Kafka é único neste século. Dizem que, por detrás dele, havia a Cabala e Sören Kierkegaard. Tinha uma técnica narrativa objetiva (seus autores preferidos eram Kleist e Flaubert, grandes realistas), mas de caráter expressionista. Era leitor do dramaturgo Hebbel, que expressava o indivíduo saído do nexo universal em busca de emancipação. Articulava-se com um simbolismo de fundo religioso e filosófico, bordejando o alegórico. Mas criava uma atmosfera de angústia e pesadelo, que mais o aproximava do surrealismo. Insistiu em mostrar a inocuidade da tentativa humana de romper com a lei de Deus. Tinha baixo teor mimético em relação à realidade empírico- José Guilherme R. Ferreira
Praga vive kafkamania
histórica. Predominam em sua prosa as imagens míticas ou as oníricas, vizinhas do pesadelo, de um mundo enigmático. A exegese de Kafka hoje é imensa e incon- cludente. Sob a influência de Max Brod, amigo e Rosto do escritor de O castelo está estampado testamenteiro, que felizmente não obedeceu à em cada viela da capital da República Tcheca recomendação de queimar os originais que deixou, houve grande concentração sobre os temas religiosos de sua obra. A voga do existen- N a capital secreta da Europa (assim culturas distintas que moldaram não só a cialismo explorou Kafka sob todos os aspectos Praga era vista pelo surrealista André Breton) literatura (a Escola de Praga gerou expoentes do desespero humano. A frustração, na arte do há um Kafka em cada esquina obra de como Rainer Maria Rilke), mas a própria alma romancista, é um dado permanente. grafiteiros, que demarcaram as vielas tortuosas da cidade. Recuperar essa chama de singula- Depois veio a psicanálise. A relação e fantasmáticas da capital da República Tcheca ridade parece ser uma das formas de os tchecos edipiana ganhou força interpretativa da ficção com o rosto e os olhos penetrantes do autor de reencontrarem um passado fértil, nascido das kafkiana. Mas o pequeno barco da dúvida O processo. cinzas do Império infinita transportava a obra do escritor tcheco A ação desses Austro-Húngaro. por entre as ilhas do saber hermenêutico, sem jovens é emblemá- De outro lado, jamais atracar num cais duradouro. tica: aponta para Kafka e sua obra Segundo Günter Anders, o poder equivale, um estado de vigília funcionam como para Kafka, ao direito; o homem sem direito e, e permanente in- símbolo de resis- portanto, sem poder, é por isso mesmo culpado. quietação, como se tência e de alerta O conto Diante da lei diz tudo. Por mais que se fosse necessário fa- para os perigos da queira integrar o interminável labirinto da lei, o zer uma pequena falta de liberdade de suplicante fica de fora. Há uma vigilância eterna Revolução de Velu- expressão. Kafka te- que impede o seu acesso à norma. O homem é do todos os dias. ve seus escritos sis- um banido, um desterrado eterno (um judeu, Quem visita hoje a tematicamente ba- sob a ótica de Kafka). Não consegue ingressar cidade de Praga, Reprodução nidos durante os na lei dos homens. Inútil bater à porta. Daí o menos de dez anos após a retirada dos comunis- períodos de ocupação da Tchecoslováquia. pensamento de Kafka: Talvez haja só um tas, logo percebe por que Kafka teve seu gênio Primeiro, foram os nazistas, em 1939. Mais tarde, pecado capital: a impaciência. c tomado como símbolo da reabilitação cultural em 1948, foi a vez dos comunistas retirarem seus do país. livros das livrarias e bibliotecas. O escritor Fábio Lucas crítico literário e presidente da UBE (União Brasileira de Escritores), autor Franz Kafka (1883-1924), judeu tcheco que pequeno-burguês incomodava os soviéticos e de Vanguarda, história e ideologia da literatura (Ícone), Do barroco ao escrevia em alemão, é o maior representante do os membros do Partido Comunista com a moderno (Ática) e O caráter social da ficção do Brasil (Ática). symbiotic phenomenon essa fusão de três superexposição dos absurdos da burocracia. 22 JULHO 1997 Temiam que suas histórias, irreais, estimu- central. Já na lista de curiosidades está a casinha lassem a contestação do stalinismo. (Kafka teria acanhada (servia de abrigo à guarda real no século rebatido, premonitoriamente: Não se trata de XVIII), na rua dos Alquimistas, circunscrita às expressionismo. É a vida toda nua. Somos muralhas do Castelo Hradschin. Nela o escritor arrastados para a verdade como os criminosos morou por um ano para escrever a série de curtas para o cadafalso.) narrativas de O médico rural. É por razões como estas que a gênese da Na rotina de Kafka sempre estiveram obra de Kafka passou a ser fundamental para justapostas as escolas alemãs, que freqüentou na os tchecos. Eles agora têm na Sociedade Franz infância e adolescência, e as ruas do gueto de seus Kafka, criada em maio de 1990, um centro avós. Nas imediações de uma das mais antigas aglutinador de seu legado. sinagogas da Europa encontra-se o Velho Enfrentar um roteiro kafkaesco, contudo, Cemitério Judeu, com suas centenas de lápides exige hoje em dia alguma dose de paciência. É empilhadas, um cenário bom, por exemplo, abstrair todos os excessos da de contemplação para kafkamania, que transformou o escritor em Kafka, uma maneira motivo de canecas e em estampa de camisetas. atávica de busca da O ideal seria começar caminhando pelo espiritualidade perdida, centro de Praga, sem muito rumo, como se como analisou Adler. estivesse na pele de um de seus personagens. O cemitério, a sina- Por que não Joseph K.? É bom lembrar que, goga e todas as ruazinhas na alta temporada, o teatro Franz Kafka do Bairro Judeu mere- coloca em cartaz uma série de peças a partir cem uma visita. As es- da vida e da obra do mais cult dos escritores colas também podem ser da Escola de Praga. facilmente incluídas no Kafka sempre nutriu uma relação de amor e roteiro. Kafka cursou a ódio com sua cidade natal, a querida mãe com escola secundária no garras que não deixava ninguém dela escapar. Palácio Kinsky, no Cheia de emaranhados, com uma organização coração de Praga. (Nos espacial que beira o surrealismo, é esta a Praga salões térreos do mesmo revelada cruamente nos seus romances. prédio, seu pai, Her- Um giro pelos arredores da Praça da Cidade mann Kafka, mantinha Velha (Staromestske Namesti) é capaz de mostrar próspero comércio.) De- como os limites entre o público e o privado são pois, completou os es- frágeis e sutis na antiga capital da Boêmia. Para tudos de direito na cruzar de uma rua a outra, muitas vezes é Carolinum a mais necessário usar pequenas passagens que invadem, velha universidade da sem qualquer cerimônia, os limites de uma Europa Central, fun- residência. Dessa geografia nasceu O processo, dada em 1348 pelo rei onde a Lei penetra em toda a parte da cidade e Carlos IV. emerge, de repente, em áticos misteriosos, O ciclo de visitas escreveu Jeremy Adler no livreto Kafka e Praga. pode ser completado Adler conta que até mesmo os apartamentos nos prédios das duas mais antigos da cidade são peculiares: raramente companhias de seguro divididos por corredores, quartos ligados a para as quais trabalhou, tão desesperado Acima, rua Týn, na Cidade Velha de Praga. quartos, como na casa de Gregor Samsa, de A quanto um rato aprisionado. Ou ainda às No alto, detalhe de janela de uma das casas de metamorfose. O próprio Kafka morou numa casa, margens do rio Vltava, dominado pelo impo- Kafka, com vista para dentro de igreja. na rua Celetná, que tinha um quarto com vista nente castelo que inspirou Kafka. Na página oposta, no alto, rua Kozná, na Cidade para o interior de uma igreja. Já para aguçar o interesse por uma boa cerveja Velha; embaixo, grafite em muro de Praga. Kafka viveu em oito casas. A mais visitada tcheca, a melhor opção talvez seja a região do Café delas, a Casa da Torre, onde o escritor nasceu, Savoy, onde Kafka batia papo com os amigos e abriga uma exposição permanente, que reúne falava de literatura: Tudo o que não é literatura fotos, cartas e fac-símiles de algumas de suas me aborrece. c obras. A U Minuty, onde passou a infância, é José Guilherme R. Ferreira uma das mais bonitas e está localizada na praça jornalista, editor-assistente de Geral no Jornal da Tarde