sua função profética implica que ele forneça a Israel ele-
mentos para crer e celebrar a Identidade do Deus dos Pais. Que Israel se adapte a
Deus, experimentando seu Poder, sua Justiça e particularmente sua Misericórida!

Portanto dize aos filhos de Israel: Eu sou o Senhor, e vos tirarei de debaixo das cargas
dos egípcios, e vos livrarei da servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com
grandes juízos. E eu vos tomarei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que
eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas dos egípcios; E eu
vos levarei à terra, acerca da qual levantei minha mão, jurando que a daria a Abraão, a
Isaque e a Jacó, e vo-la darei por herança, eu o Senhor (Ex 6, 6-8).

capítulo 4 • 114
Os nomes de Deus no antigo testamento

Também os apologistas cristãos concordarão com a teologia helénica na convicção


de que “ninguém pode dar um nome a Deus”. Jacob perguntou pelo seu nome, depois
de uma longa luta noturna, mas não obteve resposta (Gn 32,29). O nome do Deus de
Israel é também “misterioso” (Jz 13,18). Por outro lado, é precisamente este o pres-
suposto fundamental para a afirmação do dado novo e único da revelação: “O Deus
inominável falou a Moisés”. O Deus que se revelou deixou de ser “anônimo”, para ser
pessoal. Na verdade, a tradição judaico-cristã desenvolverá a sua especulação à volta
do “nome secreto” fundamentalmente a partir da teofania concedida a Moisés, em Ex
3,13-14 (LAMELAS, 2008, p. 170).

Também Moisés perguntou pelo Nome (Ex 3,13), e a resposta foi inesperada:
“Eu sou Aquele que Sou”. Donde deriva o tetragrama sagrado YHWH.

A versão grega dos LXX36 traduziu o hebraico por ego eimi. E a Vulgata lati-
na , por sua vez, verteu para ego sum qui sum.
37

36  Septuaginta é o nome da versão da Bíblia hebraica traduzida em etapas para o grego koiné, entre o século III
a.C. e o século I a.C., em Alexandria. Dentre outras tantas, é a mais antiga tradução da bíblia hebraica para o grego,
lingua franca do Mediterrâneo oriental pelo tempo de Alexandre, o Grande. A tradução ficou conhecida como a
Versão dos Setenta (ou Septuaginta, palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois setenta e dois rabinos
[1] (seis de cada uma das doze tribos) trabalharam nela e, segundo a tradição, teriam completado a tradução em
setenta e dois dias. A Septuaginta, desde o século I, é a versão clássica da Bíblia hebraica para os cristãos de língua
grega [1] e foi usada como base para diversas traduções da Bíblia.
A Septuaginta inclui alguns livros não encontrados na bíblia hebraica. Muitas bíblias da Reforma Protestante seguem
o cânone judaico e excluem estes livros adicionais. Entretanto, católicos romanos incluem alguns destes livros em
seu cânon e as Igrejas ortodoxas usam todos os livros conforme a Septuaginta. Anglicanos, assim como a Igreja
oriental, usam todos os livros exceto o Salmo 151, e a bíblia do rei Jaime em sua versão autorizada inclui estes
livros adicionais em uma parte separada chamada de Apocrypha. A Septuaginta foi tida em alta conta nos tempos
antigos. Fílon de Alexandria considerava-a divinamente inspirada. Além das traduções latinas antigas, a Septuaginta
também foi a base para as versões em eslavo eclesiástico, para a Héxapla de Orígenes (parte) e para as versões
armênia, georgiana e copta do Antigo testamento. De grande significado para muitos cristãos e estudiosos da Bíblia,
é citada no Novo Testamento e pelos Padres da Igreja. Muito embora judeus não usassem a Septuaginta desde o
século II, recentes estudos acadêmicos trouxeram um novo interesse sobre o tema nos estudos judaicos. Alguns
dos pergaminhos do Mar Morto sugerem que o texto hebraico pode ter tido outras fontes que não apenas aquelas
que formaram o texto massorético. Em vários casos, estes novos textos encontrados estão de acordo com a LXX.
Os mais antigos códices da LXX (Vaticanus e Sinaiticus) datam do século IV. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Septuaginta >.
37  Vulgata é a forma latina abreviada de vulgata editio ou vulgata versio ou vulgata lectio, respectivamente "edição,
tradução ou leitura de divulgação popular" - a versão mais difundida (ou mais aceita como autêntica) de um texto.
No sentido corrente, Vulgata é a tradução para o latim da Bíblia, escrita entre fins do século IV início do século V,
por São Jerónimo, a pedido do Papa Dâmaso I, que foi usada pela Igreja Cristã e ainda é muito respeitada. Nos
seus primeiros séculos, a Igreja serviu-se sobretudo da língua grega. Foi nesta língua que foi escrito todo o Novo
Testamento, incluindo a Carta aos Romanos, de São Paulo, bem como muitos escritos cristãos de séculos seguintes.
No século IV, a situação já havia mudado, e é então que o importante biblista São Jerónimo traduz pelo menos o
Antigo Testamento para o latim e revê a Vetus Latina. A Vulgata foi produzida para ser mais exata e mais fácil de

capítulo 4 • 115
Nestas três versões estão assinalados os momentos decisivos da história
da theologia que é, em grande parte, um percurso de sucessivas traduções ou
reinterpretações.
Já a teologia judaica via na tradição do Nome (Ex 3,14) a negação do próprio
Nome. O Nome de Deus é confiado a Israel; não, porém, para ser usado, mas para
ser “santificado”.
O nome designa a inefabilidade de Deus e, equivalendo ao que os gregos
chamam ousia38 (substância), permanece misterioso (cf. Gn 32,30) e inacessível.
A essência torna-se, assim, o Nome de Deus, que “é um Nome para sempre”,
mas é também a negação do Nome que Moisés e o povo esperavam (Ex 3,13).
De fato, pressupondo a referida tradição/tradução bíblica e apoiados por um
certo consenso da filosofia religiosa dominante, a especulação cristã vai servir-se
deste nome assim revelado a Moisés para reafirmar a transcendência e incompreen-
sibilidade do Nome divino.
Deus tem, portanto, um nome, mas é “um nome que está acima de todos os
nomes” (Ef 1,2,1; Fl 2,9).
O mesmo é dizer que Deus, embora sendo o autor do mundo e de todas as
coisas, não se identifica com o mundo nem com as suas criaturas.
Deste modo, se afirma por um lado, a grandeza inominável de Deus, ideia
partilhada pela filosofia religiosa em geral, assim como também se salvaguarda a
sua transcendência inefável; por outro lado, demonstra-se contemporaneamente
que tal transcendência não é incompatível com a revelação dum Deus pessoal que,
de fato, revela o seu Nome.
compreender do que suas predecessoras. Foi a primeira, e por séculos a única, versão da Bíblia que verteu o Velho
Testamento diretamente do hebraico e não da tradução grega conhecida como Septuaginta. [carece de fontes] No
Novo Testamento, São Jerônimo selecionou e revisou textos. Chama-se, pois, Vulgata a esta versão latina da Bíblia
que foi usada pela Igreja Católica Romana durante muitos séculos, e ainda hoje é fonte para diversas traduções. O
nome vem da expressão vulgata versio, isto é "versão de divulgação para o povo", e foi escrita em um latim cotidiano,
usado na distinção consciente ao latim elegante de Cícero, o qual Jerônimo considerava seu mestre. A denominação
Vulgata consolidou-se na primeira metade do século XVI, sobretudo a partir da edição da Bíblia de 1532, tendo
sido definitivamente consagrada pelo Concílio de Trento, em 1546. O Concílio estabeleceu um texto único para a
Vulgata a partir de vários manuscritos existentes, o qual foi ratificada mais uma vez como a Bíblia oficial da Igreja,
confirmando assim os outros concílios desde o século II, e a essa versão ficou conhecido como Vulgata Clementina.
Após o Concílio Vaticano II, por determinação de Paulo VI, foi realizada uma revisão da Vulgata, sobretudo para
uso litúrgico. Esta revisão, terminada em 1975, e promulgada pelo Papa João Paulo II, em 25 de abril de 1979, é
denominada Nova Vulgata e ficou estabelecida como a nova Bíblia oficial da Igreja Católica. Cf. <https://pt.wikipedia.
org/wiki/Vulgata>.
38  Ousía (οúσíα, pronúncia moderna "ussía") é um substantivo da língua grega formado a partir do feminino do
particípio presente do verbo "ser", εíναι, einai. A palavra é, por vezes, traduzida para português como substância ou
essência, devido à sua vulgar tradução para latim como substantia ou essentia. É termo utilizado em Filosofia e em
Teologia. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ousia>.

capítulo 4 • 116
Ao fornecerem um perfil ainda que exterior aparente e parcial de Deus, os no-
mes ajudam-nos a chegar a Ele, iluminando-se reciprocamente e conduzindo-nos
a uma compreensão mais cabal da profundidade de Deus.

Conclusão

O problema do Nome divino é um tema aberto de toda a teologia. Por isso, depois
do percurso rico de bifurcações e atalhos que nos trouxe aqui, mais do que deduções
conclusivas, poderemos deixar algumas reflexões finais sobre os limites e potencialida-
des da linguagem teológica.
Não há dúvidas que o homem não nomeia a Deus, a não ser na história da
idolatria. Isto é, quando construímos deuses à nossa imagem e semelhança, para
os nossos fins pessoais.
No processo de revelação (especial) o que vemos é a Ação de Deus, que se
mostra, que se apresenta. Deus não é nomeado pelo homem, senão, que Ele se
auto apresenta.
Tanto intuição e reflexão extra-bíblica, como a tradição escriturística (desde
Ex 3,14) obrigam à rejeição de todo o nome vindo das criaturas ou da linguagem
humana. Mesmo na revelação bíblica, Deus não diz o seu nome, assim como nun-
ca revela o mistério da sua identidade íntima (nunca mostra o rosto). Segundo a
melhor tradição bíblica, Deus apresenta-se como “Aquele que é e age”.
Temos deste modo, acesso a Deus pelas suas obras, pelo seu agir em favor dos
homens, sobretudo pelo Emanuel, “Aquele que é aqui”. Qualquer nome atribuído
a Deus não é senão um compêndio incompleto da sua ação salvífica na história.
O nome de Deus é aquele mediante o qual Ele se revela ao homem. Enquanto
tal exprime o ser de Deus para aqueles “sobre os quais o seu nome é evocado”, e
sobre aqueles que “santificam o seu nome”.
Afirmar que não conhecemos o Nome, equivale a dizer que não conhecemos o
que Deus é. Mas afirmar que não conhecemos o ser de Deus é o mesmo que dizer,
negativamente, que não podemos conhecer Deus; positivamente, que Deus trans-
cende todo o conhecimento finito.

capítulo 4 • 117
ATIVIDADE
01. Moisés disse a Deus: “Quando eu for para junto dos israelitas e lhes disser que o Deus
de seus pais me enviou a eles, que lhes responderei se me perguntarem qual é o seu nome?”.
Deus respondeu a Moisés: “EU SOU AQUELE QUE SOU”. E ajuntou: “Eis como responderás
aos israelitas: (Aquele que se chama) EU SOU envia-me junto de vós”. Deus disse ainda a
Moisés: “Assim falarás aos israelitas: É JAVÉ, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o
Deus de Isaac e o Deus de Jacó, quem me envia junto de vós. Este é o meu nome para sem-
pre, e é assim que me chamarão de geração em geração” (Ex 3, 13-15).

A partir do que lestes neste capítulo sobre o Nome de Deus. O que se pode dizer sobre
a identidade de Deus e a revelação do seu Nome? O que se pode esperar de quem conhece
o Nome Divino?

capítulo 4 • 118
5
Implicações da
Revelação na vida
religiosa
Implicações da Revelação na vida religiosa
Todos estes elementos que já analisamos sobre os conceitos de Revelação têm im-
plicações na vida religiosa, pois, a vida religiosa no judeu-cristianismo se define tam-
bém por suas relações com Deus. Eis o sentido do conceito judaico de Berith (Aliança).
Não há como ignorar que a Revelação se tornou conteúdo de vida de Israel,
no Antigo Testamento, assim como no Evangelho, o Cristianismo se tornou para-
digma de cultura e vivência histórica da Fé.
A vida religiosa nasce e se reestrutura constantemente graças à evolução com-
preensiva que se tem da revelação como conteúdo de vida. O que Deus nos revela
sobre si mesmo implica numa forma de agir, a revelação gera um ‘ethos’ 38.
A partir da herança judaico-cristã supera-se a experiência religiosa como nar-
rativa mítica, para ensaiar as relações complexas entre Divino e o dever histórico.
O Judaísmo inaugura uma experiência religiosa que se pode denominar ‘História
da Salvação’. O teólogo tardo antigo, Agostinho mergulhou nesta perspectiva para
resumir no Cristianismo todas as possibilidades das relações entre Deus e a história.

Introdução

Referimo-nos à ideia de que Deus, em sua livre relação para com a sua criatura, não é
uma causa categorial ao lado de outras, mas, sim, o vivo, permanente e transcendental
fundamento da própria evolução do mundo. Também o mundo, a seu modo, se insere
na relação entre Deus e o homem, no fato da Revelação e na sua história. E isto na
mais ampla medida, porque esta história, na medida mais extrema, deve ser igualmente
ação de Deus e ação do homem, uma vez que, em si, ela é a mais alta realidade no ser
e no evoluir do mundo.

Para compreendermos esta citação do teólogo alemão é preciso estabelecer que


se trate da complexa pergunta, quando sabemos de estar diante de uma experiên-
cia de Revelação Especial?

38  Ethos é uma palavra com origem grega, que significa "caráter moral". É usada para descrever o conjunto de
hábitos ou crenças que definem uma comunidade ou nação. No âmbito da sociologia e antropologia, o ethos são os
costumes e os traços comportamentais que distinguem um povo. Por exemplo, ethos dos indianos. Também pode ser
usada para se referir à influência da música nas emoções dos ouvintes, nos seus comportamentos e até mesmo na
sua conduta. O ethos também exprime o conjunto de valores característicos de um movimento cultural ou de uma
obra de arte. Ethos pode ainda designar as características morais, sociais e afetivas que definem o comportamento
de uma determinada pessoa ou cultura. O ethos se refere ao espírito motivador das ideias e costumes. Na retórica, o
ethos é um dos modos de persuasão ou componentes de um argumento, caracterizados por Aristóteles. O ethos é a
componente moral, o caráter ou autoridade do orador para influenciar o público. As outras componentes são o logos
(uso do raciocínio, da razão) e o pathos (uso da emoção). Cf. <https://www.significados.com.br/ethos/>.

capítulo 5 • 120
Para Rahner há de se configurar na consciência humana ‘a unidade e inter-re-
lação entre Revelação categorial e Revelação histórica’.
Se tomarmos os conceitos complementares de Revelação Especial e Natural
como vimos anteriormente, fica claro que a verdadeira compreensão do fenômeno da
Revelação Divina, passa pela intransigente questão sobre o Deus que fala e, ao mesmo
tempo, acerca das condições humanas da audição e da resposta a Deus, na História.
O Cristianismo pela sua condição e convicção de ser a ‘Religião da plena Revelação’
do Filho (Jo 1,14) pela Encarnação Redentora de Jesus Cristo, ensina-nos que há de
se entrecruzar na expressão ‘Deus Conosco’, o Emanuel, os aspectos indispensáveis da
Revelação Especial, que é Deus Mesmo manifestado, isto é um evento Transcendente,
e ao mesmo tempo em que neste Evento, o homem tenha recebido no âmbito da his-
tória a Revelação como evento imanente da Verdade e do Ser Divino.

Neste capítulo entre a transcendental coparticipação de Deus e sua definitiva mediação


e manifestação histórica, uma vez que se trata da comunicação de Deus em si mesmo,
é revelado também o mistério fundamental do Deus trino, enquanto se considera neste
mistério somente o aparecimento de Deus conosco, na história e na transcendência, ou
seja, do Deus trino, Pai, Filho e Espírito Santo, em sua possibilidade de vir a manifestar-se
na transcendência do homem e na sua história.

RAHNER, K. Observações sobre o Conceito de Revelação. Disponível em: <https://pt.scribd.


com/doc/93433877/revelacao-e-tradicao-joseph-ratzinger>. Acesso em: 31 out. 2017.

OBJETIVOS
•  Demonstrar as implicações da Revelação na vida religiosa. De que maneira o conteúdo da Fala
Divina entra na consciência humana e se torna uma forma de viver?;
•  Analisar a herança judaica da ética como implicação da religião revelada;
•  Estudar as implicações da Revelação atrás do discurso histórico. Através da teologia de
Agostinho decifrar o discurso histórico e a teologia.

As relações entre Revelação especial e história

Para Karl Rahner, a primeira implicação reside no fato que a Revelação especial
é um evento Transcendente e ao mesmo tempo, que ocorre no âmbito da História:

capítulo 5 • 121
A experiência transcendental referida chama-se, usualmente, história da Revelação,
quando ela é realmente história da verdadeira exposição desta experiência sobrenatu-
ral e transcendental e não a sua contrafação.

RAHNER, K. Observações sobre o Conceito de Revelação. Disponível em: <https://pt.scribd.


com/doc/93433877/revelacao-e-tradicao-joseph-ratzinger.> Acesso em: 31 out. 2017.

Em outros termos, quando ela é o resultado positivo desta transcendental


participação de Deus pela graça.
Quando ela ocorre por disposição da Providência sobrenatural de Deus
Salvador.
Se for assim compreendida a unidade e inter-relação entre Revelação cate-
gorial e Revelação histórica, ou melhor, o elemento transcendental e o elemento
histórico (mediador) de uma revelação e de sua história, serão, então, também
visíveis uma primordial distinção no que é revelado.
O conceito de transcendência na religião judaica e cristã relaciona dialetica-
mente os polos opostos do Absoluto, que transcende o imanente, o terrestre e a
história, que pertence em parte ao sujeito humano.
Deste modo passamos agora à interessante contribuição de Santo Agostinho
às questões da Teologia da História, isto, como ver e julgar elementos da revelação
Divina no âmbito da historicidade humana.

Agostinho de Hipona e as relações entre Revelação e história

Os Imperadores pensavam conjurar o destino ao trocar os deuses tutelares, que ha-


viam falhado, pelo Deus novo dos cristãos. A renovação constantiniana parece justifi-
car todas as expectativas: sob a égide de Cristo a prosperidade e a paz parecem voltar.
Tratou-se apenas de uma breve recuperação, e o Cristianismo era um falso aliado de
Roma. Para a Igreja, as estruturas romanas representam apenas um modelo, uma base
de apoio, um instrumento para se afirmar (LE GOFF, 2005, p. 21).

O estudo sobre a ‘fortuna’ de ‘De Civitate Dei’ de Santo Agostinho no contex-


to do ‘medo’ (DELUMEAU, 2004) se inscreve na trajetória consagrada de autores
que renovaram a historiografia dos séculos V-XV, denominado como ‘medieval’.
Esta renovação permitiu a redescoberta de valores, características e modelos
culturais que ‘refrescaram’ a memória dos ‘preconceitos’ gerados pelo denegrimen-
to desta etapa da história europeia e humana, em particular, aquela Ocidental.

capítulo 5 • 122
As raízes cristãs do ocidente podem assim, ser resgatadas para uma análise
mais apropriada de seu papel decisivo na construção da identidade ocidental.

Entre os ‘ícones’ históricos deste resgate está o inconfundível Santo Agostinho: ‘Depois de
São Paulo, Santo Agostinho é o personagem mais importante da instalação e o desenvol-
vimento do Cristianismo. É o grande Professor da Idade Média’. (LE GOFF, 2007, p. 31).

Os séculos IV e V são por isso, decisivos na reconstrução analítica da Europa


ocidental, pois neles encontramos os personagens, os fatos, e as obras que caracte-
rizam o período tardo-antigo, o prenúncio da plena Idade medieval.

Filosofia da religião, ‘theologia’ da história ou cultura política?

Já Platão em Fédon 85d utilizando-se da imagem de uma nave muito frágil,


havia reconhecido a precariedade e a insuficiência da razão humana, por si mesma,
para confrontar-se com o ‘mar da vida’, sendo necessária assim, uma ‘revelação
divina’ para enfrentar tal viagem.
E como não se pode ignorar a influência platônica na leitura cristã de
Agostinho, as reflexões que encontramos em suas “Confissões (XI)” indicam uma
meditação ‘agostiniana’ sobre o tempo, não indiferente às questões de seu tempo e
ao mesmo tempo, consciente do desafio de formular as bases filosófico-teológicas
mais profundas sobre o tempo, a cidade, o poder, a Igreja.
O recurso à religião, como discurso ‘científico’ 39, por isso, não é indevido,
ao contrário é o único possível para aqueles que diante dos fracassos das respostas
dadas, não se contentam em ‘saber que nada sabem’.
E para tal, certa compreensão histórica do Cristianismo se oferece como uma
verdadeira base na construção desta ‘aventura epistemológica’:

39  VERNANT, J.-Pierre. A Religião, objeto da Ciência? In: _______. Entre Mito & Política. São Paulo: Edusp, 2001,
87-94.

capítulo 5 • 123
Mas para além dos debates dos especialistas, é preciso constatar que o próprio mundo
contemporâneo nos interpela, em sua modernidade sobre o problema da religião e do
religioso, de suas formas, de seu lugar. Onde colocá-los? Como definí-los? Sem evo-
car fatos que uma atualidade demasiado candente, como aqueles relativos ao islã, à
India, a América do Sul ou à Polônia, e permanecendo no mesmo horizonte que nos é
mais familiar, nós nos perguntaremos, com Jean Séguy, “Se não existe esfera religiosa
solta, fora das Instituições religiosas e, eventualmente, no próprio campo do profano:
religiões implícitas, religiões de substituição, religiões analógicas, religiões seculares”.
Émile Poulat chamou seu último livro de l’Église, c’est um monde. Um mundo precisa
de tudo um pouco (VERNANT, 2001, p. 94).

A compreensão da história própria da revelação cristã se concretiza assim em


uma teologia da história que não nega a Filosofia, mas, assumindo-a e superando
-a, obviamente a valoriza.
E de fato, a expectativa agostiniana, assume criticamente a perspectiva filosó-
fica platônica. Ele critica a religião pagã, as filosofias imanentistas, as concepções
político-sociais enclausuradas no horizonte terreno, para afirmar o destino eterno
dos sujeitos singulares e da humanidade, pela relativização de todas as realidades
e instituições terrenas, que não podem ser absolutizadas, mas utilizadas somente
enquanto sirvam para atingir o fim eterno.

Heródoto, Tucídides e Políbio: o contexto ‘historiográfico’ de Agostinho

A verdadeira questão não gira em torno da questão se os gregos tinham uma mente
histórica, mas sim em torno dos tipos de história que escreveram e que nos transmi-
tiram. Começo com a história política, mas devo remontar ao tempo em que a história
política não tinha ainda sido inventada. (MOMIGLIANO, 2004: 54).

A obra Agostiniana de História expressa em ‘De Civitate Dei’, no entanto,


não se constitui como um fato isolado, como empresa intelectual. Ela pode ser lida
à luz dos estudos sobre a historiografia clássica, greco-romana.
Heródoto, ‘Pai da história’ (484-420 a.C.), aquele grande ‘viajador’ do mun-
do antigo, nos nove livros de sua ‘História’ dispondo todo o material à sua dis-
posição em torno dos grandes eventos das Guerras Persas, organiza sua ‘história’,
através de um estilo de narração ‘impessoal’.
A ‘estilística herodoteana’, de certa maneira, é fruto de sua concepção de dis-
curso historiográfico sobre a compreensão da natureza dos fatos e relatos (fonte).

capítulo 5 • 124
A situação histórica aparece-lhe multiforme e indefinida, e por que não con-
segue perceber-lhe a conclusão, Heródoto não pensa em poder compreendê-la e
avaliá-la em seu conjunto.
Tucídides (454-404 a.C.), ao contrário, de modo ‘pessoal’ (narrador), além
de referir-se aos fatos, buscava-lhe as causas. Por isso, a narrativa Tucidiana tem o
Presente e a Intervenção do historiador como pontos de vistas privilegiados.
Em sua ‘História’, obra em 8 livros, ele narra, como estrategista envolvido, as
guerras poliponésias, e na vitória de Esparta.
Ele vê o declínio de Atenas. Tucídides segue o desenvolvimento dos eventos,
esforçando-se em relacionar-lhes entre si, para colher os nexos entre os fatos e sua
causa, em busca da sua racionalidade.
Na concepção tucidiana os eventos históricos são determinados pelos homens
e por suas escolhas e assim eles carregam as razões das dinâmicas humanas e cons-
tantes que os regulam. Será Tucídides que imporá ao discurso historiográfico o
ideal de ‘historia magistra vitae’ (História, mestra da vida). Pois como o médico
intervém para curar a doença, assim o político pode agir para modificar o curso
dos eventos.
Com ele o método histórico atinge sua maturidade e a história se torna ciência
para conhecer o passado, abrem-se novas perspectivas.
No entanto, com o empréstimo das ‘racionalidades científicas’ advindas do
mundo natural, não se disporá de um instrumento de tudo adequado, para en-
frentar a complexidade do evento humano.
Por fim, a obra de Políbio (200 -118 a.C) ideólogo do grande império roma-
no. Depois da queda de Aníbal (220-168) o inteiro mundo conhecido se encontra
sob a unidade do Império Romano.
Ele se propõe em sua História (40 vol.) a descrever e explicar este fato nunca
verificado antes. Assim a um império universal corresponde a ideia de uma histó-
ria universal, que tem todos os seus eventos orientados a este fim convergente, que
é o império romano e deste receberia sua significação verdadeira.
Se Heródoto é atento aos fatos e Tucídides se volta atrás em busca das causas
dos eventos, Políbio olha em frente para perceber o fim a que tendem as diversas
vicissitudes da história.
É dentro desta perspectiva de pesquisa ‘polibiana’ que se pode inserir a cons-
trução histórico-política e teológica de ‘De Civitate Dei’ de Agostinho.

capítulo 5 • 125
Teologia do tempo e eternidade: uma ‘Dialética’ historiográfica em Agostinho

Diferentemente dos judeus, os cristãos mantiveram, ou melhor, depois de um intervalo,


retomaram seu interesse pela história. A espera do fim do mundo era um fato muito
mais opressor entre os cristãos que entre judeus e resultou em uma nova avaliação crí-
tica contínua dos eventos como portentos. O pensamento apocalíptico era um estímulo
à observação histórica. Além disso, e isto foi decisivo – a conversão de Constantino
implicou a reconciliação da maioria dos líderes cristãos com o Império Romano (es-
pecialmente o Leste) e deu à Igreja um lugar preciso nas questões humanas (MOMI-
GLIANO, 2004, p. 50).

Tempo e eternidade constituem as diretrizes da visão transfigurada da Cidade


Eterna, que em sua ‘decadência’ histórica permite a Agostinho vislumbrar a ‘vitó-
ria final da Cidade de Deus’.
A cidade da qual ele celebra vitória se circunscreve no presente, mas não está
radicada no tempo, ao contrário, mas na eternidade, onde a glória de Deus não tra-
monta e nenhuma outra potência pode sitiar a soberania de Deus que rege a cidade.
Portanto, Agostinho inscreve sua estratégia historiográfica de escritor cristão
do novo império, à luz das complexas relações entre tempo e eternidade.
Estas relações encontram-se trabalhadas nas tradições filosóficas da grecidade
entre as várias soluções que conhecemos. Desde Platão, que cinde claramente os
termos e tem por esteio a estabilidade ou instabilidade como referência temporal.
No entanto, até o sistema platônico em temática tão fronteiriça cederá às
seduções do orfismo, donde assumirá o corolário da reencarnação, ou Aristóleles,
que em ‘De Caelo’ constrói pela ciclicidade um instrumento crítico para lidar com
estas categorias, fundando no eterno retorno, algo da semântica histórica, entre
tempo e eternidade.
Os estoicos seguirão, a seu modo, a mesma medida, que permitirá a Plotino ab-
sorver o tempo na eternidade. Assim o tempo plotiniano não é outra coisa senão uma
projeção da eternidade, imagem móvel da eternidade imóvel (Cf. REALE, 2001).
No pensamento cristão, diversamente desta síntese filosófica grega do tempo,
na qual de uma forma ou de outra, por absorção do tempo pela eternidade ou
pelo seu contrário, chega-se à construção de uma semântica homogênea entre os
conceitos de tempo e eternidade, o tempo permanece o domínio do homem, efê-
mero e passageiro, enquanto a eternidade é soberania de Deus, não há chance de
‘homogeneizar’ tempo e eternidade neste campo do pensamento.

capítulo 5 • 126
Mesmo o tempo cristão não é cíclico, porque a irrepitibilidade e a autocons-
ciência humanas não o consentem, mas, sobretudo, por que o tempo cristão tem
uma nova medida advinda dos territórios da Ressurreição de Cristo. O ‘ephapax’
(irrepetível) de Cristo exclui qualquer noção temporal baseada na repetição40.
Por isso, na Cidade de Deus, a racionalidade da História só pode encontrar
fundamento na compreensão escatológica da História. Assim, o Fim e a Finalidade
são constitutivas internas da história.
Desta maneira, na “Cidade de Deus’, Agostinho pôde individualizar o fim da
história sem ater-se aos processos de decadência pontual nas formulações histó-
ricas imanentistas e, sobretudo, afirmar a coexistência incindível entre o mundo
material e o tempo.

Conclusões: Agostinho e a Revelação na história

À catástrofe romana, epílogo da história ‘Polibiana’, Santo Agostinho não jus-


tapõe ingenuamente uma nova gênesis.
Ao contrário, ele se distancia da visão pagã, na qual o homem tinha como me-
dida própria a cidade e pátria, como se pode ler na obra monumental de Platão,
a República.
Como também em Cícero, Agostinho compara a formação da virtude huma-
na com a formação cívica e urbana.
Para Agostinho a cidade não é modelo ideal, sua cidade, sua Polis é real. Ela
não é uma ficção de modelo de referimento para estabelecer um programa políti-
co, pois sua existência é co-presente ao tempo e à eternidade, e pede que a vida do
tempo seja vivida em modo tal que possa ser continuada na eternidade.
Assim, a inspiração da Cidade de Deus não é uma projeção política nos mol-
des que conhecemos na cultura clássica greco-latina. Em ‘De Civitate Dei’, ao
contrário, Santo Agostinho se serve da Fé cristã e do Evangelho para explicar esta
missão da cidade de Deus peregrina no tempo.
Ao contrário, através dos modelos platônicos e estoicos ele critica a insuficiên-
cia do modelo político tardo-antigo e das soluções da moral social que daí surge,
para a problemática realidade medieval nascente.

40  Santo Agostinho discute de modo clássico a questão do ‘tempo’ em diálogo com a Revelação cristã (Eternidade)
em dois textos da tríplice obra de theologia e Filosofia, em ‘Confissões’ 11 e ‘De Civitate Dei’ 12. Cf. MORAN, J. La
Cuidad de Dios, p. 02-59; GILSON, Étiènne. Notes sur l’être et le temps chez saint Augustin. Revue Augustiniènnes,
Paris, no 2, p. 205-223, 1962; LETTIERI, G. Il senso della Storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988.

capítulo 5 • 127
E, nesta medida não se pode entender De Civitate Dei fora do alcance da gran-
de produção antiga de historiografia, de certa maneira, inaugurada por Heródoto
e Tucídides no século IV a.C., âmbito no qual nasce para o pensamento humano
e antigo a possibilidade da distância em relação ao mito.
A história é o espaço da narração dos eventos dos povos e sociedades sem mis-
turar-lhes com as estórias dos deuses.
Pois a experiência de crise o levou a constituir um gigantesco esforço de re-
flexão sobre o Passado para compreender o sentido e a verdade à luz do futuro
último e definitivo, constituído pela vinda de Cristo, no mesmo momento em que
faz emergir a racionalidade das escolhas corajosas que se impunham ao presente,
para que a existência humana não se perdesse, mas que se realizasse na ‘beatitude
eterna’, linguagem bíblica e extra-bíblica para designar a plenitude de vida.
Entre os Estudiosos de ‘De Civitate Dei’ coloca-se muitas vezes a questão do
valor axiológico da obra agostiniana de história como uma formulação cristã da
história entre a Filosofia e a teologia.
Para Agostinho a compreensão da história humana supõe que sua finalidade
seja analisada, ora, isto ultrapassa a capacidade de articulação do método histórico,
permanecendo em aberto.
Diante da inconclusividade do discurso histórico na formulação de premissas
escatológicas e morais surge a possibilidade de examinar o papel da revelação na
elaboração do discurso histórico.
Em outras palavras, ‘conhecer a finalidade da história seria possível, ao menos
que isto lhe seja ‘revelado’ por alguém que está além do tempo e que já atingiu o
fim da história’.
Agostinho não vê na crise da Cidade Pagã a simples ocasião de revanche, mas
o ‘kairós’ de uma novidade que emerge entre ‘escombros’. Sem precisar do recurso
à ‘Fênix’, a verdade cristã da eternidade, pela Ressurreição de Cristo, comunica
ao tempo que se esgota e não se repete um novo horizonte. Este ‘tempo novo’ é
apto para atravessar as coisas ambulantes e mutantes, e assim, a própria ‘morte da
cidade’ não determina mais a ‘morte do homem’.

Criteriologia religiosa da Revelação judaico-cristã

Aliás, desde o Judaísmo estes entrelaçamentos se exprimem como criteriologia da


vida religiosa autêntica, certa unidade entre experiência de Deus (aspectos místico-sa-
cramentais da Aliança) e das relações fraternas (justiça e fraternidade). O Decálogo é

capítulo 5 • 128
a síntese desta questão, no qual o amor a Deus está associado ao amor ao próximo. O
Cristo em Mt 22, 34-40 apresenta a síntese da Revelação de toda a Bíblia:

Ao ouvirem dizer que Jesus havia deixado os saduceus sem resposta, os fariseus se
reuniram. 35 Um deles, perito na lei, o pôs à prova com esta pergunta: 36 “Mestre, qual
é o maior mandamento da Lei?” 37 Respondeu Jesus: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de
todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’[a]. 38 Este é o
primeiro e maior mandamento. 39 E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo
como a si mesmo’[b]. 40 Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”.

Fonte: <https://www.biblegateway.com/passage/?search=Mateus+22%3A34-40&
version=NVI-PT>.

Por isso, numa das tradições do Novo Testamento, São João sentencia em sua
primeira carta (1 Jo 4, 20-21) acerca da religiosidade fundada no Evangelho: ‘Se
alguém afirmar: "Eu amo a Deus", mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não
ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. 21 Ele nos deu este
mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão.’ 41

A perspectiva judaico-cristã da história: o testemunho da fé.

O testemunho da fé de Israel acha-se determinado historicamente e que realiza sua


vontade na história. Segundo este testemunho de fé, Javé se deu a conhecer a eles
pela experiência da eleição e da libertação prodigiosa do Povo de sua propriedade
(WERBICK, 1993, p. 352).

No epicentro desta experiência do Deserto está uma Mensagem Divina a


Israel: A Fidelidade de Deus, como Deus único e verdadeiro (Vós tendes visto o que
fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e vos trouxe a mim).
A teologia profética que está por trás destes textos, projetando no passado
mais antigo de Israel toda a evolução da espiritualidade monoteísta judaica, irá
insistir firmemente nisso: Nunca houve outras divindades! A História da Salvação
(de Israel) é o testemunho fidedigno da EXCLUSIVA Salvação do Deus de Israel!

41  <https://www.bibliaonline.com.br/nvi/1jo/4>.

capítulo 5 • 129
Israel deverá evoluir do ‘Henoteísmo’ 42, a crença em Deus, como principal
ou exclusivo, mas considerando a existência de outros, para o Monoteísmo43, fé e
adesão a Deus como único no Universo. Apartando-se também, obviamente do
Politeísmo44, a crença na existência de muitos deuses.
Dois elementos fundamentais da religião de Israel são apresentados como ca-
racterísticos da Religião da Aliança:
•  Ouvir a voz de Deus, sinônimo de obediência, de oração sincera, de disposi-
ção em seguir e cumprir a Vontade expressa de Deus. Este será o leitmotiv, isto é,
o tema que se repete e se renova na consciência religiosa de Israel, escuta a Deus,
segue seus mandamentos e preceitos!;
•  Guardar a minha Aliança significa viver e pautar-se (pessoal e socialmente)
pelas determinações do Decálogo. Não se deixar seduzir pelos ídolos e práticas
dos pagãos.

Tudo isso não é sem consequências: viver sob a luz das promessas e exigências
de Deus muda a vida humana. Purifica e liberta o verdadeiro significado da Vida
Humana! Assim, corresponde à adesão da Aliança viver plenamente sob o Amor
Divino, com os privilégios da eleição:

Então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra
é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo (Ex 19, 5-6).

No livro do Deuteronômio encontraremos este tema da vocação de Israel,


como ‘propriedade’ de Deus’, e por isso, defendido por Deus, como tesouro. Isto é,
pelo amor à Aliança Israel usufrui da proteção e da Graça divinas.
‘E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo’.
42  ‘Henoteísmo (do grego hen theos, "um deus") é o culto de um único deus sem se negar a existência de outras
divindades’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Henote%C3%ADsmo>.
43  ‘O Monoteísmo (do grego: μόνος, transl. mónos, "único", e θεός, transl. théos, "deus": único deus) é a crença
na existência de apenas um deus.[1] Diferencia-se do henoteísmo por ser este a crença preferencial em um deus
reconhecido entre muitos’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Monote%C3%ADsmo>.
44  ‘O Politeísmo (do grego: polis, muitos, Théos, deus: muitos deuses) no crivo bíblico consiste na crença e
subsequente adoração a mais do que uma divindade de gênero masculino, feminino ou indefinido, sendo que cada
uma é considerada uma entidade individual e independente com uma personalidade e vontade próprias, governando
sobre diversas atividades, áreas, objetos, instituições, elementos naturais e mesmo relações humanas. Ainda em
relação às suas esferas de influência, de notar que nem sempre estas se encontram claramente diferenciadas,
podendo naturalmente haver uma sobreposição de funções de várias divindades’. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/
Polite%C3%ADsmo>.

capítulo 5 • 130
Além disso, Israel é elevado de simples cumpridor de leis para a obtenção de be-
nefícios, às alturas de uma sociedade sacral, uma forma comunitária que exprime em
sua estrutura social os efeitos da Graça e da redenção que vem pela Aliança de Deus.

O Decálogo (Ex 20): salvação e conhecimento de Deus

Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da
terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de mim (Ex 20, 1-3).

Para entendermos bem o ‘Decálogo’ é necessário manter-se dentro de duas


lógicas inseparáveis: a Salvação do pecado (Gn 3) e a Revelação de Deus (Gn 12).
Senão encontramo-nos como os fariseus e doutores da lei, reprovados per-
manentemente por Jesus. Uma lei que não inspirava à santidade e a excitar-se ao
verdadeiro Conhecimento de Deus, tornava-se um legalismo estéril e hipócrita.
‘Então falou Deus todas estas palavras’ tudo que leremos nesta unidade, não
representa o que Moisés pensa ou proponha ao Povo. O Decálogo sai da ‘boca de
Deus’, é a mais alta materialização de sua Vontade, em vista de nossa Salvação.
Sendo código legal, instaura a ordem divina no meio de Israel. Deus implanta
um ‘éthos’ que lhe agrada e recupera em nós os princípios da santidade, isto é, da
semelhança divina nas criaturas humanas, constituindo assim o verdadeiro Povo
de Deus, por suas relações sociais sancionadas por Deus.
Se observarmos bem, o Decálogo exposto entre os vv. 2-26, pode ser dividido
em duas partes:
A primeira parte, entre os vv. 2- 11 é nitidamente teológica, isto é, refere-se
aos direitos inalienáveis de Deus, que, se não são reconhecidos obstaculizam rela-
ções verdadeiras entre Deus e seu Povo.
A Fidelidade a Deus se vive no cumprimento do direito Divino e no reconhe-
cimento do lugar central de Deus na vida da comunidade escolhida por Ele neste
mundo. O conhecimento e a prática destes mandamentos representam a primeira
catequese judaica acerca de Deus e seus ‘direitos’ de Aliança sobre nós!
A segunda parte, entre os vv. 12-26 explora os aspectos comunitários da Lei
de Deus. O Decálogo define uma silhueta social da Fé.
A ética que vem esculpida pelos mandamentos vividos entre os membros do
Povo Israelense servirá de reconhecimento recíproco entre os membros do Povo de
Deus, forjando assim, fortemente sua Identidade nacional.

capítulo 5 • 131
Ao mesmo tempo, servirá de instrumento de comunicação de Deus aos povos
com os quais em diversas circunstâncias, Israel deverá se encontrar, livre ou força-
damente (exílios).

Direitos de Deus: Ex 19, 2-11!

Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima
nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás
a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a ini-
quidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam.
E faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus manda-
mentos. Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá
por inocente o que tomar o seu nome em vão (Ex 20, 4-7).

O primeiro tema exposto pelo Decálogo é a exclusividade de Deus no centro


da consciência judaica. Esta temática, na redação do texto, obviamente tem a in-
fluência da teologia profética da corrente deuteronomista.
O fim da ‘idolatria’, isto é, da religião infiel ao Único Deus verdadeiro no meio
de Israel, foi um programa bem preciso para a grande profecia judaica que relê e
radicaliza os significados dos fundadores do deserto, na experiência da Aliança
do Sinai!

‘Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima
nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra’.

Este versículo constitui a base de uma convicção teológica e estética do


Judaísmo: a Iconoclastia:

Iconoclasta é nome dado ao membro do movimento de contestação à veneração de


ícones religiosos que surgiu no século VIII denominado Iconoclastia. O termo icono-
clastia significa literalmente “quebrador de imagem” e tem origem no grego eikon (íco-
ne ou imagem) e klastein (quebrar). O significado de iconoclasta engloba os indivíduos
que não respeitam tradições e crenças estabelecidas ou se opõem a qualquer tipo
de culto ou veneração seja de imagens ou outros elementos. O termo abrange ainda
aqueles que destroem monumentos, obras de arte e símbolos. Iconoclastia é o nome
do movimento político-religioso que iniciou no Império Bizantino no século VIII e que
rejeitava a veneração de imagens religiosas por considerar o ato como idolatria. No
ano de 730, após o édito publicado por Leão III que proibia a veneração de ícones

capítulo 5 • 132
e ordenava a destruição de imagens, os membros da iconoclastia destruíram milhares
de ícones religiosos. As destruições cessaram em meados do século IX.

Fonte: <https://www.significados.com.br/iconoclasta/>.

Deus em sua transcendência deve ser respeitado e não pode existir reprodução
humana de sua Imagem. Para o Judaísmo, cercado de religiões com representações
animais e humanas de ‘divindades’, tratava-se de um claro diferencial.
A idolatria não era somente reproduzir divindades em imagens ou amuletos,
mas, sobretudo, dar-lhes vida e relevância em seu relacionamento com Deus.
Mas será o período profético da história e da literatura de Israel a desenvolver
de modo decisivo a sedimentação da questão de Deus, em sua Auto manifestação
e o âmbito da História.

Revelação e sabedoria

Outro aspecto sobre a experiência religiosa advinda da Revelação em todos os


seus âmbitos é a aquisição da sabedoria.
O homem em contato com a dinâmica da Revelação se aperfeiçoa, evolui pela
necessidade da busca, da operação delicada de ouvinte e tradutor no Evento da
Revelação Especial:

Heidegger afirmou, com razão, que a palavra grega ‘alétheia’ (verdade ou o verdadeiro)
originalmente significava o que não pode ser escondido nem velado. Esta etimologia
estabelece uma estreita relação entre "revelação" e "verdade". O conhecimento da
verdade é sempre uma descoberta; exige, de fato, que alguém vá além das aparências
para alcançar uma realidade que não é imediatamente perceptível.

GOUNELLE, A. La Révélation. Disponível em: <http://andregounelle.fr/


vocabulaire-theologique/la-revelation.php>. Acesso em: 30 out. 2017.

Estes aspectos da busca e da descoberta foram destacados por Jesus, em suas


parábolas, ao descrever um homem sábio que sabe do tesouro e o busca. E, ao
encontrá-lo, dispôs de todos os meios para adquiri-lo (vende tudo).
Lê-se isso em Mt 13, 44: ‘O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido
no campo, que um homem, ao descobri-lo, esconde; então, movido de gozo, vai, vende
tudo quanto tem, e compra aquele campo’ 45.

45 http://bibliaportugues.com/jfa/matthew/13.htm

capítulo 5 • 133
O judaísmo ao longo de sua história produziu um corpus de textos que será
depois designado como ‘Sapiencial’:

A sabedoria é, pois, um conhecimento baseado na experiência acumulada ao longo da


vida e enriquecida através de várias gerações, que se fixou gradualmente em máximas,
sentenças e provérbios breves e ritmados, recheados de imagens ou comparações.

Fonte: <http://capuchinhos.org/biblia/index.php/Livros_Sapienciais>.

A vivência da Fé, baseada na Revelação especial ou natural implica na for-


mação de um conhecimento profundo da realidade que produz retidão de vida e
expertise no bem. A fé é uma experiência que depura a vida social.

O povo de Deus apercebeu-se da importância que a sabedoria tinha para a vida, pois
não era possível regulamentar todas as áreas da vida apenas pela lei de Moisés e pela
palavra dos profetas. Havia, portanto, espaços a preencher por opções e iniciativas
pessoais. Daí ser preciso adquirir conhecimentos e capacidade crítica para avaliar pes-
soas e coisas, situações e acontecimentos da vida.

O termo sabedoria surge no momento em que a fé exige um campo saldo da


vida para atuar, a cultura, neste sentido ‘Havia, portanto, espaços a preencher por
opções e iniciativas pessoais’. Amparado nos códigos religiosos o Povo de Israel foi
forjando uma cultura da Fé.

Confrontando o conjunto da sabedoria de Israel com outros corpos literários do AT, não
será difícil verificar que os Livros Sapienciais formam um mundo à parte, caracterizado
pela fé na sabedoria divina que rege o universo e cada pessoa em particular.

Fonte: <http://capuchinhos.org/biblia/index.php/Livros_Sapienciais>.

Os sete livros, considerados, poéticos ou sapiências (sapiens: sábio), testemu-


nham literariamente a atividade de sábios, doutos na vida e na ciência do bem
viver, que ajudavam o Povo de Deus a viver, na esfera mais pessoal e coletiva a Fé,
como cultura da vida e do amor.

No âmbito sapiencial, o centro de interesse e de atenção desloca-se do povo, enquanto


tal, para o indivíduo; da História, para a vida quotidiana; da situação peculiar de Israel,
para a condição humana universal; das vicissitudes históricas do povo da Aliança, para a
existência no mundo enigmático da criação; das intervenções prodigiosas de Deus, para

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as relações entre causa e efeito; da esfera da Lei e do culto, para o mundo das opções
livres e da iniciativa pessoal; da autoridade de Deus, para a esfera da experiência e da
tradição humana; dos oráculos dos profetas, proclamados como palavra de Deus, para
o uso de todos os recursos da razão e da prudência, em ordem à orientação da própria
vida; da imposição da Lei, para a força persuasiva do conselho e da exortação; do casti-
go, apresentado como sanção externa, para a consequência negativa, resultante de uma
escolha errada ou de um acto insensato.

Fonte: <http://capuchinhos.org/biblia/index.php/Livros_Sapienciais>.

ATIVIDADES

01. A partir da reflexão sobre as implicações da Revelação na vida humana, de que maneira
você explica o fundamentalismo violento que invade as religiões mundiais hoje em dia?

02. Relacione o discurso sapiencial e a vida ética, como implicações da Revelação judaico-cristã.

GABARITO
Capítulo  2

01. Em Cristo, morto e ressuscitado se dá a plenitude da Revelação começada em Abraão.


Nos mistérios de Cristo, Deus se auto comunicou definitivamente.

02. Em Cristo todas as religiões encontram a perfeição, pois Ele é a plenitude da Revelação
divina à humanidade. Ele é o fundamento do diálogo inter-religioso e da tolerância entre
povos e religiões.

Capítulo  4

01. O crente funda a experiência de Deus não a partir da sua imaginação, ou do desejo de
controlar Deus, mas na graciosa oferta da Identidade e da Ação de Deus, expressa no Nome
revelado ao homem.

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Capítulo  5

01. O fundamentalismo abre mão da racionalidade da Fé, por isso, expurga o diálogo e a
convivência fraterna entre modos diversos de viver a verdade.

02. O modo sapiencial da religião em Israel e no Cristianismo envolve a vida pessoal com
seus desafios cotidianos e até banais com as máximas da ética religiosa.

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