Você está na página 1de 10

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Psicologia Departamento de Psicologia Social e Institucional

Odara Muniz

Coletivos: Tramas e Perspectivas, Terceiro Movimento Onto-Epistêmico

Trabalho Analítico-
observacional proposto na cadeira
de Processos Grupais, ministrada
pelo professor Luis Artur Costa

Porto Alegre, 2023


Coletivos: Tramas e Perspectivas, Terceiro Movimento Onto-Epistêmico

Resumo: O presente trabalho se debruça na escuta grupal, ação que se constitui em 4 pilares,
sendo eles: a) a escuta em si como ferramenta epistêmica; b) os pensamentos do terceiro
movimento onto-epistêmico (movimento institucionalista) ; c) a continuidade da escuta no grupo
analisado e; d) sua delineação enquanto objeto.

Primeiro serão apresentadas as bases teóricas que direcionam a escuta e, na sequência, haverá o
“desenho” ou síntese como resultante de um modo específico de montagem do nosso objeto
central, demonstrando o como os diversos grupos podem ser lidos separadamente e em conjunto,
para que assim, possamos ver para além das perspectivas fixas e perceber o quanto os objetos só
são definidos pela forma como olhamos para eles, onde outros olhares podem fazer emergir uma
perspectiva completamente diferente da inicial, sendo que, mesmo que contraditórias, não se
excluem, mas são polivalentes.

Palavras-chave: escuta, perspectivas, contradição, episteme, polivalência.

i. Introdução

O presente trabalho continuará a se debruçar na escuta como a principal ferramenta de


escuta/esculta dos grupos, mas dessa vez, com a terceira corrente teórica estudada na cadeira.
Com base no entendimento do conteúdo das aulas e textos recomendados, a presente análise não
aterá a grupos específicos e fechados em si como o principal objeto, mas sim, em como que de
determinadas perspectivas, conseguimos enxergar diversas formações de grupos e suas
interseccionalidades. A Família, o Movimento e a Empresa, ainda aparecerão como objetos
independentes em determinados momentos, mas só como uma referência do que foi construído
até o momento, para que a sua dissolução também faça sentido. Além disso, será expressa o como
a própria série é um coletivo que dá voz a diversos outros e só é possível sua existência a partir
deles. Já a última, mas não menos importante, diferença da escrita atual para as anteriores, é que
na delineação de nossa base teórica, serão utilizados elementos de fora dela, para defini-la a partir
do que há de comum nela e em locais que não necessariamente estão diretamente ligados com sua
bibliografia.

ii. Terceiro movimento onto-epistêmico

O terceiro movimento onto-epistêmico, pode ser lido como a linha teórica que mais se aproxima
da definição de “movimento” em si, ao assumirmos a perspectiva de que não estamos falando
apenas de uma corrente de pensamento elaborada e difundida por um conjunto de autores, mas
também, de uma leitura e direcionamento específico que de fato te tira dos trilhos, ou seja, que
não foca no sentido linear, não oferece um caminho com um fim (ou fins), mas aponta para as
diferentes possibilidades de multiplicidade e, por conta desse apontamento, dessa diretiva, que
não é apenas verbal, mas, verbo. Podemos tomá-lo como um movimento a ser feito na delineação
da Coisa1 . Ademais, também não estamos falando de um movimento único, mas de uma natureza
de movimento, natureza aqui posta não como o que é natural, mas como uma qualidade, um tipo
de movimento. Esse, provocador de uma desnaturalização daquilo que está posto, visível, um
deslocamento em relação àquilo que é considerado óbvio, para enxergar a mesma Coisa de uma
perspectiva, de uma posição, outra. Desse lugar, ou lugares, podemos chegar a várias formulações,
até mesmo de forma contraditória e contrastante com a inicial, ou entre si, já que não se chega a
uma máxima fixa e definidora, mas considera-se que um foco específico pode demonstrar muitas
elaborações, ao deixar outras de lado, nunca cobrindo o todo ou alcançando a verdade (única).

Ao ser uma proposição contracorrente e aberta, o terceiro movimento onto-epistêmico nos fornece
ferramentas de análise, contudo, elas não são fixas, podendo ser adaptadas, complementadas, não
utilizadas ou, ainda, um meio para se chegar a outras formas de se olhar. A exemplo disso,
podemos referenciar o que Guattari nos traz em “Revolução Molecular” no texto Pistas Para Uma
Esquizoanálise: “Último, mas de fato, primeiro princípio: ‘toda ideia de princípio deve ser
considerada suspeita’ ”. As outras bases propostas por Guattari e as ferramentas teóricas desse
movimento discutidas em aula serão exploradas aqui, mas o aprofundamento do contorno dessa
terceira corrente será feito ao, paradoxalmente, tomá-la como objeto e utilizar o deslocamento
comentado anteriormente para esclarecê-la a partir de múltiplas perspectivas, incluindo, também,
o que não se é.

Absolver, apreender e abstrair toda a estrutura de nossa base teórica atual e correlacioná-la com
pontos de fora dela, mas que se interseccionam, é uma tarefa para além dos objetivos e
delimitações do presente trabalho, contudo, tentarei aqui explicitar alguns conceitos que serão
utilizados na análise a partir dessa interseccionalidade, ao trazer elementos artísticos, filosóficos
e culturais que contribuem para tal entendimento. O primeiro tópico a ser abordado aqui, é o
Taoísmo, ele em si é algo grande demais para ser trazido nos detalhes, contudo, serão inseridas
algumas informações gerais com apoio do livro O Caminho do Zen, de Allan Watts, que tem o
foco em Zen Budismo, linha com fortes bases no Tao. Em seu início, o livro começa a definir o
Zen a partir do que ele não é, coisa que pode ser estendida para o Tao, que “é uma forma e uma
visão da vida que não pertence a nenhuma das categorias formais do pensamento Ocidental
moderno. Não é uma religião ou uma filosofia; não é uma psicologia ou um tipo de ciência”.
Podemos ver, que o Taoismo, em si, já é uma visão deslocada das convenções tradicionais, não

1
Coisa, aqui iniciada com letra maiúscula, se refere a todo e qualquer objeto ontológico que podemos
tentar enxergar de alguma forma, visando ou não a sua representação.
somente em relação ao pensamento Ocidental, mas também em relação à sua própria cultura de
origem, pois entra em contraposição com o Confucionismo, que em suma, “relaciona-se com as
convenções linguísticas, éticas, legais e rituais que provêm à sociedade o seu sistema de
comunicação” (Watts, 1957), enquanto, em contrapartida, o Taoísmo “preocupa-se com o
conhecimento não convencional, com o entendimento da vida diretamente, em vez dos termos
abstratos e lineares do pensamento representacional” (Watts, 1957). Para demonstrar o como o
Taoísmo pode nos ajudar no entendimento do terceiro movimento onto-epistêmico, vamos
analisar um trecho de Tao Te Ching, um pequeno livro de 500 A.C escrito por Lao Tzé, que
expressa os princípios do Tao:

“O Caminho é o CHUN2 / E seu uso jamais o esgota / É imensuravelmente profundo e


amplo, como a raiz dos dez mil seres / Cegando o corte / Desatando o nó / Harmonizando-
se à luz / Igualando-se à poeira / Límpido como a existência eterna / Não sei de quem sou
filho / Venho de antes do HSIAN TI3” (Tzé, Tao Te Ching, cap. 4)

Pela distância linguística, alguns termos foram deixados próximos dos originais, as traduções
foram adicionadas como anotações no texto (retiradas do livro citado). Com base em Watts e
analisando o trecho acima, podemos dizer que o Tao está mais próximo do concreto do que do
abstrato. De maneira simplória, podemos tomar o abstrato como as representações que damos às
Coisas e o concreto, as Coisas em si. Ao dizer que o caminho é o vazio, podemos equiparar isso
ao deslocamento, movimento importante em nossa base teórica. Isso porque o vazio tratado ali é
sobre um lugar fora das representações linguísticas e expressa a concretude não dicotômica dela,
o que pode ser reforçado ao ser comparada com a “raiz dos dez mil seres” que tem a seguinte
definição no próprio Tao Te Ching: “Sem-Nome é o princípio do céu e da terra / Com-Nome é a
mãe de dez mil coisas”. Ou seja, o todo, o concreto, não tem nome, e ao ser nomeado, se subdivide
em diversas categorizações, assim como a citação fala por si e pode ter dez mil sentidos ao
tentarmos defini-la. O Tao olha para a frase em si. O movimento de olhar a concretude, por si só,
não é tão valorizado para a produção de conhecimento nos moldes da ciência, pois dessa
perspectiva o saber precisa ser representado. Portanto, quando correlacionamos esse movimento
com o deslocamento, podemos dizer que ele é análogo, mais especificamente, ao momento em
que deixamos as representações convencionais de lado para encontrar um outro tipo de
formulação, ou seja, no momento em que, no experimento da foto 3D4, não estamos vendo nem a
imagem inicial e nem o objeto “escondido” que se projeta fora da tela.

2
Vazio ou Harmonia. Vazio é a Natureza do Caminho; Harmonia é a Manifestação do Caminho.
3
HSIAN significa Imagem ou Forma; TI significa Rei. “HSIAN TI” é o nome atribuído ao
Rei Celeste – Deus Onipotente criador de todas as formas.
4
Livro: Olho Magico – Uma Nova Maneira De Ver O Mundo
Já nos dois versos finais, podemos observar a propriedade processual que é considerada no 3º
movimento e no Taoismo, pois o autor diz que vem de antes da criação das formas, ou seja,
eventos que ocorreram antes mesmo de sua existência, ou da existência das representações como
nós conhecemos, o constituem e são determinantes para tal. Nisso também pode ser ressaltada a
condição de indivisibilidade do sujeito para com o mundo, ou melhor, em sua unicidade e
indissociabilidade para com ele.

Para gerar tais deslocamentos, também contamos com o questionamento do que está dado, do que
está posto, como os regimes de verdade que produzem subjetividades (Lorenzini, 2016), nas artes,
podemos encontrar referências que nos apoiam em tal entendimento, como é o caso da música
‘Sombra ou Dúvida’, da banda Boogarins. Ao isolar os elementos que constituem o nome da
música, que são colocados em contraposição pelos artistas, podemos enxergar a dualidade
‘sombra e luz’ e ‘certeza e dúvida’. Nesse caso, a clarificação, o entendimento, está na dúvida, já
as certezas cobrem e fecham nossas perspectivas. Isso fica mais explícito no seguinte trecho da
música:

“Existe um desgaste do novo / Se repete e dá nojo / E isso você não quer ver / Existe um
deslumbre dos bobos / Fajuto e grandioso / E isso já engole você”.

Na corrente teórica que estamos focando, esse deslocamento gerado pela dúvida, é usado
exatamente no que se é tido como natural, o que não se é visto não necessariamente está reprimido,
mas tem suas representações enraizadas, tão consolidadas a tanto tempo, que a Coisa já não se faz
mais visível, por estar tremendamente abstraída, nisso, novas perspectivas não conseguem
emergir e, monotonamente, a pluralidade vai sendo ofuscada por um viés único. Contudo, outros
caminhos, completamente diferentes, de representação e, consequentemente, ação, podem ser
contemplados ao questionarmos o ordinário, esse trecho da música se encontra exatamente no
momento em que, a dúvida gera o “deslumbre dos bobos”, pois nesse movimento, percebe-se um
outro olhar sobre as Coisas, cheio de outras possibilidades de relação para com elas, que estava
ali o tempo todo, mas não havia tal cogitação.

Contudo, algumas Coisas, ou seja, alguns elementos do mundo o qual nos relacionamos, podem
ser sensíveis, mudam com a mínima alteração na relação que temos para com elas, outras, podem
ser a base o qual temos constituída toda a noção que organiza nossas vidas. Por isso, a variar do
objeto que estamos falando, montar uma trama de novas possibilidades é, analogamente ao
exemplo dado em aula, como andar em um caminho no gelo fino, enquanto cria-se tal caminho.
Uma obra que nos ajuda a perceber o quão delicados são esses movimentos, justamente por ser
cogitado pela própria autora de se tratar de “uma grande e lenta dissolução”, é o livro Paixão
Segundo GH, de Clarice Lispector. A narrativa se centra em um momento em que todas as
certezas sobre a composição de ser de quem narra é desorganizada, ao serem retiradas as
abstrações:

“Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa - a visão de
uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-
los pelos dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo
a vida humanizada.

A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida.”

Uma possível leitura que podemos ter com base nesse trecho é de que todas as Coisas estão
interligadas e se sobrepõe, assim como o 3º movimento lida com coletivos dentro de coletivos, na
verdade, não havendo limiar entre uma abstração chamada Eu e outra, Mundo. Contudo, com
base em Clarice, separamos tais entidades e contornamo-las a fim de organizá-las, “uma forma
contorna o caos”, assim, a substância que nos compõe é de infinitas formas e tramas,
extremamente interligadas, a ponto de serem indissociáveis, assumir essa perspectiva seria “a
visão dos loucos”. Isso porque, a premissa básica da organização está na linguagem, ou melhor,
existem premissas na linguagem que a tornam dicotômica, ou lógica. “Cortar a carne em pedaços”
seria exatamente dar signos às Coisas e separá-las. Neste caso da narrativa, o deslocamento do
que está posto foi tão grande, que desestabilizou toda a composição de ser de quem narra:

“Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária,
assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de
andar mas que fazia de mim um tripé estável”.

A angústia, desorientação e atordoamento decorrentes de tais deslocamentos, fazem parte do


processo de releitura proposto pelo terceiro movimento, claro, é preciso tomar o cuidado de não
se perder mais do que o necessário, mas também é necessária a coragem da busca e aceite do que
se for achando, mesmo que não se ache nada de fato:

“Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu
tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a
linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar
que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o
meu esforço humano.

Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com
o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem.
Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu”. (Lispector, 1964).
iii. Tramas Coletivas – A escuta grupal

A série Pico da Neblina, nos demonstra bem os coletivos dentro de coletivos e o como todas as
tramas se relacionam. A priori, podemos destacar a decisão em âmbito macro coletivo de
legalização da cannabis, que afeta tanto o Movimento e a Família, como possibilita a criação da
Empresa, divisão grupal assumida na primeira análise realizada para a presente cadeira. Divisão
essa que nos permite olhar e definir o que é o grupo e como se dão suas dinâmicas internas
enquanto um conjunto fechado, mas nos limita na exploração da relação entre eles, no
mapeamento de sua localização e representação no cenário macro social e entender o como eles
são produzidos e o que eles produzem. Podemos, por exemplo, ver o quanto a dinâmica da Família
influencia no Movimento e vice-versa, indo além, podemos ver não só as dinâmicas da família de
Biriba fazerem isso, mas de todas as famílias das pessoas envolvidas na organização que é o
Movimento. Podemos reparar nisso quando Biriba não é morto por sair do Movimento, justamente
por ser filho de um antigo líder, quanto ao final da série, quando novamente Cláudio decide não
matá-lo por ele ser tio de sua filha. Mas além desses afetos e os demais, como a relação de Salim
e Laura, que é bem impactada por essa relação da família com o crime organizado, temos,
também, a representação da família como algo muito forte no Movimento, a exemplo disso
podemos reparar na fala de Cláudio no ritual de iniciação, mostrado logo no segundo episódio da
série, onde ele diz para os novos membros que eles estão entrando para uma família e ressalta os
laços de confiança e proteção, como os tidos entre irmãos. Podemos reparar aí, que não somente
as famílias em si atravessam o Movimento, mas todo um referencial do que família representa
também, conceito que permeia todo o contexto e atmosfera daqueles personagens e advém de
processos muito anteriores aos mesmos, tanto, que sobrepõe as dinâmicas e regras instauradas no
Movimento, não só no exemplo demonstrado entre Biriba e Cláudio, mas também, na irmandade
entre Biriba e Salim, entre Piolho e Irene e entre Claúdio e Carmem (essa última mais explorada
na segunda temporada).

Além da grande sobreposição entre as entidades expostas acima, um terceiro elemento que está
extremamente interligado com eles é a Empresa, que só surge tanto pelas mudanças macro sociais
em termos legislativos, quanto pelo envolvimento de Biriba com o Movimento. Quando a loja é
reaberta ao final da primeira temporada, podemos ver Biriba e Kelly trabalhando nela e Cláudio
em uma posição de liderança, ou seja, ao final, todos esses coletivos e tramas se bifurcam e se
mesclam em uma única organização, que de determinada perspectiva, emerge e se cria e, de outra,
é apenas resultante de uma indissociabilidade inicial já posta.

Com isso, a série também representa bem a ideia de uma cadeia de eventos que têm inerência uns
nos outros. Onde pequenas alterações na forma como determinadas coisas aconteceram,
desencadearia uma série de reações e eventos diferentes. Nunca é apenas um contexto isolado que
define o como o todo vai se formar, mas cada um deles influência no desenho final. Até porque,
de determinada perspectiva, nunca temos um contexto totalmente isolado do resto.

Assim, podemos encarar a própria série, não como algo isolado, mas como a resultante de várias
tramas de eventos que se entrelaçaram até chegar na concepção inicial da obra. Como por
exemplo, a crescente descriminalização da Cannabis ao redor do mundo começou a ser um
assunto em voga no início da década de 2010, a projeção dos resultados desse mesmo movimento
no Brasil, tem grandes referências e pesquisas com base no que de fato aconteceu em outros
países, além disso, a cena pós-legalização com muitas pessoas consumindo cannabis
recreativamente sob o MASP (Museu de Arte de São Paulo), foi retirado de um dos maiores
eventos pró-legalização existentes atualmente, a Marcha da Maconha. Ou seja, a própria produção
do material está calcada nas reverberações dos coletivos contemporâneos e não se limita apenas
aos movimentos em relação ao uso e aplicação da substância central da série. Podemos tomar
como exemplo, um outro movimento cultural, ou coletivo, o SLAM (referência ao som de batida,
uma onomatopeia para impactos), que é bem representado na obra analisada e que se intensificou
muito em São Paulo e em muitos outros estados brasileiros, sendo também, de extrema
importância globalmente. Ele, é uma competição de poesia, geralmente feita de minorias, para
minorias sociais, onde a personagem Gabriela, tem o desfecho de sua história ao declamar sua
escrita e resolver seus conflitos com a mãe, ambos interligados com o fato de não ter tido uma
figura paterna em seu crescimento. O que é, além ser de um tema presente no cotidiano de muitas
famílias e representada no SLAM, também é muito abordada na série em que, além de Gabi,
William, Kelly e Salim também tiveram a figura paterna retirada de suas vidas, assim como Piolho
é órfão tanto de pai, quanto de mãe. No que tange a orfandade na série e o como ela representa a
trajetória milhares de pessoas, podemos perceber as diferentes potencialidades e afetações que
esse fato trás junto consigo.

Além da Marcha da Maconha e do SLAM, a série também faz referência a muitos outros
elementos, para e representação de coletivos, como falas que são parafraseadas do grupo de rap
Racionais MC’s e a questão linguística, própria da cidade de São Paulo, presente a todo momento
em todos os personagens (exceto em Joselo – uruguaio). Ainda pensando nesses coletivos que são
abstraídos e representados na série, também temos uma pequena exposição, de um coletivo muito
grande que é o de pessoas em dependência de substância e que vivem nas ruas, onde, no episódio
5, Salim vai procurar e acha um dos membros do movimento na Cracolândia, um local que foi
nomeado assim popularmente, mas não tem uma localização específica, já que é utilizado para
representar o aglomerado de pessoas que vivem nas ruas do centro de São Paulo e que sempre são
expulsas (em operações policiais) de um ponto e se deslocam para outro próximo. Por último,
seguindo na linha de demonstrar o como a série representa coletivos que já estão presentes em
nosso cotidiano, podemos destacar o Movimento como, também, sendo um deles, ao ter sua
estrutura e formas de atuação interligadas com os movimentos de crime organizado na cidade de
São Paulo, mais especificamente, no Primeiro Comando da Capital, que tem, basicamente, as
mesmas características identificadas no Movimento nas análises anteriores.

Em resumo, podemos enxergar o quanto a série acaba sendo uma abstração da vida e do cotidiano
de muitos grupos e suas posições no macro cenário social, além de interligar a produção dos
sujeitos a todos os eventos que ocorrem em diversos níveis de coletivo e demonstrar o quanto tais
sujeitos, são porta-vozes dos coletivos que os traspassam e os compõe.

iv. Conclusão

O terceiro movimento onto-epistêmico, nos permite uma grande multiplicidade de análises e


formulações em cima de um mesmo objeto, tornando-a mais macro e holística ou mais focada e
precisa, variando com o que se busca ver e o que se é considerado para elaborar tal visão. A
análise acima, de forma resumida, tentou demonstrar o quanto os eventos podem ter uma
interdependência entre si, mesmo que categoricamente não se deem em um grupo operativo de
trabalho fechado ou apenas em conjuntos que se comportam como um único corpo, ao delinear a
indissociabilidade dos 3 grupos, até então separados nas análises. Como forma de reforçar essas
ideias, também foi demonstrado o como a própria obra analisada dependeu, e se construiu, a partir
de inúmeras expressões e eventos, que se deram dentro da nossa cultura e organização atual, tanto
política, cultural e micropoliticamente, sendo, também, uma reverberação do que é produzido nos
encontros entre coletivos e coletivos. Por fim, para a construção dessa análise e correlação de
elementos da série com o cotidiano e eventos paulistas, foram utilizadas as experiências de quem
escreve, de forma que esta já esteve em muitos lugares e contextos que são apresentados na obra
e ao mesmo tempo carrega as histórias de outras pessoas que estiveram em muitos outros lugares
e contextos também apresentados na obra.
v. Referências

A ESCUTA (parte 1) - A CLÍNICO-POLÍTICA DO ESCUTAR AS EXPERIÊNCIAS. [oucação


de: COSTA, Luis. Local: Anchor, 20/09/2020. Podcast. Disponível em: https://anchor.fm/l-a-
costa/episodes/A-ESCUTA-parte-1---A-CLNICO-POLTICA-DO-ESCUTAR-AS-
EXPERINCIAS-ejuamg.
PICO da Neblina. Direção: MEIRELLES, Quico; MEIRELLES Fernando; CARONE Luis;
PESAVENTO Rodrigo. São Paulo: HBO Latin America Group, 2018.
LISPECTOR, Clarice (1964). A Paixão Segundo G.H. Editora Rocco, Rio de Janeiro (2020).
WATTS, Alan (1957). O Caminho do Zen. Editora Rider & Co, São Paulo (2021).
BOOGARINS. Sombra ou Dúvida. Sombrou Dúvida. OAR (2019).
ROLNIK, Sueli. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. concinnitas | ano 16, volume 01, número 26,
julho de 2015.

Você também pode gostar