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Geraldo Amâncio,

profissão: repentista
Sylvie Debs*
Brasil é geralmente tos extraordinários, romances, can- tos, para venda, dependurados em

O conhecido pela sua ale-


gria, pela sua música,
pelo carnaval, pelo samba, pela
torias e opiniões de saberes e de
políticas. Os modernos cantadores
do Nordeste do Brasil, do qual
barbantes ou cordéis na feiras livres.
A origem do cordel remonta à cha-
mada baixa idade média, quando
bossa-nova e a excelência dos seus Geraldo Amâncio é um típico repre- se dava o início da revolução
compositores e intérpretes, nomes sente, deitam suas antigas raízes nos comercial, mas tem suas raízes no
famosos como Tom Jobim e cantadores sertanejos do final do encontro das civilizações européias
Vinícius de Moraes, João e Astrud século XVIII e de meados do século e orientais, principalmente com a
Gilberto, Toquinho, Maria Creusa, XIX. Hoje os cantadores são profis- conquista árabe da Península ibéri-
Baden Powel, Gilberto Gil, sionais que têm o costume de ca, quando elementos culturais,
Caetano Veloso, Maria Bethania, encontrar-se nos festivais em outrora díspares, se encontraram para
Chico Buarque, Alceu Valença e, embates sonoros e desafios na dis- gerar um novo paradigma cultural.
mais recentemente, os novos que puta de prêmios. Eles improvisam Resultado de todo esse processo
chegam aos palcos nacionais e diante o público a partir de motes e de intercâmbio que envolve cultu-
internacionais como Lenine, modalidades rítmicas que são indi- ras de todo o mundo, principalmen-
Carlinhos Brown ou Zeca Baleiro. cados pelo júri. A rapidez, o senso te das culturas íbero-mediterrâneas
Menos conhecida pelo e do norte da África - a can-
grande público, sobrevive toria sertaneja do Nordeste
uma tradição muita viva do Brasil é uma manifesta-
que é a dos repentistas e ção universal que hoje tem
cantadores do Nordeste servido de fonte de renova-
do Brasil. Entre os moder- ção para os novos movimen-
nos cantadores, são popu- tos musicais brasileiros, já
larmente famosos canta- tendo mesmo alcançado
dores como Geraldo fama internacional. Prova
Amâncio, Ivanildo disso está nos Fabulosos
Vilanova, Oliveira de Trovadores, uma dupla de
Panelas, Bule-Bule, Moacir cantadores da cidade de
Laurentino, Louro Branco, Toulouse, capital da
Zé Viola, Sebastião Dias, Occitânia, na região de
Zé Maria, Severino Provence, no sul da França,
Feitosa, Valdir Teles, Geraldo Amâncio
que fazem músicas inspira-
Sebastião de Silva, Pedro das nas cantorias nordesti-
Bandeira, Benone Conrado, da oportunidade, a inteligência e a nas. A criatura reencontra o criador.
Nonato Costa e João Paraibano, destreza na elaboração dos versos Foi em Provence que nasceram e se
entre dezenas de outros. São mais são absolutamente surpreendentes. desenvolveram, no medievo euro-
de mil cantadores em atividade em Impressionada com essa tradição peu, as raízes da poesia dos trova-
todo o Nordeste, o que por si só tão viva que vem se adaptando tão dores. O trovador, neste período,
representa um fenômeno consi- bem aos modernos meios de comu- tinha três funções importantes: arau-
derável de persistência de uma nicação de massa, resolvi entrevistar to das boas e más novas (guerra,
antiga tradição na modernidade. o cantor Geraldo Amâncio e lhe pedi nascimentos, casamentos, mortes),
Cantoria é a palavra-síntese para que nos contasse alguns dos seus mensageiro de romances entre cava-
designar vários gêneros da poética segredos. leiros e as damas, contando lendas
popular do Nordeste cantados ao A cantoria, que tem uma tradi- e fatos extraordinários.
som da viola que têm em comum a ção oral, através dos repentes impro- Existem fatos históricos que
herança multissecular dos antigos visados por cantadores do mais ligam a Ocitânia ao Nordeste brasi-
trovadores ibéricos e provençais. Os diversos estilos, é difundida através leiro, passando, é claro pela
cantadores nordestinos são artistas de CDs, fitas K-7, fitas de vídeo e conquista portuguesa do Brasil e
indispensáveis na preservação da também através de um veículo mais pela nossa herança cultural ibérica.
tradição cultural, cantando por vilas tradicional chamado de literatura de A influência da poesia trovadoresca
e cidades do sertão, e também nas cordel - denominação que se deve sobre o lirismo luso é incontestável,
modernas metrópoles, acontecimen- ao fato dos folhetos ficarem expos- como assim pode ser constatado nas

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obras dos poetas portugueses do Nordeste do Brasil e, em particular o A entrevista com Geraldo
século XIV. Dessa leva de poetas Ceará, é um berço rico e diversifica- Amâncio demonstra a dinâmica da
surgiu a poesia que Portugal trouxe do de cantadores e repentistas, que cantoria nos dias de hoje, mostran-
para o Brasil na época da conquis- continuam na modernidade a tradi- do que, mesmo guardando a tradi-
ta, em 1500. ção dos antigos trovadores da cha- ção, foi capaz de adaptar-se aos
Este elo, que une épocas e locais mada idade de ouro da Península modernos meios de comunicação de
aparentemente tão distantes, traz ibérica, quando floresciam em paz, massa e se inserir em um contexto
consigo inúmeras possibilidades de sem a chama do ódio e da exclusão, mercadológico e cultural dos mais
integração cultural e artística. O as culturas cristãs, árabes e judáicas. complexos.

Entrevista com Geraldo Amâncio


Sylvie Debs — Geraldo Amâncio, o contribui com a historia da cantoria. vam que o cantador era uma pes-
público francês não o conhece... O livro é tido pela crítica como um soa desocupada, uma pessoa que
Como a gente poderia apresentá-lo. dos três livros que servem de camin- não tinha o que fazer.
Geraldo Amâncio — Meu nome é ho para maior compreensão da
Geraldo Amâncio ; sou repentista há história da cantoria. Temos também S. D.— Falando de cantador ama-
37 anos ; vivo exclusivamente da um trabalho mais lírico chamado dor, quer dizer que naquela época,
minha viola e do improviso e, como Cantigas que vêm da Terra, que são as pessoas não poderiam viver com
a maioria dos cantadores contempo- parcerias minhas com o poeta e jor- o dinheiro que eles poderiam ga-
râneos, eu venho de uma família de nalista Wanderley Pereira. E não nhar na cantoria ?
cantadores. Acho que era mais ou tenho outras atividades, vivo exclu- G. A. : Dificilmente os cantadores
menos cinqüenta por cento de can- sivamente de cantar. nessa época viviam exclusivamente
tadores, têm o dom da hereditarie- da cantoria ; não sei se porque o
dade... ou o pai, ou o avó, ou um S. D. — Por que você chama a rádio mercado era menor, não sei bem o
tio, ou alguém da família tinha sido e a televisão espaços nobres para a motivo. Naquela época, os canta-
cantador ou era cantador. cantoria? dores habitavam mais na região
G. A. — Quando eu falo de espaço rural. Hoje houve uma inversão
S. D. — Você nasceu em Fortaleza ? nobre, é porque a cantoria na praia, dessa ordem, a maioria absoluta dos
G. A. — Não, eu nasci no interior, cantando versos de louvações para cantadores reside hoje na região
no sítio Malhada de Areia, municí- os turistas, por exemplo, é uma urbana. A cantoria teve um impulso
pio do Cedro, quase fronteira com a forma humilhante de trabalhar. O bem maior no meu tempo, porque
Paraíba. Acho que por isso vem a cantador tem uma aparência e o o cantador já tinha programa da
influência da cantoria porque a can- aspecto de pedinte. A cantoria num rádio ; a rádio na época ocupava o
toria nossa vem daí. Começamos a casamento, numa festa religiosa, espaço que ocupa hoje a televisão,
cantar em 1964; meu avó paterno foi num barraco, não deixa de ser espa- quer dizer, é a mídia já dando um
cantador amador, um tio paterno, a ço nobre. Por exemplo, a cantoria pouco da sua mão aos cantadores.
quem devo muito como cantador, na feira, ela é meio irmã da cantoria
também era repentista amador e me da praia. Então ela tem aspecto meio S. D. — Em relação à sua família,
incentivou muito. Eu acho que o que de pedinte. Falo de espaço nobre você é o primeiro cantador profissio-
ele não pode ser lutou para que eu quando a cantoria tem espaço para nal?
fosse. Acho que o sonho dele se rea- se apresentar mais como arte. Não G. A. — Sou o terceiro cantador da
lizou em mim. Sou acima de tudo é discriminante essa distinção. família, mas como cantador profis-
muito feliz, porque hoje ocupamos sional eu sou o primeiro.
espaços que antes não eram preen- S. D. — Voltando ao passado, pode
chidos com a viola ou com a canto- explicar melhor como o seu avô e o S. D. — Como você, trabalhando na
ria. Tivemos sempre acesso ao rádio; seu tio trabalhavam naquela época TV e na rádio, consegue organizar
acho que temos inclusive o primeiro ? a sua vida profissional e atender aos
programa conhecido de viola na tele- G. A. — Veja bem, meu avô sendo convites de cantorias?
visão, já tem oito anos aqui na TV cantador amador, era aquele canta- G. A. — A minha vida profissional?
jangadeiro, nós fazemos o programa dor que só saia de casa para cantar Eu fiz programas de rádio durante
aos domingos pela manhã, onde os numa renovação, numa festa de san- mais de vinte cinco anos, depois
cantadores têm um espaço que eles tos, numa novena, num batizado e, apareceu o espaço na televisão e
não tinham antes, um espaço nobre, principalmente, num casamento. Ele deixamos a rádio. Esse programa de
muito nobre para a cantoria. E temos fazia essa viagem de cavalo. O meu televisão que nós temos, somos nós
também um livro, chamado De tio, anos depois, começou a cantar, mesmos que produzimos, que apre-
repente Cantoria, que é uma espé- e o meu avó nem quis que ele can- sentamos. Nós temos que ir atrás de
cie de antologia, que acho que tasse ; porque naquela época acha- apoios culturais e patrocínios. Tudo

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isso toma muito tempo, mas é um S. D. — Você poderia falar um pouco dizer que ele improvisa versos mais
trabalho superagradável ; eu me mais sobre a passagem da cantoria rápido, mais fácil e é capaz de can-
sinto acima de tudo um trabalhador tradicional nas feiras e nas festas tar o que acontece no momento, ele
da cantoria. Mais do que cantador, para a cantoria na rádio e a tele- é capaz de dizer com uma graciosi-
eu sempre digo: sou um trabalhador visão? E agora pela Internet? Como dade impressionante. O cantador
da cantoria. Pensando assim, a gente se faz essa relação com a nova tec- mesmo trabalha mais a diversidade,
age mais num sentido coletivo, eu nologia? o conhecimento, ele sabe de muitas
acho que é bem mais construtivo. G. A. — Essa história da cantoria em coisas, aplica métodos, não se preo-
feira é interessante. Eu mesmo ainda cupa com o momento, com que
S. D. — Como você conhece os novos cantei nas feiras, mesmo já havendo acontece. Ele se preocupa com o
cantadores que você vai apresentar? a cantoria da rádio. Havia a feira do todo e menos com o momento.
G. A. — Nós somos, é o que indica Domingo no Ouro Branco, uma vila Violeiro é o nome que se dá ao
uma pesquisa de Zé Alves Sobrinho, do distrito de Lavras da repentista e ao cantador que se
somos seis ou sete mil cantadores Manguabeira, no Ceará, onde eu vi acompanham tocando uma viola.
em todo esse universo do Nordeste as primeiras cantorias com o canta-
(Paraíba, Ceará, Piauí, Rio Grande dor Chaga Moisés. A gente cantava S. D. — Então que diferença se faz
do Norte, Maranhão, Pernambuco, na região, no Sábado, cantava numa entre cantador e cordelista?
Bahia, Sergipe). É uma contagem distância de dez, doze kms, já ima- G. A. — O cantador pode escrever
aproximada. Infelizmente desses ginando que no Domingo estaría- eventualmente um cordel, mas exis-
seis ou sete mil só trinta ou quaren- mos naquela feira. Então a gente tem poetas ditos de bancada que
ta cantadores são mais conhecidos, encontrava um bar, pedia permissão escrevem único e exclusivamente
são o que nós chamamos em lin- ao dono e cantava, as pessoas para o cordel. Há também poeta cor-
guagem popular de “cantador de davam o dinheiro que quisesse. delista-cantador, assim como existe
proa”; os que dão bem o recado, Naquela época já havia programa o cantador-cordelista, assim como
que não decepcionam quando se de rádio, porque a rádio foi o gran- existe o poeta cordelista que pro-
apresentam. Então, é desse universo de salto para cantoria. A televisão duz o seu trabalho e que cantava
que nós trazemos para o nosso pro- foi outra bênção; infelizmente, há nas feiras. Hoje é uma coisa rara,
grama os novos cantadores. poucos espaços na televisão. Pelo desconheço se existe ainda esse tipo
que nós sabemos, de cordelista. Há um fato gratifican-
existe o nosso progra- te ; é que se apregoava muito por
ma na TV jangadeiro, aí que o cordel estava morrendo por
existia um outro pro- falta de quem o fizesse e também
grama em Caruaru, por falta de leitores. De repente,
que terminou. Isso aparece uma safra nova de jovens,
significa que o canta- de Klévisson, do Arievaldo, Rinaré e
dor assim como de tantos outros cordelistas; isso é
acompanha o povo, supergratificante.
tem a necessidade
muito grande de S. D. — Como a cantoria chegou
acompanhar esse aqui no Nordeste?
salto de desenvolvi- G. A. — Há pesquisas e pesquisas.
mento e ter acesso às Alguns acham, e eu também, que a
novas tecnologias. cantoria veio através dos lusitanos.
No Brasil, nós temos notícias do pri-
S. D. — Voltando meiro grande improvisador, o poeta
mais para história da Boca de Inferno, Gregório de Matos
cantoria; se fala em Guerra. Agora uma coisa bem próxi-
cantadores, em re- ma de nós, é que a cantoria nasceu
pentistas... Trata-se realmente na Serra do Teixeira. Os
da mesma coisa ? pesquisadores acham que o baião é
Quais as diferenças? uma coisa de Luiz Gonzaga, que é
G. A. — Trata-se da uma coisa que antecede e que vem
mesma coisa: o can- da Bahia, mas é coisa bem do sécu-
tador, o repentista, o lo dezenove. Só quero confirmar
violeiro, no nosso que o baião é da viola, não é da
caso, eles são uma Bahia, não é de Luiz Gonzaga, é da
mesma pessoa. Veja viola mesmo. E ele disse mais de
bem: existe um can- uma vez : “Eu tirei esse baião que
tador que é mais eu toco do cantador de viola, de
Geraldo Amâncio e Ariano Suassuna repentista: quero vocês”. Eu fiquei surpreso. Então a

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nossa cantoria não vem de longe admitem que a cantoria seja folclo- oportunidade a assistir a um festival
(certo ela tem raízes lusitanas), mas re, porque o folclore é uma tradição de cantadores num teatro?
ela nasceu aqui na Serra de Teixeira, estática e já a cantoria se renova.
na Paraíba. Quando eu comecei a cantar há trin- S. D. — Sim, uma vez em Fortaleza.
ta e sete anos, havia talvez quinze G. A. — Então, até pelos temas que
S. D. — Como você explica a sobre- modalidades de cantoria: o galope a são apresentados, não há mais nada
vivência dessa tradição aqui no beira-mar, a sextilha, o martelo, o do tradicional. Falamos do amor, da
Brasil? Brasil-caboclo, etc. Da nossa gera- política, do dia-a-dia, do carnaval,
G. A. — Explica-se muito bem. E ção para cá surgiram muitas outras da praia, da Mulher, da saudade, fala
porque a cantoria, tem o que dizer, modalidades de cantoria novas, do sertão, mas talvez com uma nova
pelo menos com muito amor, a can- muitíssimas... Por exemplo, “O que roupagem, não é mais só assunto
toria tem história, tem raízes, ela não é que me falta fazer mais, Se o que de cangaço. Mudou.
é apenas um modismo. E como se fiz até hoje ninguém faz ?”,. Essa
fosse acompanhando a história de modalidade foi nós que criamos. S. D. — Quais são os grandes can-
uma raça que sofre, que chora. Tudo Temos cinco ou seis estilos novos ; tadores aqui?
isso acompanhado como se fosse é a nossa contribuição, mas só como G. A. — Olhe, pelos que nos ante-
um ato de fé. A cantoria não morre registro. A cantoria é viva, se eu cederam, temos umas safras extra-
nunca, ela tem mais de um século, começasse a cantar hoje, eu canta- ordinárias aí : os próprios irmãos
e não é modismo como a “lamba- ria acompanhado por outros instru- Batista, o Dimas que foi para nós
da”. A cantoria não vai morrer mentos, eu vestiria a cantoria, uma espécie de mestre, ainda o
nunca, porque os cantadores são porque ela é muito nua, a musicali- tenho hoje, na minha métrica, como
poetas. Se por acaso, algum dia não dade da cantoria é muito pobre. o cantador mais perfeito que ouvi;
houvesse nem mais um ouvinte de tinha uma arte professoral, ele era
cantoria, a cantoria mesmo assim S. D. — E a temática mudou muito? um filósofo, era um papa, era tudo
ainda não se acabaria porque os Você falou que a cantoria acompan- na cantoria. O irmão dele, Lourival
cantadores iriam cantar uns para os hava a história do povo... Batista, o Pinto do Monteiro, que
outros. G. A. — Veja bem, os cantadores consideramos o maior repentista de
que me antecederam cantavam todos os tempos. Não sei se você
S. D. — Qual é o público dos canta- muito a mitologia, coisas da Grécia, conhece a história desse homem,
dores hoje? cantavam muito Carlos Magno, can- foi fantástica. Falo dele no meu livro
G. A. — Já foi um público totalmen- tavam o descobrimento do Brasil, a De repente cantoria. O Rogaciano
te rural. Hoje já é um público 90 % história sagrada, José do Egito, Leite, Zé Alves Sobrinho, que não
urbano. Isso se explica muito bem. Moisés e assim por diante. Os can- houve até hoje cinco cantadores
Por exemplo, no meu caso, eu tadores de hoje, ouvem falar de maiores do que Zé Alves Sobrinho,
comecei a cantar em 1964, na época, genoma, das clonagens, da ciência, que viveu muito esquecido lá em
70 % dos habitantes no Nordeste do dia a dia, da política. Mudou, Campina Grande e tantos outros. Os
eram de região rural. Hoje temos acho que radicalmente. Até porque cantadores hoje que têm mais
uma inversão de ordens: acho que não é uma mudança só do canta- convites, que estão sempre na linha
hoje só 30 % residem na zona rural. dor, é do próprio público que exige de frente, é Vilanova, Oliveira de
A viola acompanhou o povo, o povo novos assuntos: “quero isso, quero Panelas, João Lourenço, Cardosa,
também acompanhou a viola como aquilo...”. O público não vai mais Sebastião da Silva, Moacyr
dizemos. Os cantadores todos eram pedir Carlos Magno. Laurentino, Louro Branco. Tem uns
residentes em fazendas, em sítios. novos aí chamados Nonato Costa,
Hoje a maioria mora em cidades de S. D. — Não tem uma sobrevivência Raimundo Nonato, Edimilson,
médio porte ou nas capitais. Hoje é do público mais tradicional? Ferreira, Antonio Lisboa... Tem uma
um público urbano, talvez até mais G. A. — O cordel tem essa diferen- nova geração que está nos suceden-
exigente, mas esclarecido, que gosta ça. O público tradicional do cordel do, porque tem que haver a reno-
de coisas do atual. O cantador do continua a ler clássicos como o “O vação, a própria vida exige isso,
passado, eu não ponho nem a culpa, Pavão Misterioso” e existe o público senão, todo ciclo termina.
podia levar até o nome de subser- novo, um público moderno que
viente, de cantar para o coronel, de gosta da história do seu “Lunga”, S. D. — Qual é a sua formação? Você
defender o coronel, mas também essa coisa muito bem criada pelo estudou? Você leu? Como você criou
era capaz de defender Lampião, ele Klévisson, pelo Rinaré. O nosso o seu imaginário?
ia por onde botasse. O cantador de público de cantoria é 90 % urbano, G. A. : Veja bem. Eu não tive muita
hoje é bem mais esclarecido, ele não 5 ou 6 % do público tradicional ficou oportunidade de freqüentar colé-
é mais subserviente, ele canta o que lá no sertão, no interior. gios, durante a minha vida estudei
acha que deve cantar. S. D. — Então você tem mais liber- apenas dois anos. Então foi ler, pes-
S. D. — Como acontece a moderni- dade para inventar, para criar quisar, perguntar, ir atrás, tirar dúvi-
dade e a renovação da cantoria? porque o público mudou? das, e com isso terminei o segundo
G. A. — Há cantadores que não G. A. — Com certeza. Você já teve a grau, um espécie de supletivo. Fiz

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recepção é quase nada, a inspiração
vai acabando. Se eu digo uma coisa
boa, vai chegar aquela luz, vem a
capacidade da velocidade, do
raciocínio rápido. Eu sou totalmente
dependente da recepção do públi-
co.

S. D. — Você já cantou fora do


Brasil?
G. A. — Estivemos em Portugal em
1994, fomos fazer uma apresenta-
ção no Museu de Etnologia. Foi um
encontro super agradável; lá encon-
tramos repentistas dos Açores, do
Minho, uma poetisa do nome Maria
Celeste, muito repentista e para sur-
presa maior ainda, (as poetisas, as
cantadoras nossas daqui nunca tive-
ram boa voz, pelo menos desco-
nheço, eu diria voz de cantora, voz
Geraldo Amâncio e Sylvie Debs
de Clara Nunes), essa além de ser
até o certificado, mas sempre que eu ocupo lendo, pesquisando, escre- repentista excelente tinha uma voz
alguém me pergunta, digo: olhe só vendo, passando o que eu acho belíssima e deve ter ainda, então foi
freqüentei escola dois anos, foi real- interessante para uma fita de grava- a única vez que tivemos a oportuni-
mente só isso, aquele escola do sítio dor. Estamos já elaborando um ter- dade de fazer apresentação fora do
do primeiro livro, do segundo livro. ceiro livro com poesias de canto- Brasil, foi uma maravilha. Tenho a
Eu sempre disse que a minha uni- rias. Então o cantador ou se atualiza, impressão que os melhores momen-
versidade maior foi o dia a dia, foi ou fica à margem. Ele tem que pes- tos pelo menos em termos de aplau-
o mundo, a vida me ensinou fantas- quisar, trabalhar, aprimorar, apren- sos que nós tivemos nessa vida de
ticamente. der para tocar o barco. cantadores de trinta e sete anos foi
realmente em Portugal; nós íamos
S. D. — Se os temas são mais ligados S. D. — Escutando cantoria, fico fazer uma apresentação, fizemos
à atualidade, como você se prepara sempre muito impressionada com a oito 
para os festivais e para os improvi- rapidez do improviso. Tem uma téc- Fortaleza, abril-junho de 2001.
sos? nica especial para isso?
G. A. — Ler para mim é uma espé- G. A. — A primeira coisa é o dom.
cie de mania, eu leio no mínimo um A segunda coisa é a prática. O que
jornal por dia. Habitualmente são também ajuda muito, para que o
dois jornais que eu leio. Todo espa- cantador produza cada vez mais e * Université Robert Schuman -
ço afora desse trabalho da cantoria, melhor, é a reação do público. Se a Strasbourg

L. M. Salles, “O flautista de Hamelin”, 2002

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