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RICHARD GRA.

O CRISTAO-E A DOR

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

EDITORIAL ASTER
LISBOA
Titulo original:

Trost im Leid

Copyright by Arena-Verlag, Würburg

Tradução

de

GUDRUM HAMROL

Distribuidor exclusivo no Brasil:

Editora Herder // São Paulo

Reservados todos os direitos em língua portuguesa à

Editorial Aster, Lda.- Largo de D. Estefânia, 8


LISBOA
A N O SSA VIDA
É UM CAMINHO DE D O R

O problema d a dor é decerto o maior e o mais


grave dos que se apresentam ao homem. E quem não
vencer a dor, não vencerá a vida. Compreender a dor
é compreender a vida. Ora só através da Revelação
divina podemos conhecer a origem, o sentido e a fina­
lidade da dor. Quem não souber aceitá-la não conse­
guirá explicar a dor, nem pela ciência nem pela vida.
«0 problema da dor é a pedra de toque de toda a filo­
sofia)) (1). E podemos mesmo acrescentar: de cada
homem.
A nós, cristãos, é-nos dado vencer a dor. Cremos
na salvação, na l ibertação através da dor e não na
libertação da dor. Só na pessoa e nos ensinamentos de
Jesus Cristo encontramos a interpretação perfeita da
dor.
Por isso também os espíritos se dividem diante da
pessoa de Cristo e da sua doutrina. Só aqueles que
aceitam a cruz podem seguir o Senhor (Marcos, VIII,
34). Alguns de nós gostariam de dizer como São Pe­
dro: ccDeus tal não permita, Senhor)) (Mat. XVI, 22)!
Mas todo aquele que quiser acercar-se de Deus e não
dos homens, tem de seguir Cristo a Jerusalém (Mat.
XVI, 21-23) para lá sofrer com Ele e, se tanto for
necessário, com Ele morrer.

I. Holzner, Paulo de Tarso, Editorial Aster, col. Homens de


Deus.
O S OFRIMENTO
E O AMO R DE DEUS

Ouvimos a São João es:as palavras profundas :


Deus charitas est - Deus é caridade)) (I João, IV, 8).
Abriram-se-nos assim as portas que nos permitem pe­
netrar a essência e a acção divinas. A partir do amor
de Deus, é-nos mais fácil compreender profundamente
a dor, muito embora só na eternidade possamos ter
dela uma c0mpreensão absoluta.
Perguntamos, então, por que razão criou Deus o
mundo. Não lhe bastariam a sua vida íntima divina.
a sua felicidade, a sua divina bem-aventurança? Não
se bastariam as três pessoas a si próprias? Por que
razão teria Deus forçado o círculo da sua própria vida .
passando da eternidade para o tempo, de ser ultra -his­
tórico a histórico'?

DEUS É CARIDADE

Deus é caridade. A caridade faz parte da sua essên­


cia, da sua natureza. Mas a caridade não é concebível
sem um objecto que a determine. A caridade tem de
ter um campo de acção, precisa de comunicar-se. E m(}.
vimento, é acção, é necessidade e desejo de união entre
dois seres. Ora este movimento, a que nós poderíamos
chamar ciclo da caridade, realiza-se desde a eternidade,
dentro do espaço vital divino. Por isso, considerado do
ponto de vista da caridade, não podemos imaginar um
Deus unipessoal.
lO O CRJST ÃO E A DOR

Assim como o Sol não pode ocultar e reter em si


todo o seu calor e fulgor - só pode existir irradiando
e oferecendo-se - assim também Deus não pode ocul­
tar a sua plenitude de amor, que é como um mar que
inunda todas as praias. As ondas do amor de Deus
são tão vastas e poderosas que parecem saltar por cima
d'Ele próprio, tornando pouco a pouco visíveis as suas
incomparáveis harmonias. E é exactamente esta exu­
berância de amor que o leva a criar.

A CRIAÇÃO NASCIDA DA CARIDADE

Quere-nos, pois, parecer que a caridade de Deus


não podia exercer toda a sua actividade dentro da Trin­
dade. Foi ela que u obrigoun Deus a criar o mundo e,
principalmente, o homem. É evidente que em Deus
existe a mais perfeita harmonia e que só a caridade de
benevolência e de complacência pode actuar, em abso­
luto, dentro d'Ele. Mas a caridade tem muitas outras
facetas e dispõe de muitas outras forças: a caridade da
reconciliação, do perdão, da misericórdia. Ora estas
virtudes da reconciliação, do perdão, da misericórdia
existiam em Deus, de certo modo inactivas, porque lhes
faltava um objecto para se concretizarem.
A luz pura é invisível. O universo inundado de luz
está envolto na mais profunda das noites. A luz só é
visível quando incide algures; nós só conseguimos ver
luz reflectida. O Sol irradia a sua luz, não a vê e por
isso também não a vive. Mas se a luz do Sol incidir
sobre um planeta existente no espaço ele reflectirá a
luz recebida e enviará ao Sol a sua própria l uz. E assim
c Sol vive a sua luz em astros longínquos e deleita-se
nela. Anàlogamente, também Deus enviava em vão a
sua caridade conciliadora e misericordiosa através do
espaço. Não podia vivê-la, deleitar-se nela, porque não
O SOFRIMENTO E O A MOR DE DEUS li

havia um objecto para a aceitar. Por isso Deus apro­


fundou e alargou o campo de acção da sua caridade
com a criação do homem: unele vivemos, nos movem0s
e existimos ,, (Actos XVII, 28). Em qualquer parte que
o homem viva como planeta à volta de Deus, seu sol,
recebe os raios do seu amor e reflecte-os , de m'"ldo que
o Senhor pode viver em nós e por nós aquilo que em
si e por si só não podia ver: o seu amor misericor­
dioso.
Por conseguinte, Deus serve-se de nós e está de
cert0 modo usubme:idon a nós para poder deleitar-se
com toda a p�e,nitude do seu amor. Deus vive em cada
homem, de novo e de modo sempre diverso. Ao criar
o homem, o Senhor prepara um novo campo de acção

c de revelação para a sua caridade miseric0rdiosa- en­

via um novo raio do seu amor misericordioso, des­


cobrindo uma nova faceta de si. mesmo.

A SALV AÇÃO NASCIDA DA CARIDADE

Mais claramente ainda do que na criação do ho­


mem, a caridade divina manifesta-se na salvação. Aqui
se revela a caridade misericordi osa numa luz mais
magn ífica ainda- uc0m o seu amor e a sua clemên­
cia, Ele mesmo os reuniu» (I sa ía s LX I I I , 9). Depois
,

do pecado original. a justiça divina exigia- tal como


aconteceu com os anjos- um castigo justo. Mas neste
caso a misericórdia levou a justiça a trilhar outros
caminhos. uE com am�r eterno te amei: por isso, com­
padecido de ti. te atraí a mimn (Jeremias, XXXIII, 3).
Uma professora perguntou uma vez aos alunos da
segunda classe como se sabia que uma pessoa amava
a Deus. Ninguém soube responder, mas finalmente.
uma cr:ança ergueu o braço e disse: uAma a Deus
aquele que tem tempo para lhe dedicarn.- Em ter-
12 O CRISTÃO E A DOR

mos gerais, a prontidão com que se aceita o sacrifício


é a medida do amor. Temos sempre muito tempo dis­
ponível, estamos sempre prontos a sacrificar-nos quando
se trata de alguém que amamos. E quanto mais pro­
fundo é o amor, maior é a aceitação do sacrifício.
Na vida do dia a dia, ninguém paga por uma coisa
mais do que ela vale. Mas além do valor objectivo das
coisas há ainda um valor estima:ivo que na maior parte
dos casos ultrapassa bastante o primeiro. Um grande
amor não é calculista, não resolve as coisas pelo racio­
cínio, unão busca os seus próprios interessesn (I Cor. ,
XIII, 5). O calculista que toma uma decisão pelo
raciocínio, não atingiu ainda um grande amor, porque
este é cego e surdo. Aos olhos de um indiferente, o
procedimento do indivíduo que ama assemelha-se ao
de um louco. Se nos fosse permitido, d iríamos que,
à força de nos amar, Deus se tornou de certo modo
doido por nós. Mas uo que é a l oucura em Deus, é
mais sábio que os homensn (I Cor., I, 25).
Para nos livrar do pecado, Deus pagou um valor
estimativo e não real. Pag'Ju e sacrificou por nós infi­
nitamente mais do que aquilo que valíamos. <<Sabendo
que fos�es resgatados . . . não a preço de coisas corrup­
tíveis, de ouro ou de prata, mas pelo precioso sangue
de Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem con­
taminaçãon (I Pedro , I, 18 e s.). Deus amou-nos por
assim dizer mais do que ao Filho, porque, se assim
não fosse, não o teria sacrificado por nós. «Porque
Deus amou de tal mod0 o mundo que lhe deu o seu
Filho un igénit':l>> (João, 111, 16; Rom. VTII, 32); «nisto
se manifestou a caridade de Deus para connosco, em

que Deus enviou o seu Filho unigénito ao mundon


(l João, IV, 9; J�ão. III. 16).
No seu amor por nós, homens, Deus foi na reali­
dade até ao extremo. A sua sabedoria não poderia
imaginar, nem a sua omnipotência poderia criar sacri-
O SOFRIMENTO E O A MOR DE DEUS 13

fício maior d o que aquele que fez por nós n a pessoa


do Filho.
Bonum est diffusivum sui- A bondade e o amor
são naturalmente expansíveis. Por nosso amor, Deus
entregou-se-nos completamente. Dando-nos o seu Fi­
lho deu tudo o que como Deus podia dar. Ele não
sabe, por assim dizer, que mais fazer e põe-nos a se­
guinte pergunta: ((Que poderia eu fazer ainda que o
não t ivesse feito?'' (Impropérios). ((Quem não conhece
Deus, não imagina do que é capaz o amor. Dar-se a
si próprio é o seu maior requinte''·
Deus é a caridade. O infinito e misericordioso amor
divino tornou-se palpável no Filho. "Deus, tendo falado
outrora muitas vezes e de mu1�os modos a nossos pais
pelos profetas, ultimamente falou-nos por meio de seu
Filho)) (Hebreus, I, I e seg.). N'Ele surgiu o amor di­
vin'J feito homem. Através de Cristo, o fluxo vigoroso
e puro do amor misericordioso de Deus é decomposto,
como através de urn prisma, e é-nos apresentado com
todos os seus maravilhosos matizes.
É evidente que Cristo não foi sacrificado por um
imperativo necessário. ((Oblmus est, quia ipse voluit­
Foi oferecido porque Ele mesmo quis'' (Isaías, Llll, 7).
Um só sofrimento de Cristo teria bastado para salvar
mil mundos, mas o seu amor misericordioso por nós
impeliu-o- como ao Pai- a ir ao limite extremo do
p ossível. <<Tendo amado os seus que estavam no mundo,
amou-os até ao fim)) (João, XIII, 1), até aos limites do
tempo, do espaço e do possível. Não lhe bastou despo­
jar-se da sua forma divina (Fi!., li, 65); o seu amor por
nós levou-o a ir mais longe, até, por assim dizer, renun·
ciar ao seu ser humano. ((Será sem glória o seu aspecto
entre os varões . . . Não tem beleza nem formosura. . .
Feito objecto de desprezo e o último dos homens...
14 O CRISTÃO E A DOR

Será levado como uma ovelha ao matadouro» (Isaías,


UI, 14; LIII, 2 e seg.).

A PROVIDENCIA E O AMOR

Se partirmos da premissa do amor miseric0rdioso de


Deus, podemos compreender melh0r a sua maneira de
actuar. Só assim nos será possível , de certo modo, com­
preender a criação e a salvação dos homens. Só assim
ficaremos em C')ndições de compreender a Providência
divina. Deus só pode ser bom. Diz um velho axioma
filosófico que operatio sequitur esse- a acção é um
Luxo do ser. Ora, se Deus é amor, a sua acção no sen­
tido do exterior baseia-se n0 amor. Em Deus não há
egoísmo, não há injustiça, e por isso nem esta nem
aquele se manifestam nos seus actos.
Quanto mais nos sacrificamos por uma coisa, mais
querida ela se torna para nós. Deus não sacrificou o
seu Filho bem-amado pela humanidade, sacrificou-o
por cada um de nós e por isso não abandona ninguém,
não esquece ninguém. Poderá um pai esquecer um
filho, ou mesmo repeli-lo. Mas p0derá fazê-lo uma mãe?
Conseguirá ela esquecê-lo para sempre? Não, porque
se sacrificou mui:o mais pelo filho, arriscou por ele a
vida. HO homem apega-se tanto mais a uma pessoa
quanto mais p'Cr ela se sacrifican' (Hasse). Não se pas­
sará o mesmo com Deus? ((Pode uma mãe esquecer-se
do fiiho . . . eu todavia não me esquecerei de ti )) (Isaías,
XLIX, 15).
Ora ninguém se sacrificou por nós como Deus. Nin­
guém, portanto, nos pode amar comQ Ele. Ninguém
pode ter melhores intenções a nosso respeito. São Fran­
cisco de Sales dizia: ((Se eu pudesse escolher entre ser
julgado por Deus e por minha mãe, escolheria Deus''·
O SOFRIMENTO E O A MOR DE DEUS 15

A MISERICóRDIA DIVINA
É SEMPRE MAIOR

Deus persegue cada homem em particular com o


seu amor misericordioso. Acompanha-o até ao último
instante de vida.
Um dia, o Cura d'Ars foi procurado por uma se­
nhora distinta, muito preocupada com a salvação da
alma do marido. Julgava-se de certo modo culpada por
ele se ter suicidado, atirando-se de uma ponte. O bom
sacerdote consolou-a, dizendo-lhe antes ainda de ela
lhe ter dirigido a palavra: «0 seu marido está salvo.
O tempo que decorreu entre o salto e a morte foi sufi­
ciente para Deus lhe conceder a graça do remorso n.
«Enquanto há vida, disse São Leão Magno, há es­
perança de salvaçãon. Deus preocupa-se com a nossa
salvação, mais do que uma mãe. Aproveita todas as
possibilidades, por mais insignificantes que sejam, para
conquistar o coração do homem. Por isso só se perde
aquele que realmente quer perder-se. A misericór­
dia de Deus sobreleva em muito os nossos pecados.
«Onde abundou o pecado, superabundou a graça»
(Rom. V, 20).

AMOR MISERICORDIOSO
MESMO QUANDO CASTIGA

Ser-nos-á lícito falar de um autêntico Deus justi­


ceiro? A verdade é que quando Deus castiga fá-lo so­
bretudo para prevenir, para corrigir. Porque para os
homens, enquanto estão no mundo, o Senhor é funda­
mentalmente misericordioso: só no juízo final será
um Deus justiceiro. Quem, portanto, fugir ao Deus mi­
sericordioso cairá fatalmente nas mãos do Deus justo:
E «terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo» (He­
breus, X, 31).
16 O CRJSTÃO E A DOR

Se às vezes não compreendemos Deus no seu amor


misericordioso, isso acontece por nossa própria culpa.
Bastava que nos compenetrássemos da verdadeira no­
ção do amor, para não surgirem nunca determinadas
dificuldades. O amor verdadeiro, autêntico, não pode
responder sempre sim. Quando necessário, há-de saber
dizer não.
A felicidade do amor consiste em dedicar-se com­
pletamente, em entregar-se sem reservas. É este preci­
samente o seu elemento vital. Para um amor profundo
é muito difícil não poder dar-se, ter de se ocultar e ,
principalmente, ter de punir. Quando u m a pessoa que
ama tem de castigar, acaba por sofrer ela própria, por
não poder exteriorizar os seus sentimentos, p or ter d e
magoar o objecto do seu amor. Quem ama sabe que
para castigar é necessário um amor muito maior do
que para fazer bem.
Só é autêntico o amor que sabe punir. E porque
este amor autêntico quase não existe à face da Terra, ·

muitas mães já não têm coragem para castigar os


filhos, muitas noivas não têm valor para dizer não.
O pior amor, insistimos, é aquele que diz sim. sempre
e a tudo. Ora como este amor autêntico anda realmente
afastado de nós, não conseguimos compreender o amor
que o Senhor tem para connosco.
Deus é amor. O amor falso compraz-se em rece­
ber, o verdadeiro em dar. Por isso, para Deus não
pode haver felicidade maior do que a de se dar cons­
tantemente. É por esta razão que Deus não castiga,
apenas para castigar; envia sofrimentos, não para ator­
mentar « mas para que queiras chorafll.
Deus só castiga, só pode castigar, quando é neces­
sário e na medida em que é necessário. Mas nessa al­
tura, o Senhor, no seu grande e verdadeiro amor, tem
também a coragem e a força de levar a cab'J o cas­
tigo. Ocorrem-nos a este respeito as palavras de São
O SOFRIMENTO E O A MOR DE DEUS 17

Paulo: « Porque embora eu vos tenha entristecido, não


me arrependo disso . . . agora folgo, não de vos ter en­
tristecido, mas de que a vossa tristeza vos tenha levado
à penitência" (2 Cor. VII, 8 seg.).
Deus pretendeu e pretenderá sempre o nosso bem.
Colocou-nos num paraíso terreal, num paraíso de de­
lícias donde poderíamos entrar imediatamente noutro,
mais belo e eterno. Por culpa do homem, este primeiro
plano divino de salvação foi destruído. Mas, mesmo
depois do pecado original, a vida dos filhos de Deus
pode continuar a ser um reflexo do primitivo paraíso.
Ao dar-nos o seu Filho, como Salvador, Deus ofe­
receu-nos de facto mais do que possuíamos, deu-nos
mais do que tínhamos perdido. «0 felix culpa-ó culpa
feliz!" exclama por isso Santo Agostinho. É certo que
o pecado original trouxe consigo muitas dores sobre

os nossos primeiros pais e sobre nós próprios. No en­


tanto, a vida na Terra ainda seria bela se não a tivés­
semos tornado tão difícil com os nossos pecados. De­
pois do pecado dos nossos primeiros pais, Deus con­
tinuou a ser, tal como antes, um Deus de bondade,
amor e misericórdia, cuja bem-aventurança é ser bom,
que não tem o mínimo desejo de nos tornar infelizes.
Depois de a dor ter caído sobre os homens por causa
do pecado original, Deus fez tudo quanto pôde para
nos tornar suportável a vida na Terra.

O AMOR E OS MANDAMENTOS

Deus exerce a sua vontade na natureza por meio


das leis naturais. Ora, o Senhor também nos deu <deis
naturais,, leis que correspondem à nossa natureza hu­
mana, dentro de cujos limites nos está assegurada
uma existência digna. No entanto, estas leis não nos
são impostas - Deus deixou-as à nossa liberdade.
18 O CR/STÃO E A DOR

Que belo podia ser o mundo, se todos se quisessem


submeter livremente a elas! Haveria diferenças de opi­
nião entre os membros de urna família, entre os povos,
mas não haveria discussões nem guerras. Se tivéssemos
consideração e respeito pelo próximo, pela sua honra
e pelos seus bens, se todos possuíssemos um pouco de
espírit0 de sacrifício, de amor pelo próximo e paciên­
cia, a vida sobre a Terra seria magnífica. Mas u todos
pensam apenas em si)) (Fil., 11, 21), cuidam apenas de
si ; cada um segue o seu caminho. Ninguém deve sur­
preender-se que surja urna confusão maior do que
aquela que se seguiu ao princípio da criação.
Embora Deus tenha dado os mandamentos entre
relâmpagos e tr0vões no monte de Sinai, eles não são
mais que urna manifestação de amor. Com efeito, os
mandamentos não nos foram dados para dificultar a
vida, para a tornar insuportável, para nos oprimir,
para nos mostrar que Ele é o Senhor e nós os servos
a quem cabe apenas obedecer. Não no-los deu por si,
mas por nós. Sem estas grandes directrizes do seu
amor não é possível urna existência humana digna.
Mesmo que não existisse Deus, e nós, homens, apoia­
dos na razão, pretendêssemos estabelecer leis para a
nossa vida no mundo, chegaríamos naturalmente ao
conhecimento da maior parte dos dez mandamentos.
Deus não quis estreitar o nosso espaço vital, difi­
cultar-nos a vida. nem quis, principalmente, interferir
na nossa liberdade. Se há alguém que tenha considera­
çã'J pela liberdade dos homens, esse alguém é Deus.
Por causa desta nossa liberdade, tornou sobre si o
maior de todos os riscos: o pecado.
Pois será que os sinais colocados no alto das mon­
tanhas se destinam a limitar a liberdade dos alpinis­
tas? Não. servem apenas para lhes dizer que um carni·
nho leva ao cume e outro ao abismo. Foi assim que
Deus colocou com0 marcos os dez Mandamentos no
O SOFRIMENTO E O AMOR DE DEUS 19

nosso caminho, para n0s indicar o caminho para o alto.


Mas aquele que preferir o abismo tem o caminho livre.
Deus não quer limitar a nossa liberdade por mei0 dos
mandamentos. Ergueu muros nos pontos mais perigo­
sos da nossa vida, para que não nos precipitemos no
abismo do inferno. Mas quem os quiser saltar, enciJn­
tra sempre o inferno pronto a recebê-lo.
Foi por um acto de puro amor que Deus deu ao
homem a lei natural, os dez mandamentos. Se fizés­
semos 0s sacrifícios l igados à observância dos man­
damentos, não precisaríamos de fazer centenas e até
milhares de outros sacrifícios. Mas acontece que por
vezes não ouvimos a voz da razão e da consciên­
cia e nos pomos a percorrer caminh0s que, por não
coincidirem com a vontade de Deus, nos levam à tem­
poralidade e muitas vezes à perdição e:erna. Logo que
o homem se desliga de Deus e procura tornar-se inde­
pe.ndenle, vai ao encontro da perdiçã0. Assim como a
Terra só pode subsistir como •ai, enquant0 depender
do sol , rodando à volta dele em movimento de trans­
lação, também o homem só tem uma vida digna en­
quanto se submeter a Deus.

O AMOR E A DOR

Por culpa d0 pecado dos nossos primeiros pais, o


homem perdeu um paraíso; e corre o risco de perder o
segundo, mais belo, eterno, em consequência dos seus
pecados pessoais. Ora Deus «Opõe-se,, a essa pcssive!
perda, na medida em que, como Deus, isso lhe é
possível. ((Quer que todos os homens se salvem•
(I Tim. 11. 4). E aquilo que Deus quer, deseja-o com
toda a sua omnipotência , sabedoria e bondade.
Quando duas pessoas se amam com verdadeiro
amor, começam, antes de mais, por exigir sacrifícios
a si próprios. Cada um esforça-se por se aproximar
20 O CR/STÃO E A DOR

do outro. Em medidas h umanas, Deus fê-lo até aos


limites do possível. Mas exige que nós cooperemos com
Ele. E por muito que nos peça, tudo será pouco com­
parado com o muito que sacrificou por nós na pessoa
do seu Filho.
Quando não queremos ouvir a linguagem do amor,
Deus não tem outra alternativa senão dirigir-se-nos na
l inguagem da dor. Mas que aprendemos nós com a
linguagem da dor? Assim como as crianças só deixam
de brincar com o fogo quando os pais as castigam,
assim também nós, crianças crescidas , só nos afasta­
mos do pecado quando sentimos a dor, o sofrimento.
Logo que este passa, voltamo-nos de novo para o
pecado.
<<Gememos de dor mas não nos corrigimos. Quando
estendes a mão para nos castigar, prometemos proce­
der bem ; quando retiras a espada, não mantemos a
promessa feita. Se nos bates, gritamos para que nos
poupes; se nos poupas, incitamos-te a novos golpes ))
(Oração de Urbano Vlll). ((Os homens preferem a
morte à vida, as trevas à luzn (João, Ill, 19).
Com efeito, quase nada aprendemos com a dor
alheia e nem mesmo o que sofremos nos torna mais
lúcidos. Depois da Grande Guerra de 1 9 1 4- 1 9 1 8 , m ui­
tos foram os que juraram que nunca mais haveria
guerra. Mas passados alguns anos foi o que todos
vimos.

O AMOR E AS CATÁSTROFES

Aos homens que procuram aproximar-se de Deus,


o Senhor fala-lhes através da luz suave de uma estrela
(Mat. II, 2), dirige-se-lhes no murmúrio do vento
(3 Reis, XIX, 1 2). Mas se não consegue fazer-se ouvir
através da linguagem da suavidade, do amor e da bon­
dade, fala, em voz mais vibrante e mais clara, através
O SOFRIMENTO E O A MOR DE DEUS 21

da linguagem da dor. E se mesmo assim não é ouvido,


então dirige-se-lhes como a surdos e duros do cora­
ção através da linguagem das catástrofes.
Na verdade, quando os tempos decorrem tranqui­
los e agradáveis, os homens tomam-se arrogantes , afas­
tam-se do Senhor; julgam poder passar sem Ele. pen­
sam que podem transformar pelos seus próprios mé­
ritos o mundo num paraíso. Pouco depois, quando
começam a marcha no caminho que os há-de conduzir
ao ((paraíson, surge repentinamente a catástrofe e en­
tão, perante a fatalidade, perdem a cabeça e atribuem
as culpas a Deus. <<Como será possível que Deus per­
mita tais coisas, que não intervenha, que não estabe­
leça a ordem, que não ponha fim à guerra e à miséria? n
A verdade, porém, é que Deus não tem nada a ver
com a guerra. Ele não é um Deus da guerra, mas um
Deus de paz. ((Porque eu tenho acerca de vós pensa­
mentos de paz e não de aflição, diz o Senhorn (Jer.,
XXIX , 1 1 ). As guerras começaram-nas os povcs. Elas
não seriam possíveis se todos tivessem agido de acordo
com os dez mandamentos. Por isso nã0 devem esperar
a paz de Deus, mas de si próprios.
Se no mundo só um bilião de homens pudesse viver
uma vida digna e Deus tivesse enviado dois biliões,
caber-lhe-ia então a responsabilidade pelas guerras.
Ora no mundo podem viver não apenas dois bi!iões,
mas oito pelo menos, sem fome nem miséria.
Deus nã<J envia os homens para a Terra para os
fazer morrer de fome. Ele, que veste os lírios e cuida
dos pássaros do céu, com muito mais razão cuida de
nós. seus filhos. Se nos deu a vida, não nos vai cer­
tamente recusar os alimentos essenciais. Se nos deu o
corpo, dar-nos-á também com que o cobrir (Mat. VI,
25 e segs . ). Antes mesmo de nós termos pr<Jnunciado o
quarto pedido do Pai Nosso (( O pão nosso de cada dia
nos dai hoje)) (Luc. XI, 3), já Deus fizera crescer para
O CRJSTÃO E A DOR

n:Ss o pão. Deixou porém a nosso cuidado a sua dis­


tribuição e nesta que se manifesta todo o egoísmo de­
:oe:tfre:ldo dos h<Jmens.
Todas as catástrofes que desde todos os tempos
'êm assolando a humanidade - o dilúvio, terramotos,
epidemias, fome, guerras - não seriam tão graves se
os hcmens quisessem aprender a lição. O pior é que
r,cabam sempre p<Jr repetir os mesmos erros. ((Apren­
de-se na história que na história nada se aprende »
(;-.;ietzche).
Por isso, com as catástrofes - principalmente com
as guerras - as coisas passam-se como com os escân­
dalos. Não deviam ser necessários mas, como os ho­
mens não querem modificar-se, haverá sempre escân­
dalos (Luc., XVIII, I ); ((ouvir-se-á falar sempre de
guerras e rumores de guerras» (Mat. XXIV, 6). Temos
de nos resignar a iss'l, e embora a generalidade dos
homens aprenda com a desgraça, é necessário pelo me­
nos que cada qual seja suficientemente sensato para
tirar para si o máximo proveito.

LIMITES DO AMOR

Já perdemos um paraíso e Deus quer a todo o custo


conservar-nos o outro, o eterno. É por isso que, no seu
amor por nós, Deus nos prega através da linguagem
das catástrofes, não só por nossa causa. porque nos
((ama com amcr eterno'' (Jer. , XXXI. 3) e quer sal­
var-nos a todos, mas por si próprh Deus chamou­
-nos à existência para fazer de nós um campo de acção
do seu amor misericordioso. E mais ainda: quer ver­
-nos a todos na felicidade suprema do Céu, para que
o sangue de Cristo, <!esse grande preço » (l 01r. VI, 20),
não tivesse sido derramado em vão. O Senhor quer
ainda experimentar em nós uma expansão da sua
O SOFRIMENTO E O A MOR DE DEUS 23

magnificência exterior. O amor aumenta quando se


dá , quando se parti1ha. « Alegria partilhada é ale­
gria dobrada)) . «É maior ventura dar do que receber))
(Actos, XX, 35). Q uantos mais homens Deus fizer
partilhar da sua felicidade e:erna, tanto maior será
a honra que lhe hão-de prestar.
Talvez pudéssemos perguntar por que razão Deus
nos não ajuda de tal mod'l, que nenhum de nós se perca.
Há dois limites para a acção externa de Deus. O pri­
meiro está, por assim dizer, n'Ele próprio. Deus não
p;de ultrapassar-se a si próprio. O seu amor miseri­
cordioso forçou-o a ir até esse limite extremo. No Fi­
lho unigénito, Ele deu-nos tudo o que nos podia dar.
O segundo limite foi imposto por Deus a si próprio:
é a liberdade do homem, sobre a qual gira todo o
nosso sistema de salvação. Sem l iberdade nã0 haveria
recompensa nem castigo, nem céu, nem inferno. Se rece­
bêssemos da misericórdia divina tantas graças que
tivéssemos de acatar os mandamentos da Lei de Deus,
a sua justiça já não poderia recompensar-nos. Deus
respeitará sempre a liberdade que nos entregou como
um dom precioso. Pede; nunca impõe. « Eis que estou
à porta e bato . . . )) (Apocalipse. lll, 20). Respeita a nossa
liberdade, nunca lhe transpõe os l imites, mas o seu
amor leva-0 também aqui até ao limite, sem avançar
nem mais um milímetro, sem a transpor. Deus faz tudo
para salvar cada homem de per si. Cada homem será
culpado de se perder.
A D O R E A JUSTIÇA DIVINA

A justiça divina constitui um problema de impor­


tância primordial para o homem. Com efeito, está tão
arraigado em nós o conceit0 de direito e justiça, que é
mais fácil tolerarmos uma falta de amor que uma falta
de justiça.
Por um lado, estamos inteiramente convencidos de
que Deus é justo, é um ((pai juston (João, XVII, 25),
é justo ((em todos os seus caminhos n (Salmo CXLIV,
17), em todos os seus desígnios (Tob. UI, 2), nunca
procede sem razão (Job, XXXIV, 12), ordena tudo se­
gundo a justiça (Sabedoria, XII, 15). Por outro lado
são inúmeras as injustiças que temos de sofrer, de
certo modo em nome de Deus, visto que nelas consente.
((A felicidade e a desgraça, a vida e a morte, a po­
breza e a riqueza vêm do Senhorn (Ecl., XI, 14).
"Acontecerá algum mal na cidade que o Senhor
não fizesse?n (Amós, 111. 6). ((E assim como vigiei
sobre eles para desarraigar e demolir. e dissipar, e
arruinar. e afligir, do mesmo modo vigiarei sobre eles
para edificar e plantan (Jer. XXXI, 28). ((Nada acon­
tece por acaso, tudo vem do alto n . Como pode Deus
querer todo esse mal , consentir nele, se é um Deus
justo, se é a própria justiça? Com0 pode Ele distri­
buir tão injustamente entre os homens o destino e a
morte?
Todos nós sabemos como contribuem para a for­
mação dos filhos os pais b'Jns e virtuosos. E, no en·
tanto, não se poderá dizer que a maior infelicidade de
algumas crianças é terem tido pai e mãe?
26 O CRISTÃO E A DOR

Conhecemos num orfanato um rapazito de cinco


anos, filho ilegítimo, como ilegítimas tinham sido tam­
bém a mãe, a avó e a bisavó. Era uma criança atin­
gida pela hereditariedade. De noite, tinha de ficar
sàzinho num quarto porque constituía um perigo para
os companheiros. Mas que culpa tinha ele afinal de
que os pais fossem assim? Ninguém pode escolher os
pais e por isso ninguém tem culpa de ter bons ou maus
p:1is, boa ou má ed ucação. Com que arbitrariedade
Deus prodigaliza os seus dons! Pesscas há que parece
terem tido apenas madrasta. Quantas vezes triunfa a
injustiça, quantas vezes o direi:o é desprezado!

A DOR E O PECADO

Já no Antigo Testamento os homens se preocupa­


vam com este problema. Por um lado, a j ustiça divina
era um facto irrefutável ; por outro, surgiam na vida,
frequentemente , injustiças, mais flagrantes umas que
outras. Como poderiam coexistir estas duas verdades?
Concluiu-se daí, então, que a dor estava ligada ao
pecado e equiparou-se aquela ao castigo.
Job era um homem santo e justo. <<Não há seme­
lhante a ele na Terra. Varão sincero e recto e que teme
a Deus e que se afasta do mal » (Job, I, 8). Nem mesmo
os inimigos conseguiam apontar-lhe defeitos. Ora as
desgraças começaram a cair sobre ele, sem interrup­
ção. Perdeu os bens, sete filhos, três filhas e finalmente
foi atacado pela lepra. Apresentaram-se-lhe então três
amigos que o queriam obrigar a confessar as suas cul­
pas, dizendo que ele parecia ser um homem justo
e temente a Deus, um homem quase sem mácula, e
afinal não passava de um hipócrita, de um grande
pecador que incorrera no castigo do Senh0r. Porque se
não houvesse pecado, Deus não o teria castigado com
A DOR E A JUSTIÇA DI VINA 27

tal severidade. « Porventura Deus perverte os seus JUI­


zes? Ou o Tcdo Poderoso destrói o que é just'1?ll
(Job, VIII. 3). Portan:o, havia pecado , quer aparente
quer ccul:o. Foi então que o Senhor censurou esses
amigos e os reduziu ao silêncio: « Vós não falastes de
mim o que era rectOll (Job, XLI I , 7).
Mais do que 0 Novo, o Antigo Testamento encerra
um mundo de justiça. revela uma conexão mais íntima
entre o pecado e o castigo, amor a Deus e recompensa.
Mas nem mesmo assim os sofrimentos foram sempre
o castigo justo de culpas pessoais.
No Novo Testamento. o Testamento do amor, vol­
tado todo ele para o Além, essa. conexão é ainda mais
frágil e os contemporâneos do Salvador tiveram muita
dificuldade em modificar processos e pontos de vista
estabelecidos.
Um dia. Cristo encontrou no seu caminho um cego
de nascimento e os discípulos perguntaram-lhe: (( Mes­
tre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse
cego?)) (João, IX, 2). Nã o podiam compreender que se
pudesse ser ceg0 sem culpa e queriam saber apenas
quem pecara. Os fariseus não tinham dúvidas desta
ordem porque sabiam bem « que o homem é um peca­
dor)) (João. IX, 24), e se assim não fosse. aquele não
poderia ter nascido cego (Joã·1. TX. 34). Jesus Cristo
condena este rnod0 de ver ao dizer que (( nem ele nem
seus pais pecaram ; mas foi para que se manifestassem
nele as obras de Deus)) (João, IX. 3). O Salvador diz
bem explicitamente que neste mundo nem sempre o
castigo está necessàriamente Iigad0 a urna culpa pes ­
soal e que não nos dá de modo algum o direito de
fazer juízos.
Quand0 em Jerusalém alguns galileus foram mor­
tos em sacrifício ordenado por Pilatos, Jesus disse aos
judeus: « Vós julgais que aqueles galileus eram maiores
pecadores que os outros, por terem padecido tanto?
28 O CRISTÃO E A DOR

Não, eu vo-lo digo. Mas se não fizerdes penitência,


todos perecereis do mesmo modo. Assim como tam­
bém aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a
Torre de Siloé e os matou, julgais que eles também
foram mais culpados que todos os outros habitantes
de Jerusalém? Não, eu vo-lo digo. Mas se não fizer­
des penitência, todos perecereis do mesmo modo»
(Lucas, XIII, 1 e seg.).

O SILÊNCIO DE DEUS

Nem sempre os sofrimentos correspondem a um


castigo divino por pecados cometidos, pois servem
frequentemente « para manifestar as obras de Deus »
(João, IX, 3). Não raras vezes têm por fim exortar-nos
ao recolhimento e à conversão. Todavia, esta explica­
ção não resolve toda a dificuldade do problema.
Se é certo que o sangue de Abel brada aos céus e
Deus faz justiça ao assassinado inocente, não seria
natural que o sangue de tantas centenas de milhar, de
milhões de vítimas bradasse ainda mais alto? Porque
não ouve Deus tais brados? Porque não fala? Porque
guarda silêncio, um silêncio tantas vezes insuportável?
Tal como os filhos do trovão, também nós desejamos
que Ele fale, que faça justiça, a si próprio e a nós,
que desça o fogo do céu sobre os seus e nossos ini­
migos e os consuma (Luc. IX, 54). Mas Deus guarda
silêncio durante décadas e séculos, e esse Deus silen­
cioso tornou-se para nós um fardo. Quem sabe se não
seria um fardo maior se começasse repentinamente a
falar?
É por isso que os apóstolos não compreenderam
de início que o Senhor dormisse durante a tempestade.
«Mestre, não se te dá que pereçamos?» (Marc'Js, IV, 38).
E quando o Senhor os admoestou, caíram então em
((grande temofll (Marcos, IV, 4 1).
A DOR E A JUSTIÇA DIVINA 29

JUSTIÇA E AMOR

As nossas reflexões levam-nos por vezes a pergun­


tar qual será mais profunda e mais vasta, se a justiça,
se a caridade. Sem dúvida alguma esta última, porque
a justiça está implícita no amor, ao passo que este
não está necessàriamente implícito naquela. Um j uiz
pode ser justo, extremamente justo, sem no entanto
ser caridoso. Mas uma mãe, que ama o filho com todo
o coração, nunca pode ser injusta para com ele.
O verdadeiro amor exclui qualquer injustiça. É im­
possível que Deus, amando-nos com um amor infinito,
possa ser injusto para connosco, ainda que por mo­
mentos. Não o permite o seu amor. Tem de ser sem­
pre justo. << Tu és muito justo, Senhor, para que eu dis­
pute contigou (Jer., XII, 1 ) . « Acaso o meu caminho
não é justo, pergunta o Senhor, e não são antes os vos­
sos os que são corrompidos? u (Ezequiel , XVIII, 25).
Ccmo Deus do amor, o Senhor tem de ser sempre justo.
É esta uma noção que nós devemos manter, mesmo
contra qualquer objecção humana, sem recorrer à razão,
mas à fé. A este respeito ocorrem-nos as seguintes
palavras: « Os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos; nem os vossos caminhos são os meus
caminhos» (Isaías, L V, 8). « Com efeito, Deus é grande,
e supera a nossa ciência» (Job, XXXVI, 26).
Nós não precisamos de fazer a Deus exigências
severas relativamente aos nossos direitos porque Ele
próprio se comprometeu a dar-nos tudo o que for neces­
sário para alcançarmos a salvação eterna. Em primeiro
lugar, deu-nos a inteligência necessária para podermos
reconhecer a sua vontade. Dotou-nos com a força pre­
cisa para transformar essa vontade em acção quando
ela for condição para a salvação da nossa alma, por­
que as forças puramente naturais não chegam para
alcançarmos urna meta que está na esfera do sobrena-
30 O CRISTÃO E A DOR

tural. No en�anto, tiJdas as circunstâncias, aconteci­


mentos e meios terrenos podem contribuir também
para a nossa salvação.

A INJUSTIÇA COMO MEIO


DE ALCANÇAR A SANTIDADE

Tal como para Deus, também para nós tudo deve


ser um mei0 de alcançar o fim: <<Todas as coisas
concorrem para o bem daqueles que amam a Deus n
(Rom., VIII, 28). Todas as coisas - tanto as evi­
dentes, aquelas que nos parecem j ustas, como aquelas
que nos parecem injustas. As mais honrosas e fla­
grantes injustiças podem e devem servir para a edifi­
cação de Cristo em nós e à nossa volta.
Os homens podem cometer injustiças clamorosas e
revoltantes, mas Deus nunca pode ser injusto. Permite
a injustiça, deixa-a triunfar sobre nós, porque na sua
mãiJ ela será um meio eficaz para alcançar a santi­
dade.
Estamos mais próximos do paraíso quando estamos
crucificados com Jesus Cristo, principalmente quando,
contra todos os direitos humanos, nos pregaram com
Cristo na cruz. Nessa altura, dirigem-se a nós as pala­
vras de Jesus: <<Ainda hoje estareis comigo no Paraíso>> .
Bas:a-nos <<morrer» para entrar no reino dos céus.
Partilhar, inocentemente, do sofrimento de Jesus
Cristo, partilhá-lo por amor à justiça há-de ser uma
grande alegria para nós (I Ped . , IV, 13), (Mat., V, 10).
Não temos o direito de interrogar a j ustiça de Deus
quando Ele, o mais iniJcente, o mais puro de pecados,
o mais imaculado, se deixou submergir num mar de
dor e tormento tais, que ao m0rrer na Cruz exclamou:
« Deus meu, Deus meu, porque me abandonaste? »
(Marcos, XV, 34).
A DOR E A JUSTIÇA DIVINA 31

É o am0r e não a justiça, que leva Deus a cha­


mar-nos para tomar parte na dor do seu Filho, e ,
quanto maior é o sofrimento, maior é a prova de mi­
sericórdia. Estas palavras não são uma consolação
barata; são a verdade em toda a sua plenitude.
Tudo o que J?eus faz está certo (Marc<Js, XII, 37).
Deus nunca comete erros. Um homem de fé não deve
sentir-se ofendido ao ver que as coisas correm bem
aos pecadores. Não nos deixemos deslumbrar pelas
aparências externas. Não esqueçamos que não é em
banquetes e orgias que se encontra a verdadeira feli­
cidade. Esta só pode nascer num coração puro.

UMA INJUSTIÇA QUE É JUSTIÇA

Tudo o que Deus faz está certo. Ora quem obser­


var apenas o lado superficial do mundo nunca poderá
compreender esta verdade. A vida é uma breve passa­
gem, um breve período de provação. Nem sequer me­
rece tal nome, porque é mais morte do que vida. Como
poderá alguém compreender a alegria do semeador se
não conhecer as alegrias da colheita? A dor e a feli­
cidade estão tão ligadas como o sementeira e a colheita.
Deus destinou-nos um papel no teatro do mundo,
sem nos consultar, mas fê-lo com sábia ponderação
e não ao acaso. Que importa a um actor desempenhar
durante umas duas ou três horas o papel de mendigo,
no palco, se quando dele sair o espera um automóvel?
E de que lhe serve fazer o papel de rei se é na rea­
lidade um homem pobre?
Ora se os actores não tomam demasiado a seno
os seus papéis, porque havemos nós de o fazer? O nosso
papel neste mundo só tem importância relativamente
ao que nos há-de caber no Além. O que são três horas
32 O CRJST ÃO E A DOR

como mendigo num palco, no meio de uma vida de


oitenta anos de opulência e celebridade? Mas que são
oitenta anos comparados com a eternidade? «Vede, não
sois nada!)) (João, XL, 24). Os nossos dias desapare­
cerão como fumo.
Deus não pode ser injusto nem um só instante,
para com pessoa alguma, nem neste nem no outro
mundo. Não há, portanto, razão para desanimarmos
quando se trata de carregar a nossa cruz. São apenas
umas << horas )) que nos vão merecer o mais belo dos
papéis na eternidade. Porque havemos de desesperar?
Se há um sinal infalível de que alguém foi escolhido
pelo Senhor, é sem dúvida a participação da agonia
c dos sofrimentos de Jesus Cristo. «Sofremos com Ele

para com Ele sermos glorificados)) (Rom. VIII, 17).


«Recompensa há para a tua obra)) (Jer. XXXI, 1 6).
Quanto àqueles que desempenham papéis brilhan­
tes no mundo, nunca são dignos de inveja; quase
diríamos que merecem a nossa compaixão. Colhem
neste mundo e «semeiam)) no outro. uEm verdade vos
digo que já receberam a sua recompensa)) (Mat. VI, 3;
Vl, 16). u Ai de vós, ó ricos! porque tendes a vossa
consolação)) (Luc. VI, 24). «Como é difícil que entrem
no reino de Deus os que têm riquezas! )) (Marcos, X, 23).
u Ai de vós, os que estais saciados! Porque vireis a ter
fome. Ai de vós, os que agora rides! Porque gemereis
e chorareis )) (Luc. VI, 25).
Deus, que procede sempre com justiça, trata-me
também justamente a mim. Quem me dera não come­
ter erros! O Senhor deu-me a vida temporal, rodeou­
-me de tudo o que me é vitalmente necessário para
poder trabalhar para a sua honra, para salvação das
almas, da minha e da dos outros. Um dia, na luz da
eternidade, havemos de ver tudo o que ainda está
ocult0 e verificaremos que tudo tinha de ser assim para
A DOR E A JUSTIÇA DIVINA 33

sermos semelhantes a Ele ( 1 , João, 111, 2). Reconhece­


remos então que tudo foi feito segundo o amor mise­
ricordioso do Senhor, que tudo foi graça, mesmo a dor.
"Misericordias Domini in aeternum cantabo - Can­
tarei eternamente a misericórdia do Senhor» (Sal­
mo LXXXVIII, 2).
A DOR FORJA O ESPÍRITO

Assim como todo o mundo é dirigido e guiado pelo


amor misericordioso do Senhor e só deste ponto se
pode compreender a sua forma de o reger, assim tam, ·

bém se deve entender a influência directiva de Deus ·

na vida de cada indivíduo. Deus quer a salvação de


todos os homens. « Porquanto esta é a vontade de Deus,
a vossa santificaçãon ( 1 Tessal. IV, 3).
É desejo do Senhor que todos nós alcancemos o má­
ximo grau possível de santidade: com esse fim. pre­
parou-nos um plano de vida próprio, para o qual con­
tribuiu c0m todo o seu amor, dedicação e cuidado,
como se tivesse de se ocupar apenas de um de nós.
Cada homem possui Deus na sua totalidade, tal
como na natureza cada um possui todo o sol. Deus
nunca se divide, nem mesmo no seu amor; onde quer
que se manifeste, actua como Deus pleno.
No plano humano as coisas passam-se de maneira
diferente. Uma mãe de cinco filhos rião pode conceder
a um deles todo o seu amor. Deus, pelo contrário, ama
cada indivíduo com a totalidade do seu amor, e, por
isso, é impossível que Ele esqueça quem quer que seja.
Tem-nos marcados na sua mão como um selo (Cânt.
VIII, 6); somos guardados por Ele como a menina ·dos
seus olhos (Deut. XXXII, 1 0).

AMOR INFINITO

Mesmo quando alguém abandona Deus malévola e


premeditadamente, como o filho pródigo abandonou o
36 O CRISTÃO E A DOR

pai (Luc., XV, 1 1 e seg.), Deus não modifica a sua ati­


tude para com ele, nem lhe fixa um novo plano de vida.
O segredo do Senhor permanece imutável para toda a
eternidade (Salmo XXXII, 1 1 ), não há nele qualquer
sombra de mudança (Tiago, I, 17).
O amor de Deus pelos homens não tem princípio
nem fim. Não pode agora carecer de amor, se antes
o teve em abundância, e não pode agora ter amor se
o não teve antes. O verdadeiro amor não se irrita (1 Cor.
XIII, 5), nem com muita água se consegue apagar
(Cânt. XIII, 7). De resto, no próprio amor humano,
quando verdadeiro, há um traço de imutabilidade.
Ora se Deus não muda, muda o homem quando se
afasta d'Ele. Deus é como o sol que está sempre vol­
tado para a terra. O homem é como a terra que lhe
volta as costas e passa do dia à noite.
Se todos nós tivermos urna fé profunda e viva, como
nos havemos de sentir bem-aventurados ao vermo-nos
amparad<Js pelo amor de Deus ! Convençamo-nos de
uma vez para sempre: Deus sabe tudo, cuida e pensa
em cada um de nós como se fôssemos todo o mundo.
Deus existe para cada homem de per si. Se um ser hu­
mano vivesse só no mundo, Deus não poderia fazer por
ele mais do que já faz. Tudo o que existe é para cada
indivíduo, considerado isoladamente.
Deus quer que o homem se salve. Quem se deixar
conduzir pela vontade do Senhor, quem se submeter
à sua autoridade, alcançará, sem qualquer sombra de
dúvida, a meta, a salvação. Qualquer lavrador sabe que
é necessário unir estreitamente o solo e a semente para
produzir frutos. O trigo não se desenvolve em terrenos
arenosos, mas na boa e fértil terra negra. A batata dá-se
bem com a areia. Pois também no homem, os solos
diferem uns dos outros. Cada um recebeu de Deus os
seus dons (I Cor. VII, 7; Efés. IV, 7), cada um rece­
beu a sua espécie de solo, e ((todas estas coisas as opera
A DOR FORJA O ESPIRITO 37

um só e o mesmo Espírito, repartindo a cada um como


lhe aprazn ( 1 Cor., XII, 1 1 ).

UM GRANDE MISTÉRIO

Por que razão terão sido distribuídos os dons com


tanta diversidade? Eis um grande mistério.
Diz-n0s S. Mateus que um recebeu cinco talentos,
outro dois e outro, ainda, um - conforme a sua capaci­
dade (Mat. XXV, 1 5). Ora acontece que também a ca­
pacidade vem de Deus (2 Cor. , III, 5). Mas não terá
ela como base a hereditariedade , aquilo que recebemos
dos nossos antepassados? Se n0s fosse possível observar
todo o conjunto dos nossos avós, verificaríamos que
todas as nossas características, in�eriores e exteriores,
correspsndem às dos nossos antepassados. Dizia Nietzs­
che que o homem é mais filho dos seus avós que dos
pais. Ora se os nossos antepassados tiverem enfraque­
cido, comprometido ou corrompido a nossa hereditarie­
dade -não esqueçamos que os pecados dos pais são
expiados pelos filhos até à terceira geração (Ex ..
XX, 5) - seremos nós a sofrer as consequências. " As
suas obras os seguem n (Apoc., XIV, 1 3).
Deus nunca se repete nos seus actos. Não há uma
árvore, um animal, ou um anjo idênticos uns aos ou­
tros. Todo o ser é uma obra original do Senhor. Não
há dois carvalhos iguais; nem sequer duas folhas da
mesma árvore o sã0. Por isso todo o homem é de per
si um univers0, tanto no interior como no exterior.
Nem os próprios contornos dos dedos são iguais em
duas pessoas. Mas desta admirável diversidade há-de
resultar uma harmonia que só na eternidade podere­
mos compreender em toda a sua plenitude.
É verdade que o mistério não fica res0lvido com
estas explicações, mas São Paulo também o não resol-
38 O CRISTÃO E A DOR

veu. Diz o Apóstolo, citando as palavras do Êxodo


(XXXIII, 19): «Eu terei misericórdia com quem me
aprouver ter misericórdia e terei piedade de quem me
aprouver ter piedaden (Rom. IX, 14 seg.). E depois,
mais incisivamente: . « Logo ele tem misericórdia de
quem quer e endurece a quem quern (Rom. IX, 18).
Como pode então Deus censurar o homem por
coisas nas quais não pode resistir à vontade divina?
É o próprio São Paulo que responde a esta pergunta:
<<Ó homem, quem és . tu para replicares a Deus? Por­
ventura o vaso de barro diz ao oleiro: u Por que me
fizeste assim?'' Porventura não é o oleiro senhor do
barro para poder fazer da. mesma massa um vaso para
uso h onroso e outro para uso vil? n (Rom. IX, 20 seg.).
O homem não p'Jde nem tem o direito de pedir
satisfações a Deus, porque Ele é o Senhor e nós os
servos.' Sabemos que Deus nos ama com um amor
imenso, que nenhum homem lhe pode ser indiferente,
que faz tudo o que pode para que ninguém se perca
(li Ped. III, 9). E é tudo.

A NOSSA LIMITAÇÃO

Deus conhece-nos a todos, pois u ele próprio nos


fez» (Salmo XCIX, 3), sabe o que nos vai na alma,
conhece as nossas propensões e inclinações, conhece­
-nos melhor que nós próprios . . . «Não necessita que
lhe dêem testemunho de homem algum, pois sabe por
si mesmo o que há no interior do homerilll (João, li,
25). Porque Deus nos conhece bem, Ele, <<O agricultorn
(João, XV, 1), semeou em cada coração o fruto mais
apropriado.
Realmente, não é sacrifício pequeno o ter alguém
recebido um solo pobre, estéril, que o sujeita a contí­
nuas limitações. Mas não nos precipitemos se isso
acontecer. Deus não exige que um solo arenoso pro-
A DOR FORJA O ESPIRITO 39

duza trigo, porque sabe que o não pode esperar. Exige,


sim, que se desenvolva no devido tempo o �ruto nele
semeado. Vai até esse ponto a nossa responsabilidade.
Quando chegar o dia de Juízo, poderemos vir a rece­
ber por uns míseros grãos de cevada bem maduros
uma recompensa maior que a que nos mereceria uma
grande colheita de trigo não maduro. Deus não exige
· ·

mais d o que lhe é devido.


Luise Hensel queixou-se uma vez a Catarina Em­
merich da aridez da sua vida espiiitual. Respondeu­
-lhe a vidente: dmagina que eras cozinheira numa
casa rica e que só te davam pão e água para fazeres
a sopa. Não poderias apresentar uma s0pa suculenta,
não é verdade? »
Só podemos dar a Deus aquilo que está dentro das
nossas possibilidades. Por isso Santo Ago.stinho orava
assim: <<Senhor, dá-me o que exiges e exige depois o
que q�iseresll.

NÃO É O NúMERO DOS ANOS . . .

Vimos que Deus semeia em cada coração o fruto


que melhor se pode desenvolver e. amadurecer nele.
Sabemos ainda que cada fruto exige um determinado
período de maturação, que pode durar semanas, meses
ou até anos. O mesmo se passa coin, os homens: cada
um recebe um tempo de vida medido por Deus, que
lhe permite alcançar a maturação no termo da exis-
·

tência terrena.
Ora o Senhor não espera até qu� o homem atinja
realmente a maturação, porque, s� assim fosse, era­
-lhe preciso às vezes esperar çem ou duzentos anos, o
que não era razoável. Deus espera apenas que decorra
o período concedido ao homem, independentemente de
este ter atingido ou não a maturidade. A verdade,
porém, é que uma pessoa pode morrer aos vinte anos
40 O CRISTÃO E A DOR

e tê-Ia atingido, recebendo plena recompensa, en­


quanto outros morrem aos oitenta sem terem amadu­
recido e neste caso · a recompensa será menor. Pode
uma pessoa que morre de tenra idade ter atingid0
muitos anos (Sab. IV, 1 3), porque a idade não é me­
dida pelo número dos anos (Sab. , IV, 8). Mrmern ve­
'
Ihos que o não são e jovens com mais de cem anos
(ls. LXV, 20).
Se alguém quiser colher uma maçã bem madura,
basta tocar-lhe e ela logo se desprende. Isto porque
a natureza fez o pedúnculo de tal modo, que o frutiJ
se desprende fàcilmente da árvore, caindo quando está
completamente maduro. A maçã, belíssimo enfeite da
árvore, . não foi feita para a ornamentar. A sua missão
é amadurecer, como a nossa aliás. Cumpre-nos ama­
durecer na árvore da vida, amadurecer para Deus.
E, ao fazê-lo, temos de nos desprender a pouco e
pouco de todos os elos que nos prendem ao mundo,
aos homens e ao próprio eu. A decadência física deve
ser acompanhada de um desprendimento interior. Só
assim, quando a mão do Senhor nos tocar, cairemos
como fruto maduro nos seus braços.
Para colher uma maçã «verde)) é preciso u partirn
o pé, usar de violência. Do mesmo modo, será vio­
lenta a morte daqueles que se mantêm demasiado pre­
sos ao mundo, aos homens ou a si próprios.
Todo aquele que Deus tiver de << partin1 ainda
verde, há-de continuar no purgatório a sua matura­
ção, porque ninguém entra no céu sem a ter atingido.
Pràticamente, quase todos passaremos por lá, não há
dúvida; e, no entanto, a nossa purificação deve come­
çar já neste mundo. É aqui que devemos amadurecer
para os celeiros do céu. No purgatório, o sofimen:o
é difícil e longo, e purifica apenas; na terra , porém,
ele é mais fácil, mais rápido e meritório.
A DOR FORJA O ESPIRITO 41

(( EIS O DIA DA SALVAÇÃO»

Sucede, porém, que, para amadurecerem , os frutos


requerem, além de um determinado período de tempo,
condições atmosféricas apropriadas à sua natureza.
Uns precisam de sol ; outros, de chuva. Deus, no en­
tanto, não se preocupa com cada fruto de per si.
A chuva e 0 sol caem indiferentemente sobre todo:;
eles.
Com os homens as coisas passam-se de maneira
diferente. Se bem que o Senhor faça nascer o sol sobre
bons e maus e a chuva caia sobre justos e injustos
(Mat. V, 45), a verdade é que as circunstâncias exter­
nas actuam no interior de cada homem, de acordo com
estados de alma que Deus cria a cada momento: (( E is
agora aqui o tempo aceitável, eis agora aqui o dia da
salvaçãOll , (11 Cor. VI, 2). Muitas vezes, estes estados
não sã0 os que melhor correspondem aos nossos dese­
jos, mas é deles que temos necessidade para alcançar
a plena maturação.
Desde a eternidade, Deus preparou completa e por­
menorizadamen �e as condições mais favoráveis para
cada homem. Todo aquele que aceitar da mão de Deus
o que Ele oferece chegará ao fim plenamente amadu­
recido.
Entre 0s frutos, há alguns que não amadurecem por
fa !ta de sol ; outros são prejudicados pelo excesso de
sol e secam. O mesmo se passa com os homens. O Se­
nhor deixou a alguns o sol da vida, porque noutras
circunstâncias nã0 seriam capazes de vingar. Não há
dúvida, porém, de que quase todos nós ficamos do
lado da sombra, não porque Deus tenha algo contra
nós, mas porque é esse o ambiente que nos convém.
Um excesso de sol - o mesm0 é dizer um excesso de
fel icidade - ser-nos-ia nocivo, atrasaria a nossa ma ­
turação, levar-nos-ia à perdição.
42 O CR!STÃO E A DOR

Nenhum homem conhece como é constituído o solo


da sua alma, quanto tempo lhe foi concedido para
amadurecer, quais as condições mais favoráveis. Isso
é um segredo de Deus. Mas a verdade é que ninguém
como Ele deseja o nosso bem e portanto a sensatez
exige que nos entreguemos a Ele sem reservas.
Na árvore, o fruto deixa passar tudo por si, mas
tudo utiliza para amadurecer: o dia e a noite, a tem­
pestade e a bonança, a chuva e o sol. Também nós
devemos amadurecer em tudo o que nos toca: a noite
ou o dia, a tempestade e o tempo da misericórdia.
O Senhor está por trás de tudo o que nos acontece,
convençamo-nos.

NÃO HÁ CRUZ DEMASIADO PESADA

Todo aquele que aproveita e valoriza cada um dos


momentos que passam, caminha com maior perfeição
e facilidade, rumo ao fim. Não quer isto dizer que não
tenha dificuldades , mas tem-nas em grau mínimo. E se
há pessoas que só têm a percorrer uma estrada fácil e
segura, outras têm de avançar por caminhos mais difí­
ceis. No processo actual para a salvação não há vida
humana sem cruz e sem dor. ((O h0mem nasce para o
trabalho» (Job, V , 7) (( Que estreita é a porta e que
apertado o caminho que conduz à vida! » (Mat. VII, 1 4).
Todavia, o amor misericordioso do Senhor nunca
envia a um homem mais dor d0 que a estritamente
necessária para a sua maturação. A nossa cruz tem
o peso e a medida que nos convêm. Nem mais u m
grama sequer.
Vistas bem as c0isas, a vida que Deus escolhe para
nós é sempre a mais fácil. Pode por vezes parecer-nos
que outro caminho seria mais suave e sobretudo mais
agradável do que o que temos de percorrer. Se pudés-
A DOR FORJA O ESPIRITO 43

semos escolher, com certeza escolheríamos muitas vezes


caminhos diferentes daqueles que Deus nos manda
seguir. Mas se nos deixarmos conduzir e guiar pela
vontade do Senhor, acharemos em cada cruz a graça
necessária para a suportar. <<Deus é fiel, e não permi­
tirá que . sejais tentados além das vossas f0rças, antes
fará que �ireis ainda vantagem da tentação, para a
poderdes suportarn ( I Cor. , X, 1 3).
Se, porém, nos desprendemos da mão d o . Senhor,
para seguir caminhos independentes, que nos pareçam
mais cômodos e agradáveis, então encontrar-nos-emas
sós ! Deus não nos pode acompanhar nas vias tortuo­
sas do egoísmo, da obstinaçã0 humana e do pecado.
Mas, mesmo depois disso, ele continua a esperar por
nós, um. dois, dez, vinte anos. Espera o tempo de uma
vida humana que abandonemos o nosso caminho-um
caminho que também tem cruzes. Porque todos os
caminhos do hoJTiem são· calvários. Se houvesse cami­
nhos sem dor, caminh'1s sem cruzes, já o homem, que
tão obstinadamente os tem procurado, os teria des­
coberto.

CRUZ E GRAÇA

. O pior dos caminhos humanos não é, porém, a


cruz, mas a ausência da graça necessária para a levar
ao calvário. Isto mesm0 explica porque tantos soço­
bram sob o seu peso, perdidos na confusão, encurra­
lados num beco de onde só se pode voltar para Deus.
Ora a verdade é que nós só regressamos ao Senhor
quando vem0s fracassar todas as outras possibilidades
de saída; antes disso, enquanto nos resta a mínima
probabilidade, forcejamos contra todas as paredes para
abrir um caminho humano; e só quando reconhece­
mos que essa u saída» não conduz à liberdade, resol­
vemos voltar para o Senhor - regressamos ao ponto
44 O CRJSTÃO E A DOR

onde o abandonámos. Assim perdemos inutilmente


tempo e energias, numa luta que não tem valor de
eternidade. Trabalhámos em vão (Salmo CXXVL, 1 )
não uma s ó noite, mas por vezes toda uma vida.
A dor torna-se assim um sinal, uma exortação
divina à penitência. É por intermédio dela que Deus
chama os homens e os (( obriga n , por assim dizer, a
voltar para si. O Senhor sabe que o caminho humano,
que aparentemente é tão cómodo, é afinal uma es­
trada de morte (Prov., XIV, 1 2), uma via de per­
dição.
Aos olhos de Deus uma alma imortal vale mais
que dez cidades destruídas, mais que todo o mundo
(Marcos, VIII, 36). Por isso o Senhor não hesita em
sacrificar, por ela, os mais altos valores terrenos, em
exigir dos homens os mais dolorosos sacrifícios: Vale
mais perder um pé ou um olho, do que ser lançado
com ambos os pés e ambos os olhos no fogo do in­
ferno (Mat. XVIII, 8 e seg.). Alguns homens perdem o
seu corpo (( a fim de que o espírito seja salvo no dia
de Nosso Senhor Jesus Criston (I Cor., V, 5).

A ruína é muitas vezes desejada e determinada por


Deus, mas sempre por nossa culpa. Abandonámo-lo,
seguimos caminhos nossos, obrigámos o seu amor a
proceder com dureza e, muitas vezes , de modo terrível.
Se reconhecêssemos honestamente os nossos pecados
e lhe disséssemos com sinceridade: ((Pai, pequei con­
tra ti 11 (Luc., XV, 2 1 ), tudo caminharia bem. Acaba­
ríamos por receber em dobro tudo o que antes pos­
suíamos. ((O Senhor lhe tornou em dobro tudo o que
ele antes possuían (Job, XLII , 1 0, 1 2). Mas , a maior
parte das vezes, a dor não n0s leva a ser razoáveis e
revoltamo-nos contra Deus. Quando isso acontece , em
vez de beneficiarmos das dores terrenas, são elas que
concorrem para a nossa perdição. Quem não quer
A DOR FORJA O ESPIRITO 45

seguir o Senhor está a d ificultar inutilmente a sua vida,


porque Deus nunca abandona o plano que ((preparou»
para nós. Os seus desígnios são imutáveis. Não muda
constantemente como o homem. Não se deixa atingir
pela nossa revolta.

SOMOS NúS QUEM TEM DE CEDER

Ora se Deus não cede, necessàriamente se deduz


que somos nós quem tem de ceder. E ceder é regres­
sar ao ponto em que o abandonámos.
Felizmente, não é tão difícil nem tão esgotante vol­
tar ao ponto de partida , como chegar ao afastamento
de Deus. Basta um simples momento para fazer esta
viagem de regresso, por mais dolorosa e demorada que
tenha sido a ida. Estejamos onde estivermos, há sem­
pre um caminho directo, sem curvas, que nos pode
levar ao Senhor.
Melhor será, porém, que não nos afastemos da mão
de Deus, mesmo que isso nos custe sacrifícios, porque
estes não têm relevância se os compararmos com os
que vamos encontrar no (< nosso» caminho humano.
Por que havemos nós de tornar a vida mais difícil
do que ela já é? Bem basta o peso que sobre nós exer­
cem os pecados dos outros! Para quê acrescentar-lhes
novos pecados?

DEUS TEM SEMPRE RAZÃO

Deus tem sempre razão. O profeta Jonas foi encar­


regado pelo Senhor da d ifícil tarefa de pregar na depra­
vada Nínive. Como lhe parecesse impossível cumprir
tal missão, resolveu embarcar e fugir para a Península
Hispânica, no extremo ocidental do mundo conhecido.
Talvez escapasse ao alcance de Deus, pensava ele.
46 O CRJST ÃO E A DOR

E escapou? Não. Os marinheiros, que eram pagãos,


sacrificaram-no ao deus do mar. Jonas viveu durante
três dias no meio das trevas , na mais completa solidão,
e compreendeu que é impossível fugir de Deus (Salmo
CXXXVIII, 7 e seg.). Quando chegou a terra dirigiu-se
a Nínive, pregou a penitência e teve um êxito imenso.
Não teria ele conseguido esse mesmo êxito antes, com
menos trabalho?
Se os judeus, quando saíram do Egipto, não se tives­
sem rebelado contra Deus, se tivessem confiado n'Ele,
poderiam chegar em poucas semanas à Terra da Pro­
missão. Mas não ; preferiram errar quarenta anos pelo
deserto. E de todos os adultos que haviam saído do
Egip�o. só Josué e Caleb chegaram à Terra Prometida.
Também nós, queiramos ou não, temos de errar
pelo deserto da vida. E não vale a pena revoltarmo­
-nos: a revolta só serve para tornar o caminho mais
agreste, ou até para nos impedir de alcançar Canaan.

JUNTO DE DEUS

Enquanto, acabrunhados pela dor, carregamos a


nossa cruz, o nosso maior cuidado deve ser não nos
afastarmos de Deus, nunca fraquejar, por mais dolo­
rosa e violenta que ela seja. Mesmo que o mundo in­
teiro se volte contra nós, nada devemos recear, por­
que estamos com Deus, e com <<Deus estamos sempre
em maioria n. Nas horas difíceis do Gólgota , o Senhor
tinha contra si todo o podei espiritual do j udaísmo
e o tremendo poçler material do Império Romano; e,
afinal, o vencido aparente foi o vencedor. Ora com Ele
venceram os poucos homens que estiveram junto à
Cruz, tal como hão-de vencer todos aqueles que de
boa mente a aceitarem. Quem quiser acompanhar
Cristo neste mundo tem de convencer-se de que é o
A DOR FORJA O ESPIRITO 47

Cristo crucificado e não o Cristo glorioso do Tabor


que vai a seu lado. Mas quem na Terra seguir o Cristo
crucificado, viverá no outro mundo j unto do Cristo
glorioso.
Quando estamos com os pecadores, são inúteis a .
oração e as peregrinações, porque Deus não nos pode
seguir. Nós, sim, é que temos de ir atrás d'Ele, aban­
donando os nossos desejos e aceitando os do Senhor,
para estarmos no que é dos nossos pais (Luc. II, 49).
Só assim Deus estará do nosso lado.
Uma vez j unto de Deus, o homem pode superar
toda a dor que lhe apareça na vida: o Senhor será para
nós um novo Simão Cireneu; ajudar-nos-á a carregar a
nossa cruz e, se cairmos, Ele próprio nos ajudará a
levantá-la. «Tudo posso naquele que me conforta ».
(Fil. , IV, 1 3). Sem Ele nada podemos (João, XV, 5) ;
sem Ele é impossível manter-se alguém firme na cruz
e na dor. «0 Senhor deu-me castigo severo mas não
me entregou à morte>J (Salmo CXVII, 1 8).

O CAMINHO MAIS CURTO

O caminho da vontade divina é o mais perfeito


e o mais fácil de todos os calvários que conduzem ao
céu. Assim como na natureza Deus gosta de conse­
guir o máximo com um mínimo de energias, também
no plano espiritual procura conduzir o homem à bem­
-aventurança com o mínimo de dor possível.
Aquele que se deixa conduzir pelo Senhor não pode
perder-se no caminho. Deus, na sua infinita sabedo­
ria, vê toda a nossa vida, vê todos os acontecimentos
que nos rodeiam, não tem a menor possibilidade de
erro. À sua omnipotência nós não poderíamos opor
qualquer obstáculo, a não ser, evidentemente, a obsti­
nação. Na mão de Deus tudo concorre para o nosso
48 O CR/STÃO E A DOR

proveito; tudo, o mundo com todos os seus fenómenos,


a dor ou a alegria - tudo o Senhor utiliza para nos
levar pelo caminho mais curto à santidade.
O caminho recto é sempre o mais curto; muitas
vezes, porém, nós não compreendemos que sejam sem­
pre rectos os caminhos que Deus nos oferece. Na ver­
dade, os caminhos das nações, como os dos homens,
são por vezes tão confusos que chegamos a pensar que
nem mesmo Deus os pode desenredar.
Mas o Senhor segura todos os fios da vida na sua
mão, Não descura coisa alguma, coisa alguma lhe
escapa. Não comete erros. Sabe escrever direito por
linhas tortas. É a visão errada que nós temos das coi­
sas que as desfigura aos nossos olhos. Melhor fora
que confiássemos cegamen'e em Deus: ((Os caminhos
do Senhor são direitosn (Os. XIV, 10; Cf. Actos, XIII,
10). Quem percorre os caminhos do Senhor chega à
meta pelo caminho mais curto.

Geometricamente , não pode haver um caminho


mais curto que o recto. Se não interpusermos obstá­
culos entre Deus e a nossa alma - e Deus não os
colocou - verificaremos que há um caminho recto d e
Deus para cada um d e n ó s e de cada um de nós para
Deus: o caminho da vontade do Senhor, o único que
não levanta quaisquer problemas. Quando um pere­
grino chega de uma cidade estranha e pergunta qual
o melhor caminho para certa rua e lhe respondem:
((você segue cem me,ros a direito, em frente, volta na
quinta rua à direita, depois corta na terceira à esquerda,
caminha mais vinte metros e volta de n0vo à direita » ,
e l e agradece a informação, mas sabe que tem de per­
guntar ainda a várias pessoas o caminho a seguir. Mas
se lhe disserem que o caminho é sempre a direito,
avança e não perde tempo em novas perguntas.
A DOR FORJA O ESPIRITO 49

O mesmo se passa quando queremos conhecer o


caminho que leva ao céu. O sacerdote não tem que
perder horas a explicá-lo. Não é necessário voltar pela
direita ou pela esquerda, porque o caminho do céu
não é uma linha quebrada. Segue sempre a vontade
do Senhor. E quem a seguir não pode perder-se.
Normalmente, o que nos falta não é o conheci­
mento do caminho, mas coragem para o seguir. Esta­
mos demasiado apegados aos nossos (( bons» desejos,
não queremos morrer, procuramos insistentemente,
cheios de esperança. que alguém nos ensine a chegar
à meta sem sacrifício d o eu.
E. no entanto. nada se consegue sem vencer a von­
tade. Sem isso. não há livro. não há sacerdote que nos
possa ajudar. São vãos todas as perguntas e esforços
que fizermos. E se algum novo método aparecesse para
nos libertar. não poderíamos confiar nele. Lembremo­
-nos das palavras de São Paulo: (( Mas ainda que um
anjo do céu vos anuncie um Evangelho diferente
daquele que vos temos anunciado, seja anátema •
(Gál. I, 8).
Se houvesse algum caminho, que não o da cruz e
da dor, para nos conduzir a Deus, Cristo tê-lo-ia indi­
cado, Ele que veio à Terra para nos ensinar o cami­
nho do Céu.

A VONTADE DIVINA
E A V ONTADE HUMANA

O caminho da vontade divina, essa estrada sobe­


rana que conduz ao céu, é um caminho recto. É de
todos os caminhos o mais fácil, o mais perfeito. o
mais rico de merecimentos. Não é por acaso que o
Salvador fala tantas vezes da recompensa do céu. Há
momentos na vida - em especial para os principiantes
da vida espiritual - em que só a perspectiva da recom-
50 O CRJST ÃO E A DOR

pensa ou o medo do castigo mantêm o homem no ca­


minho da vontade divina: uO medo de Deus é a ple­
nitude da sabedoria» (Sab. I, 1 6).
Sobretudo quando sofremos, é legítimo pensar na
recompensa dos nossos sacrifícios : oxalá a ideia de
que a cruz terá urna digna recompensa dê coragem
àqueles que se encontram sob o signo da dor!
Às veZ:es, bastará um olhar sobre o mundo para
fazer desaparecer a dor: « Porque eu tenho por certo
que os sofrimentos do tempo presente não têm pro­
porção com a glória vindoura que se manifestará em
nós » (Rorn. VIII, 1 8).
Deus há-de recompensar-nos por todos os passos
que dermos no caminho. Todos serão recompensados
de acordo com as suas obras (Apoc. XXII. 1 2). Se
tudo tem de ser pag0 até ao úl timo ceitil (Luc., XII .
59), será pago tudo, até ao mínimo galo de água
(Mat. X, 42).
Mas, não esqueçamos : o que quer que façamos fora
do caminho do Senhor não será recompensado, por
maiores que tenham sido os nossos passos, por mais
pesadas que tenham sido as cruzes. Como poderíamos
esperar uma recompensa divina por um acto que foi
feito para nós próprios? Se trabalhárnos para o mundo,
só ele poderá pagar-nos.
Quem trabalhar só para si próprio não se deve
admirar se ouvir o Senhor dizer: uNunca vos conheci»
(Mat. VII, 23). Ele não pode compensar o que fize­
mos para outros. Não ternos necessidade de tornar a
vida mais difícil do que o Senhor a fez, basta-nos acei­
tá-Ia corno Ele no-Ia envia a cada momento. Somos
corno a mó de um moinho na torrente do tempo, uma
mó que as correntes próximas não banham. Só temos
o direito de nos mover pela força da água que incide
directamente sobre nós, porque sendo assim, tudo vem
de Deus e tudo conduz até Ele.
A DOR FORJA O ESPIRITO 51

Não temos tempo para nós, para o mundo, para


os homens, uma vez que estamos constantemente ao
serviço do Senhor. Só na medida em que o permite a
missão que Ele nos deu, podemos ocupar-nos de nós
próprios, do mundo e dos homens, pois, só assim, o
que fizermos pelo mundo e pelos homens será serviço
de Deus. E o Senhor recompensar-nos-á por tudo, por­
que . tudo foi feito por Ele. Quem quiser ser rico e
poderoso tem de servir Deus! <<Servir a Deus é domi­
narn . Como São Cristóvão, nós servimos o mais pode­
roso dos senhores. Somos demasiado bons para servir
alguém inferior a Ele.

MÉRITO E GRAÇA

O caminho do Senh'Jr é, de entre todos, o mais


rico em merecimento e graças e a medida da graça
que nos é concedida depende do cumprimento da von­
tade divina. Vamos tentar exprimir com um exemplo
a razão entre a medida das graças recebidas ou a rece­
ber e o cumprimento da vontade divina. Um cano vol­
tado na direcção dos raios do sol recebe tantos raios
quantos o permitir a sua secção transversal ; mas se
o inclinarmos, por pouco que seja, forma-se logo um
espaço de sombra que aumentará com a inclinação.
E se o cano for colocado perpendicularmente aos raios
solares, ficará todo ele cheio de sombra.
Ora, como o sol , Deus envia para todos os lados
e em linha recta a luz da sua misericórdia. Se o ho­
mem se voltar para a vontade divina recebe o máximo
de graças, se se deixar guiar pela vontade própria for­
ma-se um cone de sombra e não recebe tantas graças.
Quanto maior for a influência do amor próprio, tanto
maior é a sombra e menor o número de graças. Se
c homem se afastar de Deus, deixa de receber a luz,
e só lhe resta viver na noite, nas trevas do pecado.
52 O CRISTÃO E A DOR

A vontade de Deus é a nossa salvação. Desde a


eternidade que Deus vem trabalhando no plano da
nossa salvação, e, apesar de toda a liberdade que temos
do p0nto de vista externo, não somos mais que barro
na sua mão. Interiormente, porém, somos livres, e ,
embora seja horrível pensá-lo, podemos realmente
estorvar ou deter a actividade divina. Mas se nos desa­
pegarmos das criaturas e do amor-próprio, a cari­
dade divina produzirá no nosso coração abundan­
tes fontes de graça, porque a causa de todos os males
e de todo o pecado é a nossa vontade independente.
O cristão não tem medo de nada nem de ninguém,
porque, com Deus, tudo concorre para a sua salvação.
Há-de temer, no entanto, o amor-próprio, o seu maior
inimigo. Só ele pode tornar-nos infelizes para sempre.
Se renunciarmos a ele, afastaremos a maior fonte de
perigos para a nossa felicidade eterna. Quanto mais
nos entregarmos à vontade divina, maior é a certeza
de podermos partilhar um dia da bem-aventurança
eterna.
A E XPIA Ç Ã O

Em principio, todo o homem tem de contar com


uma determinada parcela de dor , com uma cruz. Nem
o amor divino nos pode dispensar desse único elemento
de santificação pessoal. A dor é como a iermentação
do mosto, sem o qual o vinho não se pode formar.
Convém notar, no entanto, que Deus só nos pede
a dor estritamente necessária, embora a nosso lado

haja outras fontes de dor. relacionadas com a missão


do homem na comunidade.
Na verdade, o homem não está só no mundo e o
cristão menos que ninguém ; um cristão só não é um
cristão. Além de preparar o seu caminho para 0 céu.
ninguém pode fugir a uma outra missão: colaborar na
salvação do próximo. E não são só os sacerdotes, mas
todos os cristãos, que têm resp0nsabilidade na sal­
vação do mundo. Ninguém pode dizer-se inocente do
sangue dos seus irmãos.

MEMBRO DA HUMANIDADE

Considerado isoladamente, cada homem constitui


um mundo mais rico e mais valioso aos olhos de Deus
do que todo o resto da Criação; mas é ao mesmo
tempo um membro da humanidade. Como descenden­
tes de Adão, pertencemos todos a uma grande família
humana : somos todos filhos de Adão, (( que o foi de
Deus )) (Luc., 111, 3 8), e por isso somos todos da mesma
família. Ora a incarnação d'J Verbo veio ainda forta­
lecer os laços que nos uniam: (( E o Verbo se fez carne
54 O CRISTÃO E A DOR

e habitou entre nós » (João, I, 1 4). Nascendo da Vir­


gem Maria, Jesus Cristo ficou no mais íntimo paren­
tesco de sangue com ela e, embora num grau infr.rior
com t0da a humanidade. Assim como numa tapeçaria
são muitos fios a formar o todo, assim também nós,
homens, estamos reunidos num conjunto.
Pode o homem ir viver sàzinho para o ma is re­
mot0 deserto, que continua ligado aos seus semelhan­
tes. Nem assim se cortam os fios que o prendem a
todos os homens, os que vivem , viveram e hão-de viver
sobre a Terra. Se fosse possível erguer um homem
acima da humanidade, todos os outros ficaria m, por
assim dizer, suspensos nele.
Ora os baptizados em Cristo constituem uma uni­
dade ainda mais íntima e perfeita. O baptismo arti­
cula-nos a Cristo, liga-nos ao Pai, pelo Espírito Santo.
Cristo vive em nós e nós vivemos em Cristo ( I Cor. VI.
1 5 ; Gál. Il, 20) ; « para mim o viver é Criston ( Fi!. I ,
2 1 ). Todos aqueles que foram unidos a Cristo pelo
baptismo ficaram a formar uma unidade, para além
de Cristo mas por meio d'Eie.
O Senhor compara esta · unidade à de uma videira
e os sarmentos que a constituem. Mas esta compa­
ração é ainda insuficiente, como disse o próprio Cristo
na Oração Sacerdotal : (( . . . para que sejam um , assim
como nós . . . para que sejam todos um, como tu Pai
o és em mim e eu em ti, para que também eles sejam
um em nós . . . Eu estarei neles e tu em mim, para que
sejam consumados na unidade . . . n (João, XVII. l i ) :
XVII, 2 1 seg.). Os cristãos devem, portanto, consti­
tuir uma unidade semelhante à das três pessoas divi­
nas ; a nada ma is a podemos comparar, pois é ainda
um mistério para nós. No entanto, ela é bem real e
autêntica, apesar de não afectar a personalidade de
cada indivíduo. Também as três pessoas divinas são
uma unidade real.
A EXPIA ÇÃO 55

Como somos um com os nossos irmãos e com


Cristo, tudo o que fizermos ao mais humilde deles
é como se lho fizéssemos a Ele (Mat., XXV, 40). Cada
um dos nossos irmãos pertence a Cristo, como, por
assim dizer, os nossos membros nos pertencem. O que
fizermos ao próximo considera-se feito a Cristo, tal
como o que fizeram a qualquer dos nossos m�mbros
é feito a nós próprios. Espiritualmente, pertencemos
uns aos outros p<Jr meio de Cristo, como os membros
de um corpo se pertencem. Por isso, disse o Senhor
a Paulo quando perseguia os cristãos: u Paulo, Paulo.

porque me persegues? )) (Actos, IX, 4).


O baptismo fez de nós um só corp0 num só espí ­
ri:o ( I Cor. XII , 1 3). Somos os membros do c0rpo de
Cristo (I Cor. XII, 27) ; Ele é a nossa cabeça (Co!. I .
1 8). Cristo tomou para si, para a sua natureza humana.
toda a dor que, de acordo c0m a vontade do Pai, era
necessária para a sua maturação. << Porventura não
era necessário que Cristo sofresse tais coisas e que
assim entrasse na sua glória? n (Luc. XXIV , 26).
Ao mesmo tempo, Jesus Cristo tomou sobre si
todos os sofrimentos que , como cabeça do corpo mís­
tico; tinha de tomar pelo todo. Ora Ele só podia levar
a cabo a dor de Cristo místico como sua cabeça , mas
como Cristo místico é formado p0r cabeça e membros.
Cristo tem de fazer sofrer as dores destinadas ao seu
corpo místico, aos membros desse mesmo corpo. Tem
de completar a dor pelo todo, com as dos membros.
e cada um tem de aceitar o sofrimento que lhe cabe
pelo seu lugar no todo. São para t0dos as palavras de
São Paulo: u E u completo na minha carne o que falta
aos sofrimentos de Criston (Col. I, 24).
Como cada um tem de actuar de acord0 com a
função que lhe corre3p<Jnde como membro, realizando o
crescimento em amor (Éf., IV, 1 6), também tem de
56 O CRISTÃO E A DOR

aceitar a dor que lhe corresponde, realizando-se deste


modo o crescimento do corpo em dor. A dor chegará
a cada indivíduo, de acordo com a sua missão, lugar
e importância.

TUDO CONCORRE PARA O TODO

Como nós, homens, estamos ligados num todo, não


há pecados nem virtudes par:iculares. Todo o pecado
é um pecado social , toda a virtude é uma virtude social.
Quer isto dizer que cada pecado afecta não só o pró­
prio pecador - « cada um morrerá na sua iniquidaden
(Jer. XXXI, 30) - mas todo o mundo. Tod o o acto
de virtude se reflecte sobre o seu autor - mas todo
o mundo tomará parte nos bens que dele resultam: « a
tua impiedade poderá fazer m a l a um homem que é
teu seme:hante; e a tua justiça poderá ser útil ao filho
do homem n (Job, XXXV, 8). Dostoiewski disse uma
vez que à medida que ele se tornava melhor, todo o
mundo melhorava também um pouco.
Pecaminoso ou virtuoso, todo o acto humano se
reflecte nos outros. Disse-o aliás o próprio São Paulo:
« Se um membro sofre, todo os membros sofrem com
ele ; se um membro recebe glória, todos os membros
se regozijam com elen ( 1 Cor. XII, 26). Na vida da
paróquia ou do Estado, tudo é estabelecido em rela­
ção ao todo, tudo é apreciado sob este ângulo, todos
nós temos uma missão, uma profissão, que são con­
dicionadas pelo interesse comum. O mesmo se passa
no plano sobrenatural. Também neste plano o cristão
tem uma missão que implica uma responsabilidade
perante o todo. A diferença está em que enquanto no
plano natural todos conhecem a sua profissão e con­
sequentemente a sua missão, no sobrenatural ninguém
sabe qual ela é e não pode por isso avaliar a sua res­
ponsabilidade.
A EXPIA ÇÃO 57

A CULPA DAS CATÁSTROFES

As catástrofes e o caos não vêm directamente de


Deus. São um efeito necessário e natural da rotura
da ordem natural estabelecida por Deus nos dez man­
damentos. Ora também na ordem sobrena:ural existem
leis que se impõem imperativamente. Dadas certas hipó­
teses, segue-se necessàriamente o efeito correspondente:
determinada tensão eléctrica na atmosfera desencadeia
necessàriamente uma tempestade. É neste sentido que
se diz nas Sagradas Escrituras que Cristo só veio
quando chegou à u pleni lude dos tempos n .
Já reparou o leitor que a s nuvens não caem d o céu
mas são formadas pelas partículas de água evaporada?
E que, apesar disso. às vezes o sol não as consegue
atravessar? Pois o pecado é como as gotas de água
que sobem da terra : o sol da misericórdia divina tem
dificuldade em o atravessar. De vez em quando sente­
-se a falta de uma tempestade purificadora que desfaça
as nuvens e abra caminho ao sol misericordioso. Ora
essa tempestade não teria sido necessária. nem mesmo
possível , se os homens não tivessem pecado.
. São, portanto, os homens os culpados das catás­
trofes. E quanto mais graves e mais numerosos são os
pecados cometidos por uma pessoa. maior a sua res­
ponsabi: idade. Sim, porque nem sempre os eswdistas
são os maiores culpados das guerras. Desencadeiam­
-nas, mas a sua origem é �-utra. E explica-se porqu-2.
Se não houver corrente numa instalação eléctrica po­
derá alguém acender uma lâmpada? Caso contrá­
r:o basta desandar o interrupt0r e logo brilhará a
luz. Do mesmo modo, se na atmosfera sobrenatural
não houver u tensãon suficiente. bem podem os esta­
distas esforçar-se por fazer estalar a guerra que não
o conseguem. Mas se existir a tensão necessária, o
mínimo descuido a desencadeará.
58 O CRISTÃO E A DOR

Às vezes, no Verão, acontece que na montanha


uma pedra se solta e se precipita no vale com fragor.
Há barulho, levan:a-se pó e tudo vCJlta à normalidade.
No Inverno, pelo contrário, quando a neve é espessa,
basta uma coisa de nada para soltar alguns flocos de
neve que vão transformar-se em avalanche, destruindo
florestas e soterrando aldeias.
Quando o Verão ilumina o mundo, surgem homens,
grandes no bem ou no mal , que fazem algum barulho
c levantam um pouco de pó, mas, quando desapare­

cem, tudo volta à normalidade. Outros, quem sabe se


espíritos pequenos e sem brilho, provocam avalanches
que arrastam países e povos para o abismo. Se não
fosse a neve não teriam deixado vestígios no mundo.
De quem é então a culpa? Do pequeno pássaro que
solta uns flocos ou da espessura da neve? Todo aquele
que contribui com os seus pecados para que a neve
se avolume tem uma quota-parle de responsabilidade
nas desgraças que acontecem.

PRECISAMOS DE SANTOS

Mas nem sempre vencem as forças dCJ mal . visto


que este pode ser vencido pelas forças do bem (Rem.,
XII, 2 1 ). Na Sagrada Escritura, os justos são compa­
rados a árvores de densa folhagem, plantadas à mar­
gem de ribeiros (Salmo I, 3). Ora as árvores purifi­
cam a atmosfera, reduzem o anidrido carbónic0 pre­
j ud icial e libertam o oxigénio tão necessário à vida;
por isso, quanto maior for o número de árvores e mais
extensas as floreslas, mais sadio será o ar. D0 mesmo
modo, quanlo mais san:os houver tanto mais pura
ficará a atmosfera espirilual e mais tensões serão anu­
lad as. E dez justos b:�stariam para salvar duas cida­
des, afundadas no lodaçal do vício (Gén. , XVIII, 32).
A EXPIAÇÃO 59

Que fazer para ajudar a nossa época? Cada um


deve começar por si próprio, porque toda a reforma
começa por ser uma reforma pessoal, sem a qual aquela
não é possível. É fácil reformar os outros recorrendo
à palavra, quer escrita quer falada. O que é difícil é
reformarmo-nos a nós próprios, porque essa reforma
exige acção, sacrifícios e muitas vezes renúncia.
Vai o mundo cheio de planos de reforma, confe­
rências e sessões, sem que se consiga qualquer melho­
ria sensível , porque nos esquecemos de começar por
nós próprios. Enquanto o homem se limitar a pro­
curar a culp:.t no próximo, nada conseguirá m'Jdificar.
Comece cada um por si dizendo: 11Mea culpa, mea ma­
xima culpa - minha culpa, minha tão grande cul p a » .
E conseguir-se-á então a almejada reforma.
Poder-se-ia, então, olhar o futuro com uma espe­
rança renovada. Poderia estender-se sobre todos um
céu mais azu l , se cada um começasse a trabalhar reso­
l utamente na sua purificação pessoal, e voltasse a con­
formar-se com a vontade divina.

O M AL NÃO ESTA NOS TEMPOS . . .

É frequente ouvir dizer que os tempos estão maus.


Mas será justo falar assim? Acaso não brilha sempre
o mesmo sol, nã0 sopram os mesmos ventos, não cor­
rem as mesmas águas para o mar, indiferentes à paz
e à guerra?
O mal não es�á na terra, no mar, no ar, ou no fogo.
O mal está em nós. Não são os maus tempos que fazem
r s maus homens mas , bem ao contrário, são os maus
homens que fazem os maus tempos. Tornem-se os ho­
mens bons e outros serão os tempos.
Ora não é possível modificar um povo ou uma
paróquia isoladamente. Mas se os membros da paró­
quia ou do povo melhorarem, logo melhorará a corou-
60 O CRISTÃO E A DOR

nidade a que pertencem. As reformas espmtuais não


podem ser impostas de fora para dentro, mas todos
têm obrigação de começar em si próprios uma reforma
no sentido de dentro para fora.
Se cada um começar por si mesmo, se colaborar
na medida do possível na min0ração da miséria e da
dor alheias, se trabalhar para que a atmosfera seja
purificada, não mais se d irá que os tempos estão maus.
Aquele que abriga no coração o ódio, a inimizade, o
desejo de vingança e a crueldade é talvez mais culpado
perante Deus pela guerra do que um político qualqt1er
que viva num país vencedor, vencido ou até neutro.
E esta unidade íntima , esta comunidade de destino
dos homens não se detém em fronteiras ou alfândegas.
É muito fácil apontar os culpados a dedo e impor­
-lhes uma expiação. É cómodo fazê-lo, sem nada ter­
mos que modificar na nossa vida, continuando uma
existência calma de abundância e olhando sem remor­
sos aqueles que sofrem fome e miséria u como castigo
das suas cul pas )) . Como esse publicano que dizia: u Gra­
ças te dou, ó Deus, porque não sou como os outros
homens . . . )) (Luc., XVIII. 1 1 ). Felizmente, que a úl­
tima palavra pertence a Deus e não aos h�mens. Afas­
tem0s, pois. do coração o ódio, o desejo de vingança
e a ini mizade. para que o sol possa de novo brilhar

para todos.

HA NOVOS DEVERES
E NÃO UMA NOVA MISSÃO

Para cumprimos a nossa missão e o nosso dever


para com a comunidade não são necessários novos
sacrifícios, porque a missão continua a ser a mesma:
atingir a perfeição que n0s tornará merecedores da
imortalidade. Só uma coisa é necessária: procurar man­
ter e desempenhar o lugar que Deus nos indicou ;
A EXPIAÇÃO 61

assim, cumpriremos a nossa m1s�ao pela comunidade.


Quem agir de acordo com a vontade divina trará
a paz ao mundo e irradiará graças. uO que crê em
mim (aquele que se me entrega cheio de confiança),
do seu seio correrão rios de água viva n (João, VII, 38).
Quem vive totalmente segundo a vontade de Deus faz
quanto deve pela purificação do mundo que o rodeia.
Por conseguinte, ao velarmos pelo nosso aperfei­
çoamento pessoal velamos pelo todo de que cada um
faz parte, e em última instância por Deus.
u Aquele que retém os meus mandamentos e os
guarda, esse é que me ama» (João. XIV. 2 1 ) . A res·
ponsabilidade pelo todo é um novo dever mas não
uma nova missão. Com respeito p or nós p róp r ios e
pela comunidade, é nosso dever tentar viver com fer­
vor e fidelidade crescentes, segundo a vontade de Deus.
Se todos os homens procurassem compreender o
que é a vontade do Senhor (Efésios, V, 1 7), todos a
cumpririam (Efésios, VI, 6), e não mais obedeceriam
aos apetites da carne e dos sentidos (Efésios, 11, 3).
Cada um teria então de suportar apenas a dor absolu­
tamente necessária, a harmonia, a ordem e a paz rei­
nariam entre os homens que não sobrecarregariam
mutuamente as suas vidas e procurariam ajudar-se uns
aos outros. Cada um suportaria a carga do outro
(Gál. VI, 2). De outro modo, os homens, mostrando-se
u inimigos da cruz de Cristo>> (Fil., Ill, 1 8), acarretam
a desgraça sobre o mundo. Deus porém envia à Terra

h omens encarregados de estabelecer um equilíbrio que


compense a enormidade dos pecados, homens que para
a sua perfeição necessitariam de uma di minuta med ida
de dor. Todavia são escolhidos pelo Senhor para sofre­
rem muito, para que carreguem com as culpas dos seus
irmãos. u E u me alegro nos sofrimentos por vós»
(Col. I, 24).
62 O CRISTÀO E A DOR

SOFRER PELOS OUTROS

Como os homens estão intimamente unidos , acon­


tece que podem interceder uns pelos outros e, como
Cristo vive e age em nós, essa intercessão pelo pró­
ximo pode fazer-se com eficácia. uO que permanece
em mim e eu nele, esse dá muito fruton (João, XV, 5)
e principalmente fruto de dor. É purificado (por meio
de sofrimento) para que produza ainda mais frutos
(João, XV, 2) porque nós não podemos produzi-los
(Jsão, XV, 4), nem para nós nem para ou:ros.
Como Deus consuma o seu sofrimento em nós e por
nós, as nossas dores são ricas em merecimento. As
dores de Cristo tinham um valor resultante da sua
união com a segunda pessoa divina ; as nossas ganham
o seu grande valor pela nossa união com Ele. Quanto
mais nos entregarmos à vontade divina tanto mais
eficazmente Cristo poderá agir em nós e ma is valioso
se torna o nosso sofrimento. <<Eu trabalho, combatendo
segundo a força que Ele me dá, a qual opera podero­
samente em mimn (Co!. I, 29). O nosso sofrimento é
o sofrimento de Cristo. Quanto mais nos apagamos,
mais Ele se manifesta em nós e é assim que podemos
interceder eficazmente pelos outros.
Também as coisas se passam assim no corpo hu­
mano, onde certos órgãos podem, até certo ponto, in­
cumbir-se da função de outros. Quando se extrai um
rim, o outro toma, em parte, a função do primeiro.
Se perdermos algumas veias importantes, outras, secun­
dárias, tomarão o papel das principais. Se o coração
está fiJrte e são vence enfermidades perigosas que, com
um coração fraco, produziriam infalivelmente a morte.
É certo que o sofrimento expiatório pelos outros
tem os seus limites, p<Jrque n inguém pode substituir
o próximo. Há um limite reservado para cada pessoa.
Ninguém pode comer por outrem, satisfazer-se por ele
A EXPIAÇÃO 63

mas pode comer bem para ter forças para ajudar o


mais fraco, aliviá-lo de uma parte do seu trab3lho.
Pode ac'Jntecer que Deus poupe às pessoas enfraque­
cidas pelo pecado o sofrimento que l hes estava des­
tinado ou que merecem pela sua conduta e vá impô-lo
a outros, fortes, ricos de graças. As hagiografias falam­
-nos de sofrimentos tremendos que os santos aceitaram
por outros, por pecadores e criminosos. Fizeram-no
Santa Teresa do Menino Jesus, a piedosa Catarina
Emmerich, Santa Ludovina, Santa Catarina de Siena.
Algumas mães terão de o fazer pelos filhos, algumas
esposas pelos maridos e será esse o ún ico processo
de os salvar.
Há almas simples e recatadas que Deus escolhe
para « sacrifício do seu amorn . <<Senhor, Tu amas os
que te crucificam e crucificas aqueles q ue amas » .
((Quão incompreensíveis são o s seus juízos e impers­
crutáveis os seus caminhos! Porque, quem conheceu o
pensamento do Senhor? Ou quem foi o seu conse­
lheiro? n (Rom., XI. 33 e seg.). Por isso ninguém
deve perguntar porque o atinge o mal , porque o me­
receu.
A dor nem sempre é castigo, muitas vezes é até
sinal de um amor muito especial, de distinção, de elei­
ção. Jesus Cristo honra-nos de um modo muito parti­
cular ao fazer-nos partícipes da sua obra de redenção.
Sintam0s o orgulho de tão alta missão, da mais alta
que existe na Terra ! Mostremo-nos dignos desta con­
vocação mas não procuremos evidenciar-nos. Compete
a Deus chamar-nos e a nós estar prontos para o seu
apelo (').

I. Santo Agostinho pedia a De us: «Senhor, dá-me o que


exiges c exige depois o que quiseres» .
64 O CRISTÃO E A DOR

Não ficará sem recompensa aquele que Deus cha­


mar a este sacerdócio real da d0r. Sobre e�e cairão do­
. bradas as bençãos, porque tudo o que ele fizer por seus
irmãos e irmãs será feito pelo Senhor (Mat. XXV, 40).
É Deus que nos há-de recompensar. Uma boa medida,
cheia e recalcada e ac0gulada, nos será lançada no
seio (Luc. VI, 3 8).
O SOFRIMENTO DE CRISTO

É na vida de Cristo que melhor podemos reconhe­


cer a essência da dor, ou melhor, a renúncia dolorosa
à nossa vontade em conformidade com a vontade de
Deus. Com efeito o sofrimento e a dor desempenharam
um papel essencial na vida do Salvador, uma vida que,
como toda a existência humana. teve uma tripla mis­
são: honrar o Pai - << Glorifiquei-te sobre a Terra : aca·
bei a obra qu:: me deste a fazer•> (João, XVII , 5), glo ­
rificar-se a si próprio - u E agora, Pai, glorifica-me
junto de ti mesmo. com aquela glória que tive em ti,
antes que houvesse mundo" (João. XVII. 5) e a santi­
ficação pessoal - uE por eles eu me santifico (sacri·
fico) a mim mesmo, para que eles também sejam san­
tificados na verdade " (João, XVII, 1 9).
Também nós temos de cumprir esta tripla missão,
como Jesus Cristo a cumpriu na vida e na morte: em
perfeita conformidade com a vontade do Pai.
Para a levar a cabo, a segunda pessoa divina tomou
da Virgem Maria uma natureza humana. Para esta
natureza , a união com a natureza divina numa das
pessoas divinas foi uma graça completamente imere­
cida, tal como o é para nós a graça do baptismo.
Por meio do santo baptismo, a nossa natureza hu­
mana é totalmente transplantada para a vida de Deus,
sem que no entanto perca coisa alguma da sua essên­
cia e actividade. Na Encarnação, a natureza humana
de Cristo foi ainda mais profunda e misteriosamente
unida à divina, sem que no entanto se tivesse também
modificado coisa alguma na sua essência e forma
de agir.
66 O CRISTÃO E A DOR

Se um ser humano morre logo após o baptismo,


vai imediatamente para o céu, para junto de Deus,
sem passar pelo purgatório. Também a natureza hu­
mana do Salvador divino, se tivesse morrido logo após
a Encarnação, teria ido imediatamente para a direita
do Pai, graças à sua união indissolúvel com a natu­
reza divina.
Para nós, a graça do baptismo é apenas um prin­
cípio fundamental de graça, sobre a qual teremos de
edificar o edifício da perfeição. É que como dizia
Santo Agostinho: Qui fecit nescientem, justificai volen­
tem: fomos criados sem a nossa colaboração, mas não
seremos salvos sem a nossa cooperação.
A natureza humana de Jesus Cristo n ão foi pois
violentada pela sua união com a natureza divina: a sua
essência permaneceu intacta tal como a vontade hu­
mana se manteve a bsolutamente livre.
E, assim como para nós a santidade representa uma
subordinação consciente e livre da nossa vontade à
vontade de Deus, também o Salvador teve de percorrer
o mesmo caminho: voluntária e livremente e em cada
momento da sua vida , Ele entregou-se nas mãos de seu
Pai celestial.

O CAMINHO DO SENHOR

São bem claras estas palavras da Sagrada Escritura:


(( E Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça
diante de Deus e diante dos homens » (Luc. 11, 52).
É assim que S. Lucas descreve a vida retirada de Jesus
em Nazaré. E este crescimento não era apenas apa­
rente, não era apenas visível pouco a pouco, no exte­
rior, o reflexo do que no íntimo se processava cons­
tantemente. O crescimento era um processo orgânico
real de evolução, tanto perante Deus como perante os
homens.
O SOFRIMENTO DE CRISTO 67

O mesmo se diga em relação à sabedoria e à graça.


A medida que ia avançando em idade, Jesus Cristo
ia também avançando em sabedoria e graça, perante
seu Pai e perante os homens. Quanto mais crescia
mais a sua vontade h umana podia agir na sua natureza
humana e quanto mais aumentava o poder da vontade
humana, tanto mais se entregava à vontade do Pai e,
assim, a um crescimento externo correspondia um au·
menta de santidade perante Deus e perante os homens.
Toda a vida do Divino Mestre é uma prova de
subordinação à vontade do Pai. Toda a sua vida. é um
longo sacrifício. (( Não quiseste hóstia, nem oblação,
mas me formaste um corpo . . . Então eu disse: Eis-me
que venho para fazer, ó Deus, a Tua vontade» (Heb. X,
5 e seg.). Foi esta a oração modelo da sua vida. Cristo
aceitou sempre os sacrifícios como estava. escrito a seu
respeito na << testada do livrou (Heb. X, 7). S. M ateus
refere-se com insistência ao facto de Jesus ter agido
e falado sempre de acordo com as Escrituras (Mat. IV,
1 4, etc.). Enquanto homem , esteve como nós sujei:o a
todas as tentações, com excepção da do pecado (l-leb.
IV, 1 5). Se assim não fosse, corno se poderia Ele com­
padecer das nossas fraquezas? (Heb., IV, 1 5 ; V, 2).
O tentador aproximou-se d'Ele várias vezes directa·
mente: u E, terminada a tentação, retirou-se dele o de­
mónio até outro tempo» (Luc. IV, 1 3), e até através
de homens, do apóstolo Pedro por exemplo: (( Ele, vol­
tando-se para Pedro, disse-lhe: « Retira-te de mim, Sa·
tanás ; tu serves-me de escândalo, porque não tens a
sabedoria das coisas de Deus, mas dos homens» (Mat.,
XVI, 22 e seg.).
JESUS AOS DOZE ANOS

Quando aos doze anos Jesus se demorou no templo


em Jerusalém, os pais sofreram grande aflição, medo
e desgosto que se reflectem, nitidamente, na pergunta
6!l O CRISTÃO E A DOR

da mãe : (( Filho, porque procedeste assim connosco?


Eis que teu pai e eu te procurávamos cheios de aflição>>
(Luc. li, 48). Ora, com certeza nunca um filho amou
mais os seus pais do que Cristo e não há dor maior
do que a de fazer sofrer aqueles que amamos.
Ao Salvador bastaria ter pronunciado algumas pa­
lavras para sossegar os pais; podia ter-lhes pedido que
se demorassem mais uns dias por ser essa a vontade
do Pai ou que regressassem a casa porque saberia
depois lá ir ter sozinho. Porque não procedeu então
assim, causando aos pais aquela dor e a si mesmo uma
outra ainda maior? A sua resposta significa que não
podia satisfazer os seus desejos humanos. (( Não sabíeis
que devo ocupar-me nas coisas de meu Pai?» (Luc. IV,
49). Tinha de agir segundo a vontade do Pai, ainda
que isso constituísse um grande sacrifício para Ele e
para os pais.
EM NAZARÉ

Os dezoito anos seguintes da vida do Salvador


resumem-se numa só palavra: (( E era-lhes submisso»
(Luc. li, 5 1 ). Ele, que aos doze anos causara pasmo
entre os doutores pela sua sabedoria (Luc. li, 47) , obe­
decia a duas pessoas simples, num ambiente singelo.
Muitos são os homens que entre os vinte e os trinta
anos obraram grandes feitos e, no entanto, Cristo,
o mais apto, o mais santo, o mais puro, passou todo
esse tempo oculto, sem dar nas vistas, sem quaisquer
mostras de importância. Qualquer pessoa o poderia ter
substituído no seu mister de carpinteiro e, corno tal,
a sua vinda ao mundo não era necessária.
Quando o Salvador sentiu o desejo de um baptismo
de dor (Luc. XII, 50), quando desejou ardentemente
comer com os Apóstolos a última Ceia (Luc. XXII, 1 5)
mostrava-se em tudo um homem como nós. Deve
pois ter experimentado também o desejo ardente de ver
O SOFRIMENTO DE CRISTO 69

chegado o dia em que lhe seria finalmente permitido


romper as estreitas barreiras de Nazaré.
Teriam sido perdidos todos aqueles anos de Na­
zaré? De modo algum. É que não se tratava de con­
seguir feitos e sucessos, mas de cumprir a vontade
divina. A pregação, os milagres, a crucificação podem
ser mais perfeitos em si do que um simples ofício , mas
para o Salvador, entre os doze e os trinta anos, não
o eram porque não correspondiam à von:ade do Pai.
Em Nazaré. o Salvador mostrou bem claramente
11 que importa fazer. Ninguém se deve pois queixar
que a sua pequena luz tenha sido oculta durante alguns
anos, que se tenha de manter num lugar «errado n . que
o seu talento não pudesse desabrochar, que tivesse sido
condenado a uma vida inútil. « Cresce muito trigo na
noite fria de Invernon. Se o Pai não precisou que fos­
sem empregadas as qualidades melhores. máximas e
mais santas, e deixou o Senhor muitos anos perdido
em Nazaré, porque havíamos nós de querer cu precisar
o contrário? Talvez os anos do Salvador em Nazaré
tenham sido até mais férteis para o mundo do que os
anos da sua actividade )'lública durante os quais, nbe­
decendo a um impulso íntimo, trabalho para CJ Pai.
Do ponto de vista humano, deve ter sido para Ele
uma grande alegria dedicar-se totalmente ao Pai tal
como devem ter constituído duro sacrifício os anos
em Nazaré. Mas obedecia aos pais como representan­
tes do seu Pai celestial. E quanto mais lhes obedecia
e os servia mais «crescia em sabedoria, em idade e em
graça diante de Deus e diante dos homensn.

SOFRIMENTO E MORTE DO SENHOR

O Salvador teve de padecer e morrer para entrar


na glória (Cf. Luc., XXIV, 26). « Se o grão de trigo
7ü O CRISTÃO E A DOR

que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se


morrer, produz muito fruto n (João, XII , 24).
Jesus Cristo aplicou estas palavras a si próprio e
foi em tudo um homem , excepto no pecado. Porque
era homem como nós, teve de prosseguir humana­
mente no caminho da sua vida, teve de obedecer sem­
pre à vontade do Pai.
Como deve ter sido difícil para o Salvador mal
poder transpor as estreitas fronteiras da Palestina. ho­
mem como era em todo o sentido da palavra! Para um
S. Paulo. um S. Francisco Xavier o mundo era pe­
queno; o Salvador teve porém de se limitar a um
espaço reduzidíssimo. Teve de ficar junto das ovelhas
perdidas da casa de Israel que , apesar de tantos mila­
gres e pregações magníficas, não acreditaram n'Eie
(João. XII, 37). Que fé não teria Ele encontrado
entre os pagãos, junto do centurião de Cafarnaum!
E que carga tremenda não representaram para Ele os
apóstolos! H0mens mesquinhos. de coração estreito.
egoístas, com pouco mais compreensã'1 do que a rude
gente do povo. Com certeza teria podido escolher ho­
mens dotados de mais compreensão, se tivesse sido
essa a vontade d0 Pai.
Sabia certamen�e como falar ao povo, como pren­
dê-lo, como ganhar-lhe as simpatias. Mas também a
este respeito, Jesus Cristo nenhuma atenção teve a si
próprio (Rom. XV, 3). Estava totalmente ao serviço do
Pai com todos os seus pensamentos , todas as suas pala­
vras, todos os seus actos.
Também não deve ter sido fácil para Ele ver-se
abandonado pelo povo e pelos apóstol0s na Sinagoga
de Cafarnaum (João, VI , 56 e seg.).
Jesus Cristo foi sacrificado porque Ele próprio o
quis. « Por isso meu Pai me ama, porque dou a minha
vida . . . eu por mim mesmo a dou . . . )) (João, X, 1 7 e
seg.). Agiu como o Pai lhe ordenou (João, XIV, 3 I ).
O SOFRIMENTO DE CRISTO 71

A sua natureza humana (( pede por causa da fraqueza


da carne )) (S. Atanásio), mas Ele soube vencer essa
fraqueza por meio da oração. (( Meu Pai, se é possível ,
afasta de mim este cálice; todavia não se faça como
eu quero, mas sim como tu queres)) (Mat. XXVI , 39;
Luc. XXII, 42).
A .este fardo extremo, que foi até aos limites da dor
humanamente suportável, j untou-se na cruz o aban­
dono íntimo de Deus: (( Meu Deus, meu Deus, porque
me abandonaste? >> (Mat. XXVII, 46). Mas a vontade
humana estava submissa, totalmente aberta à von­
tade do Pai e por isso Ele pôde dizer: « Acabei a
0bra que me deste a fazerll (João, XVII. 4). ((Tudo
está consumado)) (João, XIX, 30). (( Pai, nas tuas mãos
encomendo o meu espírito)) (Luc. XXIII. 46). Foi esta
a oração final. o /te missa da sua vida de sacrifício.
A vida do Salvador, do berço à sepultura, do pre­
sépio à cruz, foi assim toda ela traçada pela vontade
do Pai. O seu caminho fora-lhe prescrito, passo a
passo. Devia percorrer o caminho da morte dohrosa
para que a sua natureza humana obtivesse a glória do
céu (Luc., XXIV, 26). E teve principalmente de per­
correr o horroroso caminho da morte, por causa d'l
enorme significado que a união desta natureza humana
com a segunda pessoa divina tinha para o Corpo Mís­
tic'l de Cristo. É que se cada membro, de acordo com
a sua missão e significado no todo, acei�a padecer pelo
corpo, à cabeça compete também um sofrimento cuja
medida ultrapassa tudo.
A VONTADE DO PAI

Não é por Jesus Cristo ter sofrido padecimentos


(( impossíveis )) que a sua vida tem um significado ex­
traordinário, para Ele e para nós, mas porque a sua
vontade h umana se s ubmeteu completamente à von­
tade do Pai, permitindo que Deus nele agisse em
72 O CRISTÃO E A DOR

absoluto, como em nenhum outro homem. Foi uma


natureza humana que esteve incansàvelmente e até aos
limites do possível à disposiçã0 de Deus e assim, a
salvação não· se fez pelo sofrimento em si, mas pelo
sacrifício da vontade humana de Cristo. Só pelo sofri­
mento se atinge o sacrifício máximo da vontade.
Quanto maiores e mais graves os padecimentos,
maiores as energias e forças de amor necessárias para
um abandono perfeito à dor. Portanto , a enormidade
da dor de Cristo m0stra desde logo e de modo pal­
pável até que ponto lhe foi exigido o abandono da
vontade. Se a vida de Cristo demonstra a sua capaci­
dade de dedicação em extensão, o sofrimento demons­
tra-a em profundidade.
Na epístola de S. Paulo aos Filipenses (li , 7 e seg.),
encontra-se a grande lei que rege o reino de Deus na
Terra. Ao encarnar, Jesus não só renunciou à sua gló­
ria e majestade divinas como ainda tomou a forma
de um servo. No seu desprendimento, humilhou-se,
rebaixou-se e foi obediente até à morte, à morte de
cruz. E seguem-se umas das palavras mais importantes
da Sagrada Escritura : propter q uod, u por isson . . .
" Por isso Deus o elevou tão alto e lhe deu um
nome que es:á acima de t'Jdo o nome. Ao nome de Je­
sus, todos os joelhos devem dobrar-se no céu, na Terra
e no inferno. Todas as línguas devem confessar que o
Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Pai n . Por­
que na obediência desceu até à renúncia, até à morte
na cruz, Jesus recebeu o nome que tudo ultrapassa.
À profundidade da descida na obediência corresponde
a elevação da subida à glória do céu. É esta a grande
lei do reino de Deus: u Ora, que significa subiu, senão
que também antes tinha descido aos lugares mais bai­
xos da Terra? n (Efés., IV, 9).
A justiça de Deus não faz excepção alguma a esta
lei. Só quem desce pode subir, só na medida em que
O SOFRIMENTO DE CRISTO 73

se desce se pode subir. E esta lei também é válida


em sentido inverso: Todo aquele que sobe , que se
arroga, irá cair tão baix0 quanto subiu. tt Dissipou aque­
les que se orgulhavam nos pensamentos do seu cora­
�·ão. Depôs do trono os poderosos e elevou os humil­
des. Encheu de bens os famint0s e despediu vazios
os ricos n (Luc. I, 5 1 e seg.).
Só podemos compreender quão baixo Cristo desceu
na renúncia e na dedicação ao Pai, quando pensamos
quão alto lhe foi dado subir : subiu acima de todos os
céus (Efés. IV. I 0). foi erguido acima dos céus (Heb.
V I I , 26) e está sentado à d ireita do Pai (Heb. VIII, 1).
Ora, se estamos unidos a Cristo pela semelhança com
a sua morte, também o estamos pela semelhança com
a sua ressurreição (Rom. VI, 5).

A DOR COMO OBEDIÊNCIA

Corno não há outro caminho que leve à meta senão


o caminho do abismo e da morte - 11SÓ quem perder a
sua vida a salvará n (Luc. IX, 24) - o Salvador exige
que transportemos diàriamente a nossa cruz e o siga­
mos c0rn obediência. Não nos convida a imitá-lo na
realização dos milagres, nos sermões, na sua activi­
dade pública porque isso só alguns o conseguem, além
de que a sua forma externa será susceptível de modi­
ficação de acordo com as circunstâncias do tempo.
Ccnvida-nos sim a que o irni:ernos, servindo, renun­
ciando, procedendo com doçura e humildade.
A vida do Salvador em Nazaré aparece-nos plena
de significado, mostrando-nos bem claramente onde
está a essência da santidade. Não reside nos milagres,
nas visões, na renúncia à comida e à bebida, nem nos
sacrifícios voluntários. Deus não precisa do pedaço
de pão que tiramos à nossa boca, nem da hora do sono
71 O CRISTÃO E A DOR

que sacrificamos. Ele não depende do trabalho das


nossas mãos nem do nosso espírito.
O que Deus quer é que renunciemos ao uso egoísta
e arbitrário da nossa vontade, que lhe entreguemos a
nossa vontade, o nosso coração. u Dá-me, filho meu, o
teu coração '' (Provérbios, XXIII, 26). Devemos apren­
der com o Salvador a nossa dedicação a Deus que se
realiza pelo sacrifício e abandono ao Pai. Cada um de
nós . no lugar que Deus lhe tiver dado, cumprirá assim
a sua vontade, tal como o Salvador o fez.
Todo aquele que pretende fazer valer a sua von­
tade por si e pelo m undo u não é digno)) de Deus
(Mat., X , 37). u O que se prende à sua vida perdê-la-á))
(Mat., X, 39).
De tudo o que podemos oferecer em sacrifício, a
melhor parte é sem dúvida a nossa vontade, porque
tudo o mais é já propriedade divina (1, Cor. , IV, 7).
O Salvador é o primeiro e último modelo para os
nossos sofrimen�os de obediência e é simultâneamente,
0 mais forte incentivo que nos leva aos mesmos.
A pess<Ja que ama quer em primeiro lugar asseme­
lhar-se ao objecto do seu amor e não, de modo algum,
ser mais feliz do que ele. Seria uma grande dor viver
uma pessoa em plena felicidade e saber mergulhado
na mais profunda desgraça o objecto do seu amor.
São milhares, centenas de milhar, aqueles que no
seu amor pelo Salvador se ofereceram voluntàriamente
e com alegria para o acompanharem ao Calvário, para
serem um Simão de Cirene.
Mas nem a todos compete oferecer-se à dor porque
esse é um privilégio daquele que ama. É missão d e
todos, porém, aceitar das mãos de Deus a cruz e o
s�frimento que Ele envia, tal como o fez o Salvador,
tudo suportando com paciência.
AS TREVA S NA DOR

Todas a s pessoas devem contar com s ofrimentos na


vida. Não podem imaginá-la como um sonho cor-de­
-rosa. não devem esperar que ela as cumule de benes­
ses. porque só assim evitarão grandes decepções. Se
alguém andar constantemente atrás da felicidade, de
<� d ias melhores e mais belos ,, , a dor apanhá-lo-á ines­
perada e desprevenidamente, parecendo-lhe assim mais
dura, mais pesada.
Já os pagãos contavam com sofrimentos na vida
e chegavam mesmo a considerar de mau agoiro uma
felicidade perfeita que lhes parecia uma afronta aos
deuses. Evitavam um homem demasiado feliz. fugiam
dele.
Com o pecado original começou a dor, com ele
terminou a primeira felicidade, o jardim de delícias
que Deus nos dera. E começou também um processo
de atingir a glória, baseado em Cristo, no qual a dor
e .a cruz desempenham um papel proeminente. Logo

após o pecado original , o Senhor promulgou a lei do


sofriment0 para o homem (Gén. , III, I 7 e seg.) e para
a mulher (Gén., 111, 1 6) e desde então a cadeia de
dores nunca mais foi interrompida. A nossa vida
é uma guerra, uma tarefa de jornaleiro (Job., VII, 1).
A todo o homem são dadas tarefas pesadas e um j ugo
pesado atormenta-o desde o dia do nascimento até ao
da morte (Efés. , XL, 1 ).

O CALV ÃRIO, CAMINHO QUOTIDIANO

Um cristão, mais d o que qualquer outra pessoa,


deve contar sempre e por toda a parte com a cruz e
76 O CRISTÃO E A DOR

o sofrimento. " Meu filho, se tencionas servir o Senhor,


prepara-te para lutarn (Ecl . , li, 1 ). O Divino Mestre
esclareceu-nos aliás bem a este respeito. u Se alguém
quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua
cruz todos os dias e siga-men (Luc., IX, 23). u Se eles
me perseguiram a mim, também vos hão-de perseguir
a vós n . uO servo não é maior do que o seu senhorn

(João, XV, 20 ; XIII, 1 6). E p0r isso que nunca es:a­


remos livres de tristeza (João, XVI, 20).
Se nós pertencêssemos ao mundo, este amar-nos-ia,
mas porque não somos do mundo, ele odeia-nos (João,
XV, 1 9). u Sereis odiados por todas as gentes n (Mat.,
XXIV, 9). Sobre este ponto, os apóstolos não nos dei­
xam d úvida alguma. Estamos rodeados por toda u uma
nuvem de testemunhasn (Heb., XII, 1 ). Segundo S. Pe­
dro somos mesmo chamados a suportar dores, não
como castigo dos nossos pecados mas por u boa con­
dutan ( 1 , Ped., Il, 1 9 e seg.). u E todos os que querem
viver piamente padecerão perseguição n (II, Tim. , 111,
1 2). uO Senhor açoita todo o filho que reconhece por
seu n (Heb., XII, 6).
A experiência e a Sagrada Escritura mostram-nos
assim a realidade da dor; daí que esta não nos encon­
tre já desprevenid<Js. Esperar a dor é já uma vanta­
gem que lhe l ima as arestas mais duras. A fé diz-nos
qual é o sentido e finalidade do sofrimento e assim
achamo-nos perante a vida em condições muito dife­
rentes das daqueles a quem a fé não ilumina.
Quão difícil é a vida para aqueles que nada sabem
da Revelação e por isso não conseguem compreender
o sofrimento! Sem a graça divina não conseguiremos
d ominar constantemente a dor. Cristo salvou-nos, apa­
gou o pecado que chamava contra nós (Col. I I , 1 3 e
seg. ; Rom., III, 24 e seg.). Mas cada um de nós tem
de levar a cabo os s<Jfrimentos salvadores, com e em
Cristo, e colaborar na edificação do Corpo Místico
AS TREVAS NA DOR 77

com a dor correspondente à sua posição (Efésios, IV .


1 2- 1 6). Através da nossa união C')m Cris:o, podemos
interceder, expiando, por membros imprevidentes ou
mesmo mortos.

A DOR FAZ-NOS CLARIVIDENTES . . .

Na mão de Deus , dificilmente haverá meio · mais


eficaz do que a dor, para nos libertar do nosso eu, dos
homens e do mundo. A nossa preparação, determinada
por Deus, visa em especial a felicidade no além e diz­
-nos muitas vezes, dolorosamente, que aqui não somos
mais d o que (( peregrinos e estrangeiros » ( 1 , Ped. , 11, l l ).
que não ternos aqui cidade permanente (Heb. XIII, l .f).
Certo é que muitas vezes o esqueceríamos e nos entre­
garíamos às coisas terrenas e humanas, se a dor não
nos ajudasse a ver o nada, a caducidade das coisas ter­
renas e não despertasse em nós o desejo de um mundo
melhor e mais belo. A dor suaviza-nos a morte porque.
se o mundo fosse urna mansão de felicidade e bem­
-estar, não quereríamos partir, e a morte seria ainda
mais penosa do que é. Quantas pessoas se entregariam
ao pecado e cairiam na desgraça eterna, se a dor, cla­
mando expiação em nome do Senhor, nos não obri­
gasse sempre a recuar no caminho do pecado!

. . . MAS N ÃO DEIXA DE SER


UM PROBLEMA

Muito embora a Revelação ilumine as trevas da


dor, não deixa esta de constituir o mais grave p ro­
blema, o mais negro enigma da nossa vida. O raciocí­
nio reconhece e vê alguns pontos. a fé esclarece outros.
mas à resignação cabe ainda um grande quinhão. N ão
78 O CRISTÃO E A DOR

interessa a Deus que o compreendamos. É necessano,


porém, crer e obedecer-lhe incondicionalmente, sa­
bendo, no entanto, que não podemos compreender nem
abranger Deus eterno e infinito. Deus não se deixa
abranger por nós, porque é sempre maior, mais extenso
que a nossa compreensão (Job, XXVI, 14; XXXVI, 26).
Ele criou o nosso ser espiritual à sua imagem e
semelhança mas nós deturpámos a sua imagem segundo
a nossa imagem .e semelhança. Julgamos que Deus de­
veria agir sempre como nós e se Ele age de modo
diverso e em especial se nos envia padecimentos,
d uvidamos logo da sua existência.
Para os judeus, a cruz era um escândalo e para os
pagãos uma loucura ( 1 Cor., I, 23). Mesmo os após­
tolos, de princípio, não a entenderam e, quando o Se­
nhor falou pela primeira vez dos seus padecimentos,
S. Pedro quis detê-lo, dizendo: (( Deus tal não permita,
Senhor! Não te sucederá istoll (Mat. XVI, 22). Logo
Jesus o repreendeu , e isso deve ter impressionado viva­
mente os outros apóstolos.
Noutra ocasião em que o Senhor lhes falou dos
seus padecimentos não o entenderam mas não tiveram
a coragem de pronunciar uma só palavra. <<Eles não
entendiam esta palavra e tinham medo de o interrogar
acerca dela)) (Luc., IX, 45). Lembravam-se bem do
que sucedera a Pedro. E o mesmo se verificou quando
o Salvador lhes falou pela terceira vez dos seus pade­
cimentos (Luc., XVIII, 34).
Nem mesmo a Santíssima V irgem compreendeu
todos os caminhos dolorosos por onde Deus a condu­
ziu e afligia-a o problema d0 porquê. Quando após
três dias de buscas vãs encontraram Jesus no templo,
Nossa Senhora perguntou : (( Filho, p0rque procedeste
assim connosco? )) (Luc., 11, 48). E o Salvador respon­
deu: (( Para que me buscáveis? Não sabíeis que devo
AS TREVAS NA DOR 79

ocupar-me nas coisas de meu Pai? '' Apesar desta res­


posta não o compreenderam. uE eles não entenderam
o que lhes disseJJ (Luc., li, 49 e seg.).
E nós, compreenderíamos o Senhor se Ele nos res­
pondesse ao problema premente do porquê? Talvez não.
Na maior parte dos casos ainda não o entendemos.
Cada um dos sofrimentos que nos atingem não pode
ser explicado no momento em que se produz, mas ape­
nas em função do seu conjunto e é precisamente no
seu significado de conjunto que ele não pode ser en­
tendido. Aquilo que encarado de um ponto isolado
pode parecer uma loucura, considerado no conjunto,
pode constituir uma graça divina muito especial.
A dor de um momento não pode muitas vezes ser
compreendida, porque para o conseguir seria necessá­
ria uma visão total dos acontecimentos m undiais, em
profundidade e extensão. Uma criança que não conhece
ainda a história do seu país não pode compreender
a história universal tal como uma pessoa que des­
conhece os rudimentos da ma:emática não pode resol­
ver as dificuldades que se lhe deparem no campo da
álgebra superior.

O PROBLEMA DO u PORQUÊn

Não é de admirar que o u porquêJJ nos acuda aos


lábios, principalmente quando nos cai em cima uma
grande desgraça ou quando as dores se sucedem umas
às outras. O próprio Salvador, na hora da mais amarga
das dores, perguntou ao Pai: ((Deus meu, Deus meu,
porque me abandonaste? )) (Mat., XXVII, 46). A dor
parecia-lhe como que um tabique que ocultava o sem­
blante amigo de Deus (Bíblia de Tillman ref. Mat.,
XXVII, 46).
A obediência e a sujetçao tornam-se ainda mais
particularmente difíceis quando o nosso entendimento
80 O CRISTÃO E A DOR

nos demonstra sem qualquer sombra de dúvida que


sofremos sem culpa. O fardo torna-se insuportável
quando vemos que só os inocentes sofrem, ao passo
que os culpados, a quem nada sucede, parecem ainda
tirar da sua culpa grandes lucros e vantagens. ((Há
justos que sofrem como se tivessem agido lmpiamente
e há ímpios a quem nada sucede, como se tivessem
agido como j ustos n (Ecl. , VIII, 1 4). Quantas vezes
não nos temos apercebido da veracidade destas pala­
vras! ((Tu és muito justo, ó Senhor, para que dispute
contigo; todavia, coisas j ustas te direi. Por que mo­
tivo é prqspero o caminho dos ímpios? Sucede bem
a todos os que prevaricam e fazem mal. Plantaste-os
e lançaram raízes, medram e fazem frutOll (Jer., XII,
I e seg.). ((Os meus pés por pouco não vacilaram; por
pouco se não transformaram os meus passos; porque
tive zelo sobre os iníquios, vendo a paz dos pecado­
res. Eles não conhecem misérias ; forte e são é o seu
corpo. Não participam dos trabalhos dos outros ho­
mens, nem como outros são flagelados n (Salmo LXXII,
2 e seg. ; Job., XXI, 7 e seg.). Assim, não admira que
caiam na confusão aqueles que não têm fé.
Também sentimos como dor um amor excessivo.
O nosso sentir e a nossa razão ficam embotados e sen­
timos apenas a dor, o tormento ; a fé diz-nos, no en­
tanto, que o sol do amor divino continua a brilhar.
Por detrás da dor está o amor de Deus que é maior
que toda a dor. (( Deus castiga aqueles que ama n . Uma
vez Cristo queixou-se a Santa Teresa de Ávila que tão
poucos o amassem. A santa respondeu-lhe ((Não deves
admirar-te, uma vez que amas os que te crucificam e
crucificas os que te amam n .
Quando as crianças não dão ouvidos à s admoesta­
ções dos pais, estes vêem-se forçados a castigá-Ias,
apesar do amor que lhes dedicam e até por causa desse
mesmo amor. Nada há de mais prejudicial para uma
AS TREVAS NA DOR 81

criança d o que esse amor brando que não sabe recusar


coisa alguma, que não sabe castigar. Até a uma certa
idade os filhos não compreendem que o castigo é uma
prova de amor e por isso os pais não lhes dão longas
explicações, uma vez que só o castigo pode fazê-los
melhorar.
Ora se nem sempre os filhos conseguem compreen­
der os pais, como havemos nós de poder compreender
Deus? Com certeza que o Senhor não nos leva a mal
choros e queixumes desde que nos corrijamos. A fé
diz-nos que o Senhor é um Deus de amor e ensinar­
-nos-á a ver este amor por trás das catástrofes, levan­
do-nos a aproveitá-las e a atribuir-lhes valor para a
eternidade.
Mesmo depois do pecado original, poderíamos ser
ainda filhos de Deus, alegres e felizes, porque o Senhor
criou, na medida do possível, as condições necessárias
para que assim fosse. Mas os homens, em impulsos
de egoísmo, destruíram os planos divinos e caíram
na dor. E no entan�o, o Senhor continua a fazer tudo
para que sejamos felizes, pelo menos na eternidade.

POR DETRÁS DAS CATASTROFES


ESTÁ O AMOR DIVINO

Sabemos que a guerra arranca prematuramente a


vida a centenas de milhar, a milhões de pessoas que
poderiam ainda viver, em tempo de paz, porventura
mais algumas dezenas de anos. Se morressem durante
a paz, de morte natural, quantas iriam para o céu?
A morte é uma realidade com que todos nós temos
de contar, visto que nada temos mais certo. Mas quem
conta com ela em épocas normais e pacíficas? Nem
mesmo os doentes, por grave que seja o seu estado.
Todos contam com a vida, com a cura e não são raros
81 O CRISTÃO E A DOR

os moribundos que fazem ainda planos de futuro.


Raros são, pois, aqueles que contam em princípio com
a morte e a esperam conscientemente.
A guerra tudo vem alterar. As vezes, nos abrigos,
pessoas que até então nada tinham querido saber de
Deus, mudavam repentinamente de ideias, ao sentir
as bombas a cair cada vez mais perto e faziam as suas
contas com Ele. Alguns soldados, antes do ataque, pro­
nunciavam um sincerd acto de contrição e outros,
abandonados de todo no campo de batalha, procura­
vam o único de quem podiam esperar auxílio.
Também a guerra tem, pois, um sentido. É que ela
cria as condições que levam um maior número de pes­
soas à fé. Não será esse acréscimo de almas que en­
tram nas vias de salvação revelador do sentido pro­
fundo da guerra? Quantos não se terão recordado no
meio dos seus horrores que não é aqui a nossa mo­
rada permanente e que temos de procurar uma morada
futura! (Heb., XIII, 14). Muitos terão pensado que são
cidadãos de outro mundo com morada transitória n a
Terra. (( A nossa transformação é n o céu » (Fi!., I I I , 20).
Instalaram-se tão confortàvelmente no mundo como se
estivessem destinados a não mais o deixar, nem a ele
nem aos seus bens. A esses, o Senhor tudo lhes des­
�ruiu, colocando-os ante o nada e obrigand'J-os a ca­
minhar. E, vistas as coisas no seu conjunto, não será
melhor perder aqui teres e haveres e receber além uma
morada magnífica em casa do Pai (João, XIV, 2) d o
que salvar tudo na Terra e n ã o ser recebido no céu?
Quantas famílias se viram separadas pela guerra,
quanta dor daí resultou! Quantos filhos adultos se des­
pedem para sempre dos seus pais! Quantos, ao per­
derem algum ente querido, filho ou marido, não
ficam inconsoláveis, infelizes, sem se lembrarem que
os mortos nã'J estão longe de nós, talvez até mais pró­
ximos do que o estão os vizinhos da casa ao lado. Ape-
AS TREVAS NA DOR 83

nas partiram num primeiro comboio ; mas nós segui­


-los-emos, seguramente, num dos próximos.
Além disso, cumpre-nos pensar que a verdadeira
vida de família só no outro mundo encontra a sua per­
feição: aí as famílias voltarão a encontrar-se para u m
convívio feliz que não conhecerá separações. Contudo,
toda a felicidade dó céu tem de ser comprada. Por isso
talvez seja necessário que muitas famílias sejam pre­
maturamen�e separadas pela violência, para que no
céu se possam reunir para todo o sempre.
Quando Deus nos leva da vida vinte ou trinta anos
mais cedo e nos oferece em troca a vida eterna, fá-lo
por amor, amor infinito. E o mesmo se verifica quando
nos arrebata lar, haveres e pátria, para nos assegurar
uma morada perene, quando separa as famílias para
as reunir no céu.

O SOFRIMENTO DOS POVOS

Muito embora o crente se conforme e aceite o


sofrimento - de facto tem de o fazer sempre - há
muitos casos em que Deus continua para ele um
enigma. O sofrimento de um indivíduo ainda o pode­
mos en:ender, mas se se trata de povos inteiros, essa
dor fica envolta na mais profunda treva de incom­
preensão. Num caso individual podemos falar de uma
compensação na eternidade, mas já o mesmo não se
'
passa quando se trata de povos, porque estes não
podem ser recompensados no céu por sofriment'Js de
que tenham sido vítimas na Terra, uma vez que as uni­
dades populacionais serão integradas no céu na grande
famíl ia de Deus n .
Diz-se que a História Universal é o juízo pronun­
ciado sobre o mundo, mas em nossa opinião esse con­
ceito parece não ter j ustificação. Entre os homens há
sem dúvida alguma aqueles a quem a felicidade sorri
84 O CRISTÃO E A DOR

e outros a quem ela volta costas e o mesmo parece


verificar-se com os povos. Alguns não vêem guerras
na pátria durante séculos a fio ao passo que outros
são constantemente atormentados pela guerra e por
mil ou�ras desgraças. Será que há povos constituídos
por justos e outros por pecadores? Em toda a parte há
bons e maus e por vezes parece até que entre os povos
mais bafejados pela sorte são mais graves os pecados
d0 que entre os perseguidos pela dor. Mas quem se
atreverá a pronunciar sobre tudo isto um juízo exacto?
Dar-se-á o caso de também entre os povos um deles
dever expiar as culpas de outro?

<ePovos, sofremos por vós, pelas vossas culpas,


Sofremos instalados no velho palco da Europa,
Sofremos por todos, um sofrer feito de expiação.
Povos d0 mundo, a queda foi comum a todos:
Deus fez de cada um pastor de seu irmão n.

Werner Bergengruen, Dies irre

Mas se é certo que perder uma guerra é , pelas suas


tremendas consequências. algo de terrível para um
povo, talvez ela no entanto constitua uma benção
maior para cada um dos componentes desse povo d o
que a vitória para o povo inimigo.
Depois da guerra de 1 9 14- 1 9 1 8, uma onda de sen­
sualidade alastrou no mundo, entre os povos vitorio­
S0S. Os vencidos, porém, debatendo-se entre outras,
com dificuldades económicas mantiveram-se a salvo
dessa corren�e de sensualidade, não porque a não de5e ·
jassem, mas porque, muito simplesmente não podiam.
Todavia, estas considerações pouco iluminaram as
trevas que envolvem o problema e, quem sabe?, talvez
tenham levantado n0vas dificuldades.
AS TREVAS NA DOR 85

O PERIGO DA POBREZA

Deus quer, com certeza, que os bens terrenos sejam


mais ou menos equitativamente distribuídos. Cada um
deve poder viver em condições dignas com a família,
ter meios de subsistência e não estar muito sobrecar­
regado de cuidados pelo pão de cada dia e pelo futuro
dos seus , para que os seus maiores cuidados vão para
Deus e para a alma.
Não é difícil d emonstrar que a riqueza constitui um
perigo para a salvação da alma. « Filhinhos, quanto é
difícil entrarem no reino de Deus os que confiam nas
riquezas! Mais fácil é passar um camelo pelo fundo
de uma agulha, do que um rico entrar no reino de
Deus)) (Marcos, X, 23 e seg.).
Mas. mais talvez do que uma grande riqueza . a
pobreza extrema pode constituir um perigo ainda
maior. Quando os homens não sabem o que hão-de
comer nem vestir, ou como viver, os cuidad0s terrenos
abafam todos os outros e não têm tempo nem forças
para se ocuparem das realidades sobrenaturais. Neste
sentido, um grande perigo, que não podem0s ignorar.
ameaça um povo vencido. Não é de admirar que então
os homens já não possam continuar, a vida lhes pareça
vazia de sentido e finalidade e caiam no suicídio.
É horrível pensar que muitas dessas pessoas estã0
- humanamen�e falando - inocentes do que lhes desa­
bou em cima. Poder-se-á dizer então que a dor - a dor
sem culpa - os levou à perdição? Talvez a bondade
misericordiosa do Senhor reserve uma graça especial
para o últim0 momento dessas vidas. Talvez tenha sido
por essa grande dor, que os levou ao desespero, que
eles puderam ser salvos no último minuto.

Daqui se conclui que é nos momentos de felicidade


que devemos procurar o Senhor. «0 que busca encon-
86 O CRISTÃO E A DOR

tran (Mat., VII , 8). Quando chega o tempo das tribu­


lações a tarefa é já difícil porque procurar Deus, pre­
parar-se para o encon:rar exige energia e esf0rços.
No momento da infelicidade já não possuímos essas
forças porque as esg0támos na luta pela vida. Nessa
altura, já devemos possuir o Senhor, já devemos estar
com Ele, para podermos assumir toda a cruz e toda
a dor, para amadurecermos e crescermos plenamente.
Quando os h0mens, dominados pela dor, fogem de
Deus em vez de se acercarem d'Eie, o seu grande
pecado não está em o terem abandonado por virtude
da desgraça extrema. Está sim no passado anterior de
felicidade , em que não buscaram o Senhor.

A DOR E O PECADO

Se olhássemos mais atentamente para a nossa qua­


lidade de pecadores e para a natureza do pecado com
certeza não nos revoltaríamos tantas vezes contra Deus.
« Com tudo isso falarei ao Todo Poderoso e com Deus
desejo conversarn (Job, XIII, 3). «Ai daquele que dis­
puta com o seu Criador, não sendo mais que um vaso
entre os vasos da terra. Porventura dirá o barro ao
oleiro que o maneja: « Que fazes? n (Isaías , XLV, 9).
<< Porventura o varão será mais puro do que o seu
Criad<Jr? » (Job, IV, 1 7).
Perante Deus somos todos mais ou menos culpa­
dos. Todos os castigos são pequenos em comparação
com o que fizemos a Deus, ao pecar. Ninguém sofre
inocentemente ; só Cristo na Cruz e Nossa Senhora a
seus pés sofreram sem ter pecado. De resto, todos
s ofremos com j ustiça, todos recebemos o justo cas­
tigo das nossas acções (Luc., XXIII, 4 1 ). E se, como
os dois ladrões que mereceram a morte, nã0 merece­
mos a dor que agora nos aflige, merecemo-la -- e tal­
vez mais - por pecados e erros anteriores.
AS TREVAS NA DOR

Por isso não nos devemos admirar que a dor n0s


atormente, nem perguntar em que a merecemos. Com
muito maior razão deveríamos perguntar em que me­
recemos o bem-estar e a felicidade quando deles goza­
mos. Mas é nosso hábito aceitar com naturalidade a
felicidade que Deus nos dá, como se a tivéssemos me­
recido, quando é certo que as coisas deveriam pas­
sar-se justamente ao contrário. <<Se nós temos recebido
os bens, porque não receberemos também os males? »
(Job. , li, 1 0).
Nós, pecadores, nunca devemos altercar com Deus
por causa da dor, porque não podemos esquecer que
Ele não poupou o Filho dilecto em quem pusera as
suas complacências (Luc., III, 22), que o mergulhou
num mar de dor como a ninguém na Terra. Tendo
todas estas coisas em pensamento, será legítimo lamen­
tarmo-nos? u Ponho a mão na b0ca . . . falei uma vez
mas não recomeço» (Job, XL, 4 e seg.).

DEUS NÃO PODE SER CRUEL

Embora compreendamos muitas coisas e possamos


seguir o Senhor por alguns caminhos com a razão ilu­
minada pela fé, muitos outros há que não podemos
compreender, porque eles conduzem a trevas profun­
das. Só nos pode ajudar a fé viva na justiça divina
c no imenso amor que 0 Senhor nos dedica. Deus não

pode ser cruel, nem por um instan�e. Quase seria pre­


ferível duvidarmos da nossa própria razão do que da
justiça e amor divinos. Quem perder a fé e a confiança
na justiça de Deus, no seu amor, bondade e miseri­
córdia perde o chão debaixo dos pés , deixa de ter as
suas raízes em Deus, origem da sua vida, e é arreba­
tado pela tempestade da dor.
83 O CRISTÃO E A DOR

A fé diz-nos que Deus é nosso Pai, que está junto


de nós quando nos envia o sofrimento. Nesse mo­
mento, passamos como que para uma escola superior.
u Perto está o Senh0r daqueles que têm o coração atri­
bulado)) (Salmo XLIII, 1 9). A d0r é mesmo um dos
sinais mais seguros de eleição. << Bem-aventurado o
homem a quem Deus corrige )) (Job, V, 1 7).
É nosso dever, mesmo ao s<Jfrer as mais negras
dores, estarmos convencidos de que é Deus que as
envia e não começar a ponderar e a cismar. Basta pro­
curarmos compreender o que quer Deus dizer-nos por
intermédio desse s0frimento, saber como poderemos
valorizá-lo e utilizá-lo. Porque Deus quer salvar-nos
e levar-nos ao céu pelo caminho da dor. ((O que pre­
sentemente é para nós uma tribulação momentânea e
ligeira produz em nós um peso eterno de uma sublime
e incomparável glória )) (2 Cor. IV, 1 7). E devem0s
pensar com S. Paulo que ((Os sofrimentos do tempo
presente não têm proporção com a glória vindoura))
(Rom. VIII, 1 8).
((Seio cui credidi - Eu sei em quem creio e con­
fi'J )) , escreve S. Paulo (2 Tiro., I, 1 2). O Salvador exor­
ta-nos a não ter medo (Mat., X, 28) ; Luc. , XII, 32).
Um passarinho não tem valor e no entanto não cai
nenhum sobre a terra, nem coisa alguma lhe acontece,
sem que o Pai o saiba. Nós somos muito mais valio­
S 'JS aos olhos de Deus e ((até os próprios cabelos da

nossa cabeça estão todos contados'' (Mat., X, 30). Não


há, pois, que ter medo.
Com estas palavras não pretendemos dizer que não
n'ls pode atingir o mal, que seremos poupados à des­
graça. Esta a todos pode atingir. O Senhor predisse­
-nos que a dor, uma grande dor, seria o nosso qui­
nhão: (( Porque naqueles dias haverá tribulações, quais
não h0uve desde o princípio da Criação, que Deus
fez, até agora, nem mais haverá. E se o Senhor não
AS TREVAS NA DOR 89

abreviasse aqueles dias, nenhuma pessoa se salvaria;


mas Ele os abreviou em atenção aos escolhidos que
escolheu n (Marcos, XIII , 1 9 e seg.).
No entanto, Deus diz: "Não temais ! n "Ainda que
seja com,wida a terra e trasladados os montes n (Sal­
mo XLV, 3). ainda que nc·s matem (Luc., XII , 4),
tudo vem de Deus e tudo serve para o nosso bem
(Rom., V I I I , 28). Só devemos :emer a Deus quando
lhe fugimos porque só Ele pode tornar-nos infelizes
para todo '1 sempre. " Sim, eu vos digo, temei este''
(Luc. X I I , 6). " Se Deus é por nós, quem será contra
nós ? n (Rom., V I I I , 3 1 ). " Não temas porque eu sou
contigon (Gén., XXVI , 24 ; Isaías, XLI, 1 0).
A VONTADE
E A PERMISSÃO DIVINAS

Deus rege o mundo de acordo com os desígnios


eternos da sua VIJntade (Efésios, I, 1 1 ) Muitas coisas
.

foram anunciadas por Cristo (Efésios, I, 9; 1 11, 8 e seg.),


muitas outras permanecem um mistério. Deus vive na
luz inatif\gível ( I Tim. Vl, 1 6) de modo que nem Ele
nem a sua acção podem ser totalmente compreendidos.
Sabemos no entanto que tudo o que existe foi criado
por Deus (Gén. , I, 1 ), que Ele domina todo o universo
(Sab. , VIII, 1 ), que ninguém se pode opor à sua ma­
jestade (Sab. , XIII, l i ). (( Tu originaste o que antes
aconteceu, e tinhas imaginado o que mais tarde se pas­
sou e aconteceu sempre o que tu quiseste. Pois todos
os teus caminhos são aplanados e fixaste os teus desíg­
nios de acord a com a tua providência,, (Jud. , IX, 4 e
seg.). S. Paulo resume tudo isto em p'Jucas palavras:
« Deus é o que opera tudo em todos ,, ( l Cor., XII, 6).
u Deus é o que opera em vós o querer e o executan
(Fil., li, 1 3).

POR TRÁS DE TUDO ESTÁ O SENHOR

Se é Deus que tudo opera, de onde virão a dor,


a infelicidade, a miséria, o pecado e a maldade? A afir­
ma�·ão de que não se pode de medo algum relacionar
Deus com o sofrimento insensato d�s inocentes é des­
tituída de validade. A dor dos inocentes está relacio­
nada com Deus porque o acaso não existe. Em última
92 O CRISTÃO E A DOR

instância tudo depende do Senhor que é sempre a ori­


gem. Portanto, seja como for, por trás de tudo está Deus.
Só não podemos dizer que o pecado e a maldade
foram determinados e originados directamente por
Deus, porque tal afirmação seria pura e simplesmente
incompatível com a essência divina. Digamos apenas
que Deus permite a maldade. Deus criou os homens
como seres livres ; deixa-lhes, portanto, a l iberdade no
querer e no agir e, por isso, para não destruir a liber­
dade humana, permite o que não quer.
A palavra permissão, porém, não resolveu a difi­
culdade. Adiou-a apenas. O que acontece com a mal­
dade acontece de cer:o modo também com a dor, em­
bora aqui a dificuldade não seja tão grande, uma vez
que a dor em si não é má. Por isso pode haver s0fri­
mentos que atormentem indivíduos ou povos inteiros
c que tenham sido enviados directamente por Deus.

Mas não é necessário perdermos tempo com este pro­


blema.
Tudo aquilo que cai s0bre nós é vontade de Deus:
se alguém sofre um grande dano através do pecado
de outrém , Deus permitiu esse pecado e quis o dano
dele resultante. Em certos casos p0demos exigir repa­
ração pelo dano sofrido, mas não podemos nem deve­
mos julgar o seu autor. ((Não vos vingueis a vós mes­
mos, ó caríssimos, mas dai lugar à ira, porque está
escrit0: A mim me pertence a vingança; eu retribuirei,
diz o Senhon> (Rom . , XII, 1 9).
É tranquilizador e grato pensarmos que não esta­
mos entregues a forças sombrias do destino, a violên­
cias cegas da natureza, nem à arbitrariedade, injustiça
e crueldade de homens indómitos e sem fé, muito em­
bora pareça por vezes ser assim e seja assim, de facto,
do ponto de vista humano. S. Paulo sofreu imenso :
desmedidos maus tratos, perigos de mor:e, cinco vezes
foi flagelado pelos judeus e três vezes pelos pagãos,
A VONTADE E A PERMISSÃO DJT/ISAS 93

uma vez apedrejado, vítima de três naufrágios, venceu


mil perigos contra os ladrões, pagãos , j udeus, falsos
irmãos, em rios, no deserto e no mar. Além de tudo
isto sofreu muitas vezes fome e sede, frio e falta de
vestuário (2 Cor., XI, 23 e seg.).
Por trás de todos os perigos e sofrimentos, perse­
guições e injustiças estava Deus por ele, como está
sempre por nós. Nem os homens nem as forças da
natureza têm o poder de nos infligir sofrimento, se esse
poder lhes não tiver sido enviado do alto (João, XIX.
1 1 ) ; esse poder é no entanto conferido na medida em
que o Senhor o considera para nosso bem.
Os homens, com efeito, como quer que se chamem,
como quer que sejam, por mais que se mexam e es­
forcem, nada podem contra nós. N ão podem constituir
um perigo para a alma, a não ser que nós próprios o
queiramos. Podem tirar-nos riquezas, pátria, saúde,
família, até a vida, podem obrigar-nos a muitas coi­
sas, mas não podem tirar-nos o Senhor, a nossa feli­
cidade eterna. As coisas e os acontecimentos, os
amigos e os inimigos , os santos e os pecadores só
interferem na nossa vida, na medida em que Deus os
utiliza como instrumentos da nossa salvação.
Devemos pois procurar a vontade divina , até
mesmo por trás das consequências dos nossos peca­
dos, porque o próprio pecado é permissão, mas o seu
efeito é vontade divina. É nosso dever anular o pecado,
o mais depressa possível, por meio do remorso per­
feito de uma boa confissão. Quanto às consequên­
cias aceitemo-las da mão de Deus para a nossa sal­
vação.
Um director espiritual, assoberbado pelo muito
trabalho, costumava escrever aos seus soldados uma
única frase: «Tudo me serve>>. Fome, frio, chuva, fadi­
gas, o pior dos superiores que transformasse a vida
em tormen�o. em inferno, que fizesse sentir a sua força,
94 O CRISTÃO E A DOR

tudo são aperias instrumentos na mão de Deus para


nos amadurecer e san:ificar. Tudo está ao nosso ser­
viço. " Tudo me serve)). Estas três palavras tornaram
homens mais livres, maiores, até santos.
Deve ser a d<Jr a nossa mes tra � pois seria insensato
não aprender a lição do sofrimento. Não há necessi­
dade de incorrermos segunda vez no mesmo sofri­
mento. Mas quando não podemos fugir à dor, resta
apenas aceitá-Ia da mão de Deus e sup'Jrtá-la com
Cristo, pacien�es e humildes. Ela agirá por si para edi­
ficação da nossa vida íntima. De qualquer modo essa
dor teria de cair sobre nós , uma vez que éxiste. Deus
sabe tudo a nosso respeito : " Conheço a tua tribulaçã'J))
(Apocalipse, 11, 9). Tod'Js os caminhos por onde o
Senhor nos conduz, mesmo caminhos de dor, são ca­
minhos de misericórdia e de graça. " Todos os cami­
nhos do Senhor são misericórdia e verdade para os
que buscam a sua aliança e os seus mandamentos ))
(Salmo XXIV, 1 0).

COMUNIDADE DE DESTINO

Nós cristãos, principalmente, constituímos uma


família, uma comunidade de destino. Por isso nin­
guém pode levar uma vida independente, isolando-se
espiritualmente. Por isso ainda, algumas pessoas pie­
dosas e tementes a Deus que procuram elevar-se no
respeito pela vontade divina encontram na vida a dor
e a cruz preparadas pela maldade e descrença daque­
les que os rodeiam.
Quando numa família com vários filhos um deles
é castigado por desobediência, de certo modo tod'Js
são castigados, porque essa punição vai destruir a har­
monia íntima , a paz e a ordem da comunidade fami­
liar. Devemos considerar este entrecruzar de destinos
como determinado por Deus.
A VONTADE E A PERMISSÃO DIVINAS 95

Alguns cristãos poderão dizer que é uma infelici­


dade terem nascido em determinada época, por sofre­
rem as consequências dos pecados e maldades dos
outros quando todo o seu empenho é proceder bem.
Evidentemente é mais fácil viver numa farru1ia cristã
do que num ambiente malsão. Mas quem sofre as con­
sequências de um tal ambiente não deve pensar que
os homens, com a sua maldade, interferiram no plano
divino, tomando mais difícil um caminho que Deus
destinara mais fácil.
Nada disto se verifica : o homem não pode inter­
ferir nos planos divinos, transformando-os ou enfra­
quecendo-os. É certo que os pecados e maldades de
círculos mais ou menos próximos determinam em nós
muita dor e muita cruz, mas tudo isto estava já ini­
cialmente incluído e considerado no plano da nossa
vida. Talvez precisemos dessa cruz mais para a nossa
missão social do que para nós próprios, porque o
nosso dever não se esgota na salvação pessoal, mas
também numa actividade que contribui para a salva­
ção do nosso próximo: é nosso dever auxiliar a con­
seguir a salvação que Cristo ganhou para nós.
Deus concebeu o plano de vida de cada indivíduo,
não como um plano isolado , separado do das outras
pessoas, mas como parte de um conjunto, na sua arti­
culação com os planos de vida de todos os homens.
Cada homem não é determinado apenas em si nas
suas qualidades. Com ele e para ele são determinadas
também as circunstâncias da sua vida: a família, o
ambiente, os camaradas e adversários, amigos e inimi­
gos, época, passado e presente. uTu és o que fizeste
em nós todas as nossas obrasn (Isaías, XXVI, 1 2).
Porque os homens se afastaram de Deus, Ele abando­
nou-os às suas escandalosas paixões e por isso o ho­
mem e com ele o mundo estão cheios de injustiça,
ambição e inveja (Rom., I. 24 e seg.).
96 O CRISTÃO E A DOR

A INSOLÊNCIA DOS PECADORES

Deus pode ver e consentir e, até certo pont0, mesmo


querer tudo isto, pois Ele, que consegue suscitar das
pedras filhos de Abraão (Luc. , III, 8), consegue tam­
bém de grandes pecadores fazer grandes santos. Exem­
plos temo-los na vida de Santa Maria Madalena, Santo
Agostinho, Santa Margarida de Cortona e muitos ou­
tros. É precisamente na fraqueza que a força da graça
e a grandeza da sua misericórdia se revelam (2 Cor.,
XII, 9). Num só momento podemos passar do maior
afastamento para a intimidade de Deus, continuando
o nosso caminho santificados e j ustificados (Luc.,
XVIII, 1 4).
A arrogância dos pecadores nunca atingiu o céu
(Gén., XI, 4). Assim como Deus pôs fim ao d ilúvio,
também todo o período de dor chega ao fim. Os tú­
neis mais compridos também têm fim e por isso nin­
guém deve deixar-se embalar em falsas seguranças.
Ninguém dificulta a vida ao próximo sem incorrer em
castigo. Se um servo bater no companheiro, pensando
que o seu senhor não vem « virá o senhor daquele
servo no dia em que ele não o espera, e na hora que
ele não sabe, e o dividirá, e porá a sua parte entre
os h ipócritas. Ali haverá pranto e ranger de denteS JJ
(Mat., XXIV, 48 e seg.). Também a nós nos dizem :
«Tende paciência ainda por algum tempo)) (Apocalipse,
VI, 1 1 ). ((Julgou a causa do pobre e do ind igente))
(Jer. , XXII, 1 6 ; Salmo CXLV, 7).
O divino Salvador explica-nos na parábola do juiz
injusto que aos justos acaba por ser feita j ustiça. Esse
homem não temia a Deus nem respeitava os homens
mas fez justiça a uma viúva para que �la o não im­
portunasse com os seus pedid0s constan�es. "Ouvi o
que diz este juiz iníquo. E Deus não fará justiça aos
seus escolhidos, que estão chamando a Ele, de dia e
A VONTADE E A PERMISSÃO DI VINA S l}7

de noite, e tardará étil bs::-soc·ortet? , Digo-vos·' que 'H-e­


pressa lhes fará justiça» (l:.'i:1c. :XVIII, 2 e seg�).
É necessário, pois, saber espernr. Deu!( espera:� e· 'tdn
à sua disp0sição ' toda uma eféfni'õa de, eiipeta ''enquanto
houver a possibilidade ' de ' ill'n péc:idoi"' se converter.
·Talvez só tire um pecador da� :Vioa itlíqtHí quando 'preve
. que ele não se ' corrigirá, que uma vida mais longa
seria para ele a· maior das desgraÇas, impelindo-o cada
'
•'
·vez mais para 'a pérdição eterna.

•J .•

uOS 'QUE AGORA SÃO PERSEÓUIDúS . . . »

Deus pode consentir e até quere'r que o homem


sofra, numa medida que não podemos imaginar e fá-lo
por puro amor. A prova desta afirmação está na vida
do divino Salvad<Jr. Ninguém jamais foi amado com
maior amor e a ninguém foram destinados caminhos
mais dolorosos. Na mão do Senhor a dor é a relha do
arad<J com que Ele cava a terra da nossa alma, para
que possa produzir abundantes frutos. Toda a vide
é podada (pela dor) para que produza mais fruto
(João, XV, 2). Deus tem de nos fazer padecer com
Cristo para que com Ele possamos ser glorificados
( Rom. V li I , 1 7), e quanto mais semelhante o padeci­
mento mais semelhante será também a glória.
Bem-aventurados os que agora sofrem porque o
Salvador os lrlll vará. Os que agora são perseguidos,
serão consolados e deles será o reino dos céus (Mat. ,
V, 4 , 1 0). u Bem-aventurados os pobres d e espírito,
porque de;es é o reino d<Js céus. Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça porque serão saciados.
Bem-aventurados os que choram porque serão conso­
lados. Bem-aven�urados s<Jis, quando vos injuriarem e
vos perseguirem e, mentindo, disseram todo o mal con­
tra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, por-
98 O CRISTÃO E A DOR

que é grande a vossa recompensa nos céus » (Luc. VI,


20 e seg.). ((Caríssimos, não vos perturbeis com o fogo
que se acendeu no meio de vós para vos provar, como
se vos acontecesse alguma coisa de extraordinário; mas
alegrai-vos de serdes participantes dos sofrimentos de
Cristo, para que vos alegreis também e exulteis, quando
se manifestar a sua glória. Se sois ultrajados por causa
do nome de Cristo, bem-aventurados sereis, porque
a honra, a glória e a virtude de Deus e o seu Es­
pírito repousa sobre vós» ( 1 Ped., IV, 1 2 e seg.).
((É por isto que não desfalecemos ; antes, pelo con­
trário, embora se destrua em nós o homem exterior,
todavia o interior vai-se renovando de dia para dia »
(2 Cor. , IV, 1 6).

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A DOR QUE AGRADA A DEUS

A dor afecta o corpo e a alma e aparece sempre


que se rompe a harmonia interior ou exterior, o equi­
líbrio completo. Quanto mais comprometido estiver
esse · equilíbrio, quanto mais nos afastarmos da feli­
cidade , maior será o sofrimento e este poderá medir-se
pela grandeza da dor.
Porém, o valor do sofrimento não está' na gran·
deza da dor, do sacrifício, mas na grandeza do amor
com que essa dor é suportada. Se o valor do sofri­
mento se medisse pela grandeza do sacrifício, os que
iniciam a sua vida espiritual teriam as maiores possi·
bilidades de merecimento.
É que para aqueles que têm de lutar com o pecado,
a vida espiritual é dura e difícil, mas quanto mais se
avança , mais fáceis se tornam as coisas. Se o valor
do sofrimento estivesse na grandeza do sacrifício, di­
minuiria a possibilidade de merecimento e para os
santos ela deixaria quase de existir, pelo menos vistas
as coisas a partir do sofrimento.
Quanto maior for o amor mais fácil será o sacri·
fício, porque o amor tudo facilita. Por um inimigo
parece-nos difícil, quase impossível, fazermos o mínimo
esforço. Por uma pessoa de quem gostamos, não há
sacrifícios grandes nem difíceis porque o amor torna
o sacrifício um prazer.

O AMOR E O SOFRIMENTO
EM ALTERNÂNCIA

Para fazer mover uma carroça é necessário o es­


forço de vários homens, mas uma vez em movimento,
1 00 O CRISTÃO E A DOR

bastam dois para que ela continui a avançar, até com


mai<Jr rapidez. Também no campo espiritual, se uma
pessoa estiver parada é necessário um grande esforço
para que possa caminhar; mas se se esf0rçar por
continuar o seu caminho, um pequeno esforço será
suficiente.
O que interessa no esforço pela conquista da per­
feição é a profundidade do amor e não · o sofrimento.
« Agora, pois, permanecem estas três coisas: a fé, a
esperança e a caridade; porém , a maior delas é a cari­
dade)) ( 1 Cor., XIII, 1 3). Ela é o elo da perfeição
(Co!. , III, 1 4). Em princípio, o amor nada tem que ver
com o sofrimento, mas está intimamente ligado à obe­
diência. « Ama-me aquele que conhece e cumpre os
meus mandamentos)) (João, XIV, 2 1 ). « Porventura quer
o Senhor os holocaustos e as vítimas e nã o quer que
antes se obedeça à voz do Senhor? A obediência, pois,
é meihor do que as vítimas : e mais vale obedecer do
que oferecer a gordura de carneiros, porque o resistir
é como o pecado da adivinhação: e não querer subme­
ter-se como o crime de idolatria )) ( I Reis, XV, 22
e seg.).
Na Sagrada Escritura a obediência chega a ser equi­
parada ao amor. O amor é a inclinação de uma pes­
soa por outrém, com o desejo de se possuírem , de se
unirem. Ao cumprirmos a vontade de Deus, o nosso
desejo é o seu e unimo-nos: um coração e uma alma.
Esta renúncia à vontade não é fácil porque repre­
senta um sofrimento, um sacrifício, e assim, o amor
como obediência e abandono do eu acaba por con­
duzir à dor. O sacrifício é tão difícil que muitos, ape­
sar de todos os seus esforços, não o conseguem supor­
tar, a não ser raras vezes. Só o conseguimos em abso­
luto no grande am0r, nesse impulso que nos arrasta
com violência para o ser amado. Quanto menor for o
amor, tanto mais fortemente se sentirá a dor. Um
A DOR Q UE; A GRADA A DEUS 101

grande amor torna-nos quas·e insensíveis à dor. mas


dele nasce novo padecimento. O grande amor. cujo
desejo é sempre dar, fluir, sente dolorosamen:e a limi­
tação e pobreza humanas, pois nada . mais tem para
dar e não sabe que fazer.
Se bem que o amor tenha . um significado decisivo
no desejo de se dar, chega de novo a0 sofrimento. Só
este obriga o homem a crescer pouco a pouco para
além de si próprio. Só a dor o obriga a abrir-se, só
ela desperta nele as últimas energias e incita a von­
tade a esf0rços sempre novos.
O nosso amor cresce, torna-se mais forte e mais
profundo à medida que lutamos e dominamos a von­
tade, c0m nova obstinação, apesar de todos os obstá­
culos interiores e exteriores. Na dor cresce a força de
dedicação e nesta cresce o amor e, à medida que este
aumenta, adquirimos uma maior capacidade para su­
portar dores.
Já em meninos nos esforçámos por agir de acordo
com a nossa v0ntade, impondo-a sempre. A verdade .!
que se pudermos seguir a nossa vontade tudo nos pa­
rece fácil ao passo que, forçados a con:rariá-la, tudo
se apresenta difícil. Quanto mais contrariarmos a von­
tade, mais força de vontade e amor teremos de empre­
gar para conseguir a realização de uma obra. Amar a
Deus significa servi-lo, cumprir a sua vontade, signi­
fica muitas vezes ter de contrariar os desejos próprios.

A NOSSA GLORIFICAÇÃO DE DEC S

Tr-da a criação irracional presta homenagem à S1n ­


tíssima Trindade pelo simples facto da sua existênci:J..
Ela nada pode fazer que não seja glorificar a Deus.
Na harmoni:J. imensa que envolve o Senhor, glorifi­
cando-o, faltava ainda um potente acorde: a . . homena-
1 0::. O CRISTÃO E A DOR

gem do homem que sabia dizer não e pecar e, n0 en­


tanto, apesar de todos os padecimentos, responde com
um sim l ivre à vontade de Deus. Se nos sentirmos
inclinados a deixar-nos dirigir pela nossa vontade,
a fugirmos ao sofrimento , a revoltar-nos et:mtra Deus,
e contrariarmos essa inclinação , subordinando-nos à
sua vontade, o sacrifício de louvor e glorificação que
realizamos será belo e agradável a Deus.
Talvez seja até esta também uma das razões da en­
carnação de Cristo. O Filho de Deus tomou natureza
humana para partilhar da homenagem única à Santís­
sima Trindade, possível apenas ao homem. Jesus Cristo
quis elevar ao infinito essa h omenagem que da nossa
parte só podia ser limitada.
O sentido último da nossa vida está na glorificação
de Deus por meio da realizaçã0 da sua vontade. Este
nosso serviço de Deus será tanto mais valioso quanto
mais o mundo nos atrair, quanto mais o nosso cora­
ção se sentir impelido a submeter-se a essa atracção
e quanto maior for por outro lado o amor que nos
leva a cumprir a vontade divina.

O ((SACRAMENTOn DO MOMENTO

Não somos nós que determinamos como havem0s


de cumprir essa vontade psrque esse é urn direito que
Ele se reservou. Deus mostra-nos a todo o momento o
que quer de nós, o que havemos de aceitar da sua
mão, aquilo a que devemos renunciar. Só o momento
presente pode ser portad<Jr da vontade divina, da mise­
ricórdia de Deus.
Fora do momento presente, não podemos receber
misericórdia alguma, porque só aquele m" mento é
nosso. O momento presente é sempre um chamamento
divino, o portador das ordens divinas. Nele reside a
única realidade da nossa vida. Viver para o momento
A DOR QUE A GRADA A DEUS 103

pres·ente e valorizá-lo não é apenas a arte de viver como


também a de atingir a santidade.
A eternidade só pode ser obtida através do tempo
e a vida toda, momento a momento, deve ser oferecida
a Deus em sacrifício para que Ele nos dê a eterni­
dade.
Deus nã0 exige, com efeito, um sacrifício repentino
da nossa vontade, mas antes que em cada momento
que passa, nos esforoemos por progredir. O Senhor
tudo ordenou, distribuiu os sacrifícios na nossa vida
de tal modo que no ocaso da nossa existência, estejamos
amadurecidos para o céu, se tivermos obedecido à sua
vontade. A dificuldade está em não desejar ou querer
em momento algum senão o que Deus quer de nós. Se
tivermos um desejo, que seja apenas este: <<Seja feita
a tua vontade ,, (Mat., VI, 1 0). Desejo que é simultâ­
neamente a n'Jssa mais bela prece, uma vez que Deus
sé quer conduzir-nos à mais elevada glória ( l Tes­
sal., IV, 3).

A RENúNCIA NEM SEMPRE


É SACRIFíCIO

Esta renúncia à vontade própria nem sempre é um


sacrifício no sentido exacto da palavra, porque pode
não se reves:ir de dificuldades. Sabemos que não pode
chover sempre, que sem sol nenhum fruto amadurece.
Por isso Deus faz incidir sobre nós o seu sol, quer seja­
mos justos ou pecadores.
Deus não exige apenas cruz e sofrimento: por vezes,
exige-nos coisas agradáveis. que recebemos por isso
com jubilosa satisfação.
É que nã0 é possível remar sempre contra a cor­
rente, viver sempre sob pressão. A nossa natureza foi
criada para a alegria e por isso nem o santo pode viver
apenas da renúncia. Lembremo-nos que até mesmo o
. . \0 CRIST ÃQ . E A< DD&

Salvador, teve necessidade de um ; a·n jo de conso­


lação.
'
,·-·Ora a vonUtdé podi!" ser •sacrlficada quase :tiu'i'to ·pel a
aJ.egna· torii0 peRi l dôr:· ··ptféfé morrer e m toda a "parte.
Nliü - devemos procúr�r e tent-ar conservar a' alegria
apenas por si própria. Tem0s o direito de a desejar,
·
ma:s· ;Hão · de· a � fonfàr. O idéil serià riáda querer; mda
desejar, nem a·legríà nem dor.
· Há � pessoa.s
,.0 -•,o I
qu� ]ulg�m devér · viver em sacrifício
' ' f�
): ... o o � I 0

C0nstapJf!, martmzar-se sempre� pr9curar permanente-


·
mente ._ sacrifféios. o resultado é pen:lerem forças e, o

muitas vezes, . aQ serem chamadas, . não conseguem


"
cortes pon der ao ap�lo. É perígo�o este sacriff�i0 . cons �
tante, mui�o embôra Deus nos exija renúncia: Porque,
'
afinal, in teressa nú hto � tnats ' Q sacrifíFio espiritual da
'
nos sp. ·�ontade , do. que sacrifícios êxibicionistas.
. . . .
• >)·
É a\érn !=lj��o atr�viment? da n9s:5a parte querermos
tomar a iniciativa ou exagerarmos no sentido de apres­
sar o processo de renúncia e com ele o de santificação.
Ntr�e.. JX>�ro,>.O. .�elh91' ;é · if)imigo do bom. Com0 have­
nio� d,e:tCWJ.fl.r a iniciativa, por onde começar, que fazer?
Não conhecemos a nossa natureza, as leis de cresci­
mt;nto a que est�mos;sujeitos : nem . qual. a )lOssa missão
�m re!aç�o .�o !gelo. Aq�le .que toiila -isoladamente a
iniciativl:!:: va.!, cr�af,t?·' fcmentar , obstáculos, . em vez de
apjainar. . ,o. q,m.i-nhp , _a- perc�rrer. O . caminho melhor
_

nem semp�e é o. .mais;.�ifícU. mas ,aguele -que Deus es­


colheu para cada um, com as alegri.a� ,e as dores cor­
respondentes.,
cc Porque ;:veio , .João ·•.Baptista, que não comia pão,
nem bebia vinho . . . Veio o Filho do homem que come
e bebeu (Luc., VIL 33h Qual dos dois caminhos era
0 mais ·perfeito?·«Cada um deles 1seguiu O• melhor, por­

que se .conformou · com·! a :vontade de .Deus. Eis tam­


bém-,o·. que .de.v�s �eJ;:
A DOR QUE A GRADA A DEUS 1 05

OBEDECER É MORRER

Há um principio válido para os organismos vivos,


que diz que a actividade fortalece o órgão. Com efeito,
a natureza não mantém órgã0s inactivos, visto que
acabariam por atrofiar. Ora este princípio aplica-se
também à vida espiritual. A memória, por exemplo, se
for exercitada, manter-se-á dócil e pronta, e dentro de
certos limites, a sua capacidade de fixação aumentará
cada vez mais.
Idênticamente as coisas se passam no mundo s<Jbre­
natural. Se ao meu eu consciente for dado escolher,
determinar, comandar, reger, etc. , tornar-se-á mais forte,
mais poderoso ; mas se nada tiver a dizer, se tiver de
obedecer e servir, se estiver incondicionalmente subor­
dinado à v0ntade de Deus, apagar-se-á cada vez mais.
Quando teimamos em escolher os nossos sacrifícios
estamos a exercitar o eu que, em vez de morrer, se
reanima e faz com que a nossa extrema u boa» von­
tade s:: :orne o nosso phr inimigo. É um� ascese peri­
gosa esta, porque aqui o mal aparece com a figura do
anj0 da luz (2 Cor. , XI, 1 4).
Esse perigo ameaça particularmente o homem oci­
dental, extremamente activo , que se sente infeliz quando
não pode trabalhar . . Esta necessidade, este activismo,
vão também manifestar-se na vida espiritual. Prooe­
demos como se tudo dependesse de nós, como se nos
sentíssemos obrigados a conseguir algo de grande. Pre­
cisamos de encarar os factos e as suas consequências.
Ora 0 Senhor não precisa de nós, pelo menos
quando e como julgamos. u Precisa » de cada indivíduo,
caso con:rário não o teria chamado à vida e Deu� nada
faz sem sentido e sem finalidade. O Senhor « precisa»
até u muito» de todos nós, porque a cada um compete
uma missão única que só ele pode realizar. Mas como,
1 06 O CRISTÃO E A DOR

quando, onde e para que precisa Deus de nós, não o


sabem<Js ; só Ele o sabe.
A melhor maneira de ajudarmos o Senhor é, por­
tanto, uma só: procurar manter-n<Js vigilantes para nos
apercebermos da sua vontade. << Senhor, que queres tu
que eu faça? n (Actos, IX, 6). Só quando nos reduzir­
mos ao silêncio é que Ele poderá operar algo de
grandioso por nosso intermédio. Logo que a ferra­
menta se toma independente das mãos do mestre perde
para ele todo o valor e age em vão.

TRABALHO E SANTIDADE

Por vezes se não « trabalhássemos » tanto conse­


guiríamos mais. O Senhor já não tem possibilidade
de agir quando nos encontra cheios de nós e das
nossas ocupações e quase deixa de poder interferir na
nossa vida. A actividade humana é necessária, é certo,
porque se assim não fosse nem mesmo a Igreja poderia
ser governada. Todavia nã<J podemos realizar essa
actividade como se ela partisse de nós, mas inspi­
rada e levada a cabo pelo espírito e pela vontade d e
Deus. Se assim não fosse, poderíamos dar grandes
passadas , mas fora do caminho. «Ü espírito é o que
vivifica, a carne para nada aproveita» (João, VI, 63).
Além de tudo o mais, num esforço pessoal gastamos
demasiadas forças de que depois não podemos dispor
para a realização das incumbências divinas.
Cada um de nós deve esforçar-se pois p0r realizar o
melhor possível aquilo de que Deus o incumbiu e n o
lugar que lhe foi destinado, não pelo valor d o acto e m
s i , mas porque Deus o encarregou dessa missão. Nunca
trabalhamos bastante para Deus. A nossa dependência
d'Eie não deve incapacitar-nos para este mundo e,
assim, um bom cristão não deve ser um mau traba-
A DOR Q UE A GRADA A DEUS 107

lhador. Pelo crmtrário , porque trabalha precisamente


para o Senhor e neste mundo é por meio do trabalho
que queremos merecer a vida eterna, temos de realizar
um esforço para que ninguém nos supere nas nossas
tarefas terrenas. Cada um de nós deve esforçar-se ao
máximo por cumprir as suas tarefas o melhor possível,
sem temer sacrifíci0s, por grandes que sejam. Desde
que se trat{\ de cumprir o dever, a cruz e a dor não
devem assustar-nos.
Mas em caso algum nos devemos tomar depen­
dentes do êxito alcançado no trabalho, como se só
ele interessasse. Nesse êxito espreita-nos o perigo de
n0s tornarmos orgulhosos, vaidosos, vítimas de uma
cegueira que nos diz que o sucesso obtido tudo pennite.
O êxito alcançado por grandes e sobretudo visíveis
sacrifícios não pode abrigar a santidade, como pode­
mos verificar pelo exemplo da Sagrada Família em
Nazaré. As três pessoas mais santas que já existiram
sobre a Terra levaram uma vida tão simples que todos
por lá passaram sem lhes dar atenção. Quando Filipe
disse a Natanael que tinham encontrado aquele de
quem tinham escrito Moisés na lei e os profetas, Jesus
de Nazaré, filho de José (J oão, I, 45), Natanael não
quis crer nesse Messias. Era natural de Caná, uma
pequena aldeia junto de Nazaré e achava que se assim
fosse já teria ouvido falar dele. Não compreendia quem
poderia ser esse Messias, nem a que família perten­
ceria.
Deus procurou sempre que à volta de Jesus se não
levantassem grandes rumores, como à volta de João
Baptista. (( E o temor se apoderou de todos os seus
vizinhos ; e divulgaram-se todas estas maravilhas por
todas as montanhas da Judeia ; e todos os que as ouvi­
ram, as ponderavam no seu coração, dizendo: que virá
a ser este menino? '' (Luc., I, 65).
1 08 O CRISTÃO E A DOR

.Em Belém poderia ter-se falado do que diziam os


pas�ores acerca das aparições angélicas e da visita da­
qúeles estranhos homens do Oriente. Mas logo caiu
S'lbre Belém e arredores a grande dor da matança dos
inocentes. Todos tinham as suas preocupações e talvez
11inguém tivesse notado que a família de José desapa­
recera sem deixar vestígios.
Ter-se-ia falado também se São José, de ac'Jrdo
com o seu primeiro plano, tivesse regressado do Egipto
a Belém; mas então foi aconselhado em sonhos a ir
para Nazaré (Mat., li, 22 e seg.). Aqui é possível
que tivessem falado sobre o novo carpinteiro recém­
-chegado do estrangeiro com a mulher e o filho , mas
como a família nada tinha de sensacional em breve se
devem ter cansado de se ocupar dela.
A Sagrada Família não se evidenciava pois em coisa
alguma ; se assim não fosse, os habitantes de Nazaré
nã'l se teriam admirado quando o Salvador entrou pela
primeira vez na sinagoga, nem se mostrariam confu­
sos: « De onde lhe vem esta sabedoria e estes milagres?
Porventura não é este o filho do carpinteiro? Não se
chama sua mãe Maria? . . . Donde vem pois a este todas
estas coisas? n (Mat., XIII, 54, 57). Todos se Fentiam
nfendidos, pois ele não estudara e evidenciava-se,
quando todos sabiam de onde vinha e lhe conhe­
ciam . os parentes. Nunca fizera nada de sensacional,
não . tinha parentes ricos . . . E nã'l acred itaram nele
(Mat., XIII, 5 8).

A VERDADEIRA GRANDEZA

A santidade não está p'lis nos grandes feitos, nos


grandes sacrifícios, mas no cumprimento da vontade
divina.
Naaman, chefe do exército da Síria, viu-se atacado
de lepra e retirou-se para Samaria para que o profeta
A DOR Q UE A GRADA A DEUS 1 09

Eliseu o curasse. Quando chegou em frente da casa


do profeta com grande comitiva e muitos presentes,
Eliseu mandou-lhe dizer por Giezi, seu criado, que se
lavasse sete vezes no Jordão e sararia (4 Reis , V, 10).
Naaman agastou-se e pensou que Abana e Farfar� rios
de Damasco, eram melhores que as águas de Israel.
'
Afastou-se, mas os servos chegaram-se · a ele e disse­
ram-lhe: (( Pai, ainda quando o profeta te hoüvesse
ordenad0 uma coisa muito difícil. Quanto mais agora
que ele te disse: Lava-te e ficarás limpo! ))
Assim é. Se o profeta lhe tivesse exigido uma coisa
grande, difícil ou dispendiosa, uma operação difícil ou
uma cura cara em termas célebres, Naama·n teria se­
guido sem hesitar as suas indicações; mas uma coisa
tão simples, tão comum, não lhe mereceu a atenção.
O caso de Naaman repete-se frequentemente. Os
grandes sacrifícios parecem ser aceites com maior
agrado do que os pequenos, isto porque os primeiros
nos satisfazem a vaidade. São poucas as pessoas que
conseguem fazer os pequenos sacrifícios do dia a dia,
guardar a fidelidade em pequena escala. Muitos ho­
mens esperam toda uma vida pelo grande momento
em que Deus os chamará para algo de grandioso. Mas
como hão-de desempenhar-se da incumbência d ivina se
passaram a vida, por assim dizer, numa sala de espera,
confiados na chegada de algo excepcional só a eles
dedicada? Esperam e tornam a esperar e de repente
acaba-se a vida. Não fizeram coisa alguma, nem grande
nem pequena.
Ser grande nas coisas grandes não é difícil porque
nos atrai a grandeza da missão, mas sê-lo nas peque­
nas coisas, isso sim, é verdadeira grandeza e verda­
deira santidade. É este caminho pequeno e obscuro
da fidelidade no cumprimento dos deveres quotidianos
que conduz à santidade. (( Se alguém quer vir após mirn,
·

tome a sua cruz)) (Luc., IX, 23).


1 10 O CRISTÃO E A DOR

MEDIDA SOBRENATURAL

Estamos demasiado presos ao mundo quando de­


veríamos medir tudo por padrões sobrenaturais. E che­
gamos até por vezes a medir o sobrenatural por pa­
drões terrenos e é por isso que nos sentimos tão tris­
tes, tão abatidos quando não vemos êxito visível nos
nossos esforços por progredir na religião. Como con­
sequência , há muitos que desistem porque julgam não
atingir a meta.
Em muitos homens Deus tem de remover entulho
antes de começar a edificar. À salvação de alguns tor­
na-se mesmo necessário que sejam mal sucedidos, que
não tenham êxitos externos, apesar da sua boa von­
tade. São aqueles que se têm em grande conta, que se
j ulgam s�periores, capazes de beber o cálice com o
Senhor (Marcos, X, 3 8), de o acompanhar à prisão e
à- morte (Luc., XXII, 3 3). Os êxitos visíveis tornaram­
·
-nos ainda mais vaidosos e afastam-se cada vez mais
-
de Deus. Alguns precisam de cegar para começar a
ver. (( Para mim foi bom, Senhor, que tu me humi­
lhasses >> (Salmo CXVIII, 7 1 ). A derrota externa é
muitas vezes condição fundamental para edificação
'-
interior e chega mesmo já a sê-lo.
Socialmente mede-se o valor dos homens apenas
pelos seus feitos. Todo aquele que consegue algo, que
vence, tem o d ireito de viver; os inúteis já não pos­
suem esse direito. Quem tem êxito é bom, quem sofre
derrotas é mau.
Nunca nos devemos deixar guiar, porém , por tais
princípios. O êxito ou o insucesso no trabalho não de­
pendem em muitos casos do valor d e um homem, mas
d e condições e circunstâncias internas e externas que
estão quase sempre fora do alcance da vontade e poder
humanos. Trabalhar com insucesso, semear a chorar
é um dos sacrifícios mais duros que Deus pode impor-
A DOR QUE A GRADA A DEUS lll

-nos. Perseverar n o seu posto apesar de todos os insu­


cessos e continuar a cumprir incansàvelmente o seu
dever é autêntica santidade.

ÊXITO E INSUCESSO

Espiritualmente, o insucesso é muitas vezes uma


cura da vaidade, a demonstração de que somos apenas
cinza e pó (Job., XXX, 1 9). Outras vezes o insucesso
é para o Senhor um eficaz meio apostólico. Manda
semear aqui, com lágrimas , para colher além, com ale­
gria. Chegamos assim ao provérbio : (( U m é o que
semeia, e outro o que sega)) (João, IV, 37). A graça
não está presa ao tempo e ao lugar; ultrapassa-os,
transcende�os. Nunca é mal sucedida; mas age muitas
vezes mais tarde e em lugares diferentes.
A vida do Divino Mestre é a mais bela demonstra­
ção de que a santidade não se manifesta necessária,
incondicional e imediatamente por êxitos externos, visí­
veis; palpáveis. O que Ele semeou só mais tarde e nou­
tros lugares deu frutos, trinta, sessenta e cem vezes
mais. Todos nós somos afinal frutos a amadurecer, na
sua imensa sementeira de dor. Do ponto de vista hu­
mano, o êxito da sua actividade foi muito limitado.
Teve alguns sucessos com os seus milagres mas não
foi de modo algum um pregador bem sucedido. Na
sinagoga de Cafarnaurn, após o primeiro sermão euca­
rístico, ficaram-lhe talvez uns doze ouvintes e em Na­
zaré fizeram-no mesmo descer do (( pülpito ll . No fim
da vida, quando morreu na cruz, poucas eram as pes­
soas que o apoiavam e estavam prontas a morrer com
Ele. Também pois o Salvador, o mais santo dos filhos
do homem, teve de realizar por vontade do Pai o sacri­
fício de renunciar a êxitos visíveis.
Tal como o Divino Mestre, alguns santos sofreram
a par de grandes sucessos externos, enormes derrotas.
1 12 O CRISTÃO E A DOR

Já se disse que os êxitos são um carisma próprio.


As tentativas missionárias de um São Francisco de
Assis, de •um Santo Inácio de Loyola falharam por com­
pleto, a segunda cruzada pregada por S. Bernardo de
Claraval foi um grande insucesso e outros santos houve
que não tiveram grandes feitos ou êxitos a assinalar.
Por vezes, nem mesmo aqueles que mais directamente
os cercavam, se davam conta de uma especial santi-
·

dade.
Santa Teresinha do Menino Jesus, após uma dolo­
rosa punção, es:ava a descansar quando ouviu vozes
na cozinha. Falavam da sua morte que não vinha l onge
e da perplexidade em que iria achar-se a abadessa para
falar dela nas actas do convento, pois Santa Teresi­
nha era amável, mas nada tinha digno de menção
(Knapp). O mesmo se passou com S. Conrado de
Parzham; e Lúcia Cristina, mãe de cinco filhos, levou
uma vida mística intensa, sem que o marido e os filhos
se dessern conta.
A santidade não reside poís na grandeza , do sacri­
fício, do êxito, mas antes na do amor com que se vive
e quer a vontade de Deus. O valor do sofrimento, da
renúncia, está principalmente em que a força de - von­
tade, isto é, do amor, é por assim dizer cons:ante­
mente incitada pelos obstáculos que surgem, para os
venoer. É assim que o amor se desenvolve cada vez
mais.
ALEGRIA NA DOR ?

Nunca poderemos afastar a dor ou vencê-la neste


mundo, porque o seu mistério é demasiado profundo.
demasiado obscuro e ainda porque nada há que mais
repugne à nossa natureza. Deus criou-nos para a ale­
gria, para a felicidade, e poderíamos levar todos no
paraíso um vida sem dor. sem sofrimento, plena de
satisfação, de felicidade, de bem-aventurança. E do
paraíso terreno passaríamos sem luta, sem d0r e sem
morte para outro ainda mais belo e eterno.
O pecado dos nossos primeiros pais trouxe, porém.
o sofrimento ao mund0 como elemento novo. mas
Deus não transformou a natureza humana, adaptan­
do-a à cruz. Não, ela continua, tal como dantes, feita
para a alegria. E é esta a grande tragédia da nossa
vida. Criados para a alegria , vemo-nos forçados a su­
portar a d0r, dia a dia. Por isso, a nossa natureza
nunca pode acomodar-se ao sofrimento, tem de lutar
e, por si, tem sempre tendência para repel ir a dor.

O CORAÇÃO HUMANO
SEDENTO DE ALEGRIA

Também os santos, homens como nós, não podem


aceitar o sofriment0 a partir da sua natureza humana
e não conseguem recebê-lo sempre com alegria. Nem
sempre podemos dizer que quanto maior é a santidade.
maior é a alegria com que se aceita a dor porque esta
dificilmente será compatível com aquela. Quando gran-
1 14 O CRISTÃO E A DOR

des padecimentos afligem o homem quase deixa de


haver l ugar para a alegria.
Nem mesmo o Salvador divino pôde aceitar com
alegria os padecimentos do Getsemani. (( E começou a
sentir pavor e angústia» (Marcos, XIV, 3 3). ((A sua
alma estava numa tristeza mortah (Marcos, XIV, 34).
Dizia a sua prece: (( Meu Pai, se é possível passe de
mim este cálice» . E acrescentou: <<Todavia não se faça
como eu quero mas sim como tu queres )) (Mat. XXVI,
39). ((Com grande brado e com lágrimas, preces e sú­
pl icas ao que podia salvar da morte» (Heb., V, 7).
O Pai envir:m-lhe então um anjo que o fortaleceu
(Luc., XXII, 43). Apesar desse conforto veio depois
sobre ele um medo tal da morte que o suor lhe caía
no chão como gotas de sangue (Luc. , XXII, 44) e pro­
curou consolação não só junto do Pai como também
junto das criaturas e dos apóstolos.
Aliás, os homens, mesmo os apóstohs, foram
para ele um pesado encargo. As suas horas mais belas
foram aquelas que passou sozinho, no silêncio e soli­
dão da noi�e e dos montes em diálogo íntimo com o
Pai. Mas na hora do suplício custou-lhe separar-se
dos apóstolos. Pouco se afastou deles para ficar ao
menos ao alcance da sua vista e ouvido. Procurou-os
três vezes, em busca de consolação que não conseguiu
encon�rar, pois a Sagrada Escritura diz que eles dor­
miam (Luc., XX, 45 ; Marcos, XIV, 4 1 ).

A DOR E A ALEGRIA

Sobre�udo quando se trata de sofrimento espiritual


torna-se claro que uma dor profunda não deixa lugar
à alegria. Nas dores físicas , o amor ou o recolhimento
podem ser tão intensos que quase não as deixam sentir.
A LEGRIA NA DOR:' 115

Assim, sabemos que S. Lourenço, com o corpo esfa­


celado sobre uma grelha em brasa, ainda conseguia
gracejar. San:a Perpétua nem se recordava dos pade­
cimentos sofridos na arena. E S. Paulo disse: « Estou
chei'} de consolação, estou inundado de alegria no meio
de todas as nossas tribulações)) (2 Cor., VII, 4).
Mas tudo isto são excepções porque na maior
parte das pessoas a dor física apaga a alegria no cora­
ção. E Deus já se satisfaz quando· aceitam0s os padeci­
mentes com paciência e resignação , muito embora sem
alegria.
Visto que é extremamente valiosa, a dor deve ser
aceite com alegria. u Deus ama o que dá com alegria •
(2 Cor., IX, 7). Mas nunca devemos procurar a dor
pela dor, porque se o fizermos merecemos a censura
que tantas vezes nos atiram em rosto de estarmos em
oposição à vida, de a detestarmos. A salvação não está
na dor em si. N ão podemos procurar a santificação
através da dor corno o fazem os faquires indianos. :1\ós
apreciamos a saúde e não a doença, a beleza e não
a fealdade, a alegria e não a dor. Mas se esta nos
tocar, é nosso dever aceitá-Ia da mão de Deus, mesmo
que a tenhamos causado por nossa própria culpa. E
não obstante, somos obrigados também a fazer tudo
o que for razoável e estiver ao nosso alcance para
vencer a enfermidade.
Ora o que se passa com a doença deve acontecer
também em relação a outros sofrimentos que nos afli­
gem. Há que tentar, na medida do possível, afastá-los
de nós e dos outros, d efendermo-nos deles, muito
embora saibamos que apesar de todos esses esforços
muito há d e inevitável e irremovível. São essas cruzes,
dores e doenças, muitas vezes em grande número que
temos de saber aceitar sem rebelião da nossa parte,
visto que seria inútil recalcitrar contra o aguilhão
·
I IG O CRISTÃO E A DOR

(Act'J s, IX, 5) e só conseguiríamos dar origem a novos


sofrimentos.
Aceitemos pois a doença e a dor apenas na medida
em que nos são necessárias e inevitáveis.

N ÃO É APENAS A R ELIGIÃO DA CRUZ

A dor não é pois para nós uma fonte incondicional


de alegria, p0is não a amamos por si mesma, não a en­
caramos como final idade mas como meio. A nossa
religião é a religião da cruz, mas não reside nes�a o
seu sentido último.
Disse uma vez alguém que a vinda do Salvador
tornara a vida dos homens infinitamente mais d ifícil .
Aparentemente, a afirmação parece ser verdadeira.
A vida do homem, antes de Cristo. era já cruz, dor
e miséria e Ele veio acrescentar novos padecimentos
aos antigos. O caminho da nossa vida tornou-se ainda
mais estreito e mais íngreme. Não nos trouxe Cristo
toda uma série de mandament0s e proibições'? Em
vez de (( olho por olho, den:e por dente n (Êx., X X I , 24)
não exigiu : ((Amai os vossos inimigos, fazei bem aos
que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e calu­
niam n (Mat., V, 44)? Se antes apenas o feito externo
era proibido, agora exigia-se a pureza até no mais ín­
timo do coração (Mat. , V, 27 e seg.).
Terá então o Salvador vindo, efectivamente, para
tornar-nos a vida ainda mais difícil do q ue já era? Não
pode ser este na verdade o sentido da redenção. Cristo
veio ao mundo para nos l ivrar do pecado e não da
cruz e da dor, mas veio também para nos tornar mais
fácil a vida e principalmen:e para nos ajudar a trans­
portar a cruz. <CVinde a mim :odos os que trabalhais
e vos achais carregados, e eu vos aliviarei n (Mat., X L ,
28). Nele encontraremos descanso para as nossas almas
ALEGRIA NA DOR? 1 17

(Mat., XI, 29). Veio para n os dar a sua paz, não como
a dá o mundo que diz: Paz. paz e afinal não é paz
(Jer. , V I , 1 4). <<Dou-vos a minha p�z)) (João, XIV. 27).
Quis transmitir-nos a s u a alegria, uma alegria divina,
celestial : « Disse-vos estas coisas para que a minha ale­
gria seja em vós. e para que a vossa alegria seja com­
pleta )) (João, XV, 1 1 ). Devíamos ter em nós a sua ale­
gria, em toda a perfeição (João, XVII, 1 3) .
Temos de proceder com decisão e não recuar
covarde e dolorosamente perante qualquer sacrifício
que nos é ex igido ou an�e cada obstáculo que se le­
v�nta il nossa natureza. Mas, il medida que crescermos
no amor por meio de um domín i o paciente e corajoso
da dor, verificaremos que a nossa re' igiã"l é mais ale­
gria do que cruz. Se vivêssemos pelo espírito, não sen­
tiríamos tanto o peso dos sacrifícios e poderíamos dizer
cem o S. Paulo: « Em tudo sofremos tribulação, somos
cercados de dificuldades, somos perseguidos, somos
abatidos, trazendo sempre em noss"l corpo a mortifi­
ca<:ão de Jesus)) (2 Cor. , I V , 8 e seg.) e no entanto
trazemos no coração a paz de Deus que transcende
todo o mensurável (Fil., IV, 7).

TODA A DOR É TRANSITóRIA

A dor é sempre e apenas meio e caminho que c�n­


duz il meia . é apenas uma passagem. Para os cristã'lS
n unca as trevas cerradas cobrirão o mundo. A noite
ele Getsemani e do Gólgota - « e escureceu-se o sol ))
( Luc., X X I I I , 45) - é sempre iluminada pela luz cre­
ruscular da manhã de Páscoa que se avizinha. Há
sempre uma luz pascal a il uminar as trevas da nossa
dor, pois nós não podemos ver apenas a cruz presente :
o noss; olhar deve estender-se um pouco para além

do tempo e contemplar a eternidade gloriosa.


1 18 O CRISTÃO E A DOR

Se deixarmos cair um raio da luz pascal da glória


eterna no dia a dia cinzento da nossa vida, tudo pare­
cerá mais fácil. Mas não esqueçamos que em todas as
vidas há uma Sexta-feira da Paixão e todos nós temos
de sofrer esse dia, quer queiramos quer não. Temos
apenas a liberdade de escolher essa dor no mundo ou
na eternidade. Como são insensatos os homens que
compram um p<Juco de fel icidade terrena pelo preço
da dor eterna! Aqueles porém que sofrerem no mundo,
depressa verão o dia de Páscoa que não conhece anoi­
tecer.
A D O R E A SANTA MISSA

A dor que paira sobre nós como pesado e muitas


vezes inconcebível encargo pode tornar-se compreen­
sível e� todo o seu sentido e significado, por intermé­
dio da Santa Missa.
A n0ssa vida deve ser um serviço espiritual de Deus.
Devemos oferecer os nossos corpos como uma hóstia
viva, santa, agradável a Deus (Rom., XII, I ) visto que
ao Senhor não agradam sacrifíci0s de novilhos de um
ano, mil carneiros ou muitos milhares de bodes gordos
(Miqueias, VI, 6 e seg.). Quer antes o sacrifício de nós
próprios, mas não lhe agradàmos tal como somos, terre­
nos, pecadores e mortais. (( A carne e o sangue não
podem possuir o reino de Deusn ( 1 Cor., XV , 50).
Só Jesus Cristo pode ser o mediador en:re nós e
o Pa"i, ((há um só mediador entre Deus e os homens.
que é Jesus Cristo homem n ( I Tim., 11, 5 ; Hebreus,
IX, 1 5). Só por Ele podemos chegar ao Pai (João, XIV ,
6), só através d'Ele nos podemos tornar sacrifício santo,
imaculado e inocente para Deus (Co!. , I, 22), e alcançar
a perfeição (Co! . , I , 28).

OBRIGADOS AO SACRIFíCIO

Como criaturas que somos pertencemos a Deus e


estamos obrigados a rec0nhecê-lo, através do sacrifício.
como nosso Deus e Senhor supremo. Não é em vão
que pertencemos a um « sacerdócio realn (I Pedro, 11, 9).
Já os pagãos sentiram muito cedo que nós não p0de-
1 20 O CRISTÃO E A DOR

mos passar logo da charrua ou do ofício para o altar


de Deus, cobertos, por assim dizer, com a poeira do
dia a dia. Por isso escolheram os melhores, os mais pie­
dosos e os mais inteligentes dos seus homens e disse­
ram-lhes que se encarregariam da sua manutenção, para
que nada tivessem que ver com os cuidados quotidia­
nos. Em troca, eles viveriam separados do mundo. em
regime de pureza e santidade , aproximando-se dos deu­
ses e apresentando-lhes os sacrifícios do seu povo.
Também o sacerdote católico é delegado do povo,
escolhido por este e por Deus (João. XV, 1 6). Tomado
de entre os homens, o sacerd'}te é constituído a favor
deles naquelas coisas que se referem a Deus (Hebreus,
V, 1 ). Quando o sacerdote se aproxima do altar, rea­
liza o sacrifício não só em seu nome, como no daque­
les que o encarregaram de o fazer, ou n0 da comuni­
dade que lhe está confiada. Por isso não é só o sacer­
dote que tem por missão tratar dos donativos para o
sacrifício, mas também os crentes pelos quais esse sa­
crifício é oferecido.
E o que devem ser esses d0nativos? O pão e o
vinho não são dádivas próprias para Deus e o Senhor
aprecia-as ainda menos que os sacrifícios mais valiosos
do Velho Testamento, que recusou: " Nã0 receberei da
tua casa bezerros, nem cabritos dos teus rebanhos.
Porque minhas são todas as feras das selvas, os ani­
mais nos montes, aos milhares. Conheço todas as aves
do céu ; é minha a formusura do campo. Se tiver fome
não to direi a ti; porque minha é a redondeza da Terra
e a sua plenituden (Salmo XLIV, 9 e seg.).
Visto que Deus sacrificou por nós o que de melhor
possuía, o seu próprio Filho, é da mais elementar jus­
tiça que também nós sacrifiquemos por Ele o que de
melhor possuirmos, aquilo a que atribuirmos mais
valor. Compreenderam-no também os pagãos. Por des­
locado que seja o sacrifício humano, a verdade é que
A DOR E A SANTA MISSA 121

ele implica algo d e muito profundo. Nem sempre eram


sacrificados apenas os escravos ou prisioneiros de
guerra ; antes da segunda guerra púnica (2 1 8-2 1 0 A. C.) ,
os cartagineses sacrificaram a Moloch, o ídolo da cida­
de, duzentos mil rapazinhos de dez anos, das mais dis­
tintas famílias da cidade. As mães cartaginesas ama­
vam tanto os filhos como as nossas; mas aos deuses era
necessário sacrificar o que de melhor possuíam.
E assim como Abraão devia sacrificar a Deus o
que de melhor tinha, seu filho Isaac, também nós, na
Santa Missa, devíamos c0locar-nos a nós próprios na
patena como sacrifício. Abraão teve a permissão de
sacrificar um bode em vez do filho e nós apresentamos
a Deus por nós mesmos, o pão e o vinho. E a cada
sacrifício nós, sacerdotes e crentes, devíamos pensar
que eles não sã0 mais que substitu�os de nós próprios.
A prece de sacrifício u Suscipe, sancte Pater - Aceita,
santo Pai . . . )) não deve ser pronunciada apenas como
oração, mas antes ser acompanhada de um acto de
sacrifício. E esse sacrifício não é mais do que o sacri­
fício do nosso eu.

O SACR I FíCIO DO DIA

Mas este sacrifício espiritual do nosso eu na Santa


Missa não chega e tem de ser transformado em acto
no decorrer do dia. Devemos demonstrar por acções
que a nossa intenção de sacrifício a Deus oferecida
pela manhã era s incera e por isso, pelo dia adiante,
devemos considerar-nos como sacrificad0s à vontade
do Senhor. " Eu te mostrarei, ó homem, o que te é bom,
e o que o Senhor requer de ti; é que tu obres segundo

a justiça, e que ames a misericórdia e que andes solí­


cito com o teu Deus )) (Miqueias, VI, 8).
1 22 O CRISTÃO E A DOR

Segundo S. Paulo não nos devemos já conformar


com o mundo, mas antes reconhecer qual é a vontade
de Deus, o que é boin, agradável e perfeito (Rom . ,
XII, 2).
Tudo isto significa que nã0 interessa que sejam fei­
tos sacrifícios de sangue e fogo , mas que sacrifiquemos
a Deus a nossa vontade. E esse sacríficio, que fizemos
pela manhã na Santa Missa e pelo dia fora no altar
dos nossos deuses implica a aceitação da mão do Se­
nhor de tudo o que o dia nos trouxer de cruz e dor,
de deveres e missões.

A ESSÊNCIA DO SACRIFíCIO

Nós Iimitámos demasiado a noção u sacrifícioll e


por isso a deturpámos. Em sentido geral , sacrificar sig­
nifica dar, oferecer a alguém uma coisa que é nossa.
Ora dar o que nos pertence é sempre mais ou menos
difícil e sentimo-lo de cada vez que o fazemos. É pre­
cisamente nessa dificuldade que nós vemos a essência
do sacrifício, mas sem razão.
O que Deus eúge de nós como sacrifício é que es­
queçamos a nossa vontade. Algumas vezes fá-Io-emos
com grande dificuldade, mas outras, muitas até, não
chegará a ser u sacrifício» no sentido que costumamos
atribuir à palavra. O que Deus exige então de mim é
uma grande alegria, corresponde exactamente aos meus
desejos. Será lícito neste caso recusar o que Deus nos
oferece, por ser belo e agradável , e escolher algo que
contrarie a nossa natureza humana? Quem nos dá o
direito de o fazer? Quem melhor que Deus sabe o que
lhe é útil e agradável?
Podemos é certo recusar as alegrias que o Senhor
nos envia e tomar o encargo de sacrifícios pesados que
esgotem as nossas forças; mas, no dia seguinte, estas
A DOR E A SANTA MISSA 1 23

faltar-nos-ão para tomar a cruz que Ele nos enviar.


Não será pois melhor e mais perfeito aceitar a alegria
da mão de Deus, com gratidão, para mais tarde poder
levar corajosamente a cruz que Ele nos deu empre­
gando as forças adquiridas no período de descanso?
E é nesta oferenda a Deus da nossa vontade, na
renúncia aos nossos desejos, que reside a essência do
sacrifício. Fazê-lo com alegria ou d0r é secundário
porque é possível sacrificarmos a nossa vontade nas
alegrias que Deus envia e impô-la nos sacrifícios que
procuramos.
Deus não hesitará, com certeza, no seu amor por
nós, em enviar-nos a cruz necessaria à nossa salvação.
(( Ele castiga-nos tanto quanto é útil para nos tornar
participantes da sua santidade n (Hebreus, XII, 6- 1 0).
O Senhor não n0s poupará os sacrifícios necessários
à nossa salvação e de nada vale pois querermo-nos
adiantar. Basta estarmos sempre prontos. E não esque­
çamos que Deus não nos envia provações que ultra­
passem as nossas forças.

OS SACRIFíCIOS DOS PECADORES


E DOS JUSTOS

Também aos pecadores nada é furtado, porque


ninguém consegue fugir ao maior dos sacrifícios, à cruz
e à dor. Os sacrifícios impostos pela época, suas cir­
cunstâncias e acontecimentos , pelas condições clima­
téricas e pela profissão têm de ser aceitos por todos
os homens quer queiram quer não. O sol brilha com
a mesma intensidade para justos e pecadores e as difi­
culdades da profissã0 de mineiro, por exemplo, são
tão árduas para aqueles como para estes. No entanto,
os pecadores podem fugir a alguns sacrifícios, sem te­
rem conseguido mais do que ganhar naquele momento
acabando por ter de aceitar sacrifícios maiores.
1 24 O CRISTÃO E A DOR

Todos os homens transportam a sua cruz, todas as


vidas humanas são caminhos do calvário e compramos
tudo, o céu e até o inferno, pelo preço da cruz e da
dor. O pecado também custa ((sacrifícios )) embora na
maior parte das vezes eles só surjam depois. Quantas
vezes se sacrifica por ele a fortuna, a saúde, o bom
nome, a família, a vida e até a glória eterna! Quase
sempre Deus exige primeiro os sacrifícios e dá a recom­
pensa depois. Satanás recompensa antes e exige depois
os sacrifícios.

OFERTAS DIGNAS DO SENHOR

Quando queremos dar alguma coisa é necessário


que esta seja, de certo modo, adequada à pessoa a
quem se destina. A nossa oferta do pão e do v inho
não pode ser uma oferta digna de Deus e por isso a
Igreja manda o sacerdote rezar depois do sacrifício
para que as nossas dádivas sejam abençoadas com ri­
queza, aceitáveis, legítimas e dignas.
Cristo ouve então as nsssas preces e vem em auxí­
lio da nossa pobreza. A�ravés da boca do sacerdote,
pronuncia as palavras que transformam os nossos d·ms
terrenos : <<Este é o meu corpo . . . Este é o meu sangue)) .
Por seu intermédio , possuímos agora um dom d i gno
do Senhor e nem o céu com todos os seus anjos e san­
tos da Santíssima Trindade pode apresentar um que
seja mais digno.
Estes dons transformados , digníssimos de Deus. nã0
pertencem apenas ao sacerdote sacrificante. mas a todos
os crentes que o acompanharam pelo menos em espí­
rito. O Salvador disse uma vez: u A�é agora não pedis­
tes nada em meu nome. Em verdade, em verdade vos
digo que, se pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu
nome, Ele vo-Ia dará )) (João, XVI , 23 e seg.). Se ai-
A DOR E A SANTA MISSA

guma vez pedirmos ao Pai em nome de Jeus, façamo-lo


após a transubstanciação.
Após a santa transubstanciação podemos por assim
dizer apresentar ao Pai do céu levando Cristo nas mãos
como dom e pedir-lhe misericórdia pela nossa miséria,
pela nossa dor, não por nós mas pelo Filho. Só nesse
momento em que lhe levamos oferta tão infinitamente
preciosa, o Pai nos ouvirá de certeza. E Deus não
pode dei xar-se ultrapassar em magnanimidade.
Mas as n0ssas oferendas de pão e vinho são, na ver­
dade, apenas substitutos, dons simbólicos por nós pró­
prios. Ora, tal como as nossas oferendas, também nós
não somos dignos de Deus e por isso devemos orar
na Santa Missa para que tanto as nossas oferendas
como nós próprios sejam santificados, purificados e
dignos do Senhor. Devemos pedir fervorosamente ao.
céu para que também nós sejamos transubstanciados.
Só que em nós essa transformação não será imediata
com0 no pão e no vinho, mas levará toda uma vida.
Se de facto celebrássemos a Santa Missa com ver­
dadeiro espíri:o interior, ela tornar-nos-ia cada vez
mais santos e, portanto, .mais agradáveis a Deus. Ca,da
Sant0 Sacrifício nos uniria mais a Cristo e passaríamos
a ser melhores do que havíamos sido no dia anterior;
e, se após ele fôssemos melhorados para as nossas ta­

refas diárias, no fim da vida a transformação em Cristo


seria completa.
O sentido do sacrifício não está na renúncia a um
pouco de pão ou a umas gotas de vinho. De que ser­
viriam eles a Deus? Apenas lhe dávamos uma coisa
que já é sua, de d ireito, que nos foi emprestada para
uso diário. O sentido deste primeiro sacrifício, ofe­
renda terrena de pão e vinho, é criar o fundamento,
a base do verdadeiro sacrifício e da glorificação. Pri­
meiramente Cristo transubstancia as oferendas que sa-
1 26 O CRISTÃO E A DOR

criticamos para que elas possam ser apresentadas a


Deus com dignidade e agrado.

SACRIFíCIO - TRAN SUBSTANCIAÇÃO

Sem sacrifício não há transubstanciação. Por isso,


as hóstias que ficam na sacristia não são transforma­
das. Quanto mais hóstias sacrificarmos, tantas mais
serão transubstanciadas p')r Cristo. A nossa missão é
u sacrificar» , a de Deus consagrar. Podemos apenas
« sacrificar» , nunca transubstanciar, visto que só Ele
o pode fazer. Cristo depende de nós pelo «sacrifício n e
nós dependemos d'Ele pela transubstanciação.
Logo que o pão e o vinho são sacrificados perten­
cem a Deus e já não podem servir para uso terreno.
Uma vez transubstanciadas, as oferendas sacrificadas
serão ainda mais propriedade de Deus e unificar-se-ão
com Ele.
O que se passa na Santa Missa passa-se também
na nossa vida. Através do sacramento do baptismo
fomos· sacrificados e consagrados a Deus e por isso não
temos quaisquer direitos de dispor de nós. u Porventura
não sabeis que não pertenceis a vós mesmos? n ( l Cor. ,
VI, 1 9).
Mas a total união com Deus só a conseguimos,
quando deixamos de nos servir a nós próprios, para
passar a servir o Senhor. Quanto mais nos sacrificar­
mos tanto mais nos uniremos a Deus por intermédio
de Cristo. Também aqui, não haverá u transubstancia­
ção» sem « sacrifício» , e a nossa missão será sacrificar.
Não há homem algum que possa divinizar-se a si pró­
prio. Dependemos por isso de Cristo, mas Ele não
poderá realizar o milagre da transubstanciação se não
nos colocarmos livre e conscientemente no altar do
Senhor: nisso consistirá o nosso sacrifício. Só na me-
A DOR E A SANTA MISSA 1 27

dida em que sacrificarmos a n ossa vontade poderemos


viver a transubstanciação por intermédio de Cristo.
Aquilo que pum assomo de independência e egoísmo
gastarmos connosco nunca poderá ser transubstanciado.
u Quem gastar a vida consigo perdê-Ia-á» (João, XII, 25)

No Antigo Testamento, cada um dos sacrifícios era


determinado e prescrito com exactidão. u Se vós ofe­
receis uma hóstia cega para ser imolada, não é 'isto
mau? E se ofereceis uma que é coxa e doente, não é
isto mau? Oferece estes animais ao teu governador, a
ver se eles lhe agradarão, ou se ele te receberá com
agrado, diz o senhor dos exércitos » (M� , I, 8).
Também na Santa Missa as oferendas estão deter­
minadas com exactidão : pão de trigo e vinho de uvas.
E na missa da nossa vida as coisas passam-se do
mesmo modo. Não somos nós que escolhemos as ofe­
rendas. Sacrifícios de sangue e de fogo, por grandes
que sejam, não os aceita o Senhor da nossa mão, não
são oferendas consagradas. Recordemos as palavras
do Senhor ao profeta : u Quem há entre vós que feche
as portas e acenda o lume do meu altar em vão? . . .
Nem eu receberei algum donativo da vossa mão»
(Mal. , I, 1 0).

« E VIVO, JA NÃO EU . . . n

O que Deus exige é o sacrifício da nossa vontade,


mas não o podemos realizar segundo o nosso modo de
ver, mas da maneira e com o alcance que Ele deter­
mina. E Deus mostra-nos sempre o que deseja através
do que o momento presente nos traz. É este o único
sacrifício que Ele aceita da nossa mão e através do
qual somos transubstanciados em Cristo.
Deus determinou de antemão o plano dos nossos
sacrifícios. Se aceitarmos todos os momentos da mão
1 28 O CRISTÃO E A DOR

de Deus, no fim da vida estaremos sacrificados e, por­


tanto, transubstanciados em Cristo. « E vivo, já não
eu, mas é Cristo que vive em mim» (Gál., l i , 20). Sere­
mos então propriedade de Deus, oferenda, puros, san­
tos, agradáveis a Deus e dignos d'Ele e a nossa alma,
logo após a morte, pode ser levada pela mão do anjo
como oferenda para o altar que no céu se ergue em
frente do trono do Senhor.
Donde resulta que a única missão da nossa vida
é vivermos o momento que passa e libertarmo-nos de
todas as outras preocupações, o que nem sempre é fácil,
porque isso significa nada mais nada menos do que
apagar completamente a vontade. Mas não há ou tro
caminho para alcançar uma vida superior, se não a
m orte da inferior. ({ Louco, o que tu semeias não toma
vida , se primeiro não morren ( 1 Cor., XV, 36) .
Esta supressão é tão difícil que não podemr:Js rea­
lizá-Ia por nós próprios, nem mesmo temos o direito
de o fazer. A última parte desse processo, a purifica­
ção passiva, realiza-se em esferas que não estão ao
nosso alcance. Deus exige-nos os maiores sacrifícios
quando são necessários para a salvação da nossa alma
ou da dos outros. Exige-os com vista à transubstan­
ciação e ela só pode fazer-se com perfeição, se tiver
sido precedida de um sacrifício perfeito. Ora como o
sacrifício perfeito não pode ser realizado por nós pró­
prios, Deus intervém na nossa vida ou determina a
intervenção de outros.

NÃO HÁ OUTRA ALTER NATIVA

O homem é livre e pode dizer a Deus: (( Não te


sirvo» (Jer., Il, 20). Nem sempre é fácil decidirmo-nos
por Deus, submetermos a nossa vontade à sua. porque
o Senhor nada nos oferece para o momento presente.
A DOR E A SANTA MISSA 1 29

Por outro lado, seduzem-nos caminhos ricos de prazer.


que pedem para ser trilhados. Somos forçados então
a optar por um lado ou outro, porque no sobrenatural
não há neutralidade possível. «Q uem não é comig'J,
é con:ra mim)) (Luc. , XI , 23).
Há uma linha bem definida que divide a humani­
dade : à direita fica a comunidade de Deus; à esquerda
a de Satanás (Apocalipse, li, 9 ; III, 9). É sim ou não
e nunca sim e não ao mesmo tempo (2 Cor., I, 1 7).
Quem disser sim a Deus, diz não a Satanás ; mas quem
disser não a Deus, d isse já um sim a Satanás. «O que
e>tá unido ao Senhor é um só espírito com ele)) ( 1 Cor. ,
V I , 1 7).
Quem sacrificar a Deus, será divinizado, quem sa­
crificar a Satanás, será satanizado. A verdade é que
somos sempre dominados apenas por um, ou Deus ou
Satanás, porque: não há outra alternativa. E s<Jmos nós
que determinamos quem nos há-de dominar, habitar
em nós. E está também na nossa mão a medida em
que Deus ou Satanás nos dominarão, uma vez que
tudo depende única e exclusivamente dos nossos sacri­
fícios e a «transubstanciaçã'J )) será como for o « sacri­
fício )).

CRISTO, DOM E RECOMPENSA

Na Santa Missa, Deus é honrado pela apresentação


dos nossos dons transubstanciados por Cristo. Assim
como Cristo se ofereceu na Cruz, derramando o seu
sangue, vai oferecer-se sempre de novo ao Pai na Santa
Missa, sem derramamento de sangue ; deste modo,
Deus quase recebe mais honras e homenagens da
Terra que do Céu.
Nós demos a Deus o que de melhor a Terra pode­
ria dar-lhe: o próprio filho. Mas como o Senhor não
pode deixar-se ultrapassar p0r nós em generosidade,
1 30 O CRISTÃO E A DOR

oferece-nos o que de melhor há no céu. Ora Jesus


Cristo é o que de melhor e mais valioso nos pode ser
retribuído pelo céu. E nós aceitamos de Deus essa
dádiva, por assim dizer como agradecimento daquela
que sacrificámos.
Recebemo-Ia, porém, para sermos fortalecidos e
nos tornarmos capazes de n0vo sacrifício, visto que por
nós nada podemos (João, XV, 5). u Por nós próprios,
nem o nome de Jesus podemos pronunciar com mere­
cimen :o)) ( l Cor., XII, 3), porque o querer e o realizar
vem de Deus (Fil., li, 1 3), origem de �oda a nossa capa­
cidade (2 Cor., III, 5). Se nós nada conseguimos sem
o auxílio de Deus, muito menos conseguiremos a
renúncia à nossa vontade. Dedicar-se, submeter-se,
obedecer nã0 é uma tarefa fácil.
Ao recebermos a retribuição divina na Sagrada
Comunhão unimo-nos a Cristo, cada vez mais íntima
e profundamente e tornamo-nos capazes de realizar
todos os sacrifíci0s que nos são . exigidos. uTudo posso
naquele que me conforta )) (Fil., IV, 1 3). Quem se es­
quece de comer o seu pão, enfraquece (Salmo CI, 5)
e não pode admirar-se por chegar à encruzilhada e
não conseguir avançar. As palavras do anjo ao pro­
feta Elias : u Levanta-te e come! Tens ainda um l0ngo
caminho à tua frente)) aplicam-se a todos nós. Se o
profeta pôde caminhar pelo deserto durante quarenta
dias e quaren:a noites, com o vigor de um pão cozido
debaixo da cinza (3 Reis, XIX, 5 e seg.), também nós
deveríamos poder aguentar a n�Jssa caminhada atra­
vés da vida ao menos um dia e uma noite, uma semana
ou um mês, com o vigor deste alimento divino.
Quando Cristo andou pela terra bastou a alguns
tocar a orla do seu vestid0 para que fossem sarados
(Mat., XIV, 36), porque saía d'Ele uma virtude que
curava as moléstias (Luc., VIII, 46). Que força deve
emanar do Salvador sobre nós, se não só tocamos a
A DOR E A SANTA MISSA 131

orla d o seu vestido, mas nos unimos intimamente com


Ele por meio da Sagrada Comunhão!

SACRIFíCIO E COMUNHAO

Todos aque:es que colaboraram no sacrifício, sacer­


dotes e fiéis , :êm direito à Comunhão. Para os sacer­
dotes, ainda hoje é evidente que o sacrifício e a Comu­
nhão são inseparáveis e os crentes deveriam pensar d o
mesmo modo, pelo menos n a medida e m que as condi­
ções de profissão e posição o permitissem. Para nós
não pode haver, não podemos imaginar nada mais va­
liiJso do que a Comunhão. Se vivêssemos perfeitamente
a Santa Missa, se nela colaborássemos por preces e

acções, principalmente se partilhássemos da Comunhão,


comêssemos do pão dos fortes, tudo se modificaria
para nós, pecadores, obrigados a transportar a cruz.
Não foi em vão que o Salvador, tanto ao prometer
como ao instituir a Sagrada Eucaris:ia, acentuou mais
o seu carácter de alimento do que de sacrifício. " Se
não comerdes a carne do Filho do homem . . . não tereis
a vida em vós . . . O que come a minha carne . . . tem a

vida e•erna . . . porque a minha carne é verdadeiramente


comida . . . n (João, VI, 53 e seg.). ttTomai e comei . . . ,
tornai e bebein (Mat., XXVI, 26 e seg.).
É estranh'J que a Sagrada Escritura que tanto acen­
tua o carácter de alimento da Sagrada Eucaristia, nada
diga sobre a necessidade de a partilhar. As Sagradas
Escrituras do Novo Testamento são escrituras de oca­
sião , nascidas sempre de uma determinada necessidade
histórica. Na Igreja primitiva não havia necessidade
de ind icar aos judeus e pagãos recém-convertidos os
seus deveres, mesmo o de comungar. Todos o enten­
diam como natural e evidente.
1 32 O CRISTÃO E A DOR

Os pagãos encaravam também o sacrifício mais


como alimento d0 que como sacrifício. Traziam o ani­
mal ao sacerdote que o imolava e dividia. As partes
melhores eram queimadas sobre o altar da divindade,
para quem constituíam alimento. E como os pagãos
imaginavam os deuses com0 seres espirituais , a carne
tinha de ser espiritualizada, isto é, queimada para
poder servir-lhes de alimento. Julgavam que os deuses
respiravam o odor evolado, saciando-se, e que para
agradecer, desceriam à terra, para se unirem com a
restan:e carne do animal sacrificado. Comiam-na en­
tão, crend0 unificar-se com a força dos deuses. Para
os pagãos, o sacrifício e a refeição sacrificada consti­
tuíam uma unidade tal que não concebiam a sua dis­
sociação.
Para nós, cristãos, tornou-se realidade aquilo que
os pagãos só vagamente visl umbravam. Deus oferece­
-se-nos como alimento. (( A minha carne é verdadeira­
mente comida. O que come a minha carne tem a vida
eterna,, (João, VI, 55). Também para os judeus a
comida - pelo menos em muitos casos - era mais im­
portante do que o sacrifício.
Na Igreja primitiva os crentes viam no sacrifício e
Comunhão uma unidade, nem podiam aliás, imaginar
algo de diferente. Aquele que tomava parte no sacri­
fício, participava da Comunhão e em contrapartida
todo aquele que não pudesse participar da Comunhão
também não podia tomar parte no sacrifício.
Antes de começar este, o diácono voltava-se para
o povo e dizia um primeiro /te missa est. Para vós, os
não baptizados, que viveis no pecado fora da Igreja,
o serviço divino terminou e tendes de sair.

A oferenda, porém, é mais o crente do que o pão


t:o vinho. Ora não é possível sacrificarmos a Deus a
nossa vontade, se nos acharmos submetidos a Satanás.
A DOR E A SANTA MISSA 1 33

Nessa altura poderia dizer-se: u Se estás para fazer a


tua oferta diante do altar e te lembras aí que o teu
Deus tem alguma coisa contra ti, vai reconciliar-te
primeiro com Ele e depois vem fazer a tua oferta »
(Cf. Mat., V , 23 e seg.).

SACRIFíCIO E ETERNIDADE

O sacrifício é o alicerce da transubstanciação e da


Comunhão e tudo depende dele: o tempo e a eterni­
dade. Esta não se decide na eternidade mas agora . no
tempo. Poderíamos dizer que neste mund0 se prepara
a eternidade. É neste mundo que a adquirimos porque
ela não é mais do que a vida que vivemos, o eco deste
mundo. Não há comparação q ue esclareça devida ­
mente as relações estreitas e íntimas entre a nossa vida
neste e no outro mundo.
Quem tiver passado toda uma vida a receber das
mã0s de Deus o que Ele lhe dá, está totalmente sacri­
ficado, totalmente transubstanciado em Cristo e, atra­
vés d'Ele, unido com Deus. Quando à hora da morte
caírem os véus, veremos aquilo que seremos para toda
a eternidade ou seja aquilo que fomos. Já trazemos
em nós o reino dos céus e o Senhor (Luc., XVII, 2 1 ).
Se não sacrificarmos a Deus mas a Satanás, este.
a cada pecado, tomará mais poder sobre nós e tornar­
-se-á cada vez mais demoníac0. Aquele que tiver sacri­
ficado a Satanás, unir-se-á com ele por toda a eterni­
dade, na medida em que pecou e se dedicou ao demó­
nio. Após a morte, já não é necessári0 um juízo espe­
cial : " . . . já está condenado» (João, III, 1 8).
Nós é que nos julgamos a nós próprios, somos os
nossos juízes e a nossa vida é o nosso tribunal. Traze­
mos já em nós a n0ssa sentença e por isso não é longo
o caminho que vai do nosso Jeito morLuário ao u l ugar»
que nos é destinado para todo o sempre, porque já
1 34 O CRISTÃO E A DOR

estamos nele. Os sacrifícios da nossa vida c0locaram­


-nos no céu ou no inferno e assim, ao morrer, já fomos
julgados e estamos no <mosso » lugar. Não é necessário
que n0s desviemos nem um só milímetro.
Cada pedra da nossa morada celestial é um bom
pensamento que tivemos , uma boa palavra que pro­
nunciámos, uma boa obra que realizámos na Terra.
Cada pedra da nossa morada no inferno é um pensa­
mento, uma palavra, uma obra, uma desobediênci:t à
vontade divina. Os condenados podem dec0mpor os su­
plícios que experimentam em parcelas e reconhecer
a origem de cada uma na sua vida terrena. Podem dizer
que este sofrimento nasceu deste pecado e aquela dor
daquela culpa; cometidos num determinado dia e a
uma hora determinada.

Ao ser consagrado um sacerdote, o bispo diz-lhe :


u lmi:amini quod tractaris - Imitai o que fizerdes ! l>
Não vos limiteis a celebrar a Santa Missa, vivei-a! Es­
tas palavras são para todos. Todos nós temos de viver
a Santa Missa quando assistimos à sua celebração. Na
Santa Missa, devemos aprender com o Salvador o que
significa sacrificar-se, ser obediente até à morie e, se
tanto f0r necessário, até à morte na Cruz.
Temos de aprender que sem sacrifício não há tran­
substanciação que leve à coragem de aceitar o sacri­
fício. Quando Deus nos dá uma missão, dá-nos tam­
bém as forças necessárias para a sua realização. Na
Santa Missa, Jesus Cristo não só nos mostra o que
significa sacrificar-se esmo também nos dá a u ordem»
de nos sacrificarmos à sua semelhança e oferece-se-nos
como guia para que não soçobremos no caminho.
A eternidade depende pois de nós e não de Deus.
A vida e a morte , o céu e 0 inferno, bênção e maldi­
ção, tudo está nas nossas mãos. Podemos escolher,
somos o sacerdote da nossa vida, da nossa eternidade.
A DOR E A SA!\"TA MISSA 1 35

De:erminamos o sacrifício e com ele a transubstancia­


ção e a Clmunhão. A colheita é determinada pe!a se­
mente. Sacrifiquemo-nos ao Senhor, momento por mo­
mento, para que Cristo possa transubstanciar-nos. l\ão
temos outro medianeiro q ue nos leve da existência
natural à d ivina e sobrenatural : « Ninguém vai a'J Pai
senão por mim )) (João, XIV, 6).
O SO FRIMENTO E A ORAÇÃO

A par do sacrifício, a oração é a mais requintada


e mais espiritual actividade do homem, porque é união
com Deus. Diz um provérbio que a m iséria ensina a
rezar. Mesmo que a dor não nos ensinasse mais do
que a rezar, Ja não seria em vão , e seria profundo o
seu significadCJ. As grandes dores e as grandes misé­
rias impelem-nos para Deus.
Enquanto os homens encontram maneira de mino­
rar a dor, ou encontram conforto junto dos seus seme­
lhantes, nem sempre acham o seu caminho para
Deus. Mas quando falha o auxílio humano, os olhos
do homem dirigem-se instintivamente para os montes
de onde lhe vem auxílio (Salmo CXX, 1). Todos sabe­
mos como é grande o número daqueles a quem a dor
fez reencontrar Deus, de quem se haviam afastado nas
horas de felicidade.

A MISÉRIA ENSINA A R EZAR

O que aconteceu ao filho pródigo passa-se com


muita gente. Vivia bem em casa do pai, possuía tudo
em abundância e não tinha preocupações. E como se
sentisse demasiado bem , voltou cos:as à casa paterna.
Enquanto lhe correu bem a vida nunca se lembrou
do pai. mas c;uando a desgraça lhe bateu à porta
e se viu feito guardador de porcos. sem poder encher

o ventre com as !andes que os porcos comiam. u entrou


em si» (Luc., XV, 1 7). R ealizou-se então nele uma
1 38 O CRISTÃO E A DOR

grande transformação. (( E levantando-se foi para seu


pain (Luc., XV, 20).
A miséria ensina a rezar e já Sócrates dizia que
cada um é eloquente no seu ofício. Quando uma coisa
nos interessa verdadeiramente, sabemos sempre falar,
falar com insistência.
Quanto maior for a miséria, mais urgente será a
necessidade de auxílio e quan;o melhor virmos que só
Deus nos pode ajudar, mais íntima, mais veemente,
mais perseverante será a oração. ((Na minha tribu­
lação invoquei o Senhor>J (Salmo XVII, 7).
A oração acalma-nos, faz-nos voltar a nós próprios.
Quando um homem desesperado e enfraquecido con­
segue forças para rezar, já está meio salvo. Se uma
pessoa tiver as mãos sujas, basta-lhe lavá-Ias para que
fiquem limpas. Se o nosso coração estiver cheio de
tristeza, basta-nos rezar e· ela desaparecerá. Assim como
a água vence a sujidade, também a 0ração vence a tris­
teza. Quem sofre deve encomendar a sua alma a Deus
(Tiago, V, 1 3).

((TODAS AS COISAS
QUE PEDIRDES COM FÉ . ll . .

Muitas são as vezes que lemos na Sagrada Escri­


tura que uma oração perseveran:e e confiante é sem­
pre ouvida. Quem praticar as obras de misericórdia e
unir com elas a oração será ouvido pelo Senhor: (( En­
tão invocarás o Senh0r, e ele te atenderá. Tu chama­
rás a Ele e Ele te d irá: Eis-me aquin (Isaías, LVIII, 9
e seg.). (( Sabei que o Senhor vos ouvirá se perseverar­
des na oração e no jejum perante o Senhorn (Ju­
dite, IV, 1 2).
No Novo Testamento são ainda mais frequentes
passagens semelhantes. (( E todas as coisas que pedir­
des com fé na oração, as obtereisn (Mat., XXI, 22).
O SOFRIMENTO E A ORAÇÃO 1 39

« Todas as coisas que pedirdes orando, crede que as


haveis de conseguir, e que as obtereisn (Marcos, XI.
24). «Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras
permanecerem em vós , pedireis tudo o que quiserdes,
e ser-vos-á concedido n (João, XV, 7).
Perante afirmações tã0 numerosas e tão claras, não
admira que algumas pessoas se sintam decepcionadas
por não serem ouvidas as suas orações. Na maior parte
dos c1sos a razão está na própria oração. « Pedis e não
recebeis porque pedis mal n (Tiago, IV, 3). No entanto,
acontece por vezes que nã'l são ouvidas orações, apa­
rentemente feitas com todos os requisitos de uma boa
prece. ao passo que, por outro lado, é evidente que
Deus satisfaz por vezes os desejos de pecadores.
Os judeus , porém, eram de opinião que Deus não
ouvia os pecadores (João, IX, 3 1 ) e na Sagrada Escri­
tura encontram-se pensamentos elucidativos: u Eles (os
pecadores) invocar-me-ão e eu não os ouvirei. Pro­
curar-me-ão e nã0 me acharão)> (Provérbios, I, 28:
XXI, 1 3). Ora se Deus ouve o pedido de pecadores
no que diz respeito a coisas terrenas , fá-lo por ser
justo. Não há homem algum. por mau que seja, que
não realize uma ou outra boa acção na sua vida. Como
Deus não pode recompensar os pecadores na outra
vida, recompensa-os já na Terra pelo bem que fize­
ram. Eis a razão do bem-estar de tantos maus neste
mundo. Abraão resp'mdeu às queixas do rico ava­
rento: << Filho, lembra-te que recebeste os bens em tua
vida, e Lázaro ao contrário, males; por isso ele é agora
consolad0, e tu és atormentado n (Luc., XVI, 25).

« SEJA FEITA A TUA VONTADE ! ,

Tooas as nossas orações serão ouvidas, s e disserem


respei:o à honra e glória de Deus, à salvação da nossa
1 40 O CRISTÃO E A DOR

alma ou da dos outros. No entanto, a Iiberd.ade dos


homens põe a Deus limites que Ele nunca transpõe.
Com certeza será ouvida a nossa prece sobre coisas
terrenas, «se pedirmos conforme à sua vontade» ( 1 ,
João, XIV, 1 4) : « Fiat voluntas tua - Seja feita a tua
vontade» (Mat., VI, 1 0).
Se procurarmos raciocinar, veremos que Deus nem
sempre pode ouvir as nossas súplicas - quase sempre
tendo em vista a minoração do s0frimento ou a aqui­
sição de bens terrenos. Mas o nosso coração é que
não quer conformar-se. Ora nós não sabemos o que
pedimos (1). Vemos apenas o presente com a sua misé­
ria, a sua dor e o nosso desejo é livrarmo-nos da pri­
meira o mais depressa possível, fugirmos à segunda.
Mas afinal talvez essa miséria e essa dor sejam preci­
samente indispensáveis para a nossa salvação ou para
a de outros. Se Deus desse ouvid0s às nossas preces,
é possível que nos perdêssemos para toda a eterni­
dade e connosco muitas outras pessoas.
Suponhamos que uma mãe, ao ver o filho mori­
bundo, teima em pedir a Deus que 0 salve. Quem lhe
diz que a criança, sarando, não terá uma vida censu­
rável, não arrastará a mãe e a família à vergonha,
além de incorrer na condenação eterna?
É loucura e temeridade querer, por assim dizer,
obrigar Deus a fazer-nos a vontade. Temos o direito
de pedir, mesmo coisas terrenas ou a l ibertaçã0 de
dores até porque muitas vezes Deus faz depender esta
última das nossas orações. Mas quaisquer que sejam

(1) Não temos a m 1 m m a ideia do q ue é bom para nós.


O que por vezes j ulgamos que é pa ra nosso bem é para nosso
mal. E o que julgamos que nos prejudica, só nos faz bem.
S<! estiverdes doentes, não prescreva is ao médico o remédio
que vos faz bem " . - (Santo Agostinho).
O SOFRIMENTO E A ORAÇ.-W 1 -1 1

a s circunstâncias, devemos orar sempre, dizendo: (( Seja


feita a tua vontade e não a minha)).
Muitas vezes não sabemos o que pedimos , nem
mesmo o que devemos pedir (Rom., VIII, 26). Não
�abemos o que serve para a nossa salvação e por isso
devemos deixar a Deus a liberdade de escolher. Ele
só nos enviará dores, se elas forem necessárias e elas
nunca serão mais pesadas do que devem ser. Deus
ama-nos mais do que nós nos amamos a nós próprios
e por isso tudo o que Ele manda está bem, ainda que

o não compreendamos. Tudo o que de inesperado ou


doloroso vier sobre nós está certo, é enviado por Deus.
Nestas condições, valerá a pena ainda pedir a Deus,
se Ele só faz a sua vontade? Nós não somos míseras
criaturas, entregues à vontade inexorável de Deus que
lança sobre nós a misericórdia ou a perdição, sem que
nada possamos fazer. Estamos entregues ao seu amor
paternal e não à sua arbitrariedade; por isso, não há
nada mais belo do que entregarmo-nos incondicional­
mente a essa bondade paternal divina e a melhor das
nossas súplicas é ainda: (( Senhor, seja feita a tua von­
tade )) . A vontade divina diz sempre respeito à nossa
salvação e esta prece é ao mesmo tempo a mais bela
oração de adoração, a mais bela oração de homena ­
gem ao Senhor.

DEUS OU VE-NOS
PARA NOSSA SALVAÇÃO

Nós temos de pedir, porque Deus nos exorta a


que o façamos : « Pedi , buscai, batei. . ll (Cf. Mat., VII .
.

7 e seg.). Como já dissemos , o Senhor faz depender


das nossas súplicas a realização de alguns dos nossos
desejos e serão realizados os que se referem a coisas
terrenas corno os que dizem respeito a coisas espiri­
tuais, desde que seja para nosso bem. Se ouvir as nos-
1 42 O CRISTÃO E A DOR

sas súplicas redundasse, porém, em nosso preJUIZO ou


perdição, a nossa prece não seria em vão, mas ouvida
de outro modo (1) .
Vejamos dois exemplos : Quando Satanás veio à
reunião dos filhos de Deus e exigiu poder tentar Job,
Deus ouviu-lhe o pedido. Mas fê-lo apenas para fazer
incidir mais luz sobre a paciência e submissão de Job,
para nos dar a todos um modelo e para o poder recom­
pensar mais tarde. «Ü Senhor lhe tornou em dobro
tudo o que ele antes possuía>> Job, XLII, 10). Ao ouvir
o pedido de Satanás, o Senhor tornou-lhe a derrota
maior e mais evidente. Se Deus não lhe tivesse satis­
feito o pedido, Satanás diria que os santos só o eram
enquant<J o Senhor os abençoava e enriquecia. « Mas
estende tu um pouco a tua mão, c toca em tudo o que
ele possui e verás se ele te não amaldiçoa>> (Job , I, li).
« Toca-lhe nos ossos e na carne e então verás se ele
te não amaldiçoa» (Job, 11, 4 e seg.).
Satanás julgou poder preparar a Deus um grande
desaire por intermédio de Job, mas sem o saber cavou
a própria derrota. Deus ouviu Satanás, para sua per­
dição.
Por outro lado o Senh0r não satisfez as mais fer­
verosas súplicas do maior dos seus apóstolos, que fizera
por Ele mais que todos os outros ( 1 Cor., XV, 1 0).
Foi-lhe dado o estímulo da sua carne, um mensageiro
de Satanás para o esbofetear. Três vezes rogou ao
Senhor que o libertasse, mas Ele respondeu-lhe: « Bas­
ta-te a minha graça, porque é na fraqueza que o poder
se manifesta por completo» (2 Cor., XII, 7 e seg.).
Deus não o ouviu para o elevar mais tarde. Quanto
mais fraco estava S. Paulo, mais Deus podia agir nele

(I) "A nossa oração é sempre ouvida, não segundo os


nossos desejos, mas sempre para nossa salvaçã o " . -- (Santo
AgostinhQ).
O SOFRIMENTO E A ORA ÇÃO 1 43

e por ele. Quanto menos agia S. Paulo em si próprio,


tanto mais agia Cristo nele. E assim, S. Paulo, na sua
(<fraqueza n , fez mais por Deus e pelas almas do que
na sua força, e na doença mais do que com saúde.
((Quando estou fraco, então sou forten (2 Cor., XII, 10).
As boas orações são sempre ouvidas, nem sempre
como nós desejamos, mas como é necessário para a
nossa salvação; entreguemo-nos, por isso a Deus, con­
fiemos no Senhor, que nos dá sempre antes de mais
que de menos. (( Tu dás em excesso do teu amor aos
que suplicam, mais do que eles merecem, mais do que
eles pedem)), (Oração do 1 1 .0 Domingo de Pentecos ­
tes). Dá-nos mais do que conseguimos pedir ou imagi­
nar (Efésios, III, 20).
As duas irmãs Marta e Maria enviaram mensagei­
ros ao Salvador, dizendfJ : u Senhor, eis que está enfermo
aquele que tu amas n (João, XI. 3. Ora Jesus não acom·
panhou imediatamente os mensageiros como as duas
irmãs tinham esperado, demorando-se quatro dias.
Foi uma dura provação para Maria e Marta. Jesus
CristfJ ajudava outra gente, caminhantes, por vezes
pecadores que não precisavam exprimir os seus dese­
jos . . . E a elas, que tanto tinham feito por Ele e pelos
apóstolos, não as socorria . . . Jesus não lhes atendeu o
pedido e não obstante, ouviu-o de uma maneira que
elas não teriam ousado pedir. Maria e Marta tiveram
de suportar aquele período de espera em que amadu­
receram para a ressurreição. Jesus amava os três irmãos
(João, X I , 5) e no entanto não satisfez o pedido das
duas irmãs. Tinha intenções mais elevadas. A doença
e a ressurreição de Lázaro serviam u para glória de
Deus, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado
por ela)) (XI, 4).
O Senhor faz-nos esperar também por vezes e du­
rante muito tempo. u Até quando, Senhor, clamarei
eu, e tu não me escutarás? )) (Hab., I, 2). Mas será que
1 44 O CRISTÃO E A DOR

(( o que plantou o ouvido não ouvirá? n (Salmo XCIII,


9). (( A mão do Senhor não é abreviada para não poder
salvar, nem o seu ouvido ensurdeceu, para não ouvirn
(Isaías, LIX , 1 ) . Ouvir-nos-á quando chegar a hora
(Isaías, XLIX, 8; 2 Cor. , VI, 2) e cuidará de nós
( 1 Pedro, V, 7). Por vezes deixa que nos afundemos,
mas nunca que nos afoguemos (Mat. , XIV, 30 e seg.).

EM CON FIANÇA PLENA

Unamos a nossa voz à do Salvador no Monte das


Oliveiras para suplicarmos instante, encarecida e con­
fiantemente, no meio das nossas dores: ((Meu Pai, se
é possível, passe de mim este cálice ; todavia faça-se
não como eu quero, mas sim como tu queres n (Mat.,
XXVI, 39 e seg.). Se o Senhor não nos puder ouvir,
por Ele e por nós, como não pôde ouvir o Filho, en­
viar-nos-á um anjo - embora invisível - que nos for­
taleça para c0ntinuarmos a levar a nossa cruz.
Uma mulher levava uma vida dura com os seus
filhos. O marido gastava todo o dinheiro para se em­
briagar, considerava Deus e os seus mandamentos
como noções vazias, como um limite incomodativo
que resolvera ultrapassar. A mul her orava, mas todas
as suas súplicas pareciam em vão. E houve um dia
em que as forças se lhe esgotaram. Reuniu os filhos
e resolveu deixar o lar para sempre, convencida de que
encontraria abrigo em qualquer lugar no mundo. An­
tes, porém, resolveu ir em peregrinação e aquela mãe
recolheu-se um momento d iante da imagem miseri­
csrdiosa antes de se entregar a um futuro incerto e
sombrio. Chorava convulsivamente e as crianças em
breve lhe juntaram os seus soluços. Começaram a
rezar. . . E aquela mulher sentiu coragem para tentar
recomeçar a vida ao lado do marido. Conseguiu fazer
O SOFRIMEXTO E A ORA Ç-i"O

dos filhos bons cristãos e acab0u por converter o ma­


rido.

SABER ESPE RAR

Quem reza, adquire força para subsistir ( I Cor. , X.


1 3) e para perseverar com paciência. Como é d ifícil
esperar! Somos impacientes e queremos tudo imedia­
tamente, sem delongas. Mais difícil ainda é esperar sob
él cruz, quando nos afligem as d0res, quando nada
mais podem os fazer. É então que as almas ficam puri­
ficadas, muito mais do que através de uma intensa
actividade. Saber esperar é a arte da vida, a arte da
sa ntificação, porque esperar tranquilamente quando as
dores nos afligem exige mais energia, mais força de
von:ade do que agir.
u Ai daque:es que perdem a paciência» (Ecl. , l i .
1 4), porque s ó com e l a s e leva a cabr:> a obra (Tiago. I .
4). Assim como o lavrador espera pacientemente o pre­
cioso fruto da terra, também nós temos de perseve­
rar com toda a força do coração (Tiago, V, 7 e seg. ).
A tribulação produz a paciência, a paciência prova, a
prova esperança e a esperança não pode enganar
( Rom. , V, 3 e seg.). Com paciência colheremos a pro­
missão (Hebreus, VI, 1 2).
A paciência parece ser necessária até mesmo no
céu. O vidente de Patmos ouviu as almas das vítimas
queixarem-se ao Senhor por não julgar e vingar o seu
sangue n0s habitantes da Terra. uE foi-lhes d ito que
repousassem ainda um pouco de tempo, até que se
completasse o número dos seus conservas e irmãos,
que haviam de padecer como eles. a morte)) (Apoca­
l ipse, VI, 10 e seg.). u A inda mais um poucochinho de
tempo, e o que há-de vir, virá, e não tardará n (He ­
breus, X, 36 e seg.).
1 46 O CRISTÃO E A DOR

A dor deve levar-nos na oração até Deus, deve


ensinar-nos a orar e a orar bem. Se pela dor reencon­
trássemos o Senhor na oração, essa dor teria cumprido
a sua missão e as suas ondas diminuiriam como dimi­
nuíram as do dilúvio quando se fecharam "as fontes
d'J abismo'' (Gén., VIII, 2 e seg.).
A DOR NO �L-xDO
E NA ETER�IDADE

Santo Agostinho costumava pedir a Deus que o


atormentasse neste mundo, mas o poupasse na eterni­
dade. Assim deve ser, porque mais vale sofrer neste
mundo do que no outro, uma vez que as dores mais
atrozes que aqui nos podem afligir nada são compa­
radas com os mínimos sofrimentos da eternidade. Mas
como todos nós temos de sofrer, vale cem, mil vezes
mais, que nos purifiquemos por meio de sofrimentos
temp')rais do que cairmos para todo o sempre nas
penas do inferno.
A oração de Santo Agostinho com certeza sai a
todos do mais íntimo do coração porque neste mundo
talvez seja p0ssível ajustarmo-nos a todas · as dores, a
todos os tormentos, mas ninguém pode l ivrar-se das
penas eternas do inferno.
Não sabemos explicar como são compatíveis as
penas eternas do inferno e o amor e a misericórdia di­
vina. Há pe3soas que os consideram mesmo incompa­
tíveis e, querendo continuar a crer na misericórdia
divina, resolvem se não negar a existência do inferno,
tirar-lhe pelo menos a sua característica de eternidade,
Ora este princípio é falso. Para o aceitar, seríamos
forçados a negar o Além com a sua recompensa eterna,
a negar o próprh Deus, e de tudo isto nos dá teste­
munho a Sagrada Escritura. Tanto a existência de
Deus como a de uma recompensa eterna são dogmá­
ticas. Se quiséssemos negar a existência de um inferno
eterno, teríamos de arrancar muitas páginas à Sagrada
1 48 O CRISTÃO E A DOR

Escritura. Quem negar o inferno terá de negar toda


a Revelação. E se não houvesse inferno o nosso lema
seria: << Comamos e bebamos porque amanhã rnorrere­
rnos n (Isaías, XXII , 1 3). A nossa existência só tem
sentido se houver um Deus, urna ressurreição dos mor­
tos e urna vida eterna com recompensa e castig0
eternos.

((COMPREENSÃOn DO INFERNO

Podemos adquirir urna certa ((cornpreensãon do


inferno a partir do amor misericordioso de Deus. O Se­
nhor não quer a morte do pecad0r ; quer, sim, que ele
s e arrependa e viva (Ez., XVIII, 23). Respeitando em­

bora a liberdade humana, Deus tenta tudo para nos


livrar da condenação eterna. Em primeiro lugar. fala­
-nos na linguagem do amor. Mas quem lhe pres:a ou­
v idos? E então, resta apenas ao Senhor utilizar a do
sofrimento. Nós, porém , muitas vezes não lhe damos
ainda ouvidos e corno Ele não nos quer abandonar,
porque ncs cornpr<Ju por alto preço, fala-nos em voz
mais sonora e mais explícita, tal corno se deve falar
a ouvidos ensurdecidos e corações empedernidos. isto
..5 . na linguagem das catástrofes, embora a experiência
mostre que até mesmo esta voz de Deus é frequente­
mente desprezada.
Corn'J Deus quer a todo o custo salvar os homens
e fazê-los felizes para toda a e:ernidade, vê-se perante

um último e único meio, um meio tremendo, que em­


prega por puro amor. Ameaça-nos com as penas eter­
nas do inferno, se não nos submetemos à sua vontade.
O Senh'Jr não pode falar-nos mais expllcitarnente.
O medo deste castigo eterno com certeza tem conse­
guido subordinar muita gente à vontade divina, fazer
os pecadores recuarem no caminho do pecado, ingres­
sando no do Senhor. Mas também é certo que muitos
A DOR NO MUNDO E NA ETERNIDADE 1 49

são aqueles a quem esta ameaça não consegue deter


na senda do mal.
Se o inferno, com as suas penas eternas, não con­
segue impressionar algumas pessoas, o que aconteceria
se ele fosse temporalmente limitado? Impressionaria
tão pouco como o purgatório que é afinal um " inferno
sem eternidade>> . Logo que o inferno não for eterno,
deixa de ser inferno para ser um purgatório mais ou
men0s severo. A eternidade pertence ao inferno , faz
com que ele o seja. Por isso são verdadeiras as pala­
vras que Dante colocou à entrada do inferno, aconse­
lhando os que entravam a despojar-se para sempre de
·
toda a esperança.

No Céu e na Terra tudo se encontra subordinad'J


a dois pólos. Um é Deus, a luz. em que não há trevas
( I João, I, 5), que habita uma luz inacessível ( 1 Tim . .
V I , 1 6), que é essa própria luz. O pólo oposto a Deus
é o (( príncipe das trevas )) , que habita na escuridão ex ­
trema (Mat., VIII, 1 2). na mais escura treva (Jud. 13).
Todas as criaturas habitam entre estes dois pólos.
Por causa do pecado original viviam todos nas trevas
(Jud., V, 8), jaziam na região da sombra da morte
(Mat., IV, 1 6). Veio então Cristo, a luz, e brilhou nas
trevas e iluminou todos os h'Jmens que vêm ao mundo
(João, I , 4, 9). A todos foi oferecida a possibilidade
de se tornarem filhos da luz. O grande ((mistério da
maldade» (2 Tessalonicenses, 11, 7) é os homens não
terem aceitado a luz, não olharem como bem-vindas
a manhã e a vida nascentes, recusando-as, e preferindo
as trevas, a noite, a morte. Todo aquele que pra:ica o
mal odeia a luz e não se aproxima dela . . . mas aquele
que percorre o caminho da verdade. dirige-se para a
luz (João, 111, 19 e seg.).
A nossa vida, por conseguinte, é uma ca1ninhada
entre as trevas, em busca da luz. Quem pratica o bem
! 50 O CRISTÃO E A DOR

e vive segundo a vontade de Deus, dirige-se para a luz,


quem pratica o mal aproxima-se das trevas.
E queiramos quer não, toda a nossa vida é c:�mi­
P.har para a eternidade. <�Se urna árvore cair para o
sul , para o meio-dia, para a luz ou para o norte, para
a meia-noite, para as trevas: onde ela caiu ficará n
(Ecl . , XI , 3).
E será na medida em que na vida terrena nos
aproximámos da luz, que ela nos iluminará na �::erni­
dade, assim como as trevas que nos envolverão na
eternidade foram aquelas em que ca minhámos no
mund0.

<� FOI O AMOR ETERNO


QUE ME CR IOU n

Podíamos sentir-nos tentados a designar o i nferno


como lugar da justiça divina, mas não estaríamos den­
tro da verdade. O inferno é antes um lugar da m iseri­
córdia divina. Sobre a entrada do inferno, p � r cima
das palavras a que já fizemos referência, Dante escre­
veu outras, indicando que aquele lugar fora criado pelo
amor eterno. Se aos condenados do inferno fosse dada
liberdade de o deixarem para procurarem outra mo­
rada para a e:ernidade, eles procurariam e tornariam
a procurar e acabariam por regressar ao seu lugar no
inferno, por que esse seria o menos tormentos0. E m
caso algum s e aproximariam d e Deus porque isso lhes
aumentaria as dores (1).
Quem tivesse de sen:ar-se à mesa de um banquete
com o rosto e as mãos sujas, roupas velhas e cobertas
de pó, sentir-se-ia com certeza muit'l pouco à vontade,

( 1 ) « Para um coração impuro não pode haver i n rclic :dadc


m<:ior do que ver-se colocado repentinarr:entc na proximidade
de Deus » . - (Cardeal Newman).
A DOR NO MUNDO E NA ETERNIDA DE 151

mas esse mal-estar desapareceria se todos os circuns­


tantes se apresentassem da mesma maneira.
Para olhos doentes não há nada mais doloroso do
que uma l uz crua e ofuscante. Quem tem olhos doen­
tes, procura afastar-se do caminho da luz e vai ins­
tintivamente aproximar-se das trevas. Para os conde­
nados do inferno não pode haver coisa mais horrorosa
que a luz, que eles temem e odeiam. Deus , que habita
na l uminosidade extrema, seria para eles o mais ter­
rível dos tormentos.
Na sua misericórdia infinita, o Senhor deu aos con­
denados um lugar de trevas, no qual podem ocultar-se
da « LUZ Eterna n . Cada um está no seu lugar, naquele
que « mereceu n pelos seus pecados. Em nenhum outro
o suplício seria mais brando, em qualquer outr0 redo ­
braria de violência. Aquele que se aproximasse de
Deus, a l uz, aumentaria tanto a sua dor como aquele
que se chegasse a Satanás, as trevas. Cada um está
preso ao seu lugar para toda a eternidade.
Não há esperança de libertação, ou de minoração
dos s0frimentos, nem de uma adaptação à dor pelo
hábito, ou mesmo de insensibilização. Os que entram
no inferno, despojam-se de toda a esperança.

TAMBÉM HA JUSTIÇA NO INFERNO

N inguém deve tentar descrever os suplícics do in­


ferno. É tão impossível descrevê-los como imaginar as
alegrias do Céu. Ao tentarmos descrever os tormentos
do inferno podemos cair no mau gosto mas nunca no
exagero, infelizmente, porque eles ultrapassam tudo
o que a fantasia ou a razão possam imaginar.
Não é indiferente o número d0s pecados que nos
levam ao inferno. u Há-de dar a cada um segundo as
suas obras)) (Rom., 11, 6). O homem é castigado com
1 52 O CRISTÃO E A DOR

aquilo que pecou (Sab. , XI, 1 6). Cada pecado será cas­
tigado conforme a sua espécie, o do orgulho diferen­
temente do da sensualidade, o da crueldade diferen­
temente do da injustiça. Cada pecado será punido ainda
de acordo com a sua gravidade, e com o número de
vezes que foi c0metido.
Os condenados reconhecerão que o seu castigo é
jus �o. e verão até ao último pormenor as mais íntimas
relações entre os seus pecados e os castigos. Será esse
o verme que os rói e nã') morre (Is:�.ías, LXVI, 24;
Marcos, IX, 44), porque verão que são os culpados do
tremendo castigo e que tudo poderia ser diferente se . . .
não tivessem acordado demasiado tarde.
S. Bernardo disse uma. vez que era melhor descer
em vida a') inferno para não cair lá depois da morte.
É bom pensarmos nos tormentos do inferno, para que
nos enchamos de temor. O medo do Senhor é o prin­
cípb da sabedoria (Salmo CX, 1 0 ; Ecl.. I, 27), afu­
genta o pecado (Êxrcdo, XX , 20) e conduz-nos a uma
santidade cada vez maior (2 Cor., VII, l).
Na hora da tentação o pensamento de um castigv
eterno ajudará a supor:ar os pequenos e breves sacri­
fícios ligados à vitória sobre a tentação. Quem pensar
nos eternos e tremend0s suplícios do inferno, terá m::tior
facilidade em conformar-�e com a cruz e dores terrenas.
Diz-se que o Padre Nieremberg pedia ao Senhor
apenas dores e contrariedades, para escapar ao fogo
do inferno. Os seus desejos foram ouvidos. Uma doença
horrorosa atormentou-o durante mais de dez anos e ele
suportou tudo com paciência e alegria. Quando as do­
res se tornavam mais fsrtes e pareciam fogo a devo­
rar-lhe o corpo enfermo, e:e dizia a si próprio: (( Non
est ignis aetemus )) - Es:e fogo não é eternn. E era
sempre com estas palavras que ele recebia as almas
compassivas que o visitavam, lamentand0-o e sentindo
o seu sofrimento.
A DOR NO MUNDO E S.-t ETERSIDA DE lq

Por grandes que sejam as nossas dores de agora.


são breves e dentro em pouco desaparecerão. ao passo
que o inferno é eterno.
Sã0 Karpus. preso ao poste, sobre a fogueira. gritou
que todos os homens são filhos de Eva e têm o mesmo
corpo (sensíve1 ) mas podem suportar tudo. se pensa­
rem no juízo eterno (Hümmeler, Heróis e Santos, 1 3
d o: Abril).
É secundário o dec'Jrrer dos poucos anos que vi­
vemos no mundo. Só interessa que, ao sermos julga­
dos , possamos estar à direita do Senhor. Por isso, ore­
mos cem Santo Agostinh0, ped indo a Deus que nos
atcrmente neste mundo mas nos poupe no outro.
M A RI A
M O DELO D O S Q C E S O FRE�!

Só sabendo a glória que alcançou no céu u ma pes­


soa. poderíamos calcu�ar a medida em que se apagou.
em que sacrificou a sua vontade. É que a al tura da
elevação corresponde à profundeza do sacrifício.
Quando veneramos em Nossa Senhora a rainha do
Céu e da Terra, fazemo-lo porque ela foi neste mundo
a rainha dos mártires. E se ela goza no Céu de uma

glória superior à de qualquer anjo 0u santo, é porque


n inguém como el a foi mergulhada num oceano de dor.
« ó vós todos que passais pelo caminho, atendei e vede

s e há dor semelhante à dor que me atormenta. A quem

te compararei , a quem te assemelharei, ó filha de Jeru­


sa'ém? Quem acharei igual a ti para te consolar, ó vir­
gem de Siã': ? É grande como o mar a . tua ruína•
(Lam. , I , 1 2 ; II, 1 3).

O CAMIN HO DE NOSSA SENHORA


FOI UMA SENDA DE DOR

A par da vida do Divino Mestre, a de Nessa Se­


nhora é uma prova especial de que só o caminho da
der ccnduz à glória eterna, e que os caminhos tri:ha­
d o s pelos mahres santos foram também os mais dolo­
rosos. Se houve seres humanos que neste mundo sem­
pre renunciaram à (( sua)) vontade, foram com certeza
Jesus e sua Mãe e no entanto n inguém :eve \"idas ma:s
tormentosas e difíceis.
1 56 O CRISTÃO E A DOR

Haverá melhor prova de que a dor nem sempre


está relacionada com pecad'Js pessoais, nem sempre é
castigo de culpas próprias?
A vida da Santíssima Virgem - tal como a do seu
Divino Filho - mostra-nos ainda que os sofrimentos
pessoais crescem com a grandeza da missão que visa
o ttJdo. Sem dúvida que, na aparência, a vida de Nossa
Senhora não se apresenta sublime como a de alguns
santos, que a podemos admirar apenas, mas não imi­
tar. Foi uma vida que decorreu em moldes singelos,
sem sacrifícios que não possam ser atingidos ou ultra­
passados por 0utras mulheres ou mães. Mas, se no
conteúdo da dor é ultrapassada por muitas, no modo
ninguém sofreu como ela.
A sua vida é tão singela que. à excepção dos três
dias da Paixão que sofreu com '1 Filho, nada notamos
de grandes dores e sacrifícios, mortificação e severi­
dade. E no e n:anto nada lhe foi poupado. Ninguém
como ela atingiu tã o profunda união com Deus. Ora
sabemos que a comunhão, a un ião, têm sem pre na base
uma transformação e es:a, por sua vez, assenta no
sacrifíci'J. Também para ela não houve transubstancia­
ção , nem purificação, sem sacrifício. Se Ela - como p::s­
soa alguma-se uniu a Deus, isso quer dizer que Ela-­
como ninguém-se sacrificou perfeitamente iivre e cons­
ciente à v0n:ade de Deus. E essa v ida demonstra-nos
também que para esse sacrifício absoluto não eram
necessárias grandes penitências externas, expiações es­
colhidas, mas apenas o sacrifício da vontade ao Senhor.
Para uma judia não havia sacrifício maior que nã0
ter filhos ; por isso Ana, com profunda af:içã0 e lágri­
mas ardentes, solicitou do Senhor essa graça (1, Sam.,
I, 1 0) e Zacarias e Isabel suplicaram insistentemente
um descendente do sexo masculino (Luc. I, 1 3). Ora
entre as judias vivia acesa a esperança de ver o Mes­
sias num dos seus descendentes e não ter filhos era
_\f.-t RI.-1. . MODELO DOS Q UE SOFREM 1 57

renunciar p:-a s�mpre a essa grande esperança. Maria,


mais do qu� ::1�nhuma outra, tinha possibilidades de
ser antepass;:,.:a d 1 Messias, porque era da casa real
de David . :a>. ::: z mesmo tanto pelo lado do pai como
pelo da mã�. E o profeta Isaías predissera que o Mes­
sias nasceria do tronco de Jessé, pai de David (XI, 1 ).
Foi com plena .::o nsciência e liberdade que ela renun­
ciou à mais pr �bnda esperança do seu coração de mu­
l her , para pert�::1.:er ao Senhor.

c EC SOC A SERVA DO SENHOR »

A intenção da sua Yida era servir o seu Senhor, no


silêncio e na solidão. longe da agitação do mundo e,
no entanto, não se apegou a essa resolução quando no
grande momento, em ::\azaré, reconheceu a vontade de
Deus. A sua v ida foi encaminhada noutro sentido, pre­
cisamente aque!e que Maria, por amor a Deus, não
queria seguir.
Nossa Senhora que renunciara a ver o Messias entre
os seus descendentes foi escolhida para sua Mãe. Deus
lançou os olhos para a baixeza, humildade e modéstia
da sua serva (Luc. I. 48). Maria não compreendeu bem
a mensagem do anjo e apesar do receio que aquela
aparição lhe inspirava-"Não temas, Maria ,, (Luc. I ,
30)-não perdeu a tranquilidade. Pediu expl icações mais
precisas sem no entanto conseguir uma resposta con­
vincente. Sabia apenas que por detrás da mensagem do
anjo estava a vontade do Senhor e por isso se incli­
nou, cheia de fé. " Eis aqui a serva do Senhor; faça-se
em mim a tua palavra» (Luc. I, 38).
Esta submissão a Deus, com tod0 o seu ser, toda
a sua vida e todo o seu futuro só fora possível me­
diante uma renúncia à sua vontade. Por isso sua prima,
a piedosa Isabel, tocada pelo Espírito Santo a elogia
! 58 O CRISTÃO E A DOR

com en�usiasmo : « B em-aventurada tu , que creste, por­


que se hão-de cumprir as coisas que da parte do Senhor
te foram ditasn (Luc. I , 4 1 , 45).
Maria queria viver ignorada, ao serviço do Senhor,
e eis que é colocada no fulcro da vida, nas estradas
e mercados do mundo. Os nove meses de tranquilidade
até à primeira festa de Natal constituem decerto as
horas e os dias mais belos da sua vida. Só uma dor
ensombrava esses dias de felicidade. José, seu esposo,
que desconhecia o mistério que envolvia a sua mater­
nidade, achava-se perante um enigma e, sem saber que
fazer, resolveu deixá-la secretamente (Mat. I, 19 e seg.).
Maria no�ava-lhe a preocupação, o desgosto, a inquie­
tação e sofria, sem dúvida, por ver José atormentado
por dúvidas e incertezas, por sua causa. Mas não tinha
o direito de divulgar o segred'J do rei (Tob. XII, 6)
e tinha de esperar até que ao Senhor aprouvesse in­
tervir.

DURANTE A INFÂNCIA DE JESUS

Pouco antes de nascer o Senhor. começou a Virgem


o seu caminho público. Acompanha São José a Be­
lém, cidade natal de ambos ; talvez nem tenham até
feito grandes preparativos, pois contavam com certeza
encontrar abrigo jun:o de parentes ou conhecidos. Mas
enganaram-se. Ninguém os recebeu , nem encon:raram
lugar na estalagem (Luc. Il, 7). O Senhor do Céu e
da Terra viu a luz do mundo num estábulo.
Nós temos ornado o mistério do Natal com muitas
lendas, tecemos todo um rosário delas em volta desta
festa, mas a Sagrada Escritura nada diz sobre mila­
gres que a tivessem acompanhado, nem o seu relato
podia ser mais objectivo e mais sóbrio : «E deu à luz
o seu Filho primogénit'J, e o enfaixou , e o recl inou
numa manjedoura)) (Luc. ll, 7).
MA RIA , MODELO DOS Q C:E SOFRE.\1 ! 59

Só no campo dos pastores se deu um milagre.


E quando eles chegaram e falaram de todos os acon­
tecimentos estranhos, surgiu a Maria um mundo novo
ao qual teve de se adaptar no mais íntimo do seu ser.
u Ora Maria conservava todas estas coisas meditando-as
no seu coração» (Luc. II, 1 9).
Com a apresentação d o Filho no templo em Jeru­
salém deve estar ligada uma grande decepção. A Vir­
gem sabia que todo Israel, a capital principalmente,
esperava com ansiedade por aquele u que há-de ser Se­
nhor em Israel '' (Miqueias, V, 2). Ora quando Ele che­
gou à sua cidade , à cidade de Deus, não o reconhe­
ceram, nem mesmo o sacerdote que realizava o acto
sagrado. Só dois velhos, Simão e Ana, se aproximaram
para adorar na criança o seu Deus e Senhor.
A Virgem compreendia que o Filho estava desti­
nado à ressurreição de muitos em Israel, mas revela­
va-se-lhe agora que estava destinado também à perda
de muitos e a sinal de contradição. Já agora começava
a ferir-lhe a alma a espada de que Simão falava. Abria­
-se diante dela um novo caminho que ela não sabia
onde iria dar. ((E seu pai e mãe estavam admirados
das coisas que dele se diziam» (Luc. Il, 3 3).
Para uma mãe não pode haver nada mais belo do
que viver para cuidar dos que lhe são queridos. Repen­
tinamente essa felicidade doméstica de que gozava em
Belém foi interrompida pela mensagem nocturna do
anjo. Tiveram que se erguer a meio da noite, para fu­
gir para um país estranho (Mat. II, 1 3), embora con­
tinuassem juntos.
A vida de Nossa Senhora sofreu a primeira trans­
formação profunda quando o Salvador contava doze
anos. Depois de o procurar d urante três dias, cheia de
aflição, foi encontrá-lo no templo e perguntou-lhe: u Fi­
lho, porque procedeste assim connosco? » E o Salva­
dor respondeu-lhe: uNão sabíeis que devo ocupar-me
1 60 O CRISTÃO E A DOR

nas coisas de meu Pai? '' Mas ela não compreendeu o


que Jesus queria dizer-lhe (Luc. 1 1 , 48 e seg.).
Aos doze anos era dever do jovem israelita ir em
peregrinação a Jerusalém. Até aí os meninos estavam
confiados à mãe e a partir de então a sua educação
competia ao pai. Maria pudera até então tratar do
Filh'l e facilitar-lhe a vida de accrdo com as condi­
ções simples do seu viver. Teria agora de deixar de
o fazer, o que constituiria um dos maiores sacrifícios
da sua vida. O Salvador devia ocupar-se nas coisas de
seu Pai.

DURANTE A ACT I V l DADE PúBLICA


DO SEN H O R

A separação íntima veio e m breve juntar-se a ex­


terna. Agora Maria só podia auxiliar o Filho por mei')
da oração, do sacrifício, da renúncia. Não pôde ser tes­
temunha dos seus mui �os m ilagres, dos seus maravi­
lhosos sermões, que ninguém como ela entenderia.
Outras mulheres piedosas puderam acompanhá-h e
assistir-lhe com a sua fortuna (Luc. V I l i , 2; Marcos,
XV, 4 1 ). Jesus e Maria seguiam o caminho do Pa i,
sem dar atenção aos desejos dos seus corações.
Não deve ter sido fácil para a mãe desl igar-se do
Filho, íntima e externamente. Preocupava-se com Ele
e muito deve ter sofrid'J quando o não deixaram con­
tinuar a falar na sinagoga de Nazaré e o lançaram fora
da cidade (Luc. IV, 28). Não a terão apontado a dedo
em Nazaré?
O povo sentiu em breve que a tensão entre Cristo
e as au:oridades se tornava cada vez maior. Dizia-se
que queriam atentar contra a sua vida e esperavam
apenas uma ocasião favorável. Não tardou que Maria
recebesse a notícia de que todos os que o apoiavam
MA RIA, MODELO DOS QUE SOFREM 161

haviam sido expulsos d a comunidade j udaica (João,


IX, 34) e cem certeza temia pela sua vida. Vivia numa
ansiedade c0nstante, sempre à espera do momento da
sua prisão.
O ambiente em que vivia não lhe tornava mais
fáceis a cruz e o sofrimento. Os parentes preocupavam­
-se também com o Senhor mas não pela mesma razão
que a Mãe. Temiam sofrer as consequências quando
chegasse o momen�o da desgraça e com o decorrer do
tempo todos sabiam que ela se aproximava. Por isso
é na:ural que instassem junto da Virgem para que ela
empregasse toda a sua influência no sentido de o fazer
retirar-se da vida pública. E acabaram por espalhar
o boat0 de que estava louco (Marcos, 111, 2 1 ) , o que
era o mesmo que dizer que não se responsabilizavam
por coisa alguma que lhe dissesse respeito . . .

DURANTE A VIDA
DOLOROSA DO FILHO

Quando começaram os grandes sofrimentos do Sal­


vador, sua Mãe achou-se de novo a seu lado e assis­
tiu à sua morte. (( De pé junto à cruz de Jesus estava
sua Mãen (João, XIX, 25). Poderá haver dor maior
para uma Mãe do que ver o Filho morrer no meio de
�ais tormentos? Agar deixou o filho moribundo no
deserto e afastou-se a distância de um tiro de flecha,
para não ver morrer o menino (Gén. XXI, 1 6). Quem
sabe se uma mãe não sentirá mais as dores do filho
amado do que se as sofresse ela própria?! Seria uma
grande consolação aliviar o filh0 dos sofrimentos.
Um jornalista americano que se convertera ao cato­
licismo em 1 9 17, na Suíça, escrevia à mulher do leito
de morte onde o prostrara uma dolorosa enfermidade,
dizendo que a sua cruz era s0frer e a dela vê-lo sofrer
O CRISTÃO E A DOR

sem poder ajudá-lo. Era uma via dolorosa comum por­


que nem mesmo a participação dela lhe aliviava as
dores.
O mesmo se passou n0 Gólgota. Maria não com­
preendia qual a vontade de Deus, que deixava o pró­
prio Filh0 sofrer tais tormentos. No templo de Jeru­
salém ainda ela perguntara : porquê? , mas agora que
com mais direito ainda podia repetir a pergunta, não
o fez. Sabia já que não se deve interrogar o Senhor,
mas aceitar a sua vontade, por incompreensível e mis­
teriosa que ela se mostrasse.
Segundo a lenda, Santa Felicidade, tal como a mãe,
viu os sete filhos serem cruelmente martirizados, um
após o outro. Sete vezes devem ter estas mães sofrido.
Quando chegou a sua vez, já a morte lhes não cus�ou.
Assim, também Maria morreu sete vezes sob a cruz
e a maior das suas dores foi não poder acompanhar
o Filho na morte. Nada pôde fazer por Ele. Teve de
ali estar imóvel e ((inactivan e ver como Ele sofria hor­
rorosamente durante três horas. O caminho para o Cal­
vário foi difícil , mas mais uma vez teve de renunciar
à sua vontade e continuar a sacrificar-se, enquanto
Deus quis.
Podem algumas mães ter sofrido mais do que Ma­
ria ao dar à luz os filhos, vê-los mais pobres ainda,
não ter tid0 nem mesmo um estábulo para os abrigar.
Podem ter procurado um abrigo mais tempo e em vão,
ter fugido com menos haveres do que a Sagrada Fa­
mília, ter-se visto separadas dos seus. Muitas mães
tiveram de renunciar a uma vida mesmo simples como
era a da Sagrada Família em Nazaré, assistiram talvez
a uma agonia mais lenta e mais horrorosa do que a de
Jesus. Em cada uma das suas dores pode Maria ter
sido ultrapassada por muitas mulheres e mães, mas no
conjunto a Virgem ultrapassou-as a todas, ultrapassou
MA RIA , MODELO DOS Q L"E SOFRE.\1 1 63

todos os mártires, foi a Rainha dos mártires. " \" ede


se uma dor é igual à minha n (Lam. I, 1 2).
Só sabe sentir uma d0r aquele que a experimentou
já. « Porque ele mesmo sofreu e foi tentado, é que pode
socorrer aqueles que são tentados n (Hebreus, li. 1 8).
Se alguém pode compreender as nossas dores, sentir
compaixão pe!as nossas misérias, esse alguém é Maria.
Mater dolor�sa. A Virgem compreende os que sofrem.
é a « omnipotência intercessora n , ajudar-nos-á na me­
dida do possível. Nem sempre poderá livrar-nos da
cruz mas dar-nos-á forças para a levarmos até ao fim
com paciência e resignação.

UM DIA V ER EMOS . . .

Sacrifiquemo-nos a Deus, com0 o fez Maria. siga­


mo-la, a ela e ao seu divino Filho no caminho do Cal­
vário! Se ousarmos percorrer o caminho que leva à
obediência e ao abandono do eu. ser-nos-á dad0 segui­
-los também no caminho da glória celestial. E lá vere­
mos então como eram boas as intenções de Deus a
nosso respeiro e que por detrás de cada sofrimento es­
tava apenas o amor, 0 imenso amor divino.

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Í N D I c E

Págs.

A NOSSA VIDA É UM CAMINHO DE DOR 7

O SOFRIMENTO E O AMOR DE DEUS 9


Dem é caridade ... 9
A criação nascida da caridade . . . IO
A providência e o amor ... 14
A misericórdia divina é sempre amor 15
Amor misericordioso mesmo quando castiga 15
O amor e os mandamentos . . . 17
O amor e a dor . . . 19
O amor e a s catástrofes 20
Lim ites do amor . . . 22

A DOR E A JUSTIÇA DIVINA 25


A dor e o pecado . 26
O silêncio de Deus 28
A injustiça como meio de alcançar a santidade 30
Uma injustiça que é justiça 31

A DOR FORJA O ESPíRITO 35


Amor infinito . 35
U m grande m i stério ... 37
A nossa limitação . 38
Não é o número dos anos 39
<� Eis o dia da salvação• 41
Não h á cruz demasiado pesada 42
I N D I c E'

Pf
Cruz e Graça .
Somos nós quem tem de ceder . . . " '

Deus tem sempre razão 45


Junto de Deus 46
O caminho mais curto . ..

A vontade divina e a vontade h umana 4<..,_,


Mérito e Graça 51

A EXPIAÇÃO ... 53
Membros da humanidade 54
Tudo concorre para o todo 56
A culpa das catástrofes 57
Precisamos de santos . . . 58
O mal não está nos tempos 59
Há novos deveres e não uma nova missão 60
Sofrer pelos outros 62

O SOFRI MENTO DE CR1ISTO 65

O caminho do Senhor 66
Jesus aos doze anos ... 67
E m Nazaré 68
Sofrimento e morte do Senhor 69
A vontade do Pai . 71
A dor' como obediência 73

AS TREVAS NA DOR . . . 75

O calvário. caminho quotidiano 75


A dor faz-nos clarividentes 77
Mas não deixa de ser um problema 77
O problema do porquê 79
Por detrás das catástrofes está o amor divino 81
O sofrimento dos povos 83
O perigo da pobreza . . . 85
A dor c o pecado 86
Deus não pode ser cruel 87
N D I c E

Págs.

� 'v'Or-;TADE E A PERMISSÃO DIVINAS 91

Por trás de tudo está o Senhor . . . 91


Comunidade de destino 94
Os que agora são perseguidos . . . 97

l DOR QUE AG RADA A DEUS 99

O amor e o sofrimento em alternância 99


A nossa glorificação de Deus . . . 101
O sacramento do momento 1 02
A renúncia nem sempre é sacrifício . . . 1 03
Obedecer é morrer 1 05
Trabalho e santidade . . . 1 06
A verdadeira grandeza . 1 08
Medida sobrenatural 110
txito e insucesso . . . 111

ALEG RIA N A DOR? 1 13

O coração humano sedento de alegria 113


A dor e a alegria 1 14
Não é apenas a religião da Cruz 1 16
Toda a dor é transitória 1 17

A DOR E A SANTA MISSA 1 19

Obrigados ao sacrifício . 1 19
O sacrifício do dia 121
A essência do sacrifício 1 22
Os sacrifícios dos pecadores e dos justos 1 23
Ofertas dignas do Senhor . . . 1 24
Sacrifícios - Transubstanciação 1 26
uE vivo, já não Eu . . . • 1 27
Não há outra alternativa 1 28
Cristo, dom e recompensa 1 29
Sacrifício e Comunhão 1 31
Sacrifício e eternidade . 1 33
1 N D I c E

Págs.
O SOFRI MENTO E A O R AÇÃO . 1 37
A miséria ensina a reza.r . . . 1 37
"Todas as coisas que pedirdes com fé» 1 38
"Seja feita a tua vontade ! » 1 39
Deus ouve-nos para nossa saivação . 141
Em confiaQça plena 1 44
Saber esperar . 145

A D O R NO MU NDO E NA ETERNIDADE 147


"Compreensão» do Inferno . 1 48
" Foi o amor eterno que me criou» 1 50
Também há justiça no Inferno . . . 151

MARolA. MODELO DOS QUE SOFREM . . . 1 55


O caminho de Nossa Senhora foi uma senda de dor 1 55
"Eu sou a serva do Senhor» . . . 1 57
D urante a infância de Jesus ... 1 58
Durante a actividade pública do Senhor 1 60
Durante a vida dolorosa do filho 161 I
U m dia veremos . . . 163

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NIHIL OBSTA T : 4 D E j A N EIRO D E 1 962

D O U T O R A N T Ó N I O D E B R IT O C A R D O S O

IMPRI MATUR : 5 DE j A N EI R O DE 1961

t ERNESTUS, A R C EBISPO- BISPO D E COIMBRA

A C A BOU DE SE IMPRIMIR A 6 DE JANEIRO

DE 1 962, NAS OFICINAS DA S . P. S. - SOCI E ­

DADE PORTUGUESA DE SERIGRAFIA , LDA.

RUA LUIS DE CAMOES, 1 39 - A - L I S B O A

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