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LITERATURA

CARTAS NA BÍBLIA: UMA ANÁLISE DO


GÊNERO TEXTUAL

DAVI OLIVEIRA, professor dos cursos de Letras e Tradutor e Intérprete do


Unasp, Campus Engenheiro Coelho e mestrando em Lingüística pela PUC-SP,
davi.oliveira@unasp.edu.br

Resumo: Este artigo analisa a estrutura lingüística das cartas presentes no contexto
da comunidade judaica dos tempos bíblicos. O objetivo é verificar se as cartas na Bíblia
apresentam um conteúdo característico de enunciados coloquiais e de caráter íntimo.
Para isso, o estudo explica a composição textual da espécie carta por meio da história e
literatura. Desse modo, é possível destacar a narração epistolar universal que acompanha
a constituição das cartas em forma de verso, prosa ou romance. Assim, o artigo considera
as cartas bíblicas e os elementos classificatórios do gênero textual: forma, conteúdo e
composição como base para a pesquisa.
Palavras-chave: Cartas, Bíblia, estrutura lingüística, gênero epistolar

Epistles in the Bible: a textual genre analysis


Abstract: This article analyses the linguistics structure of the Jewish community
context from the biblical times. The goal is verifying that the epistles in the Bible present
a characteristical content of colloquial enunciations and intimate character. For that, the
study explains textual compound os epistle through history and literature. This way, it
is possible to point out the universal epistolary narrative which goes along with epistles
formation in verse, prose or novel ways. Thus, in the biblical epistles and textual genre
categorization elements are considered the following: structure, content and compound
as basis to the research.
Keywords: Epistles, linguistic structure, epistolary genre

Introdução
A carta é o tema de muitas canções populares. Escrevo-te estas mal traçadas linhas, meu amor;
Algumas esboçam relações de amor explícito, e são Porque veio a saudade visitar meu coração;
recebidas pelo amado ou amada, enquanto outras, por Espero que desculpes os meus erros, por favor;
Nas frases desta carta que é uma prova de afeição.
algum infortúnio, deixam de chegar ao seu destina-
tário. Entre as canções brasileiras que se tematizam Esse veículo de comunicação faz parte do am-
na carta, mencionamos A Carta, composição de Eras- biente familiar, histórico, musical e cinematográfico
mo Carlos e Roberto Carlos, cuja primeira estrofe se brasileiro. O filme Central do Brasil, por exemplo, apre-
constrói assim: senta o ato de escrever como uma das marcas da cul-

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tura brasileira, independentemente de ser alfabetizado pondência dos futuros cônjuges. E na religião? Dá
ou não. Um país onde, até cinco anos atrás, o telefone para imaginar a religião cristã sem as cartas do após-
era um objeto de luxo, as cartas eram um significativo tolo Paulo às igrejas ou aos dirigentes delas? Qual
meio de aproximação entre as pessoas e empresas. seria o início do Apocalipse de João sem as cartas
Com a tecnologia, entretanto, as cartas não conti- às sete igrejas? Como seria o Novo Testamento sem
nuam com a mesma atmosfera emocionante da chega- estas correspondências? E as cartas do Antigo Tes-
da do carteiro, ou com o suspense que havia durante tamento? E o Brasil? A história do Brasil dispara o
o momento em que o carteiro retirava o envelope de seu gatilho literário a partir da Carta de Pero Vaz de
uma sacola de lona e chamava pelo nome do desti- Caminha, enviada ao rei de Portugal.
natário. Hoje, elas chegam ao seu destino por meios
diferentes. Os e-mails estão aí como filhos eletrôni-
A carta como gênero textual
cos dos antigos manuscritos. Certamente, a chegada Historicamente, os filósofos gregos Platão e
do carteiro foi mudada para a ida a uma lanhouse, ou Aristóteles foram os primeiros a tratarem do as-
mesmo a necessidade de uma conexão de internet. O sunto “gênero”. Platão discorre sobre a tragédia,
selo no envelope agora é o “enviar” da caixa de ferra- comédia, “ditirambo” e a poesia épica, em seus di-
menta, o endereço com o CEP, agora tem uma “@”; álogos. Já Aristóteles chama de gêneros fundamen-
o recebimento agora é um click no mouse. Quanto tais o épico, o drama e a poesia lírica. A distinção
ao tempo, os oito ou quinze dias para o recebimento estabelecida por ele apóia-se na natureza do assun-
de uma correspondência agora são reduzidos a fra- to presente na obra e na estrutura formal – métrica
ções de segundos. São fotos de máquinas digitais que e linguagem figurada.
se estampam na tela, ou músicas que acompanham o Horácio, por sua vez, inspirado em Platão e Aris-
ambiente escrito. A emoção viaja na velocidade além, tóteles, leva para Roma as teorias já as codificando.
muito além das pernas do carteiro. Ele, de acordo com Proença Filho (1995, p. 737),
E a situação ambiente? Não usamos mais o can- caracteriza os gêneros “a partir de traços estilísticos
deeiro, nem colocamos a carta mais ao nosso lado, e de variedades métricas; propõe uma rigorosa sepa-
em cima da cama para lê-la tantas vezes desejar. Nos ração para os gêneros que não permitia, por exem-
tempos modernos, é preciso ter energia elétrica e a
plo, misturar, num mesmo texto, tragédia e comédia:
conexão com um provedor de internet por onde as
cada uma teria o tom adequado”.
nossas “cartas” passam e chegam coloridas, acesas,
No Renascimento, o sentido horaciano de gêne-
ilustradas, musicadas etc. Fisicamente, a carta mudou,
ro entra em voga sendo nomeado como algo fixo e
bem como os recursos, pois agora, até no uso da lín-
fechado, submetido às regras listadas nos tratados de
gua houve uma alteração na grafia das palavras – tam-
artes plásticas. Segundo Coutinho (1987, p. 737), os
bém agora é tb, apenas para pontuar a gramática da
renascentistas concebiam os gêneros literários como
“internetês”. O afeto da escrita foi substituído pela
pressa da digitação. entidades abstratas, organismos limitados e fechados
Apesar de tudo, a correspondência, como princí- uns nos outros; permanecem fixos; são puros, concen-
pio, continua ativa com o advento do correio eletrô- tram-se numa só emoção e não se misturam quanto às
qualidades; cada obra pertence a um gênero diferente;
nico – correspondência amorosa, familiar, comercial,
obedecem a uma hierarquia, havendo gêneros nobres e
financeira, etc. Possivelmente, nunca se escreveu tanto gêneros inferiores, não somente de acordo com o valor
nem se leu tanto como agora. São crianças, adolescen- estético, senão também relativamente à categoria social.
tes, jovens e adultos nos “msn’s” da vida, aliás, da “net”.
O romantismo e a expectativa do recebimento da carta Conclui-se que os gêneros são critérios de classi-
de papel e envelopes de borda verde-amarelas, no caso ficação onde as obras deveriam ser enquadradas.
do Brasil, pouco a pouco ficam no passado. Agora são Mais tarde, conforme Coutinho (1987, p. 738), no
as telas dos monitores nossa caixa do correio e nosso século 18, chegando até o Romantismo, este conceito
carteiro particular. É o romantismo na net. foi colocado em xeque, quando o gênero no contexto
da literatura entendia-se como “individualidade cria-
História por meio das cartas dora e da inspiração subjetiva”. Enquanto isso, Bene-
As cartas são coadjuvantes na formação histó- detto Croce (apud Coutinho, 1987, p. 738) entende
rica das pessoas, das religiões e dos países. Quantos o gênero como “formas” em que o artista poderia
casamentos se concretizaram pela pontual corres- utilizar diversos métodos para expressar sua indivi-

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dualidade e sua criatividade. É neste conceito que cação depende da predominância de um deles. Roman
entra o gênero epistolar. Jakobson, porém, coloca o foco na estrutura lingüís-
Gênero, segundo Maia (1985, p. 174), ticas da obra. Amora (2001, p. 99) defende a postura
é a categoria a qual pertence uma obra literária, graças de Jakobson e dá ênfase aos gêneros como base da
a características relacionadas à situação de comunica- análise estrutural:
ção e à forma da linguagem privilegiada, regras ou con- um gênero (por exemplo, um romance, um poema lí-
venções que nos permitem agrupar, pelas semelhanças, rico, um drama) é a combinação de um tipo de forma
determinados textos. (prosa ou verso), com um tipo de composição (expo-
sitiva, representativa ou mista) e um tipo de conteúdo
Os postulados aristotélicos e platônicos, bem
(psicológico, físico ou mista); uma espécie é uma va-
como, as codificações de Horácio formarão a base da
riação dentro de um gênero. Exemplificando: a poesia
literatura e a crítica literária do mundo ocidental nos lírica, que é um gênero, tem um tipo de forma; o verso,
séculos 16, 17, 18 e grande parte do 19. O século 16 é um tipo de combinação; a expositiva, um tipo de con-
marcado pela rigidez classificatória dos gêneros, apesar teúdo, além da psicologia do poeta; e dentro do gênero
de manifestar uma atitude mais flexível sem desmerecer lírico há várias espécies – como o soneto, a ode, a lira,
o caráter e a legitimidade dos gêneros tradicionais. etc –, caracterizadas por determinadas estruturas poe-
O posicionamento de liberdade continua nos sé- máticas (verso, estrofe, rima), determinado sentimento
culos 17 e 18, chegando-se ao século 19 com a con- (o amor, a religiosidade, o patriotismo) e determinada
estrutura de pensamento (o silogismo, no caso do so-
cepção de liberdade e ecletismo. As palavras de Victor
neto; a repetição de uma idéia, no caso da lira).
Hugo sintetizam a postura moderna.
Metamos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos sis-
Continuando, Amora (Ibidem) pontua que ao
temas. Abaixo este velho reboco que mascara a fachada longo da história os gêneros vêm surgindo devido
da arte. Não há regras nem modelos; ou melhor, não à criatividade dos escritores, porém, este fato tem
há regras além das leis da natureza que planam sobre por objetivo a comunicação com o público, sendo,
toda arte e das leis especiais que, para cada composi- portanto, a criação do gênero ou da espécie o fruto
ção, derivam das condições próprias de cada assunto. do ambiente cultural.
As primeiras são eternas, interiores, e permanecem. As Particularizando nossa pesquisa, lembramos que os
outras, variáveis, exteriores e servem apenas uma vez
estudos dos gêneros estão apoiados em duas teorias: a
(Proença Filho, 1995, p. 66).
teoria clássica – que defende uma classificação rígida
Ainda no século 19, figura a tese de que os gêne- – e, a teoria moderna – mais liberal –, optando mais
ros nascem, crescem, desenvolvem-se, transformam- pela perspectiva da descrição da obra do que pela sua
se e desaparecem, conforme defende Ferdinando normatização quanto a que gênero pertence. Segundo
Brunetière (apud Proença, 1995, p. 67). Acrescente-se Amora (2001, p.100), na classificação dos gêneros lite-
a isso o fato de que rários, a carta entraria na forma: prosa; na composição:
os teóricos da época do Positivismo e do Naturalismo, expositiva e no conteúdo: epistolografia.
influenciados por prestigiosas doutrinas acerca dos fe-
nômenos biológicos (monismo, geneticismo, evolucio- Gênero epistolar e a espécie carta
nismo) não puderam deixar de ver os gêneros literários Rebelo (apud Fiúza, 1954) caracteriza o gênero
como fenômenos de natureza estética, mas também epistolar composto por cartas ou epístolas, que po-
social, pois um gênero, como a tragédia grega ou o dra-
dem ser em verso ou prosa. Para ele, a epístola
ma romântico, era sempre um produto de determinado
ambiente físico e social, e de determinado momento é uma composição em verso, geralmente decassílabo,
histórico (Amora, 2001, p. 96). em que o poeta, assumindo a atitude e adotando o tom
de quem escreve uma carta a um amigo(s) ou alguma
Croce (apud Amora, 2001) atribui uma figuração personalidade de relevo, tratam certos temas de ordem
secundária à questão do gênero, servindo como instru- filosófica, moral, política, estética e literária.
mento extrínseco da obra. Na sua visão, a obra deve ser
Coutinho (1987) classifica os gêneros na propos-
estudada em si apenas, pois, o valor do texto literário
ta de Walley e Wilson, em que as cartas surgem como
não depende de sua inclusão em qualquer gênero.
um gênero literário ensaístico direto, em conjunto
Mais radical, Stäiger admite a existência dos tra-
com a crônica, ensaio, apólogo, máxima, diálogo e
dicionais estilos épico, lírico e dramático, mas, a obra
memórias; enquanto que Tavares (1991) embasa sua
literária pode participar dos três gêneros e sua classifi-

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classificação em Álvares Cardoso, colocando a carta poderosos da época; Petraca, e o romântico Le-
como um gênero epistolar, pertencente a um gênero opardi.
especial. Ryken (1974, p. 317), no entanto, assevera • Na Espanha: Santa Teresa, Quevedo.
que a carta é considerada um gênero periférico no • Na França: Montesquieu, Diderot, Mme de Se-
mundo da literatura. vigné.
O texto epistolar abrange três modalidades: a) a • Entre os latinos: Cícero, Sêneca, Plínio o moço.
epístola ou carta, em verso; b) as cartas em prosa; e • Em Portugal: Vieira, Sóror Mariana Alcoforado,
c) e o romance por cartas. Como epístola ou carta freira que se apaixonara por um galante oficial
destacamos a Epístola aos Pisões (ad Pisões) de Horácio, francês; Eça de Queiroz com suas Cartas da In-
estilo usado por Antônio Ferreira, Sá de Miranda, nos glaterra, Cartas Familiares, Correspondência de Fredique
Árcades com Filinto Elício, e Castilho nas Cartas de Eco Mendes.
e Narciso. As cartas em prosa têm seu exemplo nas • No Brasil: a correspondência familiar de român-
palavras de D. Francisco Manuel de Melo, em Camões, ticos como Castro Alves, Álvares de Azevedo,
e nas de Vieira, em Correspondência de Eça de Queiroz, cartas de conteúdo social e político como Cartas
e, finalmente, no romance por carta na obra Letters do Solitário de Tavares Bastos, as correspondências
Portugaises. Ainda neste estilo, no Brasil oitocentista de escritores como Monteiro Lobato, Jackson de
mencionamos Machado de Assis, José de Alencar, Figueiredo, Mário de Andrade, Machado de Assis,
José Veríssimo, Salvador de Mendonça, Afrânio Pei- Graça Aranha, Joaquim Nabuco etc.
xoto, Joaquim Nabuco, Aloísio Azevedo, Capristano Acrescente-se a estes o nome de Lord Byron que
de Abreu, Carlos Drumond, Mário de Andrade, Ma- se destaca entre os maiores missivistas no mundo da
nuel Bandeira, etc. literatura, pois, chega a 3 mil correspondências envia-
Quando se aventura na classificação dos gêneros, das por ele para Madame Stäel.
alguns autores não vêem na carta um grande gênero Coutinho (1987) classificam os gêneros propos-
como no dramático, narrativo ou épico, mas, algo tos por Walkey e Wilson, em que as cartas figuram
menor, fazendo parte da categoria didático, apistolar como um gênero literário ensaístico direto, dividin-
e oratória. Este é o caso da classificação de Fiúza do espaço com a crônica, o ensaio, oratória, apólogo,
(1954, p. 193). máxima, diálogo e memórias. Já Tavares (1991) apre-
O gênero epistolar, segundo Tavares (1991, p. 47) senta a classificação de Álvares Cardoso, vinculando
apresenta os seguintes elementos: as cartas como gênero epistolar, pertencente a um
a) Forma: prosa e excepcionalmente em verso; gênero especial.
b) Conteúdo: variável, e A epístola, nome mais clássico do que a carta,
c) Composição: expositiva. é a palavra que denomina os escritos remetidos pe-
A espécie universal do gênero epistolar seria a car- los apóstolos a alguém ou a uma comunidade. Este
ta, que deve ser espontânea e simples, pois se trata termo nomina a composição poética cujo destina-
de uma “conversação por escrito”. O assunto episto- tário era alguém do círculo de amizade escrita em
lográfico pode ser o mais variado, como o amoroso, linguagem do colóquio, cujos assuntos variavam em
comercial, institucional, etc. literários, filosóficos, políticos, morais, sentimentais,
Mencione-se também que uma obra pode ser amorosos etc.
cunhada em forma de carta, mas pertencer a outro Durante a Idade Média, o gênero carta foi esque-
gênero. Citemos os romances Werther de Goethe, e cido, mas na Renascença, nos séculos 15 e 16, há um
Lucíola, de José de Alencar, uma narração epistolar. ressurgimento. A carta, composição geralmente em
Além da presença marcante na Bíblia, lembramos prosa, mas não excluindo a possibilidade de ser escri-
alguns destaques da epistolografia universal de acordo ta em verso, é uma comunicação manuscrita, impres-
com Tavares (1991, p. 148): sa ou digitada, endereçada a uma ou várias pessoas.
• Na Alemanha: a correspondência de Goethe e Conforme Coutinho (1987, p.796), ela é “dirigida a
Schiller. alguém ausente, objetivando manter-se uma conversa
• Na Inglaterra: as cartas de Carlyle principalmente à distância, relatando fatos de interesse mútuo”. A es-
trocadas com Goethe. Também De Profundis, Os- pécie carta tem por características:
car Wilde. a) Situa-se no tempo e no espaço;
• Na Itália: Arentino com cartas endereçadas aos b) Revela o motivo e a circunstância que levou a
ser escrita;

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c) Apresenta um conteúdo variável (doutrinário, 5) Encorajamento/ordem para seguir os votos dos
amoroso, familiar, didático, crítico, comercial, po- remetentes: “Agora procurai celebrar os dias das
lítico, literário, reclamação, etc); Tendas do mês de Casleu” (1:9, 1:18-2:16),
d) Implica a existência de um remetente e de um 6) Conclusão devota: “Agora Deus [...]” (2:17-18).
destinatário explícito ou não;
A palavra carta aparece cerca de quarenta vezes na
e) Confidencial ou pública (constitui-se um crime de
Bíblia, ocupando tanto o Antigo quanto o Novo Testa-
violação abrir uma carta endereçada a outrem, mas
mento. Ela pode estar endereçada a um rei, Artaxerxes,
no passar do tempo poderá tornar-se pública);
informando-o sobre a ação dos judeus para a recons-
f) Caráter confidente;
trução da cidade de Jerusalém, ou ser uma correspon-
g) Caráter de cumplicidade. dência maliciosa, como a do rei Davi para um coman-
As cartas na Bíblia dante, cujo conteúdo era uma trama para facilitar ou
provocar a morte do próprio pombo-correio, o traído
Talvez pelo fato de as cartas na Bíblia estarem e inocente Urias.
incorporadas na distribuição dos livros, daí, divi- O ambiente no mundo da correspondência, con-
didas em capítulos e versículos, não percebamos forme Gabel & Wheeler (1993, p.195), apresentava-se
a particularidade destes escritos. No entanto, se desta forma:
deslocarmos o conteúdo para uma folha de papel,
Quem não lia nem escrevia podia contratar escribas.
colocarmos as datas e o local onde foram escritas, Como não havia serviço postal para levar a correspon-
estas cartas podem adquirir seu perfil inicial. dência privada, as cartas eram entregues aos amigos que
Era uma prática comum nos tempos bíblicos a viajavam ao local desejado ou a estranhos em quem se
atividade de escrever cartas, as quais circulavam por pudesse confiar, que recebiam instruções específicas so-
terra e mar. Uma grande parte delas era de cunho bre onde entregar a carta, já que não havia endereços.
governamental, outra comercial e pessoal – eram Nessas circunstâncias, a comunicação bem-sucedida re-
cidadãos solicitando bens, enviando instruções, co- queria sorte e certa dose de persistência.
mentando remessas, efetuando pagamento de con-
Distante da nossa realidade com papéis multicolo-
tas –; também era uma prática da filha escrever para
res ou mesmo a facilidade dos meios eletrônicos que
os pais; dos soldados, às esposas, e dos amigos, aos agilizam a troca de correspondência, nos tempos bíbli-
amigos. cos, ainda conforme Gabel & Wheeler (1993, p. 195)
No contexto judaico, as cartas eram elementos
característicos desta comunidade, pois, faziam-se as cartas eram escritas em quase todos os suportes (por
necessárias a fim de que cada um, da Diáspora, es- exemplo, pedaços de cerâmica quebrada); mas o ma-
terial-padrão era o papiro, que era escrito de um lado,
tivesse informado sobre o calendário anual de ati-
dobrado para formar um pacote oblongo, amarrado e
vidades. Supõe-se que Paulo atuava como condutor
preso com um selo de argila. Como o papiro sobrevive
destas cartas para Damasco. Em 2 Macabeus 1:1-9
indefinidamente num clima muito seco como o do Egi-
encontram-se duas cartas, cujo conteúdo evidencia to, muitas dessas cartas antigas, no todo ou em parte,
as autoridades de Jerusalém pressionando os judeus ainda existem.
residentes no Egito a adotarem uma nova festa da
Dedicação. Eis as partes constituídas destas cartas O padrão de cartas gregas exigia uma saudação
de acordo com Alter & Kermode (1997, p. 516). do tipo “de X para Y, saudações”, bem como, votos
de saúde para o destinatário; no corpo da missiva
1) Saudação: “Os irmãos, os judeus que estão
usavam-se várias expressões chavões e, finalmente,
em Jerusalém [...] mandam saudações aos ju- a carta era marcada no seu final com uma fórmula
deus que estão no Egito, paz benéfica” (2Mc. de despedida (dificilmente colocava-se a assinatura).
1:1; cf. v. 10); Estas cartas não eram necessariamente literárias, mas
2) Ação de graças: “Em todas as coisas seja muitos missivistas. Faziam uso da arte epistolar apli-
bendito o nosso Deus” (1:11-17); cando recursos de retórica.
3) Prece para o bem-estar dos destinatários
(com exortação velada): “Que Deus vos cumu- Paulo e as cartas
le de benefícios”; Inicialmente distinguiremos carta de epístola. Carta
4) Relato da situação (1:7-8, 11-16 com ação de é esfera íntima, enquanto a epístola é um gênero “arti-
graças); ficial”, escrito mais para publicação do que para corres-

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pondência, mas nas Sagradas Escrituras generalizam-se de Plínio (62 a.C – 113 d.C). Nesta, o jovem orador
em epístolas. As cartas paulinas são escritas no grego romano, quase na mesma época em que o apóstolo
koiné padrão. Elas são mais bem trabalhadas do que as escreveu a Filemom, intercede a favor de um escra-
outras e rompe com os modelos. Por exemplo, a sau- vo fugitivo que desejava voltar para o seu senhor,
dação paulina é charis hymin kai eiréné (graça e paz a vós), mas temia a ira do mesmo. Esta carta tem sido re-
expressão que une a idéia de graça com shalom, paz. O petidamente comparada com a de Paulo a Filemom.
modelo helênico usava chairein (saudação). A carta de Plínio é a vigésima primeira do nono do
No início das cartas, Paulo ressaltava seu papel seu livro.
como apóstolo. Ali, ele expressava ação de graça não Champlin (1986, p. 447) classifica de “epístolas
apenas pela saúde, mas pela salvação em Cristo. As car- da prisão” as três epístolas pastorais, Efésios, Filipen-
tas paulinas sugerem que ele estava apressado, supon- ses, Colossenses e Filemom, estas três últimas foram
do-se que o apóstolo ditava enquanto caminhava e seu escritas sob as mesmas circunstâncias – cárcere. Não
secretário escrevia. Certamente, o antigo Saulo deu um importando se foi em Roma, Cesaréia ou mesmo
novo perfil neste veículo de comunicação do mundo Éfeso. Elas foram escritas na mesma época, enviadas
helênico. O destinatário das cartas paulinas – a congre- às igrejas ou pessoas da mesma região da Ásia Menor.
gação – recebia a correspondência, lia-a em voz alta nas No caso da carta a Filemom, é o mais breve escrito de
reuniões e as guardava como objeto de valor. Obvia- Paulo preservado; é pessoal, bem como, trata de um
mente, Paulo não é o criador da espécie carta, mas nele assunto delicado. Seu conteúdo é ético e apresentado
este recurso concretizou-se no mundo bíblico. de forma indireta, ou seja, não-teológica. É considera-
da, ainda, a mais estética das cartas de Paulo, segundo
De acordo com Gabel & Wheeler (1993, p. 191)
Champlin (1986, p. 447).
as cartas no Novo Testamento estão classificadas em
Quanto à data, acredita-se que foi escrita apro-
quatro modalidades:
ximadamente em 54 d.C, na cidade de Éfeso. Caso
a) Cartas genuínas de Paulo: Romanos (I e II clás- Paulo a tenha escrito quando esteve preso em Roma,
sicas), 1 Coríntios (clássica), 2 Coríntios (clássica), então poderíamos situá-la entre 58 – 62 d.C.
Gálatas (clássica), Filipenses, 1 Tessalonicenses,
Epístola de Paulo a Filemon
Filemom;
b) Cartas supostamente escritas por Paulo, mas 1) Prefácio e saudação
cuja autenticidade é objeto de disputa: 2 Tessalo- 1.1) Identificação e situação dos remetentes
nicenses, Colossenses (supostamente não escrita • Paulo, prisioneiro de Cristo Jesus, e o irmão
por Paulo), Efésios (supostamente não escrita Timóteo,
1.2) Destinatários e status deles
por Paulo);
c) Cartas pastorais: 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito; • ao amado Filemom, também nosso colaborador,
d) Cartas católicas ou gerais: Tiago, 1 Pedro, 2 Pe- • e à irmã Áfia, e a Arquipo, nosso companheiro
dro, 1 João, 2 João, 3 João, Judas. de lutas, e à igreja que está em tua casa,
1.3) Saudação
Epístola de Paulo a Filemon – histórico • graça e paz a vós outros, da parte de Deus, nosso
Apresentaremos uma pequena carta, a mais bre- Pai, e do Senhor Jesus Cristo.
ve dentre as paulinas, que consiste em 335 palavras 2) Ação de graças
no grego, também chamada de ‘bilhete pessoal’ por • Dou graças ao meu Deus, lembrando-me, sem-
Martin (1991, p. 153) e estruturada na Bíblia em pre, de ti nas minhas orações,
apenas um capítulo. Sobre a sua autoria, poucos, • estando ciente do teu amor e da fé que tens para
se existem, de acordo com Barker & Kohlenber- com o Senhor Jesus e todos os santos,
ger (1994, p. 935) negam ser Paulo que a idealizou. 2.1) Objetivo
Nela, adotamos uma subdivisão de acordo com o • para que a comunhão da tua fé se torne eficiente
desenvolvimento de sua temática. No seu conte- no pleno conhecimento de todo bem que há em nós,
údo releva-se a questão de um escravo chamado para com Cristo.
Onésimo ter cometido algo injusto com o seu se- 2.2) Reconhecimento
nhor Filemom, homem cristão. • Pois, irmão, tive grande alegria e conforto no
Há uma outra carta, segundo Allen (1988, p. teu amor, porquanto o coração dos santos tem sido
452), cujo conteúdo assemelha-se a de Paulo: é a reanimado por teu intermédio.

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3. Paulo intercede em favor de Onésimo garei – para não te alegar que também tu me deves até
3.1) Revelação da autoridade a ti mesmo.
• Pois bem, ainda que eu sinta plena liberdade em 3.7) A esperança da deferência
Cristo para te ordenar o que convém, • Sim, irmão, que eu receba de ti, no Senhor, este
3.2) Revelação de sua humildade e situação benefício. Reanima-me o coração em Cristo.
• prefiro, todavia, solicitar em nome do amor, sen- 4. Comunicações pessoais
do o que sou, Paulo, o velho e, agora, até prisioneiro • Saudações e bênçãos
de Cristo Jesus; • Certo, como estou, da tua obediência, eu te escre-
3.3) Objetivo da carta vo, sabendo que farás mais do que estou pedindo.
• sim, solicito-te em favor de meu filho Onésimo, 4.1) Pedido extra de Paulo
que gerei entre algemas. • E, ao mesmo tempo, prepara-me também pousa-
3.4) Situação do ser objeto da solicitação da, pois espero que, por vossas orações, vos serei res-
• Ele, antes, te foi inútil; atualmente, porém, é útil, tituído.
a ti e a mim. 4.2) Componentes saudadores
3.5) Atitude e intenções de Paulo para com o ser do • Saúdam-te Epafras, prisioneiro comigo, em Cris-
objetivo da carta to Jesus,
• Eu to envio de volta em pessoa, quero dizer, o • Marcos, Aristarco, Demas e Lucas, meus coope-
meu próprio coração. radores.
• Eu queria conservá-lo comigo mesmo para, em 4.3) Súplica final
teu lugar, me servir nas algemas que carrego por causa • A graça do Senhor Jesus Cristo seja com o vosso
do evangelho; espírito
• nada, porém, quis fazer sem o teu consentimen-
Considerações finais
to, para que a tua bondade não venha a ser como que
por obrigação, mas de livre vontade. Um olhar classificatório descobrirá que esta carta
• Pois acredito que ele veio a ser afastado de ti tem- revela as características dos conteúdos das cartas que
porariamente, a fim de que o recebas para sempre, comumente escrevemos ou recebemos: há a marca da
• não como escravo; antes, muito acima de escravo, intimidade; manifesta-se a perspectiva da deferência
como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com do pedido; não se pode esconder da chamada à res-
maior razão, de ti, quer na carne, quer no Senhor. ponsabilidade por parte do remetente para com o des-
• Solicitação de Paulo pela compreensão do des- tinatário; o remetente faz questão de lembrar que ele
tinatário fez alguns favores ao destinatário; nela, requer-se que
• Se, portanto, me consideras companheiro, rece- o destinatário deve assumir um compromisso; assim
be-o, como se fosse a mim mesmo. como mencionamos os nomes de pessoas que com-
• E, se algum dano te fez ou se te deve alguma preendem o círculo de amizade ou familiares, na carta
coisa, lança tudo em minha conta. a João as pessoas são mencionadas. E, por fim, nela
3.7) Identificação de Paulo como remetente percebe-se a impressão de uma conversação que foi
• Eu, Paulo, de próprio punho, o escrevo: Eu pa- transferida para a escrita.

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