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T u r i s m o L i t e r á r i o

Fotos Jan Parik/arquivo pessoal de Fábio Lucas


Kafka é único neste século. Dizem que, por
detrás dele, havia a Cabala e Sören
Kierkegaard. Tinha uma técnica narrativa
objetiva (seus autores preferidos eram Kleist e
Flaubert, grandes realistas), mas de caráter
expressionista. Era leitor do dramaturgo
Hebbel, que expressava o indivíduo saído do
“nexo universal” em busca de emancipação.
Articulava-se com um simbolismo de fundo
religioso e filosófico, bordejando o alegórico.
Mas criava uma atmosfera de angústia e pesadelo,
que mais o aproximava do surrealismo. Insistiu
em mostrar a inocuidade da tentativa humana de
romper com a lei de Deus. Tinha baixo teor
mimético em relação à realidade empírico- José Guilherme R. Ferreira

Praga vive kafkamania


histórica. Predominam em sua prosa as imagens
míticas ou as oníricas, vizinhas do pesadelo, de
um mundo enigmático.
A exegese de Kafka hoje é imensa e incon-
cludente. Sob a influência de Max Brod, amigo e Rosto do escritor de O castelo está estampado
testamenteiro, que felizmente não obedeceu à em cada viela da capital da República Tcheca
recomendação de queimar os originais que
deixou, houve grande concentração sobre os
temas religiosos de sua obra. A voga do existen- N a “capital secreta” da Europa (assim culturas distintas que moldaram não só a
cialismo explorou Kafka sob todos os aspectos Praga era vista pelo surrealista André Breton) literatura (a Escola de Praga gerou expoentes
do desespero humano. A frustração, na arte do há um Kafka em cada esquina — obra de como Rainer Maria Rilke), mas a própria alma
romancista, é um dado permanente. grafiteiros, que demarcaram as vielas tortuosas da cidade. Recuperar essa chama de singula-
Depois veio a psicanálise. A relação e fantasmáticas da capital da República Tcheca ridade parece ser uma das formas de os tchecos
edipiana ganhou força interpretativa da ficção com o rosto e os olhos penetrantes do autor de reencontrarem um passado fértil, nascido das
kafkiana. Mas o pequeno barco da dúvida O processo. cinzas do Império
infinita transportava a obra do escritor tcheco A ação desses Austro-Húngaro.
por entre as ilhas do saber hermenêutico, sem jovens é emblemá- De outro lado,
jamais atracar num cais duradouro. tica: aponta para Kafka e sua obra
Segundo Günter Anders, o poder equivale, um estado de vigília funcionam como
para Kafka, ao direito; o homem sem direito e, e permanente in- símbolo de resis-
portanto, sem poder, é por isso mesmo culpado. quietação, como se tência e de alerta
O conto Diante da lei diz tudo. Por mais que se fosse necessário fa- para os perigos da
queira integrar o interminável labirinto da lei, o zer uma pequena falta de liberdade de
suplicante fica de fora. Há uma vigilância eterna Revolução de Velu- expressão. Kafka te-
que impede o seu acesso à norma. O homem é do todos os dias. ve seus escritos sis-
um banido, um desterrado eterno (um judeu, Quem visita hoje a tematicamente ba-
sob a ótica de Kafka). Não consegue ingressar cidade de Praga, Reprodução nidos durante os
na lei dos homens. Inútil bater à porta. Daí o menos de dez anos após a retirada dos comunis- períodos de ocupação da Tchecoslováquia.
pensamento de Kafka: “Talvez haja só um tas, logo percebe por que Kafka teve seu gênio Primeiro, foram os nazistas, em 1939. Mais tarde,
pecado capital: a impaciência.” c tomado como símbolo da reabilitação cultural em 1948, foi a vez dos comunistas retirarem seus
do país. livros das livrarias e bibliotecas. O escritor
Fábio Lucas
crítico literário e presidente da UBE (União Brasileira de Escritores), autor
Franz Kafka (1883-1924), judeu tcheco que “pequeno-burguês” incomodava os soviéticos e
de Vanguarda, história e ideologia da literatura (Ícone), Do barroco ao escrevia em alemão, é o maior representante do os membros do Partido Comunista com a
moderno (Ática) e O caráter social da ficção do Brasil (Ática). symbiotic phenomenon — essa fusão de três superexposição dos absurdos da burocracia.
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JULHO • 1997
Temiam que suas histórias, “irreais”, estimu- central. Já na lista de curiosidades está a casinha
lassem a contestação do stalinismo. (Kafka teria acanhada (servia de abrigo à guarda real no século
rebatido, premonitoriamente: “Não se trata de XVIII), na rua dos Alquimistas, circunscrita às
expressionismo. É a vida toda nua. Somos muralhas do Castelo Hradschin. Nela o escritor
arrastados para a verdade como os criminosos morou por um ano para escrever a série de curtas
para o cadafalso.”) narrativas de O médico rural.
É por razões como estas que a gênese da Na rotina de Kafka sempre estiveram
obra de Kafka passou a ser fundamental para justapostas as escolas alemãs, que freqüentou na
os tchecos. Eles agora têm na Sociedade Franz infância e adolescência, e as ruas do gueto de seus
Kafka, criada em maio de 1990, um centro avós. Nas imediações de uma das mais antigas
aglutinador de seu legado. sinagogas da Europa encontra-se o Velho
Enfrentar um roteiro kafkaesco, contudo, Cemitério Judeu, com suas centenas de lápides
exige hoje em dia alguma dose de paciência. É empilhadas, um cenário
bom, por exemplo, abstrair todos os excessos da de contemplação para
kafkamania, que transformou o escritor em Kafka, uma maneira
motivo de canecas e em estampa de camisetas. atávica de busca da
O ideal seria começar caminhando pelo espiritualidade perdida,
centro de Praga, sem muito rumo, como se como analisou Adler.
estivesse na pele de um de seus personagens. O cemitério, a sina-
Por que não Joseph K.? É bom lembrar que, goga e todas as ruazinhas
na alta temporada, o teatro Franz Kafka do Bairro Judeu mere-
coloca em cartaz uma série de peças a partir cem uma visita. As es-
da vida e da obra do mais cult dos escritores colas também podem ser
da Escola de Praga. facilmente incluídas no
Kafka sempre nutriu uma relação de amor e roteiro. Kafka cursou a
ódio com sua cidade natal, a “querida mãe com escola secundária no
garras” que não deixava ninguém dela escapar. Palácio Kinsky, no
Cheia de emaranhados, com uma organização coração de Praga. (Nos
espacial que beira o surrealismo, é esta a Praga salões térreos do mesmo
revelada cruamente nos seus romances. prédio, seu pai, Her-
Um giro pelos arredores da Praça da Cidade mann Kafka, mantinha
Velha (Staromestske Namesti) é capaz de mostrar próspero comércio.) De-
como os limites entre o público e o privado são pois, completou os es-
frágeis e sutis na antiga capital da Boêmia. Para tudos de direito na
cruzar de uma rua a outra, muitas vezes é Carolinum — a mais
necessário usar pequenas passagens que invadem, velha universidade da
sem qualquer cerimônia, os limites de uma Europa Central, fun-
residência. “Dessa geografia nasceu O processo, dada em 1348 pelo rei
onde a Lei penetra em toda a parte da cidade e Carlos IV.
emerge, de repente, em áticos misteriosos”, O ciclo de visitas
escreveu Jeremy Adler no livreto Kafka e Praga. pode ser completado
Adler conta que até mesmo os apartamentos nos prédios das duas
mais antigos da cidade são peculiares: raramente companhias de seguro
divididos por corredores, quartos ligados a para as quais trabalhou, “tão desesperado Acima, rua Týn, na Cidade Velha de Praga.
quartos, como na casa de Gregor Samsa, de A quanto um rato aprisionado”. Ou ainda às No alto, detalhe de janela de uma das casas de
metamorfose. O próprio Kafka morou numa casa, margens do rio Vltava, dominado pelo impo- Kafka, com vista para dentro de igreja.
na rua Celetná, que tinha um quarto com vista nente castelo que inspirou Kafka. Na página oposta, no alto, rua Kozná, na Cidade
para o interior de uma igreja. Já para aguçar o interesse por uma boa cerveja Velha; embaixo, grafite em muro de Praga.
Kafka viveu em oito casas. A mais visitada tcheca, a melhor opção talvez seja a região do Café
delas, a “Casa da Torre”, onde o escritor nasceu, Savoy, onde Kafka batia papo com os amigos e
abriga uma exposição permanente, que reúne falava de literatura: “Tudo o que não é literatura
fotos, cartas e fac-símiles de algumas de suas me aborrece.” c
obras. A “U Minuty”, onde passou a infância, é
José Guilherme R. Ferreira
uma das mais bonitas e está localizada na praça jornalista, editor-assistente de Geral no Jornal da Tarde

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CULT

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