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Gmail - A arte da ficção — Entrevista com Roberto Calasso 04/03/2024 09:13

Pedro Carné <pedrohpcarne@gmail.com>

A arte da ficção — Entrevista com Roberto Calasso


1 mensagem

Editora Âyiné <info@ayine.com.br> 1 de março de 2024 às 09:59


Responder a: Editora Âyiné <info@ayine.com.br>
Para: pedrohpcarne@gmail.com

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Roberto Calasso em Pyrgos, Grécia, 1960.

Roberto Calasso é uma instituição literária. Por quarenta anos dirigiu a Adelphi, a
editora de maior prestígio da Itália; no mesmo período, publicou doze livros de sua
autoria, incluindo As núpcias de Cadmo e Harmonia, best‑seller internacional sobre o
mito grego. Em um país onde os intelectuais gostam de se queixar de que a cultura
literária foi posta de lado, Calasso passou a representar um ideal perdido: um escritor
que se dedica a temas esotéricos, colecionador de livros, tradutor de Nietzsche e Karl
Kraus — e editor responsável pela publicação de quase noventa livros por ano,
abrangendo todos os campos, da ciência à poética, com uma lista de ficção que vai de
Nabokov e Borges a Kundera e Bolaño.

No último janeiro, apesar de uma greve nos transportes e um terremoto matinal,


encontrei Calasso sentado à sua mesa na sede da Adelphi, em Milão, ignorando
meticulosamente um velho telefone, que ele deixa tocar uma dúzia de vezes antes de
atendê‑lo. Na primeira tarde, traçamos um plano de conversa para os dias por vir. Na
manhã seguinte, demos início à entrevista em sua casa, um apartamento sóbrio e
elegante no centro histórico da cidade, onde está abrigada uma parte de sua famosa
coleção de livros, que inclui primeiras edições de Spinoza e Giordano Bruno e os 922
números da revista de Karl Kraus, Die Fackel.

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Tanto em inglês quanto em italiano, Calasso se expressa com extrema precisão e com
uma generosidade comovente. Apesar da reputação de ser abstraído e ameaçadoramente
inteligente, ele se revela acessível, afável, até engraçado. Lê romances e ensaios
rapidamente a trabalho e lentamente por prazer, faz notas metódicas sobre quase tudo (é
capaz de sacar um caderno de notas de seu casaco a qualquer momento e anotar alguma
coisa) e sua memória prodigiosa sobre toda sorte de assunto é quase discernível no
movimento rápido de seus olhos.

Certa discussão se impôs sobre como classificar esta entrevista, uma vez que a
produção de Calasso não se encaixa facilmente nas categorias tradicionais. Seu único
romance — L’Impuro Folle (O tolo impuro) — é também uma obra de erudição, uma
visão assombrosa do famoso caso Schreber, no qual Freud baseou sua teoria da
paranoia. Em 1983 veio à lume o ainda menos classificável La Rovina di Kasch (A
ruína de Kasch). Numa resenha elogiosa do livro, Italo Calvino escreveu que a obra
tratava de duas coisas: em primeiro lugar, Talleyrand; em segundo, tudo o mais.
O «tudo o mais» de Calasso cobria particularmente as estruturas da narração e as
origens do mundo moderno. Em 1988, publicou As núpcias de Cadmo e Harmonia, que
traça uma visão pluralista e polifônica do mito grego e segue sendo sua obra mais
popular. Sobre o livro, Gore Vidal comentou: «Não sei dizer se Roberto Calasso é ou
não um gênio, mas sei que As núpcias de Cadmo e Harmonia é uma obra perfeita como
nenhuma outra». Oito anos mais tarde, Calasso publicou Ka, um apanhado pessoal do
mito indiano.

Seus três livros seguintes tratavam de temas notadamente modernos: Franz Kafka (K.),
Tiepolo (Il rosa Tiepolo) e, mais recentemente, A folie Baudelaire, uma meditação
sobre a Paris de meados do século xix e a modernidade. Em 2010 publicou O ardor,
sobre a civilização védica e o sacrifício. Publicou também uma série de ensaios: Os
quarenta e nove degraus; A literatura e os deuses, suas Oxford Weidenfeld Lectures
sobre o imagismo pagão; e La follia che viene dalle Ninfe (A loucura que vem das
ninfas), coleção de ensaios variados que vão das ninfas à Rita Hayworth.

Críticos e admiradores já descreveram Calasso como um «neognóstico», um mestre do


saber secreto. O próprio autor admite nutrir certa fascinação pelo «desconhecido» e por
nossas transações com ele — ou nossa indiferença. Podemos não mais olhar para o
mundo em termos místicos ou míticos, mas, escreve Calasso em As núpcias de Cadmo
e Harmonia, «a verdade é que são os mitos que estão aí, esperando para nos despertar e
ser vistos por nós, como uma árvore que espera o momento de saudar nossos olhos
recém‑abertos».

ENTREVISTADOR
Você sonhava em ser escritor quando era jovem?

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CALASSO
Comecei a escrever minhas memórias quando tinha doze anos. A primeira frase falava
sobre o som de um bonde, que mudava com a chegada do verão. Dizia: «L’estate la
sentivo arrivare dal viale». Viale significa «avenida». Morávamos em uma larga
avenida. Agora é uma espécie de rodovia, mas à época havia tílias maravilhosas, e o
bonde passava ali pelo meio. À noite eu o ouvia disparando na nossa direção — número
dezenove. O livro cobre minha infância entre os quatro e os sete anos de idade.

ENTREVISTADOR
Você nasceu em Florença.

CALASSO
Sim, em 1941, no meio da guerra. Provavelmente o ano mais desesperador da história
da Europa, com os nazistas em Paris ainda pensando que venceriam.

ENTREVISTADOR
O que seu pai fez durante a guerra?

CALASSO
Meu pai era professor de História do Direito na Universidade de Florença e era
conhecido por ser antifascista. Em 1944, o filósofo Giovanni Gentile foi assassinado.
Gentile era um filósofo importante, mas, infelizmente, estava bastante envolvido com
os fascistas. Foi morto em frente a uma villa perto de Florença por dois guerrilheiros.
Em represália, três professores presentes numa lista especial de antifascistas,
procurados pelo governo, foram presos e condenados à morte. Um deles era meu pai.
Florença encontrava‑se sob o jugo de um dos mais ferozes chefes das milícias fascistas
— seu nome era Carità. Acontece que minha família, em especial minha família pelo
lado materno, tinha conexões com Gentile. Eram amigos próximos. Então dois filhos de
Gentile se dirigiram imediatamente à polícia para convencê‑los a não matar esses três
homens. Foi um ato de grande generosidade.

ENTREVISTADOR
Funcionou?

CALASSO
Os fascistas anunciaram que, se algo mais acontecesse por obra dos guerrilheiros, os
três prisioneiros seriam fuzilados. Eles permaneceram presos por um mês, pensando
toda noite que poderiam ser executados no dia seguinte. No fim, foram soltos, graças ao
cônsul da Alemanha, um homem excepcional chamado Gerhard Wolf. Ele conhecia um
dos prisioneiros que estavam com meu pai — Bianchi Bandinelli, eminente erudito de
arte grega e romana. E Wolf lembrou que, quando Hitler visitou Florença em 1938, ele
foi ao Uffizi. O homem escolhido para acompanhá‑lo foi Bianchi Bandinelli. Hitler
ficou bastante entusiasmado com esse guia e lembrava dele. Então Wolf informou
Berlim que Bandinelli seria morto, e isso foi decisivo. Os fascistas liberaram os três
homens.

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Depois da libertação deles, meu pai, naturalmente, precisou desaparecer, e nós também.
O perigo era que nos tomassem como reféns. Por certo tempo, uma mulher muito
corajosa nos escondeu em seu sótão na Via Cavour, bem no centro de Florença. Minhas
lembranças mais vagas, mais antigas, são dessa época. Eu tinha três anos. Dormia em
um colchão no chão e lembro de tentar escalar até uma janela, pois ouvimos tiros na
rua. Mas minhas primeiras memórias precisas são de uma villa em San Domenico
Fiesole, perto de Florença, onde ficamos mais tarde, ainda durante a guerra. Lembro
onde ficava a limonaia e a glicínia que cobria uma sacada em ruínas.

ENTREVISTADOR
Depois da guerra, vocês voltaram para Florença?

CALASSO
Sim, ficamos em Florença até 1954. Depois nos mudamos para Roma, pois meu pai
aceitou um cargo de professor e mais tarde se tornou o reitor de sua faculdade. Minha
mãe escreveu sua tese de doutorado sobre uma das Moralia, de Plutarco, e mais tarde
trabalhou nas traduções de Píndaro feitas por Hölderlin. Mas, embora fosse muito
talentosa em seu campo de estudos, ela preferiu cuidar de seus três filhos.

ENTREVISTADOR
Quais suas lembranças mais preciosas de Florença?

CALASSO
Meu melhor amigo era filho de um médico que nutria uma grande paixão por Wagner.
Podíamos ir ao Teatro Comunale todos os domingos, pois ele tinha três lugares para
assistir à orquestra e nos levava. Era a época dos grandes regentes. Lembro que, no meu
primeiro concerto, o regente era Hermann Scherchen, uma lenda. Mais tarde, Bruno
Walter, Mitropoulos, Fricsay e tantos outros. Os grandes pianistas também, Benedetti
Michelangeli, Backhaus, Fischer, Kempff, Gieseking.

ENTREVISTADOR
Você tinha acesso a livros?

CALASSO
A casa era repleta de livros, sobretudo as fontes primárias com as quais meu pai
costumava trabalhar — textos de teoria do Direito publicados entre os
séculos xvi e vxiii. Eram fólios bem impressionantes, muitos deles, e a maioria em
latim. O mero fato de vê‑los por ali, com seus títulos e autores obscuros, foi muito mais
útil para mim do que ler muitos outros livros mais tarde. Nos fins de semana, eu
costumava ir para a casa do meu avô. Era professor de Filosofia na Universidade de
Florença. Foi também o fundador de uma editora, La Nuova Italia, que existe até hoje.
Em seu catálogo se encontra muito Hegel e alguns dos grandes eruditos clássicos.

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Marlon Brando em On the waterfront, 1954 © Columbia Pictures / Divulgação.

ENTREVISTADOR
Você gostava de morar em Roma?

CALASSO
Eu amava Roma. À época eu tinha certa mania por cinema — ia ao cinema uma ou
duas vezes por dia, em vez de fazer meu dever de casa. Era empolgante ir àqueles
auditórios grandes, escuros e esfumaçados no centro da cidade. Eu nutria uma
verdadeira paixão por Marlon Brando, que me fascinava como ator e como uma espécie
de mutante — quando ele surgiu, parecia um novo espécime antropológico. E também
amavas os filmes. Sabia todos de cor. Soa cômico hoje, mas assisti a On the
Waterfront pelo menos sete vezes. Todos os gêneros de Hollywood me seduziam, cada
um a seu próprio modo. Por essa época, também escrevi um roteiro baseado em Lord
Jim, que eu amava.

ENTREVISTADOR
Quais são suas lembranças do colegial?

CALASSO

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Tive uma professora soberba de grego e latim. Uma mulher terrivelmente vivaz,
inteligente e rápida chamada Maria di Porto.

ENTREVISTADOR
Você já estava interessado na Grécia antiga?

CALASSO
Entre muitas outras coisas. Quando eu tinha doze anos, conheci um homem que viria a
se tornar meu grande amigo na vida. Infelizmente, ele morreu certo tempo atrás. Era o
leitor mais admirável que conheci — seu julgamento sobre os livros era perfeito. Seu
nome era Enzo Turolla. A folie Baudelaire é dedicado a ele. Era um homem
maravilhoso, e eu o conheci, veja só, em um campo de futebol em Dolomitas, durante
as férias. Ele era dez anos mais velho do que eu, mas nos demos bem de imediato. Ele
me ouviu dizer que o que Croce havia escrito sobre Baudelaire não era tão bom.
Começamos a conversar e nunca paramos.

ENTREVISTADOR
Era um intelectual de profissão?

CALASSO
Um pouco como aqueles professores de Oxford que publicam meia dúzia de artigos ao
longo da vida. Lecionou por muitos anos na Universidade de Pádua. Sua família tinha
uma casa muito charmosa em Veneza, e eu costumava passar longas temporadas por lá.
Passeávamos conversando até às quatro da manhã. Quando nos conhecemos, ele andava
mergulhado na obra de Proust.

ENTREVISTADOR
Uma paixão que ele transferiu para você?

CALASSO
Sim, a Recherche tinha acabado de ser publicada em três volumes na Pléiade francesa, e
foi o que pedi como presente de Natal. Proust se tornou um grande amor, e ainda hoje é
um dos escritores para o qual eu volto com frequência.

ENTREVISTADOR
Qual foi o tema do seu doutorado?

CALASSO
A teoria dos hieróglifos em Sir Thomas Browne — na minha opinião, a melhor prosa
inglesa do século xvii. Borges o amava — era um de seus autores favoritos. E era
também um dos favoritos do meu orientador, Mario Praz.

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«Os hieróglifos — a ideia de uma


linguagem feita de imagens —
conectam‑se com toda a minha obra. Por
muito tempo essa linguagem foi
considerada mais importante do que a
linguagem feita de palavras. Certos
escritores ou eruditos (…) acreditavam
que os hieróglifos eram uma língua
secreta. Isso foi o começo de muitas
coisas para mim.»

ENTREVISTADOR
O que o atraiu em Browne?

CALASSO
Tudo. Ele era um grande escritor. Uma espécie de Montaigne inglês de menor estatura,
mas esotérico. Os hieróglifos — a ideia de uma linguagem feita de imagens —
conectam‑se com toda a minha obra. Por muito tempo essa linguagem foi considerada
mais importante do que a linguagem feita de palavras. Certos escritores ou eruditos,
como Thomas Browne, acreditavam que os hieróglifos eram uma língua secreta. Isso
foi o começo de muitas coisas para mim. O doutorado também foi um ótimo pretexto
para ir a Londres. Manhãs na Biblioteca Britânica e tardes no Instituto Warburg. Ou o
contrário. Uma vida ideal. Eram os anos sessenta, o começo dos Beatles e de tantas
outras coisas. Naturalmente, adiei o fim da minha tese tanto quanto pude. No fim,
escrevi o texto final em menos de um mês, fumando haxixe todas as noites. Eu tinha
alguns amigos americanos em Roma nessa época, especialistas em todo tipo de droga.
Uma coisa deveras chocante, pensando agora.

ENTREVISTADOR
E você já trabalhava na Adelphi?

CALASSO
Sim, os primeiros livros da Adelphi apareceram no fim de 1963. Roberto Bazlen, o
homem que concebeu o programa original da Adelphi, também morava em Roma,

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então eu o via com frequência.

«Nunca escrevi um livro do começo ao


fim(…). É sempre um mosaico, por
assim dizer, (…). Também tenho
milhares de cartões Bristol. Uso‑os para
notas detalhadas sobre os livros que li, e
também para notas mais gerais. Chamo
isso de ‘o material’. É tudo que pode ser
útil um dia. Às vezes esses cartões
contém fragmentos dos meus livros
futuros.»

ENTREVISTADOR
Então você trabalhou na Adelphi desde o começo?

CALASSO
Desde o meu aniversário de 21 anos, em 1962. Foi nesse dia que Bazlen me falou dessa
nova editora onde poderíamos publicar os livros de que realmente gostávamos. Ainda
não tinha sequer um nome. Os livros no meu escritório na Adelphi são o que resta da
grande e preciosa biblioteca que ele tinha — era a biblioteca de um homem que
comprou os romances de Kafka e Joyce quando foram lançados, pois esses eram os
jovens escritores de sua época. Foi ele quem de fato descobriu Svevo, por exemplo. Ele
pediu que seu amigo Montale lesse esse escritor totalmente obscuro.

ENTREVISTADOR
Bazlen o ajudou a navegar o mundo das letras na sua juventude?

CALASSO
Bazlen era um grande mestre taoísta. Ele me ensinou mais do que qualquer outra
pessoa, sem me ensinar nada. Era até contra escrever, não achava que devêssemos
necessariamente escrever. Achava que precisávamos tentar, de alguma

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forma, ser — «Antes as pessoas nasciam vivas e, aos poucos, morriam. Agora
nascemos mortos e temos de, aos poucos, começar a viver». Em 1965, Bazlen morreu, e
a Adelphi teve sua primeira grande crise financeira. Mas conseguimos sobreviver. Em
1968, compreendi que eu tinha de mudar para Milão e me tornei oficialmente o diretor
editorial em 1971. A partir de então, sempre fiz as mesmas coisas — ler, escolher e
preparar livros.

ENTREVISTADOR
É uma paixão sua.

CALASSO
Sempre. Para mim, era algo absolutamente natural. Tão natural quanto escrever.

ENTREVISTADOR
Você escreve no computador?

CALASSO
Escrevo com esta caneta. Sempre escrevi com uma caneta‑tinteiro. Sempre por extenso.
Por muitos anos copiei o texto final em uma Lettera 22. Agora eu tenho três Lettera
22s. Uma é a minha, a outra é a de Bazlen, e a terceira é de Brodsky, com teclado
cirílico. Éramos muito próximos. É um tesouro para mim.

Bristol cards.

ENTREVISTADOR
Qual a cor da sua tinta?

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CALASSO
Geralmente, preto. Vermelho para correções. Depois entrego as páginas para minha
assistente, Federica, e ela as transcreve no computador.

ENTREVISTADOR
Você faz novas correções?

CALASSO
Pode não haver outras correções, ou correções infinitas. Nunca escrevi um livro do
começo ao fim, exceto talvez L’Impuro Folle. É sempre um mosaico, por assim dizer,
em que escrevo a página 80, 30, 315, em qualquer ordem. E nunca sei onde será o final
do livro que estou escrevendo. Acontece o mesmo com todas as minhas obras. Também
tenho milhares de cartões Bristol. Uso‑os para notas detalhadas sobre os livros que li, e
também para notas mais gerais. Chamo isso de «o material». É tudo que pode ser útil
um dia. Às vezes esses cartões contém fragmentos dos meus livros futuros.

ENTREVISTADOR
Você nunca escreve no computador?

CALASSO
Nunca. Uso o computador para outras coisas — internet, leitura. Há um número imenso
de livros que foram digitalizados pelo Google, um tesouro do qual me valho todos os
dias.

ENTREVISTADOR
Você tem um ritual diário?

CALASSO
Pela manhã tento me dissociar da editora. Prefiro simplesmente escrever, trabalhar em
meus livros. Depois, por volta das 15h30, vou para a Adelphi e fico por lá até às 19h.
Bem, na verdade, é assim que as coisas deveriam ser, mas há imprevistos quase todos
os dias. Todas as manhãs me telefonam, ou eu mesmo ligo para alguém, e‑mails
chegam, de modo que nunca me sinto totalmente apartado da editora. Felizmente, tenho
colaboradores muito inteligentes, pessoas com quem me dou muito bem, e nós não
temos aquelas reuniões intermináveis, que são a tortura da vida editorial. Não posso
reclamar. Fico muito feliz que as coisas funcionem assim. Para uma editora que a essa
altura publica de oitenta a noventa títulos por ano, isso é indispensável.
Na sexta, antes de você chegar, tivemos um daqueles rituais conhecidos como «reunião
de vendas». Tive de falar sobre 28 livros por cerca de três minutos, para que por sua
vez nossos oito vendedores fossem falar por trinta segundos para os livreiros sobre os
mesmos livros. É um tanto aflitivo.

«Bazlen (…) me ensinou mais


do que qualquer outra pessoa,
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sem me ensinar nada.


Era até contra escrever,
não achava que devêssemos
necessariamente escrever.
Achava que precisávamos
tentar, de alguma forma, ser»

ENTREVISTADOR
O e‑mail afetou sua escrita e sua vida intelectual?

CALASSO
Afetou muito minha vida como editor, pois eu me valia dos atrasos nos correios e já
não posso contar com isso. Os agentes literários agora nos torturam com pdfs e nos dão
apenas 36 horas para decidir. No passado, podia‑se levar dois ou três meses,
tranquilamente. Agora você recebe múltiplas submissões, dúzias de coisas para ler ao
mesmo tempo, manuscritos muitas vezes de autores praticamente desconhecidos. E às
vezes as melhores coisas estão ali.

ENTREVISTADOR
Como você veio a escrever seu primeiro — e, até agora, único — romance, L’Impuro
Folle, cujo protagonista é Schreber, juiz alemão cujo caso serviu de base para a teoria
da paranoia, de Freud?

CALASSO
Sempre me interessei pela Psicanálise. Um dia eu estava em Londres em um sebo e
encontrei uma cópia das memórias de Schreber, numa tradução inglesa. Fiquei curioso,
pois eu tinha lido o ensaio de Freud sobre Schreber, em que Freud tomava aquelas
memórias como base. Então comecei a ler, e era um espanto, um livro fenomenalmente
poderoso. Schreber, ex‑juiz, foi enviado para o hospício e publicou, de seu próprio
bolso, as memórias aterradoras de suas visões e de seu tratamento ali, nas mãos de
psiquiatras renomados. O livro, claro, representou uma grande vergonha para os
parentes, que destruíram todas as cópias que conseguiram encontrar.

ENTREVISTADOR
Mas você tem uma cópia ali mesmo, na sua biblioteca.

CALASSO

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É uma das poucas cópias que sobreviveram. Seguindo por essa parte da minha
biblioteca, podemos gastar muitas horas, pois cada livro tem sua história. Há alguns
livros inesperados. Veja este, por exemplo — lembra os livros da Adelphi, não? O
design é de Aubrey Beardsley, uma brochura publicitária para um editor inglês, feita em
1896. Foi nela que nos inspiramos para a nossa série mais aclamada, a Biblioteca
Adelphi. E este é o primeiro livro que Kafka publicou, Betrachtung. Eram oitocentas
cópias. Em uma de suas cartas, ele conta que visitou uma livraria para ver se alguém
tinha comprado o livro e descobre que, das onze cópias vendidas, apenas uma havia
sido comprada por outra pessoa que não ele.

Um design de Aubrey Beardsley, de 1895. Reprodução.

ENTREVISTADOR
Você tinha 33 anos quando publicou L’Impuro Folle. Foi seu primeiro livro?

CALASSO
Sim. Eu já havia traduzido Ecce Homo, seguido de um ensaio muito longo sobre
Nietzsche, uma espécie de livro, que agora é parte de Os quarenta e nove degraus. Eu
escrevia em revistas também. Então introduzi Karl Kraus e traduzi três livros de
aforismos dele. Kraus foi a primeira grande mente da mídia. Mas era terrivelmente
difícil traduzi‑lo. Veja, aqui estão todos os números da Die Fackel, a revista que ele

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escreveu praticamente sozinho por 37 anos.

ENTREVISTADOR
Seu primeiro ensaio discorreu sobre Adorno, que você conheceu. Como chegou a
conhecê‑lo?

CALASSO
Foi na casa de Elena Croce, filha do filósofo. Na casa dela era possível conhecer muitos
dos escritores importantes da época. Adorno foi convidado para uma palestra em Roma.
Fui à recepção na casa de Elena, e, claro, Adorno estava lá, e comecei a conversar com
ele.

ENTREVISTADOR
Foi nessa ocasião que ele disse: «Que jovem admirável. Conhece todos os meus livros,
mesmo os que não escrevi ainda»?

CALASSO
É uma anedota que as pessoas gostam de contar.

ENTREVISTADOR
Tem ideia do que disse a ele na conversa para impressioná‑lo tanto?

CALASSO
Acho que ele entendeu que eu conhecia sua obra. Havia um boato de que ele estava
escrevendo um livro que viria a ser a Dialética negativa, sua última obra importante.
Então perguntei sobre o livro, e ele deve ter ficado extremamente surpreso ao me ver
informado sobre aquilo.

ENTREVISTADOR
Como você encontrou ânimo para decifrar Adorno enquanto aprendia alemão, sem
dormir no processo?

CALASSO
Ah, era muitíssimo excitante. Eu estava morrendo de vontade de ler Dialética do
esclarecimento, que não estava disponível à época, nem mesmo na Alemanha. Minha
querida amiga que estava me ensinando alemão — uma senhora da Alemanha Oriental
— acompanhou‑me linha a linha.

ENTREVISTADOR
Quantas línguas você fala?

CALASSO
Italiano, francês, inglês, espanhol, alemão. Latim e grego aprendi na escola. Sânscrito
estudei por conta própria.

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ENTREVISTADOR
Quando foi a primeira vez que você tentou publicar alguma coisa?

CALASSO
Foi quando Lolita foi lançado nos Estados Unidos, em 1958. Fui atraído pelo livro de
imediato, pela confusão que provocou na Europa. Li e amei. E escrevi o que suponho
ter sido a primeira resenha italiana sobre a obra. Eu descrevia Lolita como um grande
livro sobre a paixão, conectada à ideia do obstáculo eterno na literatura do amor. Meu
pai conhecia Arnaldo Bocelli, crítico oficial do Il Mondo, o semanário liberal. Fui até lá
e contei que um romance tinha acabado de ser publicado nos Estados Unidos, e que
havia muito debate sobre ele, e que eu havia escrito uma resenha. Ele foi muito gentil,
recebeu a resenha e disse que entrariam em contato. Depois de alguns dias, ele disse ao
meu pai que não podiam publicar, pois o livro e o autor eram completamente
desconhecidos, e eles não podiam se dar ao luxo de publicar algo sobre um autor de
quem nunca mais ouviriam falar.

ENTREVISTADOR
É algo muito raro o enorme sucesso de que desfrutou As núpcias de Cadmo e
Harmonia, seu livro sobre o mito grego.

CALASSO
No dia em que o livro foi lançado, uma resenha elogiosa foi publicada na primeira
página da Repubblica. Isso foi o começo.

«O editor é considerado, especialmente


nos países anglo‑saxões, um
entrepreneur ou impresario bastante
excêntrico (…). Mas, se for
bem‑sucedido, então é um bom homem
de negócios. Já o autor é o sucessor do
santo, todo mundo respeita o autor.
Então juntar os dois elementos é, de
certa forma, bastante suspeito, sobretudo
em países protestantes, tão moralistas.
Nos países latinos, um pouco menos.»
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ENTREVISTADOR
Não é comum que um livro tão sério decole assim imediatamente. Você acha que ser
editor da Adelphi ajudou?

CALASSO
No fim, é uma desvantagem. O editor é considerado, especialmente nos países
anglo‑saxões, um entrepreneur ou impresario bastante excêntrico — um homem de
negócios em um campo muito improvável. Mas, se for bem‑sucedido, então é um bom
homem de negócios. Já o autor é o sucessor do santo, todo mundo respeita o autor.
Então juntar os dois elementos é, de certa forma, bastante suspeito, sobretudo em países
protestantes, tão moralistas. Nos países latinos, um pouco menos.

ENTREVISTADOR
Alguém o criticou por publicar a si mesmo?

CALASSO
Não muito. Mas tudo depende da obra. Se o livro é bom, não faz diferença se você
mesmo ou uma editora diferente o publica. Já se o livro é ruim e você o publica por
outra editora, é uma vergonha de todo modo.

ENTREVISTADOR
Você às vezes recebe críticas negativas na Itália?

CALASSO
Claro. Alguns críticos são como amigos afetuosos que nunca perdem uma oportunidade
de escrever contra mim.

ENTREVISTADOR
É o que Lacan costumava chamar de «la haine amourée».

CALASSO
Possivelmente. Há quem não suporte meus livros, outros não suportam a Adelphi, e
temo que alguns confundam os dois.

ENTREVISTADOR
Por que alguém não toleraria a Adelphi?

CALASSO
Porque nos opusemos a muitas coisas por aqui. Porque dissemos não com demasiada
frequência. No começo, a editora era considerada elitista, aristocrática, o que era um

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grande insulto no fim dos anos sessenta e começo dos setenta. Depois — sempre
publicando os mesmos autores — fomos acusados de comercialismo. As críticas
passaram de um extremo a outro. Nunca faltaram argumentos contra nós.

«É quase impossível não ser considerado


um reacionário por alguém. (…) Mas eu
não desejo o retorno de nada. Ao mesmo
tempo, não posso dizer que eu sinta
alguma afinidade particular com o que
há ao meu redor. Como Groucho Marx,
eu não desejaria ser membro de um clube
que me aceitasse.»

ENTREVISTADOR
Você é considerado um reacionário por alguns italianos?

CALASSO
É quase impossível não ser considerado um reacionário por alguém. Originalmente, a
palavra se referia àqueles que, depois da Revolução Francesa, queriam o retorno do
Antigo Regime. Mas eu não desejo o retorno de nada. Ao mesmo tempo, não posso
dizer que eu sinta alguma afinidade particular com o que há ao meu redor. Como
Groucho Marx, eu não desejaria ser membro de um clube que me aceitasse.

ENTREVISTADOR
Você se considera um homem de esquerda?

CALASSO
Eu me pergunto o que isso quer dizer hoje em dia. É certo que o sucesso da Adelphi
começou, entre outras coisas, com a extrema‑esquerda. Por exemplo, Joseph Roth, que
era um dos nossos grandes autores, foi abraçado pelas pessoas envolvidas com os
movimentos dos anos setenta. No entanto, ninguém nunca considerou Nietzsche
terrivelmente ortodoxo. É óbvio que conseguimos irritar muita gente, das Brigadas
Vermelhas à Opus Dei. Vou dar um exemplo bastante surreal. Em 1979, as Brigadas
Vermelhas publicaram na revista da organização, Controinformazione, que à época

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estava disponível em todos os quiosques, um artigo longo e detalhado em que a Adelphi


era apresentada como a ponta de lança de uma poderosa organização multinacional cujo
objetivo principal era eliminar todas as esperanças de uma revolução proletária. A
prova disso era que tínhamos acabado de publicar uma grande seleção de poemas e
textos em prosa de Pessoa.

ENTREVISTADOR
É estranho esse desejo de transformar a Adelphi — e você — numa máquina política
quando você é uma pessoa muito mais interessada em transcendência do que em
política.

CALASSO
Não tanto transcendência, mas na percepção dos poderes que há dentro de nós e à nossa
volta. Fala‑se muito sobre religião, mas é como se falassem sobre grandes partidos
políticos. A questão mais delicada a se captar é que a própria sociedade tornou‑se a
grande superstição dos nossos tempos. Esse é o eixo da última seção de O ardor. O que
quero dizer é que a crença na sociedade como caldeirão final do progresso gera muita
intolerância mesmo no chamado mundo secular. Assim, é difícil encontrar um ateísta
intelectualmente rigoroso. Embora eu tenha conhecido muitos intolerantes seculares.

ENTREVISTADOR
A noção de sacrifício está por trás de quase tudo em sua obra. Outro tema notável é
a ebbrezza, que parece difícil de traduzir, já que a palavra em italiano é polissêmica.

CALASSO
Todos os meus livros têm a ver com possessão. Ebbrezza, arrebatamento, é uma palavra
associada à possessão. Em grego a palavra é mania, loucura. Para Platão era o principal
caminho para o conhecimento. Entre nós é o principal caminho para o hospício. Note
então que, de Schreber a A folie Baudelaire, o tema atravessa minha obra. Mesmo em
meu último livro, O ardor, claro. O povo védico desenvolveu teorias complexas e
fascinantes sobre a soma, a planta misteriosa que provocava arrebatamento.

ENTREVISTADOR
Depois das peregrinações paranoicas de Schreber em L’Impuro Folle, você teve
vontade de escrever outro romance «convencional»?

CALASSO
Não muito. Gosto de contar histórias de pessoas ou seres que já existem em algum
lugar — deuses, homens ou personagens históricos. Em A Ruína de Kasch há uma
mistura — o protagonista é Talleyrand, mas alguns dos personagens são inventados.
Em certos casos eu sequer menciono suas verdadeiras identidades. Por exemplo, havia
alguém que era chamado de Senador, de São Petersburgo. Trata‑se de Joseph de
Maistre. Acho que um bom leitor vai perceber, embora ele fale como um personagem
ficcional. Há também uma carta de Talleyrand para certo Lucien, que é o Lucien
Leuwen, de Stendhal. Há muitos jogos desse tipo. Mas isso não se aplica a As núpcias

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de Cadmo e Harmonia, em que todo o material vem da mitologia grega.

ENTREVISTADOR
As pessoas receberam As núpcias como ficção ou não ficção?

CALASSO
Meio a meio. Metade das listas de mais vendidos era de ficção, a outra metade de não
ficção. Do mesmo modo, metade das resenhas era de ficção, a outra metade de não
ficção. Isso aconteceu tanto na Itália quanto na América.

ENTREVISTADOR
Uma classificação é mais correta do que a outra?

CALASSO
Acho que ficção é mais correto, especialmente no caso das Núpcias, pois é um livro
feito de narrativas míticas. Claro, o livro conta uma história, depois para e reflete sobre
ela, mas isso também acontece nos romances. Tolstói, um dos grandes mestres da
forma, às vezes para e pensa sobre o que é a guerra, o que é a história. Isso é parte da
fisiologia do romance. Não existe nada que não possa ser parte de um romance. De
resto, prefiro que o ensaio esteja escondido em algum lugar entre as linhas de uma
narrativa.

ENTREVISTA
Mas, com exceção de L’Impuro Folle, seus livros não são romances, são?

CALASSO
Não, eu jamais usaria a palavra romance, exceto para L’Impuro Folle, mas
usaria narrativa. São narrativas. O que é crucial em um livro é o ritmo, il passo — o
andamento e o fato de que o elemento dominante é a narrativa, não a teoria sobre a
narrativa. A história que contamos é o elemento mais importante, e ela sugere a teoria.
Tome, por exemplo, a história da ruína de Kasch, uma lenda que tomei emprestada de
um condutor de camelos africano, que a contou ao antropólogo Leo Frobenius. Se você
procura entender os elementos dessa narrativa, você termina escrevendo A Ruína de
Kasch — um livro inteiro que entrelaça muitos grandes temas conectados à lenda de
Kasch em todos os seus detalhes. Você tem os sacerdotes de Kasch, tem o rei, tem o
contador de histórias. E as histórias que ele conta, no fim, se metamorfosearam em todo
um novo livro, que é As núpcias de Cadmo e Harmonia.

ENTREVISTADOR
Parece que sua obra cresce organicamente, como uma criatura viva.

CALASSO
Quando comecei a escrever A Ruína de Kasch, concebi uma obra em três partes. Eu
antevia até as dimensões desses livros — dois bastante longos, em torno de quinhentas
páginas, e o terceiro bastante curto. No fim, o terceiro jamais foi escrito. Talvez eu

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jamais venha a escrevê‑lo. Falaria sobre «o presente inominável», algo que até o
momento parece ter escapado às garras da literatura.

ENTREVISTADOR
Nessa trilogia imaginária, o primeiro volume era A Ruína de Kasch?

CALASSO
Sim, e o segundo era As núpcias de Cadmo e Harmonia. Depois tudo mudou, pois
escrevi Ka. Quando eu estava escrevendo Ka, eu não tinha a menor ideia de que meu
próximo livro seria K. Quando estava escrevendo K., não tinha a menor ideia de que o
próximo seria A folie Baudelaire, embora tanto Kafka quanto Baudelaire já tivessem
aparecido em A Ruína de Kasch. Já o livro sobre Tiepolo era parte de A folie
Baudelaire — foi extraído dele.

ENTREVISTADOR
O que o levou a Baudelaire?

CALASSO
Baudelaire é o primeiro poeta não italiano que li de verdade. Na casa do meu avô, havia
uma grande biblioteca e um estúdio muito bonito. Antes do estúdio, havia uma sala
ladeada de livros, e no centro uma grande mesa com documentos. Quando menino, eu
estava sempre por ali, olhando para coisas sobre as quais eu nada sabia, e encontrei uma
cópia de Les Fleurs du Mal, numa edição refinada, feita por Crès nos anos vinte. Crès
foi um editor muito elegante do ponto de vista tipográfico. Roubei o livro do meu avô.
É o primeiro e único livro que roubei. Minha avó notou, pois tinha um olho de águia —
além disso, o livro continha uma dedicatória do meu avô para ela. Então ela fez uma
coisa levemente perversa. Ela deu o livro de presente, não para mim, mas para minha
mãe. Em seus últimos anos de vida, minha mãe o deu para mim. Então há três
dedicatórias no livro, e a última é bem recente.
Quando o roubei, eu devia ter doze anos. Estava começando a aprender francês e, claro,
fui atraído pelo título — era irresistível. Eu sempre tive certa afinidade com Baudelaire,
o que nunca tive com nenhum outro poeta — era algo mais direto, mais íntimo. E tenho
que admitir que A folie Baudelaire foi o livro que escrevi com mais facilidade.

ENTREVISTADOR
Quanto tempo levou?

CALASSO
Levou algum tempo, pois o que você lê é apenas parte do todo — cortei muita coisa.
Não é apenas um livro sobre Baudelaire, mas sobre a onda que, influenciada por ele,
atravessou a França no século xix, tanto na literatura quanto na arte. Baudelaire foi
muito mais do que um grande poeta. Ele estabeleceu o modelo de uma sensibilidade
que ainda vive dentro de nós, se não formos almas brutas. O livro sobre Tiepolo foi um
grande galho dessa árvore; o galho se destacou, pois senti que era um livro e tinha de
ser lançado separadamente. Então Tiepolo Pink (O Rosa de Tiepolo) foi publicado antes

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da Folie. Não sei dizer exatamente quanto tempo levei, mas talvez algo em torno de
cinco anos.

ENTREVISTADOR
Não foi bem da noite para o dia.

CALASSO
Considere que O ardor, meu livro mais recente, é algo que esteve comigo desde Ka,
portanto há mais ou menos quinze anos. Nenhum outro livro meu levou tanto tempo.

ENTREVISTADOR
Você construiu A folie Baudelaire em torno do sonho do «museu‑bordel»?

CALASSO
Sim, o livro inteiro converge para aquela história — essa estranha criatura, se assim
quiser, que é o sonho do museu‑bordel, onde se encontram todas as vertentes de
Baudelaire. Mas há um ponto importante — aquele sonho corresponde a um lugar real
— e mágico — em Paris, o jardim e a colunata do século xviii do Palais‑Royal. Ao fim
de A Ruína de Kasch, há uma seção chamada «Vozes do Palais‑Royal», onde o
Palais‑Royal é apresentado como uma imagem final do nosso mundo — no qual tudo se
concentra e tudo pode acontecer. Paraíso e inferno ao mesmo tempo. O Palais‑Royal
abrigava prostitutas, mas também cafés, reuniões políticas, laboratórios de ciência e
salões de apostas. E era num banco do Palais‑Royal que Diderot costumava se sentar e
fantasiar. É um lugar aberto, e em seu interior o museu‑bordel funciona como um
mundo espelhado baudelairiano.

Três títulos da coleção Biblioteca Adelphi © Adelphi Edizioni / Divulgação.

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ENTREVISTADOR
Imagine se você tivesse escrito todos esses livros sem o recurso das narrativas — no
fim, talvez o que restasse fosse um conjunto de teorias proibidas.

CALASSO
Talvez eu tenha certa inclinação para o que Nietzsche chamava de «pensamento
impuro», quer dizer, um tipo de pensamento em que as abstrações se acham tão
misturadas aos fatos que é impossível discernir os dois elementos. Sinto que o
pensamento, de uma forma geral, e em particular o que se chama lamentavelmente
de «filosofia», precisa levar uma espécie de vida clandestina por um tempo para que se
renove. Por vida clandestina quero dizer oculta no interior de histórias, em inúmeras
formas que não são a forma do tratado. Então o pensamento poderá se renovar
biologicamente, por assim dizer.

ENTREVISTADOR
Estamos sentados em seu estúdio, em Milão. Pode descrevê‑lo?

CALASSO
Esta sala onde estamos é para mim uma aproximação tolerável do paraíso. Em primeiro
lugar, é preciso haver uma grande mesa. Um amigo a projetou. E é preciso que haja
muitas coisas espalhadas sobre ela. Todos os livros que você vê aqui são os livros de
que necessito para o projeto em que ando trabalhando atualmente. Num canto há
documentos associados à editora. E aqui temos vários dicionários. Na parede à frente,
só Grécia e Roma. Na detrás, Índia. É bom sentir que estamos em um cômodo que
contém uma parte substancial da Loeb Classical Library e da Belles Lettres.

ENTREVISTADOR
Como você organiza sua biblioteca?

CALASSO
Uma resposta adequada demandaria toda uma autobiografia, o que me faz pensar numa
obra adorável de um erudito francês do século xvii, Gabriel Naudé: Advis pour dresser
une bibliothèque. Para mim, há vários critérios — práticos, estéticos, caprichosos. O
essencial é obedecer ao que Aby Warburg chamava de a «lei da boa vizinhança».
Quando estiver procurando um livro, você pode acabar descobrindo que, na realidade,
estava procurando o livro ao lado. É nesse princípio que se baseia a maravilhosa
Biblioteca Warburg, em Londres. E, claro, as posições dos livros mudam no decurso do
tempo. Surgem sistemas geológicos de camadas. No meu caso, infelizmente, os livros
estão em lugares diferentes — em torno de vinte mil no porão da editora e outros mais
em outro apartamento.

ENTREVISTADOR
Seus livros são, de certa forma, tributos a grandes poetas e narradores. Há um punhado

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de escritores que sempre o acompanham?

CALASSO
Proust. Kafka, certamente. Nietzsche. John Donne. E eu não gostaria de me limitar ao
Ocidente, então Yajnavalkya, Chuang Tzu. Mas, quando começo a fazer listas, sinto
que estou sendo injusto com muitos outros.

ENTREVISTADOR
Aqui temos uma foto sua com seu falecido amigo Brodsky. Ele escreveu um ensaio
maravilhoso sobre As núpcias, onde fala sobre autoprojeção, traçando um paralelo entre
mitologia e tv. A escala e os parâmetros são diferentes, mas tanto o mito quanto
a tv tratam, em última instância, de autoprojeção. A sede de ambos é nossa mente. O
altar em ambos os casos é uma caixa. O controle remoto é o sacrifício.

CALASSO
Isso é imensamente brodskiano. O ponto é: o homem tem um excedente de energia do
qual ele precisa se desfazer. Esse excedente é, em suma, a vida. Não há vida sem
excedente. O que fazemos com esse excedente decide a forma de uma cultura, de uma
vida, de uma mente. Há certas culturas que decidiram que esse excedente tinha de ser
ofertado de alguma forma. Não está claro para quem, ou por quê, ou como, mas a ideia
era essa. Há outras culturas, como a nossa, onde tudo isso é considerado inteiramente
inútil e obsoleto. No mundo secular, o sacrifício não deveria ter sentido nenhum. Ao
mesmo tempo, percebe‑se que tem, pois a palavra continua sendo usada. Em discussões
sobre economia, os analistas falam o tempo todo dos sacrifícios, sem perceber o que há
dentro dessa palavra. Mesmo em termos psicológicos, sacrifício é uma palavra comum.
É considerado ilegal — por exemplo, se você celebrar um ritual sacrificial no meio de
Londres ou Nova York, você cometerá um ato ilegal, você será encarcerado. O
sacrifício se conecta à destruição — isso é importante, e misterioso. Porque, para
ofertar uma coisa, se faz necessário destruí‑la. Esses são os temas da última parte de O
ardor.

ENTREVISTADOR
Você disse certa vez que Lévi‑Strauss tinha medo dessa ideia.

CALASSO
Ele não falava do sacrifício, era algo que destruía toda a teoria dele. Tenho muita
admiração por Lévi‑Strauss e aprendi muito com ele. Mas há certas coisas, como ritual
e sacrifício, que o deixavam nervoso, pois atrapalhavam a arquitetura de seu
pensamento.

ENTREVISTA
Mas Bataille tratou do assunto.

CALASSO
Bataille é o oposto. Bataille escreveu sobre o sacrifício por toda a vida dele. Seu melhor

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livro sobre isso é La part maudite (A parte maldita), um livro muito audacioso. Mas
Bataille não era um pensador rigoroso. Escrevia demais e tinha um hábito terrível
— ressassement, repetições sem fim. No entanto, de certa forma, ele pôs a questão do
sacrifício no coração de tudo.

«No ato do sacrifício, você estabelece


uma relação com algo que você
reconhece como enigmático e poderoso
(…) não se trata apenas de uma relação
com o mundo exterior mas também de
uma relação com nós mesmos.
Estabelecemos uma conexão com o
desconhecido pelo ato de oferecer uma
coisa e, paradoxalmente, pelo ato de
destruí‑la.»

ENTREVISTADOR
Acho que também é algo central para você. Por que o sacrifício é tão importante?

CALASSO
Talvez porque o sacrifício nos leva ao desconhecido. No ato do sacrifício, você
estabelece uma relação com algo que você reconhece como enigmático e poderoso.
Nossa psique coletiva parece ter se distanciado disso, embora a ciência venha
oferecendo incontáveis motivos para nos sentirmos embasbacados diante do
desconhecido. O desconhecido está em nossas mentes também — a mente nos é, em
sua maior parte, totalmente desconhecida. Portanto, não se trata apenas de uma relação
com o mundo exterior mas também de uma relação com nós mesmos. Estabelecemos
uma conexão com o desconhecido pelo ato de oferecer uma coisa e, paradoxalmente,
pelo ato de destruí‑la. É isso que está por trás do sacrifício. O que você oferece e o que
você destrói — o excedente no qual consiste a própria vida.

ENTREVISTADOR
Descartes fala do homem como «maître et possesseur de la nature».
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CALASSO
Bem, essa ideia já está presente no Gênesis. Mas tem suas consequências — a culpa. A
culpa reside na raiz do sacrifício. O sacrifício nem sempre é uma forma de evitar a
culpa ou absolvê‑la, às vezes é uma reafirmação da culpa. A primeira culpa vem do
próprio ato de provocar o desaparecimento das coisas. Matar é uma das formas de
conseguir isso. Comer é outra.
Essas ações estão todas conectadas de forma muito rente e remontam à pré‑história.
Atravessaram centenas de milhares de anos e deixaram traços na nossa mente. Você
pode levá‑las em consideração ou ignorá‑las. Nosso mundo tenta ignorá‑las, considera
todas essas coisas como muito distantes. Nos meus livros, procuro desenterrá‑las.

ENTREVISTADOR
Você viu A caverna dos sonhos esquecidos, de Werner Herzog?

CALASSO
Sim. As coisas de que estamos falando são, em suma, uma forma de se aproximar do
mistério implícito na caverna de Chauvet. Uma grande linha divisória entre nosso
mundo e o deles é nossa relação com os animais. A passagem de seres caçados para
caçadores. A outra é a metamorfose. Em um mundo, a metamorfose é um dado
incontroverso, uma espécie de experiência básica. No outro, estamos certos de que ela
não existe, que se trata de um fenômeno patológico, como, por exemplo, o lobisomem.
Mas todos nós, em certo sentido, somos lobos. Ou, antes, nos tornamos lobos, como
parte da metamorfose.

ENTREVISTADOR
Você quer dizer predadores?

CALASSO
Predadores. O lobo é um animal que mata e é um perigo ao homem. Mas Apolo era,
entre outras coisas, um lobo. Depois você tinha as moças, que, em Atenas, eram
treinadas no templo de Artemis para se tornarem pequenas ursas. Assim você vê como
os temas de Chauvet mesclam‑se à mitologia. É impossível compreender a mitologia
sem essa noção da metamorfose. Penso que Ovídio é o último grande poeta trágico e
épico daquela era, pois conta a história de um mundo onde a metamorfose acontece o
tempo todo — acontece, mas então cessa. As narrativas que ele conta são histórias de
uma menina que se torna, por exemplo, uma árvore ou uma planta, mas que jamais
volta a ser menina. Ela permanece árvore, e isso, claro, é trágico.

ENTREVISTADOR
Nas Núpcias, você escreve: «Penetramos o mítico quando penetramos o reino do risco,
e o mito é o encantamento que geramos em nós mesmos nesses momentos». O que isso
significa?

CALASSO

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Isso vem de Platão, do Fedro. Sócrates diz exatamente isso. Dentro da dimensão do
mito, você adentra essa zona de perigo, e essa é a zona do desconhecido. O que se pode
fazer ali é, primeiro de tudo, pronunciar ou cantar um carmen, palavra que geralmente é
traduzida como «poema», mas que significa, antes de tudo, «encantamento». É a
melhor arma à nossa disposição.

ENTREVISTADOR
Mas quando penetramos a dimensão do mito?

CALASSO
Já estamos nele. Como Salustiano, o neoplatonista, escreveu, o próprio mundo é um
mito. Então não importa o que estamos fazendo, estamos em meio a uma fábula. E a
fábula, por definição, é aquilo que nos encanta. A única questão é se o percebemos ou
não.

ENTREVISTADOR
Depois de As núpcias, com Ka, você passou do mito ocidental ao pensamento indiano.
Como isso aconteceu?

CALASSO
Desde muito cedo, os textos védicos me pareceram ir muito além de tudo que líamos
sobre certos assuntos. Se você deseja compreender minimamente duas palavras
essenciais como consciência e mente, é preciso se debruçar sobre esses textos. Não há
nada mais iluminador. E, em A Ruína de Kasch, já se encontra a palavra .rta, do
sânscrito, que significa «a ordem do mundo». O livro todo trata disso, embora em um
primeiro olhar pareça mais um livro sobre a Revolução Francesa e o que aconteceu
depois. Contudo, em seu cerne estão as narrativas de Far‑li‑mas, um contador de
histórias misterioso que fez os sacerdotes de Kasch esquecerem suas obrigações e
provocou a ruína do reino.
Por outro lado, para mim, não existem narrativas mais encantadoras do que as
narrativas da mitologia grega, das quais apenas uma pequena seção é aproveitada em
nossa tradição literária. Então mergulhei nessa floresta de narrativas, e depois
de Kasch veio Cadmo e Harmonia. Mas, no fim, aquilo revelou‑se apenas um prelúdio,
pois logo senti a necessidade de passar da floresta à selva. A selva eram as narrativas
indianas, que são de uma complexidade ainda mais enlouquecedora. Isso me custou
sete anos, e tive de aprender um pouco de sânscrito. No fim, escrevi Ka, que, de certa
forma, estabelece um paralelo com As núpcias de Cadmo e Harmonia.

ENTREVISTADOR
Em Ka você escreveu que concorda com os indianos que dizem que tudo que existe no
mundo está no Mahabharata e, se você não encontra o que está procurando
no Mahabharata, não o encontrará em lugar nenhum.

CALASSO
E, tal como você se perde no mundo, você precisa se perder no Mahabharata. Então eu

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me perdi, peguei alguns fios das narrativas e os entrelacei em Ka. Tudo gira em torno
da consciência. Eles colocaram a consciência no centro de tudo bem antes de nossos
cientistas a proclamarem o mais novo tema científico trinta anos atrás.
As conexões são óbvias e muito fascinantes entre as narrativas indianas e as gregas,
mas eu não queria produzir um estudo comparativo. As narrativas gregas se bastam, e
as indianas também. Contudo, se você investiga o tema de Helena, na Grécia, e de
Saranyu, na Índia, as afinidades são evidentes, e se pode ir muito longe a partir disso.

ENTREVISTADOR
Você acha que essas narrativas vieram do Oriente e aos poucos foram recontadas e
reescritas, ou considera um mistério epistemológico o fato de que várias civilizações
chegaram a narrativas similares?

CALASSO
Tendo a pensar que nós simplesmente não sabemos e nunca saberemos. E não devemos
dar grande importância a isso. Eu acho que essas narrativas pertencem ao tecido do
mundo. Mitos não são inventados, eles existem. Não se pode dizer que haja um
determinado momento a partir do qual o mito começa.
E o mito nunca é uma única narrativa. É sempre uma árvore com muitos galhos. Sem
que levemos em consideração todas as variantes, é impossível compreendê‑lo de
verdade. O que tentei fazer em As núpcias foi conjurar essa intuição desde o princípio,
com a narrativa de Ariadne. Após certo tempo, você compreende que é necessário ter
em mente todas as versões, como uma constelação, pois a narrativa em que Ariadne é
seduzida por Teseu, em que ela é abandonada, em que se torna uma estrela no céu, em
que ela morre — todas essas narrativas andam juntas. O romance, infelizmente, não
tem esse poder. É admirável, mas trata de apenas uma história.

ENTREVISTADOR
Há temas e variações que atravessam sua obra, como numa série de círculos
concêntricos. A Ruína de Kasch, por exemplo, já fala sobre sacrifício.

CALASSO
Sou compelido, de certa forma — não é uma escolha, não posso evitar. Mesmo os
círculos concêntricos acontecem naturalmente, por assim dizer. Em A folie
Baudelaire, o centro é o sonho de Baudelaire do bordel que é também um museu, que
se abre para tudo o mais. Em A Ruína de Kasch, o centro, que não necessariamente
aparece no meio do livro, é a lenda africana sobre o fim do reino chamado Kasch.
Em As núpcias, temos a história de Europa e Cadmo, que aparece no começo e
reaparece no fim.

ENTREVISTADOR
Você tem notícia de outro autor que também faça uso dessa técnica?

CALASSO
Não dessa forma compulsiva, maníaca. Claro que encontro afinidades em todas as

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direções, mas o padrão de todos os meus livros é sempre uma surpresa, mesmo para
mim.

«Tendo mencionado tantos deuses nos


meus livros, qualquer coisa que eu diga
pode vir a magoar alguns deles, então é
melhor guardar silêncio. O que é certo é
que eu jamais diria que eles são um
fenômeno da cultura. Eles estão aí mais
do que nós estamos.»

ENTREVISTADOR
Você se considera uma pessoa religiosa? Você não escreveria sobre esses temas sem
estar de alguma forma pessoalmente conectado ao desconhecido.

CALASSO
Tendo mencionado tantos deuses nos meus livros, qualquer coisa que eu diga pode vir a
magoar alguns deles, então é melhor guardar silêncio. O que é certo é que eu jamais
diria que eles são um fenômeno da cultura. Eles estão aí mais do que nós estamos. A
questão é determinar se nós somos alguma coisa, o que não é tão simples.

ENTREVISTADOR
Você acha que talvez seja possível dizer que nós e os deuses somos a mesma coisa?

CALASSO
Definitivamente não. Mas temos parte em algo que é divino. O divino é aquela coisa
misteriosa que você pode ignorar por completo ou que pode mais ou menos guiar sua
vida — o que Platão chamava de tò theÄ«on. Os deuses vieram depois disso. Na Índia
os deuses chegam com atraso. Primeiro há Prajapati, e não sabemos quem ele é — e ele
também não sabe, um detalhe inquietante. Depois vêm os rishis, os visionários. Por
fim, os deuses — e eles não são levados tão a sério. Indra, que é o rei dos deuses, é
feito de tolo em muitos mitos indianos. Isso acontece com muito mais frequência nas
tradições indianas do que com o seu equivalente no mito grego. Por último, há os
animais e os homens.

ENTREVISTADOR

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Você deve se sentir tão confortável numa igreja quanto em um templo na Índia.

CALASSO
Talvez eu me sinta mais confortável na Índia do que aqui, mas eis uma sensação curiosa
que eu tenho: uma das maravilhas na Grécia é que você encontra capelas ortodoxas,
frequentemente fechadas, nos locais mais remotos — e, geralmente, mais bonitos. É
bom sentir que nesses lugares eles têm uma capelinha com a imagem de um santo ou da
Virgem. Gosto disso.

ENTREVISTA
Você tem medo da morte?

CALASSO
Sim, por que não? Não sabemos muito sobre o que é a morte, e o medo é parte de tudo.

ENTREVISTADOR
Jung teve uma experiência de quase morte — ele ascendeu no ar, viu a Índia e entrou
em um templo budista. Uma coisa estranha, maravilhosa. Você já meditou?

CALASSO
É embaraçoso, pois acho que ao longo da minha vida fiz algo parecido sem saber.
Embora eu tenha escrito O ardor e Ka com base em narrativas e textos que têm muito a
ver com meditação. Mas isso não quer dizer que eu pratique. O provável é que eu tenha
desenvolvido uma forma de prática muito pessoal.

ENTREVISTA
Falamos sobre uma possível definição de felicidade, e há tanto êxtase em seu livro
sobre Tiepolo. Um quadro de Tiepolo seria uma possível definição de felicidade?

CALASSO
A felicidade sem dúvida emana dos personagens de Tiepolo — e esse é o verdadeiro
segredo de seus quadros. Comparando Tiepolo aos outros grandes pintores de seu
tempo, que trabalhavam para expressar aquela mesma emoção — Fragonard, Watteau
—, Tiepolo vai além. A razão é misteriosa, mas, mesmo quando ele pinta uma fazenda
ou uma moça caminhando, há ali um elemento espantoso.

«A felicidade? Tento não falar sobre isso.


Sinto que, na vida, a felicidade deve ser
algo que corre subterraneamente. Ela não
quer que a mencionemos em demasia,
acho.»
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ENTREVISTADOR
O que é a felicidade para você, enquanto escritor e criador?

CALASSO
A felicidade? Tento não falar sobre isso. Sinto que, na vida, a felicidade deve ser algo
que corre subterraneamente. Ela não quer que a mencionemos em demasia, acho.

ENTREVISTADOR
Talvez haja duas espécies de criadores e escritores — os que se sentem essencialmente
torturados e infelizes ao criar, e os outros. E parece que todo o trabalho de sua vida é
uma forma de meditação, algo que o alimenta enormemente.

CALASSO
É sem dúvida algo que me faz seguir em frente. Está relacionado àquela palavra da qual
falamos esta manhã — ebbrezza. Há uma espécie de febre maravilhosa que pode
perdurar, algo muito próximo de um sentimento de felicidade. A palavra tapas — ardor,
em sânscrito — conecta‑se profundamente a isso.

ENTREVISTADOR
Que parte de sua obra você acha que ficará?

CALASSO
Vejo essa obra em sete partes — a oitava estou escrevendo agora — como um todo.
Então talvez seja tudo ou nada.•

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