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16/10/2020 O formato das histórias segundo Kurt Vonnegut | Cris Lasaitis

Anatomia da Vertigem
O formato das histórias segundo Kurt Vonnegut fevereiro, 19 -
2014
Você já leu Kurt Vonnegut?

Se não leu, é uma das experiências literárias que valem a pena na vida. Procure Matadouro 5, Café da
Manhã dos Campeões, ou qualquer outra obra dele e você descobrirá o que é um autor que sabe
trabalhar com sarcasmo a ponto de fazer você se deliciar de rir na cara da tragédia. Eu adoro.

Vonnegut propôs uma tese em antropologia segundo a qual se você plotar em um gráfico os altos e
baixos da trajetória de um personagem, obterá o formato de uma história, ou seja, um perfil visual do
arco da trama. Isso é útil para entender e analisar as histórias, compará-las, estudá-las. E eu diria que,
para um escritor, entender esse perfil é utilíssimo.

Como funciona?

Imagine um plano cartesiano. Há um eixo vertical, que chamaremos de “medidor de felicidade” onde
situamos dois extremos: Ventura no polo positivo (+) e Danação no polo negativo (-). Do meio desse
eixo parte uma reta perpendicular que vamos chamar de CF, ou Começo -> Fim (mas poderia ser
Farofa, o nome não importa).

fonte: h p://visual.ly/kurt-vonnegut-shapes-stories-0?utm_source=visually_embed

Partindo do eixo Medidor de Felicidade, vamos traçar a trajetória do protagonista de uma história, de
acordo com os altos e baixos de sua jornada. Na média dos filmes sessão-da-tarde, o protagonista
começa sua história um pouquinho acima do zero, digamos, levemente feliz. Então, em algum
momento, ele se depara com um problema – perdeu o emprego, a falta de dinheiro o faz dar calote no
aluguel, então ele precisa deixar a casa e ir morar de favor nos fundos de um armazém insalubre, é
obrigado a fazer bicos horríveis para sobreviver… – veja a linha de felicidade do protagonista seguir
uma curva descendente, cruzar do eixo positivo para o negativo.

As coisas podem ficar pior? Claro que podem! – A mãe dele está gravemente doente e precisando de
uma cirurgia que a família não tem dinheiro para pagar, ele precisa esconder da família sua situação
miserável e ao mesmo tempo ajudar a pagar as despesas do hospital. Quando ele acha que tem o

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montante de dinheiro suficiente para resolver sua situação, é assaltado no caminho do banco, sem
testemunhas. Quando vai reclamar com os policiais, os tiras não acreditam que aquele cara
desmazelado tinha dinheiro, acham que está tentando dar um golpe e resolvem dar nele um chá de
canseira na cadeira da delegacia. Mas eis que uma mulher desconhecida começa a gritar no corredor
apontando em sua direção: “foi ele! eu reconheço, foi ele!”. E assim, identificado como o autor de um
crime que ele não sabe que cometeu, nosso protagonista acaba o dia atrás das grades. – Você
consegue ver a linha de felicidade despencar até o fundo do poço? Dali em diante nosso protagonista
terá de se virar, contar com a sorte ou a cooperação de amigos para fazer seu inferno astral se reverter
e sua linha de felicidade escalar rumo a uma vida melhor – e nada disso é garantia de que ele não
sofrerá outras turbulências em sua trajetória até um final feliz, em algum lugar do polo positivo, ou
danar-se de vez, terminar como um indigente ou morto, no polo negativo (se bem que nesse caso não
seria roteiro de um filme sessão-da-tarde).

Esse caminho de montanha-russa pode ser traçado para estudarmos o perfil de várias histórias. Se
você fizer o exercício, verá que é possível identificar perfis típicos de cada gênero de obras: comédias
românticas, filmes de terror, sessão-da-tarde, tragédias gregas, novela mexicana, contos de fadas
antigos, contos de fadas modernos etc. etc. Há histórias que têm muitos altos e baixos (gênero
telenovela, por exemplo, pela própria extensão do roteiro), há histórias que vão do mal ao pior, há
histórias sem-saída nas quais todos os esforços do personagem redundam em fracasso… São muitos
exemplos:

Você pode acessar a íntegra do infográfico neste site: h p://visual.ly/kurt-vonnegut-shapes-stories-0?


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Podemos dizer, no entanto, que de certo modo todas as histórias que fazem sucesso na nossa cultura
têm uma passagem pelo polo negativo: convencionamos que o tipo de história em que o personagem
está sempre feliz e não encontra problemas não é uma história no estrito senso. Porque para as
histórias só-felizes falta um combustível essencial para a nossa emoção: o conflito.

A partir da ideia do Vonnegut, extrapolo que é o conflito que esculpe o formato de uma história. E
saber administrar o conflito é essencial para se conseguir escrever uma história emocionante. Você
entende de música? Já ouviu falar em tensão e resolução? Eu não entendo porcaria nenhuma de
música, mas gosto da comparação. A música trabalha com nossas emoções, conduzindo-nos em
direção a um acúmulo das tensões que desembocam em resolução, e esse movimento nos dá uma
sensação de gozo musical. O mesmo serve para o conjunto de situações que mobilizam nossa emoção

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durante a fruição de uma história. Não digo que a metáfora musical é perfeita, pois no caso da
literatura nem toda complicação precisa ter solução, nem todo conflito se resolve. Mas o conflito está
ali, gerando tensão, recrutando nossas angústias, prazeres e revoltas em um movimento harmônico
de tensões emocionais que o escritor precisa saber orquestrar.

Um dos problemas mais comuns que encontro nas histórias dos clientes que contratam meu serviço
de leitura crítica é o potencial inexplorado do conflito ou da tensão emocional.

Emoção é chocolate, é orgasmo, é catnip, é cocaína – não importa qual sua droga preferida – é
essencial para uma história viciante. O ingrediente chave é tensão emocional: talhar picos de tensão e
resoluções, complicações e relaxamentos, viradas, surpresas. Cabe ao autor examinar atentamente
cada uma de suas cenas – estudá-las – e descobrir de que modo pode extrair o máximo de emoção, ou
injetar emoções novas e inesperadas. Quando não faz isso, a história fica aquele café-com-leite, não
chove nem molha, não cativa nem dá repulsa, nem-nem.

Repare que conflito não é sinônimo de briga ou ação externa. Conflitos podem ser dramas internos e
sutis, podem ser dilemas e emoções desencontradas revolvendo o íntimo de um personagem que se
mantém estoico enquanto finge que nada está lhe acontecendo. Tensão emocional é o poder do
conflito gerar emoção no leitor.

Além dos picos e resoluções, tem esse elemento diferente que eu citei: surpresa. O que faz uma
história surpreendente?

Esse é outro problema que aponto em um grande número de leituras críticas que faço: o enredo que
não quebra com expectativas, que não surpreende.

A vida cotidiana é uma imersão na cultura do clichê. Clichês são ideias batidas que reverberam um
estado de coisas presente, sem ameaçar o status quo, sem chocar ou simplesmente sem quebrar as
expectativas. As telenovelas brasileiras, os filmes sessão-da-tarde, a maior parte das comédias
românticas e dos filmes de aventura são sustentados por clichês. Você sabe que o herói vai vencer no
final, que o casal de mocinhos vai ficar junto, que o vilão vai ter que se ferrar de algum modo. Na
novela, você sabe que a protagonista não pode morrer (e se morrer ela vai deixar uma filha que é a
cara dela para dar continuidade à sua trajetória), você sabe que o viciado em drogas vai ter que se
reabilitar para deixar uma mensagem educativa… Você sabe exatamente quem vai ser punido, quem
vai ser premiado e quem vai ficar bem depois de passar por um purgatório. Porque quebrar essas
expectativas vai resultar num enorme bafafá que irá estremecer as revistas de fofoca e as conversas na
fila do supermercado, e alimentar uma onda de ressentimentos contra o autor da novela, pobre
criatura.

A presença ou não de clichês diz muito sobre o tipo de obra que o autor produz: se é uma que vai
alimentar uma cultura de rotina e ser passageira, ou se será uma obra realmente original, de
vanguarda, que surpreende expectativas, faz pensar, projeta um novo ponto de vista sobre a vida, o
universo e tudo mais.

Na minha opinião pessoal, os clichês são úteis como placa de advertência do que não fazer. Ou, pelo
contrário, algo para abraçar e brincar e se fazer uma bonita paródia.

Há formas sutis de trabalhar com as expectativas do leitor no enredo: criar uma circunstância (nosso
protagonista está fugindo do matador, entra num túnel correndo, ofegando, arrastando uma perna
e… ei! há uma luz no fim do túnel…) que gera expectativa por uma solução x (ele alcança a luz no fim
do túnel e sai), mas que o autor pode trabalhar para se resolver de formas mais inesperadas – pode
ser também uma solução y (ele para no meio do túnel, procura e descobre ali uma porta escondida
que leva a outra saída: o esgoto!), pode ser a saída “criativa fácil” (de repente ele acorda e descobre
que era tudo um sonho) ou uma saída tipo chute astronômico (correndo pelo túnel, ele tropeça num
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artefato desconhecido que é, na verdade, uma sonda alienígena que o projeta imediatamente para um
planeta na galáxia de Andrômeda). Não é necessário dizer que um escritor que tende a empregar
soluções do tipo x não está exercendo um trabalho que possamos chamar de criativo.

E o que seria abraçar o clichê para produzir uma paródia?

Vou citar um dos melhores exemplos que me ocorrem. No filme A Dama na Água (assista!) existe um
personagem secundário muito intrigante: um crítico de cinema. O próprio protagonista chega a
consultá-lo em algumas ocasiões para entender melhor o desenrolar da história. Em determinado
momento, lá para o meio do filme, no clímax de um suspense, o crítico de cinema se vê num corredor
escuro e ele compartilha com o espectador a sua cadeia de raciocínio: – “sou um personagem
secundário em uma cena de perigo, droga, estou ferrado!” – e nesse momento um monstro surge e o
devora.

No fundo, todo mundo espera que os personagens secundários sejam sacrificados pelo progresso de
um enredo de aventura, suspense ou terror, até porque se nenhum personagem morrer será difícil
acreditar que o risco apresentado é verdadeiro. O cinema convencionou que personagens secundários
foram feitos para morrer! No exemplo que eu citei, a norma não foi quebrada, os papéis não foram
subvertidos e o personagem secundário foi sacrificado pela trama. A graça é que isso foi feito de
forma escancarada, analítica, o personagem obrigou o espectador a pensar sobre o destino triste dos
personagens secundários. Existiu uma crítica na adoção do clichê: paródia.

Se vale um resumo de tudo isso para o escritor interessado: repare no formato das histórias, explore
os conflitos no seu enredo, estude a tensão emocional das cenas, desenhe a narrativa de modo a evitar
clichês ou então encontre um modo de usá-los de maneira inteligente.

Acabo de perceber que me alonguei demais naquilo que pretendia ser uma simples postagem (já
sinto que começa aqui uma segunda edição do Guia de Primeiros Socorros para o Escritor Iniciante).

Que mais posso dizer?

Se você tiver interesse em estudar mais a fundo (e digo realmente a fundo) a construção de cenas e
enredos emocionantes, uma dica boa é o livro do Robert Mckee – STORY: Substância, Estrutura, Estilo
e Os Princípios da Escrita de Roteiro. É um livro que trabalha sobre roteiros de cinema, mas cujas lições
podem facilmente ser extrapoladas para a literatura. Não é uma leitura rápida, é um livro exigente e
bastante aprofundado, mas maravilhoso para quem se interessa pelo assunto.

E tem o vídeo do Kurt Vonnegut explicando sua tese sobre o formato das histórias, que você pode
youtubizar aqui. Vejam! É divertido.

Publicado em Uncategorized | Etiquetado escrever, Kurt Vonnegut, literatura |

4 comentários

Porra, Cris! Que texto foda! Perdi até a compostura…

por Camila Fernandes fevereiro, 21 - 2014 at 9:09 pm


Responder
obrigada, chuchu! ^_^

por cristinalasaitis fevereiro, 22 - 2014 at 3:30 am

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