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REFLEXÃO

A ESCRITA DE FLUSSER

FRAGMENTOS DE
ESFERAS DISCURSIVAS
MURILO J. DA COSTA

H
á dois objetos a que se refere
o título deste artigo apresenta-
do no seminário A Escrita de
Flusser, no Memorial da Amé-
rica Latina, e que poderiam ser
tratados separada ou conjunta-
mente. Poder-se-ia falar primeiro da escrita do au-
tor no sentido de criação linguística, de invenção,
de estilo, e posteriormente da recente tradução do
livro Die Schrift, desse filósofo. A opção, contu-
do, é analisar a escrita de Flusser ao comentar seu
livro A Escrita, publicado pela editora Annablu-
me em fevereiro deste ano. A escrita flusseriana é
compreendida tanto em alemão quanto em portu-
guês como plurilíngue. Trata-se, é verdade, de uma
escrita constitutivamente plural: são fragmentos
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de várias esferas discursivas; e isso uma sobre o autor, o livro A Época Brasilei-
breve análise da escolha lexical com- ra de Vilém Flusser, de Eva Batlickova,
prova (desde relatos da literatura reli- pode reverter esse quadro, não apenas
giosa até excertos da literatura cientí- torná-la mais atrativa para os leitores
fica); em vários registros, desde o mais brasileiros, como também jogar luzes
formal até o coloquial, textualizados sobre as reflexões de sua fase inicial de
sobre os sistemas de referência de, no produção, desenvolvida aqui no Brasil.
mínimo, quatro línguas: alemão, portu- O livro A Escrita, último ensaio escrito
guês, inglês e francês. Essa pluralidade, antes do acidente que lhe tirou a vida, é
pois, será observada na escrita da re- uma obra fundamental para se conhe-
cente obra desse “filósofo, culturólogo cer o pensamento do filósofo. Para ele,
e comunicólogo brasileiro”. os códigos digitais e as imagens técni-
Vilém Flusser nasceu em 12 de cas produzidas por aparelhos poderão
maio de 1920 em Praga, e lá iniciou os decretar a morte da escrita, isto é, do
estudos em filosofia. Diante da ascen- código alfabético, das letras. Ao longo
são do nazismo, e devido à sua ascen- da obra, o autor discute, antes de mais
dência judaica, emigrou para a Ingla-
terra em 1939. No ano seguinte, ainda
em fuga do nazismo, veio para o Bra-
sil acompanhado de sua esposa, Edith
Flusser. Depois de trabalhar na indús-
tria do sogro, resolveu dedicar-se à vida
intelectual. Iniciou a carreira docente
na Escola de Arte Dramática Alfredo
Mesquita. Lecionou ainda no Institu-
to Tecnológico de Aeronáutica (ITA),
na Fundação Armando Alvares Pen-
teado (FAAP) e na Escola Politécnica
da Universidade de São Paulo (USP). As aulas de Vilém
Foi um dos mais instigantes intelectu- Flusser atraíam alunos
ais na área da filosofia da comunicação. de vários cursos.
Na década de 1970, quando a mídia se
impôs definitivamente nas relações co- nada, a história da escrita, desde as ins-
municacionais cotidianas, iniciou uma crições, quando o suporte desse gesto
cruzada para demonstrar que a tecno- de escrever era a argila, a pedra; pas-
logia contribui na abertura de um enor- sando pelas sobrescrições, escrita cujo
me e novo campo de possibilidades de suporte é o papel; até o momento, que
criação. Além da reflexão sobre a mídia, ele designa de pós-história, em que os
Flusser desenvolveu importantes en- códigos digitais terão substituído a mo-
saios teóricos sobre a linguagem, as lín- dalidade escrita de uso da língua. Ele
guas e o fenômeno da tradução. discorre sobre a escrita à mão e sobre
Ainda que tenha vivido no Bra- a escrita elaborada por meio dos apa-
sil durante 33 anos, e jamais morado relhos, sobre a escrita linear e sobre os
na Alemanha, sua obra é mais estuda- novos códigos digitais produzidos com
da pelos alemães que pelos brasileiros. o computador, a máquina fotográfica e
Sua obra também é mais conhecida por a televisão. “Da mesma maneira como o
FOTOs: reprodução

suas reflexões sobre mídia e contem- alfabeto procedeu originalmente contra


poraneidade. Uma recente publicação os pictogramas, os códigos digitais pro-

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dedicados aos livros, às cartas e ao ri-
tual epistolar, aos jornais, às papelarias,
às escrivaninhas etc., aspectos de nosso
cotidiano apreendidos por um olhar fe-
nomenológico. É um olhar pessimista
e melancólico. Esse olhar, por exem-
plo, é apreendido no capítulo Cartas,
em que ele discorre sobre o ritual de
enviar e receber essa escrita. Um tom
que também permanece no capítulo Li-
vros, em que faz considerações sobre o
desaparecimento da escrita publicada
nas páginas de papel de um livro. Para o
autor, ao abrir mão da escrita, as atividades
organizadas em torno desse gesto tam-
Para Flusser, códigos di- cedem atualmente contra as letras, para bém desaparecerão: as cartas, os livros, as
gitais e imagens técnicas superá-las. Da mesma maneira como, papelarias e até mesmo a cidade.
poderão decretar o fim da originalmente, o pensamento funda- Assim, o argumento flusseriano
escrita. mentado no alfabeto se engajou contra objetiva mostrar que um dia o alfabe-
a magia e o mito (contra o pensamen- to – invenção que levou o ser humano
to imagético), também o pensamento a ingressar no período histórico, carac-
baseado em códigos digitais se engaja terizado pelo pensamento lógico, linear,
contra ideologias processuais, “progres- conceitual – desaparecerá completamen-
sivas”, para substituí-las por modos de te da face da Terra. Para ele, não é fácil
pensar cibernéticos, sistemoanalíticos e conviver com essa ideia, pois há pessoas
estruturais”, escreve o autor na página que acreditam, entre as quais ele se inclui,
161, no capítulo sobre os códigos di- que não poderiam viver sem escrever. E
gitais. E continua, “da mesma maneira não é porque queiram tornar-se grandes
como as imagens ao longo da história escritores, mas porque acreditam que
se defenderam para não serem suplan- precisam escrever, já que só no gesto do
tadas por textos, também o alfabeto escrever podem expressar sua existência.
atualmente defende-se para não ser su- Esse conteúdo temático é perfei-
plantado pelos novos códigos – apenas to para o gênero de discurso seleciona-
um pequeno consolo para todos aqueles do pelo filósofo: trata-se do ensaio. O
engajados na permanência da escrita de ensaísmo já diz respeito a sua prática
textos, pois a coisa se acelerou”. de escrita. Vilém Flusser não era jorna-
Por ocasião dessa reflexão sobre lista. Nem escrevia tratados científicos.
o declínio da escrita linear em nossa O próprio autor discorre sobre esse gê-
cultura, Flusser faz uma leitura, uma nero em vários momentos de sua obra.
análise de todas as atividades humanas Rainer Guldin, um dos principais co-
que se desenvolveram em torno desse mentadores da obra de Flusser na Eu-
gesto e avalia o que perderemos e o ropa, e que servirá de base para as con-
que será diferente se abrirmos mão do siderações sobre a prática de escrita de
escrever. Daí, o subtítulo do livro: há Flusser, expõe em sua obra Philosophieren
futuro para a escrita? Para o professor e zwischen den Sprachen: Vilém Flussers Werk
pesquisador Norval Baitello Jr., Flusser que “o ensaio indica a perspectiva esco-
elabora nessa obra uma antropologia lhida desde o início (...). Ele não silen-
da escrita. Entre outros, há capítulos cia, ao contrário do tratado científico,

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a dependência do ponto de vista. Isso E que mais caracteriza a escrita
já é anunciado na escolha do título. Es- de Vilém Flusser? A escrita flusseriana
creve-se sobre uma área geral de difícil é, como já se mencionou, compreen-
definição e submete-se, portanto, à sus- dida tanto em alemão quanto em por-
peita da deslealdade científica. Escreve- tuguês como plurilíngue. O conceito
se tanto sobre o cotidiano quanto sobre “escrita plurilinguística” remonta aos
temas filosóficos. (...) Não há limites escritos do próprio autor, que define o
temáticos para a escrita ensaística. (...) surgimento do próprio plurilinguismo
Ensaios são, para Flusser, narrativas fe- como a superposição de camadas lin-
nomenológicas: eles vivem do engaja- guísticas sobre um núcleo já esfacela-
mento que liga aqueles que escrevem ao do: alemão e tcheco, duas línguas com
seu objeto, e tornam o ponto de vista de estruturas radicalmente diferentes, in-
quem vê o verdadeiro tema”. Ainda de fluenciaram a formação de seu pensa-
acordo com o autor, “a escrita ensaística mento em duas partes iguais.
é a renúncia consciente a uma explica- Ao definir a própria escrita por
ção abrangente e a um ponto de vista meio dessa imagem, Flusser nos leva a
hegemônico, a partir do qual tudo po- visualizá-la como camadas geológicas
deria ser compreendido por uma única que se sobrepõem, mantendo seus limi-
visão. Ensaios não fornecem projetos tes. Poder-se-ia, contudo, falar de uma
de mundo totalizadores, eles perma- linguagem caleidoscópica. Não pode-
necem fragmentários. (...) Assim como mos esquecer que o projeto do autor
o ensaio está aberto a todos os temas, era, segundo Guldin, “instalar-se na
também procura combinar diferentes apatridade, isto é, superar o desenraiza-
línguas, estilos e registros. Finalmente, mento, ao transformá-lo em uma pátria
ensaios não propõem imagens harmo- de segundo grau. Para ele, ao contrário
niosas e consensuais, mas esboços e ca- da ideia corrente, apatridade não signi-
ricaturas. São espelhos de distorção em fica mais e nem apenas a falta doloro-
que a realidade se fragmenta, o tema é sa de uma pátria única e sagrada, mas a
decomposto e remontado”. sobreposição libertadora de muitas pá-
Pode-se afirmar, portanto, que trias diferentes. Abundância, portanto, e
essa escrita ensaística é uma das princi- não carência. (...) Aquilo que é múltiplo
pais características do estilo flusseriano frequentemente ameaça se desfazer em
de escrever. É no ensaio, e por meio seus componentes e se separar inexora-
dele, que o autor desenvolve sua autoria. velmente. Uma solução é a tradução e a
Trata-se de uma escrita única e autoral. retradução como construção de pontes
Há um posfácio no livro. À página 178, de entendimento, um ir e vir precário,
no fim desse posfácio, o autor assina e porém esclarecedor, entre ilhas de lín-
data (V. F., junho de 1989). A assinatu- guas e margens estranhas”.
ra é totalmente desnecessária. Ninguém, Portanto, no caso de Flusser, trata-
além do próprio Flusser, poderia ter es- se de uma escrita que refrata esse proje-
crito essa obra. Nesse aspecto reside ou- to existencial. Sua escrita é desenraizada.
tra característica da escrita do autor, uma São como passos leves que, em oposição
criação linguística que assemelha-se em ao que escreve no livro, não deixam ras-
certa medida à escrita literária. Há uma tros – ou procuram não deixar.
escrita autoral, em que repetições, redun-
dâncias, topicalizações, modalizações etc.
são marcas da intencionalidade do autor Murilo Jardelino da Costa é professor e pesquisa-
vinculada ao estilo do gênero “ensaio”. dor, especialista em linguística e pedagogia empírica.

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