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LUZ SOBRE
A IDA DE MÉDIA
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA
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ÍNDICE
Pág.
Intro d u çã o . .............................................................................................................................................. 9
M a s , e m p r im e ir o lu g a r e p a r a a lé m d o m a is , h o u v e c o m o p o n to
d e p a rtid a p a r a e sta o b ra , o c o n s e lh o e a o p im a o d o m e u ir m ã o
G e o r g e s (S e tu d o o q u e n o s c o n ta s s o b r e a I d a d e M é d ia e e x a cto ,
e s c r e v e - o - n in g u é m o s a b e ), e, p o r c o n s e q u ê n c ia , to d a s a s o u tr a s
m in h a s o b r a s te r ã o s id o in s p ir a d a s , g u ia d a s , r e v is ta s p o s ta s e m p r a tic a
p o r a q u e le q u e, a te n to à o b r a d o s o u tr o s a p o n to d e n e g lig e n c ia r p o r
is s o a s u a p r ó p r ia o b ra , c o n h e c e h o je a l u z p a r a a lé m d e to d a a lu z.
2 d e F e v e r e ir o d e 1981.
[...] esses te m p o s a q uem ch a m a m obscuros.
(M iguel d e U N A M U N O )
CAPITULO I
A ORGANIZAÇÃO SOCIAL
H éritage n e p e u t m a u vo ir
M a is m eubles est chose volage '
(7 ) .S a b e m o s
que d isp o siç õ es re c e n te s v ie ra m fe liz m e n te m o d ific ar
o re d im e das sucessões.
(8) Bens fu n d iário s p r o p r i e d a d e s rú s tic a s , lig ad a s à te rra , à a g r i
c u ltu ra B ase da e c o n o m i a m e d i e v a l . (N. do R .)
RÉ G IE PERNO
22
Ki M u i t o c a r a c t e r í s t i c a a e s t e n í v e l é a e v o l u ç ã o do d i r e i t o de p r o
p r i e d a d e , q u e se t o r n a r a d a v e z m a i s a b s o l u t o e i n d i v i d u a l . O s ú l t i m o s
t r a ç o s de p r o p r i e d a d e c o l e c t i v a d e s a p a r e c e r a m no s é c u lo XIX c o m a
a b o l i ç ã o d os d i r e i t o s c o m u n a i s e de t e r r a s b a l d i a s .
26 RÉ G IE PERNO
O VÍNCULO FEUDAL
(3) Ofício.
(4) A qu eles que se o cu p am da alim e n t aç ão , da v id a m a te r ia l (os
cam p o n e ses ). P o e m a de Carité, de R eclu s de Molliens.
(5) A espada disse: é m e u dever/M a n ter os clérigos da Santa Ig r e ja /
e aqu eles p a ra quem os a lim en to s sã o obtidos.
L UZ SO B R E A ID A D E M EDIA 33
Cà e t là va, so u ve n t se tourne,
N e repose n i n e séjorne:
C hâteau abord, château aourne,
Souvent haitié, p lu s so u ve n t m ourne.
Cà e t là va, p a s n e repose
Que sa m arche n e so ít d é c lo s e 6.
A VIDA RURAL
dos trabalhos dos cam pos, desde a lavragem até à colheita, sem ser
p erturbado, é considerado o único proprietário dessa te r r a .2
Isto dá ideia do núm ero infinito de m odalidades que podem os
e n c o n tra r8. H óspedes, colonos, lhes, servos são term o s que designam
condições pessoais diferentes. E a condição das terras apresenta um a
variedade ainda m a io r4: censo, renda, cham part, fazenda, pro p rie
dade en bordelage, en m arche, en queuaise, à complan, en collonge;
conform e as épocas e as regiões, encontram os um a infinidade de
acepções diferentes na posse da terra com um único ponto comum:
é que, salvo o caso especial do alódio livre, há sem pre vários p ro
prietários, ou pelo m enos vários, a ter direito sobre um mesmo
dom ínio. Tudo depende do costum e, e o costum e adapta-se a todas
as variedades de terrenos, de clim as e de tradições — o que de resto
é lógico, já que não se poderia exigir daqueles que vivem num solo
po bre as obrigações que podem ser im postas, por exem plo, aos cam
poneses da Beócia ou da Touraine. De facto, eruditos e historiadores
tentam ainda analisar um a das m atérias m ais com plexas que foi
oferecida à sua sagacidade: há abundância e diversidade de costum es;
há em cada um a delas um a infinidade de diferentes condições, desde
a do arroteador, que se instala num a terra nova e ao qual se pedirá
apenas um a fraca p arte das colheitas, até ao cultivador estabelecido
num a terra em plena produção e sujeito aos censos e rendas anuais;
há os erros sem pre possíveis provenientes das confusões de term os,
já que estes cobrem p o r vezes realidades com pletam ente diferentes
conform e as regiões e as épocas; há finalm ente o facto de a sociedade
m edieval estar em p erpétua evolução, e aquilo que é verdade no
século X II já não o é no século XIV.
O que se pode todavia saber com segurança, é que houve na
Idade M édia, p ara lá da nobreza, um conjunto de hom ens livres
que prestavam aos seus senhores um ju ram en to m ais ou m enos sem e
lhante ao dos vassalos nobres e um conjunto não m enos grande de
indivíduos de condição um pouco im precisa entre a liberdade e a
o s trab alh o s dos cam pos com o o m ais corrente tem a de inspiração.
Que hino à glória do cam ponês valerá algum a vez as m iniaturas
das Três rich es h eu res du D u c de B e rry ou o L iv re des p ro u jfic tz
cham pestres, ilum inado pelo bastardo A ntoine de Bourgogne, ou
ainda os pequenos quadros dos m eses na fachada de N otre-D am e e
em tantos outros edifícios? E, notem o-lo, em to d as estas obras de
arte, executadas pela m ultidão ou pelo am ador nobre, o cam ponês
aparece na sua vida autêntica: rem ovendo o solo, m anejando a
enxada, p o dando a vinha, m atando o porco. H av erá um a o u tra época,
um a só, que possa apresentar tantos quadros exactos, vivos, realistas,
da vida rural?
Que individualm ente determ inados nobres ou determ inados b u r
gueses tenham m anifestado desdém pelos cam poneses, é possível e
m esm o certo: tal não existiu em todas as épocas? M as a m en
talidade geral, contando com hábitos sarcásticos da época, tem m uito
nitidam ente consciência da igualdade fundiária dos hom ens no meio
das desigualdades de condição.
A VIDA URBANA
do século x v .
Todos os m em bros de um m esm o ofício fazem obrigatoriam ente
parte da corporação, m as nem todos, bem entendido, desem penham
aí o m esm o papel: a hierarquia vai dos aprendizes aos m estres-jurados,
que form am o concelho superior do ofício. H abitualm ente distinguim os
aí três graus: aprendiz, com panheiro ou servente de ofício e m estre;
m as isto não pertence ao período m edieval, durante o qual, até por
m eados do século x iv , se pode, na m aior p arte dos ofícios, passar
a m estre logo que term inada a aprendizagem . Os serventes de ofício
só se to rn arão num erosos no século XVII, onde um a oligarquia de
artesãos ricos procura cada vez m ais reservar-se o acesso à m estria,
o que esboça a form ação de um proletariado industrial. M as, durante
to d a a Idade M édia, as possibilidades à p artid a são exactam ente as
m esm as p ara todos, e todo o aprendiz, a m enos que seja dem asiado
desajeitado ou preguiçoso, acaba por passar a mestre.
O aprendiz está ligado ao m estre p o r um contrato de ap ren d i
zagem — sem pre esse laço pessoal caro à Idade M é d ia — que com
p o rta obrigações p ara as duas partes; p ara o m estre, a de form ar
o aluno no ofício, de lhe assegurar a casa e o sustento, sendo p ro p o r
cionado o pagam ento pelos pais das despesas de aprendizagem ; p ara
o aprendiz, a obediência ao m estre e a aplicação ao trabalho. E n co n
tram o s, transposta p ara o artesanato, a dupla noção de «fidelidade-
-protecção» que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro. M as com o,
aq u i, um a das partes do contrato é um a criança de doze a catorze
anos, são em pregues todos os cuidados p ara reforçar a protecção
de que deve gozar, e enquanto se m anifesta toda a indulgência p ara
a& faltas, as leviandades, m esm o até as vadiagens do aprendiz, os
deveres do m estre são severam ente precisados: não pode receber senão
um aprendiz de cada vez, p ara que o ensino seja frutuoso e p ara
que não possa explorar os alunos, descarregando sobre eles um a
p arte do trab alh o ; não pode encarregar-se deste aprendiz senão depois
de ter exercido a m estria durante um ano, pelo m enos, p ara que
p o s a dar-se conta das suas capacidades técnicas e m orais. «Ninguém
deve receber um aprendiz se não for tão sábio e tão rico que possa
ensiná-lo e governá-lo e m antê-lo [...] e isto deve ser sabido e feito
pelos dois m em bros do conselho que defendem o ofício», dizem os
regulam entos- Eles fixam expressam ente aquilo que o m estre deve
despender diariam ente p ara a alim entação e a m anutenção do aluno;
finalm ente, os m estres estão subm etidos a um direito de visita detido
pelos ju rad o s da corporação, que vêm ao dom icílio exam inar a form a
com o o aprendiz é alim entado, iniciado no ofício e tratado de m a
neira geral. O m estre tem p ara com ele os deveres e os encargos
de um pai e deve entre outras coisas velar pela sua conduta e pelo
seu com portam ento m oral; em contrapartida, o aprendiz deve-lhe
respeito e obediência, m as vai-se ao ponto de favorecer p o r parte
deste um a certa independência: no caso de um aprendiz sair de casa
do m estre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante
todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo se ele voltar — isto para
que todas as garantias estejam do lado m ais fraco, não do mais forte.
Para p assar a m estre, é preciso ter term inado o tem po de apren
dizagem; este tem po varia conform e os ofícios, com o é norm al, e
dura em geral de três a cinco anos; é provável que então o futuro
m e Ire devesse fazer prova da sua habilidade face aos ju rad o s da
corporação, o que está na origem da obra-prim a, cujas condições irão
com plicar-se no decorrer dos séculos; além disso, deve pagar um a
taxa, aluis m ínim a (de 3 a 5 soldos em geral) — a sua cotização
56 RÉ G IE PERNOUD
A REALEZA
L a b eu r de clerc e st de p rie r
E t ju s tic e de chevalier;
P ain le u r trouvent le s labouriers.
C il paist, cil p rie e t cil défend.
A u champ, à la ville, au m oustíer,
S è n tr ' a id en t de le u r m é tier
Ces troís p a r b ei ordenem ent1.
L es m eilleurs jo n g le u r s so n t en Gascogne
L es p lu s courtoís so n t en P rovence
L es p lu s apperís h o m m es en F rance
L es m eilleu rs archers en A njou
L es p lu s «enquérants» en N orm andie
L es m eilleu rs m a ngeurs de ra ves so n t en A uvergne
L es p lu s «rogneux» en Lim ousin, e tc , e tc .3
0 «bom rei» insiste ele próprio, aliás m uitas vezes, neste ponto
nos seus E nsinam entos ao seu filho: «Executa a justiça e a rectidão
e sê leal e inflexível p ara os teus súbditos, sem te virares p ara a
esquerda ou p ara a direita, m as sempre a direito; e apoia a querela
do p o b re até que a verdade seja declarada.» Joinville conta em diversas
ocasiões como ele punha estes princípios em prática. A té aos confins
do reino faz-se sentir a justiça real: « [...] e no R eno encontrám os
um castelo a que cham am R oche de Glin, que o rei tinha m andado
abater porque Roger, o senhor do castelo, era tido como defraudador
dos peregrinos e dos m ercadores.» Foi de direito que se popularizou
a im agem fam iliar do carvalho de Vincennes, debaixo do qual fazia
justiça. Os castigos que cabiam aos culpados podiam ir até à confis
cação dos seus bens: é um a noção bastante difícil de com preender nos
nossos dias, em que o dinheiro pago p o r um a p ro p ried ad e nos dá
plenos poderes sobre ela, que não nos pode ser tirada senão por falta
de pagam ento: p ara regular dívidas p ara com o fisco ou p ara com
particulares. Isto passava-se de igual m odo na R om a antiga- N a
Idade M édia, o dom ínio é inalienável: um senhor, m esm o crivado de
dívidas, conservá-lo-á durante a sua vida, m as, em contrapartida,
corre perm anentem ente o risco de vê-lo ser confiscado se se m ostrar
indigno do seu cargo ou se infringir o seu juram ento. Todo o poder
im plica então um a responsabilidade. O próprio rei não está ao abrigo
desta regra. H enri de Gand, que define os seus poderes, reconhece
aos súbditos o direito de o depor se lhes der um a ordem contrária
à sua consciência; o pap a pode desligá-los do seu ju ram en to de fide
lidade, e não deixa de usar esta faculdade quando um rei com ete
algum a exacção, m esm o na vida privada; foi o que sucedeu quando
a infeliz rainha Ingeburge, abandonada por F ilipe A ugusto, dirigiu
da prisão de E tam pes o seu apelo a R om a. O princípio fundam ental
é que, segundo a doutrina de São Tom ás: «O povo não é feito p ara
o príncipe, m as o príncipe p ara o povo.»
Tem -se de resto, nessa época, um a ideia m uito elevada dos
deveres de um soberano. E ustache D escham ps, que foi o cantor e o
espelho do seu tem po, enum era-os deste m odo:
L e n i d e p u n ir , a u x b o n s n o n fa ir e e n n u i
E t a u x m a u v a is r e n d r e d r o it j u g e m e n t
S i q u o n v o ie to u te b o n té e n l u i . . . e
*
p artisse?' 'Se D eus m e ajuda, senhor, disse eu, sim.' E ele disse-me:
'Se eu ficar, fica tam b ém ?' E eu disse-lhe que sim [...] 'Esteja
tranquilo, porque lie tenho m uita am izade p o r m e ter louvado'.»
E sta bonom ia, esta sim plicidade de hábitos, são m uilo carac
terísticas da época. E nquanto o im perador e a m aior p arte dos grandes
vassalos se com prazem em m anifestar o seu fausto, a linhagem cape-
tiana faz-se notar pela frugalidade do seu m odo de vida. Os reis vão
e vêm no meio do povo. Luís VII adorm ece na orla de um a floresta,
e quando os familiares o despertam , faz-lhes observar que pode bem
dorm ir assim, sozinho e sem arm as, já que ninguém lhe quer mal. Filipe
A ugusto, algum as horas antes de Bouvines, senta-se ao pé de um a
árvore, e recupera as forças com um pouco de pão m olhado no vinho.
S. L u ís deixa-se insullar na rua por um a velha m ulher e proíbe os
seus com panheiros que a repreendam . São reservados p ara as festas
e recepções solenes gibões de veludo e capas de arm inho — e ainda
assim é m uitas vezes usado o cilício sob o arm inho. É um m otivo cor
rente de gracejo, para os estudantes alemães habituados às magni-
ficências im periais, a sim plicidade do equipam ento real. E sta sim
plicidade não foi im itada pelos Valois, e m enos ainda pelos seus
sucessores do R enascim ento, m as se com isso ganharam um a corte
brilhante, perderam esse contacto fam iliar com o povo, elem ento
precioso do prestígio de um príncipe.
C A PIT U L O VI
AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
o duplo poder, espiritual e tem poral, cuja união form ará a base da
cristandade medieval.
É preciso ter em conta, de um a m aneira m ais geral, a influência
do dogm a católico que ensina que todos os filhos da Igreja são
m em bros de um mesm o corpo, como o lem bram os versos de Rutebeuf:
orações diante do altar sobre o qual está deposta a espada que ele
cingirá. É a vigília de arm as, depois da qual, em sinal de pureza,
ele tom a um banho e depois ouve m issa e com unga. E ntregam -lhe
então solenem ente a espada e as esporas, lem brando-lhe os deveres
do seu cargo: ajudar o po b re e o fraco, respeitar a m ulher, m ostrar-se
corajoso e generoso; a sua divisa deve ser «V alentia e generosidade».
Vêm de seguida a arm adura e a rude colée, a p ran ch ad a d ad a sobre
o om bro: em nom e de São M iguel e de São Jorge, ele é investido
cavaleiro.
P ara cum prir bem os seus deveres precisa ser tão hábil como
bravo: a cerim ónia prossegue então com um a série de provas físicas
que são outros tantos testes destinados a experim entar o seu valor.
E le entra na liça p ara «correr um alvo» — quer dizer, a cavalo, d er
ru b ar um m anequim — , e p ara desm ontar em torneio os adversários
que o venham desafiar. Os dias em que são arm ados novos cavaleiros
são dias de festa, em que cada um rivaliza em proezas, sob os olhos
dos castelões, da corte senhorial, e do povo m iúdo concentrado nas
circunvizinhanças do cam po de torneios. D estreza e vigor físico,
benevolência e generosidade, o cavaleiro representa um tipo de
hom em com pleto cuja beleza corporal é acom panhada pelas m ais
sedutoras qualidades:
H o n n i s o it h a rd em en t ou il n'a gentillesse
L e beau ja r d in de g râ ce s p lein
Ou Dieu, p a r espéciauté,
P lanta le s ly s de ro ya u té [...]
E t d'autres Heurs à g r a n d plenté:
F le u r de p a ix e t fle u r de ju stic e,
F le u r de fo i e t fleu r de franchise,
F le u r d a m o u r e t fle u r épanie
D e sens e t de chevalerie [...]
C est le ja r d in de douce F rance [...] 4
A IGREJA
A h ! p réla ts de S a in t E glise
Qui, p o u r g a rd er le s corps de bise
N e voulez a ller a u x m atinês,
M essire G eoffroy de Sargínes
Vous dem ande dela de la mer.
M a is j e dis cil fa it ú blâm er
Qui rien ra d ie p lu s vous dem ande
F ors bons vins e t bonnes viandes
E t que le p o iv re so it bien fo rt [...] 1.
aplicada, que houvesse com eço de prova; só podia servir p ara fazer
com pletar confissões já feitas. A crescentem os que, como todos os
tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e
deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua
culpabilidade.
*
Sans a m our n u l n e p e u t à h o n n e u r p a rv e n ir
S i d o it être a m o u reu x qui veut g ra n d d e v e n ir 1'.
C or irié, m o rn e e t p en sis
P eu t Von bien p erd re P aradis,
E t p le in de j o ie e t envoisié —
M a is quon se g a r d d'o utre p é c h é —
L e p eu t-o n bien conquerre aussi15.
assim se exprim e E ustache D escham ps, um dos poetas que deu o «pano
ram a» m ais com pleto e m ais exacto da vida do seu tem po. P erante
textos deste género, e sem sequer evocar as patuscadas gigantescas
a que as festas religiosas davam ocasião, é-se bem forçado a pensar
que, se houve, na história do m undo, um a época de alegria, é a
Idade M édia — e a concluir com a observação m uito ju sta de D rieu la
Rochelle: «Não é apesar do cristianism o, m as através do cristianism o
que se m anifesta aberta e plenam ente esta alegria de viver, esta
alegria de ter um corpo, de ter um a alm a nesse corpo ... esta alegria
de ser» ",
O ENSINO
(1) « E m c a d a d i o c e s e » , d iz L u c h a i r e , « f o r a d a s e s c o l a s r u r a i s ou
p a r o q u i a i s q u e j á e x i s t i a m [...] os c a p í t u l o s e os m o s t e i r o s p r i n c i p a i s
t i n h a m as s u a s e s c o la s , o s e u p e s s o a l de p r o f e s s o r e s e de a l u n o s » . (La
S o c ié té fr a n ç a is e a u te m p d e P h il i p p e d e P h i l i p p e - A u g u s t e , p. 68.)
96 RÉG IE PERNO
e publicaram -se cartas dirigidas aos pais ou a cam aradas " que revelam
as m esm as preocupações de hoje, aproxim adam ente: os estudos, os
pedidos de dinheiro e de provisões, os exames. O estudante rico
m orava na cidade com o seu criado; os de condição m ais m odesta
hospedavam -se em casas de burgueses do bairro Sainte-Geneviève e
faziam-se exonerar de toda ou parte das suas propinas de inscrição
na faculdade: encontram os frequentem ente, à m argem , nos registos,
um a m enção indicando que fulano ou falano nada pagou, ou só pagou
m etade da rem uneração, p ro p te r ínopíam , devido à sua pobreza.
O estudante desprovido de recursos faz frequentem ente pequenos
trabalhos p ara viver: é copista, ou encadernador nos livreiros que
têm loja na R ue des Écoles ou na R ue Saint-Jacques. M as, fora isto,
pode ser custeado de cam a e m esa nos colégios instituídos. O prim eiro,
em data, foi criado no H ôtel-D ieu de P aris p o r um burguês de
L ondres que, no regresso de um a peregrinação à T erra Santa, pelo
fim do século XII, teve a ideia de fazer um a obra piedosa favorecendo
o saber nas pessoas de m odesta condição: deixou um a fundação per
pétua, encarregada de albergar e de alim entar gratuitam ente dezoito
estudantes pobres, que só ficavam sujeitos, p o r seu turno, a velar
os m ortos do hospital e a levar cruz e água benta por ocasião dos
enterros. Um pouco m ais tarde, fundaram -se, de igual m odo, o colégio
Saint-H onoré e o de São T om ás do L ouvre, seguidos de m uitos outros.
Pouco a pouco, ganhou-se o hábito de organizar nestes colégios
sessões de trabalho em com um , como nos sem inários alem ães, ou
os «grupos de estudos» que funcionam desde há alguns anos nas
nossas faculdades; os professores vieram aí leccionar; alguns fixaram -
-se lá e, p o r vezes, o colégio tornou-se m ais frequentado do que a
própria U niversidade; é o que acontece com o colégio da Sorbonne.
No conjunto, havia todo um sistema de bolsas, não oficialm ente
organizado, m as correntem ente em uso, e que se aparentava com a
nossa Escola N orm al Superior, m enos o exam e de entrada, ou ainda
aquilo que se pratica nas U niversidades inglesas, nas quais o estudante
bolseiro recebe gratuitam ente não apenas a instrução, m as ainda
cam a e m esa, e p o r vezes vestuário.
O ensino é dado em latim ; divide-se em dois ram os, o trívíum,
ou as artes liberais: G ram ática, R etórica e Lógica, e o quadrívíum ,
quer dizer, as ciências: A ritm ética, G eom etria, M úsica e A stronom ia;
o que, com as três F aculdades de Teologia, D ireito e M edicina, form a
o ciclo dos conhecim entos. Como m étodo, utiliza-se sobretudo o
com entário: lê-se em texto, as E tym ologies [Etim ologias], de Isidoro
corpos de m estere s7, a sua vida suaviza-se com festas e divertim entos
que alegram o Q uartier Latin. Sem sequer falar da festa dos Loucos
e da dos Tolos, que são ocasiões excepcionais, não há recepção de
doutor que não seja seguida de cerim ónias paródicas, nas quais os
graves professores da Sorbonne participam ; A m broise de C am brai,
que foi chanceler da F aculdade de D ecreto, tom ou o seu papel a
peito e deixou-nos o relato delas nas apreciações críticas p o rm en o
rizadas que em preendeu du ran te o tem po em que ocupou o seu cargo.
Um ser assim form ado estava tão p rep arado p ara a acção como
para a reflexão, e é, sem dúvida, por isso que se vê nesta época as
personalidades adaptarem -se às situações m ais diversas e triunfar:
prelados com batentes, com o G uillaum e des B arres ou G uérin de
Senlis na batalha de Bouvines, ju ristas capazes de organizar a defesa
de um castelo, com o Jean d'Ibelin, senhor de B eyrouth, m ercadores
exploradores, ascetas construtores, etc.
A U niversidade foi, aliás, o grande orgulho da Idade M édia;
os p apas falam com benevolência desse «rio de ciência que, através
das suas m últiplas derivações, rega e fecunda o terreno da Igreja
universal»; nota-se, não sem satisfação, que em P aris a m ultidão
dos estudantes é tal que o seu núm ero chega a ultrapassar o da p o p u
lação 8. É-se cheio de indulgência p o r eles, apesar das suas «graci
nhas» e pilhérias que frequentem ente incom odam os burgueses, gozam
da sim patia geral. A lgum as cenas da sua vida foram descritas por
um dos escultores do portal Saint-Étienne, em N otre-D am e de Paris:
vêm o-los a ler e a estudar; um a m ulher vem perturbá-los, arranca-os
dos seus livros e, p ara a punir, é colocada no pelourinho p o r ordem
da autoridade- Os reis dão o exem plo deste m odo de trata r os «esco
lares» como m eninos m im ados: F ilipe A ugusto, depois da batalha
de Bouvines, enviou um m ensageiro anunciar a sua vitória em p ri
m eiro lugar aos estudantes parisienses.
Tudo o que respeita ao saber é assim h o n rad o na Id ad e M édia.
«Com desonra m o rra m erecidam ente quem não gosta de livro», dizia
um p ro v é rb io 9; e basta inclinarm o-nos sobre os textos para encon
trarm os sinal das m edidas pelas quais qualquer apetite de ciência era
encorajado e alim entado; citam os, entre outras, a criação, em 1215,
era-se m ais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por
m uito honrados que sejam, os livros, os escritos têm apenas um lugar
secundário; o papel de prim eiro plano é reservado à palavra, ao
verbo. Isto, em todas as circunstâncias da vida: nos nossos dias, ofi
ciais e funcionários redigem relatórios; na Id ad e M édia, aconselha
vam -se e deliberavam ; um a tese não é um a obra im pressa, é um a
discussão; a conclusão de um acto não é um a assinatura aposta ao
fim de um escrito, é a tradição m anual ou o em penham ento verbal;
governar é inform ar-se, inquirir, depois fazer «gritar» as decisões
tom adas.
Um elem ento essencial da vida m edieval foi a pregação. Pregar,
nesta época, não era m onologar em term os a c o lh id o s p eran te um
auditório silencioso e convencido. Pregava-se um pouco por todo o
lado, não apenas nas igrejas, m as tam bém nos m ercados, nos cam pos
de feira, no cruzam ento das entradas, e de m odo m uito vivo, cheio
de calor e de ím peto. O p reg ado r dirigia-se ao auditório, respondia
às suas perguntas, adm itia mesm o as suas contradições, os sem ru m o
res, as sua:; invectivas. Um sermão agia sobre a m ultidão, podia
desencadear im ediatam ente um a cruzada, p rop ag ar um a heresia, p re
p ara r revoltas. O papel didáctico dos clérigos era então im enso: eram
eles quem ensinava aos fiéis a sua história e as suas lendas, a sua
ciência e a sua fé, quem com unicava os grandes acontecim entos,
transm itia de um a ponta à outra da E u ro p a a notícia da tom ada
de Jerusalém , ou a da perd a de Saint-Jean d'A cre, quem aconselhava
uns e guiava outros, m e m o nos seus negócios profanos. N os nossos
dias, aqueles que não têm m em ória visual, no entanto m ais rara,
e de um exercício m ais autom ático, m enos racional que a m em ória
auditiva, são prejudicados por desvantagem nos seus e tudos e na
vida. N a Idade M édia, não era nada; a pessoa instruí-se escutando,
c a p alavra era de ouro.
Coisa curiosa, a nossa época vê voltar esta im portância do Verbo
e reviver esse elem ento auditivo que se perdera. Pode pensar-se que
u rádio desem penhará, para as gerações vindouras, o papel que
outrora foi desem penhado pela pregação; é de desejar, em todo o
caso, que lhe seja equivalente naquilo que respeita à educação do
povo.
P orque, se o term o «cultura latente» algum a vez teve um sentido,
foi na Idade M édia. T oda a gente então tem um conhecim ento
pelo m enos corrente do latim falado e articula o cantochão que supõe,
senão a ciência, pelo m enos o uso da acentuação. Toda a gente possui
um a cultura m itológica e lendária; ora, as fábulas e os contos dizem
mais sobre a história da hum anidade e sobre a sua natureza do que
uma boa parte tias ciências inscritas nos nossos dias nos program as
106 REF INE PEN O U
AS LETRAS
ritm adas e poéticas ditadas pelo seu trabalho, com binadas com a
oscilação do m ar e do navio- Q ualquer conhecim ento do hom em teria
sido preferível, p ara p en etrar na literatura m edieval, à investigação
das fontes segundo as veneráveis tradições da Sorbonne.
Isto não significa que a Idade M édia tenha ignorado a A n ti
guidade; H orácio, Séneca, A ristóteles, Cícero e m uitos outros são
estudados e citados frequentem ente, e os principais heróis das lite
ratu ras antigas, A lexandre, H eitor, Píram o e Tisbeu, Fedro e H ipólito,
inspiraram , p o r seu turno, todos os autores m edievais; as M e ta m o r
fo ses e as H eróides, de Ovídio, foram trad u zid as p o r várias vezes
seguidas; sobretudo, a Idade M édia amou profundam ente Virgílio,
m anifestando nisso um gosto indiscutível, um a vez que Virgílio foi,
sem dúvida, o único poeta latino digno deste nome. M as, se se vê
então na A ntiguidade um reservatório de im agens, de histórias e de
sentenças m orais, não se vai ao ponto de a enaltecer com o um m odelo,
com o o critério de toda a obra de arte; adm ite-se que é possível
fazer tão bem e m elhor do que ela; adm iram -na, m as preservar-se-iam
de a imitar.
Em contrapartida, inteiram ente bro tad a do nosso solo, a literatura
m edieval reproduz-lhe os m enores contornos, os m ínim os cam biantes.
Todas as classes sociais, todos os acontecim entos históricos, todos os
traços da alm a francesa nela revivem , num fresco deslum brante. É que
a poesia foi a grande ocupação da Idade M édia e um a das suas
paixões m ais vivas. R einava por toda a parte: na igreja, no castelo,
nas festas e nas praças públicas; não havia festim sem ela, nem
festejo em que ela não desem penhasse o seu papel, nem sociedade,
universidade, associação ou confraria onde ela não tivesse acesso;
aliava-se às m ais graves funções: alguns poetas governaram condados,
como G uillaum e d'A quitaine ou T hibaut de Cham pagne; outros gover
naram reinos, com o o rei R ené d'A njou ou R icardo C oração-de-Leão,
outros, com o B eaum anoir, foram ju ristas e diplom atas; podem os
m esm o ver um Philippe de N ovare, sitiado na T orre do H ospital com
um a trintena de com panheiros, escrever à pressa, p ara pedir socorro,
não um apelo de aflição, m as um poem a, e a lenda do tro v ad o r Blon-
del, reencontrando o seu m estre encarcerado com o auxílio de um
canto que tinham com posto ju n to s, apenas exprim e um a verdade de
aplicação corrente na Idade M édia. D izer versos, ou escutá-los, apa
recia como um a necessidade inerente ao homem- Pouco se veria,
actualm ente, um poeta instalar-se em cavaletes, perante um a b arraca
de feira, p ara aí declam ar as suas obras; espectáculo que era então
comum. Separava-se uni cam ponês do seu trabalho, um artesão da
sua loja, um senhor dos seus falcões, para ir ouvir um cantador (irou-
110 R E G IN E PEN O U
J e m e u rs de s o if em près de la fo n ta in e 3.
a tal m estre, à sua m ulher, ao seu criado, as lendas dos santos protec
tores da corporação; tudo isto acabava por form ar um a m in a desco
b erta p ara um escritor, ainda que pouco dotado; Thom as D e lo n e y
utilizou-os com felicidade p ara a Inglaterra, no início do século XVI;
os m esteres de F rança não tiveram a m esm a sorte, m as não é im pos
sível que se encontrem desses «rom ances» em estado de m anuscrito'
Num outro género, Bédier m ostrou lum inosam ente o nascim ento das
nossas epopeias ao longo das entradas de peregrinações e o papel
desem penhado pelos clérigos que instruíam e pelos jograis que dis
traíam , na form ação das no:sas grandes gestas nacionais. E ainda
um a das form as da fecundidade da vida m edieval, esta criação per
p étua, que participa da vida do povo, ou, m elhor, da vida de todo
um país, tanto das suas m assas populares como das suas classes «pri
vilegiadas». Os tem as poéticos, os heróis do rom ance, circulam e
m ultiplicam -se à imagem da hum anidade. R olando, Carlos M agno,
G uilherm e do N ariz C urvo, fizeram p arte do patrim ónio europeu, do
mesm o m odo que o estilo gótico. A penas as diferenciações locais, o
engenho de cada província, de cada dialecto, da cada país, deram
um aspecto particular e um sabor novo a cada um a das suas reencar-
nações. Nesse, como noutros aspectos, a influência francesa, ou mais
exactam ente franco-inglesa, dom inou o m undo conhecido. Os nossos
cantadores tiveram um sucesso internacional, W olfram d'E schenbach,
H artm an n d'A ue, W alter de la Vogelweide e os outros m in n esin g er
im itaram -nos, e os rom ances bretões foram traduzidos em Itália, na
G récia e até na N o ru e g a 6
M óvel, anim ada como o é, esta literatura m edieval tem um a outra
característica que é a de toda a Idade M édia: o am or da vida- D otados
de um a faculdade de assim ilação extraorddinária, os autores desta
época trataram os seus heróis com o seres vivos, actuais, cuja exis
tência não tivesse sido deslocada na sociedade em que eles próprios
se encontravam . E les não tiveram necessidade de lhes criar um a
atm osfera artificial p ara os justificar. Tais com o os sentiam , assim
os exprim iram . P or outras palavras, a Idade M édia literária dispensa
a cor literária e a docum entação histórica. Pensou-se assinalar exem
plos desta fam osa «ingenuidade» m edieval, quando se via o anão
Obéron dizer-se filho de Júlio César, ou A lexandre portar-se como
um cavaleiro cristão. M as, longe de ser um a deficiência, esta facilidade
quanto individual, bebendo a sua tem ática do solo de F ran ça, das
aventuras dos seus barões, das astúcias das suas m ulheres, n o s seus
cam pos fecundos e nas suas cidades ruidosas, entre as quais já se
destaca P aris, o P aris de Rutebeuf, de E ustache D escham ps e de
F rançois Villon.
M as não é som ente po rq ue canta o nosso pais e a sua ventura
que a poesia m edieval representa o nosso m ais precioso patrim ónio
nacional. E la, que inspirou a E uro p a e p ercorreu o m undo conhecido,
é francesa até nas suas m ais escondidas propensões. Não a podem os
renegar sem renegar a nossa natureza e a nossa personalidade. E stá
im pregnada do nosso espírito, é a sua m ais autêntica criação. E sta veia,
este jo rro perpétuo de ironia, de palavras sem rodeios, de sarcasm os
que nada sabem respeitar, nem sequer as m ais sinceras crenças, este riso
sonoro, enfim, riso dos fabulários, das farsas, dos sermões divertidos,
da festa dos loucos e outras p alh açad as6, este riso, que apenas encontrará
outros ecos na literatura, no teatro de M olière, não estará nele o sinal
distintivo do povo de F rança, com o seu sentido da resposta pronta,
o seu sentido do ridículo, o seu gosto pelas boas histórias e pelas
brincadeiras um pouco livres? É provável que se pude se fazer rep re
sentar por pessoas de hoje e p erante um auditório popular a m aioria
dos nossos fabulários e algum as cenas do le u de Saint-N icolas ou do
M a ître P athelín com m uito sucesso; lê-se sem pre com sem elhante
p razer os Quinze jo ie s d e m ariage, e as brincadeiras m edievais sobre
a tagarelice das m ulheres e os m aridos enganados são ainda daquelas
que se ouvem quotidianam ente.
A grande censura que se fez a este cóm ico, cuja alegria e exube
rância não pode ser negada, é a de ser grosseiro. Os autores de m a
nuais literários têm o costum e de dissim ular o rosto perante estes
«personagens prosaicos», e tas «farsas indecentes» e este vocabulário
em que o bom -tom é algo m altratado. As suas constatações são justas:
um a grande p arte da literatura m edieval, e da m elhor procedência,
está sem eada de brincadeiras bem grosseiras; tam bém isto é m uito
francês — m uito gaulês, p ara em pregar o term o exacto. N a Idade
M édia cham ava-se gato a um gato, e as brincadeiras, mesmo triviais,
desde que fossem espirituosas divertiam enorm em ente. Podem os m e
lindrar-nos, ou reeditar a atitude de um F rancisque Sarcey abandonando
o seu lugar à prim eira réplica do Ubu Roi, subsiste que, na pena dos
contistas da Idade M édia, com o nas de R abelais ou de Alfred Jarry,
com o na boca do hom em do povo, as grosserias são quase sempre tão
bem recebidas, tão expressivas e tão saborosas, que provocam irresis
tivelm ente o riso. É preciso, aliás, observar que elas não se acom panham
(6) E n t r e nós esta te m á t i c a está p res en te nas « C an tig as de E s carn i»
e M aldizer». (N. do R.)
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 115
nad a lhe deve ser difícil quando se trate de conquistar aquela que
am a
P o u r travail n i p o u r p ein e
N i p o u r d ouleur que faie
N i p o u r ire g re v a in é 1
N i p o u r m a l que j e traie7
N e quiers que m e r e t r a i t
D e m a dam e un se u l j o u r \
D am e, de toutes la no n p a ir
B elle e t bonne, à droit louée 10
ou ainda:
E lle a un c h e f blondet
Yeux verts, bouche sadetíe,
Un corps p o u r em brasser,
Une g o rg e blanchette [...]
É ela que inspira as canções, que anim a os heróis dos rom ances,
que faz suspirar ou com overem -se os trovadores. D edicam -lhe os
versos; p ara ela com põem belos m anuscritos ricam ente ilum inados.
E la é o sol, a rim a e a razão de toda a poesia.
A m ulher é, de resto, ela própria poeta. F ábulas e la is 21 de M aria
de F rança fizeram as delícias dos senhores de C ham pagne e de Além-
-C anal (M ancha); a literatura é, por vezes, p ara ela, um ganha-pão,
com o foi o caso de Christine de Pisan. E las não tiveram de vencer o
desprezo a que, ainda não há m uito tem po, se expuseram entre nós
as «m eias azuis», talvez porque lhes evitavam os defeitos e sabiam
conservar um encanto propriam ente feminino. A Idade M édia rep re
senta a grande época da m ulher, e, se há um dom ínio em que o seu
reinado se afirma, é o dom ínio literário.
Isto, ainda, era bem francês. O nosso povo era, desde então,
reputado o m ais galante, e já as m aneiras francesas serviam de m odelo
à Europa. N enhum a civilização colocou tão alto o ideal feminino e
pôs tanta prontidão em o honrar. N os países germ ânicos, o hom em
representou sem pre o papel principal, de Siegfried a W erther; sem
dúvida, um a Kriem hild não tinha o que era preciso p ara seduzir um
cavaleiro e provocar nele e se sentim ento m isturado de nobreza e de
am or, que nasceu em F rança, e que se nom eia: a cortesia.
Francesa nos grandes traços que a distinguem , a nossa literatura
é m elhor ainda: um espelho do nosso país nas suas m últiplas p ro
víncias. P icardos de veia folgazã, C ham panheses de sorriso delicado,
N orm andos astutos, Provençais, L anguedócio , de língua quente e
cantante como a sua poesia, todas as subtis variedades do nosso solo
nela e tão expressas. N esta literatura que os m anuais nos apresentam
em bloco, com o um a m assa informe, há cam biantes em núm ero
E n co r n e so it m a p a ro le françoise
S i la p eu t-o n bien entendre en françois,
E t cil n e so n t bien appris n i courtois
Qui m 'o n t repris, si j 'a i d it m o t d'Artois,
C ar j e n e j u s p a s n o u rri à P ontoise [...] 22
E n avril au tem ps p a sc o u r
Que s u r l'h e r b e n a it la flour,
L 'a lo u e tte au p o in t du jo u r
C hante p a r m o u lt g ra n d baudour
P o u r la douceur du tem ps nouvel.
S i m e leva i p a r un m atin
J 'o u ïs cha nter s u r l 'arbrissel
Un o iseleï en son la tin 25.
Chevalier, p a r S a in t Simon,
N 'a i cure de com pagnon.
P a r ci p a sse n t G uérinet et R obeçon
Qui oncques n e m e req u iren i s i bien non1' .
D. A votre h o n n e u r se u l entendez,
P o u r votre tem ps m ie u x em ployer;
D u m ien à m o i vous attendez
S ans p ren d re p e in e à foloyer;
B on fa it craindre e t supployer
Un coeur jo lle m e n t déceu
C ar rom pre vaut m ie u x que ployer.
E t ébranlé m ie u x que cheu.
D. J e n e tiens m ie /H )u r donné
Ce qu'on à qui n e le p rend;
C ar le don e st a b a n d o n n é
RACINE PERNO UD
128
S i le donneur n e le reprend.
Trop a de coeur qui entreprend
D 'en do n n er à qui le refuse,
M a is il est sage, qui apprend
A fe n retraire, q u'il n 'y muse.
de bobo, Isolda segura do seu am ante e to rtu rad a pelo ciúme, am ores
selvagens e pudicos, m ordeduras dos rem orsos e do afastam ento:
D. N ã o consid ero com o ofe recid o / O que se ofe rece a quem recusa;
/ P o is a dádiva será abandonada / Se o d a d o r a n ã o recuperar. / B d e
m a sia d o g en ero so quem p ro cu ra / O ferecer a quem recusa, / M a s and a
bem quem sabe / B etira r-se quando n ã o agrada.
ht t p: / / saom iguel.webng.com /
130 RÉG INE PERNOUD
E t m eu re P a ris ou H élène
Quiconque meurt, m e u rt à douleur;
C elui qui p e r d vent e t haleine
Son fie l se crève s u r son coeur
P uis sue: D ieu sa it quelle su e u r [...] 38.
N ’e n p u is m a g ra n d j o i e celer
E n Egypte vais ai le r (40)
in lúbrico baculus
in naufrágio po rtu s
ut, te duce, quo te n d im u s/p ro sp e re p e rv e n ia m u s
a c dem um in c ó lu m e s/a d p r ó p ria redeam us [...] (44)
É puro jogo verbal, e isto não deixa de apresentar para nós algum
atractivo de actualidade.
Este sentido do sabor da palavra, da cadência da frase, ultrapassa,
de resto, na Idade Média, o domínio literário. Toda a linguagem da
época — a dos C rieries de P aris como a dos chamamentos dos mari
nheiros— testemunha uma preocupação de ritmo que reapareceu nos
nossos dias sob a forma do slogan publicitário. As regras de direito,
as fórmulas jurídicas, os provérbios — por exemplo, aqueles que
Antoine Loisel reuniu — trazem a marca desta preocupação da expres
são brilhante, com um andamento espontâneo e directo que mostra
bem que se tratava nesses casos de uma capacidade natural de se ex
primir com felicidade, talvez porque o intelecto ainda não tinha absor
vido em seu proveito as outras faculdades e codificado como o resto
o poder de afirmação. Todas as expressões que nos restam e que nós
empregamos sem medir a nobreza da sua origem: «neves de antanho»,
«estar como o pássaro no ramo» (andar aos baldões da sorte) ou «como
cão e lobo», «comer o seu trigo enquanto erva» (comer adiantado),
«nem carne nem peixe», etc, testemunham, no seu aspecto poético ou
familiar, mas sempre expressivo, uma intuição muito viva da eficiência
verbal.
AS ARTES
AS C IÊ N C IA S
filosofal, que N icolas Flam el afirm ava ter realizado? É assim defi
nida: unia m atéria subtil «que se encontra em toda a parte», um «Sol
averm elhado», um «corpo subsistente por si, diferente de todos os
elem entos e corpo- simples». Segundo R aim ond Lulle, trata-se de um
«óleo oculto, penetrável, benfazejo e miscível a todos os corpos, que
aum entará o seu efeito sem m edida com um , de m aneira m ais secreta
que qualquer outro no m undo». T ransponham estes dados p ara a
linguagem científica m oderna e tereis definido a radiactividade. Os
sábios da Idade M édia entreviam , graças à sua intuição, aquilo que
os nossos realizam , graças ao m étodo. Q uanto à transm utação dos
corpos, que foi o m aior sonho dos alquim istas, não entrou ela nos
factos, hoje em dia? A vicena fala de um «elixir que, projectado sobre
um corpo, transform a a m atéria da sua natureza p ró pria n o rtra m até
ria» — nos laboratórios consegue-se, através de «bom bardeam entos»
de electrões, fazer fósforo, p o r exem plo, a p artir do alum ínio, e nada
Ae opõe a que se chegue, p o r meio de operações atóm icas, a transfor
m ar o vil chum bo em ouro puro. As m áquinas expostas no Palais
de la D écouverte, aquando da exposição de 1937, prestam justiça
ao génio dos investigadores do século XIII. De m odo obscuro, é certo,
e m arcad a de erros que tornariam impossível a aplicação prática dos
seus achados, tinham contudo atingido um grau de ciência m uito
superior ao das épocas que se lhe seguiram. O cientista do século XIX,
im buído das ciências físicas, e n atu rais e das descobertas da quím ica,
perm aneceu indiferente face à crença m edieval na unidade da m atéria;
o do século XX, graças às descobertas da biologia e da electroquím ica,
restabeleceu essa m esm a crença, reconhecendo que todo o átom o se
com põe uniform em ente de um p rotão em torno do qual gravitam os
electrões.
D e igual m odo, interessam o-nos hoje novam ente pelo ocultism o
e a astrologia. Se não se trata de ciências exactas propriam ente ditas,
parece cada vez m ais necessário atribuir-lhes um certo valor — valor
hum ano, se não científico. N inguém contesta a influência da L ua
sobre o m ovim ento das m arés, e os cam poneses sabem que não se
deve engarrafar a cidra ou po d ar a vinha senão em épocas deter
m inadas pelas fases lunares. Será de todo impossível que o u tras in
fluências, m ais subtis, sejam exercidas pelos astros? P orque um certo
charlatanism o pode facilm ente explorar estas questões, tudo nelas
deverá necessariam ente ser negócio de charlatães? O nosso século XX,
século de ciências ocultas, dará talvez razão, neste ponto com o em
tantos outros, aos sábios da Idade M édia.
N um outro dom ínio, o da exploração e dos conhecimento;; geo
gráficos, a actividade não foi menor. Fazer rem ontar a época das
grandes viagens ao R enascim ento é, m ais do que um;i injustiça, um
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 159
A VIDA QUOTIDIANA
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162 REGI NE PEN O U
(5) L e M é n a g ie r de P aris.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA
169
guarda a roupa, e de que se podem ver ainda belos espécimes, nom ea
dam ente no hospício de Beaune. As m adeiras desta época são m uito
belas; p rep arad as e enceradas devidam ente, não absorvem a poeira
e são um m au alvo para os insectos; há ainda as arcas p ara o pão,
os aparadores e guarda-louças; quanto às m esas, são simples tábuas
que se m ontam sobre cavaletes no m om ento de servir e que se g uar
dam seguidam ente ju n to às paredes p ara não estorvarem . Em contra
partida, faz-se m uito uso de panos e tapeçarias, que protegem do frio
e abafam as correntes de ar; as que nos restam — p o r exem plo, o
adm irável conjunto da D am e à la líco rn e conservado no M useu de
C lu ny — dizem bem que partido delas se podia tirar p ara m obilar
e decorar os interiores; trata-se, evidentem ente, de um luxo reservado
aos castelães e aos ricos burgueses, m as o hábito de usar tapetes
e x a iré is0 era geral. Falando dos cuidados vários de um a dona de
casa, o M é n a g íe r de P a ris recom enda a Agnès, a Beata, que tem o
panei de intendente: «que ordene às serviçais que, logo de m anhãzinha
cedo, as en trad as da vossa casa, a saber a sala e os outros locais por
onde as pessoas entram e se detêm em casa p ara conversar, sejam
varridas e conservadas lim pas, e os escabelos (tam boretes), bancos
e xairéis, os quais estão sobre as arcas, sacudidos e lim pos do pó;
e sub equentem ente os outros quartos limpos e ordenados p ara esse
dia, e de dia p ara dia, tal é p ró p rio do nosso estado...»
E spantar-se-ão talvez de encontrar m encionados nos inventários,
com o fazendo parte do m obiliário, o fundo-de-banho ou tapete-ba-
nheira, espécie de m oletão que guarnecia o fundo das banheiras, p ara
evitar as farpas quase inevitáveis quando o fundo é de m adeira. É
que efectivam ente a Idade M édia, contrariam ente ao que se julga,
conhecia os banhos e fazia largo uso deles; ainda aqui, conviria não
confundir as épocas, atribuindo indevidam ente ao século XIII a p o r
caria repelente do século x v i e dos que se lhe seguiram até aos nossos
dias. A Idade M édia é um a época de higiene e limpeza. U m dito de
uso corrente fala bem daquilo que era considerado como um dos
prazeres da existência:
C e s t bien d ín er qu a n d on échappe
Sans débourser p a s un denier
E t dire adieu au tavernier
E n torchant son n e z à la n appe (11).
(13) Este porm enor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck
Brentano.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 175
que a ausência ou a insuficiência dos m eios de tran sp o rte não perm ite
p restar rapidam ente auxílio a um a região am eaçada e trocar os p ro
dutos, a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenam ente acerca
da questão. D urante a alta Idade M édia, em particular, quando cada
dom ínio form ava pela força das coisas um circuito fechado, as
estradas eram ainda pouco seguras e, para assegurar a sua m an u
tenção, eram exigidas portagens m uitas vezes onerosas, bastava um
ano de seca p ara a penúria se fazer sentir. M as é igualm ente certo
que essas fomes eram localizadas e em geral não ultrapassavam a
extensão de um a província ou de um a diocese. M esm o durante o
período áureo da Idade M édia, no século X III, quando a autarquia
dom inial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tom ou
fácil em toda a F rança, observam -se variações por vezes m uito im por
tantes no preço dos géneros, sobretudo do trigo; cada província,
cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local. Os quadros
traçados p o r Avenel e W ailly m ostram , no interior de um a m esm a
região económ ica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo
ao triplo, como aconteceu no Franco Condado, onde, só no ano de
1272. o hectolitro de trigo custou de 4 a 13 francos.
Por outro lado, é preciso ainda que nos entendam os sobre o que
s; designa por fome: um texto citado por L uchaire, pouco suspeito
de indulgência em relação à Idade M édia, e num a o bra onde acum ula
expressam ente docum entos capazes de dar a ver a época a um a luz
das m ais som brias, é próprio p ara deixar perplexos os leitores do
ano 1943. «Nesse ano (1197), conta o cronista de Liège, faltou o
trigo. D a Epifania até A gosto, tivem os de gastar m ais de cem m arcos
p ara obter pão. N ão tivem os nem vinho nem cerveja. Quinze dias
antes da colheita, ainda com íam os p ã o de c e n te io 14» Se a penúria,
p ara eles, consistia em não ter senão pão de centeio, quanto não inve
jaría m o s nós a sorte dos nossos antepassados da Idade M édia.
N a realidade, a alim entação medieval não era m uito diferente
da nossa em épocas norm ais. A base era, naturalm ente, o pão, que,
de acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio
ou de m istura de trigo e centeio; m as verifica-se que m esm o regiões
não p rodutoras, com o o Sul da F rança, utilizam o pão de trigo can
dial. Em M arselha, onde o terreno é pobre em trigo e onde as m edidas
de excepção p ara abastecer a cidade são frequentes, não se encontram
previstas, na regulam entação m uito minuciosa da panificação, farinhas
secundárias; fabricam -se três espécies de pão: o pão branco, o pão
m éjan, m ais grosseiro, e o pão integral; os preços são fixados segundo
um a tarifa rigorosa estabelecida após exames feitos p o r três m estres-
httpJ/saomigueí. webng.com
178 R EGINE PERNOUD
parece ter tido h o rro r dos tons som brios, e tudo o que nos legou,
frescos, m iniaturas, tapeçarias, vitrais, é testem unho desta riqueza
de colorido tão característica da época.
N ão se deve contudo exagerar o pitoresco ou a excentricidade
do trajo m edieval; alguns porm enores, que associam os inevitavelm ente
aos quadros do tem po, só excepcionalm ente fizeram p arte da indu
m entária: os sapatos de p o n ta revirada, por exem plo, estiveram na
m oda durante um a cinquentena de anos, não m ais, no decorrer do
século x v , que não assistiu a poucos exageros vestim entares; Charles
d O rléans critica os «gorgias», jovens elegantes que usam m angas
«recortadas» — m angas de fenda lateral que deixam aparecer dobras
im pressionantes. Do m esm o m odo, a coifa longa e pontiaguda, irresis
tivelm ente evocada pela palavra «castelã», foi m uito m enos usada
do que a coifa quadrada ou arredondada que enquadra o rosto e é
m uitas vezes acom panhada de uma fita sob o queixo, m oda corrente
no século x iv .
D e um m odo geral, as m ulheres da Idade M édia usam roupas
que seguem a linha do corpo, com um busto m uito ju sto e am plas
saias de curvas graciosas. O corpete abre-se frequentem ente sobre a
chaínse ou cam isa de tecido e as m angas são por vezes duplas, deten
d o - A as prim eiras, as da sobreveste ou trajo de cima, nos cotovelos
e indo as de baixo, de tecido m ais ligeiro, até aos pulsos. O pescoço
é sem pre bem destacado, enquanto as saias arrastam pelo chão, presas
p o r um cinto onde por vezes sobressai um a fivela de joalharia.
O trajo m asculino quase não se distingue do trajo fem inino, pelo
m enos nos prim eiros séculos da Idade M édia, m as é m ais curto, o
calção deixa ver as meias, e p o r vezes as bragas ou calções; no
decurso do século XII, sob a influência das C ruzadas, adoptam -se
roupas com pridas e flutuantes, m oda vivam ente censurada pela Igreja
com o sendo efem inada. Os cam poneses usam um a espécie de rom eira
com capuz e os burgueses cobrem a cabeça com um carapuço de
feltro ou de tecido pregueado. São m uito apreciadas as peles, desde
o arm inho reservado aos reis e príncipes de sangue, a m arta ou o
esquilo, até às simples raposas e carneiros, de que os aldeões confec
cionam sapatos, gorros e p o r vezes casacos com pridos. No século x v ,
os grandes senhores, como o duque de B erri, gastarão fortunas p ara
com prarem peles preciosas, e é tam bém nessa época que o trajo se
com plica, que os calções se tornam estreitos e ju sto s e a vasquinha
exageradam ente curta e franzida na cintura e os seus om bros acol
choados.
A ro u p a interior existe desde o início da Idade M édia, e o exame
das m iniaturas m ostra que é usada tanto pelos cam poneses como
pelos burgueses; havia p o r toda a p arte, em França, canham eirais
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA ! 8í
o que é ainda o regim e habitual das fam ílias cam ponesas. M as isto
não se verifica todos os dias. Em prim eiro lugar, pratica-se aquilo
a que se cham a a semana inglesa; todos os sábados e nas vésperas
dos feriados, o trabalho cessa à um a hora da tarde, em certos ofícios,
e p ara toda a gente nas vésperas, quer dizer, o m ais tard ar por volta
das quatro horas. Aplica-se o m esmo regim e às festas que não são
feriados, isto é, um a trintena de dias p or ano, tais com o o dia de
Cinzas, das Im plorações, dos Santos Inocentes, etc. R epousa-se igual
m ente no dia da festa do p adroeiro da confraria, do da paróquia e,
bem entendido, feriado completo ao dom ingo e nos dias de festas
obrigatórias. Estas são muito num erosas na Idade M édia: de trinta
a trinta e três p o r ano, segundo as províncias; às quatro festas que
conhecem os hoje em dia em F rança vêm acrescentar-se, não só o dia
dos M ortos, a Epifania, as segundas-feiras de P áscoa e do Pentecostes,
e três dias na oitava do N atal, m as ainda num erosas festas que pas
sam m ais ou m enos desapercebidas actualm ente, tais como a P u ri
ficação, a Invenção e a E xaltação da Santa Cruz, a A nunciação, o São
João, o São M artinho, o São N icolau, etc. O calendário litúrgico
regula assim todo o ano, introduzindo um a grande variedade, tanto
m ais que se dá a estas festas m uito m ais im portância do que nos
nossos dias. É pelas suas dataA, e não pelos dias do m ês, que se m ede
o tem po: fala-se do «Santo André» e não do 30 de N ovem bro, e diz-se
três dias depois do São M arcos, de preferência a: o 28 de Abril. Em
sua honra são igualm ente preteridas exigências de ordem social, tais
como as da justiça, p or exemplo. Os devedores insolúveis, aos quais
é designada um a residência forçada — regim e que faz lem brar a
prisão p o r dívidas, em bora sob um a form a m ais doce — , podem
ab andonar esta e ir e vir livrem ente desde a Q uinta-F eira Santa até
à terça-feira de Páscoa, do sábado à terça-feira de Pentecostes, e desde
a véspera de N atal até à Circuncisão. E stam os p erante noções que
nos é difícil hoje em dia com preender perfeitam ente.
No total, havia cerca de noventa dias por ano de feriados com
pletos, com setenta dias e mais de feriados parciais, quer dizer, cerca
de três m eses de férias rep artid as ao longo do ano, o que garantia
um a variedade inesgotável na cadência do trabalho. Em geral, as
pessoas queixar-se-iam m esm o, com o o sapateiro de La Fontaine, de
terem dem asiados dias feriados.
A organização dos lazeres é de base religiosa: todo o feriado é
dia de festa e toda a festa com eça pelas cerim ónias do culto. Estas
são frequentem ente longas e sem pre solenes. Prolongam -se em espec
táculos que, dados prim itivam ente na própria igreja, não tardaram
em se ver rechaçados p ara o adro: são as cenas da vida de Cristo, das
quais a principal, a P aixão, suscita obras-prim as redescobertas pela
L U Z SO BRE A IDA DE MÉDIA
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dam as ou gam ão, tinham tam bém os seus adeptos. M as eram sobre
tudo os dados que faziam furor; vadios e jo g rais arruinavam -se com
eles: R utebeuf fez m ais de um a vez essa am arga experiência e conta
em term os patéticos as esperanças incessantem ente iludidas e o des
p e rta r angustioso dos infelizes jogadores arruinados; joga-se aos dados
m esm o na casa real. Como é frequente o em prego de im precações
nesta espécie de jogos, as autoridades tom am m edidas contra os blas
femos: em M arselha, aqueles que tinham esse m au hábito eram m er
gulhados p o r três vezes num fosso lodoso, próxim o do Vieux-Port.
P uniam -se igualm ente aqueles que utilizavam dados viciados ou faziam
batota de qualquer outro m odo. As crianças, essas, jogavam aos
ossinhos. M ais distintos e praticados na sociedade cortês eram os
diversos jogos de espírito: adivinhas, anagram as, pedaços rim ados.
Christine de Pisan deixou-nos jo g o s p a ra vender, pequenas peças
im provisadas, no género de: «Vendo-vos o m eu cestin h o » — plenos de
encanto e de poesia ligeira.
194 RÉGINE PERNOUD
(1) E homem probo, como parece, / Quem possui estas duas coisas
ao mesmo tempo: / Valor de corpo e bondade de alma.
204 R ÉG IN E PER NOU D
NOTRE-DAME DE P A R IS. — A s m u l t i l a ç õ e s d o s s a n s - c u l o t te s i n ã o n o s d e v e m
fazer esq uecer que é à Rev olução F r a n c e s a que devem o s a co nser
v ação da sua fachada, se não I n ta c ta nos seus p o rm en o res, pelo
m eno s tal como está no con jun to: p r o j ec ta v a -s e com efeito, nos
ú ltim o s an o s do século X V III, demoli-la, p ar a co n s tru i r o u tr a no
g én e ro d a do P a n teão .
Q U IM E R A S D A N O T R E -D A M E .— A c r e s c e n ta d a s p o r V io lle t-le -D u c a q u a n d o da
re s t a u r a ç ã o do edifício no século XIX
R Ã S .— C f «Tanques».