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Esse não é um programa de literatura, mas um programa de cultura.

É sempre necessário ressaltar que essa diferença


é muito relevante. Um programa de cultura está interessado apenas do conteúdo da obra e não na forma, nos
aspectos estilísticos das obras. Portanto, nós somente estamos interessado em saber o que o livro nos agrega acerca
do conhecimento sobre a estrutura da realidade e da consciência da condição humana. Como eu disse a vocês outras
vezes, não há modo de o resumo do livro dos nossos encontros substituir a leitura do livro. Mesmo que eu fosse um
sujeito literário, mesmo que eu conseguisse escrever de um modo muito melhor do que eu escrevo, não daria para
substituir a obra. A obra é insubstituível. Como acontece sempre, a gente começa a nossa conversa com
considerações sobre o autor chamado Franz Kafka, o autor e a sua época. E depois que a gente tiver entendido mais
ou menos o que aconteceu na época do autor, a gente cai no resumo. Depois nós teremos uma conversa aqui entre
nós para tentarmos entender o significado da obra.
As três obras principais de Kafka estão incluídos em nosso programa: “O Processo”, “A Metamorfose” (nosso livro de
hoje, que não é um romance, é uma novela) e “O Castelo”. Kafka é um autor que você pode ler inteiro com muita
facilidade, todas as suas obras estão disponíveis no Brasil (sendo de Modesto Carone o mais sólido empreendimento
de tradução de toda sua produção literária). A obra toda é muito interessante, constitui-se de três romances, uma
novela e o resto são contos. Então não é muito extenso. Você lê isso sem grandes investimentos de tempo.

Franz Kafka

Cronologia
1883 – Franz Kafka nasce no dia 3 de julho em Praga, capital da Boêmia, numa família judia de
cultura germânica.

O lugar gerou a palavra “boemia” em português, embora rigorosamente falando, nós devêssemos falar “boêmia”:
“Fulano anda na boêmia”. A Boêmia era um lugar de vida muito animada, com muita vida noturna. “Fulano é
frequentador da boêmia”, significa que ele gosta de vida noturna. Então, o Kafka nasceu em Praga, que hoje é a
capital da Tchecoslováquia. Naquela época não havia Tchecoslováquia, havia um outro país chamado Boêmia, cuja
capital era Praga, e que fazia parte do império austro-húngaro, dirigido por Viena. Hoje esse país não existe mais,
tornou-se uma região da Tchecoslováquia.

Como parte do Império Austro-Húngaro, na Boêmia dez por cento da população também fala alemão
(prager Deutsch).

Como o império era austro-húngaro, uma certa porcentagem dos habitantes falava alemão. Agora cuidado, porque
não é alemão como um alemão fala. É um alemão chamado prager Deutsch, “o alemão de Praga”. É um alemão
esquisito, estranho, falado basicamente pelo governo que, afinal de contas, pertencia ao império germânico. Kafka
nunca escreveu uma linha em tcheco (a outra língua predominante que se falava ali). Kafka é um nome judaico
comum, que significa “gralha” em tcheco, só que escrito de forma germanizada. E o alemão que Kafka fala, portanto, é
um alemão, digamos assim, meio que burocrático. Não é um alemão descontraído, como o alemão de alguém que fala
alemão de origem, mesmo. Eles eram tchecos, na verdade, Kafka e sua família.

A família de Kafka é originária da aldeia Wossek, para onde imigraram muitos judeus depois da guerra de
trinta anos. Seu pai, Hermann Kafka (1852-1931), um comerciante de novidades bem sucedido, teve com
Julie Kafka cinco filhos além de Franz: Georg e Heinrich, ambos mortos quando bebês, e Gabrielle, Valérie
e Ottilie, mortas durante a segunda guerra mundial. Franz tem problemas com um pai tirano e dá-se melhor
com a família da mãe.

Os dados sobre essa briga dele com o pai estão disponíveis num texto que Kafka escreveu, chamado “Carta ao Pai”,
uma carta furiosa que ele enviou para o pai dele, mas que nunca foi entregue. Depois da morte de Kafka isso foi
publicado. No texto, que dá pra comprar nas livrarias, Kafka faz acusações seriíssimas contra o pai dele, por ser um
tirano, um sujeito inflexível, por querer mandar na vida dele, por querer inventar uma vida que ele não queria ter. E
por causa dessa história, há a ideia de que a obra de Kafka tem um cunho psicanalítico. Os psicanalistas adoram
interpretar Kafka sob o ponto de vista do complexo de Édipo, essas coisas assim.
1889 – Entra na escola primária Deutsche Volks und Bürgerschule, na praça do Fleischmarkt e
depois, em 1893, passa ao colégio clássico Altstädter deutsches Gymnasium, que termina
em 1901. Neste ano, visita Wossek pela última vez, para comparecer ao enterro do avô.
Nessa cidadezinha de Wossek existe lá o tal do castelo que é o assunto predominante do terceiro romance, o último
romance de Kafka, “O Castelo”.
1901 – Obtém o Abitur e começa a estudar na divisão alemã da Ferdinand-Karl Universität. Após
duas semanas freqüentando o curso de química, decide mudar para direito. Segue
paralelamente cursos de germanística e de história da arte. É leitor de Kierkegaard e de
Pascal. Aprecia muito Flaubert.

O “Abitur” é o diploma de que você terminou o ensino médio.


Flaubert vocês conhecem, é o autor da Madame Bovary, aquela história conhecidíssima de uma mulher infeliz com a
sua vida no campo e que, ambiciosamente, tenta produzir uma outra vida que a acaba destruindo. E o Kierkegaard e o
Pascal são dois filósofos muito pessimistas, gente com a ideia de que há uma inviabilidade geral na vida humana.
Vocês a essa altura já devem estar desconfiados de que o Kafka tem um quadro pessoal muito interessante: ele é
judeu de origem tcheca falando alemão, nunca escreveu uma palavra em tcheco. É uma pessoa meio sem eira nem
beira, né? Ele é judeu, mas não é bem judeu. Ele é tcheco, mas usa o idioma alemão. Usa o alemão, mas não é
alemão. E ele vive sob a tutela, sob a tirania de um pai muito rígido, e ele tem uma existência um pouco pessimista.

1902 – Conhece na universidade o escritor e músico Max Brod (1884-1968), que seria seu melhor
amigo e editor post-mortem.
Esse Max Brod também era judeu e sionista fanático (não esqueçam que o sionismo – o movimento de retorno dos
judeus à Palestina – surgiu no final do século XIX, então já estava muito forte nessa época). Brod também tentou
transformar Kafka em sionista, aparentemente sem muito sucesso. Depois, quando o Kafka estava perto de morrer,
estava no final da vida, já muito doente, ele pediu a Max que destruísse todas as obras que não tinham sido ainda
publicadas. E esse Max Brod, desobedecendo o último pedido do Kafka, publicou os livros todos. Todas essas obras
que Kafka pediu que fossem destruídas estavam inacabadas. Faltava acabamento, faltavam últimos detalhes.
Devemos então a existência de umas três ou quatro obras de Kafka, as mais importantes, aliás, ao fato de que o Max
Brod desrespeitou a vontade final de Kafka.

1906 – Formado em direito no dia 18 de junho, faz estágio não remunerado de um ano no tribunal
civil de Praga.
1907 – Em novembro, torna-se funcionário da Assicurazioni Generali, uma firma italiana de
seguros. Pede demissão em 1908, alegando falta de tempo para escrever.
Não sei se vocês compreendem isso, mas determinadas atividades humanas são incompatíveis, não é? É muito difícil
fazer a junção de uma carreira burocrática, - tem que trabalhar dez horas por dia em uma firma -, com uma carreira
intelectual, artística. É complicado isso. Então o Kafka vivia essa situação: ele quer ser escritor, no entanto tem que
trabalhar em algum lugar, e o pai dele era um tirano. Tem dois familiares que ficaram para a história como monstros,
o pai do Kafka e a mulher de Sócrates, a Xantipa. Se tem alguém na história que ficou vista como uma megera
absoluta, é a tal da Xantipa, que era um tipo tirânico e autoritário, insuportável. E o outro sujeito que ficou para a
história como sendo um monstro é esse pai do Kafka. Provavelmente nos dois casos há alguma injustiça. Como tudo
na vida, né?

1908 – Começa a trabalhar no Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho do Reino da Boêmia,


seu segundo e último emprego, onde foi encarregado de estudar riscos e buscar meios
para reduzir sinistros. Apesar de obter sucesso, chama o emprego de “ganha-pão”
(Brotberuf)
Um negócio que você faz só para levar dinheiro para casa, mas pelo qual não tem lá grandes considerações, nem
amores. É mais ou menos o emprego que a maioria das pessoas consegue na vida. E isso não deve provocar
estranhamento, porque a vida não é do jeito como a gente imagina. Portanto a coisa mais comum do mundo é você
casar com quem você não tinha sonhado e acabar trabalhando num negócio que você também não queria fazer. Não
tem nada de estranho nisso, não sei se é o caso de alguém aqui, mas não se impressione porque é completamente
natural que seja assim. E sobretudo porque uma coisa implica a outra, né? Uma vez casado, você vai ter que pegar o
primeiro negócio que te derem. Então é uma coisa comum na história das pessoas que elas não tenham escolhido
exatamente o melhor casamento e nem o melhor emprego. É comum. Há muita gente que não é assim, tem gente
que consegue fazer as duas coisas. Há uma outra parte que consegue fazer só uma das duas. Então, para o Kafka esse
emprego, que era de um certo prestígio, era apenas um Brotberuf - um trabalho para você levar dinheiro para casa, e
só.

1908 – Por influência de Brod, publica aos poucos “Descrição de uma luta” (Bechreibung eines
Kampfes) na revista muniquense Hyperion de Franz Blei.
1910 – Começa a redigir “Os Diários” (Tagebücher).
Sabemos muito sobre a vida de Kafka devido a diversas fontes escritas que ele deixou, como o seu diário e
as muitas cartas que escreveu para a noiva.
1911 – Por pressão do pai, Kafka começa a colaborar, contrariado, às tardes, na firma de asbestos
de seu cunhado Karl Hermann. Kafka preferia passar as tardes escrevendo.
Por meio do Yeddish Theater começa a se aproximar do judaísmo, de que sempre esteve
distante.
Ele era um judeu não praticante que começa a se interessar pelo judaísmo só aí nessa altura da vida quando vai
assistir ao teatro judaico. Esses judeus eram obviamente muito ciosos da sua individualidade, os países da Europa não
permitem o grau de miscigenação cultural que há aqui, então os judeus aí eram os judeus de verdade, mais judeus do
que tchecos, e sobretudo mais judeus do que alemães, seguramente isso. E aí então nessa altura ele começa a se
interessar por judaísmo.
1912 – Conhece, na casa de Brod, Felice Bauer, uma berlinense de quem se tornaria noivo duas
vezes.
Torna-se vegetariano e adepto de manias alimentares. Escreve “O Veredito” (Das Urteil),
“A Metamorfose” (“Die Verwandlung”) e a maior parte de “Amerika”.
Neste ano, segundo Peter Drucker (famoso economista, considerado o pai da gestão moderna),
também recebe medalha pela invenção do “capacete de segurança” que reduziu a mortalidade
profissional para menos de vinte e cinco mortes por mil operários na indústria local de aço.

1913 – Publicados por Kurt Wolff “O Foguista” (Der Heizer), a coletânea de contos “Contemplação”
(Betrachtung) e “O Veredito” (Das Urteil). Neste ano, escreveria no dia 21 de agosto no seu
diário “O meu emprego é insuportável porque contradiz o meu único desejo e a minha
única vocação, a literatura. Como sou apenas literatura e como não quero nem posso ser
outra coisa, o meu emprego não poderá nunca seduzir-me, só poderá ao contrário
destruir-me totalmente!” (Diários).
Então o Kafka está aqui admitindo que a sua existência só poderia ser realizada se ele fosse apenas escritor e nada
mais do que isso

1914 –Começa a escrever “O Processo” em agosto.


Esse tipo de informação vem de “O Diário”. Está escrito lá: “hoje comecei a escrever um livro que é mais ou menos
assim”, que você interpreta como sendo O Processo. Nem sempre o título do livro já está pronto no primeiro dia. Às
vezes é a última coisa que você põe. Há escritores que constroem toda a obra em cima do título e há escritores que o
põe em último lugar. Tem todo o tipo de situação

1915 –Publicada por Kurt Wolff a novela “A Metamorfose” (Die Verwandlung) na revista “Die
weissen Blätter” da René Schickele.
1917 – Rompe o noivado com Felice. Neste mesmo ano e é diagnosticado com tuberculose no
pulmão e na laringe, provável resultado do consumo de leite não pasteurizado (uma de suas manias
alimentares).Lê Kierkegaard obsessivamente, o que é uma maneira de você ficar meio pessimista com relação ao
mundo. Há determinados filósofos que te põem para cima, outros que te põem para baixo. Há filósofos que chegam
para você assim como chega um sujeito para um suicida que está tentando pular de um prédio e diz: “Duvido que
você seja homem de pular!”. É mais ou menos é o que alguns filósofos fazem conosco.

1919 – Kafka torna-se noivo de Julie Wohryzek, filha do zelador da sinagoga.


Ela é judia, mas tinha o defeito de ser a filha do zelador. Adivinhem se o pai de Kafka concorda com o casamento do
filho (ele era um sujeito da classe média, tinha uma loja)? Uma das mágoas que Kafka tinha do pai é que ele impediu o
casamento com essa Julie, por causa de preconceito econômico. Não era racial, porque ela era judia também, era
meramente econômico. Ela era uma mulher pobre.
Publicados juntos por Kurt Wolff “Na Colônia Penal” (In der Strafkolonie) e a coletânea de
contos “Um Médico Rural” (Ein Landartz ). Escreve “Carta ao Pai” (Brief an der Vater).
1920 – Já rompido com Julie (por causa do pai), conhece a jornalista Milena Jesenská, que se tornaria sua
amante e traduziria os textos para checo.
A Milena não era judia, mas ela acabou indo parar num campo de concentração também, porque foi acusada de
ajudar os judeus. Essa aí então o pai não concordaria de jeito nenhum, porque faltava a ela a característica principal,
ser judia como a família. O pai dele era um judeu daqueles meio ortodoxos. O Kafka não, mas o pai era um judeu que
seguia todas as regras, e entre elas ficar casando com outros judeus.

1921 – A tuberculose se agrava e ele não consegue mais trabalhar.


1922 – Franz Kafka se aposenta por invalidez. Escreve “O Castelo” entre fevereiro e setembro.
1923 – Conhece a professora de pré-escola Dora Diamant numa viagem e eles passam a morar
juntos em Berlim, primeira ausência de Praga.
Quer dizer, ele até então havia feito viagens rápidas, e agora pela primeira vez ele vai morar noutro lugar que não
Praga. Vai morar na Alemanha, que afinal de contas é onde ele conseguia se comunicar bem.
Dora provinha de uma família ortodoxa e apresentou a Kafka o Talmud.
É mais um passo do Kafka em direção a uma religiosidade judaica.

Neste ano, Kafka teria enviado carta-testamento a Max Brod com instruções para destruir,
após sua morte, os manuscritos não publicados e que nunca reeditasse “Betrachtung”:
“Tudo isso, sem exceção, tem de ser queimado, e será melhor ninguém lê-lo antes”.

Então não é verdade que a obra de Kafka teria que ter sido queimada, o que é verdade é que apenas a obra inacabada
é que deveria ter sido queimada. E Kafka publicou em vida uns três, quatro livros. E o que Kafka queria é que a obra
que ele não havia publicado fosse queimada depois da sua morte. Essa história acabou dando num processo judicial,
porque a família foi lá tirar satisfações com o Max Brod. Há um crime - não sei muito bem como é, não sei se tem no
Brasil também -, que se chama Falsidade Testamentária. Você é testamenteiro de alguém e não cumpre aquilo que foi
estabelecido. E o Max Brod defendeu-se assim: “Se ele quisesse de fato queimar, primeiro ele podia ter feito sozinho.
Segundo, vai logo pedir pra mim, isso? Eu que adoro as coisas que ele escreve! Então, na hora que ele me pede uma
coisa dessas, está implícito que no fundo, no fundo, ele não quer que sejam queimados, muito pelo contrário, ele quer
que os livros permaneçam”. E foi assim que o Max Brod se justificou perante a justiça do fato de não ter queimado os
manuscritos inacabados.

1924 – Muito mal de saúde, Kafka retorna a Praga em maio e procede para a casa de saúde do
doutor Hoffmann em Kierling, perto de Viena.
Em 3 de junho, ao meio-dia, Franz Kafka, tendo a seu lado o estudante de medicina Robert
Klopstock, morre de inanição e desidratação causada pela impossibilidade de engolir
alimentos.
Nessa época não havia nenhum método de alimentação parenteral. Então Kafka morreu de fome e sede. Não
conseguia comer nada, a garganta estava completamente inviabilizada, não passava nada mais.

Seu corpo é levado a Praga, onde está enterrado no cemitério judaico de


Straschnitz. É publicado o conjunto de contos “Um Artista da Fome” (Ein Hungerkünstler),
cujas provas tipográficas Kafka teria corrigido no leito de morte.
Muito interessante é que no leito de morte ele revê os originais de uma coleção de contos, cujo principal deles chama-
se Ein Hungerkünstler, que significa “Um Artista da Fome”. A personagem central desse conto também é um sujeito
que morre de fome. Então ele está no leito de morte escrevendo uma história em que o sujeito morre de fome e ele
morre de fome, de fato. É como Molière que escreveu, entre diversas peças, uma chamada “O Doente Imaginário”.
Nas apresentações da peça, quem fazia o papel de doente imaginário era ele mesmo. Aí teve uma apresentação em
que ele teve uma crise no palco e acabou morrendo mesmo, dois dias depois de ter ficado mal durante a peça em que
fazia o papel de doente imaginário. Isso é para vocês saberem que é preciso tomar cuidado com aquilo que vocês
escrevem, com os papéis que vocês aceitam representar nas peças de teatro da cidade... Então, para vocês se
precaverem quanto a isso.

1925 – Publicado pela Kurt Wolf Verlag, com edição de Max Brod, o romance “O Processo” (Der
Prozess).
1926 – Publicado pela Kurt Wolff Verlag, com edição de Max Brod, o romance “O Castelo” (Das
Schloss).
1927 – Publicado pela Kurt Wolf Verlag, com edição de Max Brod, o romance “O Desaparecido”
(Amerika ou Der Verschollene), que, no entanto, teria sido escrita antes de “O Processo” e
de “O Castelo”.

E é aí então, depois da morte de Kafka, - isso aqui é muito importante, tá? - o Max Brod, que se negou a destruir os
originais, publica O Processo em 1925, em 1926 O Castelo, e em 1927 América, ou O Desaparecido, esse livro tem dois
nomes. Kafka colocou o nome de América e o Max Brod mudou para O Desaparecido. Foram publicados depois da
morte de Kafka - mas entendam o que significa isso. Fica um monte de papel escrito, sem ordem, às vezes sem
indicação da sequência de capítulos, às vezes com trechos obscuros que ainda não foram consertados, com
dificuldades de correção, até mesmo sem o título definitivo. E o Max Brod então vai lá e edita isso tudo.

1930 – Surge interesse pela obra de Kafka, graças a um artigo elogioso de Thomas Mann.
Até 1930 Kafka não é muito conhecido. Ele é um escritor de Praga, portanto não está dentro do grande mundo da
literatura germânica.

1931 – Publicado “A Muralha da China” (Beim Bau der chinesischer Mauer), coletânea de contos
selecionados por Max Brod.
1932 – O livreiro judeu de Berlim, Salmon Schocken decide publicar toda a obra.
1936 – Publicado “Descrição de uma Luta” (Beschreibung eines Kampfes).
1937 – Publicado “Os Diários” (Tagebücher).
1939 – Os nazistas destroem todas as edições Schocken, Max Brod consegue fugir para a
Palestina e leva os manuscritos de Kafka, que vão parar na Schoken Library em
Jerusalém.
Aí em 1939 os nazistas já tomaram o poder na Alemanha, e também na Tchecoslováquia. A região dos sudetos, na
Tchecoslováquia, foi o primeiro lugar que eles invadiram. Depois virou tudo espaço nazista. Os nazistas destruíram
todas as edições Schocken. E o Max Brod foge para a Palestina, que naquela época já existia, levando com ele os
manuscritos de Kafka. Foram parar numa biblioteca em Jerusalém.

1941 – Saem novas edições Schocken em Nova Iorque que servirão de base para as traduções.
1954 – Publicadas “Cartas para Milena” (Briefe an Milena), em edição conjunta de Max Brod e do
crítico Willy Haas.
1956 – O editor Salmon Schocken e Max Brod depositam os manuscritos, que estavam sob sua
guarda, no cofre de um banco suíço em Zurique. A família negocia a devolução.
1961 – O germanista britânico Malcolm Pasley convence a família a incorporar os manuscritos de
Kafka ao acervo da Biblioteca Bodleian de Oxford. Os manuscritos de “O Processo”, no
entanto, permaneceriam com uma herdeira.
Em Oxford, Malcolm Pasley reúne um grupo de especialistas (Gerhard Neumann, Jost
Schillemeit e Jürgen Born) para reconstruir a partir dos manuscritos os romances
inacabados de Kafka, expurgando as contribuições de Brod, tanto gramaticais como
estilísticas. Estas edições são, de modo geral, consideradas as melhores.

Quer dizer, começar do zero de novo. Essas edições são chamadas de Edições Críticas, e são consideradas as melhores.
“A Metamorfose”, o livro cuja história leremos hoje, foi publicado quando Kafta ainda estava vivo, portanto não
apresenta essas contribuições alheias.

1967 – Publicado “Cartas a Felice”.


1968 - Morre Max Brod.
1969 – O escritor Isaac Bashevis Singer (1904-1991) escreve o conto “A Friend of Kafka” onde a
personagem Jacques Kohn, que teria conhecido Kafka, informa que este último acreditava
na existência do Golem, personagem folclórica do judaísmo, um homem artificial criado
pelo rabino Loew em Praga.
Então há uma lenda judaica de que em 1600 e alguma coisa, quando os judeus de Praga eram muito perseguidos, o
rabino Loew, para tentar resolver isso, foi até o rio que banha Praga e tirou um pouco de barro, assim como Deus fez
na Bíblia, e com esse barro ele fez um monstro chamado golem, que ajudava então a defender os judeus em Praga. Só
que o tal do golem saiu do controle do rabino, e aí teve que ser destruído depois por uma mágica. A mesma mágica
que o rabino usou para construir o golem, teve que usar para destruí-lo. É uma lenda judaica.

1988 - Os manuscritos originais de “O Processo”, em posse da herdeira Ilse Ester Hoffe, são
comprados por 1,1 milhão de libras pelo Arquivo Literário Alemão (de Marbach) num leilão
da galeria Sotheby’s.
Toda a obra de Kafka, todos os manuscritos estão lá na Inglaterra, exceto esse aí que está na Alemanha.
1982 - Publicada pela Fischer Verlag, com a edição de Malcolm Pasley a nova versão de “O
Castelo”.
1983 – Publicada pela Fischer Verlag, com edição de Jost Schillemeit a nova versão para
“América”.
1990 – Publicada pela Fischer Verlag, com edição de Malcolm Pasley, a nova versão de “O
Processo”.

Kakfa, portanto, é um sujeito com uma vida muito original. Ele não é nem judeu totalmente, nem alemão totalmente,
nem tcheco totalmente. Não se deu muito bem com as mulheres, dá para reparar que ele teve dificuldades com as
mulheres. Uma briga sistemática com o pai. O pai e ele viveram sempre muito mal. É um sujeito que tinha de fato
consciência da sua vocação literária. Que tinha desconfiança de que as obras que ele não tinha acabado não eram muito
boas. Que viveu muito pouco, não é? Morreu de tuberculose, o que não era incomum naquela época, mas já era uma
doença contornável, de certo modo. E era um sujeito que tinha uma dificuldade alimentar extraordinária. Apesar de ser
de uma família judaica religiosa, ele mesmo não era muito religioso, a não ser no final da vida, em que parece que
ficou.
Foi esse homem atormentado, com uma psicologia muito especial, acabou fazendo uma das mais importantes obras
literárias do século XX. Toda a obra de Kafka é perpassada por um clima sinistro e incompreensível, que gera no leitor
alguma angústia. O nosso livro de hoje, “A Metamorfose”, é o livro mais conhecido e lido de Kafka; nenhum outro tem
tanto prestígio.
Por ser um livro bem pequeno, é fácil todo mundo se candidatar a lê-lo, apesar de existir uma taxa de incompreensão
tão alta quanto é o entusiasmo de seus leitores. Essa obra, por suas características, apresenta um potencial de
interpretação enorme, há quem catalogue as diferentes interpretações da obra (parece que a última conta está em
130 interpretações). Portanto, não é muito difícil encontrar mais uma, não é? Há muitas interpretações "adequadas" a
nessa época, como as típicas interpretações marxistas e freudianas. Entretanto, há outras interpretações possíveis,
que certamente conseguiremos atingir na tarde de hoje

Resumo da Narrativa – A Metamorfose

Segundo as cartas que escreveu a sua noiva Felice Bauer, Franz Kafka escreveu a novela “Die
Verwandlung”, normalmente traduzida no Brasil por “A Metamorfose”, mas que Otto Maria Carpeaux manda
verter por “A Transformação”, entre 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912.

O motivo pelo qual a obra se chama “A Metamorfose” no Brasil é que as primeiras traduções foram feitas
indiretamente a partir do livro em francês. Como havia muito mais gente que falava francês do que alemão, isso era
muito comum. O mesmo aconteceu com as obras de Dostoievski, por isso que o livro “Os Demônios” também é
conhecido como “Os Possessos”. Os franceses sempre achavam que tinham mais ou menos o direito de fazer o que
bem entendiam ao traduzir as obras, porque "eles é que viviam de literatura, o resto do mundo não sabia nada".
Então, Dostoievski foi muito adocicado pelos franceses e consequentemente as nossas traduções também - a Raquel
de Queiroz, que foi uma tradutora importante da obra dele, traduzia a partir do francês.

"A Metamorfose" tem um sentido diferente de "A Transformação", porque a metamorfose é uma transformação pré-
determinada que cumpre um ciclo, o que não é necessariamente verdade nessa história.

Uma das poucas obras publicadas em vida, “A Metamorfose” apareceu pela primeira vez na revista “Die
weissen Blätter” (“As folhas brancas”), dirigida por René Schickele em 1915 e, em novembro do ano
seguinte, na prestigiosa coleção expressionista “Der jungste Tag”(O dia mais jovem”) da Kurt Wolff Verlag.

Qual é “o dia mais jovem”? É o dia do Juízo Final, pois é o dia que está mais distante de nós, que ainda não nasceu.

Houve reedição em 1918. Segundo suas próprias palavras, a “Metamorfose” é “uma história repulsiva”,
”uma pequena história” e uma história com o “fim ilegível”. Se tivessem vingado os planos de Kafka, “Die
Verwandlung” teria sido publicada junto com “Das Urteil” (“O Veredicto”) e com “Der Heizer” (“O Foguista”),
capítulo inicial do romance “Der Verschollene” (“O Desaparecido”), no volume único “Söhne” (“Fillhos”).

Começamos a nossa história então, a história de Gregor Samsa. “Samsa” é obviamente um nome calcado em “Kafka”
(similaridade na pronúncia). Nas outras duas obras que seriam publicadas junto de “A Metamorfose”, as personagens
apresentam nomes muito similares (no fundo, é a mesma personagem), por isso há um parentesco entre as obras.

A primeira frase de “A Metamorfose” é a descrição de uma desgraça, e aqui surge a primeira polêmica pois há muita
dúvida sobre se a expressão original empregada por Kafka significa realmente “inseto”. Depois, ao longo da história, a
personagem vai definidamente ficando similar a um inseto, mas Kafta não queria que essa criatura fosse representada
na capa do livro, queria que a criatura na qual Samsa se transforma fosse, de certo modo, enigmática. Aqui no Brasil,
não sei quem foi que inventou a história, difundiu-se a ideia de que se trata de uma barata. Coisa muito improvável,
porque em nenhum modo do livro fica claro que ele se transforma numa barata, isso é apenas uma simplificação da
história. Então, trata-se de um inseto, uma criatura asquerosa e repulsiva.



I
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto monstruoso1. Estava deitado sobre suas costas duras
como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido
por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se
sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do
resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
- O que aconteceu comigo? – pensou.
Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno
demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. Sobre a mesa, na
qual se espalhava, desempacotado, um mostruário de tecidos – Samsa era
caixeiro-viajante -, pendia a imagem que ele havia recortado fazia pouco tempo de uma
revista ilustrada e colocado numa bela moldura dourada. Representava uma dama de
chapéu de pele e boá de pele que, sentada em posição ereta, erguia ao encontro do
espectador um pesado regalo também de pele, no qual desaparecia todo o seu antebraço.
O olhar de Gregor dirigiu-se então para a janela e o tempo turvo – ouviam-se gotas de
chuva batendo no zinco do parapeito – deixou-o inteiramente melancólico.” (págs 7-8)

Vocês não acham estranho? Primeiro que ele tenha se transformado em um inseto, segundo que se
sinta apenas melancólico nessa situação. Outro detalhe que eu gostaria que vocês prestassem atenção é
que está chovendo, e a chuva/água é um dos símbolos mais poderosos da literatura para a ideia de caos.
Para compreender isso, basta lembrar da Bíblia: "A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o
abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gênesis 1, 1). Isto é, a água é aquilo que é
disforme, a potência absoluta. O fato de que está chovendo no momento em que há a transformação é
coincidente com o sentido simbólico da água: é necessário que a ordem anterior seja destruída, que
Gregor se torne disforme para assumir uma nova forma.

Gregor Samsa está deitado de costas na sua própria cama, no seu quarto de três portas, uma para o
corredor e duas para os quartos laterais, no apartamento onde mora com seus pais e irmã, em Praga, na
rua Charlotte, do lado oposto a um hospital. Seu pai envelhecido, obeso e frustrado, não trabalha há cinco
anos, desde a falência da firma; sua mãe é doente de asma e, sua irmã de dezessete anos, Grete, “ainda
uma criança”, é talentosa violinista sem meios de freqüentar o conservatório. A família tem uma cozinheira,
Ana, e uma empregada. Gregor está em casa há oito dias, intervalo entre duas viagens de negócios.

Dizem os comentaristas que a


disposição do apartamento de Gregor é
a mesma da casa de Kafka. O primeiro
fato que fica evidente é que Gregor tem
um certo sucesso profissional, visto que
é capaz de manter duas empregadas.

1 No original está marcado: “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in
seinem Bett zu einem ungeheuregen Ungeziefer verwandelt.” A expressão “Ungeziefer” significa “praga” ou “inseto
sugador de sangue.”
Gregor pergunta-se se não deveria voltar a dormir e esquecer “aquela bobagem toda”, mas sua nova
condição o impede de dormir, porque estava acostumado a dormir do lado direito. Também não consegue
levantar da cama para ir trabalhar como caixeiro viajante e dá-se conta do quanto odeia o seu trabalho, que
só ainda não abandonou porque tem de pagar a dívida que seus pais têm junto ao patrão:

“Bem, ainda não renunciei por completo à esperança: assim que juntar o dinheiro para lhe
pagar a dívida dos meus pais – deve demorar ainda de cinco a seis anos – vou fazer isso
sem falta. Chegará então a vez da grande ruptura. Por enquanto, porém, tenho de me
levantar, pois meu trem parte às cinco.” (pág. 9)

Portanto, ele é jovem e trabalha sozinho para sustentar toda a família; ele ganha a vida vendendo coisas. Embora seja
impossível alguém escrever um livro sem uma conotação autobiográfica, é um erro tremendo imaginar que as
personagens representem os seus criadores – o que acontece é sempre um meio-termo entre esses dois extremos.
Assim, não imaginem que o Samsa seja o Kafka e também não pensem que a personagem seja vazia de qualquer
conotação pessoal do autor. Mas tenham em mente que Kafta nunca vivenciou a situação de Gregor, nunca precisou
sustentar a família.

Samsa confere o despertador e dá-se conta de que ele havia perdido a hora e o trem das cinco, mas
poderia tentar pegar o das sete, embora a essa altura o contínuo da firma, “uma criatura do chefe, sem
espinha dorsal e sem discernimento”, já teria avisado o chefe de que ele não aparecera para o embarque.
Tenta levantar novamente. Em cinco anos de serviço ainda não havia ficado doente. Samsa ouve sua mãe
despertando-o com batidas na porta e fica chocado com o som da sua própria voz dizendo “sim, sim,
obrigado, mãe, já vou me levantar.” Seu pai bate em uma das portas laterais, pedindo que se levante. Sua
irmã Grete também o chama da outra porta lateral. Agradecendo o hábito de trancar as portas adquirido nas
suas viagens, Gregor tenta dizer-lhes, como pode, que está a caminho, mas não é de forma nenhuma
compreendido. Está com mais fome que o habitual.

Vocês não acham essa situação também estranha, isto é, que haja tanta exigência de sua família considerando que em
cinco anos ele nunca faltou uma única vez ao serviço por estar doente? Há um exagero na cobrança, certo?

Gregor continua a rolar de um lado para o outro tentando sair da cama, quando a campainha toca.

“ – É alguém da firma – disse a si mesmo e quase gelou, enquanto as perninhas dançavam


mais rápidas por causa disso.
Durante um momento ficou tudo silencioso.
- Eles não vão abrir – disse Gregor consigo mesmo, preso a alguma esperança absurda.
Mas aí a empregada, natural como sempre, caminhou com passos firmes até a porta e
abriu. Gregor só precisou ouvir a primeira palavra de saudação do visitante para saber
quem era – o gerente em pessoa.
É uma coisa normal o seu chefe aparecer na sua casa porque você se atrasou a pegar o trem para o
trabalho? Alguém já passou por essa experiência? Não acontece de modo geral, não é? Há uma certa
desproporção entre a importância do cargo de Gregor Samsa e a cobrança de seus empregadores.
Por que Gregor estava condenado a servir numa firma em que à mínima omissão se
levantava logo a máxima suspeita? Será que todos os funcionários eram sem exceção
vagabundos? Não havia, pois, entre eles nenhum homem leal e dedicado que, embora
deixando de aproveitar algumas horas da manhã em prol da firma, tenha ficado louco de
remorso e literalmente impossibilitado de abandonar a cama? Não bastava realmente
mandar um aprendiz ir perguntar – se é que havia necessidade desse interrogatório? Tinha
de vir o próprio gerente, era preciso mostrar com isso à família inteira – inocente – que a
investigação desse caso suspeito só podia ser confiada à razão do gerente? E mais por
causa da excitação a que foi levado por essas reflexões do que em conseqüência de uma
decisão de verdade, Gregor se atirou com toda a força para fora da cama. Houve uma
pancada alta, mas não propriamente um estrondo. A queda foi um pouco atenuada pelo
tapete, mas as costas também eram mais elásticas do que Gregor havia pensado – daí o
som surdo que não chamava tanto a atenção. Ele só não tinha sustentado a cabeça com
cuidado suficiente e por isso havia batido com ela; de raiva e dor, virou-a e esfregou-a no
tapete.
- Caiu alguma coisa lá dentro – disse o gerente no aposento vizinho da esquerda.” (págs.
15-16)

Do lado de fora do quarto, a irmã e o pai de Gregor, cada um de um lado, continuam suas tentativas de
fazê-lo abrir a porta. Sua mãe explica ao gerente que Gregor está doente, que nunca descansa e que, na
sua dedicação ao trabalho, só lê folhetos com horários de trem.

“ – Ele não está bem, acredite em mim, senhor gerente. Senão como Gregor perderia um
trem? Esse moço não tem outra coisa na cabeça a não ser a firma. Eu quase me irrito por
ele nunca sair à noite; agora esteve oito dias na cidade, mas passou todas as noites em
casa. Fica sentado à mesa conosco e lê em silêncio o jornal ou estuda horários de viagem.”
(pág. 17)

O gerente fala alto da sala, acusando-o de se entrincheirar no quarto, de causar preocupações sérias e
desnecessárias aos pais e de descurar de seus deveres funcionais “de uma maneira inaudita”: “Estou
perplexo, estou perplexo. “ Menciona desconfianças do chefe quanto às “omissões” recentes e o trabalho
insatisfatório de Gregor estarem ligados a eventuais desfalques na firma e que aquela atitude iria reforçar. O
pai pergunta a Gregor se o gerente pode entrar no seu quarto: “Não – disse Gregor. No cômodo vizinho da
esquerda sobreveio um silêncio penoso, no aposento contíguo da direita a irmã começou a soluçar.”

Isso também não é estranho? Um pai, de modo geral, defenderia o filho.

Samsa, no seu quarto, diz ao gerente que ele tem apenas um mal estar, de que tinha tido um prenúncio na
noite anterior, e que pegará o trem das oito. Pede-lhe que poupe os pais daquela insistência e manda
recomendações ao chefe.
“ – Entenderam uma única palavra? – perguntou o gerente aos pais. – Será que ele não nos
está fazendo de bobos?
- Pelo amor de Deus! – exclamou a mãe já em lágrimas. – Talvez ele esteja seriamente
doente e nós o atormentamos. Grete! Grete! – gritou então.
- Mamãe? – bradou a irmã do outro lado.
Elas se comunicavam através do quarto de Gregor.
- Vocâ precisa ir imediatamente ao médico. Gregor está doente. Vá correndo ao médico.
Você ouviu Gregor falar, agora?
- Era uma voz de animal – disse o gerente, em voz sensivelmente mais baixa, comparada
com os gritos da mãe.” (págs. 21-22)

A mãe de Samsa cogita de ele estar realmente doente e pede a Grete que vá buscar um médico. O pai, por
sua vez, manda a cozinheira Ana buscar um serralheiro. As duas atravessam a sala correndo e juntas
ganham a rua. Gregor fica feliz em saber que a família está se preocupando com ele.
“A confiança e a certeza com que foram tomadas as primeiras decisões fizeram-lhe bem.
Sentiu-se novamente incluído no círculo dos homens e passou a esperar do médico e do
serralheiro – sem propriamente separá-los – desempenhos excepcionais e surpreendentes.
A fim de ficar com a voz o mais clara possível para as conversações decisivas que se
aproximavam, tossiu um pouco, esforçando-se entretanto para fazer isso de um modo bem
abafado, uma vez que até esse ruído possivelmente soava diferente de uma tosse humana,
coisa que ele mesmo já não ousava decidir. Nesse meio tempo fez-se completo silêncio no
aposento ao lado. Talvez os pais estivessem sentados à mesa com o gerente e
cochichassem, talvez estivessem todos curvados sobre a porta, escutando.” (págs. 22-23)

Gregor gira a chave da porta da sala de estar com as mandíbulas, sem perceber que “estava causando uma
lesão a si mesmo, pois um líquido marrom saiu da sua boca, escorreu sobre a chave e pingou no chão.”
“Ouçam – disse o gerente no cômodo vizinho – ele está girando a chave.” Em seguida, ele tenta abrir as
duas folhas. A operação é difícil para as suas condições. Quando consegue abrir uma delas, é entrevisto
primeiro pelo gerente e depois por seus pais.
“Estava ainda ocupado com essa manobra difícil, sem ter tido tempo para atentar em outra
coisa, quando ouviu o gerente soltar um ‘oh’ alto – soava como o vento que zune – e então
Gregor o viu também: era o mais próximo da porta e comprimia a mão sobre a boca,
enquanto recuava devagar, como se o impelisse uma força invisível que continuasse agindo
de modo constante. A mãe – apesar da presença do gerente, ela estava ali com os cabelos
ainda desfeitos pela noite, espetados para o alto – a princípio fitou o pai com as mãos
entrelaçadas, depois deu dois passos em direção a Gregor e caiu no meio das saias que se
espalharam ao seu redor, o rosto totalmente afundado no peito. O pai cerrou o punho com
expressão hostil, como se quisesse fazer Gregor recuar para dentro do quarto, depois olhou
em volta de si, inseguro, na sala de estar, em seguida cobriu os olhos com as mãos e
chorou a ponto de sacudir o peito poderoso.” (pág. 24)

Com meio corpo fora do quarto, segurando a segunda folha da porta, Gregor fala na direção da sala de
estar:

“ – Bem – disse Gregor, consciente de que era o único que havia conservado a calma -, vou
logo me vestir, pôr o mostruário na mala e partir de viagem. Vocês querem mesmo me fazer
partir? Bem, senhor gerente, o senhor está vendo que não sou teimoso e que gosto de
trabalhar; viajar é fatigante, mas não poderia viver sem viajar. Para onde o senhor vai,
senhor gerente? Para a firma? Sim? O senhor vai relatar tudo fielmente? Pode-se no
momento estar incapacitado para trabalhar, mas essa é a hora certa para se lembrar das
realizações passadas e para se pensar que mais tarde, uma vez superados os obstáculos,
sem dúvida se vai trabalhar com mais afinco e forças mais concentradas. Devo muita
obrigação ao senhor chefe, isso o senhor sabe muito bem. Tenho por outro lado de cuidar
dos meu pais e da minha irmã. Estou num aperto, mas sairei dele trabalhando. Não me
torne porém as coisas mais difíceis do que já são. Tome o meu partido na firma! Que o
caixeiro-viajante não é querido eu sei. Todos pensam que ele ganha rios de dinheiro e além
disso leva uma boa vida. Não se tem de fato nenhuma oportunidade especial para se
analisar melhor esse preconceito. Mas o senhor, gerente, o senhor tem sobre as coisas, cá
entre nós, uma visão de conjunto melhor do que o resto do pessoal, melhor até do que o
próprio senhor chefe, que na qualidade de empresário se deixa enganar facilmente no seu
julgamento em prejuízo do funcionário. O senhor sabe muito bem que o caixeiro-viajante,
que fica quase o ano inteiro fora da firma, pode assim se tornar facilmente vítima de
mexericos, casualidades e queixas infundadas, contra as quais é completamente
impossível se defender, uma vez que na maioria das vezes ele não fica sabendo delas e só
o faz quando, exausto, termina uma viagem e já em casa sente na própria carne as
conseqüências nefastas cujas origens não podem mais ser descobertas. Senhor gerente,
não vá embora sem me dizer uma palavra capaz de mostrar que o senhor me dá pelo
menos uma pequena parcela de razão! (págs. 25-26)

O Gregor faz todo esse discurso, mas lembrem-se que ele não é entendido de modo nenhum.

O gerente está na ante-sala de costas para Gregor e só lhe dirige o olhar “por cima dos ombros trêmulos,
com os lábios revirados”, enquanto avança discretamente para a porta de saída. Gregor não queria que ele
saísse naquele estado de espírito, porque seu emprego na firma ficaria ameaçado e dele dependia o seu
futuro e da sua família. “Se pelo menos a irmã estivesse aqui,” pensa Gregor, que acha Grete esperta para
lidar com o gerente, comovendo com lágrimas “esse amigo das mulheres.”
Gregor começa a andar em direção ao gerente, para explicar-lhe melhor, já que ele parecia não estar
entendendo, mas sua mãe ao percebê-lo assusta-se.
“ – Socorro! Pelo amor de Deus, socorro!
Conservava a cabeça inclinada, como se quisesse ver Gregor melhor, mas em contradição
com isso retrocedia de maneira impensada; tinha esquecido que atrás dela estava a mesa
ainda posta e quando a alcançou sentou-se, como que por distração, rapidamente em cima;
e parecia não notar absolutamente que ao seu lado o café escorria em abundância da
grande jarra virada sobre o tapete.
- Mamãe! Mamãe! – disse Gregor baixinho e olhou para ela de baixo para cima.
Por um instante o gerente sumiu do seu pensamento; por outro lado não pôde se impedir,
à vista do café que escorria, de bater no vazio várias vezes com as mandíbulas. Diante
disso a mãe recomeçou a gritar, escapou da mesa e caiu nos braços do pai que corria ao
seu encontro. Mas agora Gregor não tinha tempo para seus pais; o gerente já estava na
escada; com o queixo em cima do corrimão ele ainda olhou para trás uma última vez.
Gregor tomou impulso para alcançá-lo com a maior certeza possível; o gerente deve ter
pressentido alguma coisa, pois deu um salto sobre vários degraus e desapareceu; ainda
gritou ‘ui!’ e o grito ressoou por toda a escadaria. Infelizmente a fuga do gerente pareceu
perturbar por completo o pai, que até então tinha estado relativamente sereno; pois em vez
de correr, ele próprio, atrás do gerente, ou pelo menos não impedir Gregor de persegui-lo,
agarrou com a mão direita a bengala do gerente, que este havia deixado com o chapéu e o
sobretudo em cima de uma cadeira, pegou com a esquerda um grande jornal da mesa e,
batendo os pés, brandindo a bengala e o jornal, pôs-se a tocar Gregor de volta ao seu
quarto. Nenhum pedido de Gregor adiantou, nenhum pedido também foi entendido; por
mais humilde que inclinasse a cabeça, com tanto mais força o pai batia os pés.” (págs. 28-
29)

Gregor, sem prática em andar para trás, vai levando bengaladas de seu pai no trajeto hesitante para o
quarto. Andando sobre suas patinhas e muito largo para passar pelo espaço de uma folha só, fica forçando
passagem até que um dos seus lados escapa e se ergue, permanecendo torto na abertura da porta. Fica
entalado até o pai desferir “por trás, um golpe agora de fato possante e liberador e ele voou, sangrando
violentamente, bem para dentro do quarto. A porta foi fechada ainda com a bengala, depois houve por fim
silêncio.”

Reparem que o Gregor, ao ser agredido pelo pai, em nenhum momento responde com violência, ele sempre tenta
parecer submisso para tentar simbolicamente comunicar à família que não deseja fazer mal a ninguém.
O que há mais de estranho nessa situação, além do fato da transformação de Gregor? O modo como a família se
relaciona com ele, não é? É uma situação dramática, mas em nenhum momento há uma perturbação com o
fenômeno da transformação em si – como se fosse algo mais ou menos natural. A família tem a imediata convicção de
que o Gregor é aquele ser, nunca considera a possibilidade de que o seu filho poderia ter sido na verdade devorado
por aquela criatura. Eles reconhecem o filho naquela criatura, mesmo que ela fosse muito distinta de um ser humano.

II

Gregor desperta do “sono pesado, semelhante a um desmaio” no crepúsculo. “Tateia com as antenas, que
havia aprendido a valorizar.” Está com o lado esquerdo todo dolorido e percebe que havia ferido uma
“perninha” no episódio do ataque e, por causa disso, ela se arrastava com as outras. É atraído para a porta
por causa do cheiro de algo comestível e encontra uma tigela de leite doce “na qual nadavam pequenos
pedaços de pão branco”, que sua irmã havia colocado ali. Embora leite fosse seu alimento predileto, não
gostou do pouco que conseguiu beber com as dificuldades produzidas por seus ferimentos. Rasteja de volta
para o meio do quarto. Percebe a casa em silêncio e conclui:
“ – Que vida tranqüila a família levava! – disse Gregor a si mesmo e sentiu, enquanto fitava
o escuro diante dele, um grande orgulho por ter podido proporcionar aos seus pais e à sua
irmã uma vida assim, num apartamento tão bonito. Mas como seria agora, se todo o
sossego, todo o bem-estar, toda a satisfação chegasse assustadoramente ao fim? Para não
se perder nesses pensamentos, Gregor preferiu pôr-se me movimento, rastejando de cá
para lá no quarto.” (pág. 34)

Naquela primeira noite, as portas laterais são abertas e rapidamente fechadas, como se alguém o
espionasse ou estivesse indeciso a entrar. Samsa reflete no seu quarto sobre como deveria reorganizar sua
vida a partir da nova condição. Decide dormir na parte de baixo do canapé “embora as costas ficassem um
pouco prensadas e não pudesse mais erguer a cabeça. Ele logo se sentiu muito aconchegado, lamentando
apenas que seu corpo fosse largo demais para se abrigar inteiramente...”
“Já de madrugada – ainda era quase noite – Gregor teve oportunidade de testar a força das
decisões que acabava de tomar, pois a irmã, já quase completamente vestida, abriu a porta
do seu quarto que dava para a ante-sala, e olhou ansiosa para dentro. Não o descobriu
logo, mas ao percebê-lo embaixo do canapé – santo Deus, em algum lugar ele havia de
estar, não podia ter voado embora! – ela se assustou tanto que, incapaz de se dominar,
fechou a porta outra vez por fora. Mas, como se se arrependesse do seu comportamento,
abriu-a de novo imediatamente e entrou na ponta dos pés, como se fosse o quarto de um
doente grave ou mesmo de um estranho. Gregor tinha esticado a cabeça até a beira do
canapé e a observava. Será que ela notaria que ele nem tinha tocado o leite – e não, de
forma alguma, por falta de fome?” (pág. 36)

Grete percebe a tigela ainda cheia, a ergue com um trapo e a leva para fora do quarto. Gregor, faminto e
salivando, conjectura o que ela lhe trará em substituição.
“Ela trouxe, para testar o seu gosto, todo um sortimento, espalhado sobre um jornal velho.
Havia ali legumes já passados, meio apodrecidos; ossos do jantar, rodeados por um molho
branco já endurecido; algumas passas e amêndoas; um queijo que, dois dias antes, Gregor
tinha declarado intragável; um pão seco, um pão com manteiga e um pão com manteiga e
sal. Além de tudo ela ainda acrescentou a tigela – provavelmente destinada de uma vez por
todas a Gregor – na qual havia despejado água. E por delicadeza, pois sabia que ele não
comeria na sua frente, afastou-se o mais rápido possível e até girou a chave na fechadura,
para que ele fosse capaz de perceber que poderia ficar tão à vontade quanto quisesse. As
perninhas de Gregor zuniam quando ele foi comer.” (pág. 37)

A Grete é a única que se preocupa com o irmão, percebam também que em nenhum momento ela desconfia que
aquele monstro poderia não ser o seu irmão. Há um consenso coletivo de que a criatura é o Gregor, vocês todos
compreenderam isso, certo?

“Rapidamente, um atrás do outro, com lágrimas de satisfação nos olhos, ele devorou o queijo, os legumes e
o molho.” Não comeu os alimentos frescos. Grete retorna e ele volta para baixo do canapé onde agora cabe
com mais dificuldade por causa do arredondamento causado pela refeição. A moça recolhe com uma
vassoura e despeja num balde os restos e a parte não comida. Grete repetiria secretamente o procedimento
todos os dias, na hora em que os pais dormiam e a empregada havia sido despachada por ela com alguma
incumbência.

“Com que desculpas o médico e o serralheiro foram mandados embora de casa, naquela
manhã, Gregor não pôde ficar sabendo: visto que não era entendido, ninguém, nem mesmo
a irmã, pensava que ele podia entender os outros; e assim, quando a irmã estava no seu
quarto, ele tinha de se contentar em ouvir, aqui e ali, seus suspiros e invocações aos
santos. Só mais tarde, quando ela havia se habituado um pouco a tudo – naturalmente não
se podia nunca falar em hábito completo -, Gregor às vezes apreendia uma observação
amigável ou que podia ser interpretada como tal:
- Hoje, sim, ele gostou – ela dizia, quando Gregor tinha limpado para valer toda a comida;
ao passo que, no caso contrário – que aos poucos se repetia numa freqüência cada vez
maior -, costumava dizer quase com tristeza:
- Deixou tudo outra vez.” (pág. 39)

Já está claro para vocês que o Gregor está passando por um processo de decadência: ele começa a
definhar, deixa de comer aquilo que Grete lhe traz.

Gregor consegue ouvir conversas espremendo-se contra a porta. “Especialmente nos primeiros tempos não
havia conversa que de algum modo não tratasse dele, mesmo em segredo.” Sempre havia alguém em casa,
porque ele não podia ser deixado só no apartamento. Entre as coisas que ouviu foi a cozinheira Ana pedir
encarecidamente para ser dispensada e ser atendida. A empregada, ao sair, jurou solenemente, sem que
lhe tivessem pedido, jamais revelar a ninguém “o mínimo que fosse.”

Ele ouve seu pai expondo à família a situação financeira e lembra-se de que, desde a falência ocorrida
cinco anos antes, sua preocupação (de Gregor) “tinha sido apenas fazer tudo para a família esquecer o
mais rápido possível a desgraça comercial, que havia levado todos a um estado de completa desesperança.
E assim começara a trabalhar com um fogo muito especial e, quase da noite para o dia, passara de
pequeno caixeiro a caixeiro-viajante, que naturalmente tinha possibilidades bem diversas de ganhar dinheiro
e cujos êxitos no trabalho se transformaram imediatamente, na forma de previsões, em dinheiro sonante
que podia ser posto na mesa diante da família espantada e feliz.” Na verdade, Gregor havia assumido todas
as despesas da família e havia até mesmo conseguido o apartamento onde a família morava. Tendo
recebido retribuição afetiva apenas da irmã, Gregor estava planejando mandá-la, apesar dos custos, para
um conservatório, já que ela sabia “tocar violino de forma comovente.”

“Esses pensamentos, completamente inúteis no seu estado atual, passaram-lhe pela


cabeça quando ele, de pé, estava colado à porta escutando. Às vezes, em virtude do
cansaço geral, não conseguia de modo algum continuar ouvindo – e por descuido deixou a
cabeça bater na porta; segurou-a porém imediatamente outra vez, pois mesmo o pequeno
ruído que assim havia provocado tinha sido escutado do outro lado, e feito com que todos
silenciassem.
- O que é que ele está outra vez fazendo? – disse o pai depois de um intervalo,
evidentemente voltado para a porta, e só aí a conversa interrompida foi aos poucos
retomada.” (pág. 42)

Na continuidade da conversa, Gregor descobre com satisfação que entre as sobras da falência e a parte
economizada do dinheiro que ele havia ganho no comércio, havia um certo pecúlio capaz de sustentar a
família por uns dois anos.

“Atrás da sua porta, Gregor meneou vivamente a cabeça, satisfeito com a inesperada
previdência e senso de economia. Na verdade poderia ter pago, com essa sobra de
dinheiro, mais uma parte da dívida do pai ao chefe, e com isso estaria muito mais próximo o
dia em que poderia se livrar do emprego; mas agora era indubitavelmente melhor assim do
modo como o pai havia arranjado as coisas.” (pág. 43)

Percebam que o assunto central na cabeça de Gregor é pagar a dívida do pai, fica felicíssimo ao saber que a família
não estava tão quebrada quanto imaginava.

No entanto, quando ele percebe que o dinheiro não daria para sustentá-los para sempre e que trabalhar
representaria sacrifício excessivo para qualquer um dos três parentes, desaba: “Quando a conversa
chegava a essa necessidade de ganhar dinheiro, Gregor, se soltava da porta e se atirava sobre o frio sofá
de couro que se encontra ao lado, pois ficava ardendo de vergonha e tristeza.”

Não é uma atitude extraordinária? O sujeito em uma situação condição pessoal irremediável, muito grave, sentindo-se
culpado por não poder ajudar a família. Com toda a situação em que vive, preserva a preocupação com seus
familiares.

Na medida em que o tempo passa, Gregor Samsa cria uma rotina:


“Freqüentemente passava noites inteiras deitado ali, sem dormir um instante, apenas
arranhando o couro durante horas. Ou então não fugia ao grande esforço de empurrar uma
cadeira até a janela, para depois rastejar rumo ao peitoril e, escorado na cadeira, inclinar-se
sobre a janela – evidentemente em nome de alguma lembrança do sentimento de liberdade
que outrora lhe dava olhar pela janela. Pois efetivamente ele enxergava dia a dia com
menos acuidade as coisas mesmo pouco distantes; o hospital defronte, cuja visão freqüente
demais ele antes amaldiçoava, já não estava mais ao alcance da sua vista; e se ele não
soubesse exatamente que morava na calma – embora inteiramente urbana – rua Charlotte,
poderia acreditar que da sua janela estava olhando para um deserto, no qual o céu cinzento
e a terra cinzenta se uniam sem se distinguirem um do outro.” (pág. 44)

Por que é que "o céu cinzento e a terra cinzenta se uniam sem se distinguirem um do outro "? Porque à medida que ele está
cada vez mais parecido a um inseto, sua visão torna-se mais borrada. Claramente, ele está em processo de decadência
física.

Apenas a irmã tem contato com Gregor Samsa, sem que ela realmente se relacione com ele, já que ela não
lhe dirige a palavra ou o olhar. Ela entra no quarto duas vezes por dia e durante este tempo Gregor treme
sob o canapé, semi-coberto com um lençol, operação que lhe custara quatro horas de trabalho, para não se
deixar ver completamente pela irmã.
“Certa vez – já havia passado bem um mês desde a metamorfose de Gregor, não existindo,
pois, mais nenhum motivo especial para a irmã se espantar à vista dele – ela veio um
pouco mais cedo que de costume e o encontrou quando ele ainda olhava pela janela,
imóvel e portanto numa posição propícia para assustar. Se ela não houvesse entrado, não
teria sido uma surpresa para Gregor, uma vez que a posição dele a impedia de abrir
imediatamente a janela; mas não só ela não entrou, como também recuou e fechou a porta;
um estranho poderia ter pensado que ele estivera à sua espreita porque queria mordê-la.
Naturalmente ele se escondeu logo debaixo do canapé, mas teve de esperar até o meio-dia
antes que a irmã voltasse, e ela parecia muito mais inquieta que de hábito. Por aí Gregor
reconheceu que a visão dele continuava sendo insuportável para ela – e assim haveria de
permanecer – e que seguramente ela precisava fazer um grande esforço para não sair
correndo à vista mesmo da pequena parte do seu corpo que sobressaía sob o canapé.”
(págs. 45-46)

Por consideração à família, Gregor não se mostra à janela durante o dia e, à noite, ziguezagueia pelas
paredes e pelo teto: “era muito diferente de permanecer deitado no chão; respirava-se com mais liberdade;
uma ligeira vibração atravessava seu corpo; e, na distração quase feliz em que Gregor lá se encontrava,
podia acontecer que, para sua própria surpresa, ele se soltasse e se estatelasse no chão.” Seus novos
hábitos são notados por Grete:
“A irmã notou logo a nova diversão que Gregor havia descoberto – ao rastejar ele deixava
aqui e ali vestígios da sua substância adesiva – e então ela pôs na cabeça que devia dar a
Gregor a possibilidade de rastejar na extensão máxima do quarto, retirando os móveis que
o obstavam, sobretudo o armário e a escrivaninha. Mas não era capaz de fazer tudo isso
sozinha; o auxílio do pai ela não ousava pedir; com toda a certeza a empregada não a teria
ajudado, pois essa jovem, de cerca de dezesseis anos, resistia, na verdade bravamente,
desde a dispensa da antiga cozinheira, mas tinha pedido o favor de poder conservar a
cozinha constantemente fechada, só precisando abri-la a um chamado especial; assim, não
restou à irmã outra coisa senão ir buscar a mãe, certa vez que o pai estava ausente. A mãe
veio com exclamações de excitada alegria, mas silenciou junto à porta do quarto de Gregor.
Naturalmente a irmã verificou primeiro se no quarto estava tudo em ordem; só depois
deixou a mãe entrar. Na maior pressa, Gregor havia puxado o lençol mais fundo e com
mais dobras, o conjunto parecia de fato um lençol atirado ao acaso sobre o canapé.
Também desta vez Gregor deixou de espionar de debaixo do lençol; renunciou a ver a mãe
por enquanto, e ficou contente por ela ter vindo.” (pág. 48)
Gregor, escondido, ouve a conversa em que sua mãe argumenta contra retirar os móveis do quarto:
“ – Não é como se nós mostrássemos, retirando os móveis, que renunciamos a qualquer
esperança de melhora e o abandonamos à própria sorte, sem nenhuma consideração?
Creio que o melhor seria tentarmos conservar o quarto exatamente no mesmo estado em
que estava antes, a fim de que Gregor, ao voltar outra vez para nós, encontre tudo como
era e possa desse modo esquecer facilmente o que aconteceu no meio tempo.” (págs. 49-
50)

Samsa concorda alegremente, mas apenas para ouvir sua irmã, que era “perita no novo Gregor”, contrariar
a mãe, sugerindo tirar tudo, menos o canapé. Grete acaba vencendo. As mulheres saem carregando com
dificuldade os móveis e Gregor aproveita para tirar a cabeça para fora de sob o sofazinho. Entra sua mãe e
ele recua, embora ela tenha percebido seu esconderijo. Outra vez sozinho, ele irrompe debaixo do móvel
para tentar salvar alguma coisa já que “elas lhe esvaziaram o quarto; privaram-no de tudo o que lhe era
caro.” Tenta salvar a imagem da “dama vestida de peles”, escalando a parede e comprimindo o quadro
contra a barriga. Ele havia entalhado pessoalmente a moldura. Neste momento as mulheres entram no
quarto e ele é imediatamente percebido por Grete.
“Então os olhares dela cruzaram-se com os de Gregor na parede. Sem dúvida só por causa
da presença da mãe ela manteve a compostura; inclinou o rosto para a mãe a fim de evitar
que esta olhasse ao seu redor e disse – seja como for, trêmula e sem refletir:
- Venha, é melhor voltarmos um instante para a sala de estar.
- Para Gregor a intenção de Grete era clara, ela queria pôr a mãe a salvo e depois
enxotá-lo parede abaixo. Bem, que ela tentasse! Ele estava sentado em cima da sua
imagem e não ia entregá-la. Preferia antes saltar no rosto de Grete.
Mas as palavras de Grete haviam na verdade intranqüilizado a mãe; ela deu um passo de
lado, divisou a gigantesca mancha marrom no papel de parede florido e, antes que
realmente chegasse à sua consciência que o que ela via era Gregor, exclamou com voz
esganiçada e áspera:
- Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!
Como se desistisse de tudo, ela caiu de braços abertos sobre o canapé e não se moveu.
- Você, Gregor! – bradou a irmã com o punho erguido e olhos penetrantes.” (págs. 53-54)

Grete corre para a sala vizinha em busca de alguma essência para restabelecer a mãe. Gregor a segue
“como se pudesse, à maneira de antigamente, dar algum conselho à irmã.” Quando ela se vira, depois de
vasculhar uma gaveta, dá de cara com ele, se assusta e derruba um vidro que cai e quebra. Um estilhaço
atinge Gregor no rosto e “algum remédio corrosivo escorreu por ele.” Grete foge para o quarto de Gregor
com os frascos que pôde carregar e fecha a porta, isolando o irmão na sala.
“...agora não tinha outra coisa a fazer senão esperar; e oprimido por autocensuras e
apreensão começou a rastejar – rastejou por cima de tudo, paredes, móveis, teto, e no seu
desespero, quando todo o quarto começou a virar ao seu redor, caiu finalmente em cima da
grande mesa.” (pág. 54)

Neste momento, chega o pai de Gregor, encontra a casa em polvorosa, e conclui que seu filho havia feito
alguma violência contra a senhora Samsa. Gregor, apavorado e apertando-se junto à porta do seu quarto,
vê seu pai se aproximando e nota o contraste entre a sua postura ereta e agressiva daquele momento, com
o seu estado normal de exaustão, cansaço e indiferença. No lugar das habituais vestimentas caseiras com
que se arrastava pelo dia, agora usava um “uniforme azul justo, de botões dourados, como os que usam os
contínuos das instituições bancárias. No lugar do outrora penteado desgrenhado, tinha os cabelos
penteados com uma risca escrupulosamente exata e luzidia.” “Era aquele ainda o seu pai?” Gregor recua e
o pai avança cuidadosa, mas decididamente sobre ele. Dão lentamente várias voltas pelo quarto. Para cada
passo do pai, Gregor tinha de realizar inúmeros movimentos.

Percebem que mesmo injustiçado, Gregor nunca enfrenta o pai. Ele demonstra uma atitude de total submissão à
autoridade paterna.
“Enquanto cambaleava de cá para lá, quase não mantinha os olhos abertos, a fim de reunir todas as forças para a corrida; no
seu torpor não pensava em outra maneira de se salvar senão correndo; e tinha quase esquecido que as paredes estavam à sua
disposição, embora aqui elas permanecessem obstruídas por móveis cuidadosamente talhados, cheios de recortes e pontas –
quando nesse momento alguma coisa, atirada de leve, voou bem ao se lado e rolou diante dele. Era uma maçã; a segunda passou
voando logo em seguida por ele; Gregor ficou paralisado de susto; continuar correndo era inútil, pois o pai tinha decidido
bombardeá-lo. Da fruteira em cima do bufê ele havia enchido os bolsos de maçãs e, por enquanto sem mirar direito, as atirava
uma a uma. As pequenas maçãs vermelhas rolavam como que eletrizadas pelo chão e batiam umas nas outras. Uma maçã atirada
sem força raspou as costas de Gregor mas escorregou sem causar danos. Uma que logo se seguiu, pelo contrário, literalmente
penetrou nas costas dele; Gregor quis continuar se arrastando, como se a dor surpreendente e inacreditável pudesse passar com a
mudança de lugar; mas ele se sentia como se estivesse pregado no chão e esticou o corpo numa total confusão de todos os
sentidos. Com o último olhar ainda viu a porta do seu quarto ser escancarada e a mãe se precipitar de combinação à frente da
irmã que gritava; pois a irmã a tinha aliviado das roupas para permitir que ela respirasse com liberdade enquanto estava
desacordada; viu-a correr ao encontro do pai e no caminho caírem ao chão, uma a uma, as saias desapertadas; e viu quando ela,
tropeçando nas saias, chegou até o lugar onde o pai estava e, abraçando-o, em completa união com ele – mas nesse momento a
vista de Gregor já falhava -, pediu, com as mãos na nuca do pai, que ele poupasse a vida de Gregor.” (págs. 57-58)

Lembrem-se que a primeira providência para que vocês possam entender uma história ficcional é que vocês façam de
conta que estão vivendo essa história realmente. Então é preciso, pelo menos durante esse momento de
compreensão da história, que a gente faça de conta que tudo o que está escrito aqui é verdade. Que todos os fatos
narrados no livro são rigorosamente verdadeiros. Se vocês não fizerem esse exercício e ficarem estabelecendo razões
para desconfiarem do livro, vocês não vão entender a história. Não se lê ficção assim. Aliás, qualquer livro se lê assim.
Até mesmo livros de filosofia, livros técnicos. Você tem que dar uma chance para o livro de ele contar alguma coisa
para você. Então tudo começa com você fingindo que tudo aquilo é verdade.
III

Iniciaremos agora a última parte da história. A nossa personagem Gregor Samsa encontra-se em mal estado,
transformado em uma criatura repugnante e incapaz de se comunicar com sua família, que o trata de modo
crescentemente como a um inseto. O que você faz, em última análise, a um inseto? Você o mata com uma chinelada,
não é? Ele acaba de sofrer um ataque pelo pai e provavelmente teria sido morto, não fora a intervenção materna.
Apenas a sua irmã é capaz de tolerá-lo, mas mesmo ela começa a demonstrar uma intolerância crescente.

“O grave ferimento de Gregor, que o fez sofrer mais de um mês – a maçã ficou alojada na carne como uma recordação visível, já
que ninguém ousou removê-la -, parecia ter lembrado ao pai que Gregor, a despeito de sua atual figura triste e repulsiva, era um
membro da família que não podia ser tratado como um inimigo, mas diante do qual o mandamento do dever familiar impunha
engolir a repugnância e suportar, suportar e nada mais.
E embora por causa da ferida Gregor agora tivesse perdido, provavelmente para sempre, algo da sua mobilidade e no momento
precisasse de longos, longos minutos para atravessar o quarto, como um velho inválido de guerra – rastejar pelo alto estava fora
de cogitação -, ele recebeu, por essa deterioração do seu estado, uma compensação a seu ver inteiramente satisfatória, no sentido
de que todos os dias ao anoitecer a porta para a sala de estar, que uma ou duas horas antes costumava observar atentamente, era
aberta de tal forma que, deitado na escuridão do seu quarto, invisível da sala de estar, ele podia ver a família toda à mesa
iluminada e escutar suas conversas, de certo modo com a permissão geral, ou seja, de uma maneira totalmente diversa da
anterior.” (págs. 59-60)

A família de Gregor havia mudado. O pai, que começava o dia às seis horas da manhã, não tirava o
uniforme de funcionário, cochilando “na sua cadeira inteiramente vestido, como se estivesse sempre pronto
para o serviço e aguardasse também aqui a voz do superior.” Reinava o silêncio na maior parte do tempo e
as atenções das mulheres eram para seus trabalhos - a mãe costurava finas roupas para uma loja e Grete
conseguira um emprego diurno como vendedora e à noite estudava estenografia e francês na Aliança
Francesa de Praga - e para atender o velho.

A família, que antes vivia parasitariamente do trabalho de Gregor, sofre uma modificação: o pai arrumara um
emprego modesto no banco, a mãe costurava roupas e a irmã era vendedora de uma loja, com a perspectiva de
tornar-se estenógrafa e ascender a uma vida mais sofisticada. A família também sofre uma "metamorfose", não é
mesmo? Qual a outra metamorfose, além da de Gregor e da vida econômica da família? A de Grete, não é? Ela está
modificando sua atitude perante o irmão.

“Quem nessa família sobrecarregada e exausta tinha tempo para se ocupar de Gregor mais
que o absolutamente necessário? A economia doméstica tornou-se cada vez mais restrita;
a empregada foi afinal despedida; uma faxineira imensa, ossuda, de cabelo branco
esvoaçando em volta da cabeça, vinha de manhã e à noitinha para fazer o trabalho mais
pesado; a mãe cuidava do resto, além de toda a costura. Aconteceu até que diversas jóias
da família, que a mãe e a irmã antes tinham usado com o maior dos júbilos em festas e
solenidades, foram vendidas, como Gregor ficou sabendo uma noite ao ouvir a discussão
geral sobre os preços alcançados. Mas a maior de todas as queixas era sempre o fato de
que não se podia deixar o apartamento – grande demais para as atuais necessidades -,
uma vez que não era possível imaginar como Gregor seria removido. Gregor porém logo
compreendeu que não era apenas a consideração para com ele que impedia uma
mudança, já que poderia ser facilmente transportado numa caixa adequada com alguns
furos de ventilação; o que detinha a família de uma troca de casa era principalmente a total
falta de esperança e o pensamento de que tinha sido atingida por uma desgraça como mais
ninguém em todo o círculo de parentes e conhecidos. O que o mundo exigia de gente
pobre, eles cumpriam até o ponto extremo: o pai ia buscar o café da manhã para os
pequenos funcionários do banco, a mãe se sacrificava pelas roupas de baixo de pessoas
estranhas, a irmã corria de lá para cá atrás do balcão ao comando dos fregueses, mas as
energias da família não iam mais longe que isso. E a ferida nas costas de Gregor começou
a doer de novo, como se fosse recente, quando, depois de terem ido levar o pai para a
cama, a mãe e a irmã voltaram, puseram de lado o trabalho, aproximaram suas cadeiras e
ficaram sentadas já de rosto colado – instante em que a mãe, apontando para o quarto de
Gregor, disse:
- Feche aquela porta, Grete.
Aí Gregor ficou outra vez no escuro, enquanto do outro lado da porta as mulheres
misturavam suas lágrimas ou fitavam a mesa com os olhos secos.” (págs. 62-63)

Gregor passa os dias sem sono, ocupando-se de lembranças de sua família, de seu emprego e até da moça
de uma loja de chapéus, que “ele havia cortejado seriamente, mas devagar demais.” Quando os
pensamentos se desvaneciam, “sentia-se simplesmente cheio de ódio pelo mau tratamento e, embora não
pudesse imaginar nada que lhe despertasse o apetite, fazia no entanto planos sobre como poderia chegar à
despensa para ali pegar tudo o que lhe era devido, mesmo que não tivesse fome.” Sua irmã, antes de sair
para o trabalho de manhã e à tarde, “empurrava com o pé para dentro do quarto, na maior pressa, uma
comida qualquer, para ao anoitecer, não importa se esta tinha sido apreciada ou – caso mais freqüente –
sequer tocada, arrastá-la para fora com uma vassourada.” O quarto não era mais limpo ou arrumado; “aqui
e ali havia novelos de pó e lixo”... “Grete via a sujeira exatamente como ele, mas havia decidido deixá-la.”
Certa vez a mãe, na ausência de Grete, submete o quarto a uma grande limpeza, com baldes de água e
tudo. Ao chegar, à noite, e descobrir a faxina, Grete rompe num acesso de choro a que os pais assistem
perplexos. A novidade é que a nova faxineira, que tem o hábito de bater portas, não tem repulsa por Gregor
e “de manhã e à noitinha, nunca perdia a oportunidade de abrir um pouco a porta e espiar rapidamente
Gregor.”
“No começo ela também o chamava ao seu encontro, com palavras que provavelmente
considerava amistosas, como ‘venha um pouco aqui, velho bicho sujo!’ ou ‘vejam só o velho
bicho sujo!’. A chamados desse tipo Gregor não respondia nada, mas ficava imóvel no seu
lugar, como se a porta não tivesse sido aberta. Se em vez de deixar essa faxineira
perturbá-lo inutilmente, segundo o capricho do momento, eles tivessem ordenado que ela
limpasse todos os dias o seu quarto! Certa vez, de manhã cedo – uma chuva violenta batia
nas vidraças, talvez já um sinal da primavera que chegava -, quando a faxineira começou
de novo a usar suas expressões, Gregor ficou tão exasperado que, embora lento e débil, se
voltou para ela, como que preparado para o ataque. Mas a faxineira, ao invés de sentir
medo, simplesmente ergueu para o alto uma cadeira que se achava perto da porta e, pela
maneira como ficou ali, a boca bem aberta, mostrou claramente a intenção de só fechá-la
quando a cadeira na sua mão tivesse desabado sobre as costas de Gregor.
- E então, não vai continuar? – perguntou, enquanto Gregor se virava outra vez e ela
recolocava a cadeira calmamente no canto.” (págs. 65-66)

Gregor agora não come quase mais nada. Como o quarto de Grete fora alugado a três inquilinos barbudos,
que tinham trazido o próprio mobiliário, alguma tralha havia sido depositada no seu quarto, além da lata de
lixo da cozinha. “Agora, a faxineira, que estava sempre com muita pressa, simplesmente arremessava ao
quarto de Gregor o que não era usado no momento” e as coisas permaneciam no lugar onde tinham sido
atiradas.
Há uma incidência muito grande do número três nessa história: o quarto de Grete fora alugado a três
homens barbudos, o quarto de Gregor apresenta três portas, o livro é dividido em três partes. Pode ser
proposital, embora nunca possamos ter certeza de uma especulação simbólica.
“ ... – isso quando Gregor não se locomovia no meio do entulho e as punha em movimento,
a princípio forçado, porque não havia nenhum outro espaço para rastejar, mais tarde porém
com satisfação crescente, embora depois dessas caminhadas, triste e morto de cansaço,
não se movesse novamente durante horas” (pág. 67)

Como os inquilinos às vezes jantavam em casa, a porta da sala permanecia fechada várias noites. A família
mesmo comia na cozinha. Uma noite em que a porta foi esquecida aberta, Gregor ouve os ruídos dos
inquilinos mastigando e diz a si mesmo: “Eu tenho apetite, sim, mas não por essas coisas. Como se
alimentam esses inquilinos, e eu aqui morrendo!”

Nesta noite, Grete faz um concerto na ante-sala para os hóspedes que ouvem com desinteresse e
formalidade. Gregor vai aos poucos se aproximando da sala, incomodado com a indiferença dos ouvintes à
música de Grete: “Estava decidido a chegar até a irmã, puxá-la pela saia e com isso indicar que ela devia ir
ao seu quarto com o violino, pois ninguém aqui apreciava sua música como ele desejava fazer.” Gregor
queria contar a sua irmã que “tivera a firme intenção de mandá-la ao conservatório e que, se nesse meio
tempo não houvesse acontecido a desgraça, teria contado isso a todos no Natal passado – será mesmo que
o Natal já tinha passado?”

Gregor é visto por um dos inquilinos que não se demonstram muito impressionados. As mulheres se
descontrolam, a reunião acaba e os hóspedes são empurrados pelo senhor Samsa para o quarto deles. Os
inquilinos, indignados, rescindem o contrato de locação e anunciam que não pretendem pagar o aluguel dos
poucos dias que lá estavam.

A família reúne-se depois do incidente, a mãe ofegante e o pai caído na cadeira. Gregor está estático no
local onde fora surpreendido.
“ – Queridos pais – disse a irmã e como introdução bateu com a mão na mesa -, assim não
pode continuar. Se vocês acaso não compreendem, eu compreendo. Não quero pronunciar
o nome do meu irmão diante desse monstro e por isso digo apenas o seguinte: precisamos
tentar nos livrar dele. Procuramos fazer o que é humanamente possível para tratá-lo e
suportá-lo e acredito que ninguém pode nos fazer a menor censura.
- Ela tem mil vezes razão – disse o pai consigo mesmo.
A mãe, que ainda não podia respirar direito, começou a tossir, em som surdo, na mão
espalmada, com uma expressão alucinada nos olhos.
A irmã correu até a mãe e segurou-lhe a testa. O pai, que através da irmã parecia ter
chegado a pensamentos mais definidos, havia se sentado em posição ereta e ficou
brincando com o quepe de funcionário entre os pratos do jantar dos inquilinos que ainda
jaziam sobre a mesa; de vez em quando olhava para Gregor, que estava quieto.
- Precisamos tentar nos livrar disso – disse então a irmã exclusivamente ao pai, pois a mãe
não ouvia nada com a tosse. – Isso ainda vai matar a ambos, eu vejo esse momento
chegando. Quando já se tem de trabalhar tão pesado, como todos nós, não é possível
suportar em casa mais esse eterno tormento. Eu não agüento mais.
E rompeu no choro tão violentamente que suas lágrimas escorreram sobre o rosto da mãe,
que as limpava com movimentos mecânicos de mão.
- Filha – disse o pai, compassivo e com evidente compreensão. – Mas o que devemos
fazer?” (págs. 74-75)

A discussão do que fazer com Gregor continua: “É preciso que isso vá para fora – exclamou a irmã, é o
único meio, pai. Você simplesmente precisa se livrar do pensamento de que é Gregor. Nossa verdadeira
infelicidade é termos acreditado nisso até agora.”
Gregor faz um movimento e Grete corre assustada para trás do pai, “como se preferisse sacrificar a mãe a
ficar perto de Gregor.” Gregor só estava querendo girar o corpo para voltar a seu quarto. Quando finalmente
consegue, após lento esforço, ouve a porta fechando-se atrás de si e a chave girando na fechadura. Sua
irmã grita para os pais: “Finalmente”.

“ – E agora? – pensou Gregor consigo mesmo e olhou ao redor na escuridão.


Logo descobriu que não podia absolutamente mais se mexer. Não se admirou com esse
fato, pareceu-lhe antes pouco natural que até agora tivesse conseguido se movimentar com
aquelas perninhas finas. No restante sentia-se relativamente confortável. Na realidade tinha
dores no corpo todo, mas para ele era como se elas fossem ficar cada vez mais fracas e
finalmente desaparecer por completo. A maçã apodrecida nas suas costas e a região
inflamada em volta, inteiramente cobertas por uma poeira mole, quase não o incomodavam.
Recordava-se da família com emoção e amor. Sua opinião de que precisava desaparecer
era, se possível, ainda mais decidida que a da irmã. Permaneceu nesse estado de
meditação vazia e pacífica até que o relógio da torre bateu a terceira hora da manhã. Ele
ainda vivenciou o início do clarear geral do dia lá do lado de fora da janela. Depois, sem
intervenção da sua vontade, a cabeça afundou completamente e das suas ventas fluiu fraco
o último fôlego.” (pág. 78)

Então, o nosso herói acaba de morrer às três horas da manhã. Amanhecia naquela hora porque as noites são muito
curtas nas elevadas latitutes onde a história se ambienta.

A faxineira chega de manhã, e, ao ver Gregor imóvel, tenta fazer cócegas nele com uma vassoura. Sem
obter reações, a faxineira grita para a família: “Venham ver só uma coisa, ele empacotou; está lá
empacotado de uma vez.” O cadáver de Gregor estava magro, plano e seco.

Acorrem ao quarto de Gregor o pai com a coberta sobre os ombros e a mãe só de camisola. Na porta da
sala de estar, onde Grete dormia desde a chegada dos inquilinos, estava “Grete completamente vestida,
como se não tivesse dormido nada.” Enquanto pai, mãe e filha saem para confabular no quarto de dormir do
casal, a faxineira exibe o corpo para os inquilinos que estavam aborrecidos porque ninguém lhes havia feito
café, apesar de terem rompido o contrato na noite anterior. A família dá com eles e o senhor Samsa os
expulsa sumariamente de casa.

Outra coisa muito estranha: os inquilinos estavam mais preocupados com o café do que os estranhos acontecimentos
da noite anterior. Eles também não deram importância ao fenômeno da transformação do Gregor.

“Decidiram dedicar o dia ao repouso e ao passeio; não só mereciam, como também


necessitavam absolutamente dessa interrupção no trabalho. E assim sentaram-se à mesa
para escrever três cartas de desculpa, o senhor Samsa à direção do banco, a senhora
Samsa ao seu empregador e Grete ao proprietário da loja. Enquanto escreviam, entrou a
faxineira para dizer que ia embora, pois o seu trabalho da manhã havia terminado. A
princípio os três simplesmente menearam a cabeça, sem erquer os olhos; só quando a
faxineira não fez menção de se afastar é que eles olharam irritados para ela.
- E então? – perguntou o senhor Samsa.
A faxineira estava junto à porta, sorridente, como se tivesse de anunciar à família uma
grande boa notícia, mas só o faria se interrogada a fundo. A pequena e reta pena de pavão
em cima do seu chapéu, com a qual o senhor Samsa já se irritara durante todo o seu tempo
de serviço, balançava leve em todas as direções.
- O que é que a senhora está querendo? – perguntou a senhora Samsa, pela qual a
faxineira ainda tinha o máximo respeito.
- Ah, sim – respondeu a faxineira, que por causa do riso amigável não pôde continuar
falando. – A senhora não precisa se preocupar com o jeito de jogar fora a coisa aí do lado.
Já está tudo em ordem.
A faxineira jogou o Gregor na lata de lixo, não houve nem aquele enterro que você faz quando o seu
cachorrinho de estimação morre.

A senhora Samsa e Grete inclinaram-se sobre suas cartas, como se quisessem continuar
escrevendo; o senhor Samsa, percebendo que a faxineira queria agora começar a
descrever tudo em minúcia, repeliu isso decididamente com a mão esticada. Já que não
tinha permissão para contar, a faxineira se lembrou de que estava com muita pressa e,
obviamente ofendida, exclamou:
- Até logo para todos.
Virou-se selvagemente e deixou o apartamento em meio a um formidável bater de portas.
- Hoje à noite ela será despedida – disse o senhor Samsa, mas não obteve resposta nem
da mulher, nem da filha, pois a faxineira parecia ter perturbado a tranqüilidade que mal
tinham reconquistado. As duas se levantaram, foram até a janela e lá ficaram, mantendo-se
abraçadas. O senhor Samsa virou-se para elas da sua cadeira e ficou observando-as em
silêncio por um momento. Depois bradou:
- Agora venham aqui. Parem de pensar no que passou. E tenham um pouco de
consideração por mim.
As mulheres obedeceram logo, correram para ele, acariciaram-no e terminaram rápido suas
cartas.
Depois os três deixaram juntos o apartamento, coisa que não faziam havia meses, e foram
de bonde elétrico para o ar livre no subúrbio da cidade. O bonde em que ficaram sentados
sozinhos estava totalmente iluminado pelo sol cálido. Recostados com conforto nos seus
bancos, conversaram sobre as perspectivas do futuro, descobrindo que, examinadas de
perto, elas não eram de modo algum más, pois os três tinham empregos muito vantajosos e
particularmente promissores – sobre os quais, na verdade, nunca tinham feito perguntas
pormenorizadas um ao outro. É claro que a grande melhora imediata da situação viria,
facilmente, da mudança de casa; eles agora queriam um apartamento menor e mais barato,
mas mais bem situado e sobretudo mais prático do que o atual, que tinha sido escolhido
ainda por Gregor. Enquanto conversavam assim, ocorreu ao senhor e à senhora Samsa,
quase que simultaneamente, à vista da filha cada vez mais animada, que ela – apesar da
canseira dos últimos tempos, que empalidecera suas faces – havia florescido em uma
jovem bonita e opulenta. Cada vez mais silenciosos e se entendendo quase
inconscientemente através de olhares, pensaram que já era tempo de procurar um bom
marido para ela. E pareceu-lhes como que uma confirmação dos seus novos sonhos e boas
intenções quando, no fim da viagem, a irmã se levantou em primeiro lugar e espreguiçou o
corpo jovem.” (págs. 83-85)

(Resumo feito por José Monir Nasser. Os trechos citados são da edição “A Metamorfose” da Editora Companhia das
Letras, 2004, São Paulo, 15a. reimpressão, tradução de Modesto Carone).

Gostaram da história? Vocês tem alguma ideia do que tudo isso significa? Alguém quer fazer alguma
tentativa? Há tantas interpretações possíveis que é provável que vocês tenham feito a 131 .ª . Se você for
fazer um censo, a maioria são psicoanalíticas ou marxistas, o que representa bem os assuntos dos tempos
modernos. A ideia psicoanalítica sobre essa história é que se trata de uma luta de Gregor pelo poder
familiar contra o pai. O poder familiar representa o prestígio sexual, então Gregor se aproveita da falência
do pai para assumir a responsabilidade econômica sobre a família, ficando assim também detentor do
poder sexual sobre a mãe e a irmã (que representariam a submissão da mulher) até que o pai recupera a
autoridade e o mata. Já a interpretação marxista defende que o livro representa uma reificação do homem
("res" significa coisa em latim, reificação é como o processo de "coisificação" do ser humano). Segunda essa
interpretação, Gregor se dedicou tanto ao trabalho que acabou se tornando uma "coisa", o que o tornou
um sujeito inútil e indesejado, sem mais valor capitalista do qual possa se extrair algum ganho. Essa é razão
pela qual ele é conduzido pela morte. A essência dessas interpretações materialistas é essa: o livro é uma
descrição do que acontece ao ser humano se você deixa o capitalismo (os três familiares de Gregor)
tomarem conta dele. É como uma máquina velha que vai ao ferro-velho ao tornar-se inútil.
Então essas são as duas interpretações básicas, é claro que existem dezenas de outras interpretações sutis
que giram em torno dessas, que foram as interpretações dominantes no século XX. Kafka morreu em 1924,
então qualquer interpretação ligada ao nazismo é completamente equivocada, pois é apenas na década de
30 que o nazismo se fortalece.
Na primeira linha de "A Metamorfose", somos comunicado que algo aconteceu a Gregor Samsa: ele se
transformou em um ser monstruoso. À medida que a novela se desenvolve, nós descobrimos que Gregor é
um caixeiro-viajante, trabalhava numa firma, que é credora de seu pai, há cinco anos. Até então, a
impressão que nós temos é a de que Gregor é um sujeito que trabalha a sério, um profissional adestrado.
Há alguma reclamação quanto a vida do Gregor Samsa nos últimos tempos? Muito recentemente, julga-se
que o desempenho dele como vendedor esteja baixo e que ele supostamente teria dado um desfalque na
firma, embora nunca saibamos se isso realmente é verdade. Aparentemente, ele tem sucesso econômico,
mas atribuir esse sucesso a um desfalque seria demais nesse curto período de cinco anos. Durante esse
período de tempo, ele mantém a família viva; sustenta o pai, que tem problemas de ordem mais
psicológica do que física, a mãe, que tem asma crônica, e a irmã, que é muito jovem.
Portanto, o nosso narrador, neutro e onisciente, revela no início da história que Gregor tivera uma vida de
sacrifícios pela famíalia nesses últimos cinco anos ao ponto de apenar se entreter lendo panfletos com
horários de trem para planejar as próximas viagens. No entanto, naquela manhã em que Gregor perde o
horário por ter se transformado em um ser repugnante, há uma reação exorbitante àquela falta, que é
considerada uma falta muito incomum por ele ser uma pessoa tão confiável e trabalhadora.
Há uma reação estranha das pessoas perante o destino de Gregor. Ao se revelar transformado num
monstro, ele é tolerado como um membro da família sobre cuja situação não há nenhuma tentativa de
discussão ou compreensão. As pessoas lidam com aquela situação como se fosse algo esperado, normal,
que acontece naturalmente na vida. Não parece a vocês estranho que as pessoas reajam assim a uma
situação tão extraordinária? Até agora, estamos apenas tentamos arrumar o problema para podermos
compreender a obra.
Quando que a mãe de Gregor demonstra a primeira preocupação com o filho? Quando ela quer impedir
que a mobília seja retirada do quarto, argumentando que ele gostaria de encontrar tudo em seu devido
lugar quando voltasse a ser o que era antes. Contudo, ela é facilmente convencida pela filha, que defende
que ele conseguiria se movimentar melhor se os móveis fossem retirados. Depois, no episódio dos
inquilinos, ela se esconde atrás do marido, recusando completamente o filho. O seu último ato de amor é
impedir que o marido matasse Gregor a tiros de maçã.

[COMENTÁRIOS DE ALUNOS]

O que ela está dizendo é que a interpretação psicoanalítica não combina com os fatos. O conhecimento
humano é obtido por um pequeno conjunto de fontes:
1. A mais antiga é o saber revelado, que está presente tanto nas religiões quanto no conjunto de
saberes denominados de tradição, que são aqueles com os quais Steiner e René Guénon lidam. São
saberes muito antigos, revelados de alguma maneira, não são resultados da ação humana. São
saberes que nos foram deixados em algum momento da história e foram sendo reproduzidos ao
longo do tempo por meio de determinadas pessoas disso encarregadas.
2. Uma segunda fonte de conhecimento é a filosofia, o conhecimento especulativo que o ser humano
é capaz de ter sobre o mundo que o cerca.
3. A terceira fonte de conhecimento é a ciência, claro que sempre pode ser considerada um
subcapítulo da filosofia, o que rigorosamente o é.
4. A quarta fonte de saber é a literatura, a palavra escrita ficcional, imaginativa, como é o livro “A
Metamorfose” de Kafka. Conta-se uma história e essa história nos permite perceber aspectos
interiores da vida humana que nos são contados indiretamente, não pela psicologia. Essa fonte só é
apropriável se você fizer um esforço interpretativo. Essa categoria é conhecimento como todos os
outros, jamais devemos desprezá-lo. Talvez seja o mais natural, porque em todos os outros
também está presente um componente ficcional de certa maneira. Não é possível ao ser humano
conhecer qualquer coisa se não houver um esforço imaginativo no início. A mais árida teoria sobre
a subpartícula da subpartícula sempre parte de algum esforço imaginativo.
A ficção tem essa naturalidade no nosso processo de conhecimento. O desafio que você enfrenta ao ler um
livro de ficção é brincar que ele é de verdade, porque se você não o fizer não perceberá todos os
componentes que estão escondidos, os quais nos possibilitam compreender coisas da quais nem sequer
havíamos suspeitado. O problema central do mundo contemporâneo é que, uma vez que a ciência se
tornou uma autoridade genérica, os cientistas se tornaram as instâncias supremas. Todos os cientistas
tendem a interpretar o mundo a partir de um conjunto limitado de referenciais teóricos. O que acontece se
você dá toda a autoridade a ciência é que os cientistas tentam colocar o mundo na teoria dele, quando na
verdade o processo de conhecimento humano consiste em você enfiar a sua cabeça no mundo.
Então, o que nós compreendemos modernamente como a educação, que é tentar colocar o mundo na
nossa cabeça, é o contrário do que ela realmente é. Educação consiste em você se deixa surpreender,
porque tendo enfiado a cabeça no mundo você compreendeu alguma coisa sobre ele que até então não
havia descoberto. Essa é a grande beleza da literatura: ela permite que você navegue pelas experiências
alheias. Ao mesmo tempo que resguarda interiormente a sua liberdade, você percebe nuances e mundos
incrivelmente diferentes de sua própria experiência. O nome disso é educação (“educare” é uma derivação
de “ex”, que significa “fora”, e “ducere”, “guiar”; ou seja, em latim, educação significa literalmente “guiar
para fora”). Educação é você tirar para fora o sujeito que está preso em jaulinha. Educação é abrir,
aumentar os horizontes, mostrar referências novas, aumentar o espectro de possibilidades imaginativas
daquela criança ou adulto.

Quando você tem uma história como essa, as pessoas tentam fazer essa história caber na sua teoria, por
isso que eu digo para vocês que há uma prevalência de interpretações de “A Metamorfose” na teoria
psicoanalítica e marxista. Você tem na verdade 3 ou 4 tendências que juntas constituem o resumo de 99%
do mundo acadêmico: a teoria evolucionista, teoria marxista, teoria psicoanalítica freudiana e a teoria
estruturalista. O mundo acadêmico somente consegue lidar com esse assunto a partir desses quatro
pressupostos. Quando surge um livro como esse, todo mundo tenta interpretar a situação à luz dos únicos
referenciais teóricos que possuem; esse negócio chamado universidade é uma domesticação da mente,
uma transformação da pessoa num reprodutor de um conjuntinho de abordagem intelectual, que nunca se
dá o trabalho de pensar se é verdade ou não. A metodologia é mais importante que a verdade, essa é a
“verdade moderna”. Você passa a vida discutindo problemas kantianos, hegelianos, nietzschianos, quando
deveria estar descobrindo a verdade sobre as coisas. Como essas metodologias trouxeram mais problemas
que explicações, todos esse estão mais preocupados com a metodologia do que com a verdade. Então,
quando escapamos um pouco disso, o que às vezes é meio difícil, porque as pressões ao seu redor são
muito grandes, todos os assuntos têm a mesma abordagem…. É muito difícil alguém escapar disso; eu acho
que os dois grandes objetivos do nosso programa é que vocês escapem, ou ao menos que sejam presos
com grande dificuldade. Kakfa está falando algo muito além do que essas interpretações encaixotadas
dentro dos mecanismos de cidadania acadêmica.
É claro que um livro como esse admite mais de uma interpretação válida; a de hoje não é unívoca, você não
pode imaginar que exista apena uma interpretação que se retire da obra. Mas é importante compreender a
diferença entre interpretações meramente acidentais, aquelas que são secundárias, digamos assim, daquilo
que é o coração da obra, do que ela quer lhe contar de verdade. O fato de existirem várias interpretações
válidas não coloca todas no mesmo nível de importância. Quem explica muito bem isso é o Northrop Frye,
que faz uma pergunta assim: “Quantos filhos tinha a Lady Macbeth?” para nos mostrar a insignificância
desse ponto frente ao que o livro Macbeth quer nos dizer. Como nós vivemos em uma época que as
minorias são muito importantes, é muito comum hoje em dia dar atenção às interpretações acidentais da
obra, como a situação da mulher, homem, homossexual, negro, ... todas essas colocações passaram a ter
mais importância do que a obra em si.
[COMENTÁRIO DE ALUNO]: Como a arquitetura do apartamento de Gregor...

O mapa do apartamento de Gregor serve apenas para vocês se orientarem na história. O resumo é sempre
uma coisa mutilante. Primeiro, porque eu não sou escritor e segundo porque eu nunca posso fazê-los de
uma mesma maneira. Existem muitos resumos de uma página e meia, mas são muitos piores, não
conseguiríamos interpretá-las com um resumo desses. Sempre leiam a a obra. Posso ter omitido,
inconscientemente alguns detalhes, não posso garantir..
O que eu queria dizer é que existe um sentido extraordinariamente interessante que ultrapassa essas
acomodações dentro de esquemas contemporâneos de interpretação do mundo. Alguém quer tentar fazê-
la?
[COMENTÁRIO DE ALUNO]
Então, a sua interpretação é assim: enquanto ele representava uma fonte econômica, ele tinha sucesso
com a família, que o parasitava. Na hora em que ele não representa mais isso por causa do novo fato, ele se
transforma num estorvo e é preciso livrar-se dele. Porque não tem mais nenhuma contribuição, é preciso
jogá-lo fora – essa seria a ideia central do livro, certo?
Creio que a sua interpretação tem um certo sentido, o livro respalda essa explicação. No entanto, a família
de Gregor precisaria ser muito sádica para que isso pudesse ter viabilidade, porque uma coisa é uma familia
diminuir a importância atribuída ao filho por ele não mais resultar em dinheiro, outra é ter tamanha
insensibilidade para com Gregor. Não é uma interpretação sem viabilidade, mas eu queria ir mais longe.…

O que é que caracteriza a psicologia do Gregor durante todo o tempo em que nós o conhecemos? Ele tem a
preocupação central de quitar a dívida do pai. Mesmo quando ele se transforma em inseto e é expulso do
convívio familiar ele está lá preocupado em saber se família terá dinheiro e fica muito mal quando se dá
conta de que havia se tornado impotente. A impressão que vocês tem de Gregor é negativa, postiva ou
neutra? Ele parece uma pessoa boa, não é? Apenas há uma acusação, apenas alegações do gerente. Ele
está disposto a melhorar, às vezes dá a impressão de que cansou um pouco, mas apenas fala na dívida do
pai.

[COMENTÁRIO DE ALUNO]
O Albert Camus vê no Kafka uma espécie de referência pois o Camus acha que a vida é completamente
absurda; então, quem pega a pena para ilustrar isso é o Kafka. É mais ou menos isso que o Camus
interpreta, mas há aqui uma coisa tão importante…
Quando ele acorda, qual a sensação principal do Gregor? Nós sabemos que à noite acontece a sua
transformação e está chovendo quando ele acorda de manhã. A água assume esse sentido simbólico de
caos, embora os símbolos possam ter simultaneamente significado diferentes (por exemplo, o preto está
associado à morte, mas também é cor da roupa do padre). O segredo dos símbolos é você não se deixar
prender pela univocidade, o símbolo é, por natureza, múltiplo. A água tem muitos sentidos, mas nesse caso
parece representar uma interrupção da ordem. Quando você sonha, é como se a realidade se tornasse
informe em seus sonhos, como se ela se desmanchasse - você “mergulha” no sono. Sonhar é mais ou
menos como pular dentro da água, você destrói a forma anterior, substituindo-a por algo disforme (o caos)
e o caos é que constitui os sonhos e portanto…
Vejam que o Kafka deixa claro que tudo aquilo não é um sonho, tanto é que Gregor descobre a sua situação
depois de ter acordado. Eu quero insistir que vocês me ajudem a descobrir: por que é que somente ele se
preocupa com a dívida do pai? Aí está o segredo da nossa história.

[COMENTÁRIO DE ALUNO]
A transformação de Gregor obrigou a família a mudar o seu comportamento parasitário, foi todo mundo
trabalhar e começar uma nova vida. Essa é uma interpretação também respalda pela história, mas
sinceramente vocês devem esperar coisa mais complexa das mãos do Kafka. Essa interpretação tem certa
viabilidade, mas será que é o núcleo central da história?

[COMENTÁRIO DE ALUNO]
Qual a atitude central que os membros da família tem com relação a Gregor? Se ele é o único que está se
incomodando com a dívida, que se esforça, qual é a possível atitude que deveria existir no resto da família
com relação a ele? Gratidão seria natural, não é? Mas eles não demonstram gratidão ao longo da história,
mesmo a irmã que tinha as melhores ligações com ele.
A família não tinha dúvidas de que se tratava de Gregor, tinham absoluta certeza de que se tratava do filho
e do irmão. Ninguém diz: “Será que é mesmo?”. É como se fosse natural que ele fosse daquele jeito, como
se não houvesse nada de errado com aquilo…
Em "O Processo", de qual crime o Josef era culpado? Ele não reconhecia o Pecado Original, ele jamais o
reconhece. Qual é a divida que o Gregor Samsa está tentando pagar? A dívida do Pecado Original. A dívida
do pai é a dívida de seus antepassados, de Adão e Eva. Como você paga a dívida de Adão e Eva? Você ganha
o pão com o suor do rosto, ganha o filho com dor, o que são apenas maneiras simbólicas de dizer que a
condição humana a partir de nossa existência real e concreta é uma condição de contrariedade: há nesse
mundo um conjunto de hostilidades das quais não podemos escapar. A hostilidade da doença, dos
elementos da natureza, de outros seres humanos (que querem ficar com seu dinheiro, sua mulher, seu
automóvel, seu cargo na empresa). Nós não vivemos num mundo hostil?
A dívida que o Gregor está pagando é aquela materialmente representada pela dívida do pai dele, mas que
apresenta um conteúdo maior que transcende a ideia de uma divida humana comercial. Ele está pagando
uma dívida, o que implica em um estado de dificuldade, de sacrifício.
Como é narrada está história na Bílblia? Primeiro, você tem a criação do mundo, depois do homem e da
mulher, depois você tem a Queda. A Queda nos conta como o demônio instiga eles a invejarem Deus, não é
isso? Eles querem ter todo o poder de Deus, por isso que eles comem o tal fruto do conhecimento do bem
e do mal: o diabo diz que se ele comerem ficarão tão sábios quanto Deus.
Qual a sensação predominante de Adão e Eva com relação a Deus na hora em que eles decidem fazer isso?
Eles tem uma inveja do poder de Deus porque também querem ter poder, não é? Pois bem, Adão e Eva
comem o fruto e são expulsos por Deus, daí tem dois filhos: Caim, o mais velho, e Abel. Caim é agricultor e
Abel é um pastor de ovelhas. Um dia, eles vão fazer uma homenagem a Deus, cada um fazendo um
sacrifico. Abel traz a primogênita de suas ovelhas. Caim traz frutos da terra que ele plantou e entrega a
Deus. Deus prefere o sacrifício de Abel, deixa isso muito claro, e Caim então fica com inveja do privilégio do
irmão frente ao olhos de Deus. Quando esse priviléguo fica evidente, Caim (motivado pela inveja) atrai Abel
para um armadilha e o mata. Deus chama Caim e fala: “Cadê o seu irmão?” E Caim responde mal
criadamente: “Eu por acaso sou guarda do meu irmão?!” Então Deus diz: “O seu irmão clama por mim do
fundo da terra.” Ou seja, Deus está com isso dizendo que não esquecerá Abel, mas, ao mesmo tempo que
faz isso, libera Caim e põe uma marca nele para que ele possa ser reconhecido – não para ser perseguido,
mas justamente o contrário: para ser preservado. Deus autoriza a criação da sociedade humana com base
nessa situação; Caim sai daí e funda a primeira cidade.
O que aconteceu na história de Caim e Abel? Qual foi a ação que fundou a sociedade humana? A inveja,
não foi? Não tanto a inveja, mas mais precisamente a morte de Abel. Abel foi morto porque Caim não tinha
um animal para sacrificar. O que na verdade Caim sacrificou foi Abel, que tinha um animal. No Alcorão,
existe uma informação surpreendente que diz que o cordeiro que foi envaido por Deus para que Abraão
não matasse Isaac, mas o substituísse, é o mesmo cordeiro que fora sacrificado no início dos tempos. Está
no Alcorão, é uma informação polêmica essa, não é uma informação da Bíblia.
Por que é que a sociedade representada por aquela família melhora à media que Gregor vai piorando?
Porque ele era o único que pagava a dívida, não é? O Gregor ficava se enganando que a dívida do pai era
uma dívida com prazo… A gente não fica se enganando de que basta comprar um carro para que a vida
toda seja resolvida? É o mesmo quando você se autoilude com a ideia de que uma situação é temporária,
quando na verdade é para sempre.
Kafka está tentando fazer uma alegoria com condições humanas para explicar algo que está acima disso.
A dívida é do pai dele. Quem é o pai dele? Adão. Quem é o patrão sob esse ponto de vista simbólico? Deus
Compreenderam isso? Mas não é tão importante que essas ligações estejam bem delimitadas, porque
afinal de contas trata-se apenas de uma obra de ficção. Nós precisamos tentar entender essa obra um
pouquinho mais profundamente. O que o Gregor Samsa está pagando é a dívida humana, como qualquer
outro ser humano que está sob o pecado original, não tenham a menor dúvida disso.
Os outros membros da família não têm dívida? Eles também têm, só que não a reconhecem como tal, não
tem nenhuma responsabilidade sobre isso. Quem é o alvo de inveja nessa história? O Gregor, porque é o
sujeito que ao menos tem uma vida real e concreta: ele é um sujeito que pega o trem, vai viajar, faz os seus
negócios, retorna, está subordinado à autoridade do patrão; não é? Os outros não tem isso.

[COMENTÁRIO DE ALUNO]

Por que é que eles ficam felizes quando o Gregor morre?

[COMENTÁRIO DE ALUNO]

Será que não era porque agora os Gregor não estava mais lá para acusá-los de manter aquela vida de
parasitismo? Aquele ambiente familiar era um ambiente legítimo sob o ponto de vista deles?

[COMENTÁRIO DE ALUNO]

Essa sua explicação é que eles são tão monstruosos ao ponto de aceitarem a exploração do familiar, que
isso não lhes dá nenhum sentimento de culpa e agem como se ele fosse uma coisa velha quando não
podem mais explorá-la. Essa seria uma situação muito improvável, considerando o ser humano tal como
nós conhecemos.

[COMENTÁRIO DE ALUNO]

Mas como é que você resolve a culpa? A culpa é assim: até agora, eles estavam usando aquele sujeito para
os sustentar, isso é uma coisa muito ruim, o que os deixa mal de alguma maneira. Como é que você faz
para purgar essa culpa? Essa culpa somente pode ser purgada pelo sacrífico daquele outro que está ali, a
morte do Gregor é a única maneira pela qual os seus familiares poderiam se sentir felizes novamente. Mas
isso não é apenas a morte de Samsa, esse é aproximadamente o procedimento que acontece em todas as
estruturas da humanidade. Como é que você explica a história de Caim e Abel sem esse ponto de vista?
Caim é o fundador da humanidade, e essa fundação apenas ocorre quando ele mata Abel. Ele tem inveja de
Abel, mata-o e transforma esse ato em fundador da sociedade humana.
O René Girard, que é um antropólogo filosófico francês que mora nos EUA, explica isso de um modo
extraordinário dizendo que tudo o que acontece na humanidade chama-se inveja mimética: as pessoas não
querem as coisas porque elas são como são, mas sim porque são boas para os outros. Então, o que move o
desejo humano (e dos animais) é o desejo de ter o que o outro tem simplesmente porque você não tem.
Há uma espécie de confusão que as pessoas têm com relação aos seus desejos, e quando esses desejos que
estão confusos e desestruturados começam a perigosamente colocar em risco a estabilidade social, a única
solução é a escolha de um bode expiatório. A situação somente pode ser resolvida quando você escolhe
alguém que é fraco, inocente, sobretudo que não tenha o poder de retaliar, e o transforma no culpado.
Vocês transferem a essa pessoa a culpabilidade dos pecados que vocês têm, e é o bode que as expia em
seu lugar. Então, o que é que o Gregor Samsa expia? A incapacidade de trabalhar, a sua inação (ele está
preso dentro daquela sala, não é mais um ser humano).
É somente a partir do momento que você culpa o outro que se torna possível uma reestruturação da
sociedade, assim ajudada catarticamente. Eles recuperam o controle das suas vidas e vivem na ilusão de
que a culpa estava no outro. À media que o tempo passa, percebem que o outro foi apenas uma vítima
injusta e tendem a idolatrar aquele que foi injustiçado anteriormente (o Gregor Samsa lá na frente, um belo
dia, vai ser transformado em um herói pela família). Por enquanto, ele não é mais herói porque precisa ser
transformado no mal que os outros tinham e não eram capazes de aceitar por sua culpa. A culpa precisa ser
transferida ao outro e é assim que se formata a sociedade humana, diz o René Girard nesse livros “Les
choses cachées depuis le début du monde” – As coisas ocultas desde a fundação do mundo) . Esse é o
processo pelo qual se constrói a sociedade humana, por uma sequência de bodes expiatórios. Isso não é
nenhuma experiência apenas do céu: vocês nunca se sentiram como o Gregor Samsa? Vocês não foram o
Gregor Samsa muitas vezes durante a sua vida?

[COMENTÁRIO DE ALUNO]

É o sujeito que fez tudo certo, mas, mesmo assim, está condenado à morte. Esse não é justamente o caso
de Abel? O fato de que Abel faz tudo certo não impede que Deus conceda legitimidade a Caim construir a
sociedade humana em cima de um crime. Mas há um ponto importante: Deus sempre lembrará de Abel.
Abel, mesmo sendo transformado em bode expiatório, será querido aos olhos de Deus. O Gregor Samsa é a
mesma coisa, ele é o bode expiatório da família, daquela sociedade. Ele é o sujeito que fazia tudo certo,
mas que no entanto precisava ser sacrificado de alguma maneira – porque o sacrifício somente pode ser
feito a partir da escolha de um inocente, que é o que você faz com um carneiro quando o escolhe para ser
o sacrificado.
Por que a oferenda de Abel agrada mais a Deus do que a oferenda de Caim? Vocês já se perguntaram isso?
Porque a oferenda de Abel é a oferenda de sangue, o que é simbolicamente a oferenda da própria vida:
você se mata por alguém. A oferenda de Caim é oferenda de coisas, não há a mesma importância. A
oferenda de Abel é uma oferenda simbolicamente superior à de Caim.
Vocês percebem que o que aconteceu com Gregor Samsa é que ele se transformou numa espécie de
cordeiro que foi sacrificado para que a família pudesse ser aliviada da culpa – e isso acontece com vocês o
tempo todo. Às vezes, o sujeito que faz o melhor trabalho numa empresa é mandado embora justamente
por isso. Como consultor de empresas, eu descobri que o melhor jeito de você manter o seu cargo é nunca
aparentar ser o responsável do que mais de 10% do sucesso da empresa; não há nada mais suicida para um
consultor do que garantir sucesso demais. Se você não passou por isso até agora, certamente ainda será
muitas vezes injustiçado - como Abel foi injustiçado.
O problema com essas injustiças é que elas são de certo modo legítimas, porque a sociedade não consegue
se organizar sem escolher um bode expiatório. Essa vítima tem de ser obrigatoriamente inocente, fraca e
sem possibilidade de retaliação, poque senão um infindável ciclo de retaliações será gerado. Essa situação,
que você vive na sua vida real e concreta, é a situação de Gregor Samsa.
É preciso acusá-lo de ser um monstro, senão não pode matá-lo. A monstruosidade de Gregor Samsa são as
anomalias das pessoas em geral, você tem que dizer que elas são monstros. Um dos pontos sutis dessa
conversa é que ele essencialmente é morto por uma maçã. Isso pode ser coincidência, mas ele é morto
como se dissessem a ele: "Olha o pecado original ali", como se não fosse ele quem estivera trabalhando
para pagar a conta do pai. Quem não tinha nenhuma vontade de pagar o pecado original era o resto da
família, mas se você não inventar a tese de que ele era o sujeito culpado, você não produz o fator bode
expiatório.
[COMENTÁRIO DE ALUNO]: cita a relação da irmã com Gregor.

Essa história dura meses. No início, ela possui uma certa compaixão para com Gregor, que vai sendo
perdida quando ela vai percebendo que a felicidade da família é inversamente proporcional à felicidade do
bode expiatório. Quando mais ele se aproxima da morte, melhor a situação da família. Se vocês repararam
aqui
"a faxineira parecia ter perturbado a tranquilidade que mal tinham reconquistado . " Quando morre alguém, um
doente em sua casa, você sente mais tranquilidade? Pode sentir um alívio pelo sofrimento do doente haver
terminado, mas essa “tranquilidade” é mais do que alívio - é uma espécie de ressurreição da existência,
porque agora a família não é mais culpada, o culpado morreu. Não é o sentido do Cordeiro de Deus, Jesus
Cristo?
O sentido de Jesus Cristo é exatamente esse, Ele veio aqui e nos disse: "Não, vocês não são culpados, não.
Deixa que eu morro para vocês e aí vocês param com essa encheção de saco de culpa. Tomem: vocês
podem fazer o que quiserem comigo, sou eu o culpado". Então, respondem: "Não, nós realmente não
somos culpados. Pensando bem, é Ele. Vamos descer o cacete!" Não é essa a história no final da vida de
Cristo? Pois bem, é a razão pela qual o cristianismo faz sentido, se não qual seria o sentido de Deus vir aqui
e ficar apanhando à toa? O sentido da vinda de Jesus Cristo é se transformar voluntariamente no cordeiro
amolado em nosso nome. Ou seja, Ele incorpora as nossas culpas, não dEle. Pois não é exatamente o que
Gregor Samsa faz?
Vocês devem sempre se lembrar que Kafka é um judeu, que apenas leu o Velho Testamento. Ele não vê
essa situação como uma redenção, ele vê isso como uma desgraça da vida. O judeu não acredita na
Redenção de Cristo. Para um judeu, Jesus não passa de outro judeu dissidente, maluco e cismático. A
salvação depende de uma série de circunstâncias para as quais eles não têm a fórmula. Essa é a razão pela
qual o Josef não acreditava em qualquer espécie de solução política para o problema dele e a razão pela
qual o Gregor acreditava que estava indo na direção da morte e pronto.

Portanto, o bode expiatório é a metodologia pelo qual a humanidade funciona. Toda vez que você é
injustiçado (e você será muitas vezes durante a vida), essa injustiça é necessária para recuperar a
capacidade de estabilidade emocional do grupo ao seu redor. Por um tempo alivia, mas a sensação é
completamente falsa. Depois, o grupo começa: "Puxa! Como esse sujeito tinha razão! Vamos colocar uma
estátua na praça...", e aí você vai mais ou menos purgando a injustiça com uma homenagem. Quando
termina aquele alívio, todo mundo recupera a visibilidade de como era antes, e como mais à frente
entrarão novamente em crise pegarão outro coitado como bode expiatório.
Vocês compreenderam o que aconteceu com Gregor Samsa? Se já se sentiram assim injustiçados como ele
foi, compreenderão o bode expiatório em que ele transformou.

[COMENTÁRIO DO ALUNO]: Comenta sobre o significado da expressão "bode expiatório".


Nos tempos antigos do judaísmo, uma vez por ano pegavam um bode, a quem primeiro atribuíam todas as
suas mal feitorias, e em seguida davam um pontapé no bode precipício abaixo, de modo que com isso os
seus pecados estariam purgados pela morte do outro. Em francês, chama-se "bouc émissaire", porque é o
bode que é emitido (mandado embora). Em latim, "expiare" significa “jogar para fora”.

ULTIMAÇÃO DO ENCONTRO:
No episódio de Caim e Abel, a fundação da primeira cidade do mundo é feita pelas mãos de Caim
(protegido por Deus) a partir do processo de matança de um inocente, o seu irmão. Atentem-se ao fato de
que se a sociedade humana precisa por alguma razão desse mecanismo, quer dizer que Abel nunca será
esquecido e será recompensado na outra vida. No entanto, no caso de Gregor Samsa, não se tem a
sensação de que isso acontecerá porque Kafka não acreditava nisso.
É por meio de uma sequência de bodes expiatórios que se reformata a sociedade. Então na próxima vez
que isso acontecer com você, é preciso lembrar que se ninguém fizer esse papel, os outros não podem
prosseguir. Com o tempo, o mundo reconhecerá essa injustiça. O maior exemplo disso é Jesus Cristo, que
precisou exatamente transformar a Ele mesmo em bode expiatório para que a humanidade pudesse
continuar existindo. Vocês compreenderam o que é o sacrífico de Jesus Cristo? Não há outro modo de a
humanidade continuar existindo.
Alguém precisa sacrificar a própria vida, e esse alguém é o Gregor Samsa em "A Metamorfose". Agora que
mataram o suposto culpado, a família finalmente pode se renovar, mesmo que sejam eles quem estava
com toda a culpa, não o Samsa. O pobre coitado estava apenas pagando a dívida do pai, cumprindo a sua
obrigação como ser humano de responder ao pecado original. No caso de "O Processo", o sujeito não
admite que tem o pecado original. No caso de "A Metamorfose",o sujeito admite mas não é por causa
disso que ele se salva. O que será que acontecerá em "O Castelo"?

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