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À esquerda, rua Stupartská e igreja Týn, na Cidade

Velha de Praga. Na página oposta, a rua Týn (foto


menor) e vista do Castelo de Praga e da Ponte Carlos,
sobre o rio Vltava.

Kaf ka
Ensaio
Jan Parik/arquivo pessoal de Fábio Lucas

O crítico Fábio Lucas relembra


as primeiras leituras brasileiras
do autor de O processo

Será difícil determinar quando Kafka interior da palavra poética. E li sua novela Ka, Carpeaux. Briga feroz. Um dia, ao dar balanço
pousou na minha vida. Imagino que entre 1949 e cuja personagem lembrava o nome de Kafka: do ano literário para o Boletim bibliográfico
1950, ocasião em que já freqüentava a faculdade. Ka! Na época, solicitei a Maria Lúcia Lepecki brasileiro, como de hábito eu fazia, incluí um
Integrei a minha primeira roda de amigos e traduzisse do francês a preciosa obra que título de Carpeaux entre os melhores no gênero
falávamos de livros e autores, dia e noite. conseguimos saísse no Suplemento Literário do “ensaio”. Ele considerou admirável o meu gesto,
Caiu do ar, um certo dia, uma informação, Minas Gerais. Foi quando fiz amizade com o pois achava que eu tinha comprado, com a
como um pólen dentro da alma: a obra de professor e filólogo tcheco Zdenek Hampejs. Na polêmica, uma inimizade eterna e cega. E passou
Murilo Rubião se parece com a de Kafka. ocasião, ele me brindou com uma série de a ser meu amigo. Toda vez que tirava folga no
Em 1951, ao conhecer pessoalmente o autor fotografias de Kafka e família. Mais tarde, Correio da Manhã, onde trabalhava, tinha um
de O ex-mágico, então chefe do gabinete do ofereceu-me postais sobre a “Praga de Kafka”, único passeio: passar alguns dias em Ouro
governador Juscelino Kubitschek, ouvi dele a em que se vislumbravam a vida e a obra do Preto, sozinho, na pousada do Chico-Rei. E
confissão de que escrevera sua obra inaugural escritor. Tivemos intensa correspondência, até invariavelmente procurava uma única pessoa em
sem ter conhecido, ainda, o autor de O processo. que veio o golpe de 64, que me desapropriou de Belo Horizonte: eu.
No fim da década de 50, preocupavam-nos uma de suas cartas e a expôs em painel público Carpeaux conheceu Kafka pessoalmente.
as vanguardas. Escrevi para uma revista carioca como prova da subversão no Brasil. Falou da sua voz rouca, conseqüência já da
um artigo sobre Khlebnikov, “Dois círculos de Por causa da revista Tendência, que recla- tuberculose na laringe. E foi, segundo depõe em
estrelas cadentes”. O poeta russo reclamava o mava uma vanguarda que fosse nacional e artigo, o primeiro a dizer de Kafka no Brasil.
entrelaçamento do som puro com a razão no socialista, entrei em polêmica com Otto Maria Tinha uma história rocambolesca acerca do
20
JULHO • 1997
Jan Parik/arquivo pessoal de Fábio Lucas

Josef Ehm/arquivo pessoal de Fábio Lucas


Atravessando o rio, o Vltava imortalizado pelo poema sinfônico
de Smetana, levantei, na ponte, os olhos e vi lá em cima, na
colina, o enorme Hradschin, o antigo Palácio Real, muito perto
e no entanto parecendo inacessível nas alturas; e reconheci o
Castelo de Kafka. Subi. Entrei, ao lado do castelo, na catedral
gótica de São Vito, escura e vazia; e reconheci a igreja na qual o
condenado, em O processo, ouve a voz da Lei. Enfim, eu tinha
encontrado a realidade atrás daquele sonho fantástico.
Otto Maria Carpeaux
Meus encontros com Kafka

volume de O processo que trouxe consigo ao a data, se limitaram a reproduzir os artigos de romancista em todo o mundo. Há espaço para a
Brasil, uma das raridades existentes da primeira Carpeaux, ignorando o fato de termos aqui a Argentina. Quanto ao Brasil, nada, nem uma
edição do autor, pois o editor da Die Brücke (A raridade das raridades em termos de Kafka. linha sequer. É nesse vácuo que ele trabalha,
Ponte) falira com a publicação da obra recomen- Recentemente, travei conhecimento com um deseja cobrir essa falta. Estuda Murilo Rubião e
dada por Max Brod. especialista no autor de O castelo e em Murilo outros autores brasileiros que possam ter
Falecido Otto Maria Carpeaux, a viúva, D. Rubião: Alfred von Brunn. Ele me havia pedido parentesco com o grande escritor tcheco. Tcheco?
Helene, encarregou-me de achar uma instituição que obtivesse de Fernando Sabino o trecho de Carpeaux diz: “Franz Kafka não foi tcheco,
que pudesse receber a sua biblioteca. Acabei me uma carta que Murilo Rubião lhe enviou da porque escreveu em alemão. Não foi alemão,
fixando na Biblioteca Mário de Andrade. Espanha, falando de sua leitura de Kafka. porque se considera judeu. Não foi judeu, porque
Infelizmente, a diretora da Biblioteca não Depois veio a São Paulo, quando o introduzi não tinha a fé dos seus antepassados nem o
preservou o acervo e o dispersou gloriosamente a Carpeaux e à primeira edição de Der Prozess. sentimento nacional dos seus contemporâneos.”
na classificação universal. Somente ficou, Hoje ele pensa em motivar uma organização Kafka no Brasil? A onda kafkiana chegou a
identificável, o volume Der prozess, encami- italiana no sentido de realizar uma edição fac- ser tão forte em certa época que Carlos
nhado à seção de Obras Raras. similar daquela obra, com base no original da Drummond de Andrade chegou a ironizar:
Assim, São Paulo abriga o exemplar raríssimo Biblioteca Mário de Andrade. “Franz Kafka, escritor tcheco, imitador de certos
da obra de Kafka. Curiosamente, quando se A idéia de Alfred von Brunn é cobrir o vazio escritores brasileiros.” E Graciliano Ramos
comemorou o centenário do escritor, em 1983, que existe na principal bibliografia de Kafka na denominava de “literatura espírita” a toda aquela,
os jornais paulistas e do resto do país, para celebrar Alemanha, em que se registra a repercussão do no Brasil, inspirada no romancista tcheco.
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CULT

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