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KAFKA E

KUCINSKI

FRANZ KAFKA
MUSEUM (PRAGA)
Disciplina: Estudos Temáticos de Teoria da Literatura e Literatura
Comparada: Narrativa Policial e Violência Política nas Ditaduras
da América do Sul.
Professor: Ricardo Garro
Semestre: 1/2022
Formas de entrada a K. – Relato de uma busca:
• “Las musas son la tradición literaria […] La inspiración se construye
a partir de lo que se ha escrito antes, cada vez se escribe con
toda la literatura” (PIGLIA, 1986, p. 74).
• “Lee fragmentos distintos de épocas distintas. Pasa de una situación a
otra de su vida. La memoria está escrita y es como un mapa”
(PIGLIA, 1986, p. 71).
• “Funciona como un detective que investiga un crimen. En este sentido los
acontecimientos que ‘explican’ esa situación son el enigma del
relato” (PIGLIA, 1986, p. 71-72).
PIGLIA, Ricardo. La literatura y la vida. In: ______. Crítica y ficción. Buenos
Aires: Debolsillo, 1986. p. 70-75.
A LETRA K
 Em K. – Relato de uma busca, a letra k do
título e do personagem é explicitamente
uma referência à obra romanesca de
Kafka, e que, assim como esta, apresenta
seu protagonista preso aos meandros da
burocracia estatal e seus absurdos.
 Ao se utilizar da obra de Kafka, Kucinski
vai buscar no terreno da literatura o
sentido que pretende imprimir à sua
“O processo” – Orson Welles (1962)
narrativa.
FRANZ KAFKA (1883 – 1924)
 Franz Kafka, escritor tcheco que escrevia em língua alemã,
nasceu em Praga, cidade que pertencia ao Império Austro-
Húngaro. Filho de um comerciante judeu, cresceu sob as
influências de três culturas: a judia, a tcheca e a alemã.
 Cursou Direito em Praga. Trabalhou em companhias de
seguros e, em paralelo, dedicou-se à literatura.
 Em 1917 foi obrigado a afastar-se do trabalho devido à
tuberculose. Faleceu em um sanatório em Klosterneuburg,
na Áustria. A maior parte das suas obras foram publicadas
postumamente.
 Seu estilo é marcado pela crueza e pelo
detalhamento com que descreve situações
incomuns, como em O Processo, publicado em
1925, cujo personagem principal é acusado e
executado por um crime que desconhece.
 Escreveu ainda, entre outros, A Metamorfose
(1916), O Castelo (1926), e América (1927).
• Kafka deixou os direitos de sua obra, tanto a
publicada quanto a não publicada, para seu amigo
e testamenteiro literário Max Brod, com
instruções explícitas de que ela deveria ser
destruída após a sua morte.
• Kafka escreveu: “Querido Max, meu último
pedido: Tudo que eu deixo para trás... na forma
de diários, manuscritos, cartas (minhas e de
outras pessoas), esboços, e assim por diante, deve
ser queimado sem ser lido”. Brod decidiu ignorar
este pedido e publicar sua obra entre 1925 e
Estátua de Franz Kafka em
1935. Praga.
• A escrita de Kafka inspirou a
criação do termo "kafkiano",
usado tanto em português
como em outras línguas para
descrever conceitos e
situações que remetem à sua
obra.
• O termo ultrapassou o meio
literário e também é usado em
ocorrências reais que são
incompreensíveis, complexas
“Kafka de Crumb” – Robert Crumb (Editora ou ilógicas.
Desiderata, 2010)
O que é que torna uma coisa "kafkiana"? (What makes something
“kafakaesque"?), 5min. Direção: Noah Tavlin.
https://www.youtube.com/watch?v=wkPR4Rcf4ww

Franz Kafka - Um escritor entre mundos (Writer between the worlds),


2018, 48 min. Direção: Herberth Kafka.
https://www.youtube.com/watch?v=kwQKQK3H8ZM
CARTA AO PAI – FRANZ KAFKA
 Entre os dias 10 e 20 de novembro de 1919, aos 36
anos, Franz Kafka escreveu a seu pai uma carta de
cinquenta páginas, que jamais enviou.
 Nela, Kafka busca um acerto de contas com o pai,
Hermann Kafka. O motivo do confronto é uma tentativa
de casamento do filho que o pai desaprova.
 Com a carta, Kakfa realiza uma viagem introspectiva que
constitui um ato de vingança e um esforço de
reconciliação. Hermann, o pai, é visto como um tirano,
um homem que se apoderou da infância do filho e que Julie Wohryzek (1891–1944),
não perde a oportunidade de humilhá-lo na vida adulta. noiva de Kafka em 1919.
• Em Kafka: por uma literatura menor (DELEUZE; GUATTARI, 2015), Gilles
Deleuze e Félix Guattari partem da ideia de um deslizamento identitário
unindo pai e filho em torno dos traumas e dramas que afligiram a
comunidade judaica da Europa Central no início do século XX, o que
serve para que analisem não apenas Carta ao pai, mas também toda a
obra romanesca de Kafka, a partir de uma perspectiva em que agenciam
as jornadas individuais de pai e filho ao coletivo e ao social.
• Em vez da tradicional caracterização edipiana, de fundo neurótico (forma
pela qual a carta que Kafka escreve mas não envia ao pai foi analisada
sistematicamente por autores ligados à psicanálise), Deleuze e Guattari
optam pela caracterização de um édipo perverso, que se expande ao
absurdo.
• A clássica imagem do mapa-múndi coberto pelo corpo do pai, restando a
Kafka ocupar os espaços que seu pai não alcança, representariam uma
espécie de “edipianização” do universo, em uma ampliação microscópica
do Édipo.
“Às vezes imagino um mapa-múndi aberto
e você estendido transversalmente sobre
ele. Para mim, então, é como se entrassem
em consideração apenas as regiões que
você não cobre ou que não estão ao seu
alcance. De acordo com a imagem que
tenho do seu tamanho, essas regiões não
são muitas, nem muito consoladoras, e o
casamento não está entre elas” (KAFKA, Kafka e os pais, Hermann e Julie Löwy.
1997, p. 68).
• O pai tirano é o que Kafka expõe e ataca na carta, mas é também algo que
lhe é constituinte, por um deslizamento identitário que, ao final da carta,
se transforma de queixa ao pai em reconhecimento de si. Uma espécie de
culpa inexplicável e inapreensível se torna comum a pai e filho, e é o que
os une.
• “Contudo, o interesse da carta está em um certo deslizamento; Kafka
passa de um Édipo clássico tipo neurótico, em que o pai bem-amado é
odiado, acusado, declarado culpado, a um Édipo bem mais perverso, que se
reverte na hipótese da inocência do pai, de uma “aflição” comum ao pai e
ao filho, mas para dar lugar a uma acusação em enésimo grau, a uma
reprovação quanto mais forte quanto se torna inassinalável e ilimitada [...]
através de uma série de operações paranoicas. [...] Esse deslizamento
perverso, que extrai da inocência suposta do pai uma acusação ainda pior,
tem, evidentemente, uma meta, um efeito e um procedimento” (DELEUZE;
GUATTARI, 2015, p. 22).
KAFKA: POR UMA LITERATURA MENOR (1975)

 Em Kafka: por uma literatura menor (DELEUZE;


GUATTARI, 2015), Gilles Deleuze e Félix Guattari
analisam a obra de Kafka a partir de elementos de
sua realidade concreta que atravessam a escrita em
busca de uma ressignificação da sua vivência.
 Essa perspectiva leva os autores à constatação de
uma dessubjetivação dos personagens centrais dos
seus romances, ressaltando o efeito da letra k
como articulação que cria agenciamentos.
• Os autores atentam para a condição de Kafka como escritor tcheco, de
origem judia, escrevendo em língua alemã, para afirmar que “uma literatura
menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma
língua maior” (DELEUZE; GUATARI, 2015, p. 35).
• “[…] en ‘El escritor argentino y la tradición’, uno de los textos fundamentales
de la poética borgeana. La tesis central del ensayo es que las literaturas
secundaria y marginal, desplazadas de las grandes corrientes europeas tienen la
posibilidad de un manejo propio ‘irreverente’, de las tradiciones centrales.
Borges pone como ejemplo de esa colocación, junto con la literatura argentina,
a la cultura judía y a la literatura irlandesa. Esas culturas laterales se mueven
entre dos historias, en dos tiempos, a veces en dos lenguas: una tradición
nacional, perdida y fracturada, en tensión con una línea dominante de alta
cultura extranjera” (Memoria y tradición - PIGLIA, 1991, p. 63).
• Deleuze e Guattari situam Kafka como um escritor que escreve a partir
de um lugar objetivamente determinado, sendo sua origem judaica como
condição, ao mesmo tempo, de deslizamento entre culturas, e de
dificuldade de estabelecer uma ideia de pertencimento identitário,
situação que aponta para o caso específico de Kafka como judeu
assimilado no contexto do Império Austro-Húngaro, no início do século
XX.
• Para eles, a obra romanesca de Franz Kafka se forma a partir de um
agenciamento coletivo em que se objetiva a ligação do individual ao
imediato político, com o caso particular desaguando necessariamente na
amplitude social, em que “o que o escritor sozinho diz já constitui uma
ação comum, e o que diz ou faz é necessariamente político [...]. O campo
político contaminou todo o enunciado” (DELEUZE; GUATARI, 2015, p.
37).
• Essa assertiva não só circunscreve quanto afirma o caráter político na
obra de Kafka como algo inerente ao lugar que o escritor ocupa como
indivíduo.
• Deleuze e Guattari circunscrevem na categoria romance, entre as obras
de Kafka, apenas três livros, justamente a parte da obra em que a letra k
se liga ao nome dos protagonistas. São eles: Karl, em América; K em O
castelo; e Josef K., em O processo.
• É por intermédio dos protagonistas dos romances que mais facilmente se
pode vislumbrar o aspecto político na obra de Kafka, a partir do lugar
que ocupam e das ações que sofrem.
• Os protagonistas dos seus romances se encontram imersos na
burocracia administrativa de uma esfera de poder que se coloca como
intocável em seus meios de ação, são indivíduos que se confundem, ao
mesmo tempo, com a profissão ou função que exercem no meio social, e
com o que é apontado como pertinente a eles pelas estruturas de poder
às quais estão submetidos.
• Joseph K., de O processo, é enredado a um inquérito policial do qual não
sabe o teor, mas cuja culpa lhe é apresentada como inquestionável.
• Em O Castelo, ao agrimensor de nome K, protagonista do romance, não é
permitido o acesso ao castelo para o qual fora chamado, e que é a razão
para sua estada na vila que o circunda, e que muitas vezes se confunde
com a própria construção do castelo.
• Para um agrimensor, cujo trabalho é justamente medir limites e espaços, a
ambiguidade e ironia de Kafka revelam, via profissão e interdição, a
sujeição do personagem à esfera de um poder ininteligível.
• A esses personagens junta-se Karl, o exilado sem profissão de América,
país que no livro parece representar ele próprio uma grande empresa, e
que vive como uma espécie de pária nômade à margem das relações de
trabalho.
• Para Deleuze e Guattari, a inicial que nomeia é a mesma que
despersonaliza na obra de Kafka.
• “A letra K não designa mais um narrador nem um personagem, mas um
agenciamento tanto mais coletivo quanto mais um indivíduo se encontre
a ele ligado em sua solidão” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 38).
K. – Relato de uma busca / Deleuze e Guattari
1. Tal como na obra de Kafka, a objetivação de um personagem via inserção
a um contexto político e social específico pode ser uma forma de
abordagem à obra ficcional de Bernardo Kucinski cujo tema é a ditadura
civil-militar brasileira.
2. Ao se buscar um diálogo entre a abordagem de Kafka por Deleuze e
Guattari, com a obra de Kucinski, pode-se expor os acontecimentos
históricos e as formas de poder que engendram as ações dos seus
personagens.
• A letra do nome paterno como um agenciamento que testemunha para
além da tragédia de K. e sua filha e que assume a voz de toda uma rede de
indivíduos vítimas da história, sejam aqueles que sofreram e morreram
pela tortura na ditadura brasileira, sejam aqueles perseguidos pela
insanidade racista da Segunda Guerra.
• Em relação à realidade brasileira, a letra k deixa de ser apenas a
representação de um nome ou sujeito e torna-se a simbolização da lacuna
existente entre a memória dos desaparecidos e a perda sofrida por seus
parentes (negação dos crimes / negação dos corpos / negação da história /
absurdo do reconhecimento dos crimes sem penalização ou reparação
por parte dos autores).
• É sobre as consequências sofridas pela sua família, via pertencimento, ou
seja, a Shoá, seja via ação política, com o sionismo e a resistência à
ditadura, que Kucinski se inscreve como escritor, tanto em K. – Relato de
uma busca, como em Os Visitantes. Esse díptico é a afirmação do político
como algo inerente ao próprio lugar que Kucinski, como escritor, ocupa
como indivíduo.
• Assim como foi dito anteriormente sobre a obra de Kafka, é via os
protagonistas desses romances – e em Os visitantes, ele próprio feito
personagem - que se pode vislumbrar esse político, a partir do lugar que
ocupam e das ações que sofrem.
• Kucinski expõe o campo social no qual se desenvolve a sua ficção, para
que os protagonistas tornem-se figuração de uma conjuntura social e
política, dando forma em suas jornadas individuais a uma expressão
coletiva de resistência ao poder autoritário.
• Os personagens são, assim, eles mesmos, expressão do político, e suas
jornadas tentativas de testemunho do último período ditatorial no Brasil,
assim como de suas consequências para a sociedade brasileira atual.
SOBREVIVENTES, UMA REFLEXÃO (KUCINSKI, 2014,
P. 166-169)
Embora cada história de vida seja única, todo sobrevivente sofre em algum grau o
mal da melancolia. Por isso, não fala de suas perdas a filhos e netos; quer evitar que
contraiam esse mal antes mesmo de começarem a construir suas vidas. Também aos
amigos não gosta de mencionar suas perdas e, se são eles que as lembram, a reação é
de desconforto. K. nunca revelou a seus filhos a perda de suas duas irmãs na Polônia,
assim como sua mulher evitava falar aos filhos da perda da família inteira no
Holocausto.
O sobrevivente só vive o presente por algum tempo; vencido o espanto de ter
sobrevivido, superada a tarefa da retomada da vida normal, ressurgem com força
inaudita os demônios do passado. Por que eu sobrevivi e eles não? É comum esse
transtorno tardio do sobrevivente, décadas depois dos fatos.
No filme A escolha de Sofia, uma polonesa é obrigada pelo ocupante nazista a
escolher qual dos seus dois filhos ela prefere que sobreviva: o menino ou a menina? Se
fosse judia não teria escolha, iriam os dois para o crematório; sendo polaca o guarda
inventa um novo jogo, que a mãe faça a escolha, caso contrário as duas crianças serão
mortas. A escolha de Sofia tornou-se expressão de uma escolha impossível, na qual todas
as opções são igualmente dolorosas.
Mas a pergunta a ser feita é por que o soldado alemão decidiu submeter a mãe ao
tormento da escolha quando era mais simples matar logo as duas crianças e também a
mãe, ou ele próprio decidir qual delas matar e qual poupar? Sadismo? Talvez. Mas um
sadismo funcional, porque através desse mecanismo o criminoso transferiu à mãe a culpa
pelo filho morto. Não foi ela quem escolheu? Esse sentimento de culpa vai se apossando
da alma da mãe no decorrer dos anos até que já anciã, sobrevivente de guerra vivendo na
América, Sofia se suicida, não suportando mais a carga de uma culpa que nunca foi dela. A
culpa. Sempre a culpa.
A culpa de não ter percebido o medo em certo olhar. De ter agido de uma forma e
não de outra. De não ter feito mais. A culpa de ter herdado sozinho os parcos bens do
espólio dos pais, de ter ficado com os livros que eram do outro. De ter recebido a
miserável indenização do Governo, mesmo sem a ter pedido. No fundo a culpa de ter
sobrevivido.
Milan Kundera diz que Kafka não se inspirou nos regimes totalitários, embora seja
essa a interpretação usual, e sim na sua experiência familiar, no medo que tinha de ser
julgado negativamente pelo seu pai. Em O processo, Joseph K. examina seu passado até os
ínfimos detalhes, em busca do erro escondido, da razão de estar sendo processado. No
conto “O veredicto”, o pai acusa o filho e ordena-lhe que se afogue. O filho aceita a culpa
fictícia e vai se atirar ao rio tão docilmente quanto mais tarde Joseph K. vai se deixar
executar, acreditando que de fato errou, pois disso era acusado pelo sistema. Como Sofia,
que no fim se matou.
Por isso, também as indenizações às famílias dos desaparecidos – embora mesquinhas
– foram outorgadas rapidamente, sem que eles tivessem que demandar, na verdade
antecipando-se a uma demanda, para enterrar logo cada caso. Enterrar os casos sem
enterrar os mortos, sem abrir espaço para uma investigação. Manobra sutil que tenta
fazer de cada família cúmplice involuntária de uma determinada forma de lidar com a
história.
Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca
daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam.
Milan Kundera chamou de “totalitarismo familiar” o conjunto de mecanismos de
culpabilização desvendados por Kafka. Nós poderíamos chamar o nosso de “totalitarismo
institucional”.
Porque é obvio que o esclarecimento dos sequestros e execuções, de como e
quando se deu cada crime, acabaria com a maior parte daquelas áreas sombrias que
fazem crer que, se tivéssemos agido diferentemente do que agimos, a tragédia teria sido
abortada.
O “totalitarismo institucional” exige que a culpa, alimentada pela dúvida e opacidade
dos segredos, e reforçada pelo recebimento das indenizações, permaneça dentro de cada
sobrevivente como drama pessoal e familiar e não como a tragédia coletiva que foi e
continua sendo, meio século depois.
JACOBO, UMA APARIÇÃO (K. - RELATO DE UMA
BUSCA, P. 55-62)

“K. lembra com desgosto da Comissão


de Direitos Humanos da OEA que
rejeitara sua petição de modo muito
cínico. Disseram que, segundo o
Governo brasileiro, nada constava sobre
sua filha. É claro, foram perguntar aos
bandidos se eles eram bandidos”
(KUCINSKI, 2014, p. 57).
• “Diz que está lidando com um mecanismo muito especial de fazer as
pessoas desaparecerem sem deixar nenhum vestígio. [...] Embora sumir
com o corpo não seja difícil, diz Jacobo, na Argentina, por exemplo, os
atiravam de um avião bem longe da costa -, sempre há uma testemunha,
um piloto de avião, um subalterno que empurrou os corpos...”
(KUCINSKI, 2014, p. 60).
• “Lembra-se de Jacobo, imbuído de tanta energia que chegara a lhe incutir
um fiapo de esperança. “E como vai o Jacobo?”, perguntou. “Por isso eu
vim, e não ele”, diz Carlos. “O Jacobo desapareceu há dois meses. Nós
estamos muito preocupados. Desapareceu sem deixar nenhum vestígio”
(KUCINSKI, 2014, p. 61-62).
NESSE DIA, A TERRA PAROU (K. – RELATO DE UMA
BUSCA, P. 66-68)

“O presidente anunciara que, ao meio-dia em ponto, o ministro da justiça,


Armando Falcão, revelaria o paradeiro dos desparecidos. [...] Ao se
aproximar o instante da revelação, é como se o sol subitamente parasse no
ar; o ar ficou parado no ar; o mundo parece ter parado. Quebrou-se o
tabu. O governo falará sobre os desaparecidos. [...] O nome da filha, que
[...] deveria estar entre os primeiros, não chega. Outros que acompanham
atentos o comunicado são tomados pela perplexidade. Este está foragido,
este outro nunca foi preso, este também está foragido. Fulano já foi
libertado depois de cumprir pena”.
“De repente é pronunciado o nome de um respeitado professor de
economia que nunca despareceu, que continua morando onde sempre
morou e circulando onde sempre circulou, embora tenha sido expulso da
universidade, seguido da afirmação maldosa de que está desaparecido. E
depois outro, objeto do mesmo escárnio. Em vez de vinte e duas
explicações, vinte e sete mentiras. Eis que, ao final, aparece uma referência à
filha de K. Dela, diz o comunicado, assim como do marido e dois outros, não
há nenhum registro nos órgãos do governo”(KUCINSKI 2014, p. 66-67).
AS RUAS E OS NOMES (K. - RELATO DE UMA BUSCA,
P. 160-165)
 “O loteamento ficava num fim de mundo [...]. Ali, um projeto de lei de um
vereador [...] deu a cada rua o nome de um desaparecido político,
quarenta e sete ruas, quarenta e sete desaparecidos políticos. [...]
Percorreram algumas ruas com nomes que ele desconhecia. Depois, para
espanto de K., uma avenida General Milton Tavares de Souza. [...] Foi
quem criou o DOI-CODI, para onde levaram o Herzog e o mataram. [...]
K. agora perscrutava cada placa e escandalizou-se ao deparar com o
nome de Costa e Silva na Ponte Rio–Niterói. Incrível, uma construção
majestosa como essa de quase nove quilômetros com o nome do general
que baixou o tal do AI-5.” (KUCINSKI, 2014, p. 160-163).
ADMOESTAÇÃO (OS VISITANTES, P. 21-24)

 Meir Kucinski é um dos “visitantes” que dá título ao livro, mas


diferentemente dos outros, ele está morto e é em sonho que acusa o
filho:“Você é o culpado, o único culpado!” (KUCINSKI, 2016, p. 23).
 O pai, no capítulo intitulado “Admoestação”, afirma que Kucinski sabia
das ações políticas da filha, do envolvimento amoroso com alguém de
posição de liderança dentro da ALN, e que, por isso, era o único capaz de
evitar a sua morte. Esse capítulo é a descrição do sonho.
• O filho sonha que o pai o questiona por não haver dito, no livro anterior,
nada a respeito da viagem que pai e filha fizeram juntos, como presente
de aniversário de 30 anos de Ana Rosa, pelo Uruguai e pelo Chile.
• No monólogo do pai, os indícios do terror vão sendo postos, como se a
viagem fosse um preâmbulo ao que viria a seguir, quando o pai descobriria
da participação política da filha que resultara em sua morte.
• “Durante toda a viagem tentei saber os planos dela para depois do
doutorado, mas, por mais que perguntasse, ela não me esclarecia. Dava
respostas evasivas. Ficou muito nervosa quando desembarcamos em São
Paulo. Passou duas semanas sem me visitar. Você devia ter falado dessa
viagem. Dois meses depois aconteceu o golpe militar no Uruguai, alguns
meses mais e veio o golpe no Chile. Tudo isso sentimos aqui, mas você,
você estava numa boa, na Inglaterra, gozando a vida, indo aos concertos
do Southbank; aqui assassinavam pessoas. Inventavam que eram
atropeladas. Uma delas viu no jornal a notícia da própria morte. Por que
você não colocou isso na sua novela?” (KUCINSKI, 2016, p. 23).
• No capítulo em que se narra o sonho do escritor com o pai, antes da
cena em que seu pai está à frente do mapa da América do Sul, existe
outra em que ele discursa em ídiche, de costas para o mapa da Europa,
onde estão assinalados apenas dois nomes: Neuengamme e Monowitz,
campos de trabalho nazistas onde foram mortos dezenas de milhares de
judeus. O que discursa é incompreensível para o personagem de
Bernardo Kucinski, em função de seu desconhecimento da língua.
“Levantei os olhos para responder, mas ele já não estava mais sentado à
mesinha do café e sim em pé, atrás de um tablado ornado com flores e
ladeado por outras pessoas. Discursava em iídiche, gesticulando, mas eu não
entendia nada do que ele falava. Na parede de trás estava dependurado um
mapa da Europa pintado de preto com dois países pintados de branco. Num
deles estava escrito Neuengamme e no outro Monowitz. Quando meu pai
acabou de discursar houve aplausos prolongados. Eu também aplaudi.
Depois que cessaram os aplausos vi que o mapa na parede não era mais da
Europa e sim da América do Sul, e os dois países pintados de branco eram o
Uruguai e o Chile. Meu pai não estava mais atrás do tablado e sim na sala de
aula do meu grupo escolar na Água fria”.
“Falava em português e dava aula de geografia. Estava em mangas de camisa e
envelhecido. Falava devagar e com voz cansada. Em torno de mim sentavam-
se meus amigos do grupo escolar. Eu estava sentado num canto, meio
encolhido, e algumas meninas olhavam para mim de soslaio e percebi que
minha calça era de um pano tão fininho que quase se viam os pelos, e fui
ficando aflito porque meu pai não parava de falar e a aula não acabava.
Escrevi o que lembrei da aula. Ele disse: Só o Uruguai e o Chile estavam
livres de ditadura, por isso fomos” (KUCINSKI, 2016, p. 22).
Monowitz-Buna foi inicialmente
construído como um subcampo
para Auschwitz I, posteriormente
tornando-se um dos principais
campos do complexo. Ele foi
inaugurado em outubro de 1942
pela SS, a pedido dos executivos
da IG Farben, para fornecer
trabalho escravo para seu
complexo industrial de Buna-
Werke.
Martin Senn. Franz Kafka: O
aparelho peculiar da narrativa
“Na colônia penal”.

KAFKA, Franz. O veredicto / Na


colônia penal. Trad. Modesto
Carone. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.

O Processo (The Trial), EUA,


1962, 118 min. Direção: Orson
Welles.
https://www.youtube.com/watch
?v=gPBPMjWApxg
• PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradición. In: II Congresso
Internacional ABRALIC. Literatura e memória cultural. Belo
Horizonte:Anais de evento, 1991. p.60–66.
• “Para un escritor la memoria es la tradición. Uma memoria inpersonal,
hecha de citas, donde se hablan todas las lenguas. Los fragmentos e los
tonos de otras escrituras vuelven como recuerdos personales. Com mas
nitidez, a veces, que los recuerdos vividos” (PIGLIA, 1991, p. 60).
“La relación entre memoria y tradición puede ser vista como un pasaje a la
propiedad y como un modo de tratar a la literatura ya escrita con la misma
lógica con la que tratamos el lenguaje. Todo es de todos, la palabra es
colectiva y es anónima. […] La identidad de una cultura se construye en la
tensión utópica entre lo que no es de nadie y es anónimo y ese uso privado
del lenguaje al que hemos convenido en llamar literatura” (PIGLIA, 1991, p.
60-61).
“Un escritor trabaja en el presente con los rastros de una tradición perdida.
Un escritor trabaja con la ex tradición. Por un lado lo que ha sido, la historia
anterior, casi olvidada y por otro lado la obligación semijurídica de ser
llevado a la frontera. O traído a ella: siempre por la fuerza. La extradición
supone una relación forzada con un país extranjero” (PIGLIA, 1991, p. 61).
“Conocemos la historia del ostracismo y del exilio que constituye el mito
del castigo que la ciudad, desde su origen, inflige a los intelectuales, a los
filósofos, a los que saben descifrar enigmas […]. La figura de la extradición es
la patria del escritor, del que construye los enigmas, del que intriga y trama
un complot. Obligado siempre a recordar una tradición perdida, forzado a
cruzar la frontera” (PIGLIA, 1991, p. 61).
“La memoria tiene la estructura de una cita, es una cita que no tiene fin, una
frase que se escribe en el nombre de otro y que no se puede olvidar.
Manejar una memoria impersonal, recordar con una memoria ajena. Esa
parece una excelente metáfora de la cultura moderna” (PIGLIA, 1991, p. 64).
“Los narradores contemporáneos se pasean por el mundo de Proust como
Fabrizio en Waterloo: un paisaje en ruinas, el campo después de una batalla.
No hay memoria propia ni recuerdo verdadero, todo pasado es incierto y es
impersonal. Durante años nos acostamos temprano, a todos una madre,
quizá, nos ha despedido con un beso. La identidad se construye fuera de ahí,
en otro espacio; no familiar, desconocido, extranjero, artificial, extralocal”
(PIGLIA, 1991, p. 65).
“Basta pensar en Joseph K., que como ustedes recuerdan es el que no
puede recordar, el que parece no recordar cuál es su crimen. Un sujeto cuyo
pasado y cuya identidad verdadera es investigada. La tragedia de K (lo
kafkiano mismo diría yo) es que trata de recordar. El proceso es un proceso
a su memoria” (PIGLIA, 1991, p. 65).
“Hay una tensión registrada por Kafka entre identidad, cultura y estado
autoritario. Podríamos decir que la función del Estado, la función de eso que
suele llamarse la inteligencia del Estado es en el imaginario contemporáneo
la de reconstruir y vigilar la verdad de esas vidas falsas. La memoria personal
está en manos del Estado (lo mejor de la vida del sujeto moderno, aquello
de lo que realmente podría enorgullecerse, es lo que está escrito, en secreto,
en las fichas policiales y en los archivos)” (PIGLIA, 1991, p. 65-66).
“Los escritores actuales buscamos construir una memoria personal que
sirva al mismo tiempo de puente con la tradición perdida. Para nosotros, la
literatura nacional tiene la forma de un complot: en secreto, los
conspiradores buscan los rastros de la historia olvidada. Buscan recordar la
ex tradición, lo que ha pasado y ha dejado su huella (PIGLIA, 1991, p. 65-66).
REFERÊNCIAS:
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Kafka: por uma literatura menor. Trad.
Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte:Autêntica, 2015.
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