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Rónai Pál
* Budapeste
1907
Dom Casmurro, de Machado de Assis, foi lido em francês - seu primeiro livro brasileiro. “Uma literatura que tinha romancistas
daquele porte não podia deixar de interessar-me.”
Meu primeiro livro brasileiro [em português] foi uma Antologia de poetas paulistas. (...) As dificuldades começavam
pelo título, pois o Wörterbuch de Luísa Ey, naturalmente, não continha a palavra paulista.
Se não cheguei a entender a maioria dos poemas, adivinhei o sentido de alguns e acabei traduzindo um poemeto de
Correia Júnior, que publiquei numa revista. Ao reler a minha versão, alguns anos mais tarde, já aqui no Brasil, descobri
humilhado um enorme contrassenso. O poeta falava da rede na qual descansava a aguardar os sonhos; pois eu, que
nunca tinha visto semelhante objeto, julguei tratar-se de uma imagem poética e pus no texto húngaro “a rede dos
sonhos tecida pela imaginação”.
Uma dessas traduções caiu, por acaso,
nas mãos do então cônsul do Brasil em Budapeste, que me chamou, me deu um volume de Bilac, outro de Vicente de
Carvalho e três números antigos do Correio da Manhã.
A este jornal mandei um recorte da “primeira poesia brasileira vertida para o húngaro”. Nunca recebi resposta, mas
um dia chegou-me um envelope volumoso coberto de selos exóticos e cheio dos poemas, ainda inéditos, de um jovem
poeta carioca, o qual, depois de ter lido no Correio um tópico a respeito de minha esquisita mania, me julgara a
pessoa mais idônea para emitir a primeira opinião acerca de suas composições clandestinas.
Essa mensagem foi seguida de outras, escritas por outros leitores do jornal, todos poetas. Daí a pouco recebia
regularmente farta correspondência do Brasil: cartas com versos datilografados ou recortados de jornais, revistas,
livros.
ignoravam totalmente os brasileirismos. No “Acalanto do seringueiro”, de Mário de Andrade, o uirapuru só podia ser
pássaro. Mas quanto tempo não levei para atinar que o cabra resistente do mesmo poema não designava bicho, mas
homem.
O escritor Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto era secretário da Legação do Brasil em Haia. Rónai escreveu-lhe uma carta
pedindo obras em português; o diplomata respondeu e enviou livros. Acabaram tornando-se amigos - seu “primeiro amigo
brasileiro”, que viria a ser fundamental no processo de obtenção do visto brasileiro.
(...) que significava a palavra Nordeste? Foi necessária uma longa carta de Ribeiro Couto (então cônsul na Holanda)
para dar-me uma ideia aproximativa do complexo sentido geográfico, antropológico, sociológico e, sobretudo,
poético, dessa denominação. (...) Tive menos sorte com um jovem poeta esquerdista em cujos poemas encontrara
inúmeras alusões aos morros cariocas. Pensando que eu não entendesse a palavra, respondeu à minha consulta com
uma lista de sinônimos: colina, outeiro etc. Só depois de nova troca de cartas cheguei a entender que, contrariamente
ao que se dava na minha cidade, onde os morros, cobertos de luxuosos palacetes, só abrigavam gente rica, no Rio eles
eram sinônimos de favelas, isto é, “conjuntos de habitações populares toscamente construídas e desprovidas de
recursos higiênicos”.
A publicação em jornais e revistas de algumas dessas traduções de poesias brasileiras motivou episódios curiosos.
Numa das minhas aulas de latim, por exemplo, um aluno me pediu, no meio da expectativa zombeteira de seus
colegas, que lhe explicasse um estranho poema lido por ele na véspera e pôs-se a recitar “No meio do caminho”, de
Carlos Drummond de Andrade. Embora não gostasse de interromper as minhas aulas, dessa vez não resisti à tentação
e citei outros versos do poeta. Falei da iconoclastia necessária da poesia moderna, da salutar reação ao “poético”
estereotipado, do valor profundo das sensações primitivas e virgens; mostrei como as exigências do lirismo e da
lógica são diferentes; insisti sobre o poder emocional do elemento grotesco; disse da importância da colaboração do
leitor com o poeta. A explicação transformara-se, nessa altura, em animada conversa, e por fim meus alunos
concordaram comigo em que cada época tinha a sua expressão literária, diversa das anteriores. Chegados a esse
resultado, pudemos voltar à leitura de Horácio. Já então os meus discípulos leram com interesse muito maior a ode
em que o poeta romano, considerado até então por muitos deles um versificador de lugares-comuns, se desculpava
da ousadia revolucionária com que introduzira na literatura latina formas e expressões “nunca antes divulgadas”.
O aparecimento das traduções num volume intitulado Mensagem do
Brasil foi acolhido pela crítica com o interesse que o momento permitia
(era agosto de 1939). Pela primeira vez na Europa Central liam-se versos
brasileiros e se podia entrever a existência no Brasil, até então só
conhecido como produtor de café, de uma civilização digna de estudo e
mesmo de admiração. O crítico Jorge Bálint – que mais tarde os nazistas
haviam de assassinar – deu a seu artigo este título: “O Brasil chegou-se
para mais perto”.
Foi essa, realmente, a minha impressão durante três dias. No quarto dia,
os tanques alemães cruzaram a fronteira da Polônia. Uma cortina de
fumaça passou a esconder o Brasil, a poesia, a alegria de viver.
Rónai foi preso pelos nazistas e enviado a um campo de trabalhos forçados.
Durante uma licença do campo, conversou com Otávio Fialho e recebeu a
notícia de que o governo brasileiro o convidaria “para emigrar”.
Passei seis semanas em Lisboa sem que conseguisse entender patavina da língua falada. Pegava do jornal e
compreendia-o perfeitamente; o porteiro do hotel ou o garçom do café diziam três palavras, e eu me via outra vez no
mato sem cachorro.
costumava tomar diariamente determinado bonde e saltar no mesmo ponto, onde o mesmo condutor lançava o
mesmo grito. Sentava-me perto do homem, apurava os ouvidos para entendê-lo, tudo em vão. (...) na véspera da
minha partida, veio a revelação. O condutor gritava “Restauradores”; apenas, suprimia três das vogais da palavra (...).
Cheguei uns 20 dias depois. Que alívio logo de entrada! O Brasil recebia-me com uma linguagem clara, sem mistérios.
Ainda não desembarcara, e já não perdia nenhuma das palavras do carregador, que, em compensação, perdeu uma
das minhas malas. Entendi igualmente o funcionário da alfândega. O deslumbramento continuou na rua, no primeiro
táxi, no hotel. O idioma que eu aprendera em Budapeste era mesmo o português!
no Brasil
Curso Básico de Latim (até 2013 era o título mais vendido no Brasil)
Escola de Tradutores
A Arte de Traduzir
O homem que aprendeu o Brasil