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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE BACHARELADO EM FILOSOFIA

RAFAEL RODRIGUES LOPES

A TEORIA DA ILUMINAÇÃO EM AGOSTINHO

FOTALEZA - CEARÁ
2017
RAFAEL RODRIGUES LOPES

A TEORIA DA ILUMINAÇÃO EM AGOSTINHO

Trabalho de conclusão apresentado ao curso de


Bacharelado em Filosofia do Centro de Humanidades
da Universidade Estadual do Ceará como requisito
parcial para a obtenção do grau de graduado em
Filosofia.

Orientador: Prof. Ms. Francisco Venceslau de Oliveira


Jales

FORTALEZA – CEARÁ
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Universidade Estadual do Ceará

Sistema de Bibliotecas

Rodrigues Lopes, Rafael. A teoria da


iluminação em Agostinho [recurso
eletrônico] / Rafael Rodrigues Lopes. -
2017.

1 CD-ROM: 4 ¾ pol.

CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do


trabalho acadêmico com 48 folhas, acondicionado em
caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) -


Universidade Estadual do Ceará, Centro de
Humanidades, Graduação em Filosofia, Fortaleza,
2017.
Orientação: Prof. Me. Francisco Venceslau de
Oliveira Jales.

1. Teoria da iluminação. 2. Teoria do


conhecimento. 3. Santo Agostinho. I. Título.
Governo do Estado do Ceará
Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior
Universidade Estadual do Ceará - UECE
Centro de Humanidades - CH
Coordenação de Filosofia
Av. Luciano Carneiro, 345.
CEP: 60410 - 690 – Fortaleza, Ceará, Brasil.

ATA DE DEFESA

A Banca Examinadora composta pelos os professores Francisco Venceslau de Oliveira Jales


- UECE - como orientador principal; Eliana Sales Paiva como professora da disciplina -
UECE -; aprovou o aluno Rafael Rodrigues Lopes do curso de Filosofia, da Universidade
Estadual do Ceará, que defendeu a monografia intitulada: A Teoria da Iluminação em
Agostinho, apresentada na data de

Nota: ________ APROVADO (A)

__________________________________________________________.
Prof. Ms. Francisco Venceslau de Oliveira Jales (Orientador).

Fortaleza - CE,

__________________________________________________________.
Prof.ª Ms. Eliana Sales Paiva.
Professora da Disciplina de Monografia II, Manhã, do Curso de Filosofia - UECE.
AGRADECIMENTOS

A meus pais que sempre me incentivaram nos meus estudos.


A minha mãe Ana Lúcia Rodrigues Lopes que sempre lutou para que eu tivesse a melhor
escola e educação possível.
A meu pai George da Silva Lopes que muito me ajudou fazendo com que o sonho de me
formar se tornasse realidade.
Ao meu orientador Ms. Venceslau Jales que foi muito paciente comigo, não desistindo de me
orientar quando passei por problemas de saúde. Ele que sempre me acompanhou e me ensinou
e com isso foi possível que eu me tornasse um bom estudante de filosofia.
A todos os meus amigos do GESA (Grupo de Estudos em Agostinho) que contribuíram
significativamente para minha formação acadêmica com debates, discussões e trocas de
conhecimentos.
“É esta a luz verdadeira, a luz única,
e os que a veem e amam são todos um.”

(Santo Agostinho)
RESUMO
É muito comum confundir Agostinho com Platão e assim ser levado ao não reconhecimento
do avanço conquistado pelo doutor de Hipona. É claro que em Santo Agostinho se tem uma
forte influência platônica, mas sua filosofia não se resume ao platonismo, portanto é justo
reconhecer que em algumas questões ele supera Platão. E uma dessas questões é a teoria do
conhecimento na qual o doutor da Igreja, em sua teoria da iluminação, consegue explicar
como o homem entra em contato com verdades eternas, o que o filósofo ateniense não
explica. Já que é fácil confundir ambos os filósofos em questão, também é difícil visualizar a
crítica que um lança sobre o outro. Por que o filósofo africano criticou a reminiscência
platônica? Este tema será objeto de estudo deste trabalho. Se tomará como referência
principal a obra De Libero Arbitrio que além do problema do mal e da vontade, também
expõe a teoria do conhecimento, assunto que irá esclarecer o tema proposto. O presente
trabalho trata-se de uma pesquisa bibliográfica fundamentada na obra citada, cujo o
desenvolvimento nos leva a compreender que as normas gerais das ideias do mundo espiritual
platônico são iluminadas na mente humana levando o homem a julgar tudo. A doutrina da
iluminação é o núcleo central onde se cruzam os problemas gnosiológicos da filosofia
agostiniana, principalmente o problema do conhecimento, da verdade e da existência de Deus.
Tentando esclarecer por qual razão Deus concedeu ao homem o livre-arbítrio da vontade,
Agostinho chega a seguinte questão: existimos por virmos de Deus? Só aí é possível começar
a investigação da existência de Deus para assim expor a sua teoria do conhecimento com a
consequente teoria da iluminação. Entre as várias proposições ventiladas por Santo
Agostinho, esta ganha uma significativa importância pois nos dá a oportunidade de quebrar o
velho paradigma de que o doutor de Hipona é um platônico totalmente fiel à Platão. Vemos
neste tema que o filósofo africano rompe totalmente com o ateniense quando não dá ouvidos a
metempsicose e a reminiscência.

Palavras-chave: Agostinho. Platão. Iluminação.

ABSTRACT
It is very common to confuse Augustine with Plato and thus be led to not knowing the
advance achieved by the Hippo´s doctor. It is visible that in St. Augustine there is a strong
platonic influence, but his philosophy is not limited to platonism, it is fair to recognize that in
some matters he overcomes Plato. And one of these questions is the theory of knowledge in
which the church´s doctor, in the theory of enlightenment, can explain how man comes into
contact with eternal truths, which the athenian philosopher does not explain. Since it is easy to
confuse both philosophers in question, it is also difficult to visualize the criticism that one
throws at the other. Why the African philosopher criticized Platonic reminiscence? This
subject will be the object of study of this work whose proposal is to show why Augustine
criticized Plato. The main work will be self-determination which deals with evil, of man and
will, and in book two exposes the theory of knowledge, subject that will clarify the proposed
theme. The present work deals with a bibliographical research based on a book of the work
already cited, whose development leads us to understand that the general norms of the ideas
of the spiritual world development leads us to understand that the general norms of the ideas
of the platonic spiritual world are illuminated in the human mind leading man to judge
everything. The doctrine of enlightenment is the central nucleus where the gnosiological
problems of augustinian philosophy are crossed, especially the problem of knowledge, truth
and the existence of God. Trying to clarify why God gave man the free-arbrit of freedom,
Augustine make at the following question: we exist because we come from God? It is only
there that one can begin the investigation of the existence of God in order to expose his theory
of knowledge with the consequent theory of lighting. Among the various propositions
ventured by St. Augustine this one gains a significant importance, because it gives us the
opportunity to break the old paradigm that the Hippo´s doctor is a neoplatonic totally faithful
to Plato. We see in this theme that the African philosopher totally breaks with the athenian
philosopher when he does not care about metempsychosis and reminiscence.

Key words: Augustine. Plato. Lighting theory.

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................11
2 AS INFLUÊNCIAS DE AGOSTINHO: PLATÃO, PLOTINO E PORFÍRIO ..........13

2.1 A teoria da reminiscência ................................................................................................14

2.2 O êxtase em Plotino..........................................................................................................19

2.3 A salvação da alma em Porfírio .......................................................................................22

3 UM APANHADO GERAL DO QUE CONTRIBUIU PARA A CONSTITUIÇÃO DA


TEORIA DA ILUMINAÇÃO..............................................................................................25

3.1 A crítica a reminiscência...................................................................................................26

3.2 A crítica a transmigração das almas..................................................................................27

3.3 A crítica a eternidade da alma...........................................................................................31

3.4 A análise do êxtase plotiniano..........................................................................................33

4 A GNOSIOLOGIA EM SANTO AGOSTINHO............................................................35

4.1 A teoria do conhecimento.................................................................................................35

4.2 A teoria da iluminação......................................................................................................40

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................46

REFERÊNCIAS....................................................................................................................48
LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE AGOSTINHO1

civ. Dei Sobre a Cidade de Deus (413 - 427)


Trin. Sobre a Trindade (399 - 422/426)
lib. arb. Sobre o livre-arbítrio (387/388 - 395)

1
Lista baseada no Diccionario de San Agustín – San Agustín a traves del tempo.
11

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa teve início nas reflexões do GESA (grupo de estudos em Agostinho)
quando se tocava no assunto da teoria da iluminação. Assim, pensando em aprofundar o tema
supracitado, se encontrou a oportunidade de tratá-lo neste trabalho. Daí até a escolha do tema
desta monografia foi rápido; quando se teve que, no projeto de pesquisa, fazer a delimitação
do tema logo foi escolhido o tema da iluminação divina em Santo Agostinho. A teoria da
iluminação, que Agostinho legou à filosofia cristã, é um tema de suma importância uma vez
que ele supera a resposta que Platão2 dá a querela do conhecimento. O filósofo ateniense ao
afirmar que o conhecimento humano é só recordação de conhecimentos outrora adquiridos
pela alma, não consegue explicar como o homem entra em contato com verdades eternas,
universais e imutáveis. Agostinho ao considerar que as ideias do mundo espiritual platônico
chegam ao conhecimento do homem por iluminação, tal qual o símbolo do anel fica gravado
na cera sem prejuízo do anel; consegue explicar exatamente a natureza desse contato
cognoscente.

O presente trabalho tem o intuito de esclarecer a crítica de Agostinho à reminiscência


platônica, que figura não só como o corolário mas também como confirmação de sua teoria da
iluminação. Para isso se tomará como base de estudo a obra De Libero Arbitrio que trata do
livre-arbítrio, do mal, da vontade, além de tocar na teoria da iluminação. Além disso se
pretende também, com este trabalho, oferecer à comunidade acadêmica um estudo que
enalteça a diferença da gnosiologia agostiniana em relação à platônica.

É muito comum, no meio acadêmico, reduzir o pensamento agostiniano ao platônico,


com isso corre-se o risco de se perder a magnitude que Agostinho atribui à iluminação e assim
ser levado ao não reconhecimento do avanço conquistado por ele. A relevância desse estudo

2
Platão nasceu em Atenas em 428/427 a.C. Seu pai contava orgulhosamente com o rei Codros entre seus
antepassados, ao passo que sua mãe se orgulhava do parentesco com Sólon. Assim é natural que, desde a
juventude, Platão já visse na vida política o seu próprio ideal. Inicialmente foi discípulo de Crátilo, seguidor de
Heráclito. Posteriormente, foi discípulo de Sócrates. Frequentava o círculo de Sócrates para melhor se preparar,
pela filosofia, para a vida política. Entretanto, os acontecimentos orientariam a vida de Platão em outra direção.
Seu desgosto com os métodos da política praticada em Atenas deve ter alcançado o máximo de sua expressão
com a condenação de Sócrates à morte. Assim, Platão convenceu-se de que para ele, naquele momento, era bom
manter-se afastado da política militante. Em Atenas, fundou a Academia em um ginásio situado no parque
dedicado ao herói Academos. Ficou na direção desta até sua morte em 347 a.C. Cf. REALE, Giovanni;
ANTISERI, Dario. História da filosofia: antiguidade e idade média volume I. São Paulo: Paulus, 1990. p. 125 a
127.
12

se revela no que diz respeito a desconstrução desse ponto de vista danoso e a melhor
compreensão do pensamento agostiniano pelos os estudantes de filosofia.

Tem-se a intenção de fixar esta pesquisa apenas na delimitação do tema proposto.


Não se fará aqui atualizações, deduções ou relações com os demais pensadores que também
trataram dessa questão. Olhando para a teoria da iluminação fica difícil perceber a cisão com
o platonismo, assim não se encontrou nenhuma obra de Agostinho que trata dessa ruptura,
exceto a obra De Trinitate. História da Filosofia Cristã: desde as Origens até Nicolau de
Cusa de Étienne Gilson e Philotheus Boehner e Agostinho: Buscador Inquieto da Verdade de
José Zacarias de Souza que aqui foram utilizadas também abordam essa temática. E para
tratar da teoria da iluminação se utilizou além do De Libero Arbitrio e dos comentários já
citados o comentário: 10 Lições sobre Santo Agostinho de Marcos Roberto Nunes Costa. O
objetivo aqui não é fazer uma comparação entre essas obras e comentários, mas é utilizá-los
para elucidar o tema desse estudo.

Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro se abordará as influências


de Agostinho: Platão, Plotino3 e Porfírio4. No que concerne a teoria da iluminação o filósofo
ateniense legou ao filósofo africano a teoria da reminiscência, o filósofo alexandrino o êxtase
e o filósofo de Tiro a salvação da alma. Assim se fará uma análise do que é influência do
filósofo de Atenas, do filósofo de Licópolis e de Porfírio em Santo Agostinho. No segundo
capítulo tem-se um apanhado geral do que contribuiu para a constituição da teoria da
iluminação. Com isso se analisará a crítica a reminiscência que está no De Trinitate, a crítica
a transmigração das almas, a crítica a eternidade da alma e a opinião de Agostinho sobre o
êxtase plotiniano que estão no De Civitate Dei. Desse modo se quer analisar como o doutor de
Hipona chegou a conceber sua teoria da iluminação. No terceiro capítulo se responderá, com

3
Plotino nasceu em Licópolis provavelmente em 205 d.C. Teve uma vida marcada pela austeridade e renúncia.
Aos vinte e oito anos, depois de decepcionar-se com a filosofia ensinada nas escolas de Alexandria, passou a
frequentar as aulas de Amônio Sacas, o qual influenciou de modo decisivo em sua formação filosófica. Movido
pelo interesse de vivenciar a filosofia praticada por persas e indianos, decidiu seguir o imperador Jordano em sua
marcha contra os persas em 243 d.C. Com a morte do imperador, Plotino foi obrigado a fugir para Antioquia e
depois para Roma, cidade que abrigará sua escola. Morreu aos sessenta e seis anos, vítima de uma doença
degenerativa. Cf. BEZERRA, Cícero Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 59 a
61.
4
Porfírio nasceu em Tiro em 233/234 d.C. Foi, primeiro, aluno de Longino em Atenas. De 263 a 268 d.C., esteve
na escola de Plotino, onde seu pensamento filosófico alcançou a maturidade. Como consequência de grave crise
depressiva, que o levou a desejar o suicídio, aconselhado por Plotino, deixou Roma e dirigiu-se à Sicília, a
Lilibeu, onde reencontrou o equilíbrio espiritual. Voltou em seguida à Roma. Só nos últimos anos da sua vida
(talvez depois de 298), conseguiu preparar e publicar a edição das Enéadas plotinianas, tendo preparado-a por
vontade do mestre. Morreu em torno de 305 d.C. Cf. nota explicativa do livro: REALE, Giovanni. Plotino e o
neoplatonismo história da filosofia grega e romana VIII. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo
Perine. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 147.
13

toda a gnosiologia agostiniana, a pergunta: Por que Agostinho criticou a reminiscência


platônica?

2 AS INFLUÊNCIAS DE AGOSTINHO: PLATÃO, PLOTINO E PORFÍRIO

Para tratar com maior riqueza de detalhes a teoria da iluminação de Santo Agostinho,
faz-se mister uma cuidadosa análise de suas possíveis influências. Primeiramente Platão, uma
vez que o bispo de Hipona o conheceu por meio do neoplatonismo; em seguida Plotino, o qual
Agostinho expõe seu pensamento sobre a iluminação do Alto em sua obra De Civitate Dei e
depois Porfírio que vê na Filosofia um meio de elevação a Deus. O célebre filósofo grego
defende a tese gnosiológica da reminiscência, segundo a qual o conhecimento é só recordação
do que a alma já sabia antes. Tal teoria surge como uma resposta ao problema do
conhecimento e se impõe como refutação à polêmica proposição erista de que o conhecimento
não é possível; assim a anamnese seria uma solução diferente para a questão do conhecimento
em relação à iluminação. Agostinho na obra De Trinitate critica a reminiscência de Platão e
Pitágoras5, não se contentando com a explicação gnosiológica platônico-pitagórica o filósofo
africano opta por uma teoria mais de acordo com a fé cristã: a iluminação. Devido a essa forte
oposição de Santo Agostinho à tese de Platão e Pitágoras, é que se faz pertinente à
compreensão deste estudo a abordagem da supracitada teoria grega.

Plotino é um filósofo muito importante na compreensão da teoria da iluminação


agostiniana, uma vez que o próprio Agostinho corrobora o êxtase (ou iluminação) plotiniano:

Nesta questão nenhuma divergência existe entre nós e esses eminentes filósofos:
viram, e de várias maneiras e desenvolvidamente o disseram nos seus escritos, que a
felicidade destes seres, tal qual como a nossa, procede de um objeto inteligível pela
luz, que para eles é Deus, mas que é algo diferente deles – o qual os esclarece de tal

5
Pitágoras nasceu em Samos, vivendo o apogeu de sua vida em torno de 530 a.C. e morrendo no início do século
V a.C. O mais conhecido dos antigos biógrafos dos filósofos, Diógenes Laércio, assim resume as etapas de sua
vida: “Jovem e ávido de ciência, abandonou sua pátria e foi iniciado em todos os ritos mistéricos, tanto gregos
como bárbaros. Depois, foi para o Egito; depois esteve entre os caldeus e magos. Posteriormente, em Creta, com
Epimênides, entrou no antro de Ida, mas também no Egito entrou nos santuários e aprendeu os arcanos da
teologia egípcia. Então, voltou a Samos e, encontrando sua pátria sob a tirania de Polícrates, zarpou para
Crotona, na Itália. Ali, elaborou leis para os italiotas e conseguiu grande fama, juntamente com seus seguidores,
que em número de cerca de trezentos, administravam tão bem a coisa pública que seu governo foi quase uma
aristocracia”. Além de filosófica e religiosa, a influência dos pitagóricos também foi notável no campo político.
O ideal político pitagórico era uma forma de aristocracia baseada nas novas camadas dedicadas especialmente ao
comércio. Conta-se que os crotonienses, temendo que Pitágoras quisesse tornar-se tirano da cidade, incendiaram
o prédio em que ele se havia reunido com seus discípulos. Segundo algumas fontes, Pitágoras teria morrido
nessas circunstâncias; segundo outros, porém, teria conseguido fugir, vindo a morrer em Metaponto. cf. REALE;
ANTISERI. História da filosofia: antiguidade e idade média. p. 38 e 39.
14

forma que ficam iluminados e, participando dessa luz, permanecem perfeitos e


felizes6.

Essa passagem mostra como é possível afirmar certa influência de Plotino na teoria da
iluminação de Agostinho. De fato, o êxtase plotiniano tem muito em comum com a citada
teoria agostiniana, pois é caracterizado como uma forma de conhecimento que se assemelha a
uma luz que auxilia no discernimento. O filósofo de Tiro concebe a Filosofia como um meio
de salvação da alma, ou seja, como caminho de purificação e instrumento de elevação a Deus.
Assim a elevação a Deus figura como iluminação uma vez que a inteligência reconhece em si
a marca de Deus e da Sua lei.

2.1 A Teoria da Reminiscência

A anamnese é um dos temas mais complicados em Platão, além de apresentar


diversas aporias nas soluções propostas ao problema do conhecimento 7. Pela primeira vez na
história da filosofia se trata com clareza a querela do conhecimento. Existem pelo menos duas
importantes versões da teoria da reminiscência que se aproximam e se confirmam na obra
platônica; a primeira tem caráter mítico e é encontrada no “Mênon” e a segunda se une ao
conceito de Ideia e está no “Fédon”. Apesar das diversas dificuldades de análise este estudo
pretende chegar à compreensão exata do que é a anamnese, para daí se ter uma clara noção da
crítica que Agostinho fez a Platão e Pitágoras e assim vislumbrar uma ideia geral do que é a
iluminação divina em Santo Agostinho.

O problema do conhecimento já fora abordado pelos filósofos precedentes, mas


Platão deu um tratamento específico a essa questão com a reminiscência. Os eristas 8
afirmavam que era impossível investigar e conhecer, tentando assim capciosamente bloquear
a gnosiologia. Ora, é impossível conhecer e investigar aquilo que não se sabe por que nem ao
menos se saberia o que procurar e, se o encontrasse, não o reconheceria pois faltaria o meio
para a realização do reconhecimento. Assim, também é impossível conhecer o que se sabe já
que ele é conhecido. Essa proposição era rejeitada por Sócrates 9 uma vez que fomentava o
6
civ. Dei. X, 2, 1.
7
cf. REALE; ANTISERI. História da filosofia: antiguidade e idade média. p. 146.
8
Como eram chamados os sofistas e os membros da escola megárica os quais se dedicavam à arte de combater
com palavras. cf. ABBAGNANO. Dicionário de filosofia. p. 340.
9
Sócrates nasceu em Atenas em 470/469 a.C. e morreu em 399 a.C., em virtude de uma condenação por
“impiedade” (foi acusado de não crer nos deuses da cidade e de corromper os jovens). Era filho de um escultor e
15

ócio: “Daí não darmos acolhida a esse argumento controverso pertencente à erística, que nos
lançaria à ociosidade e só agrada ao ouvido indolente [...]10”. Foi tentando resolver esse
impasse proposto pelos eristas que Platão elaborou a teoria da reminiscência, e isso só foi
possível graças à descoberta das Ideias11 (eidos).

No “Mênon” a anamnese é apresentada sob dupla forma: primeiro assume um caráter


mítico vinculando-se a doutrinas órfico-pitagóricas, depois usa a dialética num fato
experimental. O argumento socrático diz que a alma é imortal porque a verdade da totalidade
das coisas que são permanece sempre nela. Sendo assim, a alma humana não só não pode
morrer como também renasce e jamais é destruída. Considerando-se que ela renasceu muitas
vezes e que conheceu todas as coisas tanto no mundo terreno como no mundo subterrâneo dos
mortos, nada há que não sabe. Disso se depreende que seja capaz de lembrar-se de tudo que
aprendeu antes, ou seja, de extrair de si mesma tudo que já possui desde sempre:

Como o todo da natureza tem afinidade, e a alma aprendeu todas as coisas, nada há
que nos impeça, após lembrarmos de uma única coisa – processo que os seres
humanos denominam aprendizado – de descobrir tudo o mais por nós mesmos, se
formos corajosos e não fraquejarmos na investigação, isso porque investigação e
aprendizado, como um todo, consistem em reminiscência 12.

Depois de expor toda a teoria da reminiscência de forma mitológica, Sócrates parte


para a comprovação empírica. Após pedir a Mênon para chamar um escravo seu, faz com este
uma experiência maiêutica13 a fim de provar tudo o que foi dito pelo mito. Questionando o
servo sobre geometria e fazendo com que ele resolvesse, somente através de perguntas, um
complexo problema implicando o teorema de Pitágoras, o filósofo mestre de Platão começa a
provar empiricamente sua tese. Ao levar o seu interlocutor ao entorpecimento causado pelas
perguntas sucessivas, o filósofo questionador o faz constatar que nada sabe. É somente a

uma obstetriz. Não fundou uma escola, como os outros filósofos, realizando seus ensinamentos em locais
públicos. Sofreu influência da sofística, mas fez próprios os seus problemas embora polemizando firmemente
contra as soluções que lhes foram dadas pelos maiores sofistas. Sócrates não escreveu nada, considerando que a
sua mensagem era transmissível pela palavra viva, através do diálogo e da “oralidade dialética”. Seus discípulos
fixaram por escrito uma série de doutrinas a ele atribuídas. Na maior parte de seus diálogos, Platão idealiza
Sócrates e o faz porta-voz também de suas próprias doutrinas: desse modo, é dificílimo estabelecer o que é
efetivamente de Sócrates nesses textos e o que, ao contrário, representa repensamentos e reelaborações de Platão.
Os vários socráticos, fundadores das chamadas “escolas socráticas menores”, deixaram muito pouco sobre ele,
lançando luz apenas sobre um aspecto parcial de Sócrates. Desse modo, alguns chegaram a sustentar a tese da
impossibilidade de reconstruir a figura “histórica” e o pensamento efetivo de Sócrates. cf. REALE; ANTISERI.
História da filosofia: antiguidade e idade média. p. 85 e 86.
10
PLATÃO. Diálogos V: o banquete; Mênon (ou da virtude); Timeu; Crítias. p. 127.
11
Termo melhor traduzido por forma (eidos) e que para Platão é o fundamento da realidade, sendo o modelo
único no múltiplo. cf. ABBAGNANO. Dicionário de filosofia. p. 524 a 528.
12
PLATÃO. Diálogos V:o banquete; Menôn (ou da virtude); Timeu; Crítias. p. 127.
13
Arte da parteira. No “Teeteto” Sócrates compara seus ensinamentos a essa arte, ou seja, seus ensinamentos
consistem em dar à luz a conhecimentos que se formam na mente de seus discípulos. cf. ABBAGNANO.
Dicionário de filosofia. p. 637.
16

partir daí que ele se torna capaz de dedicar-se à investigação, do contrário ele não precisaria
investigar e nem teria o anseio de conhecer. Como o escravo acertara na resolução do
problema e como ninguém lhe fornecera a resposta, conclui-se que ele extraiu de si opiniões
verdadeiras que se transformaram em conhecimentos mesmo sendo ele ignorante do assunto.
E essas opiniões ficaram nele tumultuadas, como num sonho, por ter ele sido entorpecido
pelas perguntas. Desse modo a reminiscência, ou seja, a descoberta ou recuperação de
conhecimento dentro de si e por si atua mediante a maiêutica. Portanto, a anamnese se põe
como a justificação e a realização factual da própria possibilidade do método socrático.

Aliada à teoria da reminiscência não só está à maiêutica socrática como também está
a teoria da imortalidade da alma. Uma vez que se constatou a presença de opiniões
verdadeiras num indivíduo que não tem conhecimento, logo ele não pode ter aprendido tais
opiniões enquanto ser humano justamente porque ele é ignorante. Portanto, só pode as ter
adquirido quando não era um ser humano. Desse modo se nesses dois períodos, ou seja,
enquanto é e enquanto não foi um ser humano, ele teve dentro de si tais opiniões, então ele
teve essa cognição o tempo todo14. Do que se depreende que a alma é imortal. É importante
observar que a anamnese é um processo natural que implica numa conversão, as opiniões
verdadeiras quando despertadas pela interrogação transformam-se em conhecimentos.
Portanto a reminiscência tem uma dupla função: apreender as opiniões verdadeiras e
transformá-las em conhecimentos.

No “Fédon” Platão confirma de maneira contundente o que dissera no “Mênon”


utilizando-se do conceito de Ideia. Essa versão da reminiscência é a que mais se aproxima da
teoria da iluminação de Agostinho, uma vez que ela supõe estruturalmente uma marca
impressa na alma pela Ideia; assim como na teoria do hiponense é Deus mesmo Quem
imprime as normas estéticas e éticas na alma.

O filósofo discípulo de Sócrates expõe a reminiscência atrelando-a ao conceito de


Ideia. Ideia ou Forma é o fundamento da realidade, a causa primeira de todas as coisas, o
princípio imutável. A cada objeto do nível físico (realidade) corresponde uma Ideia que é em
si e por si; por exemplo, a beleza de uma coisa qualquer implica à Ideia de Beleza em si, a
justiça de uma lei está correlacionada à Justiça em si, a bondade de uma pessoa está ligada à
Bondade em si. E esse raciocínio se repete para todo objeto do real. Sendo assim o que faz as
coisas serem o que são é a Ideia que é em si e por si:

14
cf. PLATÃO. Diálogos V: o banquete; Mênon (ou da virtude); Timeu; Crítias. p. 136.
17

Se alguém me diz porque razão um objeto é belo, e afirma que é porque tem cor ou
forma, ou devido a qualquer coisa desse gênero – afasto-me sem discutir, pois todos
esses argumentos me causam unicamente perturbação. Quanto a mim, estou
firmemente convencido, de um modo simples e natural, e talvez até ingênuo, que o
que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si, de qualquer modo que se
faça a sua comunicação com este15.

Assim como no nível do real os objetos constituem um mundo, as Ideias num nível
transcendente formam outro “mundo”. Desse modo o mundo físico tem seu respaldo no
“mundo” das Ideias. Esse nível das idealidades puras não é fantasia, ou seja, fruto de uma
construção subjetivista. É a própria causa de tudo o que é, como afirma Tiago Adão Lara: “É
a própria matriz de tudo o que existe, a explicação última da realidade, a amarração final de
toda explicação, a densidade máxima do ser, o real em si e por si16”. Em suma, a Ideia não é
simples forma subjetiva com a qual o sujeito pensa a realidade. Ela é a própria transparência
do real, o real que se torna transparente para a inteligência; é a fonte da realidade 17. Uma das
características da Ideia é que ela não aceita o seu contrário, inversamente do que ocorre com
as coisas que possuem qualidades contrárias. Percebe-se que a Grandeza em si jamais é
grande e pequena; quando o seu contrário se aproxima ou ela se retira e foge, ou então deixa
de existir. Entretanto existem coisas que sem serem mutuamente contrárias umas às outras,
possuem sempre em si os contrários, e as quais não receberão jamais uma qualidade que seja
o contrário da que nelas existe. Por exemplo; a neve não aceita o calor, pois quando este se
aproxima ou ela fugirá ou deixará de existir, do mesmo modo o fogo ao aproximar-se o frio
ou retirar-se-á ou não subsistirá. Portanto não são somente as Ideias que não permitem a
aproximação de seus contrários, mas também certas outras coisas que sem serem contrárias
possuem os contrários18.

O argumento exposto acima é importante porque por ele se prova a imortalidade da


alma que está relacionada à reminiscência, alvo deste capítulo. Segundo Sócrates a alma entra
no corpo e traz vida, com isso ela não aceita o contrário do que ela sempre traz consigo, ou
seja, a morte. Portanto se a alma não aceita a morte ela é imortal, já que o que não admite a
morte é chamado de imortal. Assim, como no argumento anterior, se o imortal é indestrutível
a alma não pode ser destruída quando a morte (o contrário do que a alma carrega) se
aproxima. Em consequência do que se disse a alma nem aceitará a morte, nem ficará morta da
mesma forma como nem o fogo será frio, nem o calor no fogo será frio e assim por diante.

15
PLATÃO. Diálogos: o banquete; Fédon; sofista; político. p. 107.
16
LARA. Caminhos da razão no Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. p. 100.
17
cf. id. ibid., p. 103.
18
PLATÃO. Diálogos: o banquete; Fédon; sofista; político. p. 111. cf. Fédon.
18

Platão começa a expor o argumento da anamnese no “Fédon” apelando para os


sentidos. Se se vê ou se ouve alguma coisa, ou se se experimenta não importa que outra
espécie de sensação, não é somente a coisa em questão que se conhece, mas se tem também aí
a imagem de outra coisa. Nesse processo há uma recordação daquilo mesmo de que se teve a
imagem. Por exemplo; quando amantes veem uma lira, uma vestimenta ou qualquer outro
objeto de que seus amados habitualmente se servem recordam a própria imagem do amado a
quem esse objeto pertenceu, ora aí houve uma recordação. Desse modo pode-se recordar algo
igual ou diferente daquele objeto que inspirou tal reminiscência. Tomando como base a
recordação onde há a lembrança de algo semelhante ao objeto que foi ponto de partida para a
reminiscência, observa-se que falta algo nos dados que a experiência fornece em relação a
aquilo a que se recorda. Sendo assim esse algo de que se recorda e que é superior aos dados
da experiência é a Ideia. Ao perceber a igualdade entre paus e pedras se é levado a pensar no
Igual em si mesmo que é distinto dessas demais igualdades. Portanto, há uma cisão entre o
Igual (que é recordado) e as demais igualdades (que geram a reminiscência).

Entretanto para pensar o Igual em si a partir de certas igualdades, é necessário o


conhecimento desse Igual muito antes de tal experiência em questão. Assim, antes de começar
a ver, a ouvir, a sentir de qualquer modo que seja, é preciso que se tenha adquirido o
conhecimento do Igual em si, para que seja possível comparar com essa realidade as coisas
iguais que as sensações mostram. Com isso esse conhecimento das Ideias que são em si e por
si é adquirido antes do nascimento, já que é necessário para com ele poderem-se comparar as
coisas que as sensações fornecem. Com o nascimento o conhecimento das Formas perde-se,
para mais tarde ser recordado a partir do uso dos sentidos:

E em troca, penso, poder-se-ia supor que perdemos, ao nascer, essa aquisição


anterior ao nosso nascimento, mas que mais tarde, fazendo uso dos sentidos a
propósito das coisas em questão, reaveríamos o conhecimento que num tempo
passado tínhamos adquirido sobre elas. Logo, o que chamamos de “instruir-se” não
consistiria em reaver um conhecimento que nos pertencia? E não teríamos razão de
dar a isso o nome de recordar-se19?

Depois do exposto pode-se concluir que conhecer é em última instância, reconhecer, é


recordar algo já previamente conhecido. Mas para haver tal recordação é necessário ter
conhecido antes do nascimento a intuição pura das Formas (Ideias), numa etapa da vida que a
alma humana gozou no “mundo” das Ideias puras20.

19
PLATÃO. Diálogos: o banquete; Fédon; sofista; político. p. 79.
20
cf. LARA. Caminhos da razão no Ocidente: a filosofia nas suas origens gregas. p. 100.
19

2.2 O Êxtase em Plotino

Existem certamente seis pontos importantes no pensamento filosófico de Plotino,


alguns dentre os quais não receberam uma fundamentação proporcional a sua magnitude por
se tratar de ideias já estabelecidas 21. O primeiro ponto diz respeito à clássica cisão entre os
dois níveis da realidade: o inteligível e o sensível; Plotino assume esse princípio sem se
preocupar em demonstrá-lo uma vez que os médio-platônicos e os neopitagóricos já o
fizeram. Logo em seguida vem o princípio da determinação triádica do incorpóreo; onde o
Uno está acima do ser e da essência e é o fundamento da realidade, o Espírito é a unidade
entre ser e pensar e a Alma é produtora do corpóreo. Nesse ponto há uma defesa da estrutura
triádica do inteligível, sobretudo contra os gnósticos que multiplicavam os Éons 22. O terceiro
ponto é a doutrina da processão, ou seja, o modo pelo qual as três hipóstases estão unidas. Do
Uno procede o Espírito e desse a Alma que por sua vez dá origem ao cosmo sensível, nesse
processo o nível mais alto gera o mais baixo sem se diminuir. Esse princípio é justamente o
traço novo e distintivo do neoplatonismo.

O quarto ponto está ligado ao princípio da processão das hipóstases; é a doutrina


segundo a qual o corpóreo não constitui por si um princípio subsistente, mas procede da Alma
(última hipóstase), portanto o nível sensível é “deduzido” do suprassensível. O próximo ponto
é a unidade de toda a realidade; assim como as três hipóstases estão unificadas no incorpóreo,
a matéria sensível está envolvida pelo inteligível. E finalmente o sexto ponto é a doutrina do
êxtase; segundo Plotino nada é contrário ao Uno porque tudo procede Dele, portanto é
possível um “retorno” a esse Princípio desde que o homem, mesmo ainda em vida,
desapegue-se do exterior e entre em si mesmo. Este último ponto além de ser o mais
importante para o presente trabalho, transforma a ética em ascese espiritual por colocar a
felicidade na união mística com o Uno.

Do Uno não só procede mas também depende todo o sistema de Plotino, essa
primeira hipóstase é sinônimo de unidade e sem ela não subsiste qualquer ente 23. Tal fato é
totalmente verificável quando se observa um exército. Um grupo de soldados não é
denominado exército se não se apresenta como “uno”, tirada a unidade o ser muda e também

21
cf. REALE. Plotino e o neoplatonismo história da filosofia grega e romana VIII. p. 29.
22
Termo utilizado pelos gnósticos, especialmente por Valentino, para designar Deus e os entes “eternos” que
Dele emanam. cf. ABBAGNANO. Dicionário de filosofia. p. 337.
23
cf. REALE. Plotino e o neoplatonismo história da filosofia grega e romana VIII. p. 41.
20

o novo ser que aparece existe enquanto “uno”. A unidade que está imanente a todos os entes
físicos não pode proceder do sensível; portanto cabe a Alma plasmar, formar e coordenar
todos os seres corpóreos dando-lhes unidade. Todavia a Alma una é múltipla porque nela
existem muitas potências (raciocinar, perceber, desejar...) que estão unidas por um vínculo em
virtude do Uno, logo essa terceira hipóstase não é a unidade mas a recebe de algo que lhe é
superior. Maior que a Alma é o Espírito (segunda hipóstase) que estando no pensamento
pensa o que lhe é anterior e, desse modo, voltando-se sobre si volta-se para o seu princípio.
Com isso o Espírito é o pensante e o pensado não podendo ser totalmente “uno”, mas no
entanto possui um grau de unidade superior ao da Alma que vem de outro ente. Enfim, a
hipóstase que é fonte de toda unidade sendo ela mesma “Una” em si é o Uno. Por não possuir
nenhuma multiplicidade Dele procede a totalidade de todos os entes, portanto para Plotino
somente o Uno pode ser o fundamento da realidade.

De tudo o que foi exposto até aqui resulta aquilo que provavelmente é uma das
teorias que levanta mais controvérsias em Plotino, ou seja, o êxtase 24. Essa união mística com
o Uno capaz de levar a um grau de existência e conhecimento superiores que é chamada de
êxtase, é para onde se dirigi naturalmente toda a filosofia do alexandrino. Observando o
princípio plotiniano da unificação de toda a realidade fica claro que é possível um retorno da
alma ao Uno, já que todo real é um só; entretanto, esse retorno tem um preço muito alto.
Existem pelo menos três caminhos que levam ao Absoluto: as virtudes, a erótica, e a dialética.
Essas vias de retorno à primeira hipóstase correspondem a uma preparação tanto moral quanto
intelectual, e a um percorrer em sentido contrário a processão hipostática. Tendo em vista que
as hipóstases procedem do Uno por “diferenciação” e alteridade ontológica, fazer o caminho
contrário a processão significa retirar a diferença e a alteridade até voltar Àquele onde não
existem tais atributos citados, ou seja, ao Uno. Tal processo é marcado profundamente por
uma interiorização do homem e por um desapego a tudo o que é corpóreo, e até mesmo a
parte afetiva da alma.

As estradas que conduzem ao Uno são também modos de purificação da alma, isto é,
a maneira pela qual a alma é isolada ficando assim livre de opiniões alheias, da visão de
imagens das paixões e da criação de paixões. Além disso; os supracitados caminhos indicam
“separação”, que é o não inclinar-se imoderadamente da alma e o seu não abandonar-se à
fantasia das coisas inferiores. Na verdade, todo o percurso de volta à causa de todas as coisas
se resume ao despojamento. É preciso que a alma despoje-se de tudo para alcançar o Uno:
24
cf. BEZERRA. Compreender Plotino e Proclo. p. 88.
21

Assim como foi dito a propósito da matéria, ou seja, que ela deve estar despojada de
tudo se deve receber as formas de todas as coisas, assim, e muito mais, a alma deve
ficar privada de formas se pretende que nada haja nela que sirva de obstáculo à
plenitude e à iluminação da Natureza primordial que a ela são comunicadas. Assim
sendo, deve despojar-se de todas as coisas exteriores, voltar-se totalmente para o seu
interior, não mais inclinar-se para algo exterior, mas, desconhecendo tudo o mais
[...], desconhecendo também a si mesma, permanecer toda na contemplação do Uno.
[...]25.

Esse despojar-se da alma não implica falta de conteúdo ou anulação de si, muito pelo
contrário, significa fazer-se maior preenchendo-se do Todo, portanto, do Infinito. Longe de
conduzir a uma perda no nada, o esvaziamento da alma a conduz não somente à plenitude do
Ser, mas ao Uno que é o Absoluto.

Depois que a alma despoja-se de tudo e até mesmo da palavra, do discurso e da razão
discursiva; ela fica preparada e então se une ao Uno. Esse evento é uma experiência do
pensamento e da consciência que se supera e se realiza em sua máxima possibilidade; é pelo
seu próprio esforço que a alma atinge a primeira hipóstase. Nesse caso o Absoluto jamais
poderia se doar, como se somente por ação Dele o êxtase ocorresse, pois isso implicaria numa
atividade que Lhe é extrínseca o que é incompatível com Seu caráter unitário. Na união
mística com o Princípio de todas as coisas a alma se vê toda no Uno e plena Dele, de modo
que a Ele se assimila e na Sua subsistência participa. Nessa condição a alma sendo arrebatada
é introduzida num estado que não sofre mais abalos, não se afasta do Uno e permanece
estática. Essa experiência mística é tão sublime que não é somente uma visão, mas um modo
diferente de ver: “[...] um êxtase e uma simplificação, um dom de si mesmo e um desejo de
contato, repouso e cuidado para bem adaptar-se [...]26”.

O contato íntimo com o Absoluto é tão forte que a alma não sente mais o corpo, não
se exprime a si mesma como sendo outra coisa e não olha para si; mas somente se consome na
contemplação do seu Amado. Essa unificação com o Uno é caracterizada como iluminação,
ou seja, uma espécie de conhecimento que se assemelha a uma luz que auxilia no
discernimento27. O saber adquirido na contemplação da primeira hipóstase não é discursivo, e
tampouco essa experiência mística é um estado de inconsciência ou algo irracional ou sub-
racional. Ao contrário, o êxtase faz com que a alma se assemelhe de tal forma ao fundamento
da realidade que ela participa de Suas características peculiares, como por exemplo, o estar

25
PLOTINO apud REALE. Plotino e o neoplatonismo história da filosofia grega e romana VIII. p. 121.
26
id. ibid., p. 125.
27
Para Cícero Cunha Bezerra, não há consenso quanto à natureza epistemológica do êxtase. cf. BEZERRA.
Compreender Plotino e Proclo. p. 88.
22

acima do Pensamento, da Razão e da Consciência. Portanto, a união mística com o Uno é


notadamente um estado de hiperconsciência e um evento hiper-racional.

2.3 A Salvação da Alma em Porfírio

Para começar bem a exposição do presente tema faz-se necessário uma explanação
sobre o sistema filosófico de Porfírio. As novidades mais notáveis apareceram no âmbito da
metafísica. Já no século XX alguns estudiosos tinham percebido que o Ser, a Vida e a
Inteligência, que em Plotino são características essenciais do Espírito, tendem a tornar-se em
Porfírio hipóstases propriamente ditas. Recentemente, porém, estudos mostraram como na
realidade Plotino foi bem mais longe. Instigado pela doutrina dos Oráculos Caldaicos, bem
como pela metafísica plotiniana, o filósofo de Tiro estabeleceu, como se depreende de alguns
testemunhos, uma Enéada no vértice da teologia, ou seja, três hipóstases caracterizadas cada
uma por uma tríade, de outro modo, por três momentos distintos. Utilizando todos os
testemunhos que a esse propósito chegaram até os dias de hoje, estudos conseguiram
demonstrar que as três tríades eram constituídas todas pelos mesmos termos (Subsistência,
Vida e Inteligência) e não se distinguiam entre si a não ser pelo predomínio de um termo
sobre o outro.

No nível do Pai a Inteligência se reduz a um estado de pura subsistência; Vida e


Inteligência se confundem com a Subsistência. Saindo da Subsistência, a Inteligência torna-se
vida, e é essa a segunda tríade; ela se encontra, então, em um estado de alteridade e infinitude.
A Inteligência é verdadeiramente a si mesma somente na terceira tríade, quando então
predomina sobre a Vida e a Subsistência. Nessa enéada, o Pai ou a Subsistência é, pois, o
primeiro momento da autogeração da Inteligência 28. O Uno, segundo Porfírio, não está acima
da tríade (ou da enéada), mas coincide com o primeiro termo dela. Para o filósofo de Tiro, o
Uno seria o ser puro (a potência absoluta) a partir do qual deriva e se desenvolve a
Inteligência. Resumindo, o filósofo de Tiro parece não se ter despojado de todo da
mentalidade medioplatônica, ligando o Uno à Inteligência de maneira tal que os pensadores
neoplatônicos da corrente pagã posterior não podiam aceitar (ao passo que, por uma razão
oposta, a posição porfiriana se prestava a ser utilizada com vantagem por parte dos pensadores

28
cf. REALE. Plotino e o neoplatonismo história da filosofia grega e romana VIII. p. 150.
23

cristãos para a elaboração da doutrina trinitária). Observou-se, além disso, que Porfírio, a
propósito do problema da origem do mundo, aproxima-se, de certa maneira, da concepção da
criação a partir do nada, rejeitando expressamente a necessidade da matéria para a geração do
mundo e sustentando a origem temporal do mundo. Todavia, com base nos testemunhos que
chegaram até hoje, não é possível avaliar a incidência e o alcance dessas teses na economia da
metafísica porfiriana.

Porfírio dá um lugar privilegiado a moral, e apresenta uma sensibilidade particular


para com a problemática ética. Concebendo a Filosofia como “salvação da alma”, ou seja,
como caminho de purificação e instrumento de elevação a Deus o filósofo de Tiro transforma
a Filosofia em ascese espiritual por pensar ela como meio de entrar em contato com o divino.
A “salvação” consiste, exatamente, em libertar-se, primeiro do peso do corpo, depois das
paixões da alma e, enfim, em subir até Deus através da própria alma. De acordo com Porfírio
o elevar-se até Deus por meio da própria alma é possível porque dentro do homem existem,
simultaneamente, “o que é salvado” e “o que salva”. E o que salva é “um verdadeiro mestre”
presente na alma humana, a saber, Deus e a Sua lei ou, de outro modo, a inteligência que
reconhece em si a marca de Deus e da Sua lei.

A inteligência é mestra, salvadora, alimento, guardiã e guia, ela entende a verdade no


silêncio e, descobrindo a lei de Deus com a contemplação de si mesma, reconhece no seu
íntimo a lei nela impressa desde a eternidade29. Aqui é o ponto em que mais se aproxima da
teoria da iluminação, uma vez que na citada teoria as normas e regras gerais das verdades
eternas, universais e necessárias são impressas na alma humana sem prejuízo de sua
transcendência, do mesmo modo como em Porfírio a lei divina esta impressa na inteligência.
Deus se espelha sobretudo nas mentes puras, mas não se pode ver nem através do corpo, nem
através da alma torpe e obscurecida pelo vício. A beleza divina é incólume, sua luz é vida
resplendente de verdade; o vício é falsidade por causa da ignorância, se engana a alma viciosa
pelos afetos da alma que julga ser o bem, e é deformação por causa da feiúra moral.

Por isso o justo é desejar e pedir a Deus o que ele mesmo quer e é, porque é bem
verdade que quanto mais um homem ama o corpo e as coisas afins ao corpo, tanto mais
desconhece Deus e obscurece em si a visão Dele, mesmo se for honrado como um deus por
todos os homens. O homem sábio é conhecido de poucos ou mesmo, é desconhecido de todos,
mas é conhecido de Deus. Portanto é bom que a inteligência siga a Deus e contemple em si a

29
cf. PLOTINO apud REALE. Plotino e o neoplatonismo história da filosofia grega e romana VIII. p. 151.
24

Sua imagem; a alma siga a inteligência; o corpo, enquanto possível, sirva à alma, tornando-se
puro para ela que é pura: de outra forma, tornado impuro pelas paixões da alma, ele, por sua
vez, derramará sobre ela as suas impurezas.

É possível concluir que Santo Agostinho se utilizou de Platão, Plotino e Porfírio para
compor a sua teoria da iluminação. Teoria essa que apresenta vários pontos de contato com a
teoria da reminiscência de Platão, o êxtase de Plotino e a salvação da alma em Porfírio. No
que concerne a reminiscência de Platão o ponto de contato com a teoria da iluminação está
justamente no fato de que a Ideia imprime estruturalmente uma marca na alma, assim como
na iluminação agostiniana é Deus mesmo Quem imprime as normas estéticas e éticas na alma
humana. Com relação ao êxtase de Plotino o que é compatível com a iluminação de
Agostinho é o fato de que a união mística com o Uno é caracterizada como iluminação, quer
dizer, uma espécie de conhecimento que se assemelha a uma luz que auxilia no
discernimento. Isso chega perto do fato de que na iluminação agostiniana são iluminados na
mente humana os objetos ideais da Matemática, da Estética e da Ética; é importante observar
que como no êxtase plotiniano não é o conteúdo intrínseco destes conhecimentos que se
atribui a uma influência ou iluminação divina, mas somente as leis e normas gerais segundo
as quais julgamos dos objetos da experiência30. Com relação a Porfírio a salvação da alma
pressupõe que a inteligência tenha em si uma marca impressa da lei de Deus, do mesmo modo
como na iluminação as regras estéticas e éticas são impressas por Deus na alma.

Depois de entendidas as influências de Agostinho se faz necessário investigar o que


contribuiu para a constituição da teoria da iluminação divina agostiniana, passando pela
crítica a reminiscência até chegar a observação que é feita sobre o êxtase de Plotino; isso é de
suma importância uma vez que se quer chegar a uma compreensão completa da teoria da
iluminação.

3 UM APANHADO GERAL DO QUE CONTRIBUIU PARA A CONSTITUIÇÃO DA


TEORIA DA ILUMINAÇÃO

30
cf. BOEHNER; GILSON. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 163.
25

Com o objetivo de melhor compreender a teoria da iluminação e as causas da crítica


agostiniana a Platão e Pitágoras, é que o presente capítulo abordará os vários fatores que
possivelmente contribuíram para a formação da teoria em questão. Este capítulo tentará
investigar o maior número possível de críticas e análises de Agostinho que provavelmente o
ajudaram na elaboração da teoria da iluminação. Para provar a reminiscência Sócrates chama
um escravo e lhe faz questionamentos sucessivos, a partir da constatação de que o servo soube
responder corretamente as questões sem que ninguém lhe ensinasse, o filósofo mestre de
Platão deduz que tal escravo recordou-se do que já tivera aprendido anteriormente a sua
existência num corpo. Em sua crítica Santo Agostinho emprega o mesmo exemplo, mas não
se contenta com a explicação porque ela não consegue dar a razão do fato em questão. De
fato, para o doutor de Hipona a existência prévia da alma não explica por si só a maneira com
que o espírito entra em contato com as verdades eternas.

Não só a reminiscência é alvo da crítica de Agostinho, mas também a metempsicose


e a eternidade da alma. Para ele a transmigração das almas que por sua vez é inseparável da
anamnese, é absurda. Segundo Platão a purificação da alma depois da morte produz o
esquecimento de todos os males sofridos durante a vida fazendo com que seja desperto o
desejo dos corpos, com isso a alma novamente experimenta num corpo os males da vida.
Agostinho não aceitou essa teoria platônica porque transforma a suma felicidade da
purificação da alma depois da morte em causa de infelicidade, já que a alma volta a sofrer os
mesmos males voltando a habitar num corpo. Utilizando argumento semelhante o filósofo
cristão rejeita a ideia platônica da alma eterna. Se a alma é co-eterna com Deus fica
impossível explicar donde veio sua infelicidade nova nunca antes experimentada. Se disserem
que ela sempre sofreu oscilações entre felicidade e infelicidade, terão que admitir que ela seja
infeliz se prevê a sua infelicidade futura. Se não prevê mas crê que será sempre feliz, essa
falsa crença é motivo de infelicidade e de insensatez. Para a composição da teoria da
iluminação o doutor de Hipona buscou inspiração em Platão, Plotino e Porfírio. Disso se tem
prova observando sua opinião sobre a iluminação em Plotino 31. Apesar de ter refutado
algumas doutrinas platônicas que entram em choque com o discurso cristão, Agostinho não
diverge do pensamento plotiniano principalmente no que diz respeito à iluminação do Alto.

3.1 A Crítica a Reminiscência

31
cf. BOEHNER; GILSON. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 164.
26

Na obra De Trinitate Agostinho critica a reminiscência de Platão e Pitágoras. Tal tese


platônico-pitagórica é inseparável da teoria da transmigração das almas, que para o doutor de
Hipona é absurda. Ora, reminiscência é a recordação de algo já sabido anteriormente na
intuição pura das Formas (Ideias), mas para a alma recordar-se do que aprendeu na intuição
pura das Formas é necessário que ela transmigre de corpo em corpo até recordar-se de tudo.
Assim, tendo a alma se recordado de todas as coisas ela pode agora gozar da união com o
lógos32 (Ideia) para novamente enredar-se nos males do mundo.

Agostinho não aprova essa interpretação filosófica da maiêutica socrática que faz um
escravo “saber o que não sabe”:

Não se há de acreditar nos que afirmam que Pitágoras de Samos se lembrava de


sensações experimentadas quando estava revestido de outro corpo aqui na terra; nem
acreditar em outros que falam de pessoas que passaram por experiências
semelhantes33.

E imprimindo um caráter teológico ao seu discurso atribui a reminiscência à influência de


espíritos malignos:

Essas reminiscências são falsas e parecidas às que experimentamos em sonhos,


quando cremos recordar ter feito ou visto o que na realidade não fizemos nem
vimos. Acontecem essas mesmas sensações nas mentes, ainda quando as pessoas
estão acordadas, sob influência de espíritos malignos e falazes, cuja preocupação é
confirmar ou semear falsas opiniões sobre a emigração das almas, para enganar os
homens34.

O doutor da Igreja consegue ver que a anamnese não dá uma explicação clara sobre o
modo como o espírito entra em contato com as verdades eternas (as ideias do Bem, da Beleza,
da Igualdade, etc.). Sendo assim, argumenta ele que se o conhecimento inteligível da alma
fosse apenas recordações de conhecimentos outrora aprendidos, nem todos e nem mesmo uma
maioria poderia se lembrar ao serem interrogados sobre o mesmo assunto, visto que nem
todos devem ter sido peritos nessa disciplina que se interroga. Desse modo Agostinho põe
abaixo à maiêutica, que é justificada pela a reminiscência, e junto com ela a própria
anamnese:

Ora, se fossem apenas recordações de conhecimentos anteriores, nem todos, nem


mesmo uma maioria que fosse, poderia se lembrar ao serem interrogados sobre esse
determinado assunto. Pois nem todos devem ter sido geômetras na vida anterior,

32
Substância ou causa do mundo. cf. ABBAGNANO. Dicionário de filosofia. p. 630.
33
Trin. XII, 15, 24.
34
id. ibid.
27

visto que esses são tão poucos entre os homens que dificilmente se encontra
alguém35.

Para finalizar a sua breve crítica Santo Agostinho alerta seus leitores para o fato de que se
realmente os homens se recordassem do que experimentaram em corpos anteriores, tal
reminiscência aconteceria a muitos, e mesmo a quase todos, pois nesse caso deveria haver um
fluxo contínuo de vivos para mortos e de mortos para vivos, assim como se passa do estado de
vigília para o sono e do sono para a vigília.

3.2 A Crítica a Transmigração das Almas

Na obra De Civitate Dei Agostinho de Hipona chama atenção para o fato de Porfírio
ter refutado e corrigido Platão no que diz respeito à metempsicose. O filósofo de Tiro admite
o regresso das almas humanas somente aos corpos de homens, excluindo assim as prisões
animais. De acordo com Agostinho, o discípulo de Plotino certamente envergonhava-se de
aceitar que uma mãe, regressada talvez ao corpo de uma mula, servisse de montada a seu
filho; mas não tinha vergonha de admitir que uma mãe tornada jovem pudesse casar com o
filho. Porfírio corrigiu ainda a opinião platônica que admite os ciclos eternos das almas
afirmando que estas, uma vez purificada de todos os males e estabelecida com o Pai, já não
sofreriam mais os males do mundo36.

Por conseguinte, o filósofo africano encontra respaldo para sua crítica dentro do
próprio platonismo evidenciando assim a fragilidade da doutrina platônica em questão. Com
isso ele critica tal doutrina:

Tem razão Porfírio em afastar esta doutrina; é realmente uma loucura acreditar que
nessa vida – que só será totalmente feliz se estiver absolutamente certa da sua
eternidade – as almas desejam a ignomínia de corpos corruptíveis e se voltam para
eles como se a purificação suprema tivesse por efeito voltar ao gosto da impureza 37.

Assim a transmigração das almas soa como absurda se realmente a purificação produzir o
esquecimento dos males para assim ser desperto o desejo dos corpos e com isso a alma poder
regressar a outro corpo; porque desse modo a suma felicidade da purificação se torna causa de
infelicidade, a perfeita sabedoria causa de estultícia e a suprema purificação causa de

35
Trin. XII, 15, 24.
36
cf. civ. Dei. X, 30, 2.
37
civ. Dei. X, 30, 2.
28

imundícia. Portanto, nesses ciclos a alma não será feliz já que para sê-lo tem que ser
enganada: “Realmente, ela não será feliz se não se sentir em segurança; mas para se sentir em
segurança, ela terá de crer na sua felicidade eterna falsamente, pois um dia voltará a ser
infeliz38”. De fato, essa felicidade não é autêntica pois a sua perenidade não é segura. Nesse
caso ou a alma ignora a sua miséria futura, e assim vive numa lastimosa ignorância no meio
da verdade, ou se a conhece vive roída de temor no meio da felicidade. Em qualquer dos casos
ela será sempre infeliz.

De acordo com o argumento do platonismo em defesa da metempsicose os ciclos das


almas existem para permitir que Deus conheça as Suas obras, porque do contrário à Sua
criação seria infinita o que a Sua ciência não é capaz de abarcar e antes da criação Ele estaria
no ócio o que não convém a um deus. Segundo o platonismo não se pode admitir que Deus
tenha estado no ócio e nem que a Sua atividade tenha começado no tempo após uma eterna
abstenção, como se Ele se arrependesse do Seu repouso anterior sem princípio e que, em
consequência disso, começasse a trabalhar. Nesse sentido, prosseguem eles, se faz necessário
que a alma volte sempre e flua, voltando sempre a mesma, quer o mundo se mantenha na sua
mutabilidade sem nunca ter deixado de ser, mas tendo sido criado sem princípio temporal,
quer desapareça e renasça incessantemente por revoluções repetidas e destinadas a repetirem-
se sempre. Porque atribuir à obra de Deus um começo equivale a crer que Ele de certo modo
condenou a Sua primitiva ociosidade eterna e que por isso mudou, além de assim parecer que
Ele agiu de improviso sob o impulso de uma inconstância fortuita. Mas se se admite esses
ciclos eternos (metempsicose) que fazem repetir as mesmas coisas temporais deixa-se de
atribuir a Deus o ócio, principalmente numa duração tão prolongada que nem começo tem, e a
temerária improvisação nas Suas obras. Sem todos esses retornos não haveria em Deus
ciência ou presciência capaz de abarcar todas as mudanças do mundo na sua interminável
variedade.

Contra isso Agostinho faz sua crítica tendo como apoio as Sagradas Escrituras. Ele
sustenta que erram os platônicos porque medem pela sua inteligência humana, mutável e
limitada a inteligência divina absolutamente imutável e capaz de abarcar a infinidade e de
enumerar os inúmeros seres sem mudar de pensamento 39. Acontece que para o homem todo
novo projeto que lhe vem à mente constitui um novo desígnio que executa, pois o seu espírito
é mutável. Assim, não é correto afirmar que Deus seja afetado de uma forma quando repousa

38
id. ibid., 3.
39
cf. civ. Dei. XII, 18, 3.
29

e de outra forma quando opera. Nem sequer se pode dizer que Ele seja afetado como se
surgisse na Sua natureza algo de novo, de fato, o que é afetado é passivo e por isso é mutável.
E nem se pode pensar em preguiça, inércia ou indolência ao falar da inação de Deus; nem em
trabalho, esforço ou diligência ao falar da Sua atividade. Porque Deus sabe atuar repousando e
repousar atuando. A Sua obra nova pode aplicar um plano que não é novo, mas eterno. Não é
arrependendo-se de uma abstenção anterior que Ele começou a fazer o que nunca tinha feito.
Se Ele primeiro se absteve e depois atuou, estas palavras “primeiro” e “depois” aplicam-se
sem dúvida aos seres que antes não existiam e que passaram a existir posteriormente, mas em
Deus jamais vontade alguma subsequente modificou ou suprimiu uma vontade precedente,
mas com uma e mesma eterna e imutável vontade fez que na criação não existissem os seres
que ainda não tinham existência e, depois, que existissem os que começaram a tê-la. Ou seja,
na mente divina já existiam os seres que somente mais tarde tiveram existência. Assim a
criação não é uma ideia nova, mas eterna. Mostrava Deus desse modo que nenhuma
necessidade tinha desses seres, mas criava-os por uma bondade gratuita pois que, enquanto
permaneceu sem eles durante toda a eternidade, nem por isso tinha sido menos feliz.

Outra defesa da transmigração das almas é a que se faz invocando esta passagem de
Salomão no livro do Eclesiastes: “O que foi é o que será, o que se fez é o que se fará: nada de
novo sob o sol! Se algo existe de que se possa dizer: ‘Vede, isto é novo!’ – já existe desde os
séculos que houve antes de nós40”. Segundo tais defensores esse trecho sagrado faria
referência não só à metempsicose, mas também aos ciclos que renovariam a natureza.
Agostinho rejeita essa interpretação e contra ela afirma que o autor sagrado nessa passagem
fala ou das coisas que vem referindo mais acima, ou seja, das gerações que apareceram e
desapareceram, dos cursos do sol, da queda das torrentes, ou então, de todas as espécies de
seres que nascem e morrem. E ele ainda apresenta outra interpretação de acordo com a qual o
autor bíblico quis significar com essas palavras que tudo já aconteceu na predestinação de
Deus e, portanto, nada de novo haveria sob o sol.

No decorrer da obra De Civitate Dei o doutor da Igreja insiste em explicitar as


contradições da crença segundo a qual as almas obedeceriam a ciclos eternos onde se
alternariam em diferentes corpos. Afirma ele que se a alma na outra vida se esquece de tudo
para assim ser feliz, então não faz sentido que ela agrave na terra ainda mais sua miséria
conhecendo-a41. Ainda segundo Agostinho, dizem os platônicos que só se pode alcançar a

40
Ecl. I, 9-10.
41
cf. civ. Dei. XII, 21, 1.
30

felicidade conhecendo na vida presente os ciclos em que alternam a felicidade e a desgraça,


então fica difícil entender como é que os mesmos falam também que quanto mais cada um
amar a Deus tanta maior facilidade terá em chegar à felicidade, quando já ensinaram doutrinas
que entorpecem esse amor. Nesses ciclos o amor a Deus se debilita e se apaga quando a alma
pensa que terá de abandoná-Lo irremediavelmente e ao sentir-se em oposição à Sua vontade e
a Sua sabedoria, já que ninguém é capaz sequer de amar facilmente um amigo quando sabe
que ele se tornará seu inimigo. Se na vida futura se ignora as futuras tribulações, portanto na
terra a miséria da alma tem mais luz pois ela conhece a sua futura felicidade. Mas se depois da
morte a alma não ignora a desgraça que a ameaça, ela encontrará na terra mais felicidade
numa miséria que se abre para a beatitude do que numa beatitude que terminará na miséria.
Dessa forma haverá uma esperança feliz no meio da infelicidade e no meio da felicidade uma
esperança infeliz. Segue-se que, sofrendo na terra os males presentes, temendo depois da
morte os que a ameaçam, a alma tem mais possibilidade de ser sempre infeliz do que feliz.

Santo Agostinho em sua crítica à metempsicose platônica vai cuidadosamente


elencando os possíveis argumentos a favor desses ciclos das almas para assim poder refutá-los
um a um. Desse modo, afirma ele que os platônicos rejeitam a ideia de que Deus na criação
tenha feito coisa nova para evitar à improvisação divina, assim a alma não é a sede de uma
beatitude nova porque ela apenas volta de novo ao estado que sempre fora o seu, no entanto a
sua libertação torna-se nova porque ela é libertada de uma desgraça em que jamais se tinha
encontrado, a própria desgraça é nela uma novidade não suportada antes 42. Com isso surge a
seguinte hipótese: se esta novidade não é excluída da ordem providencial, quer a alma tenha
sido dada ao corpo, quer neste tenha ela caído, em tal caso podem surgir novidades que antes
não tinham surgido e, todavia, não derrogam a ordem do universo. E se a imprudência da
alma lhe pode causar uma nova desgraça que a divina providência previu para incluí-la
também na ordem do universo e, não sem previsão, dela libertar a alma; logo não há razão
para privar a Deus do poder de criar as novas coisas, novas não para Deus, mas para o mundo,
jamais criadas antes e nunca excluídas da Sua previsão.

Porfírio diz que as almas são eternas no seu passado e que delas provêm novos
homens e, se viverem sabiamente serão libertadas dos corpos desses homens para jamais
voltarem ao estado de desgraça e, por conseguinte, são em número infinito 43. Mas, por maior
que seja o número de almas, não seriam suficientes para abastecer o infinito número de

42
cf. id. ibid., 4.
43
cf. civ. Dei. XII, 21, 6.
31

séculos precedentes para que deles provenham infinitamente homens cujas almas seriam
libertadas sem cessar da mortalidade para jamais a esta voltarem. É contraditório nessa teoria
porfiriana o fato de os seres criados existirem em número finito, para que assim Deus os possa
conhecer, e ao mesmo tempo ser infinito o número de almas. Surge ainda uma última
possibilidade teórica para qual o filósofo africano cria uma alternativa: se o número das almas
libertadas que já não voltarão ao seu estado de desgraça poderá aumentar sempre; ou esse
número pode aumentar sempre, e então porque negar a possibilidade de que seja criado o que
nunca ainda fora criado, já que o número das almas libertadas que antes não existiam, não
somente não foi produzido uma vez por todas, mas também o número de almas não cessa de
aumentar? Ou então é preciso que um certo número de almas libertadas e que já não
regressarão à desgraça, seja fixado e que não aumente doravante, então não há dúvida que
também esse número, seja ele qual for, não existia no passado porque não poderia, com
certeza, crescer e chegar ao seu fim se não tivesse tido um começo que antes não existia. Para
que ele existisse foi, portanto, criado um homem antes que nenhum outro tenha existido. E
então também aqui não se pode negar a possibilidade de que seja criado o novo. Assim
mostra-se a contradição de tal teoria que pretendia afastar a novidade.

3.3 A Crítica a Eternidade da Alma

Os platônicos refutam a ideia de que a alma é sempiterna 44 com o seguinte


argumento: se um ser não foi sempre no passado, não poderá no futuro existir para sempre 45.
No entanto, Platão afirma que o mundo e os deuses criados no mundo por Deus começaram a
existir e tiveram um começo, todavia, fim é que não terão, e por vontade onipotente do seu
autor permanecerão no ser eternamente. Mas com isso o filósofo ateniense não quis defender
a sempiternidade, conceito estranho a ele. A verdade é que ele tem a sua maneira de
compreender: não se trata de um começo de um tempo mas de um começo de uma
substituição. Para esclarecer essa querela os platônicos utilizam o seguinte argumento: se um
pé sempre se mantiver, desde toda a eternidade, sobre o pó desde sempre estará debaixo dele a
sua pegada; e ninguém duvida de que a pegada foi feita por quem pousou o pé mas esta não

44
É a condição que a alma tem de durar indefinidamente no tempo tendo um começo temporal. cf. MORA.
Dicionário de filosofia v. II. p. 927.
45
cf. civ. Dei. X, 31, 1.
32

terá existido antes do pé, do mesmo modo o mundo e os deuses no mundo sempre existiram,
como sempre existiu quem os fez, e, todavia, foram feitos.

Agostinho de Hipona desconstrói o argumento platônico a favor da eternidade da


alma trazendo à tona uma ideia de Porfírio. Se a alma existiu sempre, então a sua infelicidade
existiu sempre, o que é paradoxal. Mas se algo na alma, que não é eterno, começou a existir
no tempo; logo não há razão para negar que ela também seja sempiterna. Como o próprio
filósofo de Tiro confessa acerca da felicidade da alma: “[...] não há dúvida de que começou a
existir no tempo e sempre existirá sem antes ter existido 46.” Desse modo se desfaz toda essa
argumentação segundo a qual não poderia existir sem fim no tempo senão o que não teve
começo no tempo.

O filósofo africano apresenta muitas objeções à teoria da eternidade da alma e uma


delas47 diz respeito a questão da felicidade. Afirmar a co-eternidade da alma com Deus é
tornar inexplicável a origem de sua infelicidade nova, nunca antes por ela experimentada na
eternidade. Porfírio acredita que a alma sendo eterna suportou alternativas de infelicidade e de
felicidade, mas que finalmente liberta, não voltará a cair na infelicidade. Nisso fica claro que
ela nunca foi feliz; mas a partir de sua libertação, como quer o filósofo de Tiro, ela vai
começar a sê-lo verdadeiramente. Com isso é possível admitir que algo de novo aconteceu à
alma; mas se se negar que Deus foi a causa dessa novidade então ter-se-á também que negar
que Ele é o autor da felicidade, o que é um grande disparate. Se se afirmar que o próprio Deus
fez da alma feliz por um novo desígnio, como é que se provará que Deus não é mutável o que
nem mesmo os platônicos querem admitir?

Por fim Santo Agostinho se lança a resolver esse impasse com a ideia da
sempiternidade da alma. Admitindo-se que a alma foi criada no tempo e que em nenhum
momento do futuro ela morrerá, à maneira de um número que tem começo mas não tem fim,
de modo que, após ter experimentado uma vez a infelicidade e desta ter sido libertada, ela não
voltará a conhecê-la, ninguém duvidará que isso acontecerá sem prejuízo para a imutabilidade
dos desígnios de Deus. Assim se afasta a novidade, sendo tudo previsto na predestinação

46
civ. Dei. X, 31, 2. Foi conferido o texto original latino onde se observou o pronome demonstrativo em latim
iste que significa este e flexões ou esse e flexões para designar o autor da ideia citada. A edição da Fundação
Calouste Gulbenkian da obra De Civitate Dei traz esse pronome traduzido pelo pessoal “ele” ao que se segue
entre parênteses o nome de Porfírio, atribuindo assim a citação de autoria de Agostinho ao filósofo de Tiro.
47
A presente pesquisa limitou-se a abordar as críticas feitas por Agostinho ao platonismo somente nas obras De
Civitate Dei e De Trinitate.
33

divina, criando assim a alma sempiterna sem que Deus tenha mudado o seu desígnio e a sua
vontade eterna.

3.4 A Análise do Êxtase Plotiniano

Santo Agostinho, assíduo leitor de Plotino, não deixou de tecer comentários daquilo
que o agradava no pensamento do alexandrino. E uma das questões que o agradava em
Plotino certamente era o êxtase que se aproxima da teoria da iluminação. A iluminação
exercida por Deus é a Sua função de fazer possível o conhecimento; assim como o olho
necessita da luz para ver, a alma necessita de Deus para conhecer. Desse modo a alma não é
autossuficiente, não pode conhecer por si só as Ideias, é necessário que algo de fora a ajude
nesse conhecimento. E nisso Plotino insiste o que faz com que Agostinho encontre inspiração:

Muitas vezes e insistentemente afirma Plotino, desenvolvendo o pensamento de


Platão, que a alma, que se crê seja a alma do mundo, não recebe a sua felicidade de
fonte diversa da nossa; e esta fonte é uma luz distinta da alma, a qual criou a alma, e
cuja iluminação inteligível a fez inteligivelmente resplandecer 48.

O doutor da Igreja faz alusão ao fato de Plotino utilizar a metáfora para explicar a
iluminação do Alto, método que ele próprio usa para esclarecer esse mesmo assunto. Isso
somado ao fato de que Agostinho afirmou não haver nenhuma divergência entre ele e os
platônicos no que diz respeito à iluminação divina, provam que realmente o filósofo africano
buscou inspiração em Plotino para forjar a teoria da iluminação. Ele ainda compara o prólogo
do Evangelho de João com a iluminação em Plotino fazendo uma estreita ligação entre ambos.
No Evangelho está escrito que há uma verdadeira luz que ilumina a todo homem 49, nisso se vê
claramente a ideia central da teoria da iluminação, daí a analogia feita por Agostinho de
Hipona.

Depois do exposto tem-se um itinerário do modo como o filósofo africano chegou à


constituição e/ou estabelecimento da teoria da iluminação, já que foram observadas as suas
influências e críticas que a sustentam. O platonismo não influenciou de todo o pensamento
cristão agostiniano, existem certas ideias platônicas que não estão de acordo com o
cristianismo. Assim o bispo de Hipona selecionou o que não era hostil à doutrina cristã no
pensamento platônico e fez a crítica daquilo que discordava, na tentativa de estabelecer as
48
civ. Dei. X, 2, 1.
49
cf. Jo. I, 9.
34

bases filosóficas e teológicas de sua religião. Agora surge a seguinte questão: Porque
Agostinho criticou Platão no que concerne a teoria da reminiscência? Será que essa crítica foi
feita somente em função da inadequação de tal teoria ao cristianismo? Ou será que há outros
motivos para essa refutação agostiniana?

Conclui-se que Agostinho recebeu muitas influências e a mais marcante no que


concerne a teoria da iluminação é Plotino. Criticando certas ideias no platonismo e fazendo
observações em outras o filósofo africano compõe a sua doutrina da iluminação divina. Tendo
em vista as diversas críticas que Agostinho fez a certas doutrinas platônicas e o comentário
sobre a iluminação em Plotino, pode-se chegar seguramente a um itinerário de como o
filósofo africano compôs a teoria da iluminação. A crítica a reminiscência tem como meta
fazer oposição ao modo como Platão resolve a querela do conhecimento, para que assim seja
aberta a possibilidade de se criar uma resposta alternativa para o problema gnosiológico. A
crítica a transmigração das almas tem como objetivo refutar a doutrina órfico-pitagórica da
metempsicose que é inseparável da teoria da reminiscência, para que assim seja derrubada a
face religiosa-doutrinária da anamnese. Já a crítica a eternidade da alma visa derrubar de vez a
teoria da reminiscência, uma vez que tal teoria platônica pressupõe a eternidade da alma. E
por último a análise de Agostinho do êxtase em Plotino vem confirmar que a maior influência
do doutor de Hipona no que diz respeito a teoria da iluminação é Plotino 50. Assim se tem um
itinerário de como santo Agostinho formulou a teoria da iluminação.

4 A GNOSIOLOGIA EM SANTO AGOSTINHO

Com o intuito de fazer um contraponto com Platão para entendermos bem o porquê
da crítica a reminiscência é que este capítulo irá investigar toda a teoria do conhecimento de

50
cf. SOUZA. Agostinho: buscador inquieto da verdade. p. 54.
35

Agostinho com enfoque especial na teoria da iluminação, tese oposta à reminiscência


platônica. Com essa abordagem ficará claro porque Agostinho de Hipona fez questão de
abandonar a anamnese platônica e trilhou um caminho diferente para solucionar a querela do
conhecimento. Optando por começar por verdades evidentes para garantir a veracidade de seu
pensamento, o filósofo africano distinguindo três tipos de seres, a saber: os que existem; os
que existem e vivem e os que existem, vivem e entendem; inicia sua teoria do conhecimento 51.
Com o método de investigação anagógico parte das criaturas à sua causa primeira, de onde
emana a iluminação. O homem por si mesmo não é capaz de emitir um julgamento verdadeiro
necessitando pois, da luz divina para emitir um juízo com verdade.

4.1 A Teoria do Conhecimento

Para alcançar a fonte de todo conhecimento Agostinho começa sua jornada


gnosiológica por assinalar uma verdade segura: que existe, vive e entende; deduzindo daí três
qualidades de seres. De todos os seres a primazia é dada ao homem uma vez que ele possui a
plenitude dos atributos citados acima. Dentre essas três perfeições a mais nobre é aquela que
só o homem possui a inteligência, uma vez que por ela se chega ao conhecimento de todas as
outras. Para além dos cinco sentidos corporais: a visão, o olfato, o paladar, o tato e a audição;
existe um sentido interior que tem sua sede na alma. É ele que governa os sentidos exteriores
e está presente também nos animais. Não é a razão, mas para ele os cinco sentidos de fora
transmitem todos os seus conhecimentos acerca dos objetos que sensoriam. Por esse sentido
da alma não somente os homens, mas também os animais buscam e se apossam do que lhes é
agradável e vital e fogem do que lhes é nocivo 52. A razão, que também faz parte da alma, está
acima de todos os sentidos exercendo controle sobre o sentido interior no homem e é o fator
distintivo do gênero humano.

Segundo a hierarquia dos sentidos no primeiro nível estão os objetos sensoriados, no


nível subsequente os sentidos externos e no topo está o sentido interior 53. Os objetos dos cinco
sentidos estão no nível do existir, já os sentidos que os sentem estão no nível do viver. Daí a
primazia destes sobre aqueles. O sentido interior não só percebe os sentidos de fora como

51
cf. lib. arb. II, 3, 7.
52
cf. id. ibid., 8.
53
cf. lib. arb. II, 5, 12.
36

também os julga54; quando algum órgão do sentido falta em sua função ele está lá para exigir
o cumprimento do seu dever. Portanto, a precedência é dada ao sentido que está na alma uma
vez que os sentidos corporais são por ele julgados conseguindo estes somente julgar os
objetos de seu conhecimento. Há uma outra hierarquia, a do conhecimento, que compreende
também os sentidos exteriores e o interior incluindo aí a razão. Nesse caso a razão é anteposta
a todos os sentidos, pois ela não só conhece a operação e os objetos de todos eles como
também conhece a si mesma e julga a todo resto chegando à ciência.

Dentre os sentidos exteriores somente o paladar e o olfato têm por objeto o que é de
ordem privada, ou seja, o que o corpo transforma em sua própria substância. É o caso do ar e
do alimento onde por mais que pessoas diferentes consumam a mesma porção, entretanto
nunca poderão se apropriar da mesma parte simultaneamente. Já os sentidos da visão e da
audição sensoriam o que é de ordem pública, aquilo que pode ser sentido ao mesmo tempo
por mais de uma pessoa. Com o tato acontece que diversas pessoas tocam um mesmo objeto
na sua totalidade sem, no entanto, ser simultaneamente. O objeto de conhecimento da razão é
comum a todos os que raciocinam, é suprassensível e mantém sua integridade apesar do uso
que dele se possa fazer. É o caso da verdade dos números que embora os ignorantes não a
utilizem corretamente, nem por isso ela sofre alterações.

O número está impresso na alma do homem porque ele pode perceber o sensível, que
por sua vez tem por imagem o próprio número 55. Apesar disso todo conhecimento acerca da
verdade numérica é eterno e imutável, por exemplo, dois mais dois são quatro tanto no
passado como no futuro e assim nunca deixará de ser. E isso porque o número não é nada de
palpável e concreto, uma vez que ele não é percebido pelos sentidos exteriores. Ora, a
designação numérica é feita em virtude da quantidade de vezes que o número contém a
unidade. Como não há corpo uno porque ele sempre possui múltiplas partes, então a unidade
assim como o número não podem ser sensoriados pelos os órgãos dos sentidos que só captam
o corpóreo. Desse modo o número aparece como prova de que há uma verdade imutável
sendo, portanto, capaz de dar acesso ao inteligível e espiritual.

Outro objeto de conhecimento da razão é a sabedoria que apesar dos filósofos não
entrarem em acordo quanto ao seu conceito, Agostinho a define como: “...a verdade, na qual
se contempla e se possui o sumo Bem... 56”. Segundo o doutor de Hipona o motivo dos
54
O termo julgar é empregado aqui não como veredito racional, mas para marcar a necessidade que um sentido
tem do outro.
55
cf. lib. arb. II, 8, 21.
56
lib. arb. II, 9, 26.
37

filósofos opinarem de modo diferente sobre a sabedoria é que eles possuem definições
divergentes desse bem, mas apesar disso todos eles na busca pela sabedoria desejam o bem e
fogem do mal. Sendo assim a sabedoria é única e apresenta-se igualmente a todos, embora se
encontre nela bens diversos. Todos indubitavelmente concordam que é preciso viver de
acordo com a justiça, sujeitar as coisas menos boas às melhores, comparar entre si as
semelhantes e dar a cada um o que lhe cabe. E ainda que o íntegro é melhor do que o que é
corrompido, que o eterno tem mais valor que o temporal, que o inviolável é preferível ao
violável. Todas essas verdades são imutáveis e eternas e se mostram a contemplação de todos
sendo, portanto, como regras e focos das virtudes. Elas fazem parte da sabedoria já que
constituem suas diretrizes.

Tais objetos da razão, a sabedoria e o número são única e mesma coisa já que
pertencem a Verdade, onde neles encontramos verdades universais e eternas 57. Os corpos são
dotados de números, já a sabedoria está na alma. Assim a sabedoria dispõe sobre todas as
coisas que contém números a partir da alma. Como percebemos que os corpos são inferiores a
nós e neles estão os números, desse modo, julgamos o número inferior a sabedoria. Mas os
números e a sabedoria permanecem na Verdade do mesmo modo. É como a luz e o calor do
fogo que se projetam em distâncias desiguais sendo uma coisa só, o número possui mais
extensão e a sabedoria mais compreensão não obstante estejam em dependência da Verdade
imutável.

O cuidado fundamental do doutor de Hipona é destacar nitidamente o objeto


conhecido do conhecimento que temos dele. A sensação já é uma forma de conhecimento
espiritual; o objeto sensível, ao contrário, é corporal. Antes de mais nada, torna-se claro que o
objeto sensível é atingido pela sensação, da qual ele é causa; ele próprio é radicalmente
incapaz de sentir. Se a sensação está na alma e um corpo a produz, como se pode entender a
influência de algo corpóreo sobre o espiritual tendo em vista isso ser impossível já que aquele
é inferior a este? Tomemos o verso “Deus creator omnium”, o que faz com que estas palavras
venham a constituir um verso? O ritmo. Este, por sua vez, consiste de números ou relações
numéricas entre as sílabas longas e breves. O verso acima consta de quatro jambos, ou seja, de
quatro sílabas breves seguidas, respectivamente, de quatro sílabas longas. Os ritmos
encontram-se primeiro no ar ou nos sons materiais (primeiro gênero de números), e em
seguida, no sentido do ouvinte (segundo gênero de números). Com isso já se tem a diferença
entre o sensível material e a sensação espiritual. Convém notar, porém, que o verso não existe
57
cf. lib. arb. II, 11, 30.
38

em si, ou absolutamente, mas depende da maneira como é recitado; por isso também a voz do
declamador deve ter certa qualidade numérica. Deve ser cadenciada e comunicar seu ritmo
interno ao ar. Se acaso decidir que um verso é recitado muito devagar ou com excessiva
rapidez se deparará com dois outros gêneros de números, pois não se poderia emitir tal juízo
se não tiver na memória uma medida prévia pela qual se julga. Com isso se tem uma memória
numeral e uma capacidade de juízo numeral. Isso mostra a grande complexidade dos atos que
entram numa sensação aparentemente tão simples. O mais excelente de todos os números é a
capacidade de juízo numeral, pois é este que julga os demais sem estar sujeito ao julgamento
deles devido à sua superioridade. Os números conservados na memória são produzidos pelos
outros, devendo por isso situar-se num plano inferior. Resta o problema de como se devem
graduar os três outros gêneros numéricos. Em especial cumpre examinar se a primazia
compete aos “numeri sonantes”, isto é, materiais ou aos números apreendidos pelos sentidos.
A resposta está contida na teoria agostiniana da sensação.

É claro que a sensação pressupõe certas condições corporais. A sensação como tal,
porém, só pode ser engendrada pela alma. A união entre corpo e alma não é uma relação de
reciprocidade; antes, essa união é tal que a alma observa o corpo e, ao mesmo tempo, produz
algo sem depender da influência do corpo. De modo que, toda vez que um processo material
provoca uma mudança no corpo, a alma sente de maneira ativa e, sentindo-a, produz uma
sensação. Está claro que já não é o corpo que atua sobre a alma, e sim a alma sobre o corpo.
Como nos diz Boehner e Gilson: “Considerada em si mesma, a alma reside nos órgãos
corporais, está presente neles, e de certo modo, está de sentinela neles 58”. A ausência de
sensação indica simplesmente a existência de relações normais entre o corpo e o meio
ambiente. Mas basta leve mudança deste estado de equilíbrio para que a alma entre em
atividade. A alma é eminentemente ativa, pois é ela que dirige sua atenção aos respectivos
órgãos corporais afetados; é ela que vê, que cheira, que prova. Como está claro, a sensação é,
na realidade, uma espécie de exploração do corpo pela a alma.

O processo da sensação se dá assim: suponha-se que um ouvido seja atingido por


uma vibração do ar, causando uma modificação no órgão auditivo. A alma logo se volta para
esta modificação produzindo a sensação de som. Esta já é de natureza espiritual e pertence à
segunda classe de sons (segundo gênero de números), que é superior a primeira (primeiro
gênero de números)59. A partir daqui, porém, é mister proceder com muita cautela, pois já se

58
BOEHNER; GILSON. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 159.
59
cf. BOEHNER; GILSON. História da filosofia crista: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 160.
39

chegou ao terceiro grau e se verificou que a sensação é ato do próprio pensamento. Embora se
costume dizer que se percebe um verso com seu respectivo ritmo, este jeito de falar não
corresponde à realidade. O que é escutado não é um verso, e nem mesmo uma palavra, mas
simples sucessão de sílabas. É pela memória que aprende-se o verso em sua integridade. A
sílaba é apenas um som de certa duração e composto de três elementos: o inicial, o médio e o
final. Ao declarar que se escuta uma sílaba longa não quer dizer senão que no fim da sensação
a memória continua a recordar-lhe o começo, o que a capacita a compor a sensação. Isto vale
até mesmo para a mais breve das sílabas: também ela tem uma duração, ou seja, um começo,
um meio e um fim. Ora, é indiscutível que a memória faz parte do pensar puro. Tudo isso
permite ver, desde já, o grande número de elementos que a alma introduz na sensação, visto
que não somente a mede, como até mesmo a fabrica.

Se fez alusão, mais acima, a certos ritmos guardados na memória, pelos quais se pode
julgar sobre a espécie de um ritmo que está sendo recitado. Continuando nesta ordem de
ideias: estes ritmos interiores recolhem, de certo modo, os sons materiais no mesmo instante
em que estes estão prestes a desaparecer no nada, para concatená-los num conjunto
harmônico60. Do mesmo modo como os olhos coordenam a multiplicidade dos objetos
distribuídos no espaço, reunindo-os num só campo visual e enfeixando-os num só ato de
visão, assim a memória, “esta luz dos espaços temporais”, procede à coordenação de toda uma
sequência de momentos que de outro modo se dissipariam. Qualquer verso não poderia existir
como sensação independentemente de um espírito. Vê-se que mesmo no grau mais ínfimo do
conhecimento a alma se mostra superior ao corpo. É interessante notar que é precisamente na
análise do conhecimento sensível que o maniqueu de outrora, que não conseguia sobrelevar-se
aos sentidos, encontra uma luz invisível aos sentidos. Acima daquela única luz acessível ao
discípulo de Manés, e no mesmo ato em que verifica a existência dessa luz, Agostinho
discerne uma nova espécie de luz. Esta outra luz vem da própria alma. E assim a partir das
coisas externas se conseguiu retornar ao interior, ao mesmo tempo que se venceu a primeira
etapa da prova da existência de Deus.

O importante para o bispo de Hipona seria chegar à felicidade. É nesse ponto de


chegada que está dirigida toda a busca de conhecimento 61. Pois amar e conhecer a Ele, esta é a
vida bem-aventurada, que, se todos proclamam procurar, poucos são verdadeiramente os que
se alegram por tê-la encontrado. Poderia a verdade ser acessível à razão? Esse problema levou

60
id. ibid.
61
cf. SOUZA. Agostinho: buscador inquieto da verdade. p. 46.
40

Agostinho a colocar-se frente ao ceticismo dos acadêmicos, pois, para os céticos, todo
conhecimento tinha sua origem na percepção sensível e como os sentidos fornecem dados
variáveis, não se podia encontrar bases para a certeza. Santo Agostinho demonstrou que não
se deve procurar a verdade nos sentidos, pois eles só dizem como as coisas aparecem, não o
que são e como são. Nesse sentido, eles não levam a falsidade. No diálogo Contra academici,
o filósofo africano contraditoriamente coloca os sentidos como fonte da verdade. O erro
provém dos juízos que se fazem sobre as sensações e não delas próprias. A sensação enquanto
tal jamais é falsa, ou seja, não se deve duvidar do ato da percepção.

Foi visto que o conhecimento sensível coloca em evidência a existência da alma e do


pensamento puro, e por sua vez foi visto também que a análise do pensamento puro leva à
evidência da existência de Deus. O pensamento filosófico de Agostinho, no que diz respeito à
teoria do conhecimento, não pode ser separado da prova da existência de Deus 62. É no
segundo livro do De Libero Arbitrio que ele expõe a prova da existência de Deus e também
sobre o conhecimento humano, que inicia desde o sensível e animal até o pensamento
intelectual e abstrato. O método de santo Agostinho é ascendente, isto é, dos objetos
exteriores aos sentidos, dos sentidos externos aos sentidos internos; o mundo inteligível e do
mundo inteligível, decorre necessariamente a existência de Deus. Viu-se que das sensações,
das coisas externas, conseguiu-se voltar sobre o próprio interior, e ao mesmo tempo à
primeira fase da prova da existência de Deus. Toda reflexão anterior faz ver e identificar a
verdade com Deus; e este é o verdadeiro mestre. Para explicar isso o bispo de Hipona fala
sobre a teoria da iluminação.

4.2 A Teoria da Iluminação

Há uma Verdade que é imutável e que sendo objeto de conhecimento da razão


contém em si todas as coisas mutáveis e verdadeiras, apresentando-se Ela mesma a todos os
que conseguem contemplá-La63. Ela mesmo sendo única faz com que os homens percebam
muitas coisas, sendo portanto superior aos julgamentos humanos já que eles se regulamentam
sobre Ela. E inclusa nessa Verdade estão as regras interiores a partir das quais se julga. Elas
não podem ser julgadas, sendo assim ninguém argumenta quando se diz: “sete e três são dez”
62
cf. id. ibid., p. 47.
63
cf. lib. arb. II, 12, 33.
41

apenas constata essa regra. A Verdade que contém tudo até a sabedoria e o número não é nem
igual, pois seria mutável, e nem inferior, pois não se regulamentariam sobre Ela os
julgamentos dos homens; a mente humana sendo, portanto superior. E nessa Verdade está
contida todos os bens verdadeiros entre os quais os homens, de acordo com sua inteligência,
escolhem um só ou diversos deles para seu deleite.

A liberdade para Agostinho baseia-se em estar submetido a Verdade. Para a alma


usufruir com liberdade de algo é preciso usufruir com segurança, ora a Verdade não se pode
perder contra a própria vontade, pois não se pode ficar separado dela por distância de lugar.
Assim a liberdade se dá com segurança na submissão a Verdade. Nela possuímos um bem do
qual todos podemos gozar igualmente e em comum. E é indubitavelmente superior e mais
excelente do que os homens, porque Ela é una e ao mesmo tempo é fonte de sabedoria
separadamente para cada mente e as torna juízes das outras coisas. Jamais a mente humana é
juiz em relação a Verdade transcendente. Tal Verdade é Deus fonte de todas as verdades
particulares, eternas e imutáveis que jazem na mente humana, pois a mente sendo mutável e
contingente não pode ser responsável por tais verdades.

A alma humana se torna sábia quando ela se concentra com o maior zelo possível ao
que ela contempla com a mente. Desse modo ela não se compraz mais com o seu “eu”
particular atrelado as coisas passageiras, mas despojada de toda afeição às coisas sujeitas ao
tempo e ao espaço, procura abraçar o Ser, que é uno e sempre idêntico a si mesmo. Porque do
mesmo modo como a alma é toda vida do corpo, toda vida bem-aventurada da alma é Deus.
De fato, em qualquer lugar a Sabedoria fala pelos vestígios que imprimiu em todas as obras. E
quando a alma recai novamente no amor as coisas exteriores, é valendo-se da própria beleza
dos seres exteriores que a Sabedoria chama a alma a seu interior. E isso a fim de que, vendo
tudo quanto encanta nos corpos e seduz, através dos sentidos corporais, reconheça que está
repleto de números. A alma ao indagar de onde vem isso, entra em si própria e compreende
sua impotência de julgar para o bem ou para o mal os objetos percebidos pelos sentidos. Pois
ela não poderia julgá-los se não tivesse dentro de si certas leis estéticas, às quais confronta
todas as belezas sensíveis do mundo exterior64.

Não é o conteúdo peculiar dos conhecimentos estéticos e também matemáticos e


éticos que se atribui a uma influência ou iluminação divina, mas somente as leis e normas
gerais segundo as quais julgamos os objetos da experiência 65. Não ocorre na iluminação
64
cf. lib. arb. II, 16, 41.
65
cf. BOEHNER; GILSON. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. p. 163.
42

divina uma visão direta dessas regras e normas gerais em Deus. Mas elas atuam sobre os
homens, e até são impressas nas almas, mas sem prejuízo de sua transcendência. Estas regras
são vistas no livro da luz da Verdade e não na natureza humana, pois não há a menor dúvida
de que são vistas pela mente; e é evidente, no entanto, que não são vistas na própria mente
porque as mentes são mutáveis ao passo que tais normas são percebidas como imutáveis,
tampouco são vistas no estado habitual das almas, pois são regras de justiça, e as almas são
manifestamente injustas. É da própria Verdade que toda lei justa é transcrita e depositada no
coração do homem que pratica a justiça, não à maneira de uma transmigração, mas por uma
espécie de impressão, assim como a figura do anel se imprime na cera sem abandonar o anel.
As leis e normas eternas existem em si mesmas e permanecem no seu lugar, sem contudo
deixar de iluminar e atuar sobre todos quantos possam e queiram percebê-las. A iluminação é
o processo em que mediante um ato consciente de interiorização, no qual a razão toma
consciência da presença de Deus, é que em virtude desta presença divina que a Verdade Se dá
a conhecer à razão, e é mediante a iluminação que lhe dá acesso à infinidade de Deus.

Todos os seres possuem beleza porque tem seus números. Eliminando-os nada mais
serão. Eles procedem Daquele de onde procede todo número. Sendo que o ser que neles está
não existe a não ser na medida que realiza os números que possui 66. Os artistas possuem em
sua mente números de todas as belezas corporais para conformar a eles as suas obras. Eles
trabalham com as mãos os instrumentos até que o objeto que modelam exteriormente seja
relacionado com a luz interior que possuem dos seus números. Isso para que sua obra possa
atingir toda perfeição possível. Será ela expressa pelos sentidos, de modo a agradar o juiz
interior, o qual intui os números transcendentes. Os números movem os membros do próprio
artista conforme as suas leis. Eles ocupam o seu lugar na beleza de um corpo bem formado. E
pelos os movimentos corporais os números atuam no tempo. O lugar que ocupam os números
não está no espaço e nem sua duração nos dias.

Sejam quais forem os seres mutáveis que são vistos, não se podem percebe-los, nem
pelos os sentidos corporais, nem pela aplicação do espírito a não ser que eles recebam certa
perfeição própria dos números, sem a qual recaíram no nada. Portanto, existe uma forma
eterna e imutável, em virtude da qual esses seres mutáveis não se desfazem, mas antes, com
seus movimentos compassados e grande variedade de formas, compõem uma espécie de
poemas temporais67. Esse ser eterno e imutável não está contido nem se difunde por lugares,

66
cf. lib. arb. II, 16, 42.
67
cf. lib. arb. II, 16, 44.
43

nem se prolonga e varia no correr dos tempos. Mas é por sua Forma (a ideia da criação) que
puderam se formar todas as coisas, ajustarem-se e serem produzidas de acordo com os
números próprios, conforme o seu gênero no tempo e no espaço. Todo ser que possui uma
perfeição não precisa ser aperfeiçoado, e todo ser que não possui uma perfeição não pode se
dá o que não tem. Logo nenhuma realidade pode aperfeiçoar-se a si mesma. Então a alma e o
corpo devem receber sua perfeição de outro ser que é a Perfeição imutável e eterna. Assim
todas as coisas são governadas por uma providência porque a própria Perfeição que sem a
qual tudo recairia no nada, é Ela mesma uma providência. Todo aquele que se dirige para a
Sabedoria A encontra no caminho “...porque o seu ardor em percorrer esse caminho inflama-
se tanto melhor quanto mais o próprio caminho recebe sua beleza daquela Sabedoria junto a
qual deseja ardentemente chegar68.” Se além dos corpos sem vida, dos vivos sem razão e dos
espíritos dotados de vida racional existe outro gênero de seres, então não se pode duvidar que
não existe algum bem que não vem de Deus.

Primeiramente Santo Agostinho criticou a teoria da reminiscência de Platão e


Pitágoras porque tal teoria está atrelada a transmigração das almas e a eternidade da alma, que
são teorias opostas ao cristianismo de Agostinho. A doutrina do carma que está contida na
teoria da transmigração das almas, se choca com uma das verdades fundamentais da fé cristã.
Se encontra no âmago da religião cristã a mensagem de um Deus que perdoa. A mensagem do
Deus da graça, que sustenta a pessoa humana. O Deus que não exige que façamos tudo
sozinho. O Deus de amor, que faz dos fragmentos de uma vida humana um todo. No centro da
boa nova cristã, há uma convicção fundamental: no lugar da retribuição reencarnacionista
haverá perdão69. Em oposição fundamental a essa mensagem de esperança cristã, a doutrina
da transmigração das almas só conhece o princípio da retribuição e do êxito. Conforme essa
doutrina, não pode haver perdão. Toda falta cometida, todo mal praticado, é uma dívida
contraída que deverá ser paga. Se não o for numa vida, o será na seguinte ou nas seguintes. É
a pessoa humana mesma que, no momento da morte, fica responsável por tudo. Ela não
recebe nada de graça. Aplicando este quadro à questão teológica da salvação, pode-se dizer
que é o próprio homem quem no fundo deve se salvar, através de todo o seu trabalho pessoal
de purificar seu carma em sucessivas reencarnações.

Essa concepção contradiz inteiramente a doutrina cristã e o seu princípio da graça.


De acordo com esse princípio, a pessoa humana pode ser remida por Deus na morte. Ela pode

68
lib. arb. II, 17, 45.
69
cf. BLANK. Reencarnação ou ressurreição uma decisão de fé. p. 49.
44

se entregar nas mãos de um Deus de amor e de perdão. Eis a grande oposição à revelação
bíblica. Eis a imensa distância entre a doutrina da transmigração das almas e a pregação de
Jesus. Nessa se insiste sobre a gratuidade do amor e do perdão, sempre e contra todos os
argumentos de uma religiosidade do êxito. O último sinal e dom dessa gratuidade do amor
divino é a ressurreição depois de uma vida terrena. Deus ressuscita a pessoa, não porque esta
o tenha merecido, mas porque Deus é bom. Nisso consiste a última e principal base do que se
denomina a esperança cristã. É com essa base que a doutrina da reencarnação se choca.

A transmigração das almas também se opõe a ressurreição cristã. No lugar de haver


sempre novas vidas, a ressurreição crê que a vida é única e que depois da morte a vida se
plenifica. Agostinho crê na ressurreição:

Isto poderia ter sido incrível outrora: mas agora o mundo acredita que o corpo
terrestre de Cristo se elevou aos Céus; doutos e não doutos – com a excepção de
muito poucos, doutos ou não doutos que se mantêm à margem e estupefactos – todos
acreditam já na ressurreição da carne e na ascensão às moradas supernas70.

E ele declara ainda que:

Mas se não creem que, por intermédio dos Apóstolos de Cristo, se fizeram esses
milagres, para se acreditar neles que pregavam a ressurreição e a ascensão de Cristo
– a nós basta-nos este milagre grande e único: o de todo orbe da Terra ter acreditado
nela sem milagres71.

Portanto o doutor de Hipona é totalmente avesso a reminiscência que pressupõe a


reencarnação.

Com isso temos o motivo principal para o filósofo africano criticar a reminiscência
platônica. Mas esse não é o único motivo da crítica à reminiscência. Segundo Boehner e
Gilson Agostinho via que a anamnese não oferecia uma explicação satisfatória para o
conhecimento das verdades eternas, imutáveis e universais. De acordo com ele a
reminiscência platônica não consegue dar a razão do fato em questão (o conhecimento das
ideias); a preexistência da alma cognoscente não explica, por si só, a maneira com que o
espírito entra em contato com as verdades eternas. Assim Santo Agostinho dá uma explicação
verdadeira com a teoria da iluminação.

70
civ. Dei. XXII, 5, 1.
71
id. ibid., 3.
45

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi mostrado ao longo deste trabalho o quanto a trajetória intelectual de Agostinho,


ao desenvolver a teoria da iluminação, fez mudar os rumos do pensar filosófico. Assim
procurou-se mostrar primeiramente as influências do filósofo em questão. Em Platão temos a
teoria da reminiscência, onde tendo a alma contemplado todas as Ideias no mundo espiritual
platônico ela na vida presente se recorda, a partir das experiências mundanas, o que já sabia.
O filósofo ateniense não consegue explicar como se dá o contato das verdades eternas,
universais e imutáveis com a alma, o que o filósofo africano critica. Em Plotino temos o
46

êxtase que é a união mística com o Uno capaz de levar a um grau de existência e
conhecimento superiores. O que o doutor de Hipona faz elogiosos comentários dizendo que
partilha da mesma opinião.

No segundo capítulo procurou-se demonstrar com maior ênfase como santo


Agostinho chegou ao conceito de iluminação divina. Para isso foi exposto um apanhado geral
do que contribuiu para constituição e/ou estabelecimento da teoria da iluminação. Foi
analisada a crítica à reminiscência de Agostinho, onde ele afirma que algumas reminiscências
são falsas e iguais as que se experimenta em sonhos. Além disso a reminiscência pressupõe a
transmigração das almas que para o filósofo africano é absurda. Desfazendo a maiêutica
socrática ele afirma que se o conhecimento inteligível da alma fosse apenas recordações de
conhecimentos outrora aprendidos, nem todos e nem mesmo uma maioria poderia se lembrar
ao serem interrogados sobre o mesmo assunto, visto que nem todos devem ter sido peritos
nessa disciplina que se interroga.

No terceiro capítulo foram expostas as teorias do conhecimento e da iluminação com


o intuito de responder à pergunta: Porque Agostinho criticou a reminiscência de Platão? Na
teoria do conhecimento foi mostrada a doutrina agostiniana da sensação que é uma
reinterpretação da doutrina de Plotino, para quem a alma imprime em si as imagens dos
objetos sensíveis percebidos pelos corpos que ela anima. Os sentidos percebem porque existe
uma ação exercida de fora por um objeto sobre um órgão sensível. O objeto sensível é
atingido pela sensação, e este objeto que é a causa é incapaz de sensação. Não é o corpo que
sente mas a alma pelo corpo, pois a paixão sofrida pelos corpos é incapaz de produzir na alma
uma sensação, porque um processo corporal não pode atuar sobre a alma. Não é o corpo que
atua sobre a alma, mas, pelo contrário, a alma sobre o corpo. Quando os órgãos dos sentidos
são afetados por uma modificação do meio ambiente, a alma logo guia sua atenção para os
órgãos correspondentes. É a alma que vê, que cheira, que prova. A sensação então seria uma
exploração do corpo pela alma. Na teoria da iluminação foi visto que o doutor de Hipona
ficou impressionado com a alma humana que é temporal e mutável, mas mesmo assim está
em conexão com o eterno. E explicou esse fato pela irradiação de uma luz interna. Assim é
preferível acreditar que a natureza da alma intelectiva foi criada de tal modo que, aplicada ao
inteligível segundo sua natureza, e tendo assim disposto o Criador, possa ver os
conhecimentos eternos, imutáveis e universais em certa luz incorpórea de sua própria
natureza. Deus é a luz de nossa inteligência, essa luz não é Deus, mas é produzida por Ele.
47

Procurou-se demonstrar nesta pesquisa as razões da crítica agostiniana à


reminiscência de Platão e Pitágoras baseando-se no capítulo quinze do livro doze da obra De
Trinitate. Para o filósofo africano Platão, com a preexistência da alma cognoscente, não
consegue explicar o fato de como a alma entra em contato com as verdades eternas, imutáveis
e universais. Com isso Agostinho se lança a explicar exatamente como a alma, sendo mutável
e temporal, consegue entrar em conexão com o eterno a partir da teoria da iluminação. O
presente trabalho se preocupou também em evidenciar que santo Agostinho não é um
neoplatônico como muitos querem afirmar. O filósofo em questão deixa claro que é cristão
decorrendo daí que há muitos temas em sua filosofia que entram em choque com o
neoplatonismo. Assim fica claro que o objetivo deste trabalho foi alcançado uma vez que foi
respondida a problemática levantada: Porque Agostinho criticou a reminiscência platônico-
pitagórica? Isso será de grande importância para o enriquecimento de todos tanto intelectual
como pessoal, pois com esta pesquisa se descobre um novo Agostinho que desenvolve uma
filosofia original e que serve de lição de vida. Serve de lição de vida porque faz ver que em
tudo o homem precisa de Deus, até para pensar o verdadeiro, ensinando assim a grande
virtude da humildade.

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