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edição

É VERÃO...
... mas, deixa a praia pra depois.Vamos ler!
ESTA EDIÇÃO
Edição, Capa e Diagramação: EDITORIAL: É VERÃO! E O QUE ISSO SIGNIFICA?
Pabl o Gomes

Design (publicidade): É verão! É tempo de sol , e num paí s repl eto de pe-
Pabl o Gomes quenos paraí sos, como costuma ser o Brasi l , a tenta-
Anthoni el e Carval ho ção de i r a prai as, parques e a qual quer parte onde
se possa agl omerar pode ser enorme. Em tempos nor-
Revisão: mai s, em que os ri scos eram bai xos, "Aprovei te e di -
Hel l en Heveny vi rta-se" seri a nosso consel ho. Seri a. Estamos perto
Tati ana Iegorof f como nunca, de vencer a guerra contra o i nf ame Coro-
Pabl o Gomes
na Ví rus! Val e a pena esperar um pouco mai s, e so-
mente i r para a prai a quando essa etapa j á ti ver si do
Autores: superada. Um verão de prai a a menos, hoj e, pode re-
Al pi no presentar, no f uturo, mui tos verões de prai a!
Cl áudi a Zambrana
Cri sti ano Tei xei ra Isto posto, procuramos sel eci onar, nesta edi ção,
Dani el Cosme os textos j á publ i cados no nosso portal ( caso você
Gabri el Soares não sai ba, é onde sel eci onamos os textos que vi rão
Guto Domi ngues
para a revi sta: www. l i teraturaerrante. com. br) , que
Hel l en Heveny
J . Berwi g tenham al go a ver com verão, prai a, mar, e assuntos
J . Brandão af i ns. Não só el es, mas, como marco temáti co desta
J C. Rodri gues edi ção, el es, pri nci pal mente.
Karl a Gama
Lui s Al l adi n Bambá Comemoramos, ai nda, nessa edi ção, o sucesso de mai s
Lui z Rodri gues uma i ni ci ati va edi tori al f i nanci ada col eti vamente.
Pabl o Gomes Acredi tamos que esse ti po de i ni ci ati va ai nda i rá
Ruan Vi ei ra render mui tas outras excel entes publ i cações!
Túl i o Montei ro
Nossa parceri a com a Revi sta Perpétua recebe mai s
Doug Nol eto um capí tul o. Preci samente, mai s três capí tul os do
Wel l i ngton Duarte ( Eros)
conto Até que a Morte nos Separe. Os três capí tul os
f i nai s estarão di sponí vei s na próxi ma edi ção, em doi s
ISSN: meses.
PENDENTE DE DEFINIÇÃO Desej amos que você l ei a, di vi rta-se, ref l i ta,
( após publ i cação da segunda
edi ção, conf orme normas aprenda e, como mai s qui ser e puder, aprovei te mai s
vi gentes, a numeração deverá ser esta edi ção, f ruto de mui to trabal ho de mui ta gente,
vál i da retroati vamente às
pri mei ras edi ções regi stradas) nessa nova f ase do Li teratura Errante.

Obra Li cenci ada pel a Atri bui ção - Uso Não-Comerci al - Vedada a Cri ação de Obras Deri vadas 2. 5 Brasi l
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Literatura Errante 3
SUMÁRIO

Estudos Literários:
Thomas Wol f e, um gi- Notícia:
gante esqueci do ( Da- Opera Sopa - Antol o-
Contos: Poemas: ni el Cosme) . . . . . . 43 gi a de HQ. . . . . . . 60
O Conto da Água Amores de Verão ( Kar- Ironi a e ci rcul ari dade
( Hel l en Heveny) . 7 l a Gama) . . . . . . . . . 36 Pol í ti co-Soci al em Os
Desencontros ( Pabl o Inf i ni tude do Ol har Bruzundangas, de Li ma
Gomes) . . . . . . . . . . 13 Até que a Morte nos Se-
( J . Berwi g) . . . . . . 37 Barreto ( Túl i o Barre- pare - parte III. . 74
Serei a Assassi nada
Cartas ao céu ( Cl áu- to) . . . . . . . . . . . . . 49 Até que a Morte nos Se-
( J . Brandão) . . . . 19
Uma manhã na horta di a Zambrana) . . . . 38 pare - Parte IV. . . 76
Folhetim: Até que a Morte nos Se-
( Cri sti ano Tei xei - Sonhava ( Luí s Al l adi n
ra) . . . . . . . . . . . . . 25 Bambá) . . . . . . . . . . . 39 SÉRIE ANTEROS - Pri- pare - Parte V. . . . 80
Táxi ( J C. Rodri - Eu quero paz ( Ruan mei ra Luz. . . . . . . . 62
SÉRIE ANTEROS: Atrás
gues) . . . . . . . . . . . 32 Vi ei ra) . . . . . . . . . . 40
da Marca. . . . . . . . . 64
Cartum:
Fal hou ( Lui s Al l a- Googl e. . . . . . . . . . 84
A Al dei a dos Magos
di n) . . . . . . . . . . . . 33 Opinião: Escondi dos III. . . 68
Batman Mordomo. . 84
Útero de Ferro Kl aatu Barada Ni kto Thi s i s Sparta! . . 85
( Lui z Rodri gues) 34 A Al dei a dos Magos
( Guto Domi ngues) 56
Escondi dos IV. . . . 72

4 Literatura Errante
Literatura Errante 5
Conto

O Conto da Água
por Hel l en Heveny

Duas raças domi nantes não podem aqui . A mi m f oi dado o presente de


coexi sti r, Di one é a prova di sso. conceber a pri mei ra f orma de vi da
exi stente e vê-l a se mul ti pl i car. Eu
Di one. testemunhei cada evol ução, cada nova
cri ação que surgi a, e também ti ve a
Bel a, curi osa e i ngênua Di one. oportuni dade de cri ar.

Lembro-me cl aramente do f atí di co di a em Antes dos homens meu povo j á exi sti a,
que el a f oi pega. Cada gota de mi m doeu quando a pri mei ra centel ha da humani dade
com o desespero, mas eu nada podi a f azer, surgi u, eu al mej ei uma rel ação de ami zade
há coi sas nas quai s eu não posso entre ambas as espéci es. Mesmo em toda
i nterf eri r. mi nha grandi osi dade, eu f ui i ngênua. De
i ní ci o ambos os povos coexi sti am numa
Sou tão anti ga quanto qual quer f orma de rel ação de cooperação, porém, quando a
vi da, quando não havi a nada al ém do sede por poder e domi nânci a, surgi u nos
vazi o, nada al ém das sombras, eu estava homens, eu vi sua verdadei ra essênci a, e

Literatura Errante 7
os odi ei . cor de caramel o e maci a. Seus ol hos, tão
verdes quanto as mai s bel as al gas
Mas ai nda havi a aquel es que acredi tavam mari nhas, bri l havam com o desespero.
na bondade del es, aquel es que não Di one estava presa num emaranhado de
conheci am a dor, nem a cruel dade. Mi nha redes, sendo arrastada para a superf í ci e
queri da Di one, sempre tão genti l . Ai nda por um grupo de pescadores, que
me l embro dos seus ol hos curi osos acredi tavam ter capturado um grande
passeando pel os cascos dos grandes cardume.
navi os, que começavam a se tornar
constantes em mi m. Lembro de suas
perguntas constantes a suas i rmãs. El a
queri a saber mai s sobre o povo da
superf í ci e, mas nunca recebeu nada al ém
de um ol har de repreensão, af i nal após as
pri mei ras embarcações chegarem às águas
quentes daquel as terras, corrompendo uma
das poucas centel has de genti l eza que
ai nda restava na humani dade, meu povo f oi
proi bi do de se aproxi mar dos homens.

“Não deve chegar perto del es, Di one”


di zi am as outras.

Mas i sso não a i mpedi u. Um si mpl es avi so


não f oi o suf i ci ente, a expressão dura de
repreensão não bastou para sanar sua
curi osi dade.

-/-

O di a havi a acabado de rai ar, o sol dava Porém os ol hos se arregal aram e
seus pri mei ros si nai s, os rai os pareceram querer pul ar das órbi tas quando
amarel ados i l umi navam o céu, e aquel e avi staram o ser preso nas redes, dentes
poderi a ser o amanhecer perf ei to, se não af i ados à mostra, as unhas, mui to
f osse corrompi do por gri tos de desespero semel hantes a garras, tentavam cortar
e pavor. Eu a senti ser arrancada de mi m. desesperadamente os f i os, porém em vão.
Aos ol hos humanos el a era uma aberração,
Di one, sempre tão tei mosa, estava perto para mi m, mi nha queri da f i l ha.
demai s das margens do ri o, os pescadores
j ogavam suas grandes redes em busca de Agora condenada.
pei xes, a roti na era a mesma, todos os
di as. Exceto naquel a manhã. Naquel a manhã Seus pul mões f rágei s respi ravam o ar
el es encontraram al go surpreendente, e terrestre pel a pri mei ra vez, seus
assustador. Mi nha f i l ha amada, el a estava cabel os, tão negros, eram um emaranhado
tão assustada. A rede se enroscou em sua de f ol has e l i nhas de pesca, que se
bel a cauda perol ada, a l i nha af i ada, espal havam por seu rosto.
cortante, f ez pequenos tal hos em sua pel e

8 Literatura Errante
Eu podi a ver o medo e a admi ração dos passou a não resi sti r mai s, entregue.
pescadores e de um em especi al , seu nome Depoi s das agul has começaram a usar
era Uri el . Eu podi a ver em seus ol hos, seu pequenas f acas, ti ravam suas bel as
coração di vi di do. El e queri a j ogá-l a escamas, e f i cavam maravi l hados com a
novamente no ri o, compadeci do pel o f orma como o corpo del a se curava. Mas nem
sof ri mento del a, porém a ganânci a é o a cura tão acel erada a sal vari a de seu
def ei to mortal dos humanos. Uri el mandou f i m.
seu f i l ho mai s novo à ci dade e, quando el e
retornou acompanhado por doi s homens
uni f ormi zados, eu sabi a que sua deci são
havi a si do tomada.

Condenação.

Di one, f raca e assustada, f oi l evada.

Eu não a vi por l ongas horas, o si l ênci o


f oi a pi or parte, ao menos no começo
pareci a ser. Quando a vi novamente,
pref eri a que sua exi stênci a j amai s
houvesse aconteci do. Di one estava dentro
de uma grande cai xa de vi dro, eu estava
ao seu redor, senti a seu pavor, seu
arrependi mento. Ini ci al mente os humanos Di one não vi a mai s o amanhecer ou o pôr
só a observavam, a ol havam por horas a do sol , el a não sabi a se era di a ou noi te,
f i o, escrevi am em suas f ol has brancas, não senti a mai s as mudanças de estações
conversavam uns com os outros e saí am. ou das marés. Após o segundo i nverno
Isso aconteceu por mui tos di as. Di one desde seu sumi ço, suas i rmãs pararam de
sof ri a, a f ome e a sol i dão a consumi am, procurar, e eu me resi gnei em seu
seu corpo estava f raco, seu coração sof ri mento, bastava a nos duas, por hora.
parti do. Suas l ágri mas se mi sturavam a
mi m, eu sof ri a com el a. Di one j á não se curava mai s. Estava
magra, f raca. Eu tentava al i vi ar sua dor,
E quando os testes começaram, seu sangue mas não podi a f azer nada, não me era
passou a f azer parte de mi m, assi m como permi ti do i nterf eri r. Todos os di as l he
sua dor f í si ca. Pri mei ro el es ti raram seu ti ravam um pedaci nho, um pedaci nho do
sangue, um pouco a cada di a. El es corpo, da al ma, e di zi am ser em nome de
chamavam de “col her amostras” . Usavam al go que chamavam de “ci ênci a” .
grandes agul has, o sangue del a ti nha uma
col oração azul ada, uma textura vi çosa, e “El a está sof rendo! ” ouvi um del es f al ar
quando se mi sturava a mi m perdi a toda sua certa vez, aquel e que observava Di one
cor. todas às noi tes, por horas a f i o, e
chorava por el a, l onge dos outros.
Mas o chei ro conti nuava, era chei ro de
morte. “Essa descoberta vai aj udar a
humani dade! Isso não passa de um ani mal .
Nos pri mei ros di as el a l utava, depoi s Está com pena, sol dado?” Perguntou o

Literatura Errante 9
outro, num tom rude, of ensi vo e
ameaçador. “Descul pe-me, eu devi a ter evi tado. ”
Após i sso, derramou o l í qui do sobre mi m,
“Não. . . Não senhor. ” Di sse o mai s novo, contami nando aquel a parte do meu ser,
suspi rando pesadamente, arrependendo-se dei xando-me amarga, mortal .
amargamente de ter concordado com a
pesqui sa. Di one sorri u, seus ol hos, que antes eram
tão bri l hantes, f i caram opacos à medi da
Depoi s di sso el e nunca mai s chorou. que a sua vi da saí a de seu corpo, e
vol tava para mi m.
Os di as se passaram e Di one vol tou a
cl amar por mi m, el a pedi a um f i m ao seu “Experi ênci a 137 encerrada, espéci me
sof ri mento. Mas eu não podi a i nterf eri r. extermi nado. Hora do óbi to, 17: 23h. ” Di to
i sto, el e desceu as escadas, cami nhou
Mi nha pequena Di one. El a i mpl orou, mas l entamente para f ora da grande sal a, e
eu não pude f azer nada. f echou a porta, que nunca mai s f oi
aberta.

Eu nunca mai s vi aquel es homens, el es


j amai s ousaram tocar meu ser novamente.
Uri el morreu meses depoi s, engol i do pel as
águas do ri o amazonas, engol i do por mi m.

Desde então meu povo, mi nha cri ação,


j amai s teve contato com os seres cruéi s
da superf í ci e. O nome de Di one j amai s f oi
esqueci do, estava gravado em l i vros, em
castel os. El a era a pri ncesa genti l e
amada. Sua vi da tão j ovem cei f ada por
humanos cruéi s, sedentos por poder, sem
control es di ante de sua própri a ganânci a.

El a é parte de mi m agora, uma l embrança


constante de que duas raças domi nantes
Quando os homens acharam que j á não não podi am coexi sti r.
havi a mai s nada a ser “Descoberto” ,
dei xaram de vi r. Só El e vi nha, todos os
Sobre a Autora:
di as, encarava Di one por horas, e i a
Estudante de
embora depoi s. Um di a el e apareceu com um Letras, Hel l en
pequeno f rasco nas mãos, um l í qui do Heveny, 22 anos é
l evemente amarel ado tremul ava no f rasco. nasci da em Serri nha,
O ci enti sta, ou mel hor, o sol dado, BA e resi de em
destampou o vi dro e subi u na pequena J equi é. Apai xonada
escada que l evava ao topo do tanque, por l i teratura desde
Di one o encarou com súpl i ca no ol har. El a a i nf ânci a, escreve
desde a adol escênci a
i mpl orava por al í vi o, por descanso.
e atua como
revi sora.

10 Literatura Errante
Literatura Errante 11
Conto

Desencontros
por Pabl o Gomes

Era um magní f i co di a de sol . Antoni o – col í ri o para seus ol hos. Foi assi m, pel o
Toni , como l he chamavam os pai s i tal i anos menos, que Toni – e, certamente, metade
– curti a, i nocente e i mpunemente, uma dos presentes – percebeu a chegada da
prai a, j á que ni nguém é de f erro. Foi moça.
quando entrou em cena, desl i zando por
sobre a arei a da prai a com uma bel eza Toni não podi a apenas esperar. Ti nha que
extraordi nári a, e uma canga que del i neava agi r. Levantou-se. Mas, f azer o quê?
suas qual i dades, uma verdadei ra deusa de Sentou, novamente. El e não sabi a como
Ébano. agi r, mas não ti rava os ol hos daquel a
mul her úni ca. Preci sava, deci di damente,
El a armou sobre a arei a sua cadei ra de f azer al go. Observou que, ao seu l ado, el a
prai a, e, cui dadosamente, i l umi nou a prai a começava a escrever al go na arei a. El e
com a sua bel eza negra, ao remover a canga parou. Esperou. Droga! O mar apagou. A
branca que ousava roubar do públ i co aquel a maré estava enchendo, e el a, sem saber,
vi são do paraí so. Sentou-se, sai ndo do pusera sua cadei ra em rota de col i são com
campo de vi são da mai ori a, e com i sso a subi da da maré. El a se l evantou, para o
pri vou Toni do prazer de desf rutar daquel e del ei te de toda a popul ação mascul i na da

Literatura Errante 13
prai a ( e desgosto das esposas e namoradas possí vei s! Ri cardão é óti mo na cama! ” ,
presentes) , af astou a cadei ra al guns “Não, o sexo do bebê. ” , “Seu tarado! ” ,
metros do mar, e a col ocou prati camente “Não, dona, quero di zer que você estava
ao l ado de Toni – o que quase o f ez escrevendo um nome de meni na. E se nascer
enf artar, e, certamente, matou os demai s meni no?” , “Ah, se f or meni no, o pai
homens e uma ou outra mul her de i nvej a. escol he o nome. Ol ha el e chegando aí ! ” .
Não! Esta úl ti ma versão do di ál ogo ai nda
El a se sentou, novamente. Agora, bem termi nari a em conf usão. Até porque,
aos ol hos de seu mai s devotado garotas boni tas têm o mau gosto de
observador. Começou, novamente, a namorar caras marombados, ou l utadores de
escrever al go. Logo, se del i neou um bel o j i u-j i tsu. “Tô f ora! ” , pensou Toni .
“E” . Suspense no ar. Um “l ” , segui do em
segui da de um outro “l ” … opa! Um
ambul ante, di straí do, desmanchou tudo.
Pedi u descul pas, e só então vi u a moça.
Babou, quando a vi u, quase l he dava suas
mercadori as, em pedi do de descul pas, mas
el a recusou. “Tá tudo bem, moço. Pode
segui r seu di a. ” . Toni j á ti nha í mpetos
de i r surrar o cara. Quem l he dava o
di rei to de atrapal har e, pi or, se enxeri r
para a sua garota?

El a, enf i m, recomeçou: “El l ” , parou.


Ol hou para el e, suti l mente. El e, que
observava de manei ra nada suti l , tentando
cl aramente xeretar o que el a escrevi a,
desvi ou o ol har, sem graça. El a retomou.
Escreveu um “y” . Escrevi a com uma bel a
graf i a, e chei a de f l orei os, como a
decl arar que sabi a o quanto era bel a; “d”
e, para o arremate f i nal , “a” . El l yda.
Seri a este o seu nome, pensou Toni .
Toni estava tão di straí do que não
J á seri a um bom começo, então, para uma reparou quando sua ami ga Fl ávi a passava.
abordagem. “Ol á, El l yda! ” , “Como você Mas el a reparou que el e estava sentado,
sabe o meu nome? Andou me espi onando?” , e se aproxi mou. “Oi , Toni ! ” , “Eh… Oi ,
“Cal ma, eu só l i o nome que você escreveu Fl ávi a! ” , bei j i nhos, bei j i nhos, “Como
na arei a! ” . Não, tal vez el a f osse menos você tá, meni no?” , “Tô l egal ! Você também
paranói ca, ou se senti sse um pouco parece óti ma! ” , e por aí vai . Aquel es
i nvadi da. “Oi , El l yda! ” , “O quê?” , “Oi , papos de “nunca mai s mandou notí ci as” ,
El l yda! ” , “Descul pa, mas, não me chamo “é, a vi da anda uma l oucura” , e outras
El l yda. ” , “Não? Mas…” , “Esse é o nome da banal i dades compl etamente previ sí vei s.
mi nha namorada. ” . Cruel ! Ou, tal vez, em Fl ávi a. Lourí ssi ma, gatí ssi ma, l i nda,
vez desta úl ti ma decl aração, “Não, não. exuberante! Mas Toni mal consegui a ti rar
É que acabo de saber que estou grávi da, os ol hos daquel a outra moça, que bri l hava
e estou tentando escol her o nome. ” , “Ah, à l uz do sol . Al i ás, el a pareci a ai nda
mas você j á sabe qual o sexo?” , “Todos os estar escrevendo al go, mas Toni não

14 Literatura Errante
consegui u ol har, tentando não dar a bi quí ni mí ni mo que destacasse as suas
perceber que j á não escutava sua ami ga. curvas, mas não se acostumava com a
“Tchau, meu l i ndo! Vê se me l i ga, hei n? natureza dos ol hares.
A gente ai nda tá se devendo conhecer
aquel a boate…” , “Li go, si m! ” , bei j os à Pôs, então, a cadei ra mai s para trás,
di stânci a, um aceno. Toni , então, ol ha af astando-a do mar por mai s al guns
para o l ado. Decepção. metros. Se ti nha que f azê-l o, por que não
aproxi mar um pouco da cadei ra do rapaz?
“El l yda & Marqui nhos” . O ál i bi era perf ei to, e el a o f ez.
Recomeçou a escrever seu nome, na
Toni f i cou de coração parti do. Como esperança de que o j ovem o l esse, e el e
podi a? El e nem a conheci a, e j á estava se
dei xando abal ar por uma notí ci a óbvi a.
Cl aro que uma mul her perf ei ta como aquel a
só podi a ser comprometi da! Mas,
“Marqui nhos” ? Nem mesmo nome de homem el e
ti nha. Toni se senti a traí do. Qui s
l evantar, tomar as devi das sati sf ações,
e quase o f ez. El a não ti nha di rei to! Mas
el e se conteve. Não suportando a dor,
Toni resol veu vol tar para casa. Foi
chorar sozi nho, pel o fim do
rel aci onamento que j amai s começou.

-/-

Era uma bel a manhã de Sol . El l yda


acordou di sposta, e segui a rumo à prai a,
que pareci a l he chamar. Com seu bel o
corpo negro, chamava a atenção de todos
os homens e a i nvej a das mul heres, por
onde passava. Incomodada, l evou sua pareci a mesmo i nteressado. Mas, aí , vei o
cadei ra de prai a bem para f rente, onde, um ambul ante desastrado. El a qui s
quando sentada, não seri a vi sta por mai s expl odi r de rai va. Será que ti nha de ser
ni nguém. tão di f í ci l , para uma moça, escrever um
nome na arei a?! Mas el a se conteve,
No entanto, um j ovem rapaz a ol hava af i nal . El a não queri a que o rapaz
di f erente. Não a comi a com os ol hos, como pensasse que el a era esquentada. Após
o f azi a a mai ori a dos homens. El e of erecer metade de suas mercadori as, num
pareci a, mesmo, encantado. Isso a tocou exagerado pedi do de descul pas, e após
sobremanei ra. Mas, tí mi da, não teve ouvi r sucessi vas negati vas, o ambul ante
coragem de i ni ci ar um di ál ogo. Tomou em sai u, ol hando para trás, devorando-a com
mãos um pequeno graveto, e pôs-se a os ol hos e pedi ndo descul pas.
escrever o seu nome na arei a. Após as
pri mei ras l etras, o mar apagou. Poxa El a rei ni ci ou, escrevendo as pri mei ras
vi da! El a l evantou-se, a contragosto. Não l etras de seu nome. Só para conf i rmar o
queri a ser, novamente, al vo dos ol hares. i nteresse del e, deu uma ol hada rápi da
Gostava de se senti r bel a, de usar um para o l ado, e el e desvi ou o ol har. Poxa!

Literatura Errante 15
El a não devi a ter ol hado. O negóci o era de um nome mel hor, escol heu o do seu
torcer que el e não esti vesse tão i rmão, de sete anos. Estava tão nervosa,
i nti mi dado, e que l esse o nome del a. Não que mal se deu conta de que escrevera no
demorou tanto em escrever o resto do di mi nuti vo. E com uma cal i graf i a
nome, mas capri chou na cal i graf i a. Queri a sof rí vel .
i mpressi onar.
Quando a l oi ra se despedi u, o convi dou
para i r a uma boate, e el e garanti u que
l i gari a. Se el es não ti nham al go, l ogo
teri am, certamente. E El l yda teve certeza
de que ti nha tomado a deci são acertada,
ao escrever aquel e nome mascul i no ao l ado
do seu. Pena. El e era exatamente como el a
gostava. Boni to, mas nada escandal oso.
Não era marombado, como aquel es caras que
só pensam em academi a e arranj ar bri ga,
e dei xam a mul her em segundo pl ano. El a
gostava de rapazes assi m, em f orma, mas
magri nhos, e com aquel a cara de CDF.
Costumam ser mai s sensí vei s,
companhei ros, apai xonados.

Quando el e vi u o nome escri to, el a não


coube em si , de tanto espanto. A
expressão del e cai u, desabou. O corpo
del e perdeu o vi gor. El e pareceu
real mente decepci onado. Por um i nstante,
pareceu i rri tado. Mas, f i cou ni sso,
mesmo. Logo, el e recol heu o pouco que
l evara à prai a, e parti u. El a teve
certeza de que se arrependeri a depoi s,
por não tê-l o chamado, nem puxado
assunto. E se arrependeu. Fazer o quê?

Mas, então, chegou uma garota. El a era


l i nda, l oi ra, ti nha o corpo perf ei to. Era
do j ei to que homem gosta, chei a de carne,
Sobre o Autor:
duri nha, mal hadi nha. E era l oi ra. El l yda
estava cansada de ver, por experi ênci a Pernambucano nasci do
própri a, que os homens costumavam em Caruaru e radi cado
pref eri r as l oi ras. El a não podi a no Reci f e, o poeta,
competi r com uma mul her tão bel a. conti sta, croni sta,
Prontamente, deci di u escrever outro nome romanci sta, rotei ri sta
de homem, j unto ao del a, para não dar na e aventurei ro Pabl o
vi sta que estava paquerando o cara. El a Gomes é também ator,
não suportava a i dei a de que percebessem al ém de cri ador e
que el a f oi rej ei tada. De novo! Na f al ta edi tor do Li teratura
Errante.

16 Literatura Errante
Literatura Errante 17
“Da pri mei ra vez em que me assas-
si naram, perdi um j ei to de sorri r que
ti nha. . . Depoi s, de cada vez que me
mataram, f oram l evando qual quer coi sa
mi nha. . . ”
Mári o Qui ntana

18 Literatura Errante
Conto

SereiaporAssassinada
J . Brandão
Mas, é bem do modo como vemos. Nós ví amos que o sol a contempl ava
Nada l he f al tava não f osse sua assi m como nós e para tanto não
resi stênci a. Seu senso de vi tóri a. houve surpresa. Bem porque só
E se ol hasse bem, assi m como nós notamos i sso depoi s. O sol dei tou-
ol hamos, el a ti nha qual quer traço se al i naquel as águas antes de
de madona renascenti sta. Esses adormecer e dar seu posto a l ua,
ol hos amendoados e entedi ados. Essa porém antes. Pôs-se al i . A f ul mi ná-
f ace di f í ci l de ser del i neada como l a. Havi a qual quer tragi ci dade no
uma pi ntura da renascença ar. Como l ençói s l evados pel o
descui dada. Esses cabel os de pi ncel vento. Era um peso i nvi sí vel aos
despreocupado de pi ntor perdi do a ol hos que eu desej ei não senti r.
contempl ar sua musa. Sabendo de
antemão que j amai s consegui rá O corpo mei o sentado mei o dei tado.
prender a bel eza del a em seu Torto. Como numa dança estrangei ra
quadro. Ni nf a dos ri os doces. Sua congel ada. E desde que a vi daquel e
pel e não bri l ha, quei ma. Incendei a modo, os ceús despencaram sobre
até por l onge. Não se aqui etou para mi m. Tal vez, até sobre todos.
ser pi ntada, nós sabemos. Não ti nha
i nteresse na pressa. Sentou-se para Porque nós todos í amos por l á
descansar tal vez, somente para despreocupadamente. Cami nhando
esquecer que os mares revol tosos ani mados. Quando a tarde j á caí a. E
af ogari am mari nhei ros experi entes. se eu pudesse adi vi nhar o que eu
vi ri a, teri a tomado outro cami nho.

Literatura Errante 19
Sem dúvi da, teri a i do por l onge. Não i mporta mai s. Não i mportava
porque nós ví amos o sangue que
No entanto, como não se é possí vel havi a escorri do pel os l ábi os
adi vi nhar o f uturo, tomamos a azul ados del a e depoi s vi mos a
tri l ha errada, embasbacados pel as equi pe da perí ci a col ocando seu
marol i nhas que o mar l ançava na corpo f rági l e quebradi ço na maca
prai a. Mol hando os nossos pés, para l evá-l a para uma sal a
trazendo uma sensação de l i berdade porcamente i l umi nada e f ri a. Para
para num espaço mai s af astado dei tá-l a numa cai xa gel ada coberta
darmos de súbi to com el a al i por um pl ásti co ci nza e tri ste. E
apoi ada. Naquel a rocha ao l argo da as ondas na prai a j á pareci am mai s
gel adas e i ndi f erentes. E o sol j á
prai a. O mar trouxera? Poi s si m. se escondera. As cores j ovi ai s
Di sso não haverí amos de duvi dar. del a morreram j unto com o sol .
Pel o menos não de i ní ci o, mas
depoi s acercou-se de nós toda
espéci e de pensamento. De causas,
de sol uções daquel e eni gma.
Acercou-se de nós um recei o
mal i gno do desconheci do, cri atura
ou ser humano que a dei xou al i
j ogada com sua bel eza de ni nf a.
Serei a assassi nada. E nos
surpreendemos ao ver como aqui l o
poderi a ter aconteci do. Então,
chegou a pol í ci a e nos l ançou de
vol ta ao mundo real com suas
buzi nas e ordens. Com suas
perguntas sobre o que estávamos
f azendo al i . Por que estávamos al i
mesmo? De f ato, di rí amos.

Di rí amos que estávamos a passear


naquel a prai a, contando hi stóri as
de um tempo que passou e j amai s
vol tari a. Fal ando dos nossos Nós éramos adul tos demai s. Laura
amores e desamores. Contando uns bri ncava com seu cachorri nho numa
aos outros, os nossos pl anos para manhã ensol arada quando me
depoi s das f éri as quando a vi da conf essara seu desej o de se casar
começari a dol orosamente a nos assi m como Al ana f ari a. E os di as
cobrar responsabi l i dades que ai nda f oram passando. Logo, todos nós
não tí nhamos. Al ana se casari a. tí nhamos desti nos di f erentes e
Laura f ari a curso de veteri nári a para nos despedi rmos resol vemos
porque era l ouca por ani mai s. dar um úl ti mo passei o na prai a.
Marcus sem dúvi da, prestari a Assi m, ao entardecer. Mui tas
vesti bul ares. pessoas f azem i sso. Eu me
E eu? Bem, meu pl ano i ni ci al era certi f i quei de não envel hecer
não pl anej ar nada. Eu senti a um mui to rápi do, mas quando a vi al i ,
recei o de pl anos, porque os meus morta. Não tenho dúvi das, perdi ao
sempre se desf i zeram. Os meus menos 5 anos de j uventude. Todos
pl anos eram mai s proj etos do que nós perdemos. Uns mai s do que os
eu não deveri a f azer. Mas, vá l á. outros. Eu vol tei para casa de
trem, tentando l embrar onde f i cava

20 Literatura Errante
o meu apartamento. Logo após f orte para acordar. Tomei um banho
responder i nf i ni tas perguntas de f ri o. Prendi os cabel os e vesti
um pol i ci al de barba gri sal ha. Eu meu uni f orme. Saí pel a rua
ol hava todos aquel es desconheci dos movi mentada, me desvi ando de
no trem. Uns sentados, outros em mui tas pessoas apressadas. Tomei o
pé. O vi va voz dando i nf ormações trem. Um homem arrui vado l i a
sobre as estações. São Paul o é uma Cl ari ce Li spector. Ti nha f ei ções
ci dade apressada, mas neste di a eu rústi cas, l ábi os pequenos e ol hos
f i quei l enta, parei de acompanhá- amantei gados. Pareci a
l a. concentrado. Macabei a pode
Cheguei ao meu prédi o. Subi as conf undi r mui ta gente. El e
escadas até o tercei ro andar. Me segurava no apoi o superi or do trem
sentei no sof á castanho com uma mão e com a outra segurava
acol choado. As mãos i nertes no o l i vro. Eu tentava l er a capa
mei o das pernas. Os ombros trasei ra do l i vro quando el e
curvados. Os cabel os sol tos l evantou os ol hos e me encarou. Eu
atrapal hando a mi nha vi são. Meus sorri de l eve. El e estrei tou os
l ábi os ressecados. Meus ol hos ol hos e sorri u também. Percebi que
castanhos. Tudo pareci a tão comum. pretendi a puxar conversa comi go,
Mi nha bol sa escorregara do meu mas mi nha estação j á chegara.
ombro e agora estava ao l ado do Desci . Enquanto o trem avançava
sof á. Coçei a cabeça, amassei o para a próxi ma estação el e me
rosto entre as mãos. Um metro e encarava.
setenta de pura conf usão. Pi squei O toque do meu cel ul ar me servi u
os ol hos l entamente. O vento de al erta para vol tar ao mundo
assoprava a corti na branca da real . Atendi . O di a amanhecera
mi nha j anel a da sal a. Porém, era aci nzentado anunci ando chuva.
pi or do que conf usão. Era uma Mi nha chef e pedi a que eu
l etargi a que se apossara de mi m. termi nasse o que el a começara,
Uma i nérci a. Uma di f i cul dade de poi s ti vera uma emergênci a
sai r de dentro de si mesma e f azer f ami l i ar. Deu-me as i nstruções de
o que eu sempre f i zera. Os como deveri a proceder. Quando
servi ços dométi cos, meu trabal ho. entrei no corredor do trabal ho, a
Eu estava l argada dentro de mi m porta da sal a de autópsi a estava
tentando entender como al guém entreaberta. Começava uma chuvi nha
poderi a matar uma moça tão boni ta. f i na. Peguei o f ormul ári o, vi as
Tentando entender por que el a f ora i nci sões que deveri am ser f ei tas
ref ém daquel a vi ol ênci a. Embora eu i ncl ui ndo uma na artéri a caróti da
soubesse que bel eza nenhuma i senta que eu não sabi a o porquê. A rádi o
ni nguém da dor. Mas não consegui tocava um samba canção da década
me l i vrar dessas i nterrogações que de oi tenta. Real mente, el a acabara
nasceram na mi nha cabeça quando a de sai r. Esqueceu o rádi o l i gado.
vi . A l âmpada do pequeno corredor
Havi a al guns dos meus l i vros estava f raca, amarel ada. Eu achei
j ogados sobre a escri vani nha. Um mel hor desl i gar o rádi o. Não
abaj ur f l oral desl i gado. No me combi nava com o barul ho da
quarto, uma cama de sol tei ro chuvi nha l á f ora. O f ormul ári o
bagunçada. Uma estante à esquerda estava numa mesi nha à mi nha
l otada de l i vros. Uma cômoda com di rei ta. Menci onava as f erramentas
gavetas grandes que guardavam as que eu deveri a usar. Ao l ado do
mi nhas roupas. E sobre el a, mai s f ormul ári o também ti nha uma vel a e
l i vros. Os di as passaram l entos. um i squei ro. Eu penso que el a
dei xou aquel a vel a para o caso de
Preparei uma xí cara de caf é bem f al tar energi a. A chuva f i cava

Literatura Errante 21
mai s f orte. E o necrotéri o era total quando as l uzes f al hassem
escuro mesmo durante o di a. Um novamente, eu resol vi trazer a
rel âmpago cl areou a j anel a suj a do vel a do corredor para onde eu
corredor. Pel a f resta da porta, eu estava. Trouxe a vel a comi go e
vi a a maca com o corpo. Mas o f echei novamente a porta. Peguei o
corpo estava total mente coberto f ormul ári o para conf eri r a l i sta
por um teci do cl aro. Pel o menos a de af azeres e col oquei a vel a do
l uz dentro da sal a de autópsi a era outro l ado, na pi a. Mas, no
mel hor do que a do corredor. f ormul ári o os quadradi nhos da
l i sta j á estavam marcados. Estavam
Respi rei f undo, dei xei mi nha marcados antes? Quando estrei tei
bol sa sobre a mesi nha e trouxe os ol hos, percebi que o cadáver
comi go o f ormul ári o. Quando entrei al i ti nha nome. Val enti na Soares.
na sal a. O corpo estava dei tado na Tal vez, eu esti vesse com a l i sta
mesa de autópsi a. Coberto. Eu me errada, mas onde estava a l i sta
aproxi mei da pratel ei ra do outro que eu ti nha vi sto antes? Tal vez,
l ado para l avar as mãos e vesti r eu ti vesse pegado a prancheta
as l uvas. Também vesti o j al eco errada. Passei os ol hos pel a sal a.
por ci ma do meu uni f orme. Enquanto Não ti nha nenhuma outra prancheta.
col ocava as l uvas de l átex eu Eu pensei que pudesse estar no
l embrava do corpo que encontramos corredor. Mas quando me aproxi mei
na prai a. Eu não entendi a como da porta ouvi uns passos. Um
aquel e corpo na prai a me rel âmpago cl areou a sal a. O
sensi bi l i zara tanto. Eu sou si l ênci o pesou. Por i sso ouvi
assi stente de autópsi a há um ano. ni ti damente os passos. Vi nham
Vej o cadáveres quase todos os f i rmes. Depoi s pararam. Eu aguçei
di as. Mas, el a. Ah, eu não sei . a audi ção. Eu queri a encontrar
Fechei a porta da sal a, porque não l ogo o f ormul ári o certo para
queri a ver o corredor escureci do. prossegui r com a autópsi a e sai r
Eu peguei o bi sturi na pi a e me dal i . Por que eu não abri a porta?
aproxi mei da maca. Li a f i cha de Estava assustada. Se f osse a mi nha
i nf ormações do cadáver. Li a-se: chef e el a abri ri a a porta. E me
Desconheci da. Um trovão estourou e chamari a. Mas, os passos pararam.
escureceu a sal a. Numa escuri dão Eu f i quei com a sensação de não
absol uta eu ouvi duas bati das. estar sozi nha. No entanto, não
Numa f ração eterna de segundos, a ti ve coragem de abri r a porta.
l uz vol tou. Senti um cal af ri o na Então, o trovão estremeceu e as
nuca. A porta estava l ogo atrás de l uzes apagaram novamente. Mas, a
mi m. Então, me vi rei rapi damente. vel a permaneceu acesa. Depoi s do
Conti nuava f echada. A l uz vol tou susto eu f i quei f el i z por ter
mai s f raca pel o que pude notar. trazi do a vel a e f ui em di reção a
Então, abri a porta, mas não havi a el a na pi a do outro l ado. Se f osse
ni nguém. Tornei a f echá-l a. O como da pri mei ra vez, as l uzes
corpo ai nda estava coberto, mas vol tari am rapi damente.
percebi que os pés estavam Inf el i zmente, o resto da sal a
descobertos. El es estavam f i cou entre as sombras e o amarel o
descobertos antes? A chuva se encardi do da l uz da vel a. As l uzes
transf ormou numa tempestade. Com o não vol taram. Aproxi mei a vel a da
bi sturi na mão eu tentava l embrar l âmpada, mas el a conti nuava
se os pés do cadáver estavam apagada. Os rel âmpagos cl areavam
descobertos antes. Provavel mente momentaneamente quando ol hei pel a
estavam. A mi nha memóri a nunca f oi j anel a. Porém, ouvi um barul ho
das mel hores. arrastado e me vol tei depressa. A
perna di rei ta do cadáver estava
Para evi tar que f i casse um breu

22 Literatura Errante
descoberta. Si m. E não estava Quebrou o si l ênci o mortuári o da
antes. Eu l embro de ter decorado sal a. Eu pensei em gri tar, mas não
como el e estava depoi s do epi sódi o ti ve coragem. A voz não saí a.
dos pés descobertos. Não estava Presa na garganta. Meu coração a
assi m. Eu sei que não. A l uz da caval gar dentro do pei to. Um bate
vel a tremi a, poi s eu tremi a. bate enl ouqueci do. A chuva
torrenci al . O trovão. O rel âmpago
A chuva conti nuava a cai r l ançando f l ashs de l uz no cadáver.
mal dosamente do l ado de f ora, e os O corpo que se mexi a. Uma mão
rel âmpagos cortavam os céus. Eu cadavéri ca af astando o l ençol do
resto do corpo. Mi nha voz não
saí a. Mi nha angústi a aumentava. Eu
esmurrava a porta, mas acredi to
que os trovões abaf avam mi nhas
bati das. Então, o cadáver col ocou
as pernas para f ora da maca,
i nf el i zmente do meu l ado. El a se
sentou na maca e me encarou. Os
ol hos vazi os. Sem cor. Seu tórax
estava aberto ai nda. A cai xa
toráci ca era vi sí vel por bai xo da
carne sangrenta quando os
rel âmpagos cl areavam. Parte do
i nteri or de sua garganta estava
exposta. E meu caf é da manhã
queri a vol tar pel a mi nha garganta.
Eu não consegui control ar mi nha
tremedei ra e derrubei a vel a. E
naquel a sal eta suf ocante e escura,
quando a vel a escapou das mi nhas
mãos, cai u no chão e apagou-se. A
l uz daquel a vel a l evou com el a a
mi nha sani dade, poi s eu vi . J uro
que aquel a coi sa sentada na maca
era a moça assassi nada na prai a.
resol vi que j á estava mai s do que Na escuri dão total sal va apenas
na hora de sai r dal i . Eu di ri a a pel a l uz pi scantes dos rel âmpagos,
mi nha chef e que passei mal e ti ve el a me di sse com a voz arrastada:
que vol tar para casa. Devagar,
af astei -me ao máxi mo da maca e dei — Aaachoo. . que eu l embro. . . de
a vol ta até a porta. Toquei no vooocê. . . .
tri nco, mas não abri a. Vol tei a
ol har o cadáver. . . Tentei novamente
a porta e não abri u. Me
desesperei . Pel a escuri dão, pel o Sobre o Autor:
rel âmpago e pel o cadáver agora Al agoana, a escri -
parci al mente descoberto. Somente o
tronco, a cabeça e o estômago tora J osi e Brandão
estavam cobertos. As pernas estão resi de em São Paul o.
total mente descobertas. Puxei o Amante da l ei tura
tri nco vi ol entamente com a mão
desde a adol escênci a,
di rei ta. Com a esquerda eu
segurava a vel a. Comecei a suar escreve por hábi to,
f ri o e nesse momento bati na terapi a e gosto.
porta. O barul ho f oi al tí ssi mo.

Literatura Errante 23
Ni nguém é tão estranho
quanto nós mesmos

24 Literatura Errante
Conto

Umapormanhã na horta
Cri sti ano Tei xei ra

Of él i a estava do l ado de f ora da casa predi l eção pel a j ardi nagem, Astol f o
desde cedo. Trabal hava num cantei ro de perambul ava dentro de casa, procurando o
hortal i ças, no j ardi m, e não percebera o que f azer. El e ai nda vesti a o pi j ama
passar das horas. J á era quase mei o di a, l i strado com o qual f ora dormi r na noi te
e seu estômago j á roncava de f ome. O sol passada, e não demonstrava i ntenção de
estava l evemente escondi do por uma corti na trocá-l o por uma roupa. Al go em sua mente
de nuvens desol adoras, mas i sso não a o dei xava i nqui eto. El e quase poderi a
i mpedi u de prati car aquel e hobby recém- j urar que, àquel a hora da manhã, deveri a
adqui ri do. Meu deus, quando f oi que eu estar em al gum l ugar, mas não consegui a
comecei a gostar de j ardi nagem, el a se l embrar onde, por mai s que se esf orçasse.
perguntava, entre sorri sos i ncrédul os. Era uma quarta-f ei ra, será que não deveri a
El a podi a j urar que mexer no j ardi m era estar trabal hando em al gum l ugar, se
coi sa de Astol f o. Mas el a não ti nha perguntava. Por que será que ti nha a
certeza di sso. Havi a, al i ás, mui tas coi sas sensação de que os úl ti mos di as ti nham se
que el a l embrava vagamente nos úl ti mos transf ormado num l ongo e tedi oso f eri ado?
di as e não consegui a di sti ngui r se al gumas Aproxi mou-se da j anel a que dava para o
del as eram reai s ou apenas névoas de j ardi m e vi u Of él i a cami nhando em di reção
sonhos que vez por outra se recordava. El a à casa. Como sua esposa, el e estava morto
remexi a na terra, reti rava ervas dani nhas de f ome. Então el e af astou-se da j anel a e
e col hi a al guns l egumes, sem, no entanto f oi para cozi nha, i nvesti gar o que havi a
estar certa do que real mente f azi a, para comer. Não era própri o de Astol f o
achando graça em tudo aqui l o, podi a j urar f uçar a cozi nha, mas aquel a mudança de
que detestava cui dar do j ardi m. hábi to passara-l he despercebi da, naquel e
momento.
Enquanto Of él i a descobri a a sua súbi ta

Literatura Errante 25
Quando Of él i a entrou na casa, pel a eu quem está del i rando? — Of él i a f al ou,
porta da cozi nha, carregava uma bel a com o seu natural humor i rôni co. — Sabe,
cesta de j unco, contendo l egumes e pel o menos, em que gaveta f i cam as f acas
temperos, ao mesmo tempo em que Astol f o e o descascador?
estava de f rente para o f ogão, em vi as de
— Ora, Of él i a, você f al a como se eu
começar a f azer uma omel ete. El e
f osse um compl eto i di ota — quei xou-se
i nterrompeu-se momentaneamente, para
Astol f o, se perguntado onde estari am as
l ançar à esposa um ol har admi rado.
f acas. El e deu sorte, na pri mei ra gaveta
— Desde quando você gosta de j ardi nagem que abri u, estavam as f acas. E o
— el e perguntou, segurando, de f orma descascador.
desaj ei tada, uma grande caçarol a.
Mei o desaj ei tado, el e se pôs a
— E você, que mal sabe ti rar o gel o da trabal har, sob o ol har i ncrédul o da
cuba, o que tenci ona f azer com essa esposa.
panel a? — el a l he l ançou um ol har
di verti do.
— Não está óbvi o? Uma omel ete! — el e
respondeu, i ndi cando-l he mei a dúzi a de
ovos sobre o bal cão da pi a.
— Queri do, eu mal posso acredi tar que
você tenha consegui do chegar à cozi nha
sem a aj uda do seu GPS, e agora me
assusta querendo f azer uma omel ete. Você
está se senti ndo bem?
— E que há de mal ni sso?
— Em pri mei ro l ugar, você não vai
querer comer todos esses ovos, só
aumentarão a sua taxa do seu col esterol ,
como você mesmo sempre recl ama, quando
f aço ovos mexi dos no caf é da manhã. E, em
segundo, não se f az uma omel ete usando
uma panel a f unda como esta, al ém do mai s,
esta não é anti aderente, não percebe? Sua
omel ete vai grudar e quei mar — el a ol hou
i ntri gada para o mari do e acrescentou,
revi rando os ol hos: Astol f o, para o seu
conheci mento, você detesta cozi nhar,
dei xa que eu mesma f aço i sso para você.
— Eu estou morrendo de f ome. . . — Corte tudo em pedaços f i nos e
pequenos — i nstrui u Of él i a, gostando da
— E eu também, por i sso trouxe al guns novi dade de dar ordens ao mari do. —
l egumes — el a enf ati zou, ao l evantar a Depoi s abra aquel e cabernet, para
cesta e deposi tá-l a sobre a mesa da respi rar. Enquanto i sso, eu vou trocar
cozi nha. — Você acaba de me dar uma essas roupas e l avar as mãos.
i dei a, vou acrescentá-l os à omel ete. O
que acha? Enquanto descascava os l egumes, Astol f o
se perguntava o que real mente estava
— Para mi m, parece óti mo! — el e f azendo na cozi nha de sua casa, el e não
respondeu, af astando-se do f ogão. — pertenci a àquel e l ugar. Tal vez Of él i a
Dei xe-me aj udá-l a, descascando os ti vesse razão. Aquel es úl ti mos di as
l egumes. estavam real mente estranhos, era como se
— Nossa, o que deu em você hoj e? Ou sou as coi sas esti vessem f ora do l ugar. El e

26 Literatura Errante
não deveri a estar em casa de pi j amas, no Prezados l ei tores, esta hi stóri a não
mei o da semana, Of él i a não deveri a estar tem a menor pretensão de ensi ná-l os a
mexendo em sua horta e nem el e ti nha o nobre arte de f azer uma omel ete. Vamos
menor pendor por cul i nári a. Mesmo assi m, prossegui r, pul ando este trecho
conti nuou dedi cado àquel a taref a, com cul i nári o.
af i nco, e achou que descascar e cortar
Of él i a pegou doi s pratos de porcel ana
l egumes poderi a ser di verti do.
no aparador, duas taças e col ocou-os
Quando Of él i a vol tou à cozi nha, el a sobre a mesa, j untamente com os tal heres.
agora vesti a uma sai a azul compri da e uma Ti rou do armári o um pão rústi co, ai nda
bl usa f ol gada. Seus bel os cabel os estavam i ntacto, que assara na noi te anteri or, e
sol tos e pendi am sobre os ombros. Astol f o o pôs sobre uma tábua de madei ra,
acabara de cortar as úl ti mas vagens e j untamente com a serra de cortar pão. A
ol hou para a esposa, admi rado com a sua omel ete estava pronta para ser servi da e
bel eza. ti nha uma cara del i ci osa; el a
acrescentara al gumas f ol has f rescas de
— Você está l i nda.
manj eri cão, que l he emprestaram um aroma
— Obri gada — agradeceu, surpresa. J á del i cado. Astol f o pegou a garraf a de
havi a al gum tempo que el e não f azi a vi nho sobre o bal cão da pi a, j á aberta,
aquel e ti po de el ogi o. e os doi s sentaram-se à mesa.

— O que f aço agora? — el e perguntou,


orgul hoso de seu trabal ho.
— Dei xe que eu agora assumo a cozi nha
daqui em di ante, queri do — anunci ou el a,
pegando a caçarol a, para ref ogar os
l egumes.
— Não, dei xe que eu f aço i sso. Gosto de
termi nar as coi sas que começo. Basta você
me f al ar o que tenho de f azer — i nsi sti u.
Of él i a percebeu, i ncrédul a, um tom de
genuí no entusi asmo na voz do mari do. El a
se perguntou quando f oi que el e começara
a mudar, sem que el a o percebesse.
— Bem, se é o que você desej a, não vamos
di scuti r por causa di sso, queri do.
Subi tamente, Of él i a teve uma sensação
de déj à-vu. Di scuti r tal vez não f osse
al go i ncomum naquel a casa. Quando teri a
si do a úl ti ma vez que os doi s havi am
di scuti do por qual quer coi sa, el a tentou
se l embrar. O passado pareci a al go tão
di stante e di f uso nos úl ti mos di as. . . Às
vezes el a tentava se l embrar de al go que — Você vai l evar toda aquel a roupa para
achava ter esqueci do e, por mai s que se a ti nturari a? — perguntou Of él i a,
esf orçasse, nada vi nha à sua mente. El a enquanto cortava uma f ati a do pão. El a se
ol hou para o mari do al i , di ante del a, ref eri a às roupas do mari do que el a vi ra
aguardando as i nstruções e achou aquel a no i nteri or do automóvel aquel a manhã,
si tuação extraordi nári a. quando f ora à garagem pegar a pá de
j ardi nagem e as l uvas.
— Vamos l á. Fazer uma omel ete é mui to
si mpl es, você vai ver. Pri mei ro, vamos — De que roupas você está f al ando,
pôr esses l egumes. . . mi nha queri da? Não me l embro de roupa
al guma para a ti nturari a. Não é você que

Literatura Errante 27
sempre cui da dessas coi sas? — Astol f o f ora a úl ti ma vez que os bei j ara e chegou
pareceu i ntri gado. Pegou a garraf a de à concl usão de que não se recordava. Num
vi nho e servi u Of él i a e depoi s a si gesto af etuoso, el e estendeu sua mão e
própri o. acari ci ou a de Of él i a, genti l mente, antes
de segurá-l a com um aperto breve e f i rme,
— Si m. Eu estou di zendo que vi seu carro
que f ez com que o coração del a
chei o de roupas no banco de trás. Por
di sparasse.
i sso estou te perguntando, vai l evá-l as
para a ti nturari a? — Não crei o que haj a nada de errado com
a nossa casa. Não há nenhuma assombração
Astol f o f i cou surpreso com aquel a
por aqui . — El e hesi tou. Qui s di zer que
hi stóri a. Como suas roupas f oram parar no
havi a al go di f erente com el es, mas i sso
carro, se perguntou. E de onde Of él i a
seri a i r l onge demai s, el e nunca f oi o
ti rara a i dei a de que el e i ri a l evá-l as
ti po de homem de conversar sobre essas
para a ti nturari a? Al go estava estranho
coi sas.
naquel a casa nos úl ti mos di as, el e
constatou i ntri gado. Era como se — A casa está bem — f al ou Of él i a. — O
f ragmentos de al guma hi stóri a ti vessem que eu qui s di zer f oi que há al go de
si do apagados e só restasse uma sensação estranho com a gente. Você não percebe?
de déj à-vu. Era i sso que aquel a si tuação
toda era, uma i l usão que a sua memóri a
l he causava, uma sensação de que al go
f ora esqueci do, mas el e não consegui a se
l embrar exatamente do quê.
— Mas eram todas as mi nhas roupas ou
apenas al gumas? — qui s saber Astol f o. El e
observava Of él i a cortar uma f ati a de pão
e pôr em seu prato. Mas el e não comi a
pão, el a sabi a di sso.
— Bem, eu não abri seu carro e f ui
bi sbi l hotar, se é i sto que está
i nsi nuando. Mas eu podi a j urar que quase
todas as suas roupas estavam l á —
respondeu Of él i a, bei rando i mpaci ênci a.
— Então eu vou pô-l as de vol ta no
armári o, se é i sto que te i ncomoda. Astol f o percebera. El e sabi a sobre o
Francamente, não f aço i dei a de como el as que el a estava f al ando. Há di as el e
f oram parar l á — decl arou Astol f o, num também vi nha notando transf ormações no
tom deci di do. comportamento da esposa, mas el e j amai s
admi ti ri a para si , que o mesmo estava
— Há coi sas estranhas acontecendo em ocorrendo com el e própri o. Estas mudanças
nossa casa ul ti mamente. . . — comentou o dei xavam num estado de âni mo conf uso e
Of él i a, com o ol har era perdi do. desconf i ado da própri a sani dade. Estari a
Astol f o a exami nou por um i nstante e perdendo o j uí zo, se perguntava. El e
vi u f oi o rosto de uma bel a mul her. esf orçava-se para buscar no f undo de sua
Of él i a ti nha a pel e branca e avel udada. memóri a uma expl i cação para tudo aqui l o,
Os ol hos eram castanhos, cl aros, nem el e sabi a que deveri a haver al guma, em
mui to grandes e nem mui to pequenos. O que al gum l ugar. Tal esf orço era como tentar
mai s l he apreci ava em sua aparênci a era se l embrar de uma pal avra que achava que
a cor de seus cabel os, ti nham um tom de exi sti a, podi a senti -l a na ponta da
f errugem, quase rosados. Eram l i sos e l í ngua, mas não se compl etava. Esta sua
vol umosos. Seus l ábi os eram l i gei ramente di f i cul dade em se l embrar das coi sas era
grossos e avermel hados, como se ti vessem al go que o aterrori zava, não ti nha nem
si do mordi dos. El e se perguntou quando tri nta e ci nco anos de i dade e j á

28 Literatura Errante
começava a f i car esqueci do. Como i sso do que f osse. Havi a, si m, al go com o que
poderi a estar l he acontecendo tão cedo, el a costumava se ocupar todas as tardes.
se perguntou angusti ado. Astol f o ol hava El a escrevi a para uma revi sta f emi ni na e
para a sua esposa, sentada à mesa, ao seu al guns si tes de i nternet, mas i sso
l ado, el a era mai s j ovem que el e e agi a pareci a que f oi há tanto tempo. . . Quando
de modo estranho ul ti mamente, era como se f oi que el a começara a esquecer de coi sas
al guns de seus hábi tos ti vessem mudado de tão i mportantes para el a, se perguntou-
uma hora para outra, coi sas pequenas, mas se, i ntri gada. Astol f o pareci a que segui a
si gni f i cantes. Por exempl o, seu l ugar à pel o mesmo cami nho, el e não pareci a ser
mesa era à sua f rente, e não ao seu l ado. a mesma pessoa ul ti mamente. Agora, a
grande pergunta era: onde f oi que el a
Depoi s de comerem, Astol f o l evantou-se
guardara o seu notebook. El a, então,
e recol heu os pratos e f oi l avá-l os l ogo
começou a sua procura pel o l ugar mai s
em segui da. Of él i a l ançou-l he um ol har
óbvi o onde poderi a encontrá-l o. Astol f o
surpreso e não se conteve em f azer uma
j á dormi a um sono sol to quando el a
observação:
adentrou na bi bl i oteca, el e dormi a como
— O que deu em você? — al f i netou, um anj o, el a pensou consi go mesma, ao l he
admi rada, com um sorri so no canto da l ançar um ol har af etuoso. Procurando
boca. f azer o menos barul ho possí vel , el a deu
i ní ci o à procura de seu notebook.
— Não é mi nha vez de l avar os pratos? —
el e perguntou, i ndeci so. Não f oi di f í ci l encontrá-l o, estava
sobre a escri vani nha, coberto por um bel o
— Nunca houve a sua vez, para f al ar a l enço de seda f l ori do. Of él i a pegou o
verdade — el a f ul mi nou. — Mas se está com notebook, cui dadosamente, com as duas
tanta di sposi ção assi m, basta despej ar os mãos, e, na ponta dos pés, l evou-o para
restos no tri turador e pôr os pratos e a mesa da sal a de j antar. Seu contato
tal heres na máqui na de l avar; mai s tarde f í si co com o computador pareceu ter o
eu mesma ponho a máqui na para f unci onar. ef ei to de reavi var a sua memóri a naqui l o
— E percebendo o ol har de dúvi da do que el a mai s gostava de f azer, que era
mari do, acrescentou, di verti da: — A escrever. Chegando à sal a de j antar, el a
máqui na de l avar é essa coi sa aí em bai xo o pôs sobre a mesa. Abri u-o e pressi onou
do bal cão. o botão para l i gá-l o, e quando a tel a
Of él i a estava desconf i ada do mari do, i l umi nou-se, a i magem de uma prai a
será que el e estava bem da cabeça? El e paradi sí aca, em al gum l ugar da Oceani a,
vi nha agi ndo tão estranhamente. Nenhuma apareceu. El a l embrou-se daquel a f oto,
de suas ami gas acredi tari a se l he el a mesma a ti rara, com a sua câmera
contassem que, vol untari amente, el e se f otográf i ca, era uma f oto tão boni ta que
of ereceu para l avar os pratos e, ai nda el a a usava como tema da tel a de seu
por ci ma, f i zera o al moço! computador.

— Agora eu vou me dei tar um pouco; essa El a e Astol f o f i zeram aquel a vi agem um
hi stóri a de f i car em casa o di a todo está ano depoi s de casados, com a i ntenção de
me f azendo cul ti var hábi tos rui ns — que f osse a sua segunda l ua mel . A
Astol f o anunci ou, com um pi ngo de verdade era que as coi sas não i am mui to
sati sf ação, pensando no sof á da bem no casamento, apesar de el es estarem
bi bl i oteca. casados há tão pouco tempo. Os doi s
concordaram que tal vez uma l onga e
— Estou vendo, nunca o vi dormi ndo espetacul ar vi agem tal vez aj udasse a
durante o di a — comentou Of él i a, se acertar as coi sas entre el es. O passei o
perguntando o que el a f ari a no resto da f oi uma sugestão de Of él i a, que teve a
tarde, até a hora de preparar o j antar. i dei a depoi s de l er um arti go, na mesma
Repenti namente, el a f oi tomada por uma revi sta f emi ni na para a qual escrevi a,
súbi ta al egri a, f oi como se f i nal mente sobre a cri se no pri mei ro ano de um
ti vesse encontrado al go perdi do que tanto casamento – consi derada, pel a autora,
procurava, embora el a não ti vesse certeza

Literatura Errante 29
como al go mui to provável de acontecer – Para sua desi l usão, depoi s do
e como superá-l a. Uma vi agem espetacul ar casamento, vi ver sob o mesmo teto que
era uma das terapi as sugeri das. Por que Astol f o f oi se tornando uma f onte de
não tentá-l a, el a se perguntou. f rustração e desapontamento, à medi da que
o tempo passava e o casal se conheci a
Of él i a achou bastante prematuro quando
mel hor. El a conti nuava amá-l o, apesar das
Astol f o pedi ra para que se casasse com
di f i cul dades, e podi a j urar que el e
el e, af i nal , el es só namoravam há apenas
senti a o mesmo por el a. Of él i a descobri u
doi s meses e mei o. Mas esta pareci a ser
que o seu adorável mari do nem sempre era
uma marca da personal i dade del e, el e agi a
uma pessoa de f áci l convi vênci a e de
mui to por i mpul so e quase sempre estava
di f í ci l cooperação em taref as domésti cas.
certo. Astol f o era mui to seguro de si e
El e era um homem bom e agradável , e
sabi a o que queri a. Estas f oram
honesto com el a. Mas i sso não bastava.
qual i dades nel e que a seduzi ram e f i zeram
Para Of él i a, casamento era também uma
com que se apai xonasse por el e; el e era
associ ação, e Astol f o pareci a não
mui to boni to também, al ém di sso. El a
entender i sso. Cada um deveri a f azer a
l embrava que estava com duas ami gas no
sua parte e se aj udar mutuamente, ou,
Pandemi a, um mi sto de restaurante e bar
pel o menos, reconhecer o trabal ho do
de cl i entel a maj ori tari amente j ovem, com
outro.
músi ca ao vi vo e pi sta de dança, quando
el e aproxi mou-se da mesa em que estavam, Of él i a, então, assumi ra i ntegral mente,
de f orma deci di da e engraçada, e o papel de dona-de-casa, manti nha-a
convi dou-a para dançar, apesar de que a asseada e conf ortável , e cozi nhava
músi ca de Frank Si natra, cantada por um razoavel mente bem, mas Astol f o pareci a
rapaz cuj a pronúnci a i ngl esa era não perceber i sso e nem mani f estava
horrí vel , mas que era compensada por sua grati dão pel o seu trabal ho – el a era o
voz l i nda e af i nada, não era exatamente ti po de pessoa que preci sava de
o ti po de músi ca para dançar. Ao f i nal , reconheci mento pel os seus esf orços,
Astol f o demonstrou que dançava mui to mal , tal vez f i casse um pouco i nsegura quando
mas sua ati tude conf i ante e desej o de não os recebi a. Só o que pareci a i mportar
agradar, encantaram Of él i a; e f oi assi m para el e era a horta, que vi eram com a
que o namoro começou. casa, quando el es a compraram. Até então,
Astol f o j amai s se i nteressara por
j ardi nagem ou qual quer outra coi sa que
envol vesse trabal hos domésti cos, mas a
horta o encantara de uma f orma
i nexpl i cável que, quando el e não estava
em sua f i rma de advocaci a, só era
encontrado do l ado de f ora da casa,
curvado sobre os cantei ros de hortal i ças,
como se el e f osse um pequeno agri cul tor,
dedi cado à sua próxi ma col hei ta. Aquel a
horta competi a com el a pel a atenção do
mari do, el a quase senti a um ci úme
i rraci onal pel a coi sa, e também
consi derava que a j ardi nagem era mai s
apropri ada a homens vel hos aposentados,
o que não era o caso de seu j ovem e
trabal hador mari do. Tal vez el a cobrasse
demai s del e, el a j ul gava, e este era
sempre o moti vo das pequenas bri gas
domésti cas entre el es. Agora el a se
l embrava, as recordações começavam a
povoar novamente a sua mente, como peças
de um quebra-cabeça que se encai xavam

30 Literatura Errante
l entamente: a úl ti ma di scussão que do casal , f oi como se não houvera bri ga
ti veram. al guma e nem el e pegara suas coi sas para
i r embora. Aquel e i nci dente f oi apenas o
El a aguardara o di a todo para que el e
i ní ci o daquel a semana estranha na qual as
l he desse os parabéns pel a data de seu
pessoas ti nham de f i car trancadas em suas
ani versári o e a l evasse para j antar – não
casas, para se protegerem de uma epi demi a
f azi a questão de presente, apesar de que
que assol ava o mundo, de uma f orma mui to
este f osse bem-vi ndo – , como f i zera no
pecul i ar.
ano anteri or. Mas o di a passou, e el e não
deu uma pal avra. Magoada, Of él i a se Astol f o acordou de seu cochi l o depoi s
quei xou e a di scussão teve i ní ci o. do al moço e l evantou-se do sof á senti ndo-
Pal avras ásperas f oram trocadas, se revi gorado. Foi procurar pel a esposa
cobranças f oram f ei tas e acusações di tas. e a encontrou na sal a de j antar, sentada
Astol f o decl arou que i a embora, pegou à mesa, em f rente ao computador.
suas roupas e as amontoou dentro do
— O que está f azendo aí , queri da? — el e
automóvel . Of él i a f i cou conf usa e não
perguntou, curi oso.
compreendi a como ti nham chegado àquel e
ponto, a emoção a exauri ra e el a cai u no — Acho que vou escrever um pouco antes
sono. Depoi s de pôr as roupas no carro, do j antar, você se i mporta?
Astol f o senti a-se cansado e, depoi s que
— De j ei to nenhum — el e respondeu, a
se sentou-se no sof á da bi bl i oteca, pegou
cami nho da cozi nha. — Vou f azer um chá
no sono i medi atamente.
para nós. Ai nda tem daquel e bol o
del i ci oso que você f ez?
Of él i a f i cou um pouco chocada com
aquel a di sposi ção do mari do, mas procurou
não demonstrar ou f azer qual quer
comentári o i rôni co, para não estragar
momento. Sua i roni a quase sempre i ni ci ava
uma di scussão, e el a prometera a si mesma
se pol i ci ar de agora em di ante.
— Ai nda tem, si m. Está na estante ao
l ado do f ogão, na pri mei ra porta.
El a observou Astol f o desaparecer na
porta da cozi nha e deu um suspi ro de
sati sf ação. Senti ndo-se recuperada
daquel es di as i ncoerentes, então el a
começou a escrever a pri mei ra l i nha de um
conto: Estranhas coi sas aconteceram
durante aquel es di as em que um estranho
Na manhã segui nte, Of él i a acordou e ví rus roubava a memóri a das pessoas. . .
estranhou que Astol f o não esti vesse ao Sobre o Autor:
seu l ado, na cama. El a senti a a cabeça
pesar como um saco de arei a e vontade de Nasci do em Forta-
f i car dei tada mai s tempo, mas mesmo assi m l eza e cri ado em
f oi procurar o mari do, el a quase podi a Sal vador, Cri sti ano
j urar que o vi ra no quarto na noi te Tei xei ra é f i l ho de
passada. Encontrou Astol f o dormi ndo no arti sta pl ásti co e
sof á. El a o acordou genti l mente e cresceu cercado de
perguntou se el e se senti a bem. El e arti stas. Formado em
também se quei xou da cabeça, l evantou-se
Letras, e com l i vros
e subi u para a cama. Foi como se a noi te
publ i cados, é também
passada ti vesse si do ri scada da memóri a
revi sor de textos.

Literatura Errante 31
Miniconto

Táxi
por J C Rodri gues

Está chovendo l á f ora, mas, do meu amável .


l ugar no banco de trás desse táxi , o — Será que vão l embrar de mi m? — eu
f ri o não me al cança. Vej o a ci dade pergunto e el e me di z.
por detrás da j anel a embaçada, com — A memóri a dos vi vos é curta, mas a
suas l uzes bri l hantes, com pessoas dos mortos é vasta, tudo que tem que
f azer é esperar o reencontro
ataref adas.
prometi do.
Bem… Acho que todo mundo está Ouvi ndo a músi ca de Renato Russo no
ataref ado demai s hoj e em di a. rádi o do táxi , nunca conheci da pel os
Damos mai s al gumas vol tas e, sob o vi vos, dei xo o meu motori sta, a
som da chuva e do trânsi to, vej o, morte, me l evar.
de meu l ugar em mei o ao mar de Sobre o Autor:
carros, os l ugares da mi nha vi da. Nasci do em Fei ra de
A praça do pri mei ro bei j o, o canto Santana, BA, publ i cou
da pri mei ra sai dei ra atrás da
seu pri mei ro l i vro,
escol a, o l ugar onde chorei
i ncontávei s vezes em mi nha vi da "A voz do anj o", pel a
sol i tári a e, por f i m, a árvore onde edi tora El l A ( 2020) .
me decl arei para o meu pri mei ro Parti ci pou da antol o-
amor não correspondi do. gi a publ i cada pel a
Queri a ver esses l ugares mai s de Arkanus Edi tora,
perto, mas, se saí sse nessa chuva, "Hi stori as do coti -
decerto seri a tragado pel as águas di ano" pel a Verl i -
suj as que seguem f ortes rua abai xo. del as, e "Fi l an-tro-
A chuva está mai s f orte e l á f ora pi a do mal " organi -
tudo se torna um borrão, ol ho para zada por Pri s
o motori sta e el e me dá um sorri so Magal hães.
Mniconto

Falhou!
por Lui s Al l adi n

— Fal hou um som. . . — Tá bom… Mas como sai ?


— Oque? — Aperta no botão vermel ho.
— Fal hou! — Ok, vou sai r!
— Que? — Vai !
— O som, aí ! Fal hou. — Vol tei ! Tão me ouvi ndo?
— Mas eu tô f al ando. — Fal hou o som. . .
— Mas não dá pra te ouvi r.
— Ah! E agora? Tão me ouvi ndo?
— Não! Chega perto do roteador!
— E agora?
— Não! Sai e entra de novo. Sobre o Autor:
— Tá bom… Mas como sai ?
— Aperta no botão vermel ho. Pernambucano, ator,
— Ok, vou sai r!
— Vai ! produtor cul tural e
— Vol tei ! Tão me ouvi ndo? escri tor. Escreve
— Fal hou um som. . . versos desde a i nf ân-
— Oque? ci a, mas entrou de
— Fal hou! cabeça na l i teratura
— Que?
— O som, aí ! Fal hou. quando começou a f re-
— Mas eu tô f al ando. quentar os saraus.
— Mas não dá pra te ouvi r. Hoj e escreve seus tex-
— Ah! E agora? Tão me ouvi ndo? tos e a produz eventos
— Não! Chega perto do roteador cul turai s, preservan-
— E agora?
— Não! Sai e entra de novo. do espaços de cul tura
de resi stênci a.

Literatura Errante 33
Miniconto

Útero de Ferro
por Lui z Rodri gues

O asf al to está quente, el e está nesse momento. Ter ao menos uma


sob um semáf oro, e sobre um "pal co" ref ei ção por di a é um l uxo, Enquanto
de asf al to, no seu rosto, uma al guns j ogam comi da na aveni da… El es
pi ntura de pal haço. são f orçados a ol har pra f rente, pra
esse "i nconveni ente" que f az
Sua pl atei a assi ste suas pi ruetas mal abari smos pra sobrevi ver. Quem
enquanto o si nal não abre. l i ga? Di f í ci l encontrar essa tal de
Seu "públ i co" está em seus carros humani dade nesse mundo
novos com vi dros f echados. Parece "humani zado"!
até um útero de f erro,
aconchegante, rel uzente e
ref ri gerado, mas não tão gel ado Sobre o Autor:
quanto os corações que batem l á.
Nasci do em
Mul heres e homens de pedra se Brasí l i a, Lui z
i mpaci entam com si nal ai nda
Rodri guez estudou
f echado!
tel ecomuni cações,
Mas f azem de conta que só tem espanhol e i ngl ês.
aquel a l uz menstruada que os Descobri u na
retém. . . l i teratura, a parti r
Essa pi ntura no rosto deveri a dos 12 anos, como
representar al egri a e não o expressar o que
desconf orto da mi séri a que o j ogou transborda da al ma.

34 Literatura Errante
Poesia

Amores de Verão
por Karl a Gama

Ah. . . os amores de verão!


Tão memorávei s e subl i mes,
Quanto a própri a estação.
Cada bei j o é tão i ntenso
E o senti mento tão i menso
Que é pura tentação!
Ah. . . os amores de verão. . .
Entre toques acanhados,
Os ol hares apai xonados,
São gui ados pel a emoção
De uma hi stóri a supri mi da
E i ntensamente vi vi da,
De tão curta duração.
A bei ra da prai a e as ondas do mar
Testemunham os amantes a se encantar,
Um com o outro, o outro com o um,
Como se não houvesse moti vo al gum
Que i mpossi bi l i tasse aquel e momento.
Como se as outras estações dei xassem de exi sti r
Apenas para que o amor permanecesse al i ,
Estampando o f i rmamento,
Inundando o mundo com sua bel eza
E desf azendo cada tri steza.
São bei j os cal orosos e abraços apertados
De amores f ugazes para sempre l e mbrados!

36 Literatura Errante
Poesia

Infinitude do Olhar
por J . Berwi g
Na vasta i mensi dão rósea de um crepúscul o de verão,
Enxerguei teus ol hos em mei o à névoa de escuri dão.
Doi s farói s acessos que rej uvenesceram
Mi nh’ al ma perdi da em sol i dão,
E que aqueceram como fogo
Um humi l de e desprendi do coração.

Oh! Quão bel os montes o hori zonte del es me faz avi star!
Quão bel os campos fl ori dos, fl orestas densas e oceanos sombri os!
Se tu soubesses o quanto se vê
Ao focal i zar no uni verso do teu ol har. . .

No amarel o despedaçado vê-se o teu própri o sol ;


Nos verdes extasi ados, vê-se as profundezas de águas pouco navegadas,
Mas que têm mui tos mi stéri os escondi dos. . .

Nas curvas de teu sorri so vê-se, enfi m, a al egri a de um pequeno ser,


Encobri ndo a nobreza fi rme

Do caráter oneroso de um grande ser.


Se pudesses enxergar-te como eu o consi go ver,
Veri a que tens mui to mai s para ao mundo oferecer

Do que teu si ngel o modo de ser.


Modo esse, que faz-me compreender
Que a vasti dão de meu i nfi ni to
Compl eta-se tão somente a mi m te pertencer.

Literatura Errante 37
Poesia

Cartas ao céu
por Cl áudi a Zambrana

Ol ho o céu e não te vej o


Si nto-te das mai s bel as f ormas
Escuto-te através do vento
Fuj o daqui l o que me af ugenta
Nas temi das noi tes de sua ausênci a
Escrevo-te
Sem resposta
Acredi to naqui l o que si nto
Mas não me prendo a esse senti mento
O âmago dos pesadel os,
Atormenta a mi nha al ma
E na sua ausênci a temi da
Apenas f echo os ol hos
Através de uma caneta anti ga
Escrevo mai s uma carta sem resposta.

38 Literatura Errante
Sonhava
por Luí s Al l adi n Bambá

Sonhava em te namorar,
Nas noi tes, que sob a l uz da l ua,
E vi a as estrel as,
Com toda sua si mpl i ci dade,
Querendo ser você!

Mas que bobagem, sacanagem,


Querer ser al go assi m,
Poi s nem mesmo perto do fi m,
Chegari am nessa perfei ção!

Nos teus negros cabel os l ongos,


Enrol ando nos meus cacheados,
Col ando, grudando,
No encontro quí mi co, al quí mi co,
Que forma um só ser,
A essa estrel a, chamada de mul her.

Poi s nas vol tas que dei ,


Cami nhando nas vol tas l unares,
Nos mares que nadei ,
Eu só me achava de verdade,
Quando encontrava teus abraços.

Literatura Errante 39
Poesia
Euporquero paz
Ruan Vi ei ra
Eu quero Paz
Mas hoj e em di a está di f í ci l
E qual quer passo descui dado Futuro pl anej ado, f uturo esperado
Pode te l evar a um preci pí ci o O f uturo é i ncerto, tal vez possa não
Cri anças choram de f ome chegar
Choram por f al ta de um pai A gente tem o presente
Choram por f al ta de uma mãe Então vamos aprovei tar
Que o vento l evou Abraçar, Bei j ar
E não vol ta mai s Quem está perto
A j uventude está doente Cui dar de quem está do nosso l ado
E se acovardou Poi s vi ver na sol i dão é um deserto
Estão com medo do amanhã A vi da é si mpl es
Que ai nda não chegou Fel i ci dade está com a gente
O amanhã vi rá Mas a gente não acorda
Tal vez não possa vi r E nem pensa di f erente
Mas você não está no amanhã Mas eu só quero paz
Você está no hoj e, você está aqui E se em mi m el a esti ver
Entre chorar e sorri r Eu hei de encontrar
Eu pref i ro sorri r Mas i nf el i zmente ai nda não achei
Poi s j á chorei demai s E mesmo que eu a ache
Com o tanto que j á sof ri Não sei se a terei
A gente passa a vi da i ntei ra Poi s o mundo é corrompi do
Lutando por Futuro E perturbado
O sof ri mento é repeti do
O f uturo repete o Passado
As pessoas querem guerra
Não escol hem a paz
A verdade é que o f uturo
Dessa humani dade
Não é pra f rente, mas si m pra trás.

4 0 Literatura Errante
Poetas Errantes

Karla Gama (Amores de Ve-


rão):

Tradutora por f ormação,


Karl a Gama sempre teve a J. Berwig (Infinitude do
l i teratura como parte do olhar):
que def i ne a si , e na es- Nasci da em Porto Al e-
cri ta e l ei tura encontrou gre, desenvol veu desde
l i bertação e renovação. cedo a pai xão pel a l ei tu-
ra e pel a escri ta, esti -
mul ada pel a mãe e pel a
avó. Autora do l i vro
Claudia Zambrana (Cartas PROJ ETO 1, teve seu pri -
ao Céu): mei ro l i vro publ i cado aos
Cl áudi a Zambrana é 7 anos, pel a sua escol a.
escri tora, advogada,
estudante de psi col ogi a,
mãe de três e casada.
Gosta de escrever sobre
os mai s di versos temas.
Tem uma vi são
Alladin Bambá (Sonhava):
transparente e l i vre para
Pernambucano, ator,
f al ar o que pensa e o que
produtor cul tural e
sente.
escri tor. Escreve versos
desde a i nf ânci a, mas
entrou de cabeça na
l i teratura quando começou

Ruan Vieira (Eu quero paz): a f requentar os saraus.


Hoj e escreve seus textos
A escri ta sempre es- e a produz eventos
teve na vi da de Ruan cul turai s, preservan-do
Vi ei ra, nasci do em espaços de cul tura de
Aracaj u e resi dente em resi stênci a.

Propri á-SE, que escreve


poesi as e contos e,
mesmo tão j ovem, já
acumul a prêmi os em
concursos l i terári os.

Literatura Errante 41
4 2 Literatura Errante
Estudos Literários
Thomas Wolfe,porum gigante esquecido
Dani el Cosme
Lá em meados do sécul o XX, o mundo ti nha sua obra f oi escanteada por moti vos
Thomas Wol f e ( di go: em carne e osso) , um di versos que i ncl uem xenof obi a e raci smo
escri tor norte-ameri cano bastante — reduci oni smos prontos a quei mar um
prol i xo — tal vez, um dos mai s prol i xos de romance por conta de uma cena que, mui tas
sempre — que apesar de sua morte vezes, não passa do retrato de um
prematura, aos 37 anos, em pl eno personagem hi stóri co ( da pri mei ra década
amadureci mento, tornou-se dono de uma do sécul o passado) esboçado pel o autor a
vasta obra que i ncl ui romances, contos e parti r de suas vi vênci as — daí a
novel as ( todos mal reconheci dos i mportânci a de reconhecer o teor
atual mente) . autobi ográf i co de seus l i vros.
Wol f e não é um gi gante apenas pel os Poi s bem, ai nda que você procure
manuscri tos vol umosos, nem só pel a sua paci entemente, pel a i nternet, não achará
aparênci a f í si ca, mas em ambi ções: seu uma tradução sequer dos trabal hos de
sonho era cri ar um novo mi to ameri cano a Wol f e, al ém de uma edi ção j á esgotada da
parti r da sua própri a bi ograf i a. Tal vez antol ogi a de contos “O meni no perdi do” ,
ti vesse consegui do, como o própri o publ i cada pel a Il umi nuras, e trechos de
Faul kner reconheceu, se vi vesse mai s, suas cartas na bi ograf i a sobre Maxwel l
aprendesse mai s. De qual quer f orma, j á em Perki ns ( seu pri nci pal edi tor) . Tendo
1991, a edi tora nova-i orqui na Scri bner, i sso em vi sta, estão abai xo as mi nhas
responsável pel a publ i cação das obras traduções de três poemas encontrados na
ref erentes à sua pri mei ra f ase de antol ogi a, j untamente com o texto
escri tor — Look Homeward, Angel ( 1929) e ori gi nal . Val e l embrar que Wol f e não era
Of Ti me and the Ri ver ( 1935) — publ i cou um poeta, na acepção comum da pal avra,
o l i vro cuj o tí tul o f az ref erênci a à mui to menos um artesão na el aboração da
epí graf e do pri mei ro romance do autor: A sua prosa massi va; mas, em sua mel hor
Stone, A Leaf , A Door. Nel e encontram-se f orma, poderi a evocar passagens l í ri cas
excertos da extrema prosa poéti ca de de bel eza í mpar, com o bri l ho de um
Wol f e, todos versi f i cados, “escri tor cósmi co” . Por hora, não
“transmutados” em poemas. i nterroguemos a natureza f ormal dos
textos em rel ação às i ntenções pri mei ras
Sej a pel a sua f ama de retóri co ou pel as
do autor, mas apreci emos o resul tado.
predi cações tomadas pel a crí ti ca atual ,

Literatura Errante 43
Como o Rio Like the River

Por que estai s ausente, à noi te, meu amor? Why are you absent i n the ni ght, my l ove?
Onde estai s quando soam os si nos noturnos? Where are you when the bel l s ri ng i n the
ni ght?
Agora, há si nos outra vez Now, there are bel l s agai n,
Que estranho ouvi -l os How strange to hear the bel l s
Nesta vasta ci dade adormeci da! In thi s vast, sl eepi ng ci ty!
Agora, em um mi l hão de ci dades menores, Now, i n a mi l l i on l i ttl e towns,
Agora, nos sombri os e sol i tári os l ugares desta Now i n the dark and l onel y pl aces of thi s
terra, earth,
Si ni nhos estão tocando o tempo! Smal l bel l s are ri ngi ng out the ti me!
Ó mi nha negra al ma, O my dark soul ,
Mi nha fi l ha, mi nha queri da, mi nha amada, My chi l d, my darl i ng, my bel oved,
Onde estai s agora, Where are you now,
E em que l ugar, And i n what pl ace,
E a que horas? And i n what ti me?
Ó, anel , doces si nos, aci ma del e Oh, ri ng, sweet bel l s, above hi m
Enquanto dorme! Whi l e he sl eeps!
Envi o meu amor a ti sobre esses si nos. I send my l ove to you upon those bel l s.

Tempo estranho, para sempre perdi do, Strange ti me, forever l ost,
Para sempre como o ri o, fl ui ndo! Forever fl owi ng l i ke the ri ver!
Tempo perdi do, pessoas perdi das e amor perdi do Lost ti me, l ost peopl e, and l ost l ove—
Perdi do para sempre! Forever l ost!
Não há nada que possas segurar There' s nothi ng you can hol d
Lá no ri o! There i n the ri ver!
Não há nada que possas manter There' s nothi ng you can keep
Lá no ri o! There i n the ri ver!
Leva seu amor, l eva sua vi da, It takes your l ove, i t takes your l i fe,
Leva os grandes navi os sai ndo ao mar, It takes the great shi ps goi ng out to sea,
E l eva tempo, And i t takes ti me,
Obscuro, del i cado tempo, Dark, del i cate ti me,
Os pequenos i nstantes de estranho tempo The l i ttl e ti cki ng moments of strange ti me
Contam-nos até a morte. That count us i nto death.

Agora na escuri dão Now i n the dark


Eu ouço o passar do tempo sombri o, I hear the passi ng of dark ti me,
E todo o tri ste fl uxo secreto da mi nha vi da. And al l the sad and secret fl owi ng of my l i fe.
Todos os meus pensamentos fl ui ndo como o ri o, Al l of my thoughts are fl owi ng l i ke the ri ver,
Toda a mi nha vi da passando como o ri o, Al l of my l i fe i s passi ng l i ke the ri ver,
Eu sonho e fal o e me si nto como o ri o, I dream and tal k and feel j ust l i ke the ri ver,
À medi da que el e passa por mi m, As i t fl ows by me,
Por mi m, para o mar. By me, to the sea.

4 4 Literatura Errante
Primavera The Spring

O outono foi gentil com eles, Autumn was kind to them,


Para eles o inverno foi longo— Winter was long to them—
Mas em abril, ao fim do mês, But in April, late April,
Todo o ouro cantou. All the gold sang.

A primavera chegou naquele ano como mágica, Spring came that year like magic,
Como música e como canção. Like music, and like song.
Um dia sua respiração estava no ar, One day its breath was in the air,
Uma premonição assustadora de seu espírito A haunting premonition of its spirit
Encheu os corações dos homens Filled the hearts of men
Com sua transformadora beleza, With its transforming loveliness,
Fazendo sua repentina e incrível feitiçaria Working its sudden and icredible sorcery
Sobre ruas cinzentas, calçadas cinzentas, Upon grey streets, grey pavements,
E nas marés cinzentas e sem rosto do enxame And on grey faceless tides of manswarm ciphers.
cifrado de homens.

Veio como música fraca e distante, It came like music faint and far,
Veio com triunfo, It came with triumph,
E um som de canto no ar, And a sound of singing in the air,
Com lamentos de doce gritar dos pássaros With lutings of sweet bird-cries
Ao amanhecer At the break of day
E a alta, rápida passagem de uma asa, And the high, swift passing of a wing,
E um dia estava lá And one day it was there
Nas ruas da cidade Upon the city streets
Com um estranho, repentino grito verde, With a strange, sudden cry of green,
Sua afiada faca de dor e alegria sem palavras. Its sharp knife of wordless joy and pain.

Nem toda a glória Not the whole glory


Da grande plantação da terra Of the great plantation of the earth
Poderia ter superado a glória das ruas da cidade Could have outdone the glory of the city streets
Naquela primavera. That Spring.
Nem o grito dos grandes campos verdes, Neither the cry of great, green fields,
Nem a canção das colinas, Nor the song of the hills,
Nem a glória das jovens bétulas Nor the glory of young birch trees
Estourando outra vez à vida ao longo das margens Bursting into life again along the banks of
dos rios, rivers,
Nem os oceanos de flores nos pomares floridos, Nor the oceans of bloom in the flowering
orchards,
Os pessegueiros, as macieiras, The peach trees, the apple trees,
As ameixeiras e cerejeiras — The plum and cherry trees—
Nem todos os cantos e o ouro da primavera, Not all of the singing and the gold of Spring,
Com abril explodindo da terra With April bursting from the earth
Em um milhão de gritos de triunfo, In a million shouts of triumph,
E o passo visível, And the visible stride,
Os pés floridos da primavera The flowered feet, of Springtime
Quando veio pela terra, As it came on across the earth,
Poderia ter ultrapassado a comovente glória Could have surpassed the wordless and poignant
sem palavras glory
De uma única árvore em uma rua da cidade Of a single tree in a city street
Naquela estação. That Spring.

Literatura Errante 45
Ó perdido O Lost

Não devemos voltar outra vez. We shall not come again.


Nunca mais voltaremos. We never shall come back again.
Mas sobre todos nós, sobre todos nós, But over us all, over us all,
Sobre todos nós — algo está. Over us all is—something.
O vento pressionou os ramos; Wind pressed the boughs;
Tremiam as folhas secas. The withered leaves were shaking.
Era outubro, mas algumas folhas tremiam. It was October, but some leaves were shaking.
Uma luz sobre a colina oscila. A light swings over the hill.
( Não devemos voltar. ) ( We shall not come again. )
E sobre a cidade uma estrela. And over the town a star.
( Sobre todos nós, sobre todos nós que não ( Over us all, over us all that shall not come
voltaremos) . again. )
E ao longo do dia a treva. And over the day the dark.
Mas, sobre a treva — But over the darkness —
O que? What?
Não devemos voltar. We shall not come again.
Nunca mais voltaremos. We never shall come back again.
Ao longo do amanhecer uma cotovia. ( Nunca mais Over the dawn a lark. ( That shall not come again. )
será) And wind and music far.
E vento e música distantes. O lost! ( It shall not come again. )
Ó perdido! ( Não será outra vez. ) And over your mouth the earth.
E sobre sua boca a terra. O ghost!
Ó fantasma! But, over the darkness —
Mas, sobre a treva — What?
O que?
Wind pressed the boughs;
O vento pressionou os ramos; The withered leaves were quaking.
Tremiam as folhas secas.
We shall not come again.
Não devemos voltar. We never shall come back again.
Nunca mais voltaremos. It was October,
Era outubro, But we never shall come back again.
Mas jamais nossa volta.
When will they come again?
Quando eles retornarão? When will they come again?
Quando eles retornarão?
The laurel, the lizard, and the stone
O louro, o lagarto e a pedra Will come no more.
Jamais voltarão. The women weeping at the gate have gone,
Foram-se as mulheres que no portão choravam, And will not come again.
E jamais voltarão. And pain and pride and death will pass,
E passarão a dor e o orgulho e a morte, And will not come again.
E jamais voltarão. And light and dawn will pass,
E passarão a luz e o amanhecer, And the star and the cry of a lark will pass,
E a estrela e o grito de uma cotovia passarão, And will not come again.
E jamais voltarão. And we shall pass,
E nós passaremos, And will not come again.
E não voltaremos.
What things will come again?
Que coisas retornarão? Oh, Spring, the cruellest and fairest of the
Ó, primavera, a mais bela e cruel das estações, seasons,
Virá outra vez. Will come again.
E os homens estranhos e enterrados And the strange and buried men
Novamente virão, Will come again,
Em flores e folhas In flower and leaf
Os homens estranhos e enterrados The strange and buried men
Virão outra vez, Will come again,
E nunca mais o pó e a morte voltarão, And death and the dust will never come again,
Pois um e outro For death and the dust
Morrerão. Will die.
E Ben voltará, And Ben will come again,
Não morrerá novamente, He will not die again,
Em flor e folha, In flower and leaf,
Com vento e música distantes, In wind and music far,
Voltará outra vez. He will come back again.
Ó perdido, O lost,
E pelo vento afligido, And by the wind grieved,
Fantasma, Ghost,
Reapareça. Come back again.

4 6 Literatura Errante
Sobre o Autor:
Dani el Cosme é
graduando em Letras, na
UFPE, poeta e tradutor.
Vem escrevendo poesi a,
com vari ados i nteresses
estéti cos. Crê que a
poesi a é um espaço
l i vre de pecados.

Literatura Errante 47
4 8 Literatura Errante
Estudos Literários

Ironia e circularidade Político-Social em


Os Bruzundangas, de Lima Barreto
por Túl i o Montei ro
Af onso Henri ques de Li ma Barreto vei o cari ocas, tendo si do o j ornal A Lanterna,
à l uz aos 13 de mai o de 1881. Nasceu di ri gi do por Bastos Ti gre, o pri mei ro a
mul ato, f ruto do casamento entre a também receber textos de sua l avra. Vi eram
mul ata Amál i a Augusto Barreto, depoi s: Correi o da Manhã; Revi sta Fon-
prof essora cri ada por uma f amí l i a de Fon; Revi sta Fl oreal ( i deal i zada por
recursos, e de J oão Henri ques de Li ma el e) ; J ornal do Commerci o; Gazeta da
Barreto, ti pógraf o e homem de vasta Tarde; Revi sta O Ri so; Correi o da Noi te;
l ei tura, f i l ho nasci do da uni ão de uma Úl ti ma Hora; J ornal A Noi te; Revi sta
escrava com um comerci ante madei rei ro Careta; Semanári o Pol í ti co ABC; Di ári o
português. Cari oca; Revi sta Hoj e e Revi sta Souza
Cruz. Ao contrári o do que mui tos
Li ma Barreto f oi um perspi caz estudi osos da l i teratura brasi l ei ra
observador da soci edade brasi l ei ra de af i rmam, no que di z respei to à l i berdade
seu tempo, em especi al da soci edade de publ i cação, Li ma Barreto nunca f oi
cari oca, à época prof undamente centrada margi nal i zado ou sof reu retal i ações por
nos modi smos, i novações e costumes parte dos cânones l i terári os e
cul turai s i mportados da Europa. Um Ri o j ornal í sti cos de sua época. Pel o
de J anei ro que passava por grandes contrári o, o autor de “Tri ste Fi m de
mudanças sóci o-pol í ti cas que geraram a Pol i carpo Quaresma” sempre teve
assi natura da Lei Áurea, abol i ndo a autonomi a para publ i car suas
escravi dão, e a queda da Monarqui a de Dom panf l etári as e satí ri cas crôni cas,
Pedro II, em detri mento da Repúbl i ca de mui tas del as abertamente al f i netadas em
Deodoro da Fonseca. presti gi adas f i guras do Brasi l de seu
tempo.
O meni no de poucos recursos que perdeu
a mãe aos sete anos de i dade e veri a o Cri atura de aguçado i ntel ecto, Li ma
pai enl ouquecer al guns anos mai s tarde, Barreto, que representa para a prosa de
tornou-se um arguto acompanhador das nosso paí s o que Cruz e Souza representa
mudanças soci ai s e estéti cas daquel e para a nossa poesi a, f oi um homem que
Brasi l do f i nal do sécul o XIX e i ní ci o sempre sof reu com os revezes de uma vi da
do XX. Vi vaz, desde mui to cedo o j ovem pautada pel as di f i cul dades, f ossem el as
Li ma Barreto passou a dei tar no papel os f i nancei ras ou espi ri tuai s,
grandes aconteci mentos ocorri dos em seu pri nci pal mente espi ri tuai s, j á que aos
entorno, crôni cas escri tas que ai nda l egí ti mos homens de Letras as f i nanças
hoj e são val i osos documentos de consul ta são sempre rel egadas a um segundo pl ano.
para escri tores, antropól ogos e Sof reu na sua pel e quase negra as
hi stori adores. di scri mi nações raci ai s de um Brasi l
recém-saí do da Abol i ção, tendo que
A f aci l i dade que ti nha para redi gi r – acompanhar dol orosamente a l oucura
certamente a mai s compl eta vál vul a de crescente de seu pai , não sem antes ter
escape para os sof ri mentos que assol aram que convi ver, em caráter quase
sua vi da – l evou Li ma Barreto a escrever, permanente, com sua própri a l oucura.
a parti r de 1902, em vári os peri ódi cos

Literatura Errante 49
Ancorado em sua húmi l e ori gem e
sensi bi l i dade apurada, Li ma Barreto
escreveu magi stral mente sobre a real i dade
brasi l ei ra vi sta de bai xo para ci ma no
que di z respei to às camadas soci ai s,
tendo si do detentor de uma coragem í mpar
para j ul gar e enf rentar, através de sua
cortante e af i ada pena, os poderosos e
opressores de sua época. O preço a ser
pago f oi al to, uma vez que escrever o que
se pensa – sem f l orei os ou reti cênci as –
custa caro. Abertamente, não – como
af i rmamos aci ma – , mas nos basti dores
i ntel ectuai s f oi preteri do por quase
todos os "grandes" l i teratos de seu
tempo, a ponto de nunca ter consegui do “OS BRUZUNDANGAS”: ENTRE A SÁTIRA E A
tornar-se um i mortal da Academi a CARNAVALIZAÇÃO
Brasi l ei ra de Letras, apesar de nel a ter Corri a o ano de 1917 quando Li ma
tentado i ngressar por três vezes. Barreto, aos tri nta e sei s anos e após
Conchavos dos medal hões de pl antão. Nada quatro l i cenças para tratamento de saúde
mai s atual . e uma i nternação no hospí ci o da Prai a
Vermel ha, hospi tal i zou-se mai s uma vez em
No pri mei ro di a de novembro de 1922 – busca da recuperação de al gum vi gor
ano em que Mári o de Andrade e seus f í si co. O di agnósti co: al cool i smo. No
segui dores desf ral daram, em São Paul o, a perí odo em que esteve em tratamento,
bandei ra do Moderni smo Brasi l ei ro – , Li ma concl ui u os escri tos daquel e que vi ri a a
Barreto morreu vi ti mado pel as ser seu pri mei ro l i vro satí ri co: “Os
compl i cações cardí acas advi ndas dos Bruzundangas” .
excessos al cóol i cos. Doi s di as depoi s,
f al eceri a seu pai , J oão Henri que de Li ma Após arrematar os tri nta e nove textos
Barreto. Nas mãos do escri tor Li ma que dão f ormato ao teci do l i terári o de
Barreto, sua i rmã Evangel i na encontrou um “Os Bruzundangas” , Li ma Barreto conf i ou
exempl ar da revi sta f rancesa Revue des seus ori gi nai s ao edi tor J . Ri bei ro dos
Deux Monde, uma de suas l ei turas Santos que, i ntenci onal mente, os manteve
f avori tas, que el e f ez questão de ci tar i nédi tos até a morte do escri tor em 1922,
em "Os Samoi edas", capí tul o i ni ci al de transf ormando “Os Bruzundangas” , por el e
“Os Bruzundangas” ( 1922) . Ao seu mesmo propagado aos quatro ventos, no
concorri do f uneral , real i zado no pri mei ro l i vro póstumo de Li ma Barreto.
Cemi téri o São J oão Bati sta, não Vendas e os l ucros garanti dos.
compareceram i ntel ectuai s ou membros da
al ta soci edade, mas, si m, i números O termo Bruzundangas é um brasi l ei ri smo
anôni mos, personagens mai ores de seus regi strado em di ci onári o que si gni f i ca
áci dos e contundentes textos l i terári os, conf usão, trapal hada,
hoj e traduzi dos para as l í nguas f rancesa, embrul hada. . . mi stura de coi sas
espanhol a, al emã, russa, j aponesa e i mprestávei s, sendo este úl ti mo
i ngl esa, comprovação mai or da si gni f i cado o que mel hor se adapta à
uni versal i dade de sua Li teratura. mensagem panf l etári a que Li ma Barreto
qui s dei xar regi strada nos textos
conti dos no l i vro ora anal i sado.

50 Literatura Errante
Paí s f i ctí ci o que bem poderi a ser o que nada mudou nos úl ti mos quase noventa
Brasi l da pri mei ra metade do sécul o XX ou anos é tão ní ti da, tão pal pável , que o
mesmo o que hoj e habi tamos. A Repúbl i ca l edor menos avi sado se convencerá de que
dos Bruzundangas é uma nação assol ada Li ma Barreto não morreu em 1922, mas,
pel os sete Pecados Capi tai s e suas si m, que conti nua vi vo e escrevendo
vari antes. Pátri a na qual a corrupção é aci damente, dardej ando duras verdades à
moda e model o para se chegar ao poder e soci al cl asse domi nante brasi l ei ra, uma
onde pessoas honestas são tachadas como mi nori a mí ni ma – perdoem a redundânci a –
seres i mbeci l i zados, comprovação mai or de que há mai s de qui nhentos anos di ta
que mal í ci a e ardi l eza são normas e di retri zes ao nosso prol etari ado
caracterí sti cas obri gatóri as aos que tupi ni qui m.
desej am "vencer", "ascender" soci al e
f i nancei ramente nas pl agas daquel e No seu i mpressi onantemente
terri tóri o. contemporâneo “Os Bruzundangas” , Li ma
Barreto sati ri za o Ri o de J anei ro de seu
Que não estranhem os l ei tores de “Os tempo, àquel a época capi tal do Brasi l . A
Bruzundangas” se se depararem com nobreza, a pol í ti ca, a Consti tui ção, as
si tuações extremamente contemporâneas no f orças armadas, os herói s, o si stema de
que di z respei to aos desmandos e abusos saúde, a educação, os l i teratos, enf i m,
ocorri dos neste Brasi l de i ní ci o do a soci edade em sua total i dade, são al vos
sécul o XXI. A sensação de atual i dade e de contundentemente ati ngi dos pel as f l echas
i ncendi ári as do arquei ro Li ma Barreto,
mul ato quase negro que sof reu no corpo e
n’ al ma o raci smo e a rej ei ção de um
Brasi l que f oi e ai nda é basi camente
povoado por í ndi os, negros e uns quase
brancos. Paí s que até hoj e não admi te sua
mi sci genação, sua mesti çagem.

Em “Os Bruzundangas” , Li ma Barreto


prati ca com excel ênci a í mpar a estrutura
l i terári a que o f ormal i sta russo Mi khai l
Bakhti n vi ri a a def i ni r, em 1928, como
carnaval i zação, processo que consi ste em
sati ri zar assuntos l i gados à di al éti ca
soci al , centrando sua temáti ca em uma
af i ada crí ti ca às i nsti tui ções, pessoas,
grupos e hábi tos de determi nados
segmentos da soci edade, val endo-se para
i sso de recursos retóri cos que, embasados
na comi ci dade e na i roni a, produzem
ef ei tos moral i zantes no que di z respei to
às noções sóci o-i deol ógi cas dos l ei tores.

E é esta i roni a, esta comi ci dade


aparentemente descompromi ssada, mas
carregada de crí ti ca aos abusos
perpetrados pel os poderosos, que a
vi sceral escri ta de Li ma Barreto f ez e

Literatura Errante 51
f az brotar dos capí tul os que compõem “Os pri mei ro Presi dente do Brasi l .
Bruzudangas” . Textos agudamente escri tos
há mai s de nove décadas, mas 1890 - Instal ação da pri mei ra
i mpressi onantemente atuai s no que se Assembl ei a Consti tui nte do Brasi l .
ref ere ao combate expl í ci to à
ci rcul ari dade vi ci osa que as caducas 1891 - Deodoro da Fonseca decreta o
cl asses domi nantes tanto i nsi stem em f echamento do Congresso Naci onal .
transmi ti r, geração após geração, em uma Fl ori ano Pei xoto comanda um contragol pe
i nsana busca pel a perpetuação do poder. que o l evari a a ser o segundo Presi dente
do Brasi l .
“Os Bruzundangas” , de Li ma Barreto,
caros l edores, é l ei tura obri gatóri a aos 1892 - O l i terato Antôni o Sal es, ao
que buscam entender, di scuti r, combater l ado dos poetas Lopes Fi l ho, Temí stocl es
e equal i zar a pereni dade do poder que se Machado, Sabi no Bati sta, Ul i sses Bezerra,
i nstal ou nesse paí s há mai s de mei o Ál varo Marti ns e Ti búrci o de Frei tas,
mi l êni o, i deal i zando tempos mel hores aos f unda a Padari a Espi ri tual , movi mento
povos que habi tam e vi rão a habi tar este cul tural surgi do no Ceará que correu o
nosso Brasi l que, sei , ai nda se tornará Brasi l de f orma contundente,
uma nação f orte e i gual i tári a. di agnosti cando, sei s l ustros antes, aos
i deal i zadores da Semana de Arte Moderna
CRONOLOGIA DE VIDA de 1922 que a j unção, a soma da
1881 - Aos 13 de mai o, nasce, no Ri o de ecl eti ci dade de mui tos segmentos
J anei ro, Af onso Henri ques de Li ma i ntel ectuai s ( Li teratura, Pi ntura,
Barreto, f i l ho da mul ata Amál i a Augusta Músi ca e sadi a mol ecagem) era uma f órmul a
Barreto, prof essora cri ada por uma magní f i ca para se di vul gar ao Brasi l e ao
f amí l i a de recursos, e do ti pógraf o e mundo a ri queza cul tural do nosso paí s.
ávi do l ei tor J oão Henri ques de Li ma
Barreto, f i l ho de uma escrava e de um 1894 - Prudente de Morai s torna-se o
madei rei ro português. Nesse mesmo ano, tercei ro Presi dente do Brasi l .
Machado de Assi s publ i ca Memóri as
Póstumas de Brás Cubas. 1895 - Após concl ui r a i nstrução
pri mári a, Li ma Barreto i ngressa no
1887 - Dona Amál i a Augusta Barreto, mãe Gi nási o Naci onal , que no perí odo da
de Li ma Barreto, morre em dezembro de Monarqui a brasi l ei ra se chamava Col égi o
tubercul ose gal opante. Pedro II.

1888 - Aos 13 de mai o, No Ri o de 1897 - Ingressa na Escol a Pol i técni ca


J anei ro, Pri ncesa Isabel assi na a Lei do Ri o de J anei ro.
Áurea abol i ndo a escravi dão no Brasi l . O
mul ato Li ma Barreto, que naquel e di a 1898 - Campos Sal es se torna o quarto
comemora seu séti mo ani versári o, assi ste, Presi dente do Brasi l .
ao l ado de seu pai , a ceri môni a da
abol i ção, evento hi stóri co que f i cari a 1902 - Li ma Barreto, a convi te de
marcado para sempre em sua memóri a. Bastos Ti gre, passa a escrever no j ornal
A Lanterna. Ini ci a-se, al i , a vasta
1889 - 15 de novembro. A Procl amação da col aboração de Li ma Barreto em peri ódi cos
Repúbl i ca é decl arada por Marechal cari ocas. Seu pai , J oão Henri ques de Li ma
Deodoro da Fonseca, que vi ri a a ser o Barreto, enl ouquece. Li ma Barreto se vê
obri gado a dei xar a Escol a Pol i técni ca do

52 Literatura Errante
Ri o de J anei ro para trabal har e sustentar tratamento de uma anemi a prof unda.
a f amí l i a. Aos 21 anos, procura, na
bebi da, consol o para seus probl emas. 1917 - Greves operári as são def l agradas
em todo o Brasi l . Na Rússi a, os
1903 - Através de concurso públ i co, bol chevi ques procl amam a doutri na
assume o cargo de amanuense na Di retori a Soci al i sta. Li ma Barreto atua ati vamente
de Expedi ente da Secretari a de Guerra. na i mprensa anarqui sta, apoi ando as
mani f estações l i bertári as dos
1905 - Para ref orçar o orçamento trabal hadores brasi l ei ros. Novo
domésti co passa a trabal har como i nternamento, desta vez para tratar seu
j ornal i sta prof i ssi onal no j ornal Correi o al cool i smo. No Hospí ci o, escreve as
da Manhã. crôni cas que compori am “Os Brazundandas” ,
l i vro satí ri co que só seri a publ i cado em
1907 - Lança o pri mei ro número da 1922, um mês após sua morte.
Revi sta Fl oreal . Para restabel ecer-se de
uma f raqueza geral do organi smo, sol i ci ta 1918 - Di agnosti cado como portador de
sua pri mei ra l i cença para tratamento de epi l epsi a tóxi ca, é consi derado i nvál i do
saúde. para o servi ço públ i co, requerendo, poi s,
aposentadori a das suas ati vi dades de
1909 - Sob os cui dados do edi tor M. amanuense na Di retori a de Expedi ente da
Tei xei ra, o romance Recordações do Secretari a de Guerra. Compl etamente l i vre
Escri vão Isaí as Cami nha é publ i cado em para exercer suas ati vi dades de l i terato,
Li sboa, Portugal . 1910 - Nova l i cença apoi a o movi mento bol chevi que l ançando o
médi ca. Di agnósti co: i mpal udi smo, doença Mani f esto Maxi mal i sta Brasi l ei ro.
i nf ecci osa também conheci da como mal ári a. Entrega ao edi tor Montei ro Lobato, seu
admi rador conf esso, os ori gi nai s de Vi da
1911 - No J ornal do Commerci o começa a e Morte de M. F. Gonzaga de Sá, seu
publ i car em f ol heti ns aquel e que vi ri a a pri mei ro l i vro a receber tratamento
ser o seu romance mai s conheci do: Tri ste edi tori al de qual i dade.
Fi m de Pol i carpo Quaresma. 1912 - Passa a
publ i car na Gazeta da Tarde a sáti ra Numa 1919 - Montei ro Lobato traz à l uz “Vi da
e a Ni nf a, que em 1915 seri a publ i cado em e Morte de M. F. Gonzaga de Sá” . Li ma
f orma de l i vro. Mergul ha ai nda mai s Barreto é novamente recol hi do ao Hospí ci o
prof undamente na bebi da. Outra l i cença da Prai a Vermel ha.
médi ca para tratar de reumati smo
pol i arti cul ar e hi perci nese cardí aca. 1922 - Em São Paul o, a Semana de Arte
Moderna def i ne novas estruturas e
1914 - Entre 18 de agosto e 13 de di retri zes à l i teratura prati cada no
outubro, Li ma Barreto é recol hi do pel a Brasi l . No pri mei ro di a de novembro,
pri mei ra vez ao Hospí ci o da Prai a Af onso Henri que de Li ma Barreto cerrou
Vermel ha. A vi da di f í ci l , a Loucura do def i ni ti vamente os ol hos para este mundo.
pai e o al cool i smo são f atores cruci ai s Fechava-se, al i , o cí rcul o de sua
para sua pri mei ra cri se neurastêni ca. magní f i ca vi da. Ao l ado de sua cama,
estava sua i rmã Evangel i na Barreto, que
1916 - O uso excessi vo do ál cool e a doi s di as após sepul tar seu i rmão teri a
vi da desregrada l eva-o a i nterromper por que buscar f orças para também i numar seu
compl eto sua vi da prof i ssi onal e pai , o ti pógraf o e ávi do l ei tor J oão
l i terári a. Nova l i cença médi ca para Henri ques de Li ma Barreto, f al eci do após
vi nte anos de l oucura.

Literatura Errante 53
BIBLIOGRAFIA SOBRE LIMA BARRETO
BARBOSA, Franci sco de Assi s. “A Vi da de
Li ma Barreto” . Ri o de J anei ro: J osé
Ol ympi o, 1975.
BEIGUELMAN, “Por Que Li ma Barreto” . São
Paul o: Brasi l i ense, sem data.
BOSI, Al f redo. O Romance Soci al : Li ma
Barreto. In: “Hi stóri a Conci sa da
Li teratura Brasi l ei ra” , São Paul o, 1995.
BROCA, Bri to. “A Vi da Li terári a no Brasi l –
1900” . Ri o de J anei ro: J osé Ol ympi o, 1975.
CANDIDO, Antoni o. Os Ol hos, A barca e o
Espel ho. In: “A Educação Pel a Noi te e
Outros Ensai os” . São Paul o: Áti ca, 1987.
CURY, M. Zi l da Ferrei ra. “Um Mul ato no

BIBLIOGRAFIA DE LIMA BARRETO Rei no de J ambón” . São Paul o: Cortez, 1981.


“Recordações do Escri vão Isaí as FIGUEIREDO, Mari a do Carmo Lanna. “O
Cami nha” ( romance) – 1909; Romance de Li ma Barreto e sua Recepção” .
Bel o Hori zonte: Lê, 1995.
“Aventuras do Dr. Bogól of f ” ( narrati vas
humorí sti cas) – 1912; LINS, Osman. “Li ma Barreto e o Espaço
Romanesco” . São Paul o: Áti ca, 1976.
“Tri ste Fi m de Pol i carpo Quaresma”
PROENÇA, M. Caval canti . Romanci stas da
( romance) – 1915;
Ci dade: Macedo, Manuel Antôni o e Li ma
“Numa e a Ni nf a ( romance) – 1915; Barreto. In: HOLLANDA, Aurél i o Buarque de.
“Vi da e Morte de M. J . Gonzaga de Sá” ( Coordenação) . “O Romance Brasi l ei ro” . Ri o
( romance) – 1919; de J anei ro: O Cruzei ro, 1952.
PRADO, Antôni o Arnoni . “Li ma Barreto: o
“Hi stóri as e Sonhos” ( contos) – 1920;
Crí ti co e a Cri se” . Ri o de J anei ro:
“Os Bruzundangas” ( sáti ra) – 1922; Cátedra, 1976.
“Bagatel as” ( crôni cas) – 1923; RESENDE, Beatri z. “Li ma Barreto e Ri o de
J anei ro em Fragmentos” . Ri o de J anei ro:
“Cl ara dos Anj os” ( romance) – 194 8;
Edi tora UFRJ , Campi nas, Uni camp, 1993.
“Outras Hi stóri as e Contos Argel i nos”
( contos) – 1952;
“Coi sas do Rei no de J ambón” ( sáti ra) – Sobre o Autor:
1953; Escri tor, bi ógrafo,
hi stori ador e crí ti co
“Fei ras e Maf uás” ( crôni cas) – 1953;
l i terári o. Graduado em
“Margi nál i a” ( crôni cas) – 1953; Letras pel a UFC. Grau de
“Vi da Urbana” ( crôni cas) – 1953; Especi al i zação em Li tera-
tura e Investi gação Li-
“Di ári o Ínti mo” ( memóri as) – 1953; terári a, também pel a Uni -
“Cemi téri o dos Vi vos” ( memóri as) – versi dade Federal do
1953; Ceará – UFC. Membro efe-
ti vo da Academi a Interna-
“Impressões de Lei tura” ( crí ti ca) –
ci onal de Li teratura
1956.
Brasi l ei ra - AILB -
Cadei ra de número 246.

54 Literatura Errante
Literatura Errante 55
Opinião

Klaatu Barada Nikto


por Guto Domi ngues

Se esse tí tul o não tem ef ei to em sua – presença constante e cerne de toda


memóri a, vej o apenas duas possi bi l i dades: cri ação artí sti ca- é o pri mordi al assunto
você é uma pessoa mui to nova ou, caso dessas expressões.
contrári o, não preza em manter el ementos
de cul tura pop em suspensão no seu Sou f ruto do meu tempo. Li l i teratura
cérebro, para se ref eri r, em rodi nhas de f antásti ca, não f i cci onal , utopi as,
conversas i nf ormai s, à músi ca, f i l mes, di stopi as, real i stas, especul ati vas.
l i vros, séri es, hi stóri as em quadri nhos Assi sti aos f i l mes baseados nessas
ora para f azer graci nhas ora para l i teraturas. E nesse tempo de i sol amento
demonstrar que como todo bom nerd, está soci al , a arte me sal vou, tomara que todos
chei o de paral el os, anal ogi as, tenham si do sal vos pel a arte. Mas não vej o
comparações. Já vi usarem essas um renasci mento cul tural como di zem al guns
ref erênci as ao uni verso pop de todos os oti mi stas. Tal vez ao descobri rem uma cura
modos, para todas as f i nal i dades. Desde tudo vol te ao normal . Mas ao pensar nesse
puro esnobi smo esqui zof rêni co texto não qui s segui r por cami nhos de
i ntel ectual ; para i mpressi onar ami gos, f l uxos de consci ênci as descrevendo mi nhas
ami gas; até seduzi r pretendentes. O que angústi as, medos, f al ar de meus traumas,
dá no mesmo: Pura vai dade. vi sões desse mundo desgraçado pel a doença.
El evar as vozes que tal vez soassem
Entretanto tal conheci mento serve, uni versai s e não sendo herméti cas
poucas vezes, para anál i ses dessas artes ati ngi ri am todos. Como a doença ati ngi u.
da expressão humana. Como há uma
retroal i mentação de i dei as, concei tos. Pref eri l embrar-me dos avi sos do passado,
Vez ou outra tudo se mi stura. E tenho a das vel adas vozes da consci ênci a uni versal
i mpressão que, de certa f orma, o humano que através dos arti stas nos avi sam. Vamos

56 Literatura Errante
ti rar o véu, o verni z desses avi sos. vi rtual . Fal a da al ta tecnol ogi a e da
bai xa qual i dade de vi da. E dá i ní ci o a um
Lembro-me de Pl atão e o Mi to da Caverna subgênero de l i teratura chamado
toda vez que vej o noti ci ári os, exercí ci o Cyberpunk. Nos anos oi tenta era di stante,
de todos os di as para acompanhar as i rreal , especul ação f orçada,
desgraças do novo normal do coti di ano da subl i teratura, rel egada a uma segunda
pandemi a. Fake News são as sombras cl asse l i terári a. Hoj e real i za a proeza
proj etadas nas paredes da Caverna. Mesmo de ref l eti r as preocupações do momento
que não sej am f al sas, nunca saberemos as hi stóri co que está i nseri da, ao mesmo
verdades absol utas. Quem mani pul a as tempo, esses l i vros anteci pam si tuações,
sombras que vem dos pal áci os do Ol i mpo possi bi l i dades, eventos do f uturo próxi mo
Brasi l i ano do Cerrado? ou l ongí nquo. Si tuações que, mui tí ssi mas
vezes, se transf ormam ou i nspi ram
Lembro-me de Phi l i p K Di ck que sempre real i dades. Se i sso não f or l i teratura de
questi onou a real i dade. Real i dade que em al tí ssi mo ní vel , pri mei rí ssi ma l i nha, eu
suas danças mi di áti cas tel evi si vas troca não sei , nem reconheço o que é.
de parcei ro de acordo
com a tão ci tada Guerra Mas não f arei
de Narrati va. Parece- desse texto um
me Hemi ngway: “Quem debruço sobre a
estará nas tri nchei ras f unção ou a
ao teu l ado?” “— E i sso qual i dade
i mporta?” “— Mai s do l i terári a da
que a própri a guerra. ” f i cção
Ti re suas concl usões. especul ati va ou
Não vou i nf l uenci ar ci entí f i ca.
sua i nterpretação. Chame-a como
qui ser. Como
Lembro-me de supraci tado quero
hi stóri as onde um f al ar do materi al
personagem escrevi a pri mi ti vo de toda
uma carta e col ocava em arte. O Humano.
garraf a, o mar se
encarregari a de O ser que
encontrar o cami nha nesse
desti natári o. O termo pl aneta - eu
navegar, hoj e usado para expl orar a estou quase chamando de redondeta para
i nternet, j usti f i ca essa l embrança. Somos i rri tar os terrapl ani stas – parece que
náuf ragos em nossas própri as casas e a sempre procurou respostas. E agora uma
tecnol ogi a nos aproxi mou desses herói s de pergunta nos atormenta: Como será
i dos tempos, perdi dos e sozi nhos em i l has depoi s?, e l ogo em segui da: Como será o
paradi sí acas. Somos náuf ragos em nossos mundo pós-pandemi a? Não tenho respostas.
l ares. Nem ni nguém. Mas não consi go dei xar de me
l embrar de um f i l me que agora é
Lembro-me de Wi l l i an Gi bson, embl emáti co. Não há como dei xar de
Neuromancer, seu l i vro, f al a de uma rel aci onar. Você j á deve ter adi vi nhado.
soci edade que vi ve em um mundo vi rtual , Si m. Estou f al ando de “O Di a Em Que a
f al a de deuses que ascendem no mundo Terra Parou” .

Literatura Errante 57
Vou dar uma resumi di nha. No f i l me Outra coi sa que a pandemi a me f ez
aparece uma nave – el a pousa em rel aci onar hi stóri as de f i cção
Washi ngton - que pensam ser sovi éti ca. A ci entí f i ca, f oi a queda da máscara de
hi stóri a é de 1951; guerra f ri a pessoas no poder, na mí di a e a eterna
i ni ci ando; URSS x USA; testes nucl eares. estrati f i cação soci al que rege as rédeas
Aquel e contexto horroroso. Kl aatu ( um do mundo.
al i ení gena) é bal eado por um sol dado que
o j ul gava i ni mi go. É l evado a um A doença só é democráti ca em rel ação ao
hospi tal , onde se cura rapi damente e contági o. Não escol he quem contami na. Mas
recebe a vi si ta do secretári o de Estado desnuda a vi ol ênci a da pí f i a qual i dade de
dos Estados Uni dos, a quem pede aj uda ao vi da, a i ncapaci dade de dei xar de
presi dente para organi zar uma conf erênci a trabal har na rua e f azer Home Of f i ce, a
de l í deres mundi ai s. O secretári o carênci a de cui dado e bem estar soci al
encami nha sua proposta ao governo, que a propagada em pal anques, mas nunca
recusa. Para qual moti vo? Kl aatu trazi a real i zada.
um ul ti mato aos l í deres da Terra, para
que el es acabassem com as guerras e com Fal a-se da Itál i a, da Ingl aterra, dos
a corri da armamenti sta, o que estari a doentes em Nova York. Mas e os paí ses
preocupando os habi tantes de outros af ri canos? E as f avel as? E o pobre que
pl anetas. move a roda da soci edade? Queri am usar
af ri canos como cobai as? Ai nda vi vemos o
col oni al i smo? Neo Col oni al i smo?

Só espero em raros momentos de oti mi smo


que tudo se recupere. Senão, no f i m quem
vai sobrevi ver serão os povos i ndí genas.
El es retomarão a terra que l hes f oi
ti rada e, por puro mereci mento,
repovoarão a terra devastada. Com o
respei to que el a merece, e, que penso, só
ser l he dado por esses povos di zi mados,
caçados, e sem voz.

Enf i m, é uma pena ver que di stopi as são


Mas o que i sso tem a ver com a pandemi a? mai s provávei s que utopi as. Mas segui rei
No contexto sóci o pol í ti co do f i l me, que com f é.
é verdadei ro, vemos o mundo à bei ra de
uma possí vel destrui ção nucl ear. Em um
momento do f i l me, para demonstrar sua Sobre o Autor:
f orça e poder, em um di a, todos os Vi ol oni sta,
aparel hos el étri cos da Terra param de escri tor, ci néf i l o,
f unci onar ao mesmo tempo. l ei tor compul si vo,
f ã de Quadri nhos,
Em nosso mundo, cenas pareci das Conan, Star Wars,
ocorreram, devi do ao i sol amento soci al . etc. Escreve desde
Quem assi sti u ao f i l me rel aci ona as pequeno al ém de ter
passado os úl ti mos
i magens, não tenho dúvi da. Ruas vazi as,
35 anos com um
ruas sem trânsi to. De uma hora para a
vi ol ão no col o.
outra a vi da parou.

58 Literatura Errante
Literatura Errante 59
Notícia

Conheça a Antologia de Contos em


Quadrinhos SOPA OPERA
Campanha de de financiamento coletivo supera a meta estabelecida (122%) e será publicada
por Pabl o Gomes

O Fi nanci amento Col eti vo, como mei o de cati vantes. E o si stema de Fi nanci amento
vi abi l i zação de obras l i terári as, parece Col eti vo permi te que, com i nvesti mentos
ter chegado para f i car. Pequenas edi to- pequenos ( e, por consegui nte, um ri sco
ras e Autores Independentes, ao que pa- reduzi do) , l ei tores possam apostar em
rece, f i nal mente podem não apenas ti rar trabal hos autorai s, naci onai s, em cuj a
seus proj etos do papel , como col ocá-l os qual i dade possam acredi tar. Nesse
no papel . Não é segredo para ni nguém que contexto, se destacou perante nossos
i mpri mi r l i vros envol ve um custo, e que ol hos o HQ SOPA OPERA, em campanha no
o mercado edi tori al está em cri se há al - Catarse. A campanha f oi bem-f ei ta, e o
guns anos. É f ato que a cri se econômi ca resul tado natural f oi o sucesso. A
tem certa i nf l uênci a sobre i sso: no arrecadação al cançou a meta ori gi nal ,
aperto, o corte de gasto tende a ser em mai s duas metas estendi das, e se
l azer, ou qual quer outro mei o menos ur- aproxi mou de uma tercei ra meta estendi da.
gentes do que al i mentação ou transporte Os apoi adores, que contri buí ram com
para o trabal ho, por exempl o. As edi to- val ores que vão de R$35, 00 a R$120, 00,
ras estão, por i sso, ai nda mai s conser- receberão os seus exempl ares em casa, sem
vadoras e cautel osas, no que concerne à custo adi ci onal com f rete.
escol ha de que l i vros devem publ i car.
Apostar nos Best Sel l ers i nternaci onai s A HQ Opera Sopa é uma ref erênci a
ai nda é a estratégi a mai s segura e ga- moderna às cl ássi cas antol ogi as de
ranti da. f antasi a e f i cção ci entí f i ca. Esti l os
vari ados de arte e narrati va transi tam
Ai nda assi m, o públ i co l ei tor conti nua entre aventura, ação, pancadari a, humor
ansi ando por bons l i vros e proj etos e di ál ogos f i l osóf i cos. Bem ao esti l o

60 Literatura Errante
edi tori al da Heavy Metal e 2. 000
A. D.
Em todas as 6 hi stóri as da HQ,
as tramas abordam di versos
di l emas do homem e da soci edade.
Interl i gados por um pequeno f i o
condutor, todos os contos tentam
gerar al guma l eve ref l exão nos
l ei tores mai s atentos sobre as
escol has dos personagens.
Ao todo serão 120 pági nas
col ori das, no f ormato ameri cano
( 17cmx26cm) e papel de al ta
gramatura.
A obra será di stri buí da para os
apoi adores no f ormato di gi tal até
o di a 25 de f everei ro, e deve
começar a ser envi ada também aos
apoi adores a parti r do di a 5 de
março.

A Arte e o Rotei ro desta obra f oram


desenvol vi dos por Di ogo Pavan, que cri ou
a campanha de sucesso. Se você se
i nteressou pel o trabal ho, e desej a
adqui ri r a obra, pode contactar o autor
pel o Instagram @di ogopavan86 ou pel o e-
mai l di ogool i vei rapavan@gmai l . com. Em
breve, deverá ser di sponi bi l i zado também
por uma l oj a onl i ne, em processo de
construção.

Sobre o Autor:
Pernambucano nasci do
em Caruaru e radi cado
no Reci fe, o poeta,
conti sta, croni sta,
romanci sta, rotei ri sta
e aventurei ro Pabl o
Gomes é também ator,
al ém de cri ador e
edi tor do Li teratura
Errante.

Literatura Errante 61
Folhetim

Primeira Luz
por Gabri el Soares

El i sa, Gomes e Sal danha entraram à rua comando aqui .


avi stando a troca de ti ros. A del egada
— Quem é você?
l ogo ati rou contra os homens na varanda
do sobrado. — Grava bem essa cara, que aqui eu não
me escondo. Agora vol ta pra tua
Os ti ros cessaram e, do portão do
del egaci a e vai cui dar dos pormenor.
sobrado, sai u um homem com Carl a,
of egante e rendi da, em f rente ao corpo. Carl a, ai nda of egante e com o suor
As armas apontadas não i nti mi daram o escorrendo pel a testa, chutou a canel a
cal vo, que apontou com a arma para os do homem que a segurava e, num ref l exo,
parcei ros nas j anel as vi zi nhas. El i sa el e apertou o gati l ho e ati ngi u o braço
segui u o cano da arma. da i nvesti gadora.

— Acho que a del egada vai querer a El i sa l ogo ordenou a Gomes e Sal danha
companhei ra de vol ta. Segui nte, só um que socorressem a col ega. As armas nas
avi so pra tu entender quem está no j anel as sumi ram, assi m como o branco

62 Literatura Errante
cal vo. O cami nho até o hospi tal f oi corpo com qual quer coi sa.
l i gei ro e, enquanto Carl a era atendi da, — Mas os doi s tem a mesma tatuagem,
El i sa rodava na recepção com a ol ha.
i ndi gnação estampada no rosto marcado
pel o suor e o batom pedi ndo retoque. — Se parecem mesmo. Lembra um cupi do.
Ah, mas aqui só tem um tatuador, el e
O di a segui nte i ni ci ou-se com a tensão deve não saber f azer mui to desenho
da cabeça de El i sa sendo i nterrompi da di f erente.
pel o caf ezi nho do estagi ári o.
— Pesqui sa que i magem é essa.
— Hoj e está quente, acabei de f azer.
— Di sse Dani l o, enquanto col ocava a O estagi ári o vol tou à sua mesa com as
garraf a no bal cão do canto da sal a. f otos e a pesqui sa f oi i ntensa.
Retornou à sal a da del egada com um
— Quente está é mi nha cabeça, Tavares. i mpresso novo.
Não sei o que está acontecendo nessa
ci dade. — Del egada, vê se parece com essa que
eu i mpri mi ? Pel o que vi , pode ser um
— Cri mi nal i dade só aumenta. Nem ci dade cupi do mesmo. Mas esse que i mpri mi é um
pequena se l i vra mai s. deus da mi tol ogi a. Anteros.
— Não sei não. Pra mi m i sso é mai s do — Ah, só podi a ser.
que parece.
— Eu não conheci a esse.
— Como assi m?
— E você entende de mi tol ogi a,
— Esse pessoal não está sozi nho, Tavares?
Tavares.
— Ah, eu gostava de Percy J ackson na
— Ah, eu consegui no arqui vo al guns época de escol a.
bol eti ns pra você anal i sar, como pedi u
ontem. — Que i sso?

— Traga pra mi m, por f avor. — São séri es de l i vros sobre um


personagem semi deus que. . .
Durante duas horas o rel ógi o rodou ao
passo de observações dos bol eti ns, — Pode dei xar a expl i cação pra depoi s.
f otos e arqui vos de passagens. A Me f al a só do que achou agora.
quanti dade de f i chas e papei s sobre a — Anteros é o Deus da desi l usão,
mesa bagunçada ul trapassava as contas ordens, mani pul ação, amor correspondi do
de El i sa. Dani l o, a cada mei a hora, e não-correspondi do, da anti pati a, da
vol tava com mai s regi stros, e a aversão, que desune, separa, desagrega.
del egada estava quase encerrando a
— Di acho.
ati vi dade quando encontrou uma
si ngul ari dade entre doi s anti gos — El e é f i l ho de. . .
recl usos.
— Tavares, não preci sa dar a
— Tavares, que tatuagem é essa? enci cl opédi a toda. Só i sso aí j á me
acendeu uma l uz.
— Sei l á, esses bandi di nhos ri scam o

Literatura Errante 63
Folhetim

Atrás da Marca
por Gabri el Soares

Os di as passavam sem a certeza de al gum costume, com a garraf a de caf é chei a,


envol vi mento entre os f i os da meada que mas dessa vez trazi a também um pequeno
El i sa encontrara e tentava retrançar. As pacote nas mãos e col ocou em ci ma da
tardes na del egaci a não f azi am senti do. mesa de El i sa.
Procura-va al go que f i zesse uma l i gação
mai s concreta para que pudesse dar — O que é i sso, Tavares?
segmento a al go mai s estruturado.
— Seu Saul o. Me encontrou vi ndo pra cá
Os casos corri am e o arqui vo só enchi a e mandou te entregar.
de bol eti ns e i nquéri tos de casos de
si mpl es f al ta de cordi al i dade. A Abri u o pacote e vi u a cai xa de
ganânci a dos f azendei ros em mudar cercas chocol ates.
de l ugar, conf usões de anál i ses mí ni mas,
mas que caí am nos af azeres da del egada. — Ah, só o que me f al tava.

Dani l o entrou na sal a, como de — Acho que el e qui s agradar. Ontem a

64 Literatura Errante
— Não sei se i sso é o mai s certo a
senhora correu com el e daqui em duas pensar. Capaci dade a gente vê que a
f rases. senhora tem… a mesma garra que el e. Só
vai preci sar de mai s cal ma.
— Nada me ti ra da cabeça que el e está
meti do nessa l oucura toda. E eu vou — Quantos anos você tem, Tavares?
desco-bri r o que é.
— Vi nte e um, por quê?
— J á consegui u al go a mai s pra l i gar
os homens das tatuagens? — Nada. Só que… você está me aj udando
mai s que os i nvesti gadores.
— Nada. Vi rei de cabo a rabo as f i chas,
notí ci as. Se pel o menos eu pudesse. . . — — Ti ve com quem aprender… f oi um tempo
Ca-l ou-se e bai xou a cabeça, engol i ndo curto com o del egado Lucena, mas deu pra
um sol uço. sacar al gumas coi sas del e… e ai nda estou
aprendendo, com a conti nuação do traba-
— O que f oi , del egada? l ho del e. A senhora vai consegui r.

— Nada, Tavares. É que, só meu pai i a — Deus te ouça, Tavares. Agora j oga
poder me aj udar. esse chocol ate no l i xo e chama o doutor
Saul o pra mi m.
— É. O seu Rubem i a saber. El e conheci a
tudo desses margi nai s da ci dade. Al i era Doi s mi nutos depoi s, o estagi ári o
del egado de respei to. . . não que você não retornou.
sej a— Di sse, gaguej ando.
— Del egada, a secretári a desse que el e
— Eu entendi , Tavares. El e era mesmo. não está. Foi para uma reuni ão com o
Mas esse conheci mento todo teve um pref ei -to.
preço.
— Pref ei to? E que assunto el e tem pra
— É. . . E você está i ndo pel o mesmo tratar com o pref ei to?
cami nho.
— Al guma desconf i ança?
— E i sso é bom ou rui m?
— Puxa a f i cha do pref ei to agora.
— Depende. O bom é que é um cami nho
certo a segui r. . . o rui m é que o f i m não Sobre o Autor:
é o j usto, mas a gente j á sabe. Capi xaba natural de
Ecoporanga, e radi cado
— Esses caras são uns covardes. El e j á em Fei ra de Santana-BA;
estava pra se aposentar. . . estudante de Pedagogi a
apai xonado por café,
— Então vai ter que usar uma estratégi a cri ança, hi stóri a, arte
di f erente. e cul tura brasi l ei ra,
escreve desde cri ança.
— Você acha que eu consi go conti nuar o O gênero pol i ci al vem
l egado del e? sendo seu novo foco na
escri ta.

Literatura Errante 65
66 Literatura Errante
Literatura Errante 67
Folhetim

Capítulo III
por Guto Domi ngues

O F e r r e i r o a o v e r a p e ça d e a ço – Si m. – a r e sp o st a f o i se ca e
arcano, não qui s prol ongar a di sputa i nt e nci o na v a a ca ba r co m a co nv e r sa
verbal . Vi ra a razão se materi al i zar naquel e ponto. Percebendo que o mago
em seus pensament os: Al ém d o uso d e não pronunci ava mai s nad a, vi rou-se
uma e sp a d a f e i t a d a q ue l e t i p o d e para a bi g orna e começou a mart el ar
ma t e r i a l não se r p o ssí v e l pel a a adaga.
ma i o r i a d a s p e sso a s, o p e r f i l d o
usuá r i o e r a mui t o r e st r i t o . A p e na s – Ai nda não sei seu nome. – o mago
usuá r i o s de ma g i a t r e i na d o s em não l e r a a me nt e d o h o me m a e sse
e sg r i ma poderi am f a ze r uso dos ponto. Era uma mente densa, f echada,
p o d e r e s q ue a e sp a d a o f e r e ci a a o ne bul o sa . Pe r mi t i a a co muni ca ção
port ad or ou pouquí ssi mos g uerrei ros etérea, mas não l he dava ol hares mai s
i ni ci ados nas artes mági cas anti gas. p r o f und o s em me mó r i a s, sa be r e s,
Pe r f i l q ue uni sse e ssa s me d o s, d e se j o s. – Pr e t e nd e me
ca r a ct e r í st i ca s a nt a g ô ni ca s e m um contar? Sei que sabe o meu.
úni co i ndi ví duo era mui to raro. Esse
f ato tranqui l i zou-o. – Não. – monossi l ábi co, conti nuou a
martel ar.
– Co nt o co m sua a j ud a , e nt ão ? –
di sse o mago. – N ão q ue r o se u no me a nce st r a l .
Di ga apenas qual quer coi sa para eu me

68 Literatura Errante
– Você não cansa de perguntar?
ref eri r a você.
– Não cansari a se a sua mente f osse
– Si l as. f áci l d e l er. Mas a mag i a em você é
p o d e r o sa . N ão é a p e na s i nt ui t i v a .
– Si l as. – repeti u em ato f al ho. El a foi d e se nv o l v i d a , a mp l i a d a ,
cri ou raí zes em sua al ma. Você d eve
De i nst a nt e s em i nst a nt e s as p a sse a r e nt r e os mund o s co m
ma r t e l a d a s ce ssa v a m e a a d a g a e r a f aci l i dade.
i me r sa em á g ua fri a, e xp e l i nd o
i mpurezas do metal em brasa, da água – J á l he di sse que necromantes não
p a r a a f o r na l h a e d e l á p a r a a exi stem mai s.
bi gorna.
- Não é o que parece. Eu si nto que
A f o r j a e r a um l ug a r q ue nt e . está f ugi ndo de seu passado. De hora
F o r na l h a em al to fogo, vapores p a r a o ut r a se ca l o u. Co nco r d o u e m
ca usa d o s p e l a s i me r sõe s d o me t a l f orj ar a espad a com aço arcano, mas
i ncandescente. Um ambi ente i nóspi to, sabe que el a é i nút i l em mãos d e um
pouco convi d at i vo. Rud e d emai s para g ue r r e i r o . Sa be q ue a p e na s um ma g o
um homem com as qual i dades de Si l as. t r e i na d o na s a r t e s d e g ue r r a p o d e
A nt ô ni o e nt e nd i a a e sco l h a do control ar o poder desse aço.
f ei t i cei ro que est ava em sua f rent e
martel ando o aço. Dando f orma nova ao – Si m. Só um monge guerrei ro ou um
met al , poucas pessoas o procurari am guerrei ro consagrado. Isso são puras
al i . M a s o ut r a co i sa i nco mo d a v a l e nd a s e h i st ó r i a s p a r a e nt r e t e r
A nt ô ni o . O co nh e ci me nt o de cr i a nça s. M a s se d e se j a t a nt o uma
f o r j a d ur a , d e mo nst r a d o de f o r ma espada, f arei .
i mpar por Si l as, até aquel e momento.
– Sem nem cobrar um preço? Acredi to
Essa sabedori a anti ga não ti nha só q ue so me nt e co nco r d o u e m f a ze r p o r
a f unção d e cr i a r f e r r a me nt a s o u doi s moti vos: ver-se l i vre de mi m ou
a r ma s, a r ma d ur a s, e scud o s, e t c. por achar que a espada não encontrará
A l g uns p o uco s f e i t i ce i r o s a mão que a empunhe uti l i zando todos os
ut i l i za v a para i mbui r ma g i a a seus poderes.
obj et os pessoai s. A peça i mpreg nad a
de ma g i a se t o r na v a p o d e r o sa . Si l a s a ssust o u- se f r e nt e à
Al g umas vezes i mbat í vel , d epend end o perspi cáci a de Antôni o.
d o pod er e conheci ment o d o mag o que
a produzi a. N o d i á l o g o e t é r e o , o co r r i d o d i a s
a t r á s, Si l a s p e r scr ut o u áreas
– Pronto! Termi nei . – di sse Si l as, so mbr i a s da me nt e de A nt ô ni o .
o l h a nd o para adaga. – Agora é Descobri ra seus pl anos, moti vações e
engastar a empunhadura e entregar ao não q ue r i a f a ze r p a r t e d a q ui l o .
f uturo dono. Pe r ce be u a me nt e e xt r e ma me nt e
e st r a t e g i st a d o ma g o . O a l ca nce d e
– Em q ua l mo na st é r i o a p r e nd e u a se us poderes e q ua i s ma g i a s
arte de f orj ar? d o mi na v a . N ão i ma g i na v a q ue a i nd a

Literatura
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Errante
Errante
– Fei ti ços e magi as?
havi a coi sas que o surpreendessem. A
p e r g unt a t a l v e z f o sse co nst r uí d a – Nas l endas é assi m que f unci ona.
apenas por sorte. Não queri a al ongar
a co nv e r sa a l é m d o ne ce ssá r i o . Er a – Vo u l h e d e i xa r e m p a z. Qua nd o
mel hor dei xar cl aro o que pensava. posso vol t ar para ver a prod ução d a
l âmi na?
– J á q ue a cr e d i t o q ue não me
dei xará em paz. E j á que está cri ando – Se não t i v e r co mp r o mi sso p o sso
r a í ze s a q ui na a l d e i a , t e nh o q ue co me ça r a g o r a me smo . J á a ca be i a
d e i xa r a l g uma s co i sa s cl a r a s e nt r e adaga, como di sse.
nó s. F a ço o se r v i ço . O p r e ço é me
dei xar em paz. Não quero me meter em A nt ô ni o não co nse g ui a co mp r e e nd e r
seus i nteresses. Sei o que te moti va se o mo t i v o d a p r e ssa d e Si l a s e m
e j á l i sua s i nt e nçõe s. F a r e i a t e r mi na r a e sp a d a e r a v ê - l a e nf i m
e sp a d a , ma s não i mbui r e i ma g i a pronta ou mandá-l o embora. Teri a que
al g uma. El a será apenas um cond ut or a g ua r d a r e a v a l i a r a s r e a çõe s d e
de p o d e r e s, um ca na l i za d o r de Si l as.
f orças. Não f arei nad a, al ém d i sso.
Ou acei ta a mi nha proposta ou l eva o Ei s q ue o p r o ce sso se i ni ci a :
aço a outro que f aça. F o r na l h a a l i me nt a d a co m p e q ue na s
l a sca s de ma d e i r a se ca , q ue
A nt ô ni o não e sp e r a v a me no s, e r a r a p i d a me nt e se i nce nd i a v a m e
mui t o p r e v i sí v e l q ue Si l a s a ume nt a v a m as ch a ma s. O ca l o r
o f e r e ce sse a q ui l o co mo mo e d a d e a ume nt a v a co nf o r me a s ch a ma s se
t r o ca . Na verdade, e sp e r a v a a t é a l i me nt a v a m d a s l a sca s d e ma d e i r a .
mai s. Era mel hor acertar l ogo o trato Si l as trocara a água do vasi l hame do
com o f errei ro e d ei xar para t ent ar choque t érmi co. Preci sava d a ág ua o
out ras propost as para mai s t ard e. A mai s f ri a possí vel . Após a t roca d a
e sp a d a p r o nt a e r a ma i s i mp o r t a nt e á g ua , l i mp o u a bi g o r na e p e g o u um
q ue uma p e ça r e t a ng ul a r d e me t a l . mol d e para a l âmi na, t al vez usasse,
Mesmo esse met al possui nd o a ori g em t al vez não, mas g ost ava d e t er t ud o
ancest ral e mág i ca que ambos sabi am à mão . T ud o f e i t o co m a ce r i mô ni a
que l he atri buí am. ne ce ssá r i a p a r a a t a r e f a q ue se
segui ri a.
– Então, estamos combi nados. Fará a
e sp a d a co m o me t a l . T o d a v i a p o sso T e r mi na d o s os p r e p a r a t i v o s,
acompanhar a f ei tura? e st e nd e u a mão e p e d i u a p e ça d e
me t a l . I me d i a t a me nt e A nt ô ni o a
– Não vej o probl emas. Desde que não e nt r e g o u. Si l a s p e g o u a p e ça e a
tente i mbui r poderes ao aço. p r e nd e u a uma l o ng a t e na z. A
f e r r a me nt a f i co u p r e sa be m na
– Ah, mas que pena. . . Queri a tanto e xt r e mi d a d e à d i r e i t a d o o l h a r d e
uma espada f l amej ante. Si l as, na borda do retângul o de aço.
Com a mão esquerda – que estava l i vre
– N ão é a ssi m q ue f unci o na . Vo cê a g o r a q ue a t e na z p r e nd i a a p e ça –
teri a que domi nar certas técni cas. . . segurou a tenaz enquanto – com a mão

70 Literatura Errante
Qua nd o um v e r me l h o v i v o co me ço u a
di rei ta – enrol ava uma f i ta de couro se f ormar em pel o menos um quarto da
no mei o da f erramenta, onde havi a um extensão do metal , Si l as rapi damente
revest i ment o d e mad ei ra para i sol ar reti rou o artef ato da f ornal ha e com
o cal or, para que a pressão da l onga um ma l h o p e sa d o , d e sf e r i u g o l p e s
p i nça não ce d e sse . A ssi m f i ca r i a p o d e r o so s na p e ça . O ma l h o ,
ma i s f á ci l ma ni p ul a r . A p ó s e sse l evantado ao máxi mo que a di mensão de
preparo col ocou a out ra ext remi d ad e se u br a ço p e r mi t i a , era
d o ret âng ul o d e aço na f ornal ha. Se v i o l e nt a me nt e g o l p e a d o no a ço . A o
não f o sse pel os o bj e t o s usa d o s me no r e smo r e ce r da v e r me l h i d ão
pareci a o preparo de um churrasco. a r d e nt e a p e ça e r a a r r e me ssa d a a o
f ogo i mpi edoso da f ornal ha.
– A g o r a é a g ua r d a r o a ço f i ca r
i ncandescente. Só pode ser martel ado E i sso se repeti u. E se repeti u.
q ua nd o a co r v e r me l h a a p a r e ce r .
A nt e s d i sso , ma r t e l a r ca usa r á A o s p o uco s a p e ça se a l o ng a v a ,
f i ssuras na al ma da espada. ca st i g a d a pel as ch a ma s e pel os
gol pes de mal ho.
– Saberes ancestrai s. . .
Si l a s em uma sá d i ca v o l úp i a
– N ão co me ce co m e sp e cul a çõe s se m d e sf e r i nd o gol pes de ma l h o s,
senti do. sussur r a nd o p r e ce s a nt i g a s,
a l i me nt a nd o o f o g o , um f r e ne si d e
Antôni o entendera o recado e cal ou- ce r t o mo d o i mp r e ssi o na nt e , ma s q ue
se. o s d o i s, t a nt o o F e r r e i r o q ua nt o o
Mag o, sabi am que era port ad or d e um
A espera nem f oi tão l onga. O f ol e p e r i g o so e v i o l e nt o r e sul t a d o . A
i nj e t a v a o xi g ê ni o na s ch a ma s q ue a r ma q ue se r i a p r o d uzi d a , e m br e v e
r e v i g o r a d a s p e l o so p r o l a mbi a m e p o d e r i a d e sp e r t a r i nt e r e sse s ma i s
d a nça v a m so br e a sup e r f í ci e do v i o l e nt o s q ue o s f o r t e s g o l p e s d e
metal . Si l as.

La sca s se ca s de árvores Quando a l âmi na estava quase com um


ce nt e ná r i a s, o d e sp e j o d e a r d a me t r o d e co mp r i me nt o o ma l h o a o
a be r t ur a d o f o l e e a s p a l a v r a s ch o ca r - se co m a sup e r f í ci e a r d e nt e
sussurradas por Si l as que certamente quebrou. E um som como o bad al ar d e
eram uma prece ant i g a, acel eraram o mi l si nos ensurdeceu momentaneamente
cami nho que as chamas percorri am. Em mago e f errei ro.
si l ê nci o A nt ô ni o o bse r v a v a . Si l a s
não emi t i a pal avras aud í vei s, só os Atordoado, a i nd a se nt i nd o os
sussur r o s e co mo se a p r e se nça d o ef ei t os d o som t orment oso prod uzi d o
ma g o não l he f i ze sse d i f e r e nça pel o aço arcano, Si l as di sse:
cont i nuava a eng ord ar as chamas e a
a ci o na r o f o l e , se mp r e e m um me smo – É assi m que a real i dade materi al
r i t mo . Pa r e ci a uma d a nça é r o mp i d a . A p a r t i r d e a g o r a não
ri tual í sti ca. somos mai s donos de nossos desti nos.

Literatura
Literatura 71 71
Errante
Errante
Folhetim

Capítulo IV
por Guto Domi ngues
Os ouvi dos ai nda senti am o i mpacto das seri am de Antôni o. Si l as acredi tava que não
ondas sonoras produzi das pel a úl ti ma pancada haveri a mui tas pessoas capazes de i nvocar as
que o aço recebera. Si l as sabi a que aquel e forças domi nadas pel a espada. Esse pensamento
era o momento onde o aço se tornara arma de o fez conti nuar o servi ço. E queri a ver-se
doi s mundos. Tanto al ma e carne seri am l i vre o mai s rápi do possí vel daquel a vi si ta
rasgadas, pel a l âmi na fri a e azul ada do aço i ndesej ada.
arcano mol dado pel as vi gorosas pancadas
Não houve di ál ogo. Desde o som não natural
produzi das pel o mal ho bárbaro.
que rompera o tedi oso trabal ho, ni nguém ousou
O ferrei ro preci sari a conti nuar o trabal ho fal ar mai s nada. Uma notável e crescente
com novas sagrações murmuradas em bai xa voz, seri edade tomou conta de ambos. Cessaram as
pronunci adas em l í ngua anti ga, só ouvi da em i roni as, as pal avras ásperas, o tom
cl austros monásti cos. Pal avras com capaci dade bel i gerante. Cessou a di sputa. Só o desej o de
de i nvocar magi as i ntensas, com potenci al ver a espada termi nada tomava conta do
para destrui r rochas, monstros, ou o que a coração daquel es homens.
pessoa que a empunhasse qui sesse. Mas a
Si l as deu-se por sati sfei to em rel ação ao
grande val i a era a força etérea, aquel a capaz
compri mento da l âmi na e escol heu uma
de destroçar espí ri tos. O probl ema é que a
empunhadura para duas mãos. Prendeu a peça à
espada não faz di sti nção de quem mata. Isso
l âmi na e a testou. Fez movi mento para aval i ar
é i nfortúni o de quem a desfere sobre o al vo
o peso, a vel oci dade em que cortava o ar, a
nomeado. Em mãos di gnas fari a o bem, em mãos
l âmi na l onga era l eve, caracterí sti ca do aço
funestas o mal . Era i sso que i ncomodava o
que trabal hara, outra teri a mui to mai s peso.
ferrei ro. O acei te da tarefa de forj á-l a não
O ângul o da l âmi na afi ada como uma naval ha
i mpl i cava em escol her o desti no da arma.
promovi a uma vel oci dade mai or que outras
Mesmo arma de tal poder. As responsabi l i dades
espadas do mesmo mol de. Era uma arma mortal .

72 Literatura Errante
Reuni a as qual i dades de armas di sti ntas. O – Ai nda não sei , mas j á tomei as medi das
fi o de uma naval ha, a vel oci dade de uma necessári as.
rapi nei ra, a destrui ção de um montante e a
– Quai s?
l eveza de uma adaga. Em mãos trei nadas o
possui dor seri a prati camente i mbatí vel . De – Lhe contarei , mas não com el e por aqui .
todas as qual i dades, Si l as só não pensava se, Dei xe-o aí . Vamos para mi nha casa. Lá l he
as de ori gem arcana, seri am usadas, canal i zar conto.
energi a, pri nci pal mente.
Cecí l i a não permi ti a que Si l as entrasse em
Um som chamou a atenção de Si l as. Leves sua mente. Ti nha coi sas que não queri a
passos ao l onge. Leves, porém fi rmes. A noi te revel ar. E não conheci a a extensão do poder
era comum, sem outros sons para confundi r-l he mental de Si l as. Mesmo preparando defesas,
os ouvi dos, mas aquel es passos não o uma vez em sua mente, tudo era possí vel . E
enganari am nem em tempestade. Era el a, a dona Si l as como anti go homem de costumes
do armazém. monásti cos não achava que entrar na mente de
uma maga poderosa como Cecí l i a poderi a ser
Si l as i magi nava o moti vo da vi si ta i ncomum
sem consequênci as.
e vi a tempos nebul osos se aproxi mando.
– A espada é só uma peça boni ta e comum em
O som dos passos cresce em vol ume, embora
mãos que não sej am as de quem entenda o que
sem acel erar o ri tmo. E assi m que a mata
el a pode fazer. – di sse assi m que entraram na
permi te o vul to da mul her surge no cami nho
casa ao l ado da forj a.
que l evava à forj a.
– Si m. Mas ai nda há magos poderosos por aí .
Há uma troca de ol hares entre os homens.
E mui to ambi ci osos e abomi návei s. Não sei se
Antôni o tenta contato mental , mas é você fez bem em forj á-l a.
rechaçado. Si l as era uma mural ha. E naquel e
– El a só responderá a quem atender o
momento o ferrei ro se preocupava com outra
chamado.
coi sa.
Cecí l i a arregal ou os ol hos.
– Cheguei tarde. – di sse a mul her, chamada
Cecí l i a. – Quando senti o acúmul o de – Durante a forj a el a foi i mbuí da com fogo
qui ntessênci a demorei em senti r a ori gem. santo. As l ascas que usei para al i mentar a
Agora é tarde. J á está fei ta. fornal ha são de carval ho regado com sangue de
monges encl ausurados. Durante todo o tempo
Cecí l i a termi nou a frase com a voz
fi z as sagrações, só há uma pessoa que reúne
resi gnada, perdi da em pensamentos tentando
os atri butos para empunhá-l a e não ser
prever quem era o responsável por aquel a
quei mada pel a chama de Erethi r. Só quem
i rresponsável demanda. Vi rou-se para Antôni o
control a o fogo dos deuses pode usá-l a.
e, com um l eve mover de ol hos, fez fl utuar a
adaga termi nada há pouco frente aos ol hos de Cecí l i a cal ou-se. Ol hou nos ol hos de Si l as
Antôni o. Quando o forastei ro tentou se mexer e di sse, pausadamente:
não pode. Um campo de energi a i nvi sí vel o
– Não conte comi go.
manti nha i mobi l i zado. Nem fal ar podi a. Tão
forte era a magi a usada pel a mul her.
Sobre o Autor:
– Não o machuque, Cecí l i a. El e não nos fará
mal al gum. J á vascul hei a mente desse Vi ol oni sta,
i mbeci l . E suas habi l i dades em magi a são escri tor, ci néf i l o,
fracas. l ei tor compul si vo, fã
– Mas como el e chegou até aqui ? E como el e de Quadri nhos, Conan,
achou metal arcano? Star Wars, etc.
Escreve desde pequeno
– Aço.
al ém de ter passado os
– Que sej a. Como el e fez i sso? Vi r aqui e úl ti mos 35 anos com um
com esse pedaço de vi l eza? vi ol ão no col o.

Literatura
Literatura 73 73
Errante
Errante
Até que a Morte Nos Separe - Parte III
por Doug Nol eto
Os gri tos de Lessane rasgaram o que temperatura estava al ta, e a vel a ao l ado
deveri a ser uma manhã cal ma. Barnal d j á pareci a quente demai s. Tudo pareci a quente
estava acordado, poi s ti nha o hábi to de demai s. A vi são do quarto estava embaçada,
adi antar as taref as antes das pri mei ras gi rando como se a terra esti vesse f ora dos
l uzes da aurora. Era um homem com pressa. ei xos, e quando Barnal d entrou no quarto,
E, no momento em que o pei to de Lessane el a não o reconheceu. A voz del e chegou a
apertou, ti rando-l he todo o ar, el e estava el a como um sopro vi ndo de uma caverna
col ocando as al ças no burro. Os gri tos escura, trazendo as vozes das grotescas
ati ngi ram o crâni o del e como a grossa cri aturas que poderi am l á habi tar. El a
l âmi na de um machado cego, tonteando-o e tentou f ocal i zar a vi são, mas f oi i núti l ,
removendo-l he o chão. O cami nho que o e quanto mai s tentava, mai s desesperada
l evou até o quarto pareceu desaparecer. f i cava.
Quando vi u, j á estava l á dentro com a
Barnal d f oi até el a. Sentou-se na cama
adaga em punhos.
e pegou-a pel as mãos, tentando
El a estava na cama, aj oel hada, com as tranqui l i zá-l a. Nunca a havi a vi sto
mãos no pescoço que, à l uz das vel as, daquel a f orma e a expressão de horror em
pareci a roxo e com as vei as sal tadas. El e seu rosto era terrí vel . O coração de
sol tou a adaga no chão e f oi até el a. Barnal d pal pi tava no pei to. O vento gel ado
que entrava pel a j anel a entreaberta, que
— O que f oi , amor? Teve sonhos rui ns? outrora seri a agradável , agora pareci a
Mas el a não consegui a responder. Pareci a congel ante. Contudo, tudo i sso
estar submersa em um l ago e não consegui a desapareceu em uma pequena f ração de
respi rar. Uma dor aguda preenchi a todo o tempo, poi s quando a tocou, el a consegui u
corpo, rasgando-a de dentro para f ora. A sol tar o gri to mai s satâni co que aquel a

74 Literatura Errante
voz poderi a produzi r. conceber al go que pudesse transtorná-l a a
tal ponto.
Com um sal to, el e se af astou. Não sabi a
o que f azer. Não ti nha o que f azer. Tal vez Mas Garl of f estava al i , e Barnal d pedi u
as l ágri mas j á esti vessem escorrendo de para os Deuses daqui e de l á para que o
seus ol hos naquel e momento, mas el e não aj udassem a sal vá-l a.
poderi a di zer com certeza. Estava al i , a
El e f oi para f ora e sentou-se no batente
poucos passos da cama, af undado no mai s
da porta. O burro
puro desespero,
também estava l á,
quando uma pancada
e os gri tos vi ndo
vei o atrás de si .
do quarto pareci am
Foi um som al to e
tê-l o perturbado.
estourado. E então,
Barnal d percorreu
Barnal d soube que o
com os ol hos o
i nf erno havi a
cami nho da
chegado, poi s
estradi nha de
aquel e som só
terra bati da até
poderi a ter vi ndo da
as casas cem
porta. El e se
metros à f rente.
agachou, pronto
Ni nguém pareci a
para pegar a adaga,
sequer notar o que
porém, antes mesmo
estava
de se l evantar,
acontecendo al i ,
senti u uma mão em
mas o caval o
seu ombro.
branco de Garl of f
— Sai a daqui . estava parado bem
Agora! à f rente da porta
da cerca. Devi a
Era a voz do vel ho
estar gal opando
Garl of f . O caj ado
pel a regi ão quando
estava em uma das
ouvi u os gri tos de
mãos, e com a outra,
Lessane. Barnal d
aj udou Barnal d a se
não acredi tava em
l evantar. El e
coi nci dênci as,
estava vesti do com
mas agradeceu por
os mesmos panos de
aquel a.
sempre. A barba
l onga e desgrenhada O tempo
enf i ada no ci nto e arrastou-se com
um chapéu anti go e agoni ante
empoei rado estava l enti dão. Sentado
pendurado na no batente, ai nda
cabeça. podi a ouvi r os
gri tos de Lessane
A presença de
com i mpacto gutural atrás de si . Ouvi a,
Garl of f acal mou Barnal d. Mas só um pouco.
também, a voz carregada e suave de Garl of f
Geral mente, quando as coi sas i am por
ao f undo. Se el e di zi a al go naquel a l í ngua
cami nhos desconheci dos, era el e quem
ou em outra, Barnal d não sabi a. E também
possuí a as respostas. Barnal d não sabi a o
não se i mportava. Só queri a ver Lessane
que estava acontecendo e não consegui a
bem. Não sabi a o que seri a de sua vi da sem
i magi nar os horrores que se passavam
el a.
dentro de Lessane. El a era uma moça
saudável a mai or parte do tempo, e quase Porque para el e, sem el a, não exi sti a
nunca ti nha sonhos rui ns. Não consegui a vi da di gna de se vi ver.

Literatura Errante 75
LiteraturaErrante 75
Até que a Morte Nos Separe - Parte IV
por Doug Nol eto

Garl of f f oi ao encontro de Barnal d dar um j ei to.


al gum tempo depoi s. O sol j á estava se
erguendo atrás das montanhas enevoadas — Você sabe que exi ste mui to mai s do
quando el e se sentou ao l ado del e no que nossos ol hos podem ver. Eu j á te
batente. Fi caram em si l ênci o por al guns di sse i sso.
segundos até que el e di ssesse al guma
coi sa. — O que há com Lessane? El a vai
mel horar?
— Vocês ai nda bebem a água do poço,
não é? — di sse o vel ho. — Não sei — o vel ho ri scou uma pedra
e acendeu o cachi mbo. Baf orou al gumas
Barnal d não respondeu. Nas poucas vezes e conti nuou. — Fi z uma mi stura de
vezes em que Garl of f apareci a por ervas mági cas para trazê-l a paz por
aquel as terras, esse era um assunto que al gumas horas, mas não vai ser
sempre ti nham. El e i nsi sti a di zendo suf i ci ente.
para que parassem de beber aquel a água.
Di zi a que devi am f azer todo e qual quer — O que quer di zer com i sso?
sacri f í ci o necessári o para que bebessem
a Água do Cri stal , e embora Barnal d — Não di go o que não quero. O que
di ssesse que não ti nham di nhei ro para quero di zer é o que eu di sse. Não sei o
i sso, o vel ho, praguej ando, mandava-os que há com Lessane. A paz que trouxe a

76 Literatura Errante
di stânci a. Contudo, pareceu a el e que
el a não i rá durar mui to. É só i sso que estava percorrendo as Pontes Eternai s.
di sse e nada mai s. Só que dessa vez, não em di reção ao
Grande J ul gamento, e, si m, ao i nf erno
— Odei o quando f az i sso — di sse de f ogo. A certeza de que sua mente não
Barnal d. — Sej a di reto, Garl of f . O que poderi a suportar o que havi a l ogo
quero saber é se el a i rá vi ver ou depoi s daquel a porta era l atente dentro
morrer. del e. O que poderi a ter aconteci do
desde o anoi tecer de um di a perf ei to,
— Sempre sou di reto, f i l ho. Se é i sso até o amanhecer de um di a di aból i co?
que quer saber, me f aça a pergunta. Barnal d não podi a conceber a i dei a de
que sua queri da Lessane, a dona dos
— El a i rá vi ver? seus pensamentos, pudesse estar próxi ma
de parti r. Garl of f havi a di to que el a
— Não — o homem se l evantou. Ti rou o não suportari a a enf ermi dade, f osse
chapéu da cabeça e permi ti u que os qual f osse.
l ongos cabel os brancos caí ssem sobre os
ombros. El e ol hou para Barnal d com A questão era: Barnal d poderi a
cal ma e sereni dade, mas, l á no f undo, suportá-l a?
dei xou cl aro a tri steza que o
transbordava. — Fi z o que pude. Agora El e abri u a porta. O chei ro l á dentro
vá l á, f i l ho. Acho que poderão era horrí vel , e, em tão poucas horas,
conversar por al gum tempo. Mas esse j á f edi a como os antros médi cos da
pequeno monstro é rápi do e i mpl acável . ci dade. Dei tada na cama estava Lessane.
J á está dentro del a há tempos. Esse é, O l ençol estava ensanguentado, assi m
i nf el i zmente, o úl ti mo avi so antes que como seu vesti do e boca, que era de onde
a destrua por dentro. Me perdoe. escorri a o sangue devi do as tosses. O
cabel o havi a assumi do cores de pal ha
Garl of f j á havi a f al ado sobre os seca, como se pudessem i nf l amar-se a
pequenos monstros. Segundo el e, havi a qual quer i nstante. Os ol hos, que
cri aturas i nvi sí vei s por toda parte. No outrora trazi am i ni gual ável bel eza,
ar, na água, na terra, em qual quer agora eram f undos e escuros. Opacos e
l ugar. El e di zi a que era por causa sem vi da. A pel e, ah, a doce e suave
dessas cri aturas que as pessoas f i cavam pel e de Lessane, que um di a trouxera
gri padas, com di arrei a, ou desenvol vi am i menso prazer ao toque de Barnal d,
qual quer outra doença. Barnal d não estava agora de uma cor ci nzenta,
acredi tava. O que vi a j á era o morta, áspera.
suf i ci ente para uma vi da de horror. Não
preci sava de mai s ameaças, mui to menos El e não podi a ver aqui l o, sequer
as i nvi sí vei s. consegui a estar no mesmo l ocal . Queri a
mui to i r até el a e abraçá-l a, mas
El e entrou na casa. dei tada na cama, tão f rági l como uma
f l or sol i tári a em um campo devastado,
O cami nho que separava Barnal d, na pareci a que quebrari a ao menor toque.
f rente da casa, de Lessane, no , não era Barnal d ti nha medo de i r até el a e tocá-
l ongo. Era al go em torno de ci nco l a, prometer a el a que tudo dari a
metros. Sei s ou sete passos de certo, poi s senti a em seu í nti mo que

Literatura Errante 77
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roubado a capaci dade da f al a. Havi a se
não seri a verdade. E menti r para tornado um boneco de pano i núti l ,
Lessane era um de seus mai s terrí vei s daquel es que os mal di tos f i l hotes de
horrores. berwol g estraçal havam e j ogavam de um
l ado para o outro a bel prazer.
— Venha, Barnal d, por f avor, dei xe-me
vê-l o. — Ah, Barnal d, como f ui f el i z com você
— el a conti nuou. — Di ga a meus pai s e
El e l utou contra o i nsti nto de ol har mi nha i rmã que os amo como o céu que nos
em vol ta, poi s embora soubesse que f ora protege do al ém. Mande-l hes um bei j o e
Lessane quem di ssera aqui l o, ti nha um abraço e di ga, por f avor, que
certeza de que a voz não pertenci a a estarei esperando por el es. Queri do,
el a. Estava quebradi ça e rasgada. agora, por f avor, dê-me um bei j o de
Provável que pel as tosses i ncessantes despedi da.
que tanto a machucaram por dentro.
— Não! Nunca! — el e se af astou. Sol tou
El e cami nhou l entamente até o l ei to. a mão de Lessane. — Não i rei me despedi r
Foi com mui ta di f i cul dade que el a, de você, Lessane. J amai s.
enf i m, abri u os ol hos. Tremendo, ergueu
uma das mãos até el e, que a segurou de — Barnal d, por f avor, não f aça i sso
pronti dão. Apertou com del i cadeza os comi go — agora as tosses f oram ai nda
dedos e a pal ma de Lessane, senti ndo a mai s f ortes, quando retornou a f al ar, a
pel e f ri a sob os dedos. El a abri u a voz era um sopro. — Lembre-se da nossa
boca, tentando di zer al go, mas a voz promessa: até que a morte nos separe.
l he f al tou. El a f echou a boca e Agora, dê-me um bei j o e me dei xe i r.
respi rou f undo, e então, consegui u
di zer: Barnal d andou de um l ado para o outro.
El e não podi a dei xá-l a i r. El e não
— Sei o que está pensando, queri do. E queri a dei xá-l a i r. Si m, el e real mente
sei que deve estar sendo dol oroso me havi a f ei to a promessa. Ambos havi am
ver assi m. Mas, por f avor, me dei xe i r. f ei to. Mas, pel as Trevas e pel a Luz,
Eu não suportari a a cami nhada pel as quando é que el e podi a ter i magi nado
Pontes sabendo que o dei xei aqui em dor que as coi sas seri am daquel a f orma?
e sof ri mento. Por f avor, meu amor, não Não, el e não estava pronto para dei xá-
f i que assi m. É uma hora que chega para l a i r. E el a não deveri a estar também!
todos. Reze por mi m. Peça por mi m.
Todos os Deuses, os daqui e os de l á, — Eu não posso, Lessane, me perdoe.
i rão ouvi -l o. Por f avor, queri do, por
f avor. — Não, Barnal d. Não f aça i sso
comi go. . . pel o amor de todos os deuses,
Quando parou de f al ar, entrou em um dos daqui e dos de l á, não f aça i sso
acesso de tosse mol hada. Cuspi u bol as comi go. . .
grossas de sangue para o l ado, f azendo
uma careta de dor em cada movi mento. Mas el e f ez.
Barnal d podi a apenas ol har, j á que
f al ar estava f ora de cogi tação. O El a f echou os ol hos. E dessa vez, não
demôni o zombetei ro pareci a ter-l he os abri u nunca mai s

78 Literatura Errante
Literatura Errante 79
Até que a Morte Nos Separe - Parte V
por Doug Nol eto
Garl of f subi u no caval o e f oi até a casa — Vel ho Garl of f , ou é merda ou novi dade.
de Tosi er. Cami nhou até a porta de madei ra Não me l embro a úl ti ma vez em que apareceu
e, com o caj ado, deu suas três bati das. por aparecer.
Quem atendeu f oi Venri s, a i rmã mai s nova
— Sempre apareço aparecendo — di sse o
de Lessane. El a estava dentro de um
vel ho. — Como poderi a aparecer sem
vesti do l ongo com os ombros a mostra. Ao
aparecer?
bater os ol hos em Garl of f , um sorri so
brotou em seus l ábi os, e el a pul ou nos — Di ga l á, homem. O que quer?
braços del e para um abraço no vel ho. El e
— Menri s está em casa? Temo não trazer
devol veu o abraço tão bem quanto pôde,
boas notí ci as.
contudo, não ti nha o menor i nteresse em
anunci ar a morte da i rmã para el a. Pedi u Tosi er buf ou, sol tando f umaças vermel has
por Tosi er, e esperou do l ado de f ora. A para ci ma com o cachi mbo. Foi um mi sto
moça entrou na casa, aos pul i nhos, ani mada entre ri sada e ansi edade. Cl aro que não
por ver o mago depoi s de tantos anos. era boa notí ci a. Quando é que f oi ?
Quando Tosi er apareceu, não havi a sorri so — Está si m. Tá dei tada com os pés pra
no rosto, embora esti vesse f el i z pel a ci ma. A vel ha não aguenta mai s mui ta
vi si ta. coi sa. Di ga, o que há de errado?
Tosi er era pai . E pai s sabem. Sempre — Pode me acompanhar?
sabem.
Cami nharam j untos até o f i m da rua.

80 Literatura Errante
Tosi er senti a o coração apertar a cada mago depoi s de tantos anos. Quando Tosi er
passo que davam em di reção à casa de apareceu, não havi a sorri so no rosto,
Barnal d. El e não havi a senti do uma dor embora esti vesse f el i z pel a vi si ta.
f orte hoj e mai s cedo? Cl aro que si m, e el e
Tosi er era pai . E pai s sabem. Sempre
sabi a mui to bem o que aquel a dor
sabem.
si gni f i cava. Quando sua mãe havi a morri do
uns bons anos atrás, el e senti ra aquel a — Vel ho Garl of f , ou é merda ou novi dade.
dor. Seu pai , no mesmo di a, di ssera senti - Não me l embro a úl ti ma vez em que apareceu
l a de i gual f orma. El e tentou i gnorar, por aparecer.
di zendo para si mesmo que era i magi nação
— Sempre apareço aparecendo — di sse o
del e e que, na i dade em que estava, dores
vel ho. — Como poderi a aparecer sem
eram tão comuns quanto nuvens no céu.
aparecer?
Contudo, pouco antes do chá, Menri s
di ssera senti r a mesma coi sa. — Di ga l á, homem. O que quer?

Isso f oi o equi val ente ao trovão em uma — Menri s está em casa? Temo não trazer
noi te de nuvens escuras. A tempestade boas notí ci as.
estava próxi ma. A tempestade, meu vel ho, Tosi er buf ou, sol tando f umaças vermel has
havi a chegado. para ci ma com o cachi mbo. Foi um mi sto
Quando passaram pel a cerqui nha de entre ri sada e ansi edade. Cl aro que não
madei ra, Garl of f teve que aj udar Tosi er a era boa notí ci a. Quando é que f oi ?
compl etar o cami nho. Abri ram a porta da — Está si m. Tá dei tada com os pés pra
casa e passaram por um Barnal d sentado à ci ma. A vel ha não aguenta mai s mui ta
mesa em prantos. Total mente entregue à coi sa. Di ga, o que há de errado?
l oucura do l uto. Foram para o quarto.
Lessane estava l á, tão morta quanto antes. — Pode me acompanhar?
Tosi er chorou. Garl of f também. Cami nharam j untos até o f i m da rua.
Quem di ri a que aquel e seri a só o i ní ci o Tosi er senti a o coração apertar a cada
da tempestade? passo que davam em di reção à casa de
Barnal d. El e não havi a senti do uma dor
Enterraram Lessane na manhã segui nte. f orte hoj e mai s cedo? Cl aro que si m, e el e
Todos estavam l á. Menri s, Garl of f subi u no sabi a mui to bem o que aquel a dor
caval o e f oi até a casa de Tosi er. si gni f i cava. Quando sua mãe havi a morri do
Cami nhou até a porta de madei ra e, com o uns bons anos atrás, el e senti ra aquel a
caj ado, deu suas três bati das. Quem dor. Seu pai , no mesmo di a, di ssera senti -
atendeu f oi Venri s, a i rmã mai s nova de l a de i gual f orma. El e tentou i gnorar,
Lessane. El a estava dentro de um vesti do di zendo para si mesmo que era i magi nação
l ongo com os ombros a mostra. Ao bater os del e e que, na i dade em que estava, dores
ol hos em Garl of f , um sorri so brotou em eram tão comuns quanto nuvens no céu.
seus l ábi os, e el a pul ou nos braços del e Contudo, pouco antes do chá, Menri s
para um abraço no vel ho. El e devol veu o di ssera senti r a mesma coi sa.
abraço tão bem quanto pôde, contudo, não
ti nha o menor i nteresse em anunci ar a Isso f oi o equi val ente ao trovão em uma
morte da i rmã para el a. Pedi u por Tosi er, noi te de nuvens escuras. A tempestade
e esperou do l ado de f ora. A moça entrou estava próxi ma. A tempestade, meu vel ho,
na casa, aos pul i nhos, ani mada por ver o havi a chegado.

Literatura Errante 81
LiteraturaErrante 81
Quando passaram pel a cerqui nha de Barnal d e o abraçou f orte, permi ti ndo-se
madei ra, Garl of f teve que aj udar Tosi er a chorar no ombro del e e dando o própri o
compl etar o cami nho. Abri ram a porta da como conf orto. Fi caram al i , abraçados por
casa e passaram por um Barnal d sentado à mi nutos ou horas, ni nguém contou e ni nguém
mesa em prantos. Total mente entregue à se i mportou. Aquel e não era um di a para se
l oucura do l uto. Foram para o quarto. i mportar com detal hes.
Lessane estava l á, tão morta quanto antes.
O sol subi u e desceu, e as nuvens
Tosi er chorou. Garl of f também.
f echaram o céu. Menri s f oi a pri mei ra a i r
Quem di ri a que aquel e seri a só o i ní ci o embora. Logo depoi s f oi Tosi er. O mei o da
da tempestade? noi te chegou e só restavam Barnal d e
Venri s abraçados e Garl of f ao l ado do
Enterraram Lessane na manhã segui nte.
burro. El e o havi a al i mentado, j á que
Todos estavam l á. Menri s, Venri s, Garl of f ,
Barnal d não pareci a capaz de qual quer
Barnal d e o burro. Os outros moradores,
outra ati vi dade que não f osse o própri o
vi zi nhos não tão próxi mos assi m, não
l uto. Resol veu também sol tar o caval o. J á
passaram perto da casa de Barnal d durante
estava parado havi a mui to tempo e el e
todo o di a. Di zi am por al i que havi a si do
gostava de correr. Contudo, quando Garl of f
uma doença di aból i ca, e ni nguém queri a
o sol tou, o caval o deu apenas uma mei a
arri scar contrai r qual quer merda que
vol ta e f i cou no mesmo l ugar. Era como se
aquel e cadáver pudesse carregar.
a dor f osse democráti ca e comparti l hada
Acenderam vel as e as apagaram. J ogaram a por todos.
terra por ci ma e f echaram o túmul o.
Venri s, que já estava cansada e
Barnal d estava encostado na parede da
dol ori da, perguntou à Barnal d se el e
cabana, com os braços cruzados e um
queri a que el a passasse a noi te al i . El e
cachi mbo pendurado na boca. Não havi a mai s
di sse que não preci sava e que, na
l ágri ma para escorrer, nem gri tos para
real i dade, pref eri a f i car sozi nho. Quando
gri tar. Era um homem vazi o e sozi nho,
di sse i sso, ol hou também para Garl of f ,
entregue a sorte e ao azar. Sem âni mo pel a
dando um si nal de que também servi ri a para
vi da e com o desej o pel a morte. Ah, el e
el e. Então, Venri s e Garl of f se f oram
nunca desej ou tanto a morte. Um bei j o del a
sai ndo pel a cerqui nha de madei ra em
seri a uma benção para aquel a al ma af l i ta.
di reção da casa de Tosi er.
Venri s notou i sso. Desvenci l hou-se dos
As pri mei ras gotas de chuva caí ram pouco
braços do pai e cami nhou até o cunhado. O
depoi s. Barnal d não se i mportou com i sso
vento era f ri o, carregado com o chei ro do
também, j á que a água da chuva podi a
horror e da perda. Isso não f oi capaz de
aj udá-l o a esquecer um pouco as l ágri mas
i mpedi -l a. Parou em f rente de Barnal d,
que vol taram a escorrer. O coração ai nda
esperando ser notada. Cl aro que não f oi .
bati a? El e não sabi a. Ah, doce Lessane,
Aquel es ol hos não estavam vi rados para
por que o havi a dei xado? Tal vez esse f osse
f ora, e, si m, para dentro. O mundo externo
o úni co questi onamento que a mente
havi a se resumi do às sombras cruéi s e
perturbada do homem pudesse f azer.
i ntransponí vei s. Nada poderi a al cançá-l o.
Porém, e i sso el e só descobri ri a dal i uma
Nada, a não ser Venri s. El a nunca f oi
semana, el a não o havi a dei xado. Cl aro que
mui to boa da cabeça.
não. El e não havi a se despedi do. E i sso. . .
El a atravessou a pesada armadura de bom, poderi a si gni f i car mui tas coi sas.

82 Literatura Errante
enri s, Garl of f , Barnal d e o burro. Os Barnal d não pareci a capaz de qual quer
outros moradores, vi zi nhos não tão outra ati vi dade que não f osse o própri o
próxi mos assi m, não passaram perto da casa l uto. Resol veu também sol tar o caval o. J á
de Barnal d durante todo o di a. Di zi am por estava parado havi a mui to tempo e el e
al i que havi a si do uma doença di aból i ca, e gostava de correr. Contudo, quando Garl of f
ni nguém queri a arri scar contrai r qual quer o sol tou, o caval o deu apenas uma mei a
merda que aquel e cadáver pudesse carregar. vol ta e f i cou no mesmo l ugar. Era como se
a dor f osse democráti ca e comparti l hada
Acenderam vel as e as apagaram. J ogaram a
por todos.
terra por ci ma e f echaram o túmul o.
Barnal d estava encostado na parede da Venri s, que já estava cansada e
cabana, com os braços cruzados e um dol ori da, perguntou à Barnal d se el e
cachi mbo pendurado na boca. Não havi a mai s queri a que el a passasse a noi te al i . El e
l ágri ma para escorrer, nem gri tos para di sse que não preci sava e que, na
gri tar. Era um homem vazi o e sozi nho, real i dade, pref eri a f i car sozi nho. Quando
entregue a sorte e ao azar. Sem âni mo pel a di sse i sso, ol hou também para Garl of f ,
vi da e com o desej o pel a morte. Ah, el e dando um si nal de que também servi ri a para
nunca desej ou tanto a morte. Um bei j o del a el e. Então, Venri s e Garl of f se f oram
seri a uma benção para aquel a al ma af l i ta. sai ndo pel a cerqui nha de madei ra em
di reção da casa de Tosi er.
Venri s notou i sso. Desvenci l hou-se dos
braços do pai e cami nhou até o cunhado. O As pri mei ras gotas de chuva caí ram pouco
vento era f ri o, carregado com o chei ro do depoi s. Barnal d não se i mportou com i sso
horror e da perda. Isso não f oi capaz de também, j á que a água da chuva podi a
i mpedi -l a. Parou em f rente de Barnal d, aj udá-l o a esquecer um pouco as l ágri mas
esperando ser notada. Cl aro que não f oi . que vol taram a escorrer. O coração ai nda
Aquel es ol hos não estavam vi rados para bati a? El e não sabi a. Ah, doce Lessane,
f ora, e, si m, para dentro. O mundo externo por que o havi a dei xado? Tal vez esse f osse
havi a se resumi do às sombras cruéi s e o úni co questi onamento que a mente
i ntransponí vei s. Nada poderi a al cançá-l o. perturbada do homem pudesse f azer.

Nada, a não ser Venri s. El a nunca f oi Porém, e i sso el e só descobri ri a dal i uma
mui to boa da cabeça. semana, el a não o havi a dei xado. Cl aro que
não. El e não havi a se despedi do. E i sso. . .
El a atravessou a pesada armadura de
bom, poderi a si gni f i car mui tas coi sas.
Barnal d e o abraçou f orte, permi ti ndo-se
chorar no ombro del e e dando o própri o
como conf orto. Fi caram al i , abraçados por Sobre o Autor:
mi nutos ou horas, ni nguém contou e ni nguém Dougl as Nol eto,
se i mportou. Aquel e não era um di a para se nasci do e cri ado em
i mportar com detal hes. Iguape, SP, é autor
de romances e contos
O sol subi u e desceu, e as nuvens de suspense e terror
f echaram o céu. Menri s f oi a pri mei ra a i r psi col ógi co.
embora. Logo depoi s f oi Tosi er. O mei o da Atual mente mora em
noi te chegou e só restavam Barnal d e Curi ti ba e escreve,
qui nzenal mente, para
Venri s abraçados e Garl of f ao l ado do
a Revi sta Perpétua,
burro. El e o havi a al i mentado, j á que sua casa l i terári a.

Literatura Errante 83
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84 Literatura Errante
Sobre o Autor:
Al berto Al pi no,
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São Paul o, Pl ayboy e
autor da ti ra Samanta,
publ i cada em vári os
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