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RÉGINE PERNOUD

LUZ SOBRE
A IDA DE MÉDIA

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA
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ÍNDICE

Pág.
Intro d u çã o . .............................................................................................................................................. 9

C a p ítu lo I — A org anização s o c i a l ....................................................................................13


C a p ítu lo II — O vín culo feu d a l ________ 27
C a p ítu lo III — A vida r u r a l ................................................................................................... 37
C a p ítu lo IV — A vida u r b a n a ................................................................................................ 47
C a p ítu lo V — A r e a le z a ......................................................................................................... 61
C a p ítu lo VI — A s rela çõ es in tern a cio n a is. .......................................................................... 71
C a p ítu lo VII —A I g r e ja .............................................................................................................81
C a pítuIo V H I — O ensin o. ......................................................................................................... 95
C ap ítu lo IX — A s letra s. ..........................................................................................................107
C a p ítu lo X — A s a r te s ......................................................................................................... 143
C ap ítu lo XI — A s c iê n c ia s ....................................................................................................155
C ap ítu lo XII — A vida q u o tid ia n a .........................................................................................161
C a p ítu lo X III — A m enta lid a d e m e d ie v a l .............................................................................. 193

P eq u en o dicio nário da Id a d e M édia tr a d ic io n a l ...........................................................................201


B ib lio g ra fia ........................................................................................................................................ 207
IN TR O D U Ç Ã O

«F azer livro s é um trabalho sem fim», dizia o E clesiastes, no


tem po em que a B íblia se cham ava Vulgata. E um p o u co o sentim ento
do a u to r considerando a p rese n te obra quase a quarenta anos de
distância ... Trabalho sem fim.
E ste tinha sido em preendido alguns anos após a m inha saída da
E cole des Chartes, na fascinação de uma descoberta ainda com ple­
tam ente nova. P ara mim, com efeito, com o p a ra toda a gente, no
fim dos estudos secundários e de uma licenciatura clássica, a «Idade
M édia» era um a época de «trevas». M uniam -nos, tanto em literatura
com o em história, de um sólido arsenal de ju íz o s prefa b rica d o s que
n o s levavam p u ra e sim plesm ente a d eclarar ingénuos os auditores
de São Tomás de A quino e bárbaros os construtores do Thoronet.
N ada n esses séculos obscuros que valesse a p en a de alguém se deter
neles. P o r isso nã o deixou de se r com um sentim ento de resignação
que abordei uma escola destinada n a s m inhas intenções a abrir-m e
uma carreira de bibliotecária.
E eis que se m e abriu um a ja n e la p a ra um outro mundo. E que
a pós p o u c o m ais de três anos de cursos — p o n tu a d o s m u ita s vezes,
é p rec iso dizê-lo, p o r crises de sono irreprim ível, quando se tratava,
p o r exemplo, de biblioteconom ia ou de arquivística — «esses tem pos
a que cham am os obscuros» m e apareciam num a lu z insuspeitável.
O m érito da escola era de n o s colocar de rep en te em fa ce dos pró p rio s
m ateriais da história. N enhum a «literatura», m uito p o u c a im portância
dada às opiniões em itidas p o r professores, m a s uma exigência rigorosa
p era n te textos ou m onum entos da época tom ados n o sentido m ais
lato. E ram os levados, em suma, a s e r técnicos da história, e isso era
m a is fé rtil que as diversas filosofias da m esm a história que tínham os
tido ocasião de a b o rd a r anteriorm ente. N o terceiro ano, sobretudo,
a arqueologia e m a is ainda a história do direito, ensinada p o r esse
m estre que fo i R o g e r Grand, faziam -nos p e n e tra r num a sociedade
n a s suas estruturas p ro fu n d a s com o na sua expressão artística; revê-
la vam -nos um p a ssa d o aflorando ainda o presente, um m un d o que
tinha visto apagar-se o lirism o, n a sc e r a literatura rom anesca e
R É G IN E PERNOUD
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erguerem -se C hartres e R eim s; a id en tifica r uma estátua após outra,


descobríam os perso n a g en s de uma gra n d e hum anidade; a fo lh ea r
cartas ou m anuscritos tom ávam os consciência de um a harm onia da
q u a l cada sinete, cada linha traçada, cada pag in a çã o p a recia m deter
o segredo.
Tanto assim que, p o u co a pouco, uma p ergunta nascia, a qual,
em tem pos dem asiado difíceis p a ra d eixa r lu g a r p a ra a contestação,
m a l ousávam os form ular: p o r que razão nada n o s tinha nunca deixado
p re sse n tir tudo isso ? P o r que razão esses p ro g ra m a s que nunca nos
faziam entrever senão um gra n d e vazio entre o século de A ugusto
e o R en a scim en to ? P o r que razão tínham os de ad o p ta r sem discussão
a opinião de um B oileau sobre os «séculos grosseiros» e acolher
apenas com um sorriso indulgente a dos rom ânticos sobre a floresta
g ó tica ?
A p rese n te obra nasceu destas interrogações e de uma série de
outras sem elhantes. E p a rec e que h o je toda a g en te as colocaria.
M a s n em é m esm o essa a questão. C om o entretanto com eçaram a
viajar, os F ranceses, com o toda a gente, aprenderam a ver. Uma
cultura la ten te que faltava com pletam ente na m inha ju v e n tu d e , em
que a «C ultura» era ainda apanágio de uma sociedade m uito restrita,
difundiu-se. E se nã o chegám os ainda ao p o n to de viajar tanto com o
os A nglo-Saxões, ou de le r tanto com o os Irlandeses, o n ív e l geral,
sobretudo de h á vinte e cinco anos p a ra cá, contrariam ente a tantos
clam ores pessim istas, p a rec e-n o s ter-se co nsideravelm ente elevado.
Tanto assim, que um p o u co p o r toda a p a rte com eça-se a saber
d iscernir n o n o sso m eio aquilo que m erece s e r adm irado.
«V ai p a ssa r a sua vida a ree screve r essa obra», tinha-m e dito,
quando do seu aparecim ento, l é o n Gischia; e essa segurança, vinda
de um p in to r que eu adm irava profundam ente, ele p ró p rio m uito
inform ado sobre as diversas fo rm a s de arte da nossa Id a d e M édia, tinha-
m e tocado. D e facto, ele tinha razão. Todos os m e u s trabalhos iam
se r consagrados a estudar, aprofundar, esclarecer os cam inhos aqui
abertos ou entrevistos, a tentar uma exploração m a is com pleta, a
q u erer fazê-la p a rtilh a r tam bém p o r um p ú b lico m uito p ro n to p a ra
m a n ifesta r a sua curiosidade de espírito; isto sobretudo, notem o-lo,
fora dos m eio s tradicionalm ente votados á cultura clássica e a ela só.
A p ro p ó sito desta reedição, trinta e cinco anos exactam ente após
o seu aparecim ento, p u n h a -se a questão de reju ven escer ou n ã o a
obra. F eita a reflexão, deixam o-la tal com o fo i escrita. Os leitores
estão h o je aptos a cobrir as suas eventuais lacunas, g ra ça s a colecções
com o a de «Z odíaco» sobre a arte rom ana ou com o os Cahiers de
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA II

civilisation m édiévale; ou ainda g ra ça s a esses estudos tão honestos,


tão trabalhados, de R eto Bezzola, de P ierre Riché, de P a u l Zumthor,
de L éo p o ld G énicot e de inúm eros eruditos am ericanos, L yn n White
e tantos outros.
N ã o deixarem os de n o ta r aqui e além algum as aproxim ações.
A ssim , rep ro d u zi bastante inocentem ente o que m e ensinaram relativo
«ao esquecim ento da escultura» até à época rom ana e gótica; os
p in to res do nosso tem po corrigiram de certa m aneira a nossa visão
e fizeram -nos com preender que os p in to re s de fescos ro m a n o s não
estavam à espera de um M atisse p a ra obedecer às «leis da p e rsp e c ­
tiva». Ou são ainda erros de detalhe: A belardo nunca en sinou em
A rgenteuil; m a s h o je j á se sabe m a is sobre ele.
Teríam os querido rec tifica r do m esm o m odo, aqui e além, im ­
precisões, detalhes que «fazem época», epítetos intem pestivos, ju íz o s
um p o u co perem ptórios: culpa da ju v e n tu d e ; m a s ao suprim i-los
correria o risco de su p rim ir tam bém um certo fervilh a r de entusiasm o
devido a essa m esm a ju ven tu d e . P odem os in vo ca r p a ra ela a in d u l­
gência do leitor. E ssa m esm a indulgência que m e m anifestou, na
p rim eira vez que franqueei, m uito intim idada, a p o rta das edições
Grassei, o querido H e n ry Poulaille, então d irecto r do serviço lite ­
rário. A despeito das suas im perfeições, esta obra p o d e apresentar
p a ra outros uma iniciação um p o u co com parável à que rec eb i na
velha casa do n .° 19 da R ue de la Sorbonne.

Seria encetar um outro capítulo — sem dúvida o m a is im portante —


d izer todo o reconhecim ento que sinto p a ra com todos os que in sp i­
raram , acolheram , encorajaram esta obra e m e forneceram a sua
m atéria ou a sua form a. R ecuando n o tempo, haveria em p rim eiro
lu g a r os que aconselharam ou quiseram esta reedição: C hristian de
B artillat, das edições Stock, ou F rançoise Verny, das ed ições
Grassei. E além deles, tantos eruditos, m estres ou colegas. A p re ­
ciam os m elhor, «quand le jo u r baisse aux fenêtres et que se taisent
les chansortb-» o alcance do «qu'as-tu que tu ne l'aies reçu?» 2

( 1 ) O u an d o o dia d eclin a sob as Janelas e se calam as cançOes.


(N. do R. p
( 2 ) Que ad q u i riste tu que não te n h a s recebid o? (N. d o R .)
]2 RÉGINE PERNOUD

M a s , e m p r im e ir o lu g a r e p a r a a lé m d o m a is , h o u v e c o m o p o n to
d e p a rtid a p a r a e sta o b ra , o c o n s e lh o e a o p im a o d o m e u ir m ã o
G e o r g e s (S e tu d o o q u e n o s c o n ta s s o b r e a I d a d e M é d ia e e x a cto ,
e s c r e v e - o - n in g u é m o s a b e ), e, p o r c o n s e q u ê n c ia , to d a s a s o u tr a s
m in h a s o b r a s te r ã o s id o in s p ir a d a s , g u ia d a s , r e v is ta s p o s ta s e m p r a tic a
p o r a q u e le q u e, a te n to à o b r a d o s o u tr o s a p o n to d e n e g lig e n c ia r p o r
is s o a s u a p r ó p r ia o b ra , c o n h e c e h o je a l u z p a r a a lé m d e to d a a lu z.

2 d e F e v e r e ir o d e 1981.
[...] esses te m p o s a q uem ch a m a m obscuros.
(M iguel d e U N A M U N O )

CAPITULO I
A ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Julgou-se durante muito tempo que bastava, para explicar a


sociedade medieval, recorrer à clássica divisão em três ordens: clero,
nobreza e terceiro estado. É a noção que dão ainda os manuais de
história: três categorias de indivíduos, bem definidas, tendo cada uma
as suas atribuições próprias e nitidamente separadas umas das outras.
Nada está mais afastado da realidade histórica. A divisão em três
classes pode aplicar-se ao Antigo Regime, aos séculos x v n e x v m ,
onde, efectivamente, as diferentes camadas da sociedade formaram
ordens distintas, cujas prerrogativas e relações dão conta do meca­
nismo da vida. No que concerne à Idade Média, semelhante divisão
é superficial: explica o agrupamento, a repartição e distribuição das
forças, mas nada revela sobre a sua origem, sobre a sua jurisdição,
sobre a estrutura profunda da sociedade. Tal como aparece nos
textos jurídicos, literários e outros, esta é bem uma hierarquia, com­
portando uma ordem determinada, mas esta ordem é outra que não
a que se julgou, e à partida muito mais diversa. Nos actos notariais,
vê-se correntemente o senhor de um condado, o cura de uma paró­
quia aparecerem como testemunhas em transacções entre vilão, c
c o r te 1 de um barão — quer dizer, o seu meio, os seus familiares -
comporta tantos servos e frades como altas personagens. As atribuições
destas classes estão também estreitamente misturadas: a maior parte
dos bispos são igualmente senhores; ora muitos deles saem do povo
miúdo; um burguês que compra uma terra nobre toma-se, em certas
regiões, ele próprio nobre. Logo que abandonamos os manuais para
mergulhar nos textos, esta noção das «três classes da sociedade»
aparece-nos como fictícia e sumária.
Mais próxima da verdade, a divisão em privilegiados e não
privilegiados permanece, ela também, incompleta, porque houve, na
Idade Média, privilegiados da alta à mais baixa escala social. O mais
pequeno aprendiz é, a determinados níveis, um privilegiado, pois
participa dos privilégios do corpo de ofício; as isenções da Univer-
( 1 ) M esnada é o te rm o co rresp o n d e n te entre nós, m a s de sentido
d iferente, eng lob an d o uni co m p an h e iri sm o g u err eiro . (N. d o R .)
14 R E G IN E PERNOUD

sidade aproveitam tanto aos estudantes e mesmo aos seus criados


como aos mestres e aos doutores. Alguns grupos de servos rurais go­
zam de privilégios precisos que o seu senhor é obrigado a respeitar.
Não considerar, como privilégios, senão os da nobreza e do clero,
é conceder uma noção completamente errónea da ordem social.
Para compreender bem a sociedade medieval, é necessário estudar
a sua organização familiar. Aí se encontra a «chave» da Idade Média
e também a sua originalidade. Todas as relações, nessa época, se
estabelecem sobre a estrutura familiar: tanto as de senhor-vassalo
como as de mestre-aprendiz. A vida rural, a história do nosso solo,
não se explicam senão pelo regime das famílias que aí viveram.
Queria-se avaliar a importância de uma aldeia? Contava-se o número
de «fogos» e não o número de indivíduos que a compunham. N a legis­
lação, nos costumes, todas as disposições tomadas dizem respeito aos
bens de família, ao interesse da linhagem, ou, estendendo esta noção
familiar a um círculo mais importante, ao interesse do grupo, do
corpo de ofício, que não é senão uma vasta família fundada sobre
o mesmo modelo que a célula familiar propriamente dita. Os altos
barões são antes de tudo pais de família, agrupando à sua volta todos
os seres que, pelo seu nascimento, fazem parte do domínio patrimonial;
as suas lutas são querelas de família, nas quais toma parte toda essa
corte, a qual têm o cargo de defender e de administrar. A história
da feudalidade não é outra senão a das principais linhagens.
E que será, no fim de contas, a história do poder real do século x
ao século x iv ? A de uma linhagem, que se estabelece graças à sua
fama de coragem, ao valor de que os seus antepassados tinham feito
prova: muito mais que um homem, é uma família que os barões
colocaram à sua cabeça; na pecsoa de Hugo Capeto viam o des­
cendente de Roberto, o Forte, que tinha defendido a região contra
os invasores normandos, de Hugo, o Grande, que tinha já usado a
coroa; facto que transparece no famoso discurso de Adalbéron de
Reims: «Tomai por chefe o duque dos Francos, glorioso pelas suas
acções, p ela sua fam ília e p elo s seu s hom ens, o duque em quem encon­
trareis um tutor não só dos negócios públicos, mas dos vossos negó­
cios p riva do s.» Esta linhagem manteve-se no trono por hereditarie­
dade, de pai para filhos, e viu os seus domínios crescerem por heran­
ças e por casamentos, muito mais que por conquistas: história que se
repete milhares de vezes na nossa terra, a diversos níveis, e que deci­
diu uma vez por todas os destinos da França, fixando na sua terra
linhagens de camponeses e de artesãos, cuja persistência através dos
reveses dos tempos criou realmente a nossa nação. N a base da «ener­
gia francesa» há a família, tal como a Idade Média a compreendeu
e conheceu.
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 15

Não poderíamos apreender melhor a importância desta base


familiar que opondo, por exemplo, a sociedade medieval, comporta
de famílias, à sociedade antiga, composta de indivíduos. Nesta, o
homem, vir, detém a primazia em tudo; na vida pública ele é o civis,
o cidadão, que vota, que faz as leis e toma parte nos negócios de
Estado; na vida privada, é o p a te r fam ílias, o proprietário de um bem
que lhe pertence pessoalmente, do qual é o único responsável e sobre
o qual as suas atribuições são quase ilimitadas. Em parte alguma
se vê a sua família ou a sua linhagem participando na sua actividade.
A mulher e os filhos estão-lhe inteiramente submetidos e permanecem
em relação a ele em estado de menoridade perpétua; tem sobre eles,
como sobre os escravos ou sobre as propriedades, o j u s utendi et
abutendi, o poder de usar e abusar. A família parece não existir senão
em estado latente; não vive senão pela personalidade do pai, simul­
taneamente chefe militar e grande sacerdote; isto com todas as con­
sequências morais que daí decorrem, entre as quais é preciso colocar
o infanticídio legal. A criança é de resto na Antiguidade a grande
sacrificada: é um objecto cuja vida depende do juízo ou do capricho
paternal; está submetido a todas as eventualidades da troca ou da
adopção, e, quando o direito de vida lhe é acordado, permanece sob
a autoridade do p a te r fa m ílias até à morte deste; mesmo então não
adquire de pleno direito a herança paterna, já que o pai pode dispor
à vontade dos seus bens por testamento; quando o Estado se ocupa
desta criança não é de todo para intervir a favor de um ser frágil,
mas para realizar a educação do futuro soldado e do futuro cidadão.
Nada subsiste desta concepção na nossa Idade Média. O que
importa então já não é o homem, mas a linhagem. Poderíamos estudar
a Antiguidade — e estudamo-la de facto — sob a forma de biografias
individuais: a história de Roma é a de Sila, de Pompeu, de Augusto;
a conquista dos Gauleses é a história de Júlio César. Abordar-se a
Idade Média? Uma mudança de método impõe-se: a história da uni­
dade francesa é a da linhagem capetiana; a conquista da Sicília é a
história dos descendentes de uma família normanda, demasiado nume­
rosa para o seu património. Para compreender bem a Idade Média,
é preciso vê-la na sua continuidade, no seu conjunto. E talvez por isso
que ela é muito menos conhecida e muito mais difícil de estudar que
o período antigo, porque é necessário apreendê-la na sua complexi­
dade, segui-la na continuidade do tempo, através dessas cortes que
são a sua trama; e não apenas as que deixaram um nome pelo brilho
dos seus feitos ou pela importância do seu domínio, mas também as
gentes mais humildes, das cidades e dos campos, que é preciso
conhecer na sua vida familiar se quisermos dar conta do que foi a
sociedade medieval.
R É G IN E PERNO
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0 que, aliás, se explica: durante esse período de perturbações


e de decom posição total que foi a A lta Idade M édia, a única fonte
de unidade, a única força que perm aneceu viva, foi precisam ente o
núcleo familiar, a p artir do qual se constituiu pouco a pouco a u n i­
dade francesa. A família e a sua base fundiária foram assim, devido
às circunstâncias, o ponto de partida da nossa nação.
E sta im portância dada à família traduz-se p o r um a prep o n de­
rância, m uito m arcada na Idade M édia, da vida privada sobre a vida
pública. Em R om a, um hom em não tem valor senão enquanto exerce
os seus direitos de cidadão: enquanto vota, delibera e participa nos
negócios do E stad o ; as lutas da plebe para obter o direito de ser
representada por um tribuno são a este nível bastante significativas.
N a Idade M édia, raram ente se trata de negócios públicos: ou m elhor,
estes tom am logo o aspecto de um a adm inistração fam iliar; são con­
tas de dom ínio, regulam entos de rendeiros e de proprietários; m esm o
quando os burgueses, no m om ento da form ação das com unas, recla­
m am direitos políticos, é p ara poderem exercer livrem ente o seu ofí­
cio, não serem m ais incom odados pelas portagem e pelos direitos
de alfândega; a actividade política, em si, não apresenta interesse p ara
eles. De resto, a vida rural é então infinitam ente m ais activa que a
vida urbana, e, tan to num a com o noutra, é a fam ília, não o indivíduo,
quem prevalece com o unidade social.
Tal como nos aparece no século X, a sociedade assim com pre­
endida apresenta como traço essencial a noção de solidariedade
fam iliar saída dos costum es b árbaros, germ ânicos ou nórdicos. A
fam ília é considerada como um corpo, em todos os m em bros do qual
circula um m esm o sangue, ou com o um m undo reduzido, desem ­
penhando cada ser o seu papel com a consciência de fazer p arte de
um todo. A união não repousa, pois, como na antiguidade rom ana,
sobre a concepção estatista da autoridade do seu chefe, m as sobre
esse facto de ordem biológica e m oral, ao mesm o tem po, de acordo
com o qual todos os indivíduos que com põem um a m esm a família
estão unidos pela carne e pelo sangue, os seus interesses são solidários,
e nada é m ais respeitável que a afeição que naturalm ente os anim a
uns p ara com os outros. Tem -se m uito vivo o sentido desse carácter
com um dos seres de um a m esm a família:

L es g en tils fils des g ertiils p ére s


D es g en tils e t des bonnes m ères
lis n e fo n t p a s de p esa n ts heíres [hoirs, héritiers] 2

2 Os gentis filhos dos gentia pois/Dos gentis e dos boas mães/Não


se tornam herdeiros pesados.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 7

diz um autor do tem po. A queles que vivem debaixo de um m esm o


tecto, que cultivam o m esm o cam po e que se aquecem no m esm o
fogo, ou, p ara em pregar a linguagem do tem po, os que participam
do m esm o «pão e pote» 3, «que cortam a m esm a côdea», sabem que
podem contar uns com os outros, que o apoio da sua corte não lhes
faltará. O espírito de grupo é, com efeito, m ais potente aqui do que
p oderia ser em qualquer outro agrupam ento, já que se funda sobre
os laços inegáveis do parentesco pelo sangue e se apoia sobre um a
com unidade de interesses não m enos visível e evidente. O autor de
quem foi citado o extracto precedente, É tienne de Fougères, p ro testa
no seu L iv re des M anières [Livro das M aneiras] contra o nepotism o
dos bispos; todavia, reconhece que estes fariam bem em rodear-se
dos seus parentes «se estão de boas relaçõe.», pois, diz ele, nunca
podem os ter a certeza da fidelidade dos estranhos, enquanto os n o s­
sos, pelo m enos, não nos faltarão.
Partilha-se, pois, as alegrias e os sofrimentos; recolhe-se em
casa os filhos daqueles que m orreram ou estão em d íicu ld ad es,
e todas as pessoas de um a m esm a casa se agitam p ara d e sa g rav a r4
a injúria feita a um dos $ur> m em bros. O direito de guerra privada,
reconhecido durante grande p arte da Idade M édia, não é senão a
expressão da solidariedade familiar. C orrespondia, no seu iníc o, a
um a necessidade: quando da fraqueza do poder central, o indivíduo
não podia contar com qualquer outra ajuda a não ser a da corte p ara
o defender, e durante toda a época das invasões ficaria entregue, sozi­
nho, a toda a e pécie de perigos e de misérias. P ara viver era preciso
fazer frente, agrupar-se — e que grupo valeria algum a vez m ais que
um a fam ília resolutam ente unida?
A solidariedade familiar, exprim indo-se se fosse preciso pelo
recurso às arm as, resolvia então o difícil problem a da segurança p es­
soal e da do dom ínio. Em certas províncias, particularm ente no N orte
da F rança, o h a b ita t traduz este sentim ento da solidariedade: o p rin ­
cipal com partim ento da casa é a sala, a sala que preside, com a sua
vasta lareira, às reuniões de família, a sala onde se reúnem p ara comer,
p ara festejar nos casam entos e nos aniversárioA e p ara velar os m ortos;
é o h a ll dos costum es anglo-saxões — porque a Inglaterra teve na
Idade M édia costum es sem elhantes aos nossos, aos quais perm aneceu
fiel em m uitos pontos.
A esta com unidade de bens e de afeição é necessário um adm i­
nistrador. É naturalm ente o pai de família que desem penha este papel.

3 E m p o r tu g u ês a ex p r es são co rr esp o n d en te será «co mer da m esm a


g am ela» . (N. do R)
4 O d es ag rav o é no P o r t u g a l medieval o direito de revindicta.
(N. do R.)
RÉG IE PERNO
IH

Mas a autoridade de que ele desfruta é antes a de um gerente em


lugar de ser a de um chefe, absoluta e pessoal com o no direito rom ano:
gerente responsável, directam ente interessado na prosperidade da casa,
m as que cum pre um dever m ais do que exerce um direito. Proteger
os seres fracos, m ulheres, crianças, servos, que vivem debaixo do seu
tecto, assegurar a gestão do patrim ónio, tal é o seu cargo; m as não
o consideram o chefe definitivo da casa fam iliar, nem com o o p ro p rie­
tário do dom ínio. E m bora desfrute dos seus bens patrim oniais, não
tem senão o seu usufruto; tal como os recebeu dos antepassados deve
transm iti-los àqueles cujo nascim ento designará p ara lhe sucederem.
O verdadeiro proprietário é a família, não o indivíduo.
Do m esm o m odo, em bora possua to d a a autoridade necessária
p ara as suas funções, está longe de ter, sobre a m ulher e os filhos,
esse poder sem lim ites que lhe concedia o direito rom ano. A m ulher
colabora na m aínbourníe, quer dizer, na adm inistração da com unidade
e na educação dos filhos; ele gere os bens próprios p o rque o consi­
deram m ais apto do que ela p ara os fazer pro sp erar, coisa que não
se consegue sem esforço e sem trabalho; m as quando, por um a razão
ou p o r outra, tem de se ausentar, a m ulher retom a essa gestão sem o
m ínim o obstáculo e sem autorização prévia. G uarda-se tão viva a
recordação da origem da sua fortuna que, no caso em que um a
m ulher m orra sem filhos, os seus bens próprios voltam integralm ente
para a sua família; nenhum contrato pode opor-se a isto, as coisas
passam -se n aturalm ente assim.
Em relação aos filhos, o pai é o guardião, o protector e o mestre.
A sua autoridade p atern a p ára na m aioridade, que adquirem m uito
jovens: quase sem pre aos catorze anos entre os plebeus; entre os
nobres, a idade evolui de catorze a vinte anos, p o rque têm de fornecer
p ara a defesa do feudo um serviço m ais activo, que exige forças
e experiência. Os reis de F rança eram considerados m aiores com catorze
ou quinze anos, e foi com esta idade, sabe-se, que Filipe A ugusto
atacou à cabeça das suas tropas. U m a vez m aior, o jovem continua
a gozar da protecção dos seus e da solidariedade fam iliar, m as,
diferentem ente do que se passava em R om a e consequentem ente nos
países de direito escrito, adquire plena liberdade de iniciativa e pode
afastar-se, fundar um a família, adm inistrar os seus próprios bens
com o entender. Logo que é capaz de agir p o r si m esm o, n ad a vem
entravar a sua actividade; torna-se senhor de si p ró p rio , m antendo,
no entanto, o apoio da fam ília de que saiu. É um a cena clássica dos
rom ances de cavalaria ver os filhos da casa, logo que estão em idade
de usar arm as e de receber a investidura, deixar a residência paterna
para correr o m undo ou ir servir o seu suserano.
A noção de família assim com preendida repousa sobre um a base
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 19

m aterial: é a herança de fam ília — bem fundiário em geral, p o rq u e


a terra constitui, desde os com eços da Idade M édia, a única fonte
de riqueza e perm anece consequentem ente o bem estável p o r ex ce­
lência.

H éritage n e p e u t m a u vo ir
M a is m eubles est chose volage '

dizia-se então. E sta herança fam iliar, quer se tra te de um


arrendam ento servil ou de um dom ínio senhorial, perm anece sem pre
propriedade da linhagem. É im penhorável e inalienável; os reveses
acidentais da família não podem atingi-la. N inguém lha pode to m ar
e a família tam bém não tem o direito de a vender ou traficar.
Q uando o pai m orre, esta herança de fam ília passa p ara os h er­
deiros directos. Se se trata de um feudo nobre, o filho m ais velho
recebe quase a sua totalidade, po rq u e é necessário um hom em , e um
hom em am adurecido pela experiência, p ara m anter e defender um
dom ínio; é esta a razão do m orgadio, que a m aior p arte dos costum es
consagra. P ara os arrendam entos, o u~o varia com as províncias:
p o r vezes a herança é p artilhad a, m as em geral é o filho m ais velho
quem sucede. N otem os que se trata da herança principal, do patrim ónio
de fam ília; as outras são, em tal circunstância, partilhadas pelos
filhos m ais novos; m as é ao m ais velho que cabe o «solar principal»,
com um a extensão de terra suficiente para viver, bem com o a sua
família. É ju sto , de resto, p o rque quase sem pre o filho m ais velho
secundou o pai e é, depois dele, aquele que m ais cooperou na m an u ­
tenção e na defesa do patrim ónio. Em algum as províncias, tais como
em H ainaut, A rtois, P icardie e em algum as parte da B retanha, é. não
o m ais velho, m as o m ais novo o sucessor à herança principal, e um a
vez m ais por um a razão de direito natural: porque, num a família,
os m ais velhos são os prim eiros a casar e vão então estabelecer-se
por sua conta, enquanto o m ais novo fica m ais tem po com os pais
e trata-o s na sua velhice. E ste direito do m a is jo v e m ° testem unha a
elasticidade e a diversidade dos costum es, que se adaptam aos hábitos
fam iliares de acordo com as condições de existência.
De qualquer m aneira, o que é notável no sistema de transm issão
de bens é que passam p ara um único herdeiro, sendo este designado
pelo sangue. «Não existe herdeiro por testam ento», diz-se em direito
consuetudinário. N a transm issão do patrim ónio de família, a vontade

5 Uma h erança n ã o p o d e m ovim entar-se. / M a s os m ó veis sã o coisa


instável.
11 Sem co r resp o n d ên cia em P o rt u g a l, n o r m a l m e n te esta euce3São
do p at rim ó n io passava p ar a os filhos segundos. (N. do R.)
RÉG IE PERNO
20

do testam enteiro não intervém. Pela m orte de um pai de família, o


seu sucessor n atu ral entra de pleno direito em posse do patrim ónio.
«O m orto agarra o vivo», dizia-se ainda, nessa linguagem m edieval,
que tinha o segredo das expressões surpreendentes. E a m orte do
ascendente que confere ao sucessor o título de posse que o coloca de
facto na posse da terra; o homem de lei não tem , com o nos nossos
dias, de passar por isso. E m bora os costum es variem conform e o
lugar, fazendo aqui do m ais velho, além do m ais novo o herdeiro
natural, em bora a m aneira como sobrinhos e sobrinhas possam p re ­
tender à sucessão, à falta de herdeiros directos, varie de acordo com
as províncias, pelo m enos um a regra é constante: não se recebe um a
herança senão em virtude dos laços n aturais que unem um a pessoa
a um defunto. Isto quando se trata de bens im óveis; os testam entos
nunca dizem respeito senão aos bens móveis ou a terras adquiridas
d urante a vida e que não fazem parte dos bens de família. Quando
o herdeiro natural é indigno do seu cargo, notoriam ente, ou se é,
por exem plo, pobre de espírito, são adm itidas alterações; m as em
geral a vontade hum ana não intervém contra a ordem natural das
coisas. «Instituição de herdeiro não tem lugar», tal é o adágio dos
ju ristas de direito consuetudinário. É neste sentido que ainda hoje
se diz, falando das sucessões reais: «O rei m orreu, viva o rei.» N ão
há interrupção, nem vazio possível, um a vez que só a hereditariedade
designa o sucessor.
P o r isso a gestão dos bens de família se encontra continuam ente
assegurada. N ão deixar o patrim ónio enfraquecer, tal é realm ente o fim
que visam todos os costumes. P or isso nunca havia senão um único
herdeiro, pelo m enos p ara os feudos nobres. Tem ia-se a fragm enta­
ção, que em pobrece a terra, dividindo-a até ao infinito: o parcela­
m ento foi sem pre fonte de discussões e de proces:os; prejudica o culti­
vador e dificulta o progresso m aterial — porque, p ara po d er aprovei­
tar os m elhoram entos que a ciência ou o trabalho põem ao alcance
do cam ponês, é necessário um em preendim ento de certa im portância,
que possa se necessário suportar fracassos parciais e em qualquer caso
fornecer recursos variados. O grande dom ínio, tal com o existe no
regim e feudal, perm ite um a sábia exploração da terra: pode-se deixar
periodicam ente um a parte em pousio, o que lhe dá tem po para se
renovar, e v ariar as culturas, m antendo, de cada um a delas, um a
harm oniosa proporção. P o r isso a vida rural foi extraordinariam ente
activa du ran te a Idade M édia e um a grande quantidade de culturas
foi introduzida em F rança d u ran te essa época.
O que foi devido, em grande p arte, às facilidades que o sistema
rural da época oferecia ao espírito de iniciativa da nossa raça. O
cam ponês de então não é nem um retard atário nem um rotineiro. A
L U Z SOBRE A IDA DE MÉDIA 21

unidade e a estabilidade do dom ínio eram um a garantia tanto p ara


o futuro como p ara o presente, favorecendo a continuidade do esforço
familiar. N os nossos dias, quando em presença se encontram vários
herdeiros, é preciso desm em brar o fundo e p assar p o r toda a espécie
de negociações e de resgates p ara que um deles possa retom ar a
em presa p a te r n a 7. A exploração cessa com o indivíduo. Ora, o in d i­
víduo passa enquanto o patrim ónio fica, e, na Idade M édia, tendia-se
p ara residir. Se existe um a p alavra significativa na term inologia m e ­
dieval, essa palav ra é m ansão .senhorial, o lugar onde se está, m a n ere —
o ponto de ligação da linhagem , o tecto que abriga os seus m em bros,
passados e presentes, e que perm ite às gerações sucederem -se p a c i­
ficamente.
Bem característico tam bém , o em prego dessa unidade agrária que
se denom ina m a n se — extensão de terra suficiente p ara que um a fam ília
possa nela fixar-se e viver. V ariava naturalm ente com as regiões: um
cantinho de terra na gorda N orm andia ou na rica G asconha traz
m ais ao cultivador que vastas extensões na B retanha ou no F orez;
a m a n se tem pois um a extensão m uito variável conform e o clima, as
qualidades do solo e as condições de existência. É um a m edida em p í­
rica, e, característica essencial, de base fam iliar, não individual: resum e
p o r si só a característica m ais saliente da sociedade medieval.
A ssegurar à fam ília um a base fixa, ligá-la ao solo de qualquer
forma, p ara que aí tom e raízes, possa d ar fruto e perpetuar-se, tal é
a finalidade dos nossos antepassados. Se se pode traficar com as
riquezas móveis e dispô-las p o r testam ento, é p o rque p o r essência
são m utáveis e pouco estáveis; pelas razões inversas, os bens fun­
d iá rio sK, pro p ried ad e familiar, são inalienáveis e im penhoráveis. O
hom em não é senão o guardião tem porário, o usufrutuário; o v erd a­
deiro proprietário é a linhagem.
Um a série de costum es m edievais decorrem desta preocupação
de salvaguardar o patrim ónio de família. Assim, em caso de falta
de herdeiro directo, os bens de origem p atern a voltam p ara a família
do pai e os de origem m aterna para a da m ãe — enquanto no direito
rom ano só se reconhecia o parentesco p o r via m asculina. É aquilo
a que se cham a o direito de retorno, que desem pata conform e a sua
origem os bens de um a família extinta. D o m esmo m odo, o asilo de
linhagem dá aos parentes m esm o afastados direito de preferência
quando por um a razão ou p o r outra um dom ínio é vendido. A m a­
neira como é regulada a tutela de um a criança que ficou órfã apre­

(7 ) .S a b e m o s
que d isp o siç õ es re c e n te s v ie ra m fe liz m e n te m o d ific ar
o re d im e das sucessões.
(8) Bens fu n d iário s p r o p r i e d a d e s rú s tic a s , lig ad a s à te rra , à a g r i­
c u ltu ra B ase da e c o n o m i a m e d i e v a l . (N. do R .)
RÉ G IE PERNO
22

senta tam bém um tipo de legislação familiar. A tutela é exercida pelo


conjunto da fam ília, e aquele cujo grau de parentesco designa para
adm inistrar os bens torna-se naturalm ente o tutor. O nosso conselho
de família não é senão um resto do costum e m edieval que regula o
arrendam ento dos feudos e a guarda das crianças.
A Idade M édia tem , aliás, tão viva a preocupação de respeitar
o curso natural das coisa?, de não criar prejuízos quando aos bens
fam iliares, que, no caso em que aqueles que detêm determ inados bens
m orram sem herdeiro, o seu dom ínio não pode voltar para os ascen­
dentes; procura-se os descendentes m esmo afastados, prim os ou p aren ­
tes, tudo m enos fazer voltar estes bens p ara os seus precedentes
possessores: «Bens próprios não voltam p ara trás.» T udo pelo desejo
de seguir a ordem norm al da vida, que se transm ite do m ais velho
para o m ais novo, e não volta p ara trás: os rios não voltam à n as­
cente, do m esm o m odo os elementos da vida devem alim entar aquilo
que representa a juventude, o futuro. D e resto é m ais um a garantia
p ara o patrim ónio da linhagem este virar-se necessariam ente para
seres jovens, p o rtan to m ais activos e capazes de o fazer valer m ais
longam ente.
Por vezes, a transm issão dos bens faz-se de um a form a muito
reveladora do sentim ento fam iliar, que é a grande força da Idade
M édia. A fam ília (aqueles que vivem de um m esm o «pão e pote»)
constitui um a verdadeira personalidade m oral e jurídica, possuindo
em com um os bens de que o pai é o adm inistrador; pela sua m orte,
a com unidade reconstitui-se com a orientação de um dos filhos-família,
designado pelo sangue, sem que tenha havido interrupção da posse
dos bens nem transm issão de qualquer espécie. É aquilo a que se
cham a a com unidade silenciosa, de que faz p arte qualquer m em bro
da casa de fam ília que não tenha sido expressam ente posto «fora do pão
e pote». O costum e sub:istiu até ao fim do A ntigo R egim e e podem -se
citar famílias francesas que durante séculos nunca pagaram o mínim o
direito de sucessão. O ju rista D upin assinalava deste m odo, em 1840,
a família Jau lt que não o pagava desde o século x iv .
Em todos os casos, m esm o fora da com unidade silenciosa, a fa­
m ília, considerada no seu prolongam ento através das gerações, p er­
m anece o verdadeiro proprietário dos bens patrim oniais. O pai de
fam ília que recebeu estes bens dos antepassados deve d ar conta deles
aos seus descendentes; seja ele servo ou senhor, nunca é o dono
absoluto. Reconhece-se-lhe o direito de usar, não o de abusar, e
tem , além disso, dever de defender, de proteger e de m elhorar a sorte
de todos aqueles, seres e coisas, de que foi constituído o guardião
natural.
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 23

E foi assim que se form ou a F rança, obra destes m ilhares de


fam ílias, obstinadam ente fixadas ao solo, no tem po e no espaço. F ra n ­
cos, Borgonheses, N orm andos, Visigodos, todos esses povos m óveis,
cuja m assa instável faz da A lta Idade M édia um caos tão d esco n ­
certante, form avam , desde o século X, um a nação, solidam ente ligada
à sua terra, unida po r laços m ais seguros que todas as federações cuja
existência se proclam ou. O esforço renovado dessas famílias m icro s­
cópicas deu origem a um a vasta família, um m acrocosm o, cuja b ri­
lhante adm inistração, a linhagem capetiana sim boliza à m aravilha,
gloriosam ente conduzindo de pai p ara filho, du ran te três séculos, os
destinos da França. É certam ente um dos m ais belos espectáculos
que a história pode oferecer, essa família sucedendo-se à nossa cabeça
em linha directa, sem interrupção, sem desfalecimento, durante m ais
de trezentos anos — um tem po igual ao que se passou desde o ap a re ­
cim ento do rei H enrique IV até à guerra de 1940...
M as o que im porta com preender é que a história dos C apetos
directos não é senão a história de um a fam ília francesa entre m ilhões
de outras. E sta vitalidade, esta persistência na nossa terra, todos
os lares de F ran ça a possuíram , num grau m ais ou m enos equivalente,
excepção feita a acidentes ou acasos, inveitáveis na existência. A Idade
M édia, saída da incerteza e do desacordo, da guerra e da invasão,
foi um a época de estabilidade, de perm anência, no sentido eti­
mológico da palavra.
Facto que se deve às suas instituições fam iliares, tais com o as
expõe o nosso direito consuetudinário. N elas se conciliam com efeito
o m áxim o de independência individual e o m áxim o de segurança.
Cada indivíduo encontra em casa a ajuda m aterial, e na solidariedade
fam iliar a protecção m oral de que pode ter necessidade; ao mesmo
tem po, a p a rtir do m om ento em que se pode ter necessidade; ao
mesmo tem po, a p artir do m om ento em que se basta a si próprio, ele
é livre, livre de desenvolver a sua iniciativa, de «fazer a sua vida»;
nada entrava a expansão da sua personalidade. M esm o os laços que
o ligam à casa p aterna, ao seu passado, às suas tradições, não têm
nada de entrave; a vida recom eça inteira p ara ele, tal com o, biologi­
cam ente falando, ela recom eça inteira e nova p ara cada ser que vem
ao m undo — ou como a experiência pessoal, tesouro incom unicável
que cada um deve forjar p ara si próprio, e que só é válido desde
que do próprio.
É evidente que uma semelhante concepção da família basta p ara
fazer todo o dinam ism o e tam bém toda a solidez de um a nação. A
aventura de R obert Guiscard e dos irm ãos, filho-segundos de uma
24 R E G IN E PERNO

família normanda, excessivamente pobre e excessivamente numerosa,


que emigra, toma-o rei da Sicília e funda aí uma dinastia poderosa,
eis o próprio tipo da história medieval, toda feita de audácia, de
sentimento familiar e de fecundidade. O direito consuetudinário, que
fez a força do nosso país, opunha-se nisso directamente ao direito
romano, no qual a coesão da família não se deve senão à autoridade
do chefe, estando todos os membros submetidos a uma rigorosa dis­
ciplina durante toda a vida: concepção militar, estatista, repousando
sobre uma ideologia de legistas e de funcionários, não sobre o direito
natural. Comparou-se a família nórdica a uma colmeia que se desloca
periodicamente e se multiplica renovando os terrenos de colheita e a
família romana a uma colmeia que não enxamearia nunca. Disse-se
também da família «medieval» que ela formava pioneiros e homens
de negócios, enquanto a família romana dá nascimento a militares,
administradores, funcionários9.
É curioso seguir, ao longo dos séculos, a história dos povos
formados nestas diferentes disciplinas e verificar os resultados a que
chegaram. A expansão romana tinha sido política e militar, e não
étnica; os Romanos conquistaram um império pelas armas e conser-
varam-no por intermédio dos seus burocratas; este império só foi
sólido enquanto soldados e funcionários puderam vigiá-lo facilmente;
não parou de crescer a desproporção entre a extensão das fronteiras
e a centralização, que é o fim ideal e a consequência inevitável do
direito romano; ele desabaria por si próprio, pelas suas próprias insti­
tuições, quando o ímpeto das invasões lhe veio dar o golpe de mise­
ricórdia.
Podemos, a este exemplo, opor o das raças anglo-saxónicas; os
seus costumes familiares foram idênticos aos nossos durante toda a
Idade Média, e, contrariamente ao que se passou entre nós, manti­
veram-nos; é isso sem dúvida que explica a sua prodigiosa expansão
através do mundo. Vagas de exploradores, de pioneiros, de comer­
ciantes, de aventureiros e de temerários deixando as suas casas a fim
de tentarem a sorte, sem por isso esquecerem a terra natal eas tradi­
ções dos pais, eis o que funda um império.
Os países germânicos, que nos forneceram em grande parte os
costumes que a nossa Idade Média adoptou, cedo se impuseram
o direito romano. Os seus imperadores estavam em situação de reto­
mar as tradições do Império do Ocidente e julgavam que, para unificar
as vastas regiões que lhes estavam submetidas, o direito romano lhes
fornecia um excelente instrumento de centralização. Foi aí, portanto,

(9) E stas fo rm u la s vêm -nos de Roger G rand, professor na Ecole


des C h artes.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 25

desde muito cedo posto em prática e desde o fim do século x iv cons­


tituía definitivamente a lei comum do Santo Império, enquanto em
França, por exemplo, a primeira cadeira de Direito Romano só foi
instituída na Universidade de Paris em 1679. Por isso a expansão
germânica foi mais militar que étnica.
A França foi sobretudo modelada pelo direito consuetudinário;
é certo que temos o hábito de designar o Sul do Loire e o vale do
Reno como «regiões de direito escrito», isto é de direito romano,
mas isso significa que os costumes destas províncias se inspiraram
na lei romana, não que o Código Justiniano tenha aí vigorado. Durante
toda a Idade Média, a França manteve intactos os seus costumes
familiares, as suas tradições domésticas. Somente a partir do século
XVT as nossas instituições, sob a influência dos legistas, evoluem num
sentido cada vez mais «latino». É uma transformação que se opera
lentamente e que se começa a notar em pequenas modificações: é
dada a maioridade aos vinte e cinco anos, como na Roma antiga,
onde, encontrando-se o filho em perpétua menoridade em relação ao
pai, não havia inconveniente em que fosse proclamada bastante tarde.
Ao casamento, considerado até então como um sacramento, como a
adesão de duas vontades livres para a realização do seu fim, vem
acrescentar-se a noção do contrato, do acordo puramente humano,
tendo como base estipulações materiais. A família francesa modela-se
sobre um tipo estatista que ainda não tinha conhecido, e, ao mesmo
tempo que o pai de família concentra rapidamente nas suas mãos
todo o poder familiar, o Estado encaminha-se para a monarquia
absoluta . A de peito das aparências, a Revolução foi não um ponto
de partida mas um ponto de chegada: o resultado de uma evolução
de dois a três séculos; ela representa o apagamento nos nossos costu­
mes da lei romana á custa do direito consuetudinário; Napoleão não
fez senão acabar a obra, instituindo o Código Civil e organizando o
exército, o ensino, toda a nação, sobre o ideal funcionarista da Roma
antiga.
Podemos, aliás, perguntar se o direito romano, quaisquer que
sejam os seus méritos, convinha às características da nossa raça, à
natureza da nossa terra. Esse conjunto de leis, foijadas com todos os
elementos por militares e por legistas, essa criação doutrinal, teórica,
rígida, poderia substituir sem inconvenientes os nossos costumes elabo­
rados pela experiência de gerações, lentamente moldados à medida

Ki M u i t o c a r a c t e r í s t i c a a e s t e n í v e l é a e v o l u ç ã o do d i r e i t o de p r o ­
p r i e d a d e , q u e se t o r n a r a d a v e z m a i s a b s o l u t o e i n d i v i d u a l . O s ú l t i m o s
t r a ç o s de p r o p r i e d a d e c o l e c t i v a d e s a p a r e c e r a m no s é c u lo XIX c o m a
a b o l i ç ã o d os d i r e i t o s c o m u n a i s e de t e r r a s b a l d i a s .
26 RÉ G IE PERNO

das nossas necessidades? — os nossos costum es que nunca foram m ais


que os nossos próprios hábitos constatados e form ulados juridicam ente,
os usos de cada indivíduo ou, m elhor ainda, do grupo de que cada um
fazia parte. O direito rom ano tinha sido concebido po r um E stado
u rbano, não p o r um a região rural. F alar da A ntiguidade é evocar
R om a ou B izâncio; p ara fazer reviver a F ran ça m edieval é preciso
evocar não Paris, m as a Ilha de França, não B ordéus, m as a Guiana,
não R u ão , m as a N orm andia; não podem os concebê-la senão nas suas
províncias de solo fecundo em belo trigo e em bom vinho. É um
facto significativo ver durante a R evolução aquele a quem se cham ava
o m a n a n t (aquele que fica) tom ar-se o cidadão: em «cidadão» há «cida­
de». O que se com preende, já que a cidade iria deter o poder político,
portanto o poder principal, porque, tendo deixado de existir o cos­
tum e, tudo deveria a partir daí depender da lei. As novas divisões
adm inistrativas de F rança, os departam entos que giram todos à volta
de um a cidade, sem ter em conta a qualidade do solo dos cam pos
que a ela se ligam, m anifestam bem esta evolução de estado de espírito.
A vida fam iliar estava nessa época suficientemente enfraquecida p ara
que possam estabelecer-se instituições tais como o divórcio, a aliena-
bilidade do patrim ónio ou as leis m odernas sobre as sucessões. As
liberdades privadas de que antes se tinha sido tão cioso desapareciam
perante a concepção de um E stado centralizado à m aneira rom ana.
Talvez devêssem os p ro curar aí a origem de problem as que depois se
puseram com tanta acuidade: problem as da infância, da educação,
da família, da natalidade — que não existiam na Idade M édia, porque
a fam ília era então um a realidade, porque possuía a base m aterial
e m oral e as liberdades necessárias à sua existência.
CAPÍTULO II

O VÍNCULO FEUDAL

Pode-se dizer da sociedade actual que está fundada sobre o


salariado. N o plano económ ico, as relações de hom em p ara hom em
ligam-se às relações do capital e do trabalho: realizar um determ inado
trabalho, receber em troca um a determ inada som a, tal é o esquem a
das relações sociais. O dinheiro é o seu nervo essencial, já que, salvo
raras excepções, um a actividade determ inada se transform a p rim eiro
em num erário antes de m u d ar de novo p a ra quaisquer dos objectos
necessários à vida.
P ara com preender a Idade M édia, tem os de nos representar um a
sociedade que vive de um m odo totalm ente diferente, donde a noção
de trabalho assalariado e m esm o em parte a de dinheiro estão ausentes
ou são m uito secundárias. O fundam ento das relações de hom em p ara
hom em é a dupla noção de fidelidade, por um lado, e de protecção,
p o r outro. A ssegura-se devoção a qualquer p es;o a e espera-se dela
em troca segurança. C om prom ete-se, não a actividade em função
de um trabalho preciso, de rem uneração fixa, m as a pró p ria pessoa,
ou m elhor, a sua fé, e em tro ca requere-se subsistência e protecção,
em todos os sentidos da palavra. Tal é a essência do vínculo feudal.
E sta característica da sociedade m edieval explica-se ao considerar­
m os as circunstâncias que presidiram à sua form ação. A origem encon­
tra-se nessa E u ro p a caótica do século v ao século v iu . O Im pério R o ­
m ano desm oronava-se sob o duplo efeito da decom posição interior e da
pressão das invasões. Tudo em R om a dependia da força do poder
central; a p artir do m om ento em que esse po d er foi ultrapassado, a
ruína era inevitável; nem a cisão em dois im périos nem os esforços
de recuperação provisória poderiam travá-la. N ada de sólido subsiste
nesse m undo em que as forças vivas foram pouco a pouco esgotadas
por um funcionalism o sufocante, onde o fisco oprim e os pequenos
proprietários, que em breve não têm outro recurso senão ceder as
suas terras ao E stado para pagar os im postos, onde o povo abandona
os cam pos e apela voluntariam ente, p ara o trabalho dos cam pos, a
esses mesmos b árbaros que dificilm ente são contidos nas fronteiras;
28 REGI NE PERNO

é assim que, no E stado da Gália, os Borgonheses se instalam na


região S abóia-Franco-C ondado e se tom am os rendeiros dos p ro p rie­
tários galo-rom anos, cujo domicílio partilham . Sucessivamente, pacifi­
cam ente ou pela espada, as hordas germânicas ou nórdicas assom am
no m undo ocidental; R om a é tom ada e retom ada pelos B árbaros,
os im peradores são eleitos e destituídos conform e o capricho dos
soldados, a E u ro p a não é m ais que um vasto cam po de b atalha onde
se enfrentam as arm as, as raças e as religiões.
Como poderá alguém defender-se num a época em que a agitação
e a instabilidade são a única lei? O E stado está distante e im potente,
senão inexistente; cada um move-se por isso naturalm ente em direcção
à única força que perm aneceu realm ente sólida e próxim a: os grandes
proprietários fundiários, aqueles que podem assegurar a defesa do
seu dom ínio e dos seus rendeiros; fracos e pequenos recorrem a eles;
confiam-lhes a sua terra e a sua pessoa, com a condição de se verem
protegidos contra os excessos fiscais e as incursões estrangeiras. Por
um m ovim ento que se tinha esboçado a p artir do Baixo Im pério e não
tinha parado de se acentuar nos séculos VII e VIII, o poderio dos
grandes proprietários aum enta com a fraqueza do poder central. C ada
vez m ais se p rocura a protecção do «senhor» (sénior), a única activa
e eficaz, que protegerá não só da guerra e da fome, m as tam bém
da ingerência dos funcionários reais. Assim se m ultiplicam as cartas
de vassalagem , pelas quais a arraia-m iúda se liga a um «senhor» p ara
assegurar a sua segurança pessoal. Os reis m erovíngios tinham , aliás,
o hábito de se cercarem de um a corte de «fiéis» (fidèles), de hom ens
devotados à sua pessoa, guerreiros ou outros, o que levará os p o d e­
rosos da época a agruparem à sua volta, por im itação, os «vassalos»
(vassi), que julgaram bom recom endarem -se a eles. Enfim , estes reis,
eles p ró p rio :, ajudaram m uitas vezes à form ação do poder dom inial,
distribuindo terras aos seus funcionários — cada vez m ais desprovidos
de autoridade face aos grandes proprietários — para retribuir os seus
serviços.
Quando os Carolíngios chegaram ao poder, a evolução estava
quase term inada: em toda a extensão do território, senhores, m ais ou
m enos poderosos, agrupando à sua volta os seus hom ens, os seus
fiéis, adm inistravam os feudos, m ais ou m enos extensos; sob a pressão
dos acontecim entos, o po d er central tinha dado lugar ao poder local,
que tinha absorvido, pacificam ente, a pequena prop ried ad e e perm a­
necia, afinal de contas, a única força organizada; a hierarquia m edie­
val, resultado dos factos económ icos e sociais, tinha-se form ado a
p artir de si própria, e os seus u?os, nascidos sob a pressão das circuns­
tâncias, m anter-se-iam pela tradição.
Não tentaram lutar contra o estado dos acontecim entos: a dinastia
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 29

de Pepino tin h a de resto chegado ao p o d er p o rque os seus rep resen ­


tantes se contavam entre os m ais fortes proprietários da época. Con-
tentaram -se em canalizar as forças em presença das quais faziam
p arte e em aceitar a hierarquia feudal tirando dela o p artid o que
podiam tirar. Tal é a origem do estado social da Idade M édia, cujas
características são com pletam ente diferentes das que se conheceram
até aí: a autoridade, em lugar de estar concentrada num só ponto
— indivíduo ou organism o — , encontra-se rep artid a pelo conjunto
do território. Foi essa a grande sabedoria dos Carolíngios, não ten ­
tarem ter n as m ãos toda a m áquina adm inistrativa, m antendo a o rg a­
nização em pírica que tinham encontrado. A sua autoridade im ediata
não se estendia senão a um pequeno núm ero de personagens, que
possuíam elas próprias autoridade sobre outros, e assim de seguida
até às cam adas sociais m ais hum ildes; m as, degrau a degrau, um a
ordem do p o d er central podia assim transm itir-se ao conjunto do
país; aquilo que não controlavam d irectam ente podia todavia ser
atingido indirectam ente. Em lugar de com batê-la, pois, C arlos M agno
contentou-se em disciplinar a hierarquia que deveria im pregnar tão
fortem ente os hábitos franceses; reconhecendo a legitim idade do duplo
ju ram e n to que todo o hom em livre devia a si próprio e ao seu senhor,
ele consagrou a existência do vínculo feudal. Tal é a origem da socie­
dade m edieval, e tam bém a da nobreza, fundiária e não m ilitar, com o
se julgou dem asiadas vezes.
D esta form ação em pírica, m odelada pelos factos, pelas necessi­
dades sociais e e c o n ó m ic a s7, decorre um a extrem a diversidade na
condição das pessoas e dos bens, já que a n atu reza dos com prom issos
que uniam o proprietário ao seu rendeiro variava segundo as circuns­
tâncias, a natureza do solo e o m odo de vida dos habitantes; toda a
espécie de factores entram em jogo, os quais diferem de um a província
p ara a outra, ou m esm o de um dom ínio p ara o outro, as relações
e a hierarquia; m as o que perm anece estável é a obrigação recíproca:
fidelidade p o r um lado, protecção pelo outro — p o r outras palavras:
o vínculo feudal.
D urante a m aior p arte da Idade M édia, a principal característica
deste vínculo é ser pessoal: um determ inado vassalo, preciso e deter­
m inado, recom enda-se a um determ inado senhor, igualm ente preciso
c determ inado; decide vincular-se a ele, ju ra-lh e fidelidade e espera
cm troca subsistência m aterial e protecção m oral. Q uando R oland
m orre, evoca «C arlos, seu senhor que o alim entou», e esta simples
evocação diz bastante da natureza do vínculo que os une. Somente a

' Citemos a excelen te fó rm u la de H en ri P o u r r a i : «O sis tem a feudal


foi a o rg an iz aç ão viva Im po sta pela t e r r a aos h o m en s da terr a» (L'homm e
á Ia bêche H is to r ie du p a ysa n , p. 8 3).
30 R ÉG IE PERNO

p artir do século x iv o vínculo se tornará m ais real que pessoal; ligar-se-á


á posse de u m a p ro p ried ade e decorrerá das obrigações fundiárias que
existem entre o senhor e os seus vassalos, cujas relações se assem e­
lharão desde então m uito m ais às de um prop rietário com os seus
locatários; é a condição da terra que fixa a condição da pessoa. M as
p ara todo o período medieval propriam ente dito, os vínculos criam -se
de indivíduo p ara indivíduo. N íc h íl e st p r e te r índívíduum , dizia-se,
«nada existe fora do indivíduo»: o gosto de tudo o que é pessoal e
preciso, o h o rro r da abstracção e do anonim ato são de resto carac­
terísticas da época.
Este vínculo pessoal que liga o vassalo ao suserano é proclam ado
no decorrer de um a cerim ónia em que se afirma o form alism o, caro
à Idade M édia: po rq u e qualquer obrigação, transacção, ou acordo
devem então traduzir-se p o r um gesto simbólico, form a visível e indis­
pensável do assentim ento interior. Q uando, p o r exem plo, se vende
um terreno, o que constitui o acto de venda é a entrega pelo vendedor
ao novo pro p rietário de um pouco de p alha ou de um torrão de terra
proveniente do seu cam po; se a seguir se faz um a escritura — o que
nem sem pre tem lu g ar— , não servirá senão p ara m em ória: o acto
essencial é a íradítío, com o nos nossos dias é o aperto de m ão em
alguns m ercados. «Entregar-lhe-ei», diz o M é n a g íe r de Paris, «um
pouco de p alha ou um velho prego ou um a pedra que m e foram
entregues com o sinal de um grande acontecim ento» (quer dizer, como
sinal de um a transacção im portante). A Idade M édia é um a época
em que triunfa o rito, em que tudo o que se realiza na consciência
deve p assar obrigatoriam ente a acto; o que satisfaz um a neces-idade
profundam ente hum ana: a do sinal corporal, à falta do qual a reali­
dade fica im perfeita, inacabada, fraca.
O vassalo presta «fidelidade e hom enagem » ao seu senhor: fica
na sua frente, de joelhos, de cinturão desfeito, e coloca a mão na
dele. G estos que significam o abandono, a confiança, a fidelidade.
D eclara-se seu vassalo e confirm a-lhe a dedicação da sua pessoa. Em
troca, e p ara selar o pacto que doravante os liga, o suserano beija
o vassalo na boca. E ste gesto im plica m ais e m elhor que um a p ro tec­
ção geral: é um laço de afeição pessoal que deve reger as relações
entre os dois homens.
Segue-se a cerim ónia do ju ram en to , cuja im portância não é de
m ais sublinhar. É preciso entender ju ram en to no seu sentido etim o­
lógico: sacram entum , coisa sagrada. Jura-se sobre os Evangelhos,
realizando assim um acto sagrado, que com prom ete não só a honra,
m as a fé, a pessoa inteira. O valor do ju ram en to é então tal, e o p er­
jú rio de tal form a m onstruoso, que não se hesita em m anter a palavra
dada em circunstâncias extrem am ente graves, por exemplo p ara teste­
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 31

m u nhar d as últim as vontades de um m oribundo, com o testem unho


de um a ou duas pessoas. R enegar um ju ram en to representa na m en ­
talidade m edieval a p io r das desonras. U m a passagem de Joinville
m anifesta de m aneira m uito significativa que é um exces_o p o r que
um cavaleiro não pode decidir-se, m esm o que a sua vida esteja em
jogo: quando do seu cativeiro, os drogom anos do sultão do E gipto
vêm oferecer-lhe a libertação, a ele e aos com panheiros: «Daria, p er­
guntaram , p ara a sua libertação, algum dos castelos que pertencem
aos barões de além -m ar? O conde respondeu que não tinha poder,
porque eles pertenciam ao im perador da A lem anha que então estava
vivo. P erguntaram se entregaríam os algum dos castelos do Tem plo
ou do H ospital p ara a nossa libertação. E o conde respondeu que não
podia ser: que quando aí se nom eava um castelão, faziam -no ju ra r
pelos santos que não entregaria castelo algum p ara libertação de corpo
de homem. E eles responderam -nos que lhes parecia que não tínham os
talento p a ra nos libertarm os e que se iriam em bora e nos enviariam
aqueles que nos lançariam espadas, como tinham feito aos o u tro s2.»
A cerim ónia com pleta-se com a investidura solene do feudo, feita
pelo senhor ao vassalo: confirm a-lhe a posse desse feudo p o r um
gesto de tradítío, entregando-lhe geralm ente um a vara ou um bastonete,
símbolo do poder que deve exercer no dom ínio que tem des e senhor:
é a investidura cum báculo vel vírga, p ara em pregar os term os ju rí­
dicos em uso na época.
D este cerim onial, das tradições que ele supõe, decorre a elevada
concepção que a Idade M édia fazia da dignidade pessoal. N enhum a
época esteve m ais p ronta para afastar as abstracções, os princípios,
p ara se entregar unicam ente às convenções de hom em p ara hom em ;
tam bém nenhum a fez apelo a m ais elevados sentim entos com o base
dessas convenções. E ra p restar um a magnífica hom enagem à pessoa
hum ana. Conceber um a sociedade fundada sobre a fidelidade recí­
proca era indubitavelm ente audacioso; como se pode esperar, houve
abusos, faltas; as lutas dos reis contra os vassalos recalcitrantes são
a prova disso. R esta dizer que durante m ais de cinco séculos a fé e
a honra perm anecem a base essencial, a arm adura das relações sociais.
Quando a estas se substituiu o princípio de autoridade, no século x v i
c sobretudo no século XVII, não se pode pretender que a sociedade
tenha ganho com isso; em qualquer dos casos, a nobreza, já enfra­
quecida por ou tras razões, perdeu a sua força m oral essencial.
D urante toda a Idade M édia, sem esquecer a sua origem fundiária,
dom inial, essa nobreza teve um m odo de viver sobretudo m ilitar; é
(|iie efectivam ente o seu dever de protecção com portava em prim eiro

(2) a isto é que os massacrariam, como aos o utros.


32 REGI NE PERNO

lugar um a função guerreira: defender o seu dom ínio contra as possí­


veis usurpações; de resto, em bora se esforçassem p o r reduzi-lo, o
direito de guerra privada subsistia e a solidariedade fam iliar podia
im plicar a obrigação de vingar pelas armas as injúrias feitas a um
dos seus. U m a questão de ordem m aterial se lhe acrescentava: os
senhores, detendo a principal, senão a única fonte de riqueza, a terra,
eram os únicos a ter a possibilidade de equipar um cavalo de guerra
e de arm ar escudeiros e sargentos. O serviço m ilitar será portanto
inseparável do serviço do feudo, e a fé p restad a pelo vassalo nobre
supõe o contributo das suas arm as sempre que «disso for m ester».
É o prim eiro cargo da nobreza, e um dos m ais onerosos, essa
obrigação de defender o dom ínio e os seus habitantes.

L e p é e dit: C est m a ju s tic e 3


G arder le s deres de S aint E glise*
E t ceu x p a r qui viandes e st q u ís e 5.

As praças-fortes m ais antigas, aquelas que foram construídas nas


épocas de perturbação e de invasões, m ostram a m arca visível dessa
necessidade: a aldeia, as casas dos servos e dos cam poneses, estão
ligadas às encostas da fortaleza, onde toda a população irá refugiar-se
em altura de perigo e onde encontrará ajuda e abastecim ento em caso
de cerco.
D as suas obrigações m ilitares decorre a m aior parte dos hábitos
da nobreza. O direito de m orgadio vem em p arte da necessidade de
confiar ao mais forte a herança que ele deve garantir, m uitas vezes
pela espada. A lei de m asculinidade explica-se tam bém dessa forma:
só um hom em pode assegurar a defesa de um torreão. P or isso tam ­
bém , quando um feudo «cai em roca», quando um a m ulher é a única
herdeira, o suserano, sobre o qual recai a responsabilidade desse
feudo que ficou assim em estado de inferioridade, sente-se no dever
de casá-la. É p o r isso que a m ulher não sucederá senão após os
filhos m ais novos, e estes após o m ais velho; só receberão apanágios;
p o r isso os desastres que tiveram lugar no fim da Idade M édia
tiveram como origem os apanágios excessivam ente im portantes dei­
xados p o r Jo ão, o Bom , aos filhos, cujo poder se tornou para eles
um a tentação perpétua, e p ara todos um a fonte de desordens, durante
a m enoridade de C arlos VI.

(3) Ofício.
(4) A qu eles que se o cu p am da alim e n t aç ão , da v id a m a te r ia l (os
cam p o n e ses ). P o e m a de Carité, de R eclu s de Molliens.
(5) A espada disse: é m e u dever/M a n ter os clérigos da Santa Ig r e ja /
e aqu eles p a ra quem os a lim en to s sã o obtidos.
L UZ SO B R E A ID A D E M EDIA 33

Os nobres têm igualm ente o dever de adm inistrar a ju stiça aos


seus vassalos de qualquer condição e de adm inistrar o feudo. T rata-se
do exercício de um dever, e não de um direito, que im plica respon­
sabilidades m uito pesadas, já que cada senhor deve dar conta do
seu dom ínio não só à sua linhagem , m as tam bém ao seu suserano.
É tienne de Fougères descreve a vida do senhor de um grande dom ínio
com o cheia de preocupações e de fadigas:

Cà e t là va, so u ve n t se tourne,
N e repose n i n e séjorne:
C hâteau abord, château aourne,
Souvent haitié, p lu s so u ve n t m ourne.
Cà e t là va, p a s n e repose
Que sa m arche n e so ít d é c lo s e 6.

L onge de ser ilim itado, como de um a m aneira geral se julgou,


o seu pod er é bem m enor que, nos nossos dias, o de um chefe de
indústria ou um qualquer pro p rietário , já que nunca tem a pro p ried ad e
absoluta dos seus dom ínios, depende sem pre de um suserano, e, no
fim de contas, os suseranos m ais poderosos dependem do rei. N os
nossos dias, de acordo com a concepção rom ana, o pagam ento de
u m a terra confere pleno direito sobre ela. N a Id ad e M édia não é
assim: em caso de m á adm inistração, o senhor sofre penalizações
que podem ir até à confiscação dos seus bens. D este m odo, ninguém
governa com autoridade total nem escapa ao controlo directo daquele
de quem depende. E sta repartição da p ro pried ad e e da autoridade
é um dos traços m ais característicos da sociedade medieval.
As obrigações que ligam o vassalo ao seu senhor im plicam de
resto reciprocidade: «O senhor deve tanto fé e lealdade ao seu
hom em como o hom em ao seu senhor», diz Beaum anoir. E sta noção
de dever recíproco, de serviço m útuo, encontra-se m uitas vezes tanto
nos textos literários com o jurídicos:

G raigneur j a i t a sire à son hom m e


Que Vhomm e à son seig n eu r e t d o m e 1

observa É tienne de F ougères, já citado no seu L iv re des M anières


[Livro das Maneiras]', e P hilippe de N ovare nota, a apoiar esta

(6) A n d a de cá p a ra lá e m u ita s vezes m uda de direcção/N ão repousa


n vm se detém './C astelo dentro, castelo fo ra ,/M u ita s vezes alegre, m a is
vezes trixte./A nda de cá p a ra lá, n ã o repou sa /S en ã o quando o seu
cam inho está aberto.
(7) O senhor deve mais rec o n h ecim en to ao seu v assalo , que ele p r ó ­
prio devo dev e ao senhor.
R É G IE P ERN OU D
34

constatação: «A queles que recebem serviço e nunca o recom pensam


bebem o suor dos seus servos, que é veneno m ortal p ara o corpo
e p ara a alma.» D onde tam bém a m áxim a: «Para bem servir convém
bom ter.» (A B ien serv ir convient E u f A voir.)
Como é de justiça, exige-se da nobreza m ais dignidade e rectidão
m oral que dos outros m em bros da sociedade. Por um a m esm a falta,
a pena infligida a um nobre será muito superior à que é destinada
a um plebeu. B eaum anoir cita um delito p a ra o qual «pena de cam ­
ponês é de sessenta soldos e de nobre de sessenta libras» — o que
constitui um a desproporção m uito grande: de 1 para 20. Segundo os
E tablissem ents d e Saint-L ouis, um a determ inada falta pela qual
um hom em ordinário, isto é, um plebeu, pagará cinquenta soldos de
pena, im plicará p ara um nobre a confiscação de todos os seus bens
móveis. O que se encontra tam bém nos estatutos de diferentes cida­
des; os de P am iere fixam do seguinte m odo a tarifa das penas em
caso de roubo: vinte libras p ara o barão, dez p ara o cavaleiro, cem
soldos para o burguês, vinte soldos p ara o vilão.
A nobreza é h ereditária, m as pode tam bém ser adquirida, quer
por retribuição de serviços prestados, quer, m uito sim plesm ente, pela
aquisição de um feudo nobre. Foi o que aconteceu em grande escala
no fim do século x in : num erosos foram os nobres m ortos ou arrui­
nados nas grandes expedições do Oriente, e vêem-se famílias de bur-
gue:es que enriqueceram , atingir em m assa a nobreza, o que provocou
no seu seio um a reacção. A cavalaria enobrece de igual m odo aquele
a quem é conferida. Finalm ente, houve, em sequência dos factos,
cartas de nobreza distribuídas, é certo, m uito p arcim oniosam ente-9
Se a condição de nobreza pode adquirir-se, pode igualm ente
perder-se, p o r prescrição, em consequência de um a condenação infa-
m ante.
A vergonha de um a h o ra do dia,
A paga com pletam ente a h o n ra de quarenta anos,

dizia-se. E la perde-se ainda p o r infracção quando um nobre é suposto


ter exercido um ofício plebeu ou um tráfego qualquer: é-lhe interdito
com efeito sair do papel que lhe é entregue, e não deve tam bém p ro ­

(8) T erm o que correspon de a recom p ensa, com um sentido m a is alar­


gado: felicidade, bem -estar.
(9) O A n tig o Regime teve ten d ên cia p ar a impedir cad a vez m ais
o acesso à nobreza, o que contribuiu p ar a fazer dela u m a cast a fechada,
que isolava o rei dos seus súbdidtos. Em In g la te rra , as n u m ero sas
no bilitações deram pelo co n trário ex celentes resultad os, reno v an do a
ari st ro c ra ci a com a aju d a de elementos novosi fazendo dela u m a classe
ab e rta e vigorosa.
L U Z SO B R E A ID A D E M EDIA 35

cu rar enriquecer, assum indo cargos que o fariam negligenciar aqueles


aos quais a sua vida deve ser votada. E xceptua-se de resto dos ofícios
plebeus aqueles que, necessitando de recursos im portantes, não p o ­
deriam de todo ser realizados senão p o r nobres: p o r exem plo, a
vidraria ou a m estria de forjas; do m esm o m odo o tráfego m arítim o
é perm itido aos nobres porque exige, p ara lá dos capitais, um espí­
rito de aventura que ninguém ousaria entravar. No século XVII,
Colbert alargará no m esmo sentido o cam po de actividade económ ica
da nobreza, p ara dar m ais im pulso ao com ércio e à indústria.
A no b reza é um a classe privilegiada. Os seus privilégios são
em prim eiro lugar honoríficos: direitos de presidência, etc. A lguns
decorrem dos cargos que desem penha: assim, só o nobre tem direito
à espora, ao cinturão e à bandeira, o que lem bra que na origem só
os nobres tinham o direito de equipar um cavalo de guerra. A par
disso, desfruta de certas isenções, as m esm as de que desfrutavam
prim itivam ente todos os hom ens livres; exem plo disto é a isenção
da ta lh a 1(1 e de certos im postos indirectos, cuja im portância, nula
na Idade M édia, não p arou de crescer no século x v i e sobretudo
no século X V II .
Finalm ente, a nobreza possui direitos precisos, e esses substan­
ciais: encontram -se neste núm ero todos os que decorrem do direito de
p ropriedade: direito de cobrar censos, direito de caça e outros. Os
censos e rendas pagos pelos cam poneses não são o utra coisa senão
o aluguer da terra onde tiveram perm issão de se instalarem , ou que
os seus antepassados julg aram p o r bem ab an d o n ar a um proprietário
m ais poderoso que eles próprios. Os nobres, ao cobrar os censos,
estavam exactam ente na situação de um proprietário de imóveis
cobrando os seus alugueres. A origem longínqua deste direito de
pro p riedad e apagou-se pouco a pouco e, na época da R evolução, o
cam ponês acabou p o r se to rn a r legítim o proprietário de um a terra
da qual era locatário desde há séculos. A conteceu o m esm o a esse
famoso direito de caça, que se quis representar como um dos abusos
m ais gritantes de um a época de terro r e de tirania: que haverá mais
legítim o, p ara um hom em que aluga um terreno a outro, que reser-
v a r s e o direito de caçar nele? " P roprietário e rendeiro sabem am bos
ao que se obrigam no m om ento em que acordam as suas obrigações

(10) im p o sto directo. P a g o pelos camp on eses em F ra n ça até ao fim


do A n tigo Regime, 1789. Em. P o rtu g al co rrespo n de este imposto à
«julgada». (N. da R.)
(11) A in da assim 6 preciso estabelecer u m a d istinção entre as épocas:
o direito de caça .só foi reserv ado , e isto ap e n as p ar a a caça grossa,
tardiamente',p or volta do século XIV. A s interdições fo rm ais só aparecem
no século XVI Qu an to à pesca, permaneceu livre p ar a todos.
R É G IN E PERNOUD
36

recíprocas, é o essencial; o senhor não deixa de estar nas suas terras


quando caça perto da habitação de um cam ponês; que alguns de entre
eles tenham abusado desse direito e «e pisado com o casco dos
cavalos as ceifas douradas do cam ponês», p ara nos exprim irm os como
os m anuais de ensino p rim ário, é coisa possível ainda que inverificável,
m as concebe-se com dificuldade porquê o teriam feito sistem ati­
cam ente, já que um a boa parte das rendas consistia num a quota-parte
da colheita; o senhor estava portanto directam ente interessado em
que esta colheita fosse abundante. A questão é a m esm a p ara as
«banalidades»; o forno e o lagar senhorial estão na origem das com o­
didades oferecidas ao cam ponês, em troca das quais é norm al receber
um a retribuição — exactam ente como hoje, em certas com unas
aluga-se ao cam ponês a m áquina de debulhar ou outros instrum entos
agrícolas.
E stá contudo fora de dúvida que pouco a pouco, p o r volta do
fim da Idade M édia, os encargos da nobreza dim inuíram sem que
p o r isso os privilégios tivessem sido reduzidos e que no século XVII,
por exem plo, era flagrante a desproporção entre os direitos — mesmo
leg ítim o s— de que ela desfrutava e os deveres insignificantes que lhe
incum biam . O grande m al foi os nobres se terem desligado das suas
terras e não terem sabido ad aptar os seus privilégios às novas condi­
ções de existência; desde o m om ento em que o serviço de um feudo,
nom eadam ente a sua defesa, deixou de ser um encargo oneroso, os
privilégios da nobreza ficaram sem objecto. Foi isso que fez a deca­
dência da nossa aristocracia, decadência m oral que seria seguida
de um a decadência m aterial, bem m erecida. A nobreza é directam ente
responsável pelo m al-entendido, que irá aum entando, entre o povo
e a realeza; to rn ad a inútil e m uitas vezes prejudicial ao trono (foi
entre a nobreza, e graças a ela, que se espalhou a doutrina dos enci­
clopedistas, a irreligião voltaireana e as divulgações de um Jean-
Jacques), ela contribuiu grandem ente p ara conduzir L uís X V I ao
cadafalso e C arlos X ao exílio; é justo que ela os tenha seguido,
a um e a outro. M as podem os pensar que ainda assim foi um a pesada
perda p ara o nosso país; um país sem aristocracia é um país sem
ossatura, com o sem tradições, pronto p ara to d as as vacilações e p ara
todos os erros.
C A P ÍT U L O IH

A VIDA RURAL

N a divisão um pouco sum ária que m uitas vezes foi feita da


sociedade m edieval, só há lugar p ara os senhores e p ara os servos:
de um lado a tirania, o arbitrário e os abusos de poder, do outro
os m iseráveis, sujeitos aos im postos e aos dias de trabalho g ra tu ito 1
à discrição; tal é a ideia que evo cam — e não apenas nos m anuais
de história p ara uso das escolas p rim á ria s — as palavras «nobreza»
e «terceiro estado». O simples bom senso basta no entanto para
dificilm ente adm itir que os descendentes dos terríveis G auleses,
dos soldados rom anos, dos guerreiros da G erm ânia e dos fogosos
E scandinavos se tenham reduzido d u ran te séculos a um a vida de
anim ais encurralados. M as há lendas tenazes; o desdém pelos «sé"
culos obscuros» data aliás de antes de Boileau.
N a realidade, o terceiro estado com porta um a série de condições
interm ediárias entre a liberdade absoluta e a servidão. N ad a de mais
diverso e de m ais desconcertante que a sociedade m edieval e as
propriedades rurais da época: a sua origem absolutam ente em pírica
dá conta dessa prodigiosa variedade na condição das pessoas e dos
bens. P ara d ar um exem plo, na Idade M édia, ainda que o em par­
celam ento do dom ínio represente a concepção geral do direito de
propriedade, existe no entanto aquilo que o nosso tem po já não conhece
de todo: a terra possuída em franca propriedade, o alódio (alleu)
ou alódio livre (franc-alleu) isento de todos os direitos e im posições
de qualquer espécie que seja; isto m anteve-se até à R evolução, em
que, qualquer terra declarada livre, os alódios deixaram de facto
de existir, já que tudo foi subm etido ao controlo e às im posições do
Estado. N otem os ainda que na Idade M édia, quando um cam ponês se
instala num a terra e nela exerce a sua arte durante o tem po da
prescrição, ano o dia, isto é, o tem po de p erco rrer o ciclo com pleto

1 Taillables e co rv é a b le s — o a u t o r refere-se à sujeição dos cam-


pnncwH a dois Im p o sto s: a b ilh a e a co rveia — t r a b a l h o g r a t u i t o — , que
entre nós, no p eríodo medieval, se d es ig n a por ANÚEUVA (N. do R.)
RÉG IE PERNO
38

dos trabalhos dos cam pos, desde a lavragem até à colheita, sem ser
p erturbado, é considerado o único proprietário dessa te r r a .2
Isto dá ideia do núm ero infinito de m odalidades que podem os
e n c o n tra r8. H óspedes, colonos, lhes, servos são term o s que designam
condições pessoais diferentes. E a condição das terras apresenta um a
variedade ainda m a io r4: censo, renda, cham part, fazenda, pro p rie­
dade en bordelage, en m arche, en queuaise, à complan, en collonge;
conform e as épocas e as regiões, encontram os um a infinidade de
acepções diferentes na posse da terra com um único ponto comum:
é que, salvo o caso especial do alódio livre, há sem pre vários p ro ­
prietários, ou pelo m enos vários, a ter direito sobre um mesmo
dom ínio. Tudo depende do costum e, e o costum e adapta-se a todas
as variedades de terrenos, de clim as e de tradições — o que de resto
é lógico, já que não se poderia exigir daqueles que vivem num solo
po bre as obrigações que podem ser im postas, por exem plo, aos cam ­
poneses da Beócia ou da Touraine. De facto, eruditos e historiadores
tentam ainda analisar um a das m atérias m ais com plexas que foi
oferecida à sua sagacidade: há abundância e diversidade de costum es;
há em cada um a delas um a infinidade de diferentes condições, desde
a do arroteador, que se instala num a terra nova e ao qual se pedirá
apenas um a fraca p arte das colheitas, até ao cultivador estabelecido
num a terra em plena produção e sujeito aos censos e rendas anuais;
há os erros sem pre possíveis provenientes das confusões de term os,
já que estes cobrem p o r vezes realidades com pletam ente diferentes
conform e as regiões e as épocas; há finalm ente o facto de a sociedade
m edieval estar em p erpétua evolução, e aquilo que é verdade no
século X II já não o é no século XIV.
O que se pode todavia saber com segurança, é que houve na
Idade M édia, p ara lá da nobreza, um conjunto de hom ens livres
que prestavam aos seus senhores um ju ram en to m ais ou m enos sem e­
lhante ao dos vassalos nobres e um conjunto não m enos grande de
indivíduos de condição um pouco im precisa entre a liberdade e a

(2) E m P o rt u g a l, este tip o de cam p o n eses liv res ch am av am -s e «her-


dadores» e « en fiteutas» . (N. do R J
» N o P o r t u g a l medieval, e segu ndo D am i ão P er es , e n c o n t r am o s a
p a r t i r de u m a h ie ra rq u i a as ce n d en tes : ad s cr ito s à gleba, colonos livres,
h e rd ad o res e enfiteu tas. (N. do R J
* E n t r e nos, as p ro p ried ad e s, seg und o a su a posse, p o dem ser:
• T er r as s e n h o r i a i s — p e r te n c e n te s às classes nobres.
• R e g u en g o s — p e r te n c e n te s ao rei.
• Elerdades — dos h o m en s livres, plebeus.
• T e r r a s fo reiras — de ca m p o n es es livres a q uem p a g a r a m
o foro ao seu senhor. (N. do R J
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 39

servidão. 0 ju rista B eaum anoir distingue nitidam ente três estados:


«Nem todos os francos são n o b re s ... P orque cham am -se nobres
aqueles que provêm de linhagens francas, com o o rei, duques, condes
ou cavaleiros; e esta nobreza é sem pre transm itida pelos pais [...] M as
não acontece o m esm o p ara o hom em livre (poosté) , porque o que eles
têm de franquia vem -lhes pelas m ães, e qualquer pessoa que nasça
de m ãe franca, é franca — e tem livre pooslé, para fazer o que qui­
s e r... e o terceiro estado é o de servo. E este conjunto de gente não
é to d a de u m a condição, existem várias condições de servidão [...]»
Vem os que não faltam distinções a estabelecer-
Os livres são todos os habitantes das cidades; estas, sabemo-lo,
m ultiplicam -se a p artir do com eço do século XII. O grande núm ero
delas que ainda hoje têm o nom e de V illefranche6, Villeneuve, Bastide,
e tc , são para nós um a recordação dessas cartas de povoam ento pelas
quais todos aqueles que acabavam de se estabelecer num a dessas
cidades recentem ente criadas eram declarados livres, como eram b u r­
gueses e artesãos nas com unas, e em geral em todas as cidades do
reino. P ara lá disso, um grande núm ero de cam poneses é livre;
nom eadam ente aqueles a quem se cham ava plebeus ou vilãos, não
tendo os term os, bem entendido, o sentido pejorativo que depois
tom aram ; o plebeu é o cam ponês, o trabalhador, pois rutura, designa
a acção de ro m p er a terra com a relha da charrua; o vilão é de um a
m aneira geral aquele que habita um dom ínio, villa.
D epois vêm os servos. A palavra foi m uitas vezes mal com pre­
endida, p o rq u e se confundiu a servidão, pró pria da Idade M édia,
com a escravatura que foi a base das sociedades antigas e da qual
não se encontra qu alquer rasto na sociedade m edieval. Como refere
Loisel: «T odas as pessoas são francas neste reino, e logo que um
escravo atinge os degraus do conhecim ento (ice lui) fazendo-se baptizar,
é franqueado.» Tendo a Idade M édia p o r força das circunstâncias ido
buscar o seu vocabulário à língua latina seria tentador concluir da
sem elhança dos term os a sem elhança de sentido. Ora, a condição
do servo é totalm ente diferente da do escravo antigo: o escravo é
um a coisa, não um a pessoa; está sob a dependência absoluta do seu
dono que possui sobre ele direito de vida e de m orte; qualquer
actividade pessoal é-lhe recusada; não conhece nem fam ília; nem
casam ento, nem propriedade.
O servo, pelo contrário, é um a pessoa, não um a coisa, e tratam -
-no com o tal. Possui um a família, um a casa, um cam po e fica deso­
brigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. N ão está
(3) H o m em de poosté, d es ig n a o vilão em geral.
* E m P o rtu g a l tam b em existe esta o rig em no n om e de al g u m as
cidades e vilas: Vila 1'Yanca. (N. do R.)
40 RÉ G IE PERNO

subm etido a um patrão, está ligado a um dom ínio: não é um a ser­


vidão pessoal, m as um a servidão real. A restrição im posta à sua
liberdade é que não pode ab an d o n ar a terra que cultiva. M as, note-
m o-lo, essa restrição não deixa de ter um a vantagem , já que, em bora
não possa deixar a propriedade, tam bém n ã o p o d em tirar-lha; esta
p articu larid ad e não estava longe, na Idade M édia, de ser considerada
um privilégio, e, de facto, o term o encontra-se num a recolha de
costum es, o Brakton, que diz expressam ente falando dos servos:
«tali g a u d e n t privilegio, q u o d a g leba am overi n o n p o te ru n t [...] gozam
desse p rivilég io de não poderem ser arrancados à sua terra» (mais
ou m enos aquilo que seria nos nossos dias um a garantia contra o
desem prego). O rendeiro livre está subm etido a tod a a espécie de
responsabilidades civis que tornam a sua sorte m ais ou m enos
precária: se se endivida, podem confiscar-lhe a terra; em caso de
guerra, pode ser forçado a tom ar p arte nela, ou o seu dom ínio pode
ser destruído sem com pensação possível. O servo, esse, está ao abrigo
das vicissitudes da sorte; a terra que trabalha não pode escapar-lhe,
da m esm a m aneira que não pode afastar-se dela. E sta ligação à gleba
é m uito reveladora da m entalidade m edieval, e, notem o-lo, a este
nível, o nobre está subm etido às m esm as obrigações que o servo,
po rq u e ele tão-pouco pode em caso algum alienar o seu dom ínio ou
separar-se dele de qualquer form a que seja: nas duas extrem idades
da hierarquia encontram os essa m esm a necessidade de estabilidade,
de fixação, inerente à alm a m edieval, que produziu a F rança e de
um a m aneira geral a E u ro p a ocidental. Não é um paradoxo dizer
que o cam ponês actual deve a sua prosperidade à servidão dos seus
antepassados; nenhum a instituição contribuiu m ais para o destino do
cam pesinato francês; m antido durante séculos sobre o mesm o solo,
sem responsabilidades civis, sem obrigações militares, o cam ponês
tom ou-se o verdadeiro senhor da terra; só a servidão poderia realizar
u m a ligação tão íntim a do hom em à gleba e fazer do antigo servo
o proprietário do solo- Se a condição do cam ponês na E u ro p a oriental,
na Polónia e noutros lugares, perm aneceu tão m iserável, é porque
não houve esse laço protector da servidão; nas épocas de perturbação,
o pequeno proprietário, entregue a si p ró p rio , responsável pela sua
terra, conheceu as m ais terríveis angústias que facilitaram a form ação
de dom ínios im ensos; donde um flagrante desequilíbrio social, con­
trastando a riqueza exagerada dos grandes proprietários com a con­
dição lam entável dos seus rendeiros. Se o cam ponês francês pôde
desfrutar até aos últim os tem pos de um a existência fácil, em relação
ao cam ponês da E u ro p a oriental, não é apenas à riqueza do solo
que o deve, m as tam bém e sobretudo à sabedoria das nossas antigas
instituições, que fixaram a sua sorte no m om ento cm que linha mais
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 41

necessidade de segurança e o subtraíram às obrigações m ilitares, as


quais, posteriorm ente, pesaram m ais duram ente sobre as famílias
camponesas.
As restrições im postas à liberdade do servo decorrem to d as dessa
ligação ao solo. O senhor tem sobre ele direito de séquito, isto é,
pode levá-lo à força p ara o seu dom ínio em caso de abandono, porque,
p o r definição, o servo não pode deixar a terra; só é feita excepção
p ara aqueles que partem em peregrinação. O direito de jo rm a ria g e
arrasta a interdição de se casar fora do dom ínio senhorial quem se
encontrar adscrito, ou, como se dizia, «abreviado»; m as a Igreja não
deixará de p ro testar contra este direito que atentava contra as liber­
dades fam iliares, e que se atenuou de facto a p artir do século x;
estabelece-se então o costum e de reclam ar som ente um a indem nização
pecuniária ao servo que deixava um feudo p ara se casar num outro;
aí se encontra a origem desse famoso «direito senhorial», sobre o qual
foram ditos tantos disparates: não significava outra coisa senão o seu
direito de autorizar o casam ento dos servos; m as com o, na Idade
M édia, tudo se trad u z p or sím bolos, o direito senhorial deu lugar a
gestos simbólicos cujo alcance se exagerou: p o r exem plo, colocar a
m ão, ou a perna, no leito conjugal, donde o term o por vezes em ­
pregado de direito de pernada, que suscitou tan tas interpretações de­
ploráveis, de resto perfeitam ente erradas.
A obrigação sem dúvida m ais penosa p ara o servo era a m ão-
-m orta: todos os bens p or ele adquiridos du ran te a vida deviam depois
da sua m orte regressar p ara o senhor; por isso tam bém essa obrigação
foi reduzida desde m uito cedo, e o servo ficou com o direito de dispor
por testam ento dos seus bens móveis (porque a sua prop ried ad e
passava de qualquer m odo p ara os filhos). Além disso, o sistema de
com unidades silenciosas perm itiu-lhe, conform e o costum e do lugar,
escapar à m ão-m orta, já que o servo podia, como o plebeu, form ar
com a família um a espécie de sociedade agrupando todos aqueles
que pertenciam a um mesm o «pão e pote», com um chefe tem porário
cuja m orte não interrom pia a vida da com unidade, continuando esta
a desfrutar dos bens de que dispunha.
Finalm ente, o servo podia ser franqueado; as franquias m u lti­
plicaram -se m esm o a p artir do século XIII, já que o servo devia com ­
p rar a sua liberdade, quer em dinheiro, quer com prom etendo-se a
pagar um censo anual como o rendeiro livre. Tem os um exem plo na
franquia dos servos de V illeneuve-Saint-G eorges, dependente de
Saint-G erm ain-des-Prés, p o r um a soma global de 1400 libras. E sta
obrigação do resgaste explica sem dúvida p o r que razão as franquias
foram m uitas vezes aceites de m uito m au grado pelos seus benefi­
ciários; a ordenança de Luís X, o H utin, que em 1315 franqueou
42 RÉ G IE PERNO

todos os servos do dom ínio real, em bateu em m uitos lugares com a


m á vontade dos «servos recalcitrantes». A servidão não é mais m en­
cionada, quando da redacção dos costum es no século XIV, senão nos
de Bourgogne, de A uvergne, do B oubonnais e do N ivem ais, e nos
costum es locais de C haum ont, Troyes e Vitry; de resto em toda a
parte tinha desaparecido. A lgum as ilhotas de servidão m uito m oderada
subsistiram aqui e ali, que L uís X V I aboliu definitivam ente em 1779
— dez anos antes do gesto teatral da dem asiado fam osa noite de
4 de A g o jto — no dom ínio real, convidando os senhores a que o
im itassem: é que se tratav a de um a m atéria de direito privado sobre
a qual o po d er central não tinha o direito de legislar. As actas m os­
tram -nos, aliás, que os servos não tinham de todo face aos senhores
essa atitude de cães espancados, que dem asiadas vezes se supôs.
Vem o-los discutir, afirm ar o seu direito, exigir o respeito por antigas
convenções e reclam ar sem rodeios o que lhes é devido. ~
*

Terem os o direito de aceitar sem controlo a lenda do cam ponês


miserável, inculto (esta é um a outra história) e desprezado, que um a
tradição bem estabelecida im põe ainda a um grande núm ero dos
nossos m anuais de história? O seu regim e geral de vida e de ali­
m entação não oferecia nada, vê-lo-em os, que deva suscitar piedade.
O cam ponês não sofreu m ais na Idade M édia do que sofreu o hom em
em geral em todas as épocas da história da hum anidade. Sofreu a
repercussão das guerras: terão elas poupado os seus descendentes
dos séculos x ix e XX? Além disso, o servo m edieval estava livre de
qualquer obrigação m ilitar, com o a m aior parte dos plebeus; além
disso, o castelo senhorial era p ara p ara ele um refúgio na desventura,
e a paz de D eus um a garantia contra as bru talid ad es dos hom ens de
arm as. Sofreu a fom e nas épocas de m ás co lh eitas— com o sofreu
o m undo inteiro até que as facilidades de transportes perm itiram
levar ajuda às regiões am eaçadas, e m esm o a p artir dessa altura ... — ,
m as tin h a a posssibilidade de recorrer ao celeiro do senhor-
N ão houve senão um a época realm ente d ura p ara o cam ponês
na Idade M édia, m as ela foi-o para to d as as classes da sociedade
indistintam ente: foi a dos desastres produzidos pelas guerras que
m arcaram o declínio da época — período lam entável de perturbações
e de desordens engendradas por um a luta fratricida, du ran te a qual

(7) E m P o r t u g a l , a p a r t i r dos fins do século XI até p rin cíp io s do sé­


culo XIII o servo ad scr ito à g leb a foi p r o g r e s s iv a m e n t e tr a n s f o r m a d o
em colono livre. E n t r e nós, foi D. Afo nso I II que deu ex emp lo nos seus
reg u en g o s ao d ar c a r ta de fra n q u ia aos servos. (N. d o li.)
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 43

a F ran ça conheceu unia m iséria que só se pode com parar à das


guerras de Religião, da R evolução ou do nosso tem po: bandos de
plebeus devastando o país, fomes provocando revoltas e insurreições
cam ponesas e p ara cúm ulo essa terrível epidem ia de peste negra que
despovoou a E uropa. M as isso faz parte do ciclo de m isérias próprias
da hum anidade, e das quais nenhum povo foi isento; a nossa pró p ria
experiência basta largam ente p ara nos inform ar sobre isso.
•O cam ponês terá sido o m ais desprezado? Talvez nunca o tenha
sido m enos, de facto, que na Idade M édia. D eterm inada literatura
em que o vilão é m uitas vezes jogado não deve iudir-nos: não é senão
o testem unho do rancor, velho com o o m undo, que o ch arlatão, o
v agabundo sente pela situação do cam ponês, do «domínio» cuja
m orada é estável, o espírito p or vezes lento e a bolsa m uitas vezes
lenta a abrir-se — acrescentado à aptidão, bem m edieval, p ara zom bar
de tudo, inclusive aquilo que parece m ais respeitável. N a realidade,
nunca os contactos foram m ais estreitos entre as classes ditas d iri­
g en tes— neste caso os n o b re s— e o povo: contactos que a noção
de laço pessoal facilita, essencial p ara a sociedade m edieval — que as
cerim ónias locais, festas religiosas e outras m ultiplicam , e nas quais
o senhor encontra o rendeiro, aprende a conhecê-lo e p artilh a a sua
existência m uito m ais estreitam ente que nos nossos dias os pequenos
burgueses partilham a dos seus criados. A adm inistração do feudo
obriga a ter em conta todos os detalhes da vida dele; nascim entos,
casam entos, m ortes nas fam ílias de servos entram em linha de conta
p ara o nobre, com o interessando directam ente o dom ínio; o senhor
tem encargos judiciários, donde p ara ele a obrigação de assistir os
cam poneses, de resolver os seus litígios, de arb itrar os seus diferendos;
tem portan to em relação a eles um a responsabilidade m oral, do
m esm o m odo que suporta a responsabilidade m aterial do feudo em
relação ao suserano. N os nossos dias o patrão de fábrica encontra-se
liberto de qualquer obrigação m aterial e m oral relativam ente aos
operários logo que «passaram pela caixa» p ara «receber o salário»;
não o vem os abrir as p o rtas da sua casa para lhes oferecer um b an ­
quete, na ocasião, p o r exem plo, do casam ento de um dos filhos. N a
globalidade, um a concepção totalm ente diferente da que prevalece
na Idade M édia, du ran te a qual, como disse m ais ou m enos Jean
G uiraud, o cam ponês ocupa a ponta da m esa, m as é a m esa do
senhor.
Poderíam os facilm ente d ar conta disso deitando um a olhadela
sobre o patrim ónio artístico que essa época nos legou e constatando
o lugar que o cam ponês nela ocupa. N a Idade M édia, ele está em
toda a parte: nos quadros, nas tapeçarias, nas esculturas das cate­
drais, nas ilum inuras dos m anuscritos; em toda a parte encontram os
44 RÉ G IE PERNO

o s trab alh o s dos cam pos com o o m ais corrente tem a de inspiração.
Que hino à glória do cam ponês valerá algum a vez as m iniaturas
das Três rich es h eu res du D u c de B e rry ou o L iv re des p ro u jfic tz
cham pestres, ilum inado pelo bastardo A ntoine de Bourgogne, ou
ainda os pequenos quadros dos m eses na fachada de N otre-D am e e
em tantos outros edifícios? E, notem o-lo, em to d as estas obras de
arte, executadas pela m ultidão ou pelo am ador nobre, o cam ponês
aparece na sua vida autêntica: rem ovendo o solo, m anejando a
enxada, p o dando a vinha, m atando o porco. H av erá um a o u tra época,
um a só, que possa apresentar tantos quadros exactos, vivos, realistas,
da vida rural?
Que individualm ente determ inados nobres ou determ inados b u r­
gueses tenham m anifestado desdém pelos cam poneses, é possível e
m esm o certo: tal não existiu em todas as épocas? M as a m en­
talidade geral, contando com hábitos sarcásticos da época, tem m uito
nitidam ente consciência da igualdade fundiária dos hom ens no meio
das desigualdades de condição.

F ils de vilain p r e u x e t courtois


Vaut quinze m a u va is fils de r o f

diz R ob ert de Blois, e R eclus de M olliens, no seu poem a de M iserere,


p rotesta vigorosam ente contra aqueles que se crêem superiores aos
outros:
Garde qui tu as en dédain,
F ranc hom , qui m 'a p p elles vilain
J à de ce m o t n e m e p la in d ra is
S i p lu s fra n c que m o i te savais.
Qui fu t ta mère, e t qui la m o ie ? [la m ienne]
A n d o i [toutes deux] fu re n t filies Evain.
O r m a is n e dis que vilain sois
P lus que toi, ca r j e te dirois
Tel m o t ou a trop de le v a in 9

É um jurista, P hilippe de N ovare, quem distingue três tipos de


hum anidade: as «gentes francas», isto é, «todos aqueles que tiverem
franco coração ... e aquele que tiver coração franco, donde quer que
tenha vindo, deve ser cham ado franco e gentil; po rq u e se é de um

8 F ilh o de vilão valente e cortês/V ale quinze m a u s filh o s de reis.


9 Olha quem tens em desdém /F ranco hom em , que m e cham as v ilã o ./
D essa p a la vra não m e la m en ta ria /S e m a is fra n c o que eu te so u b e sse ./
Q uem fo i a tua mãe, e quem é a m in h a f/A m b a s fo ra m fillu is de E v a ./
Ora n ã o m e digas que vilão so u/M ais que tu, p o rq u e tu direi/(puc tal
p a la vra tem m u ito de leviano.
L U Z SOBRE A [DA D E MÉDIA 45

m au lugar e é bom , tan to m ais honrado deve ser»; as pessoas de ofício


e os vilões, isto é, aqueles que não prestam serviço senão constrangidos
pela força, «todos aqueles que o fazem são justam ente vilões, quer
fossem servos ou jornaleiros ... Fidalguia e valor de antepassados
não faz senão prejudicar um m au herdeiro desonrado». Poderíam os
citar em grande núm ero essas proclam ações de igualdade, como no
R om an de F auvel:

N oblesse, s i com d it le sage


Vient tant seulem ent de courage
Qui est de bons m oeurs aorné.
D u ventre, sachez, p a s n e vient10.

D um a m aneira m ais geral, será possível dizer que um ser que


ocupou um lugar de prim eiro plano nas m anifestações artísticas e lite­
rárias de um a nação tenha podido ser p o r ela desprezado?
Sobre este ponto com o sobre tantos outros, confundiram -se as
épocas. A quilo que é verdade p ara a Idade M édia não o é para tudo
aquilo a que cham am os o A ntigo Regim e. A p artir do fim do sé­
culo x v , produz-se um a cisão entre os nobres, os letrados — e o povo;
futuram ente, as duas classes viverão um a vida paralela, m as pene-
trar-se-ão e com preender-se-ão cada vez m enos. Com o é natural,
u alta sociedade drenará p ara si a vida intelectual e artística e o
cam ponês será banido da cultura como da actividade política do país.
D esaparece da pintura, salvo raras ex cep çõ es— em todo o caso da
pintura em voga — , da literatura, com o das preocupações dos grandes.
O século XVIII já não conherá senão um a cópia com pletam ente
artificial da vida rural. Que o cam ponês tenha sido, senão desprezado,
pelo m enos desdenhado e m al conhecido, do século x v i 11 até aos
nossos dias, não constitui qualquer dúvida, m as tam bém está fora
de questão que na Idade M édia tenha tido um lugar de prim eira
ordem na vida do nosso país.

(10) N obreza , se com o d iz o sábio/V em tão s ó da coragem /Q ue é


firiKIM u itt p o r b o n s costumes, / D o ventre, sabei-lo, não vem.
( 1 1 ) N o t c m o . s q u e é t a m b é m n o s é c u l o XVI q u e r e a p a r e c e o d e s d é m ,
fa m ilia r A n tig u id a d e , p e la s p rofissões m a n u a is. A Idade M éd ia a ssi­
nalava trad icio n alm en tei as ciê n cia s, a r t e s e o fic lo s » .
CAPÍTULO IV

A VIDA URBANA

A p artir da altura em que cessam as invasões, a vida transborda


os limites do dom ínio senhorial. O solar com eça a não se b astar m ais
a si próprio; tom a-se o cam inho da cidade, o tráfego organiza-se,
e em breve, escalando as m uralhas, surgem os subúrbios. É então,
a p artir do século XI, o período de grande actividade urbana. D ois
factores da vida económ ica, até então um pouco secundários, vão
adquirir um a im portância de p rim eiro plano: o ofício e o com ércio.
Com eles crescerá um a classe cuja influência será capital p ara os
destinos de F rança — ainda que o seu ace:so ao poder efectivo não
date senão da R evolução F rancesa, da qual será única a tirar benefí­
cios reais: a burguesia.
Pelo m enos o seu p o d er data do m uito m ais longe, porque, desde
a origem , ocupou um lugar p reponderante no governo das cidades,
enquanto os reis, nom eadam ente a p artir de Filipe, o Belo, faziam
voluntariam ente apelo aos burgueses no governo das cidades como
conselheiros, adm inistradores e agentes do poder central. E la deve
a sua grandeza à expan:ão do m ovim ento com unal, do qual aliás é o
principal m otor. N ad a de m ais vivo, de m ais dinâm ico que esse
im pulso irresistível que, do século XI ao início do século x i i i , leva
as cidades a libertarem -se da autoridade dos senhores, e nada de
m ais ciosam ente defendido que as liberdades com unais, um a vez
adquiridas. É que com efeito os direitos exigidos pelos barões to rn a­
vam -se insuportáveis a p artir do m om ento em que não havia mais
necessidade da sua protecção: nos tem pos de agitações, outorgas e
portagens eram justificadas, já que representavam os gastos de polícia
du estrada: um com erciante roubado nas terras de um senhor podia
fazer-se indem nizar p or ele; m as a tem pos novos e m elhores devia
corresponder um reajustam ento que foi obra do m ovim ento com unal.
A Idade M édia concluiu desta form a com êxito essa necessária rejei­
ção do passado, tão difícil de realizar na evolução da sociedade em
geral; é muito provável que, se o m esm o reajustam ento tivesse sido
48 R É G IN E PERNO

produzido em tem po oportuno p ara os direitos e privilégios da nobreza,


m uitas desordens teriam sido evitadas.
A realeza dá o exemplo do m ovim ento pela outorga de liberdades
às com unas rurais: a «carta de Lorris» concedida por Luís VI suprime
as anúduvas e a servidão, reduz as contribuições, simplifica os p ro ­
cessos em ju stiça e estipula p o r outro lado a. protecção dos m ercados
e das feiras:

N enhum hom em da paróquia de L orris pagará alfândega


ou qualquer direito p ara aquilo que for necessário à sua
subsistência, nem direitos sobre as colheitas feitas com o
seu trabalho ou o dos seus anim ais, nem direitos sobre o
vinho que tiver nas suas vinhas.
A ninguém será requerida cavalgada ou expedição que
o im peça de regressar nesse m esm o dia a casa, se o quiser.
N inguém pagará portagem até E stam pes, nem até Or-
leães, nem até M illy, em G âtinais, nem até Melun.
E aquele que tiver a sua propriedade na p aró q u ia de
L orris, esta não lhe poderá ser confiscada se tiver com etido
q ualquer delito, a m enos que seja um delito contra N ós ou
a nossa gente.
N inguém que venha às feiras ou ao m ercado de L orris,
ou no regresso, poderá ser detido ou pertu rb ad o , a m enos
que tenha com etido algum delito nesse dia.
N inguém , nem N ós nem outros, poderá cobrar a talha
aos hom ens de Lorris-

N enhum de entre eles fará anúduvas, a não ser um a vez


por ano, p ara levar o nosso vinho a O rleães, e a mais
nenhum lugar.

E quem quer que seja tenha vivido um ano e um dia na


p aró q u ia de L o rris, sem que ninguém o reclam e aí, nem
que tal lhe seja proibido por N ós nem pelo nosso preboste 1,
será a p artir daí livre e franco.

A pequena cidade de B eaum ont recebe pouco depois os m esm os


privilégios, e em breve o m ovim ento se desenha em todo o reino.
É um dos espectáculos m ais cativantes da história a evolução
de um a cidade na Idade M édia: cidades m editerrânicas, M arselha,
A ries, A vinhão ou M onlpellier, rivalizando em audácia com as grandes

(1) E n tr e nós co rresp o n d e ao alcaide. (N. do R.)


L U Z SO BRE A ÍD ADE MEDIA 49

cidades italianas pelo com ércio «deste lado do mar» centros de


tráfego como Laon, Provins, Troyes ou Le M ans, centros de indústria
têxtil, como C am brai, N oyon ou V alenciennes, todas fazem prova
de um ard o r, de um a vitalidade sem igual. Tiveram de resto a
sim patia da. realeza: não ofereciam elas, na sua vontade de em anci­
p ação , a dupla vantagem de enfraquecer o poder dos grandes feudais
e de trazer ao dom ínio real um crescim ento inesperado, já que as
cidades franqueadas entravam desta feita na dependência da coroa?
P or vezes a violência é necessária, e assistimos a m ovim entos p o p u ­
lares, com o em L aon ou Le M ans; m as a m aior parte das vezes as
cidades libertam -se p o r meio de trocas, por contratações sucessivas,
ou p ura e sim plesmente à custa de dinheiro. Aí ainda, como em
todos os detalhes da sociedade m edieval, a diversidade triunfa,
po rq u e a independência pode não ser total: um a determ inada parte
da cidade, ou tal direito particular perm anecem sob a autoridade
do senhor feudal, enquanto o resto volta p ara a comuna. Um exemplo
típico é fornecido p o r M arselha: o porto e a parte baixa da cidade,
que os viscondes partilhavam entre si, foram adquiridos pelos b u r­
gueses, bairro por bairro, e tornaram -se independentes, enquanto
a p arte alta da cidade perm anecia sob o dom ínio do bispo e do
capítulo e um a parte da baía, em frente ao porto, continuava a ser
propriedade da abadia de São Vítor.
Seja como for, o que é com um a todas as cidades é o em pe­
nham ento que puseram em fazer confirm ar essas preciosas liberdades
que acabavam de adquirir e a sua pressa em se organizarem , em porem
p or escrito os seus costum es, em regular as suas instituições sobre as
necessidades que lhes eram próprias. Os seus usos diferem conform e
aquilo que faz a especialidade de cada um a delas: tecelagem , com ércio,
forragens, curtum es, indústrias m arítim as ou outra». A F rança con­
servaria durante todo o A ntigo Regim e um carácter m uito especial
devido à existência destes costum es particulares a cada cidade, fruto
com plem ente em pírico das lições do passado, e, além disso, fixados
com toda a independência pelo po d er local, portanto o m ais possível
de acordo com as necessidades de cada uma. E sta variedade, de um a
cidade para a outra, dava ao nosso país um a fisionom ia m uito sedu­
tora e das m ais sim páticas; a m onarquia absoluta teve a sabedoria
de não tocar nos usos locais, de não im por um tipo de adm inistração
uniform e; foi um a das forças — e um dos encantos — da F rança
antiga. Cada cidade possuía, num grau difícil de im aginar nos nosso
dias, a sua personalidade própria, não som ente exterior, m as interior,
cm todos os detalhes da sua adm inistração, em toda" as m odalidades
Ou sua existência. São, geralm ente — p elo m enos no M id i— , dirigidas
por m eirinhos, cujo núm ero varia: dois, seis, por vezes doze; ou
REG IM E PERNO
50

ainda um único reitor reúne o conjunto dos cargos, assistido por


um preboste que representa o senhor, quando a cidade não tem a
plenitude das liberdades políticas. M uitas vezes ainda, nas cidades
m editerrânicas, faz-se apelo a um poderoso (podestat), instituição muito
curiosa; o poderoso é sem pre um estrangeiro (os de M arselha são sem ­
p re italianos), ao qual se confia o governo da cidade por um período
de um ano ou dois; em toda a p arte onde foi em pregado, este regime
deu inteira satisfação.
Em todo o caso, a adm inistração da cidade com preende um
conselho eleito pelos habitantes, geralm ente p o r sufrágio restrito
ou com vários graus, e assem bleias plenárias que reúnem o conjunto
da população, m as cujo papel é sobretudo consultivo. Os represen­
tantes dos ofícios têm sem pre um lugar im portante, e sabem os qual
foi a p arte ocupada pelo preboste dos com erciantes em P aris nos
m ovim entos populares do século x iv . A grande dificuldade com que
as com unas se debatem são os em baraços financeiros; quase todas
se m ostram incapazes de assegurar um a boa gestão de recursos;
o poder é, aliás, rapidam ente absorvido p o r um a oligarquia burguesa
que se m ostra m ais dura para com o povo m iúdo do que tinham
sido os senhores — donde a rápida decadência das com una:; são
m uitas vezes agitadas p o r perturbações populares e periclitam a
p artir do século x iv , um tanto ajudadas, é preciso dizê-lo, pelas
guerras da época e pelo m al-estar geral do reino.

N os séculos X II e XIII, o com ércio tom a um a extensão prodigiosa;


já que um a causa exterior vem dar-lhe um novo im pulso: as C ruzadas
As relações com o O riente, que nunca tinham sido com pletam ente
interrom pidas nas épocas precedentes, conhecem então um vigor
novo; as expedições ultram arinas favorecem o estabelecim ento dos
nossos m ercados na Síria, na Palestina, na África do N orte e mesmo
nas m argem do m ar Negro. Italianos, Provençais e L anguedócios
fazem-se um a severa concorrência, e estabelece-se um a corrente de
trocas, cujo centro é o M editerrâneo, e que vai, seguindo a estrada
secular do vale do R eno, do Saône e do Sena (já seguida pelas
caravanas, que, antes da fundação de M arselha no século vi a. C,
transportavam o estanho das ilhas Cassitérides, isto é, da G rã-Bre-
tanha, até aos portos frequentados pelos com erciantes fenícios), até
ao N orte de F rança, ou países flam engos e a Inglaterra. É a época
das grandes feiras de Cham pagne, de Brie e da Ilha de França:
Provins, Lagny, Londit, em São D inis, Bar, Troyes, onde chegam
as sedas, os veludos e os brocados, o alúm en, a canela c ocravo-da-
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 51

-índia, os perfum es e as especiarias, vindos do centro da Á sia, e que


eram trocados, em D am asco ou em Jaffa, pelos tecidos de D ouai
ou de C am brai, as lãs de Inglaterra, as peles da E scandinávia. As
casas de comércio de Genes ou de F lorença tinham nos nossos m er­
cados as suas sucursais perm anentes; os banqueiros lom bardos ou
de Cahors. negociavam aí com os representantes das hansas do
N orte e entregavam letras de câmbio válidas até nos portos mais
recuados do m ar N egro. As nossas estradas conheciam assim um a
ex trao rd in ária anim ação. A im portância do m ercado oriental é capital
na civilização m edieval; já a A lta Idade M édia tinha conhecido o
O riente através de Bizâncio: a igreja de P aris recitava em grego um a
p a rte dos seus ofícios; foram os m arfins bizantinos que verd ad ei­
ram ente reensinaram ao O cidente a arte e s q u e c id a de esculpir a
m adeira e a pedra, e a decoração dos m anuscritos irlandeses inspi-
ra-se nas m iniaturas persas; m ais tard e, os Á rabes conduzem as
suas conquistas com a b ru talid ad e que sabem os e cortam as pontes,
p o r um tem po, entre as duas civilizações. M as vêm as Cruzadas
e o m ercado o rie n ta l— ao qual corresponde, aliás, um m ercado
«franco» na Ásia M enor, que trabalhos recentes m anifestaram —
banha toda a E uropa, fá-la conhecer a vertigem do tráfego, o deslum ­
bram ento dos frutos estranhos, dos tecidos preciosos, dos perfum es
violentos, dos costum es sum ptuosos, inunda com a sua luz essa
época apaixonada pela cor e pela claridade. Sobretudo, m ultiplica
esse gosto pelo risco, essa sede de m ovim ento, que na Idade M édia
coexiste de form a tão tocante com a ligação à terra. N unca, talvez,
a palavra «epopeia» foi m elhor em pregue que falando das C ruzadas;
nunca a atracção do O riente se m anifesta com m ais ardor e conduz,
apesar dos aparentes fracassos, a m ais espantosas realizações. Basta
evocar as fundações dos «Francos» na T erra Santa, desde as feitorias
dos com erciantes, estabelecim entos organizados que form am verda­
deiras cidadezinhas, com a sua capela, os banhos públicos, os en tre­
postos, as habitações dos m ercadores e sala do tribunal e das reuniões
até es as praças-fortes cuja m assa desafia ainda o sol: K rak des Che-
valiers, castelo de Saone, fortificações do Tyr — até esses feitos de
arm as extraordinários, os de um R aym ond de Poitiers ou de um
Renaud de Châtillon, que fazem pensar que as C ruzadas, posta à
parle a sua finalidade piedosa, foram um feliz derivativo p ara o ardor
efervescente dos barões.
A E uropa perderá m uito quando, no século XIV, a sua atenção
se afasia do Oricnle. S. L uís tinha entrevisto essa possibilidade
de aliança com os M ongóis que, se tivesse sido aproveitada, teria
provavelm ente m udado com pletam ente o destino dos dois m undos,
oriental c ocidental. A sua m orte prem atura, a estreiteza de vistas
R É G IN E PERNOUD
52

dos seus sucessores, deixaram no estado de esboço um pro jecto cuja


im portância foi valorizada pelos trabalhos de R ené Grousset. Só os
M ongóis podiam opor ao Islão um a barreira eficaz; procuravam a
aliança franca e favoreciam os cristãos nestorianos. As relações esta­
belecidas por Jean du P lan-C arpin, depois por Guillaum e de Rubru-
quis, que, em 1254 visitava K arakoroum , capital do G rand-K han,
tinham feito com preender a uns e a outros que frutos poderiam
nascer de um a união semelhante. N ão se ofereciam os M ongóis para
reconquistar Jerusalém aos Turcos M am elucos? M as a sua oferta não
foi to m ad a em consideração; o historiador dos C ruzadas, já citado,
fez notar a coincidência das duas datas: 1287, em baixada sem resul­
tado do nestoriano mongol R ab ban Ç aum a a P aris, ju n to de Filipe,
o Belo; 1291, perda de São João d'Acre-
Subm ergido pelo Islão, o O riente fechar-se-á à influência e ao
com ércio europeu; o que m arca um a decadência irrem ediável p ara
as cidades m editerrânicas e p ara os arm adores inquietados pelos
p iratas; só os cavaleiros do H ospital Saint-Jean continuarão a lutar
palm o a palm o e de R odes a M alta desenvolverão encarniçados esfor­
ços p ara m anter a nossa via p ara o O riente — luta desigual, mas
adm irável, que não p arará senão com a to m ad a de M alta por
Bonaparte.
A organização deste grande com ércio oriental é pouco a pouco
a m esm a em toda a parte. O negociante confia a um arm ad or quer
um a carga, quer um a determ inada soma de dinheiro para fazer fruti­
ficar; o destino da viagem é em geral nitidam ente indicado, m as
m uitas vezes deixa-se tam bém a iniciativa ao navegador, a d fo r tu n a m
maris. No regresso, este últim o recebe um quarto do lucro, ou, se
participou nas despesas, um a parte proporcional da receita, acordada
antecipadam ente. Assim consistem os contratos de «encomenda» ou
de «sociedade» entre os m ercadores. U m a das diferenças específicas
entre a Idade M édia e a nossa época é que é então o com erciante,
não o arm ador, quem decide a travessia; as com panhias de navegação
não têm itinerário determ inado; é um caso de convenções com aqueles
que querem viajar.
No que concerne o com ércio m arítim o, a Igreja tolera o em prés­
tim o a ju ro s, porque então os riscos que correm justificam o lucro
do dinheiro. O m aior destes riscos, p ara lá do naufrágio, é o costum e
do arrem esso: um navio em perigo, ou perseguido por p iratas, alivia-se
de um a p arte da carga p ara facilitar o percurso. As recolhas de
costume» m arítim os, C onstitutum Usus de Pisa, E statuto s de M ar­
selha, Consulado do M ar, regulam entam cuidadosam ente o arrem esso,
as m ercadorias que lhe são subm etidas e a repartição das perdas
entre os m ercadores que se encontram então no barco. U m outro
L U Z SOBR E A ID ADE MÉDIA 53

risco provém do direito de represálias, que pode ser acordado por


u m a cidade àqueles que se encontram sob a sua alçada sobre os
n av io s de um a cidade inim iga, ou m ais particularm ente a um m er­
ca d o r que se encontra lesado ou cuja carga foi pilhada; o que existe
é então uma das form as do direito de vingança privada.
P ara m elhor se defenderem , e p o r um uso caro à época, os
m ercadores têm o hábito de se associarem . Existe em prim eiro lugar,
p a ra os navios, aquilo a que se cham a a conserva: dois navios, ou
m ais, decidem realizar em conjunto a travessia; esta decisão é objecto
de um contrato que ninguém pode quebrar sem se expor a sanções
e a um a m ulta. P or outro lado, os m ercadores de um a cidade, onde
q uer que se encontrem , form am um a associação e elegem um de entre
eles p ara os adm inistrar e, se necessário, assum ir a responsabilidade
ou a defesa dos seus interesses. As sucursais m ais im portantes têm
um cônsul fixo que durante todo o tem po, ou pelo m enos durante
a grande «estação» com ercial, que vai do São João, a 24 de Junho,
ao Santo A ndré, em N ovem bro, rege a feitoria. M arselha oferece-nos
o exemplo desta instituição dos cônsules, com um nas cidades do M e­
diterrâneo, cujas decisões não podiam ser alteradas senão pelo reitor
da com una e adquiriam m esm o a força de lei; do m esm o m odo
havia um na m aior parte das cidades da Síria e do N orte de África,
em A cre, em Ceuta, em Bougie, em Tunes e nas Baleares.
*

Com o com ércio, o elem ento essencial da vida urbana é o ofício-


A form a como foi com preendido na Idade M édia, como se regulou
o seu exercício e as suas condições, m ereceu reter particularm ente
a atenção da nossa época, que vê no sistema corporativo um a solução
possível p ara o problem a do trabalho. M as o único tipo de corpora­
ção 2 realm ente interessante é a corporação m edieval, tom ada no
sentido lato de confraria ou associação de ofício, e de resto cedo
alterada sob pressão da burguesia; os séculos seguintes não conheceram
dela senão deform ações ou caricaturas.

(2) E a cu sto que em p re g a m o s este term o , do qual ta n to se abusou


e se p r es to u a I n ú m e ras confusões a p ro p ósito d as n o ssas a n t ig a s
Instituições. N o t em o s em p r im eiro lu g a r que se t r a t a de um vocábulo
m od ern o, que só a p a r ec e no século XVIII. A té en tão só tin h a sido q uestão
de mestrias ou de co n fr ari as (jurandes). E s ta s , c a r a c t e r iz a d a s pelo mo.
nopolio de fabrico por um dado ofício n u m a cidade, foram , d u r a n te o belo
p eríod o da Id ad e Média, b a s ta n t e pouco n u m e ro sa s; ex istiam em P ar is ,
uniu não no con jun to do reino, onde co m eçaram a to r n a r - se o reg i m e h ab i­
tual ainda com in ú m er as ex c ep ç õ es — ap e n as no fim do século XV. A
Idade de o uro das corp o rações foi, não a Id ad e M édia m as o século XVI.
Ora, a partir dessa época com eçavam, sob o im p ulso da b u r g u e sia , a ser
RÉG 1N E PERNO
54

N ão po d eríam o s definir m elhor a corporação m edieval do que


vendo nela um a organização fam iliar aplicada ao ofício. E la é o
agrupam ento, num organism o único, de todos os elem entos de um
determ inado ofício: patrões, operários, aprendizes estão reunidos,
não sob u m a autoridade dada, m as em virtude dessa solidariedade
que nasce naturalm ente do exercício de um a m esm a indústria. É,
com o a fam ília, um a associação natural; não em ana do E stad o nem
do rei. Q uando São L uís m anda É tienne Boileau redigir o L iv re des
M étiers [Livro dos M esteres], não é senão p ara redigir por escrito
os usos já existentes, sobre os quais não intervém a sua autoridade.
O único p ap el do rei face à corporação, com o de todas as instituições
de direito p rivado, é controlar a aplicação leal dos costum es em vigor;
com o a fam ília, com o a U niversidade, a corporação m edieval é um
corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria
forjou: é essa a sua característica essencial, que conservará até ao fim

do século x v .
Todos os m em bros de um m esm o ofício fazem obrigatoriam ente
parte da corporação, m as nem todos, bem entendido, desem penham
aí o m esm o papel: a hierarquia vai dos aprendizes aos m estres-jurados,
que form am o concelho superior do ofício. H abitualm ente distinguim os
aí três graus: aprendiz, com panheiro ou servente de ofício e m estre;
m as isto não pertence ao período m edieval, durante o qual, até por
m eados do século x iv , se pode, na m aior p arte dos ofícios, passar
a m estre logo que term inada a aprendizagem . Os serventes de ofício
só se to rn arão num erosos no século XVII, onde um a oligarquia de
artesãos ricos procura cada vez m ais reservar-se o acesso à m estria,
o que esboça a form ação de um proletariado industrial. M as, durante
to d a a Idade M édia, as possibilidades à p artid a são exactam ente as

de facto to m a d a s pelos p a tr õ e s que fizeram da m e s tr ia u m a espécie de


priv ilég io h e re d itá rio , te n d ên c ia que se acen tu o u de tal fo rm a que nos
séculos seg uintes os m e st r es co n stitu íam u m a v er d a d ei r a casta, cujo
acesso era difícil, senão impossível, p ar a os o p erário s pouco afo rtu n ad o s.
E s t e s não ti v e r a m o u tro recu rso senão f o rm a r por sua vez, p ar a sua
defesa, so ciedades a u t ó n o m as e m a is ou m en o s secr etas , as com panhei-
ragens.
D epo is de te r sido, no espírito de d et er m in a d o s h is to ria d o r es, o
sin ón im o de « tira n ia » , a co r p o ração foi alvo de ju íz o s m en o s severos
e p o r vezes de elogios ex ag era d o s. Os t r a b a l h o s de H a u s e r ti v e r am
so bretud o p or finalidade re a g i r co n t ra esta ú l ti m a te n d ên cia e d em o st r ar
que é p reciso ev itar ver nela um m u n do «idílico»; é bem certo que
n en h u m reg i m e de tr a b a lh o p ode ser qualificado de «idílico», ta n to a
co rp o ração como um o u tro — a não ser talv ez por co m p a ra ç ão com a
situação cr ia d a ao p r o le ta riad o in d u strial do século xix, ou com inovações
m o d e rn a s tais como o sis tem a Bedaud.
55
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA

m esm as p ara todos, e todo o aprendiz, a m enos que seja dem asiado
desajeitado ou preguiçoso, acaba por passar a mestre.
O aprendiz está ligado ao m estre p o r um contrato de ap ren d i­
zagem — sem pre esse laço pessoal caro à Idade M é d ia — que com ­
p o rta obrigações p ara as duas partes; p ara o m estre, a de form ar
o aluno no ofício, de lhe assegurar a casa e o sustento, sendo p ro p o r­
cionado o pagam ento pelos pais das despesas de aprendizagem ; p ara
o aprendiz, a obediência ao m estre e a aplicação ao trabalho. E n co n ­
tram o s, transposta p ara o artesanato, a dupla noção de «fidelidade-
-protecção» que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro. M as com o,
aq u i, um a das partes do contrato é um a criança de doze a catorze
anos, são em pregues todos os cuidados p ara reforçar a protecção
de que deve gozar, e enquanto se m anifesta toda a indulgência p ara
a& faltas, as leviandades, m esm o até as vadiagens do aprendiz, os
deveres do m estre são severam ente precisados: não pode receber senão
um aprendiz de cada vez, p ara que o ensino seja frutuoso e p ara
que não possa explorar os alunos, descarregando sobre eles um a
p arte do trab alh o ; não pode encarregar-se deste aprendiz senão depois
de ter exercido a m estria durante um ano, pelo m enos, p ara que
p o s a dar-se conta das suas capacidades técnicas e m orais. «Ninguém
deve receber um aprendiz se não for tão sábio e tão rico que possa
ensiná-lo e governá-lo e m antê-lo [...] e isto deve ser sabido e feito
pelos dois m em bros do conselho que defendem o ofício», dizem os
regulam entos- Eles fixam expressam ente aquilo que o m estre deve
despender diariam ente p ara a alim entação e a m anutenção do aluno;
finalm ente, os m estres estão subm etidos a um direito de visita detido
pelos ju rad o s da corporação, que vêm ao dom icílio exam inar a form a
com o o aprendiz é alim entado, iniciado no ofício e tratado de m a­
neira geral. O m estre tem p ara com ele os deveres e os encargos
de um pai e deve entre outras coisas velar pela sua conduta e pelo
seu com portam ento m oral; em contrapartida, o aprendiz deve-lhe
respeito e obediência, m as vai-se ao ponto de favorecer p o r parte
deste um a certa independência: no caso de um aprendiz sair de casa
do m estre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante
todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo se ele voltar — isto para
que todas as garantias estejam do lado m ais fraco, não do mais forte.
Para p assar a m estre, é preciso ter term inado o tem po de apren­
dizagem; este tem po varia conform e os ofícios, com o é norm al, e
dura em geral de três a cinco anos; é provável que então o futuro
m e Ire devesse fazer prova da sua habilidade face aos ju rad o s da
corporação, o que está na origem da obra-prim a, cujas condições irão
com plicar-se no decorrer dos séculos; além disso, deve pagar um a
taxa, aluis m ínim a (de 3 a 5 soldos em geral) — a sua cotização
56 RÉ G IE PERNOUD

para a confraria do corpo do ofício; finalm ente, em alguns ofícios,


cuja solvabilidade o m ercador é obrigado a justificar, é exigido o
pagam ento de um a caução. Tais são as condições da m estria durante
o período m edieval propriam ente dito; p o r volta do século x iv , as
corporações, até aí independentes na sua m aior parte, com eçam a ser
ligadas ao p o d er central e o acesso à m estria torna-se m ais difícil:
é exigido, em alguns ram os, um estágio prévio de três anos com o
com panheiro, e o postulante deve entregar um a renda anual a que
se cham a a com pra do ofício, que v aria de 5 a 20 soldos.
O exercício de cada ofício era objecto de um a regulam entação
m inuciosa, que tendia antes de tudo para m anter o equilíbrio entre
os m em bros da corporação. Q ualquer tentativa p ara tom ar um m er­
cado, qualquer esboço de entendim ento entre alguns m estres em
detrim ento dos outros, qualquer ensaio p a ra deitar a m ão a um a
excessiva quantidade de m atérias-prim as, eram severam ente reprim i­
das: nad a m ais contrário ao espírito das antigas corporações que o
aprovisionam ento, a especulação ou os nossos m odernos trusts. E ra
tam bém im placavelm ente punido o acto de desviar p ara seu proveito
a clientela de um vizinho, o que nos nossos dias se cham aria abuso
da publicidade. A concorrência existia contudo, m as estava restrin­
gida ao dom ínio das qualidades pessoais: a única form a de atrair
um cliente, era fazer, por um preço igual, m elhor, m ais acabado,
m ais cuidado que o vizinho.
Os regulam entos lá estavam um a vez m ais p ara velar pela boa
execução do ofício, p ro cu rar as fraudes e p u n ir a má-fé; com este
fim, o trabalho devia quanto possível ser feito no exterior, ou pelo
m enos em plena luz; pobre do fabricante de panos que tivesse fabri­
cado um tecido de m á qualidade nos recantos obscuros da sua loja!
Tudo deve ser m ostrado à luz do dia, no alpendre onde o basbaque
gosta de se dem orar, onde o M estre Pathelin vem «enganar» o m er­
cador ingénuo.
Os m estres-jurados ou «guardas de ofício» lá estão p ara fazer
observar os regulam entos. Exercem um direito de visita severo. Os
defraudadores são postos no pelourinho e expostos, com a m á m er­
cadoria, durante um tem po variável; os seus com panheiros são os
prim eiros a apontá-los com o dedo. E que é m uito vivo o sentim ento
de h o n ra do ofício. Os que o m ancham excitam o desprezo dos
colegas que se sentem atingidos pela vergonha que cai sobre todo o
ofício; são postos à m argem da sociedade; são olhados um pouco
com o cavaleiros perjuros que tivessem m erecido a degradação. O ar­
tesão m edieval, de um a m aneira geral, tem o culto do trabalho. E ncon­
tram o s o testem unho disAo nos rom ances de ofício como os de Thom as
Deloney sobre os tecelões e os sapateiros de L ondres: os sapateiros
L U Z SO BRE A IDADE MÉDIA 57

intitulam a sua arte «o ofício nobre» e sentem -se orgulhosos do p ro ­


vérbio: «Todo o filho de sapateiro nasceu príncipe.» Um p o em a
m edieval, o D it des F évres (Dos artesãos), detém -se com placentem ente
sobre os m éritos destes:

M 'e st il avis que févre s so n t


L a g e n t p o u r qiien d o it m ie u x prier.
B ien sa v e z que de term oier [lambiner]
N e vivent p a s févres, d est voir [vrai]
N 'e st p a s d'usure le u r avoir
[...] D e le u r labeur, de le u r iravail
Vivem le s févre s lo ya u m en t
E t si don n en t p lu s la rg em en t
E t d ép e n sen t de ce qu'ils o n t
Que usuriers, qui rien n e font,
Chanoines, prouvéres, ou m o in e s 3.

Ê um a característica especificam ente m edieval esse orgulho pelo


seu estado — e não m enos m edieval, o zelo com o qual cada co rp o ­
ração reivindica os seus privilégios.
O de ju lg ar p o r si pró p ria os delitos do ofício é talvez um dos
m ais preciosos para a época, m as ela estim a tam bém como essencial
a liberdade de se adm inistrar através dos seus p ró p rio s representantes.
P ara isso, elege-se todos os anos um conselho com posto p o r m estres
escolhidos, quer pelo conjunto da corporação, quer pelos outros
m estres; os usos variam conform e os ofícios. Os conselheiros prestam
ju ram en to , donde o nom e de «jurados»; devem velar p ela observação
dos regulam entos, visitar e proteger os aprendizes, resolver os diferen-
dos que podem surgir entre os m estres, inspeccionar as lojas p ara
policiar as fraudes. E a eles que cabe tam bém o cargo de adm inistrar
a caixa da corporação. A sua influência é tal na cidade que acabam
p o r desem penhar um papel político.
Em algum as cidades, com o M arselha, os delegados dos ofícios
tom am parte efectiva na direcção dos assuntos com unais; fazem
com pulsivam ente p arte do Conselho G eral; nenhum a decisão que
toque os interesses da cidade pode ser tom ada sem eles; escolhem
sem analm ente «sem aneiros» que assistem o reito r e sem os quais não

(3) E m in ha opin iã o que a rtesã o s sã o/A g en te p o r quem m a is se


deve re za r / B em sa b eis que de serem ro n ceiro s / N ã o vivem os artesãos,
é verdade / N ã o é costu m e que eles te n h a m ./ [...] D o seu labor, do seu
trabalho / Vivem os a rte sãos le a lm en te/E dão m a is la rg a m en te/E des-
p n u tim o q u e têm m ais/Q u e usurários, que nada fazem , / Cónegos, p rio -
resi ou m onges.
58 R É G IN E PERNO

se pode to m ar deliberação. R epetindo a expressão do historiador da


com una de M arselha, M. B ourrilly, os chefes de ofício eram «o ele­
m ento m otor» da vida m unicipal, e poder-se-ia dizer que M arselha
teve no século XIII um governo de base corporativa.
A confraria, de origem religiosa, que existe um pouco por toda
a parte, m esm o onde o ofício não está organizado em m estria ou
confraria (jurande), é um centro de entreajuda. E ntre os encargos que
pesam regularm ente sobre a caixa da com unidade figuram em p ri­
m eiro lugar as pensões dadas aos m estres idosos ou enfermos, e as
ajudas aos m em bros doentes durante o tem po de doença e de conva­
lescença. É um si tem a de seguros no qual cada caso pode ser conhe­
cido e exam inado em particular, o que perm ite levar o rem édio ap ro ­
priado a cada situação e evitar tam bém os abusos e as acum ulações.
«Se filho de m estre acontece ser pobre, e quer aprender, os m em bros
do conselho devem m andá-lo aprender com os 5 soldos (taxa co rp o ­
rativa) — e com as suas esm olas», diz o estatuto dos «am ieiros» ou
fabricantes de escudos. A corporação ajuda se necessário os seus
m em bros quando estão em viagem ou em caso de desem prego. Thom as
Deoloney põe na boca de um colega do «N obre Ofício» um a passagem
m uito significativa. Tom D rum (é o seu nom e) encontrou no caminho
um jovem senhor arruinado e propõe-lhe que o acom panhe até L o n ­
dres: «Sou eu quem paga, diz ele, na próxim a cidade divertir-nos-
-emos b e m — Com o, diz o jovem , julguei que não tinham senão um
soldozinho por fo rtu n a .— V ou-te explicar, continua Tom. Se fosses
sapateiro com o eu, poderias viajar de um a ponta à outra de Inglaterra
sem nada que não fosse um p e n n y no bolso. No entanto, em todas
as cidades encontrarias boa cam a e boa m esa, e de que beber, sem
sequer gastares o teu penny. É que os sapateiros não querem que a
nenhum deles falte nada. Eis o nosso regulam ento: 'Se um com ­
panheiro chega a um a cidade, sem dinheiro e sem pão, não tem
senão que fazer-se conhecer, e não tem necessidade de se ocupar
com outra coisa. Os outros com panheiros da cidade não só o recebem
bem , m as oferecem-lhe gratuitam ente o sustento e a alim entação. Se
quer trab alhar, a com issão encarrega-se de lhe encontrar um patrão
e não tem de se incom odar'.» E sta curta passagem diz o suficiente
para dispensar com entários.
Assim com preendidas, as corporações eram um centro m uito vivo
de ajuda m útua, que faziam honra à divisa: «Todos por um, cada
um p or todos.» Tiravam fam a das suas obras de caridade, os ourives
obtêm assim a perm issão de abrir a loja aos dom ingos e nas festas
dos A póstolos, geralm ente feriados, cada um p o r sua vez; tudo o que
ganha nesse dia serve p ara oferecer no dom ingo de P áscoa um a
refeição aos pobres de Paris: «Q uanto ganhar a oficina aberta, é posto
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 59

na caixa da confraria dos ourives [...] e com todo o dinheiro dessa


caixa dá-se todos os anos no dom ingo de P áscoa um ja n ta r aos p o b res
do H ôtel-D ieu de Paris.» D e igual m odo, na m aior parte dos ofícios,
os órfãos da corporação são educados a expensas suas.
T udo isto se passa num a atm osfera de concórdia e de alegria de
que o trabalho m oderno não pode de todo dar ideia. As corporações
e confrarias têm cada um a as suas tradições, a sua festa, os seus
ritos piedosos ou burlescos, as suas canções, as suas insígnias. A inda
segundo Thom as Deloney, um sapateiro p ara ser adoptado com o
filho do «N obre Ofício» deve saber «cantar, to car trom pa, to car
flauta, m anejar o pau ferrado, com bater à espada e contar os seus
utensílios em verso». Por ocasião das fe3tas da cidade, e nos cortejos
solenes, a corporações desfraldam as suas bandeiras, e p ara quem
aí se encontrar haverá alguns títulos de precedência. São pequenos
m undos extraordinariam ente vivos e activos, que acabam de d ar
à cidade o seu im pulso e a sua fisionom ia original.
G lobalm ente, não saberíam os resum ir m elhor a natureza da vida
urbana na Idade M édia do que citando o grande historiador das
cidades m edievais, H enri Pirenne: «A econom ia urbana é digna da
arquitectura gótica da qual é contem porânea- E la criou todas as
peças [...] um a legislação social m ais com pleta do que a de qualquer
o utra época, incluindo a nossa. Suprim indo os interm ediários entre
vendedor e com prador, assegurou aos burgueses o benefício da vida
barata; perseguiu im piedosam ente a fraude, protegeu o trab alh ad o r
contra a concorrência e a exploração, regulam entou o seu trabalho
e o seu salário, velou pela sua higiene, providenciou a aprendizagem ,
im pediu o trabalho da m ulher e da criança, ao m esm o tem po que
conseguiu reservar p ara a cidade o m onopólio de fornecer com os
seus produtos os cam pos envolventes e de encontrar lá longe saídas
para o seu com ércio."

(4) L e s Villes et le u In s titu tio n s urbaines au M o y en Age, to m o I,


p. 481.
C A PÍT U L O V

A REALEZA

Q uanto m ais estudam os a sociedade m edieval, através dos textos


da época, m ais ela surge com o um organism o com pleto, sem elhante,
repetindo a com paração cara a Jean de Salisbury, ao organism o
hum ano, possuindo um a cabeça, um coração e m em bros. M ais que
desigualdades fundiárias, as três «ordens», clero, nobreza e terceiro
estado \ representam um sistem a de repartição das forças, de «divi­
são do trabalho». E ra pelo m enos assim que eram entendidas:

L a b eu r de clerc e st de p rie r
E t ju s tic e de chevalier;
P ain le u r trouvent le s labouriers.
C il paist, cil p rie e t cil défend.
A u champ, à la ville, au m oustíer,
S è n tr ' a id en t de le u r m é tier
Ces troís p a r b ei ordenem ent1.

D aqui resulta um a sociedade m uito com pósita e que pela sua


com plexidade lem bra efectivam ente o corpo hum ano com a sua
quantidade de órgãos estreitam ente dependentes uns dos outros e
concorrendo todos tan to p ara a existência como p ara o equilíbrio do
ser, de que todos beneficiam igualm ente.
E sta com plexidade de estrutura agrava-se com a extrem a v arie­
dade dos senhorios e das províncias; cada um a possui os seus carac-

(1) E m P o r t u g a l não se u sa este te rm o , m a s sim o term o gen érico


«Povo» (N. do R.)
(2 ) P oem a d e M iserere de R eclu a de Molliens. S egu e-se a tr ad u ç ão :
O trabalho do clero é re za r/E a ju s tiç a o do c a v a le iro ;/0 p ã o encontram -
n o os trabalhadores/E ste alim enta, aquele ora e o outro defende./N o
cam po, n a cidade, n o m o s te ir o J E n tr e a ju d a m - s e n o seu o ficio /E stes três
em boa ordem.
R É G IN E PERNOUD
62

teres, vigorosam ente m arcados. Cs provérbios do tem po sublinham


com com placência — e m alícia — esta diversidade:

L es m eilleurs jo n g le u r s so n t en Gascogne
L es p lu s courtoís so n t en P rovence
L es p lu s apperís h o m m es en F rance
L es m eilleu rs archers en A njou
L es p lu s «enquérants» en N orm andie
L es m eilleu rs m a ngeurs de ra ves so n t en A uvergne
L es p lu s «rogneux» en Lim ousin, e tc , e tc .3

P equenas características locais, que se acusam de certo m odo


de form a profunda nas diferenças que os nossos costum es apresentam
entre si.
P erante um a sem elhante fragm entação, o papel do p o d er central
surgia com o particularm ente difícil. É evidente que não h avia lugar,
n a Idade M édia, nem p ara um regim e autoritário, nem p ara um a
m onarquia absoluta. As características da realeza m edieval adquirem
tanto m ais interesse quanto cada um a delas trazia a solução de um
problem a sobre a questão sem pre espinhosa das relações do indivíduo
e do po d er central.
O que é à prim eira vista notável, é a quantidade de graus que
se interpõem entre um e outro. L onge de serem as duas únicas forças
em presença, o E stado e o indivíduo só com unicam através de um a
série de interm ediários. O hom em na Id ad e M édia nunca é um ser
isolado; faz necessariam ente p arte de um grupo: dom ínio, um a qual­
quer associação ou «universidade», que assegura a sua defesa m an­
tendo-se na via certa- O artesão, o com erciante, são sim ultaneam ente
vigiados e defendidos pelo m estre do seu ofício, que eles próprios
escolheram . O cam ponês está subm etido a um senhor, o qual é v as­
salo de um outro, e:te de um outro, e assim sucessivam ente até ao rei.
U m a série de contactos pessoais desem penham assim o papel de
«tam pões» entre o po d er central e o «francês m édio», que deste m odo
nunca pode ser atingido p o r m edidas gerais arbitrariam ente aplicadas,
e tam bém não tem nada a ver com poderes irresponsáveis ou anóni­
m os, com o seria, p or exem plo, um a lei, um trust ou um partido.
O dom ínio do poder central está de resto estritam ente lim itado
aos assuntos públicos. N as questões de ordem fam iliar, tão im portan-

(3) O s m elhores jo g ra ls vivem n a G a sc o n h a /O s m ais corteses na


Provença/O s m a is francos hom ens em F ra nça/O u m elhores archeiros
em A njou/O s m ais «perguntadores» na N o rm andia/O H m elh ore* com e­
dores de rá banos estão em A uvorgne/O s m ais sa rn entos em Limousin,
etc, etc
L U Z SO B R E A ID A D E M ÉDIA 63

tes para. a sociedade m edieval, o E stado não tem o direito de intervir


e pode-se dizer de cada casa o que ainda hoje se diz da ho m e de um
inglês, que é a «praça-forte» daqueles que aí vivem. C asam entos, testa­
m entos, educação, contratos pessoais são regidos pelo costum e, com o
o ofício e todas as m odalidades da vida pessoal. O ra o costum e é ura
conjunto de observâncias, de tradições, de regulam entos provenientes
da n atu reza dos factos, não de um a vontade exterior; apresenta essa
garan tia de não ter sido im posto p ela força, m as de se ter desen­
volvido espontaneam ente, de acordo com a evolução do povo — e essa
vantagem de ser indefinidam ente m aleável, de se adaptar a qualquer
facto novo, de absorver qualquer m udança. O respeito que se tem
p o r ele explica porquê, d u ran te todo o A ntigo R egim e, 03 reis nunca
ordenaram sobre o direito privado. M esm o no período posterior à
Id a d e M édia, nunca legislaram senão sobre a form a dos actos da vida
p riv ad a, não sobre os próprios actos: por exem plo, sobre registo das
disposições testam entárias, m as nunca sobre o testam ento; ordenaram
a escrituração dos costum es, m as de form a algum a tocaram no direito
costum eiro; o que decorre do seu dom ínio escapou-se-lhes sem pre.
F eitas estas reservas, com o se exerce a autoridade real? O teólogo
H enri de G and vê na pessoa do rei um chefe de família, defensor
dos interesses de todos e de cada um. Tal parece ser bem a natureza
da m onarquia m edieval. O rei, colocado à cabeça da hierarquia feudal,
com o o senhor à cabeça do dom ínio e o pai à cabeça da família, é
sim ultaneam ente um adm inistrador e um justiceiro. É o que sim boli­
zam os seus dois atributos: o ceptro e a m ão da justiça.
Com o adm inistrador, tem em prim eiro lugar ocasião de exercer
o seu poder directam ente sobre o seu próprio dom ínio. C onhece, pois,
p o r experiência, os detalhes da «gerência» de um feudo e sabe o que
pode exigir dos seus vassalos, tendo nesse feudo os m esm os direitos
e os m esm os deveres que eles. O que foi, em diversas ocasiões, im por­
tante p ara o conjunto do reino. Como um vassalo é tentado, m ais ou
menos, a im itar o suserano, o po d er real foi levado a dar aos barões
exem plos salutares. As reform as que introduzia no seu dom ínio, e
que não se reconhecia o direito de im por aos o u tro :, espalhavam -se
m uitas vezes ao conjunto do país. Foi o caso da franquia geral dos
servos do dom ínio, no início do século x iv . Isto provocava um a
em ulação benfazeja, da qual a pró p ria realeza beneficiava por vezes.
Assim, os grandes vassalos tinham o direito de cunhar m oeda, m as
o rei acabou por levar toda a F ran ça a preferir a sua às outras, velando
por que ela fosse sem pre a m ais sã e a m ais ju s t a — p o rq u e não se
deve abusar da lenda dos, reis falsos m oedeiros, que não é justificada
senão para Filipe, o Brio, e para as épocas das grandes m isérias públi­
cas da G uerra dos ( Viu Anos
64 RÉ G IE PERNO

Sobre os dom ínios senhoriais, o rei não possui senão um po d er


indirecto. Os barões que dependem im ediatam ente dele são pouco
num erosos, m as todos podem fazer apelo do seu suserano ao rei, e as
ordens que ele dá transm item -se por um a série de interm ediários em
todo o reino. O direito que ele exerce é, essencialm ente, um direito
de controlo: velar p o r que tudo o que está prescrito pelo costum e
seja norm alm ente executado, m an ter a «tranquilidade da ordem ».
É a esse título que é o árbitro designado para apaziguar as querelas
entre vassalos. Sabemos a resposta de São L uís àqueles que lhe faziam
n o tar, segundo o D it d ’A m iens, que faria m elhor deixar os barões
baterem -se entre si, e enfraquecerem -se a si próprios: «Se vissem que
os deixava guerrear, podiam acordar-se entre eles e dizer: 'O rei pela
sua m alícia deixa-nos guerrear.' Se acontecesse que pelo ódio que me
teriam , viessem sobre mim , seria eu a p erd er — sem contar com o
ódio de D eus que conquistaria, o qual diz: 'B enditos sejam os apazi­
guadores'.»
Esse po d er poderia perm anecer com pletam ente platónico, já que,
d u ran te a m aior parte da Idade M édia, o rei de F rança dispõe, com
o seu exíguo dom ínio, de recursos inferiores aos dos grandes vassalos.
M as o prestígio que lhe confere a unção * e o elevado com portam ento
m oral da linhagem capetiana revelam -se singularm ente eficazes contra
os senhores m ais turbulentos. O exem plo do rei de Inglaterra decla­
rando que não pode fazer cerco no locai onde se encontra o seu suse­
rano, e o deste m esm o rei recorrendo à arbitragem real p ara regular
os seus p ró p rio s diferendos com os barões, provam -no suficientemente.
A autoridade real, até ao século XVI, fundou-se m ais sobre a sua força
m oral que sobre os seus efectivos m ilitares.
F oi ela tam bém que solidam ente form ou o renom e dos reis
justiceiros. Os R eg reis de la m o rt de sa in t L ouis insistem sobre este
insistem sobre este ponto:

J e dis que D ro it est mort, e t L o ya u té éteinte,


Q uand le bon r o i e st mort, la créaiure sainte
Qui chacune e t chacun fa isa it d ro it à sa plainte...
A qui se p o u rro n t m ais les p a u vre s g e n s clam er
Q uand le bon r o i est m o rt qui le s s u t tant a im er? °

(4) E efec tiv am en te a u n ção , feita na t e s t a com o óleo da S an ta


à m b u la co n s erv ad a em R eim s, pelo arc eb isp o da cidade, que co n sa g ra
o p essoa real. Os p r im eiro s C a p etian o s, p ar a a s s e g u r a r e m a su a sucessão,
to m a v a m o cu idado de m a n d a r u n g ir os filhos com eles vivos.
(5) D ig o que o D ireito m orreu, e a L ea ld a d e se extinguiu, /Q u a n d o
o bom r e i m orreu, a criatura sa n ta /Q ue a todas e a todos fa zia direito
à sua queixa .... / A qu em p o d erã o agora os p o b re s cla m a r / Q uando o
bom r e i m o rreu que tanto os so u b e a m a rf
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA 65

0 «bom rei» insiste ele próprio, aliás m uitas vezes, neste ponto
nos seus E nsinam entos ao seu filho: «Executa a justiça e a rectidão
e sê leal e inflexível p ara os teus súbditos, sem te virares p ara a
esquerda ou p ara a direita, m as sempre a direito; e apoia a querela
do p o b re até que a verdade seja declarada.» Joinville conta em diversas
ocasiões como ele punha estes princípios em prática. A té aos confins
do reino faz-se sentir a justiça real: « [...] e no R eno encontrám os
um castelo a que cham am R oche de Glin, que o rei tinha m andado
abater porque Roger, o senhor do castelo, era tido como defraudador
dos peregrinos e dos m ercadores.» Foi de direito que se popularizou
a im agem fam iliar do carvalho de Vincennes, debaixo do qual fazia
justiça. Os castigos que cabiam aos culpados podiam ir até à confis­
cação dos seus bens: é um a noção bastante difícil de com preender nos
nossos dias, em que o dinheiro pago p o r um a p ro p ried ad e nos dá
plenos poderes sobre ela, que não nos pode ser tirada senão por falta
de pagam ento: p ara regular dívidas p ara com o fisco ou p ara com
particulares. Isto passava-se de igual m odo na R om a antiga- N a
Idade M édia, o dom ínio é inalienável: um senhor, m esm o crivado de
dívidas, conservá-lo-á durante a sua vida, m as, em contrapartida,
corre perm anentem ente o risco de vê-lo ser confiscado se se m ostrar
indigno do seu cargo ou se infringir o seu juram ento. Todo o poder
im plica então um a responsabilidade. O próprio rei não está ao abrigo
desta regra. H enri de Gand, que define os seus poderes, reconhece
aos súbditos o direito de o depor se lhes der um a ordem contrária
à sua consciência; o pap a pode desligá-los do seu ju ram en to de fide­
lidade, e não deixa de usar esta faculdade quando um rei com ete
algum a exacção, m esm o na vida privada; foi o que sucedeu quando
a infeliz rainha Ingeburge, abandonada por F ilipe A ugusto, dirigiu
da prisão de E tam pes o seu apelo a R om a. O princípio fundam ental
é que, segundo a doutrina de São Tom ás: «O povo não é feito p ara
o príncipe, m as o príncipe p ara o povo.»
Tem -se de resto, nessa época, um a ideia m uito elevada dos
deveres de um soberano. E ustache D escham ps, que foi o cantor e o
espelho do seu tem po, enum era-os deste m odo:

P rem ier il d o it D ieu e t VEglise aimer;


H um ble coeur ait, pitié, com passion;
Is bíen com m un d o it s u r tous préférer,
Sou p c u p lr a vo ir en g r a n d dilection,
E tre x a g e e t diligent,
Vérité ait, (ri d o it être régent,
66 R E G IN E P E R N O U D

L e n i d e p u n ir , a u x b o n s n o n fa ir e e n n u i
E t a u x m a u v a is r e n d r e d r o it j u g e m e n t
S i q u o n v o ie to u te b o n té e n l u i . . . e
*

A personalidade dos reis capetianos estava singularmente bem


adaptada à concepção medieval de realeza; ao colocá-los no trono,
os seus contemporâneos tiveram toda a sorte, tanto eles corres­
ponderam ao que o povo podia esperar deles, dada a mentalidade
da época e as necessidades do país. São, antes de tudo, realistas.
Muito ligados ao seu domínio, não perdem nunca de vista os seus
interesses. Poderíamos mesmo criticar-lhes uma certa estreiteza de
concepções. Quando, dos últimos Carolíngios, se passa a Hugo, o
Grande, ou a Hugo Capeto, a diferença é tocante: os descendentes
de Carlos Magno, mesmo os mais decadentes, mantêm uma menta­
lidade «imperial»; olham para Roma, para Aix-la-Chapelle; pensam
como «Europeus». Os Capetianos, esses, preocupam-se pouco com
o que se passa para lá dos limites do seu território; desconfiam do
Império como de uma perigosa ilusão; mais do que a Europa, vêem
a França. Sondados várias vezes pelo papado para cingir a coroa
imperial, recusarão sempre, e não é sem franzir o sobrolho que verão
os seus filhos tentar, como Carlos de Anjou, a sua sorte no estrangeiro.
As suas ambições são limitadas, mas práticas. Vende-se à cabeça
de um pequeno domínio, mas fortes com a unção real, procuraram,
com uma tenacidade imperturbável, fortalecer o seu domínio desen­
volvendo a sua autoridade moral. Mesmo as Cruzadas não lhes inte­
ressam senão em segundo plano. A primeira, que abala toda a Europa,
não comove o rei de França; Filipe Augusto faz-se cruzado sem con­
vicção — lembrando-se sem dúvida de que o Oriente não tinha dado
sorte a seu pai, Luís VII, que aí tinha comprometido, com a felicidade
conjugal, a situação do reino; apanha a primeira ocasião para regres­
sar, julgando a sua presença em Artois ou Vermandois mais oportuna
que nas costas palestinianas- Será preciso um Saint Louis para abraçar
com fervor a Cruzada, mas é porque nele predomina a finalidade
religiosa, precisamente com exclusão de qualquer ambição terrestre.
A quimera imperial, a aventura italiana não passam de tentações

(6) P rim eiro deve D eu s e a Igreja am ar; / B o m co ração ter, piedade,


com paixão; / O bem com um deve so b re todos p referir, / O seu p o v o ter
em g ra n d e dilecção, / S e r sá b io e diligente, / Seja a verdade, a q u ele que
fo r regente, / L en to a p u nir, ao s bons n ã o traga a b orrecim ento J E aos
m a u s fa ça co rrecto ju lg a m e n to / P ara que toda a bondade n ele seja
vista ...
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA 67

em que os nossos Capetianos nem sequer se detêm. Os seus descen­


dentes terão sido sensatos ao romper com esta política do bom senso?
As desventuras de uni Carlos VIII, de um Luís XII, de um Francisco I
demonstraram suficientemente quanta sabedoria representava seme­
lhante moderação.
Em contrapartida, foi com um surpreendente espírito de conti­
nuidade que os Capetianos se esforçaram por consolidar o seu domí­
nio. Uma geração após outra, vemo-los arredondar este precioso
território, adquirir aqui um condado, ali um castelo, batalhar inten­
samente por uma fortaleza, reivindicar uma herança, se necessário
de espada na mão. Como avisados tácticos, sabiam todo o preço que
se deve dar a uma estrada, a uma lesta de ponte. A glória de um
Luís VI, foi ter assegurado a passagem entre Paris e Orleães; sabe
que para ele as torres de Montlhéry têm mais importância do que
teria uma coroa estrangeira. Ao mesmo tempo, intervêm por toda a
parte onde podem, nos limites do reino, não perdendo nenhuma oca­
sião para lembrar a sua presença e o seu poder aos vassalos dema­
siado seguros das suas forças; seja para chamar um senhor à razão
ou para abater soldados mercenários, como os ladrões de Berry, eles
estão sempre presentes. Fazer justiça é para eles a mais sã das polí­
ticas, e sabem, se for caso disso, sacrificar o seu interesse imediato
por um bem superior. Lembremos a surpresa que suscitou, entre os
contemporâneos como entre os historiadores, o gesto de Luís IX
entregando ao rei de Inglaterra o Agenais, a Saintonge e uma parte
de Limousin, depois de lhe ter conquistado estas províncias. Acto de
«alta política» contudo, como o qualificou Auguste Longnon, e sobre
o qual o próprio rei se explicou: «Estou certo de que os antepassados
do rei de Inglaterra perderam por direito a conquista que detenho;
e a terra que lhe dou, não lha dou por estar dependente dele ou dos
seus herdeiros, mas para pôr amor entre os meus filhos e os seus,
que são primos germanos; e parece-me que o que lhe dou o emprego
bem, porque ele não era meu vassalo, se não entrasse em minha
homenagem.» O resultado foi realmente ter ganho a fidelidade do
seu mais temível vassalo — e a paz entre a França e a Inglaterra, por
um período de mais de cinquenta anos.
A par deste espírito metódico, é preciso mencionar a bonomia,
a amável familiaridade destes reis de França. Nada de menos auto­
crata, alguém fez notar, que um monarca medieval7. Nas Crónicas,

(7) Citem o s essa p a s sa g e m m u ito p ert in en te de A. H ad e n g u e , na sua


o b r a B ouvines, victoire creatice: «Os con selho s de g u err a! E st ã o muito
em uso nos es ta d o s -m a io re s dos exército s da Id ad e Média. Sem cessar
vêm à pena dos CRO NIST AS as m e sm a s ex p ressõ es: 'A 1 'a vies p r ir fu li
co n sa u s lors li r o it p r is tt conseil... A d o n c i l p r is t conseiV . No sé-
R É G IN E PERNOUD
68

nas narrativas, não se trata senão de assem bleias, de deliberações, de


conselhos de guerra- O rei não faz nada sem ter a opinião do seu
conselho. E este conselho não é com posto, como será V ersalhes, p o r
dóceis cortesãos: são hom ens de arm as, vassalos tão poderosos e as
vezes m ais ricos que o próprio rei, m onges, sábios, ju ristas; o rei
solicita os seus conselhos, discute com eles, e dá m uita im portância
a estes contactos: «Tom o conta p ara que tenhas na tu a com panhia»,
lê-se nos E nseignem ents de sa in t L o u is [E nsinam entos de São Luís],
«hom ens honestos e leais, que não estejam cheios de cobiça, quer
sejam religiosos, quer sejam seculares, e fala m uitas vezes com eles [...1
E se algum tem um a acção contra ti, não o julgues até que saibas
a verdade, porque assim o julgarão m ais ousadam ente os teus conse­
lheiros de acordo com a verdade, por ti ou contra ti.» E le próprio
pratica o que ensina; é preciso 1er m inuciosam ente, em Joinville,
a narrativa desse patético conselho de guerra realizado pelo rei na
T erra Santa, quando os com eços difíceis da sua cruzada vêm pôr tudo
em questão e incitam a m aior parte dos barões a querer regressar
a F rança. A form a como Luís IX faz saber a Joinville que lhe está
agradecido p o r ter tom ado o partido contrário e p o r ter ousado expri-
m i-lo, é toda ela m arca dessa fam iliaridade, extrem am ente sim pática,
dos reis p ara com os que os cercam:
« E nquanto o rei ouvia as suas graças, fui a um a jan ela de fer­
ro [...] e tinha os m eus braços entre os ferros da janela, e pensava
que se o rei viesse p ara F rança, eu iria p ara o príncipe de A ntíoco [...]
N este ponto em que m e encontrava então, o rei veio apoiar-se nos
m eus om bros e pôs-m e as duas m ãos na cabeça. E eu julguei que
fosse o Sr. Philippe de N em ours, que me tinha causado dem asiado
aborrecim ento nesse dia pelo conselho que lhe tinha dado; e eu disse
assim: 'D eixe-m e em paz, Sr. P hilippe'. P or pouca sorte, ao voltar a
cabeça, a m ão do rei caiu-m e sobre o rosto; e percebi que era o rei,
por causa de um a esm eralda que tinha no dedo. E ele disse-me: 'F ique
tran q u ilo ; porque quero perguntar-lhe como foi tão ousado que
sendo um jovem , ousou louvar a m inha estada, contra todos os grandes
h om ens e os sábios de F rança, que louvavam a m inha p artid a.'
'Senhor, disse eu, teria a m aldade no m eu coração, se não louvasse
p or qualquer preço que o fizésseis.' 'D iga-m e, disse ele, faria mal se

culo Xm, um chefe m il ita r n ão com an d a, n ão decide à m a n e ir a de um


g en e ral o m n ip o ten te. A sua au t o r id ad e é feita de co lab o ração , de co n ­
fiança, de am izad e. E s t á em d ificu ld ad e? S en ta-se ao pé de u m a árv o re,
ch am a os seus 'alto s b a rõ e s', expõe os factos, recolhe as opiniões. A sua
o pinião pessoal não p revalece sempre 'C ad a u m diz a su a ra z ã o ', com o
escrev e P h ilip p e M o u sk ès (pp. 188-189).»
L U Z SOBR E A ID ADE MÉDIA 69

p artisse?' 'Se D eus m e ajuda, senhor, disse eu, sim.' E ele disse-me:
'Se eu ficar, fica tam b ém ?' E eu disse-lhe que sim [...] 'Esteja
tranquilo, porque lie tenho m uita am izade p o r m e ter louvado'.»
E sta bonom ia, esta sim plicidade de hábitos, são m uilo carac­
terísticas da época. E nquanto o im perador e a m aior p arte dos grandes
vassalos se com prazem em m anifestar o seu fausto, a linhagem cape-
tiana faz-se notar pela frugalidade do seu m odo de vida. Os reis vão
e vêm no meio do povo. Luís VII adorm ece na orla de um a floresta,
e quando os familiares o despertam , faz-lhes observar que pode bem
dorm ir assim, sozinho e sem arm as, já que ninguém lhe quer mal. Filipe
A ugusto, algum as horas antes de Bouvines, senta-se ao pé de um a
árvore, e recupera as forças com um pouco de pão m olhado no vinho.
S. L u ís deixa-se insullar na rua por um a velha m ulher e proíbe os
seus com panheiros que a repreendam . São reservados p ara as festas
e recepções solenes gibões de veludo e capas de arm inho — e ainda
assim é m uitas vezes usado o cilício sob o arm inho. É um m otivo cor­
rente de gracejo, para os estudantes alemães habituados às magni-
ficências im periais, a sim plicidade do equipam ento real. E sta sim­
plicidade não foi im itada pelos Valois, e m enos ainda pelos seus
sucessores do R enascim ento, m as se com isso ganharam um a corte
brilhante, perderam esse contacto fam iliar com o povo, elem ento
precioso do prestígio de um príncipe.
C A PIT U L O VI

AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Idade M édia, tal com o se apresentava, corria o risco de


nunca conhecer senão caos e decom posição. N ascida de um im pério
desm oronado e de vagas de invasões sucessivas, form ada p o r povos
desarm ónicos que tinham cada um os seus usos, os seus quadros,
a sua ordem social diferentes, quando não opostos — e quase todos
um sentido m uito vivo das castas, da sua superioridade de vencedores,
ela deveria apresentar, e não apresentou, de facto, nos seus começos,
senão o m ais inconcebível esboroam ento.
C ontudo, verificam os que nos séculos X II e X V III esta E u ro p a tão
dividida, tão p ertu rb ad a aquando do seu nascim ento, atravessa um a
era de harm onia e de união tal como ela nunca conhecera e não
conhecerá talvez m ais no decorrer dos séculos. Vem os, p o r o ca ião
da prim eira C ruzada, príncipes sacrificar os seus bens e os seus inte­
resses, esquecer as suas querelas, p ara tom arem juntam ente a Cruz —
os povos m ais diferentes reunirem -se num único exército, a E u ro p a
inteira estrem ecer à palavra de um U rbano II, de um P ed ro , o E re­
m ita, m ais tard e de um São B ernardo ou de um Foulques de Neuilly.
Vem os m onarcas, preferindo a arbitragem à guerra, subm eter-se ao
julgam ento do papa ou de um rei estrangeiro p ara regularizar as
suas dissensões. E ncontram o-nos, facto ainda m ais notável, perante
u m a E u ro p a organizada; ela não é um im pério, não é um a federação;
ela é: a cristandade.
É preciso reconhecer aqui o papel representado pela Igreja e
pelo papado na ordem europeia; eles foram , com efeito, factores
essenciais de unidade; a diocese, a paróquia, confundindo-se frequen­
tem ente com o dom ínio, foram , durante o período de decom posição
da A lta Idade M édia, as células vivas a p artir das quais se reconstituiu
a nação. As grandes datas que deviam p ara sem pre m arcar a E u ro p a
são as da conversão de Clóvis, assegurando no m undo ocidental a
vitória da hierarquia e da d o u trin a católicas sobre a heresia ariana,
c a coroação de Carlos M agno pelo papa Estêvão II, que consagra
72 R E G IN E PERNO

o duplo poder, espiritual e tem poral, cuja união form ará a base da
cristandade medieval.
É preciso ter em conta, de um a m aneira m ais geral, a influência
do dogm a católico que ensina que todos os filhos da Igreja são
m em bros de um mesm o corpo, como o lem bram os versos de Rutebeuf:

Tous so n t un corps en Jé su s-C h rist


D o n t j e vous m o n íre p a r l e c r i t
Que li uns est m em b re de 1'autre.

A unidade de doutrina, vivam ente sentida na época, jogava a


favor da união dos povos. Carlos M agno com preendera-o tão bem
que, p ara conquistar a Saxónia, enviava m issionários de preferência
a e x é rc ito s— p o r convicção, aliás, não por simples am bição; a his­
tória repetiu-se no Im pério G erm ânico com a dinastia dos Otões-
P raticam ente, a cristandade pode definir-se com o a «universi­
dade» dos príncipes e dos povos cristãos obedecendo a um a m esm a
doutrina, anim ados de um a m esm a fé, e reconhecendo desde logo
o m esmo m agistério espiritual.
E sta com unidade de fé traduziu-se num a ordem europeia assaz
desconcertante p ara cérebros m odernos, bastante com plexa nas suas
ram ificações, grandiosa, contudo, quando a exam inam os no seu
conjunto. A paz na Idade M édia foi m uito precisam ente, segundo a
bela definição de Santo Agostinho, a «tranquilidade» desta ordem.
Um ponto central perm anece fixo, o pap ad o , centro da vida
espiritual; m as m uito diversas são as suas relações com os diferentes
E stados. A lguns estão ligados à Santa Sé por títulos especiais de
dependência: é o caso do Im pério R om ano-G erm ânico cujo chefe,
sem se encontrar, como se acreditou frequentem ente, sob a suserania
do papa, deve, contudo, ser escolhido ou pelo m enos confirm ado por
ele; isto explica-se se nos reportarm os às circunstâncias que presi­
diram à sua fundação e à parte essencial que aí tinha tom ado o papado
E ste não faz m ais, aliás, do que conferir-lhe o seu título e ju lg ar
casos de deposição.
O utros reinos são vassalos da Santa Sé; eles, num dado m om ento
da sua história, pediram aos papas a sua protecção; como os reis
da H ungria, recolocaram -lhe solenem ente a sua coroa, ou, como os
reis de Inglaterra, da Polónia ou de A ragão, pediram -lhe que auten­
ticasse os seus direitos, de m odo que o selo de São Pedro ratifica
doravante e preserva as suas liberdades.
O utros, enfim, e entre estes a F rança, não tem nenhum laço de
dependência tem poral com a Santa Sé, m as aceitam naturalm ente
L U Z SOBR E A ID ADE MÉDIA 73

as suas decisões em m atéria de consciência e tam bém se submetem


de b o a vontade à sua determ inação arbitrai.
Tal é, nas suas grandes linhas, o edifício da cristandade, como
o precisou Inocêncio III num a época em que ela já se encontrava
realizada na prática desde há vários séculos. A ssenta essencialm ente
nu m a harm onia de ordem m ística entre os povos. Quando exam inam os
os princípios do equilíbrio europeu, concebidos na altura do tratado
de Vestefália, não podem os im pedir-nos de achar bastante pobre
esta dosagem das nacionalidades, esta agulha de balança fazendo as
vezes das sólidas bases sobre as quais se fundava a paz m edieval.
E quivocam o-nos frequentem ente sobre o carácter destas relações
entre a Igreja e os E stados; estam os habituados a ver na autoridade
espiritual e na autoridade tem poral dois poderes claram ente distintos
e, p o r vezes, esta «intrusão» do papado nos assuntos dos príncipes
foi ju lg ad a intolerável. Tudo se aclara se nos integrarm os na m enta­
lidade da época: não é a Santa Sé que im põe o seu poder aos prín­
cipes e aos povos, m as estes príncipes e estes povos, sendo crentes,
recorrem naturalm ente ao po d er espiritual, quer eles queiram fazer
fortalecer a sua autoridade ou respeitar os seus direitos, quer desejem
fazer solucionar as suas questões p o r um árbitro im parcial. Como o
enuncia G regório X: «Se é dever daqueles que dirigem os E stados
salvaguardar os direitos e a independência da Igreja, é tam bém dever
daqueles que detêm o governo eclesiástico tudo fazer p ara que os reis
e os príncipes possuam a plenitude da sua autoridade.» Os dois
poderes, em vez de se ignorarem ou de se com baterem , reforçam -se
m utuam ente.
O que pôde prestar-se a confusão é que é geral, na Idade M édia,
professar um m aior respeito pela autoridade religiosa do que pela
autoridade laica, e ju lg ar um a superior à outra, segundo o dito célebre
de Inocêncio III, «como a alm a está p ara o corpo», ou «com o o Sol
está p ara a L ua»: h ierarquia de valores, que não arrasta necessaria­
m ente um a subordinação de facto.
Além disso, é preciso não o esquecer, a Igreja, guardiã da fé,
é tam bém juiz no foro íntim o e depositária dos juram entos. Ninguém,
na Idade M édia, teria sonhado contestá-lo. Q uando for com etido um
escândalo público, ela tem o direito e o dever de pronunciar a sua
sentença, de absolver o culpado ou de p erd o ar o arrependido. Ela,
portanto, apenas usa de um poder que lhe é universalm ente reco ­
nhecido quando excom unga um R o b erto , o Piedoso, ou um R aim undo
de Toulouse. Do mesmo m odo, quando, na sequência da sua conduta
repreensível ou das suas exacções, ela desobriga os súbditos do rei
Filipe A ugusto ou do im perador H enrique IV do ju ram en to de fide­
lidade, exerce unia das suas funções soberanas porque, na Idade
74 REGI NE PERNO

M édia, todo o juram ento tom a D eus po r testem unha e, p o r conse­


quência, a Igreja, que tem o poder de unir e de desunir.
Q ue ten h a havido abusos da parte da Santa Sé com o da parte
do po d er tem poral, é coisa incontestável; a história das d isputas do
p ap ad o e do Im pério está lá p ara o provar. M as, no conjunto, p od e­
m os dizer que esta tentativa audaciosa de unir os dois poderes, o
espiritual e o tem poral, p ara o bem com um se salda num êxito. E ra
um a garantia de paz e de justiça este po d er m oral do qual não se
podiam infringir as decisões sem correr perigos precisos, entre outros
o de se ver despojado da sua pró p ria autoridade e afastado da estim a
dos seus súbditos: enquanto H enrique II está em luta com Thom as
Beckett, não se sabe qual prevalecerá, m as, no dia em que o rei decide
desem baraçar-se do prelado por um assassínio, é ele o vencido. A
reprovação m oral e as sanções que ela provoca têm então m ais efi­
cácia que a força m aterial. P ara um príncipe interdito, a vida deixa
de ser tolerável: os sinos silenciosos à sua passagem , os súbditos fu­
gindo à sua aproxim ação, tudo isto com põe um a atm osfera à qual
m esm o os caracteres mais fortem ente tem perados não resistem. M es­
m o um Filipe A ugusto acaba finalm ente por se lhe subm eter quando
nenhum constrangim ento exterior o teria podido im pedir de deixar
a infeliz Ingeburge gem er na sua prisão.
D urante a m aior parte da Idade M édia, o direito de guerra
privada continua considerado com o inviolável pelo poder civil e pela
m entalidade geral; m anter a paz entre os barões e os E stados apre­
senta, p o rtanto , im ensas dificuldades, e, se não fosse esta concepção
da cristandade, a E u ro p a corria o risco de nunca passar de um vasto
cam po de batalha. M as o sistem a em vigor perm ite opor to d a um a
série de obstáculos ao exercício da vingança privada. Em prim eiro
lugar, a lei feudal exige que um vassalo que ju ro u fidelidade ao seu
senhor não possa apresentar arm as contra ele; houve, evidentem ente,
faltas, m as o juram en to de fidelidade está, assim m e:m o, longe de
ser um a simples teoria ou um sim ulacro: quando o rei de F rança
L uís V II vem em socorro do conde R aim undo V, am eaçado em
Toulouse p o r H enrique II de Inglaterra, este, ainda que dispondo de
forças m uito superiores e assegurado da vitória, retira-se, declarando
que não pode cercar um a p raça em que se encontra o seu suserano;
na ocasião, o laço feudal tinha livrado a realeza francesa de um a
situação particularm ente perigosa.
Por outro lado, o sistema feudal m aneja toda um a sucessão de
arbitragens naturais: o vassalo pode sem pre recorrer de um senhor ao
suserano deste últim o; o rei, à m edida que a sua autoridade se estende,
exerce cada vez m ais o seu papel de m ediador; o Papa, enfim, con­
tinua o árbitro supremo. B asta, frequentem ente, a reputação de jus-
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 75

tiça ou de santidade de um grande personagem p a ra que se recorra,


assim, a ele; a história de F rança dá-nos m ais do que um exem plo:
L uis V II é o pro tecto r de Thom as B eckett e o seu interm ediário
aquando dos seus conflitos com H enrique II; São L uís im põe-se de
igual m odo à cristandade quando pronuncia o célebre D it d'A m iens
que acalm ava os diferendos entre H enrique III de Inglaterra e os seus
barões.
T em os ainda que, qualquer nobre pode então, por vingança ou
p o r am bição, invadir as terras do seu vizinho, e que o poder central
não é suficientemente poderoso para substituir pela sua ju stiça a do
indivíduo — sem falar das guerras sem pre possíveis entre os Estados.
A Idade M édia não contestou o problem a da guerra em geral m as,
p o r um a série de soluções práticas e de m edidas aplicadas no conjunto
da cristandade, restringiu sucessivamente o dom ínio da guerra, as
crueldades da guerra, as durações da guerra. É assim, com leis p re ­
cisas, que se edificou a cristandade pacífica-
A prim eira destas m edidas foi a P az de D eus, instaurada desde
o fim o século x 1: é tam bém a prim eira distinção que foi feita, na
história do m undo, entre o fraco e o forte, entre os guerreiros e as
populações civis. Desde a data de 1023 que o bispo de Beauvais faz
ju ra r ao rei R o b erto , o Piedoso, o ju ram en to da paz. É feita p ro i­
bição de m altratar as m ulheres, as crianças, os cam poneses e os
clérigos; as casas dos agricultores são, com o as igrejas, declaradas
invioláveis. R e:erva-se a guerra para aqueles que estão equipados
para com bater. É esta a origem da distinção m oderna entre objectivos
m ilitares e m onum entos civis — noção totalm ente ignorada pelo m undo
pagão. A interdição não foi sem pre respeitada, m as aquele que a
transgredia sabia que se expunha a sanções tem íveis, tem porais e
espirituais.
Há, seguidam ente, a Trégua de D eus, tam bém inaugurada desde
o início do século x i, pelo im perador H enrique II, o rei de F rança
R oberto, o Piedoso, e o papa Bento VIII. Os concílios de P erpignan
e de Elne, datando de 1041 e 1059, já a haviam renovado quando, na
sua passagem por Clerm ont, em 1095, U rbano II a define e a proclam a
solenemente, no decurso deste m esm o concílio que esteve na origem
das Cruzadas. E la reduz a guerra no tem po, como a Paz de D eus
reduz no seu objecto: p o r ordem da Igreja, é proibido qualquer acto
de guerra desde o prim eiro dom ingo do A dvento até ao oitavo da
Epifania, desde o prim eiro dia da Q uaresm a até ao oitavo da A scen­

(1) O concílio de C h arr o u x , em 989, lan ça o a n á t e m a co n t ra todo


aquele que en tr e pela força n u m a ig reja e dela leve q u alq u e r coisa, co n tr a
todo aquele que rou be os bens dos cam p o n e ses ou dos p ob res, as su as
ovelhas, o seu boi, o seu burro.
76 R E G I N E PERNOUD

são e, du ran te o resto do tem po, da quarta-feira à noite à segunda-feira


de m anhã. Im aginam os o que eram estas guerras fragm entadas, aos
bocadinhos, que não podiam d u rar m ais de três dias seguidos? T am ­
bém aqui há infracções, sujeito o transgressor a todos os riscos, e
tam bém à vergonha. Q uando Otão de B runsw ick é derrotado, em
B ouvines, contra todas as expectativas, pelo exército m uito inferior
em núm ero de Filipe A ugusto, não se deixa de ver aí o castigo daquele
que tinha ousado rom per a trégua e trav a r o com bate ao domingo.
Os príncipes cristãos tom am por vezes iniciativas que com pletam
e secundam as da Igreja. Filipe A ugusto, por exem plo, institui a «qua-
ren tena-d o-rei» : um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriam ente
decorrer entre a ofensiva feita, e devidam ente ano tad a p o r aquele
que a recebeu, e a abertura das hostilidades; sábia m edida, que reserva
o tem po da reflexão e das conciliações de com um acordo. Este
m esm o intervalo de quarenta dias encontra-se nos prazos concedidos
aos pertencentes a um a cidade inim iga para voltar p ara a sua terra
e pôr os seus haveres em segurança quando rebenta um a guerra. Assim,
não poderia, na Idade M édia, existir questão de sequestro ou de
cam po de concentração.
M as a grande glória da Idade M édia é ter em preendido a educa­
ção do soldado, é ter feito do soldado da velha guarda um cavaleiro.
A quele que se batia por am or dos grandes golpes, da violência e da
pilhagem tom ou-se o defensor do fraco; transform ou a sua brutalidade
em força útil, o seu gosto pelo risco em coragem consciente, a sua
turbulência em actividade fecunda; o seu ardor, sim ultaneam ente,
vivificou-se e disciplinou-se. O soldado tem doravante um papel a
desem penhar, e os inimigos que ele é convidado a com bater são
precisam ente aqueles em quem subsistem os desejos pagãos de m as­
sacre, de devassidão e de pilhagem . A cavalaria é a instituição m e­
dieval da qual com m aior gosto se guardou a recordação, e justam ente,
po rque jam ais, sem dúvida, se teve concepção mais nobre do título
de guerreiro. Tal como a encontram os instituída desde o início do
século XII, ela é realm ente um a ordem e quase um sacram ento. C on­
trariam ente à opinião geralm ente espalhada, ela não em parelha com
a nobreza. «Ninguém nasce cavaleiro», diz um provérbio. Plebeus,
m esm o servos, a vêem ser-lhes conferida, e nem todos os nobres a
recebem ; m as ser arm ado cavaleiro, é tom ar-se nobre, e, entre as
m áxim as do tem po, um a pretende que «o meio de ser enobrecido
sem cartas é ser feito cavaleiro».
Ao futuro cavaleiro exigem -se qualidades precisas, o que traduz
o simbolism o das cerim ónias no decurso das quais se lhe concede
o seu título. D eve ser piedoso, dedicado à Igreja, respeitador das
suas leis: a sua iniciação com eça com um a noile inteira passada cm
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 77

orações diante do altar sobre o qual está deposta a espada que ele
cingirá. É a vigília de arm as, depois da qual, em sinal de pureza,
ele tom a um banho e depois ouve m issa e com unga. E ntregam -lhe
então solenem ente a espada e as esporas, lem brando-lhe os deveres
do seu cargo: ajudar o po b re e o fraco, respeitar a m ulher, m ostrar-se
corajoso e generoso; a sua divisa deve ser «V alentia e generosidade».
Vêm de seguida a arm adura e a rude colée, a p ran ch ad a d ad a sobre
o om bro: em nom e de São M iguel e de São Jorge, ele é investido
cavaleiro.
P ara cum prir bem os seus deveres precisa ser tão hábil como
bravo: a cerim ónia prossegue então com um a série de provas físicas
que são outros tantos testes destinados a experim entar o seu valor.
E le entra na liça p ara «correr um alvo» — quer dizer, a cavalo, d er­
ru b ar um m anequim — , e p ara desm ontar em torneio os adversários
que o venham desafiar. Os dias em que são arm ados novos cavaleiros
são dias de festa, em que cada um rivaliza em proezas, sob os olhos
dos castelões, da corte senhorial, e do povo m iúdo concentrado nas
circunvizinhanças do cam po de torneios. D estreza e vigor físico,
benevolência e generosidade, o cavaleiro representa um tipo de
hom em com pleto cuja beleza corporal é acom panhada pelas m ais
sedutoras qualidades:

Tant e st p ru d h o m m e si com m e sem ble


Qui a ces d e u x choses ensem ble:
Valeur du corps e t bonté d ame.

A quilo que se espera dele não é apenas, com o no ideal antigo,


um equilíbrio, um meio term o, m e n s sana in co rpore sano, mas um
m áxim o; ele é convidado a ultrapassar-se a si próprio, a ser ao mesm o
tem po o m ais belo e o m elhor, colocando a sua pessoa ao serviço de
outrem. A queles rom ances nos quais os heróis da Távola R edonda
vão sem cessar em busca do m ais m aravilhoso feito heróico apenas
traduzem o ideal exaltante oferecido então àquele que sente a vocação
das armas. N ad a de m ais «dinâm ico», p ara em pregar um a expressão
m oderna, do que o tipo do bom cavaleiro.
A cavalaria pode perder-se, do m esm o m odo que se m erece:
aquele que falta aos seus deveres é destituído publicam ente; cortam -
-lhe as suas esporas de ouro rentes ao salto, em sinal de infâmia:

H o n n i s o it h a rd em en t ou il n'a gentillesse

dizia-se, o que equivalia a exprim ir que o puro valor guerreiro não


era nada sem nobre/a de alma.
78 R E G IN E PERNO

D e facto, a cavalaria foi o grande entusiasm o da Idade M édia;


o sentido da palavra: cavalheiresco, que ela nos legou, trad u z m uito
fielm ente o conjunto de qualidades que suscitavam a sua adm iração.
B asta p erco rre r a sua literatura, contem plar as obras de arte que
dela nos restam , p ara ver p o r todo o lado, nos rom ances, nos poem as,
nos quadros, nas esculturas, nos m anuscritos com ilum inuras, surgir
este cavaleiro do qual a bela estátua da catedral de B am berg re p re ­
senta um perfeito espécime. P or outro lado, é suficiente ler os nossos
cronistas p a ra constatar que este tipo de hom em não existiu apenas
nos rom ances e que a encarnação do perfeito cavaleiro, realizada
no trono de F rança na pessoa de um S. Luís teve, nesta época, um a
m ultidão de émulos.
M ostra-se, nestas condições, quais podiam ser as características
da guerra m edieval; estritam ente localizada, reduz-se, frequentem ente,
a um simples passeio m ilitar, à tom ada de um a cidade ou de um
castelo. Os m eios de defesa são então m uito superiores aos m eios de
ataque: as m uralhas, os fossos, de um a fortaleza garantem a segu­
rança dos sitiados; um a corrente estendida de p arte a p arte da entrada
de um po rto constitui um a salvaguarda, pelo m enos provisória. P ara
o ataque a quase nada se recorre senão às arm as de mão: a e pada,
a lança. Se um belo corpo a corpo arranca dos cronistas gritos de
adm iração, eles só têm , em contrapartida, desdém , pelas armas de
covardes, que são o arco ou a besta, que dim inuem os riscos, m as
tam bém as grandes façanhas. P ara cercar um a praça, utilizam -se
m áquinas: catapultas, m anganelas, como a sapa e a m ina, m as con­
fia-se sobretudo na fome e na duração das operações p ara subm eter
os sitiados. Tam bém as torres de m enagem estão providas em confor­
m idade: enorm es provisões de cereais am ontoam -se em vastas caves,
das quais a lenda rom ântica fez «m asm orras» 2, e arranjam -se de m odo
a ter sem pre um poço ou um a cisterna no interior da praça-forte.
Q uando um a m áquina de guerra é dem asiado m ortífera, o papado
proíbe o seu em prego; o uso da pólvora de canhão, cujos efeitos e
com posição se conhecem desde o século X III, só com eça a propagar-se
no dia em que a sua autoridade já não é suficientemente forte e em
que já se com eçam a esboroar os princípios da cristandade. Enfim,
como escreve O rderic Vital, «por tem or de D eus, por cavalaria, pro-
curava-se aprisionar de preferência a m atar. G uerreiros cristãos não
têm sede de espalhar sangue». É corrente ver, no cam po de batalha,
o vencedor p erdoar àquele que desm ontou e que lhe grita obrigado.

(2) O d esp rezo é ta n to m ais esp an to so visto que estas v a s ta s caves


servindo de reserv a, ap e n as com u m orifício circ u la r no meio da ab ó ­
bada, pelo qual se faziam p as sa r os cestos p a r a t i r a r o g rão , existem
ai n d a em certo s p aíses, na A rg é lia , por exemplo.
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 19

Citou-se com o exemplo a b atalh a de A ndelys, conduzida por L uís VI


em 1119, na qual, entre novecentos com batentes, se assinalam três
m ortos ao todo.
Os princípios da cristandade são prejudiciais ao patriotism o?
A creditou-se durante m uito tem po que era preciso fazer rem ontar a
ideia de p átria a Joana d'A rc. De facto, tudo contradiz esta asserção.
A expressão «França, a doce» encontra-se na C hanson de R o la n d
{C anção de R o lando] — e nunca se imaginou outra m ais amável p ara
qualificar o nosso país. Os poetas não m ais cessaram de a designar
sob este epíteto:

D es p a y s e s í douce F rance la fle u r ’

lê-se em A ndrieu controdit e, no R om an de F auvel:

L e beau ja r d in de g râ ce s p lein
Ou Dieu, p a r espéciauté,
P lanta le s ly s de ro ya u té [...]
E t d'autres Heurs à g r a n d plenté:
F le u r de p a ix e t fle u r de ju stic e,
F le u r de fo i e t fleu r de franchise,
F le u r d a m o u r e t fle u r épanie
D e sens e t de chevalerie [...]
C est le ja r d in de douce F rance [...] 4

Im possível evocar a sua p átria com m ais ternura. E se passarm os


ao exam e doo factos encontram os, desde a data longínqua de 1124, a
prova m ais convincente da existência do sentim ento nacional: trata-se
da tentativa de invasão da F ran ça pelos exércitos do im perador H en ­
rique V, dirigidos contra o nosso país seguindo as rotas seculares das
invasões, ao nordeste da F rança, em direcção de Reim s; assiste-se
então a um levantam ento de arm as geral em todo o reino; os m ais
turbulentos barões, entre os quais um T hibaut de C hartres, então em
plena revolta, esquecem as suas querelas para virem agrupar-se sob o
estandarte real, a célebre auriflam a verm elha franjada de verde, que
L uís VI to m ara no altar de São Dinis, de m odo que, p erante esta
m assa de guerreiros surgida espontaneam ente do conjunto do país, o

(3) Dos p aíses é a doce F r a n ç a a flor.


(4) O belo ja r d im cheio de g ra ç a s / O nde D eus, p o r p referência, /
P la n to u os lírio s da rea leza [...] / E o u tras flo res em g ra n d e abundância:
/ A flo r da. p a z e a flo r da ju stiç a , / A flo r da fé e a flo r da franqueza , /
A flo r do a m o r e a flo r aberta / do senso e do cavalh eirism o [...] / E o
ja r d im da d o c e F ra n ç a f . . . ] .
RÉ G IE PERNUD
80

im perador não ousou insistir e partiu- A noção de p átria estava, p o r­


tan to , de de esta época, suficientemente fixa p ara provocar um a coli­
gação geral e tinha-se consciência, através da diversidade e do esbo-
roam ento dos feudos, de fazer parte de um todo. E sta noção devia
afirm ar-se ainda com brilho, um século m ais tarde, em Bouvines,
e a explosão de alegria que su x ito u , em P aris e em todo o reino,
o anúncio da vitória real testem unha-o suficientemente. O patriotism o,
nesta época, apoia-se na m ais segura das bases, que é o am or da terra,
o apego ao solo, m as sabe, em caso de necessidade, m anifestar-se
para a F ran ça inteira, para o «jardim da doce França».
C A PÍT U L O VII

A IGREJA

A história da Igreja está tão intim am ente ligada à da Idade M édia


em geral que é incóm odo fazer um capítulo à p arte; seria preferível,
sem dúvida, estudar, a propósito de cada característica da sociedade
m edieval, ou de cada etapa da sua evolução, a influência que ela
exerceu ou o papel que nela desem penhou \ É, aliás, im possível, ter
um a visão ju sta da época se não se possui algum conhecim ento da
Igreja, não só nas suas grandes linha:, m as tam bém em porm enores
com o a liturgia ou a hagiografia, e é a prim eira recom endação que
se faz aos aprendizes-m edievistas, isto é, aos alunos da École des
Chartes, a de se fam iliarizarem com eles.
A preenderem os de im ediato a im portância do seu papel se nos
reportarm os ao estado da sociedade durante os séculos a que se con­
vencionou cham ar a A lta Idade M édia: período de esboroam ento de
forças, durante o qual a Igreja representa a única hierarquia organi­
zada. Face á de agregação de todo o poder civil, um ponto perm anece
estável, o papado, resplandecendo no m undo ocidental na pessoa dos
bispos; e m esm o nos períodos de eclipse que a Santa Sé sofreu, o
conjunto da organização perm anece sólido. Em F rança, o papel dos
bispos e o dos m osteiros é capital na form ação da hierarquia feudal.
Este m ovim ento que leva a arraia-m iúda a p ro cu rar a protecção dos
grandes proprietários, a confiar-se a eles por actos de recom endação
(com m endatio) que vem os m ultiplicarem -se desde o fim do Baixo
Im pério, só podia funcionar a favor dos bens eclesiático s; agrupava-se
í. volta dos m osteiros m ais facilm ente do que à volta dos senhores
líticos. «Vive-se bem sob o báculo», dizia um adágio popular, trad u ­
zindo o provérbio latino Ju g u m eccíesíe, ju g u m dílecte. A badias

' P o r exemplo, tr ab a lh o s r ec en te s v a l o ri z a r a m a o rigem não ap en as


mi >rh>.sii m a s p ro p ri a m e n te eu c ar ís ti ca das asso ciações m ed iev ais: a
p rocissão do S an t o S ac ra m en to foi a « cau sa d ir ecta» d a fu n dação das
co nfrarias o p erá ria s. Ver, a este propósito, a bela o b r a de G. E sp in as,
Lew origines du d ro it d'association (Lille, 1943) em p a rt. t. I, p. 1031.
RÉ G IE PERNO
82

com o Saint-G erm ain-des-Prés, L érins, M arm outiers, São V ítor de


M arselha, viram assim acrescentarem -se as suas possessões;. Do mesmo
m odo, os bispos tom aram -se frequentem ente os senhores tem porais
de toda ou p arte da cidade da qual haviam feito a sua m etrópole e
cooperam activam ente a defendê-la das invasões. A atitude do bispo
Gozlin por ocasião do ataque de P aris pelos N orm andos está longe de
constituir um facto isolado e, frequentem ente, a própria arquitectura da
igreja traz a m arca desta função m ilitar que era então, p ara todos
aqueles que possuíam algum poder, um dever e um a necessidade: é o
caso das Santas M arias do M ar ou das igrejas fortificadas da
Thiérache.
A grande sabedoria de Carlos M agno foi com preender o interesse
que apresentava esta hierarquia solidam ente organizada e que factor
de unidade a Igreja podia ser p ara o Im pério. D e facto, a lei católica
era a única a po d er cristalizar as possibilidades de união que se reve­
lavam graças ao advento da dinastia corolíng>a, a poder cim entar uns
aos outros estes grupos de hom ens dispersos refugiados nos seus
dom ínios. E xactam ente com o aceitava a feudalidade, achando m ais
útil servir-se do poder dos barões do que com batê-lo, conduziu, favo­
recendo a Igreja, a exaltação da cristandade- A sua coroação em
R om a pelo papa Estêvão II continua a ser um a das grandes datas
da Idade M édia, associando p ara séculos o poder espiritual e o poder
tem poral. A doação de Pepino acabava de fornecer ao papado o
dom ínio territorial que devia constituir a base do seu m agistério dou­
trinal; recebendo a sua coroa das m ãos do papa, C arlos M agno afir­
m ava sim ultaneam ente o seu próprio poder e o carácter deste poder,
apoiando-se em bases espirituais p ara estabelecer a ordem europeia.
O papado dera-se num corpo, o Im pério dá-se num a alma.
D aí esta com plexidade da sociedade m edieval, tanto civil como
religiosa. D om ínio espiritual e dom ínio tem poral, que desde a R en as­
cença se olharam cada vez m ais com o distintos e separados, aos
quais se tentou definir os limites respectivos, e que se tendeu a ver
ignorarem -se m utuam ente, estão então continuadam ente m isturados.
Se se distingue o que pertence a D eus e o que pertence a César, os
mesm os personagens podem alternadam ente representar am bos e os
dois poderes com pletam -se. Um bispo, um abade, são tam bém adm i­
nistradores de senhorios, e não é raro ver a autoridade laica e a
autoridade religiosa p artilh ar um a m esm a castelania ou um a mesma
cidade; um caso típ>co é fornecido por M arselha, onde coexistem
a cidade episcopal e a cidade de visconde, mesmo com um enclave
reservado ao capítulo e cham ado a cidade das Torres. Este poder
fundiário do clero resulta sim ultaneam ente de fad o s económicos
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 83

e sociais e da m entalidade geral da época em que a necessidade de


um a unidade m oral com pensa a descentralização.
Sem elhante ordem era inseparável de perigos; as lutas do Sacer­
dócio e do Im pério provam que esta separação m uito delicada a fazer
entre o reino de D eus e o de César não foi sem pre realizada na p er­
feição: houve usurpações de am bas as partes; a questão das Inves­
tid u ras, em particular, torna públicas as pretensões dos im peradores
em se imiscuir em questões dependentes da hierarquia eclesiástica.
A F rança é, sem dúvida, um dos países em que se soube, com a
m aior justeza, realizar esta síntese entre o po d er espiritual e o poder
tem poral, e os C apetianos, até Filipe, o Belo, conseguiram , no seu
conjunto, conciliar a defesa dos seus interesses com o respeito da
autoridade eclesiástica, não por um equilíbrio precário, m as por essa
visão exacta das coisas e por esse desejo de justiça que desde o
século X II levaram um Luís V II a ser escolhido como árbitro nos
conflitos que opunham os dois grandes poderes da cristandade: o
im perador F rederico B arba-R uiva e o pap a A lexandre III.
Pelo seu lado, a Igreja nem sem pre soube defender-se das cobiças
m ateriais que são p ara ela a m ais temível das tentações. É a grave
censura que se pode fazer ao clero m edieval, a de não ter dom inado
a sua riqueza. E ste defeito foi vivam ente sentido na época. A bundam
os provérbios que m anifestam que o povo dava a sua preferência aos
clérigos que praticavam a pobreza evangélica: «N unca m onge rico
dirá boa canção», e ainda: «Báculo de m adeira, bispo de ouro, bispo
de m adeira, báculo de ouro». A dm item -se os rendim entos do clero:
«Quem altar serve, de altar deve viver», m as declaram -se contra,
como é justo, os abusos, dos quais, em dem asiados casos, ele não sabe
livrar-se, sobretudo a cobiça:

E l si ils vont la m e sse ouír


Ce ríe st p a s p o u r D ieu conjouir
A ín s e st p o u r les deniers, avoii 2

Assim se exprim e Rutebeuf, que renova m ais de um a vez as suas


críticas:

T oufoiírs veulent, sans dormer, pren d re


Toujours achèterrt sans rien vendre;
lis tollent [prennent], Von n e le u r tolt r i e n 3.

(2) E se vao a m issa o u v ir / Nao é p a ra estarem com D e u s / A n te s ó


in tra c o lh e r os dinheiros.
(3) Sem pre (querem, se m dar, re c e b e r i S em p re m erca m sem n ada
re n d e r ; E le s tiram, m < is n ada se lh es tira.
REGI NE PERNO
84

E sta avareza, segundo ele, corrom peu até a corte de R om a:

Qui argent p o rte à R om e a ssez tôt p ro ve n d e a:


On n e les donne m ie si com D ieu com m anda;
On sa it bien dire à R om e: si voil im petrar; da,
E t si n o n voilles dar, anda la voie, anda! *

Se os ataques p aram perante a personalidade do papa, os cardeais


são frequentem ente acusados desta afeição ao dinheiro que faz dis­
tribuir as prebendas e os benefícios aos m ais ricos, não aos m ais
dignos. E sabe-se tam bém que protestos vigorosos suscita este n ep o ­
tism o e o dos bispos:

A leu rs neveux, qui rien n e valent


Qui en leu rs lits encore étalent
D o n n en t provendes, e t irig a len t [s'am usent]
P o u r le s deniers que ih em m allent [encaissent] 3.

É tienne de F ougères, a quem são devidos estes versos, dá conse.


lhos salutares sobre esta questão àqueles que têm a m issão de nom ear
os pastores dos fiéis:

O rdonner d o it bon clerc e t sage


D e bonne m oeurs, de bon aage,
E t n é de lo y a l m ariage;
P eu n e m e chaut de qu el p a ra g e [origine]
N e d o it n u l p ro u ve re ordonner,
Se il m o u stier lu i veut donner,
Que il n e sache serm onner,
E t la g e n t bien a rra iso n n e r6.

E sta riqueza devia inevitavelm ente arrastar um a decadência e


um relaxam ento nos costum es, dos quais a Igreja se defendeu através
de reform as sucessivas. É R utebeuf ainda que se ergue, entre outros,

(4) Q uem dinheiro entrega a R om a basta nte cedo tem p reb en d a ; / N a ­


da se lh e dá se se o bedece a D eus; / D iz-se vulgarm ente em R om a:
se queres obter, dá, / B se n ã o queres dar, p õ e -te a andar!
'-5'1 A o s so b rinhos que n a d a vaiem / Q ue n o s seu s leito s ain da se
expõem / D ã o p rebendas, e div ertem .se/C om os din heiros q u e recebem .
(6) D eve-se o rd en a r um bom e sá b io clérigo / D e bons costum es, ili­
bou idade, / E n a scid o de h o n esto casam ento ; / P o u co im p orta q u a l a
origem, / N en h u m p r io r deve ordenar, / S e o m o steiro lh e q u iser dar, /
Que n ã o sa ib a p r e g a r um serm ão, / E a s g en tes persu adir.
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA 85

contra esta apatia de certos clérigos preocupados antes de tudo em


se aproveitarem dos seus bens m ateriais:

A h ! p réla ts de S a in t E glise
Qui, p o u r g a rd er le s corps de bise
N e voulez a ller a u x m atinês,
M essire G eoffroy de Sargínes
Vous dem ande dela de la mer.
M a is j e dis cil fa it ú blâm er
Qui rien ra d ie p lu s vous dem ande
F ors bons vins e t bonnes viandes
E t que le p o iv re so it bien fo rt [...] 1.

Estas fraquezas estão na origem das crises que, por diversas


vezes, a Igreja m edieval atrav& sa e dos grandes m ovim entos que a
agitam . A evolução do clero regular dá m uito exactam ente conta
da evolução geral da Igreja. N os prim eiros séculos, os m onges bene­
ditinos realizam um trabalho prático: são cultivadores de baldios,
abrindo o cam inho ao Evangelho com a relha do seu arado; abatem
florestas, secam pântanos, aclim atam a vinha e semeiam o trigo; o seu
papel é em inentem ente social e civilizador; são eles tam bém que
guardam para a E u ro p a os m anuscritos da A ntiguidade e fundam
os prim eiros centros de eru d ;ção. R espondendo às necessidades da
sociedade que evangilizam, foram pioneiros e educadores, ajudando
p oderosam ente ao progresso m aterial e m oral desta sociedade. AA o r­
dens que se fundam depois têm um carácter com pletam ente diferente:
franciscanos, dom inicanos, têm um fim em prim eiro lugar doutrinal;
representam um a reacção precisam ente contra e s e abuso das riquezas
que se censura à Igreja do seu tem po e contra as heresias que a
am eaçam . Ao m esmo tem po, acentuam o m ovim ento de reform a, já
desenhado por duas vezes com os monges negros de Cluny e os
monges brancos de Clairvaux e de Citeaux. Assim, a pró p ria Igreja
sentira os perigos a que a expunha o seu lugar no m undo m edieval
e rem ediava-os, continuando a fazer face às necessidades novas que
se apresentavam : aos perigos incorridos pelos L ugares Santos, às
dificuldades sentidas pelos peregrinos que os visitam , opõe o auxílio
guerreiro dos T em plários e o auxílio caritativo dos H ospitalários.

7 A h ! p re la d o s da Santa Ig reja / Que, p a ra p o u p a rem o corpo à


invernia, / N ã o querem i r à s m atinas, / 0 distin to G eo ffro y de Sa rg in es /
Vos dem anda de além -m ar. / M a s d ig o-vos se aquele vos condena / Que
nin g u ém m a is vos d em a n d e / E xcelen tes vinhos e excelentes carnes / E
que se carregue bem n a p im en ta ...
86 REGI NE PERNO

Cada estado de facto suscita da sua p arte novas iniciativas, através


das quais se p o d e seguir to d a a m archa de um a época.
E m ais difícil deslindar a influência m oral exercida pela Igreja
nas instituições privadas po rq u e a m aior parte das noções que lhe
são devidas entraram de tal m odo nos costum es que tem os dificuldade
em nos darm os conta da novidade que elas apresentavam . A igualdade
m oral do hom em e da m ulher, por exem plo, representa um conceito
inteiram ente estranho à A ntiguidade; a questão nem sequer se tinha
posto. D e igual m odo, na legislação fam iliar, era um a profunda origi­
nalidade substituir ao direito do m ais forte a protecção devida aos
fracos; o papel do pai de fam ília e do proprietário fundiário encon­
trava-se com pletam ente m odificado. F ace ao seu poder, proclam ava-se
a dignidade da m ulher e da criança e fazia-se da pro p ried ad e um a
função social. O m odo de encarar o casam ento, segundo as ideias
cristãs, era tam bém radicalm ente novo: até então só se vira a sua
utilidade social e se adm itira, p o r consequência, tudo o que não
arrastava desordens deste ponto de vista; a Igreja, pela prim eira vez
na história do m undo, via o casam ento em relação ao indivíduo,
e considerava nele, não a instituição social, m as a união de dois
seres p ara desabrocham ento pessoal, p ara a realização do seu fim
terrestre e sobrenatural; isto arrastava, entre outras consequências,
a necessidade de um a livre adesão em cada um dos cônjuges, dos
quais ela fazia os m inistros de um sacram ento, tendo o p ad re como
testem unha, e a igualdade de deveres p ara ambos. A té ao concílio
de Trento as form alidades da Igreja são m uito reduzidas, visto que
basta a troca de ju ram en to s perante um padre: «Tom o-te por esposo-
— Tom o-te p o r esposa», p ara que o casam ento seja válido; é em casa
que se passam as cerim ónias simbólicas: beber pela m esm a taça, com er
do m esm o pão:

Boire, m anger, coucher ensem ble


F o n í m aríage, ce m e sem bles

tal é o adágio de direito consuetudinário, ao qual se acrescenta no


século x v i: «M as é preciso que a Igreja passe por lá.»
Seria ainda necessário assinalar a influência exercida pela dou­
trina eclesiástica no regim e de trabalho; o direito rom ano apenas
conhecia, nos contratos de arrendam ento ou de venda, a lei da oferta
e da procura, enquanto o direito canónico e depois dele o direito
consuetudinário subm etem a vontade dos contraentes às exigências
da m oral e à consideração da dignidade hum ana. Isto devia ter um a

l-s'1B eber, comer, d o rm ir ju n to s , / F azem o casam ento, p a rece-m e


L UZ SO B R E A ID A D E M EDIA 87

profunda influência nos regulam entos dos m estres, que proibiam à


m ulher os trabalhos dem asiado fatigantes p ara ela, a tapeçaria de tear
alto, por exem plo; o resultado foram tam bém todas aquelas precauções
de que se rodeavam os contratos de aprendizagem e o direito de visita
concedido aos ju rad o s, tendo por fim controlar as condições de
trabalho do artesão e a aplicação dos estatutos. Sobretudo, é preciso
ap o n tar como muito revelador o facto de ter alargado ao sábado de
tard e o repouso de dom ingo, no m om ento em que actividade econó­
m ica se am plifica com o renascim ento do grande com ércio e o desen­
volvim ento da indústria.
U m a revolução m ais profunda tinha de ser introduzida pelas
m esm as doutrinas no concernente à escravatura. N otem os que a
Igreja não se ergueu contra a instituição propriam ente dita de escra­
vatura, necessidade económ ica das civilizações antigas. M as lutou
p ara que o escravo, tratado até então com o um a coisa, fosse daí em
diante considerado com o um hom em e possuísse os direitos próprios
da dignidade hum ana; um a vez obtido este resultado, a escravatura
encontrava-se praticam ente abolida; a evolução foi facilitada pelos
costum es germ ânicos que conheciam um m odo de servidão m uito
suavizado; o conjunto deu lugar à servidão m edieval, que respeitava
os direitos do ser hum ano e apenas introduzia, com o restrição à sua
liberdade, a ligação à gleba. É curioso constatar que o facto paradoxal
da reaparição da escravatura no século XVI, em plena civilização
cristã, coincide com o retorno geral ao direito rom ano nos costum es.
N um erosas concepções pró p rias das leis canónicas passaram
assim p ara o direito consuetudinário. O m odo com o a Idade M édia
encara a justiça é, deste ponto de vi ta, m uito revelador, porque a
noção de igualdade espiritual dos seres hum anos, estranha às leis
antigas, aí se m anifesta geralm ente. É neste sentido que foram in tro ­
duzidas, na continuação dos tem pos, diversas reform as, por exemplo
no que respeita à legislação dos bastard oj, tratad o s m ais favoravel­
mente pelo direito eclesiástico do que pelo direito civil, porque eles
não são considerados responsáveis pela culpa à qual devem a vida.
Fm direito canónico, um a pena infligida tem como fim, não a vin­
gança da injúria ou a reparação p ara com a sociedade, mas a em enda
do culpado, e este conceito, tam bém ele inteiram ente novo, não deixou
de modificar o direito consuetudinário. A sociedade m edieval conhece
assim o direito de asilo, consagrado pela Igreja, e é bastante des­
concertante, p ara a m entalidade m oderna, ver oficiais de justiça
sofrerem um a condenação por terem ousado p en etrar nas terras de
uni m osteiro a fim de aí pro cu rar um crim inoso; é, contudo, o que
aconleceu, entre outros, ao ju rista Beaum anoir. Acrescentem os que
os tribunais eclesiásticos rejeitavam o duelo judiciário bem antes
RÉG IE PERNOUD
88

da sua prescrição p o r L uís IX , e que foram os únicos, até à ordem


de 1324, a prever perdas e danos para a parte lesada. A Id ad e M édia,
sob a m esm a influência, conhecia a gratuidade da ju stiça p ara os
pobres, que recebiam m esm o, se necessário, um advogado oficial.
O culpado só era declarado tal um a vez feita a prova, o que significa
que se ignorava a prisão preventiva-
A Igreja, com o toda a sociedade m edieval, goza de privilégios,
o principal dos quais consiste precisam ente em possuir os seus próprios
tribunais. É o p rivilegium forí, reconhecido a todos os clérigos e
àqueles que, pela sua profissão, estão ligados à vida clerical, por
exem plo, os estudantes e os médicos. O papel dos «provisorados»
ou tribunais eclesiásticos, na Idade M édia, foi tanto m ais amplo
quanto o núm ero de pessoas dependendo directa ou indirectam ente
do clero era então imenso e, com o o título de clérigo se aplicava de
um m odo infinitam ente m enos restrito do que nos nossos dias, houve
frequentem ente confusão e contestações entre a justiça real ou senho­
rial e a ju stiça eclesiástica. Os clérigos eram todos aqueles que tinham
um m odo de vida clerical; esta definição b astan te vaga tinha o defeito
de convir tanto àqueles que, m estres ou alunos, frequentavam a
U niversidade, com o aos m onges e aos padres; fundam entaram -se por
vezes em. sinais exteriores, com o a tonsura ou o vestuário, m as estes
atributos podiam ser usurpados por aqueles que preferiam a justiça
do direito canónico à do direito consuetudinário e daí o provérbio:
«O hábito não faz o m onge.» De um m odo geral, consideraram -se
clérigos aqueles que se subm etiam às obrigações da vida clerical,
em particular no que respeita à interdição do casam ento, que, aliás,
só se estendia, então, aos clérigos que recebiam as ordens m aiores,
quer dizer, aos diáconos e aos padres. No século XII esta interdição
é aplicada aos subdiáconos, m as não às ordens m enores que não eram
então consideradas com o tendo de levar forçosam ente ao sacerdócio.
Os outros clérigos podiam to m a r a casar em ju stas bodas, de de
que cum única e t vírgíne, um a só vez, e com um a jovem . Casar com
um a viúva, ou voltar a casar, era p ara um clérigo expor-se a ser taxado
de bigam ia, term o que várias vezes consentiu confusão.
U m a série de m edidas veio regular e restringir na Idade M édia
os direitos dos clérigos no que respeita ao regim e de sucessões; trata-
va-se, de facto, de im pedir que, na sequência de testam entos feitos
em favor de clérigos, a m aior parte das terras acabasse p o r voltar
para a Igreja. Tam bém os clérigos deviam renunciar às suas. sucessões,
pelo m enos no respeitante aos bens im obiliários, e isto constituía
um a co n trap artida dos privilégios eclesiásticos. Igualm ente p ara os
im postos as suas obrigações não eram as m esm a; que as dos laicos;
os curas de paróquia recebiam , em geral, a dízim a, contada, segundo
L U Z SOBRE A IDA DE MÉDIA 89

as províncias, de m odos diferentes: «de dez m olhos, um », ou o undé"


cim o m olho, ou m esm o, com o no Berry, o duodécim o ou o décim o
terceiro. Em com pensação, o conjunto do clero estava sujeito às
décim as cobradas pelo rei; num erosas em baixadas jun to da Santa Sé
têm a finalidade de pedir autorização de cobrar ao clero «décim as
extraordinárias», por exemplo na ocasião de um a expedição; isto cor­
respondia proporcionalm ente às talhas cobradas aos cam poneses e
representando a sua contribuição p ara as guerras do reino.
U m a das funções da Igreja e dos seus tribunais é a luta contra
a heresia. Toca-se aqui num a característica essencial da vida m edieval,
que frequentem ente fez escândalo depois. P ara o apreender bem , é
preciso com preender que a Igreja é então a garantia da ordem social,
e que tudo aquilo que a am eaça ataca ao m esm o tem po a sociedade
civil. T anto m ais que as heresias suscitam frequentem ente m ais vio­
lentas reprovações nos laicos que nos clérigos. P ara exem plo, tem os,
nos nossos dias, algum a dificuldade em retratar o profundo m al-estar
produzido na sociedade pela heresia albigense, sim plesm ente pelo
facto de ela proscrever o ju ram en to ; era atacar a própria essência da
vida m edieval: o vínculo feudal. Todo o fundam ento da feudalidade
se encontrava abalado p o r is s o 9- D aí as reacções vigorosas, excessivas
p o r vezes, às quais se assistiu. Estes excessos devem ser atribuídos
à Igreja? L uchaire, pouco suspeito de indulgência p ara com ela, vê
no papado um «poder essencialm ente m oderador» na luta contra a
heresia. É, com efeito, o que ressalta das relações entre Inocêncio III
e R aim undo de Toulouse e da correspondência do pap a com os seus
núncios. P or outro lado, o exame de casos p articulares revela clara­
m ente que pilhagens e m assacres, quando se realizam , são acto de
um a m inoria excitada, que se vê em consequência vivam ente censurada
pela autoridade eclesiástica. Já citám os 10 a carta de São B ernardo aos
burgueses de Colónia depois do m assacre de heréticos que teve lugar
em 1145: «O povo de Colónia ultrapassou as m arcas. Se aprovam os
o seu zelo, não aprovam os de m odo nenhum o que ele fez, porque
a fé é obra de persuasão e não se impõe.» É que, como acontece
frequentem ente, os laicos são m uito m enos m oderados e m ais im pie­
dosos que os clérigos nos seus juízos, e neles tam bém as preocupações
m ateriais se ju n tam , para as agravar, às preocupações doutrinais.
O prim eiro soberano que aplica aos heréticos condenados a ser entre­
gues ao braço secular a pena de fogo, é o im perador Frederico II;
podem os adm irar-nos disso, visto que sabemos que o personagem
era bem pouco cioso da ortodoxia. N ão vimos nele, várias vezes,

(9 ) A observação foi feita p or M. B e lp e rro n na sua obra sobre


La C r o is a d e des A lb ig e o is (p. 7 6 ).
( 10) Mu p. 115.
90
RÉGINE PERNO

um espírito dos m ais «m odernos», facilm ente céptico, n ad a m enos


que obrigado a obedecer às objurgações do p apa, e que, quando faz
cruzada, ostenta durante tod a a sua cruzada o m ais profundo desprezo
pelos seus correligionários, com a mais viva sim patia pelos M uçul­
m anos? É bem provável, desde logo, que a preservação das heresias
só o devia interessar de um m odo m uito secundário; m as, político
pru d ente, ele sentira o perigo que os heréticos faziam correr a socie­
dade tem poral. D e igual m odo, os m assacres de Judeus na ocasião
da prim eira cruzada não são com etidos pelos exércitos de P edro,
o E rem ita, ou de G autier Sans Avoir, m as são ordenados na A lem a­
nha, por um senhor laico, o conde E nnrich de Leiningen, depois da
p artid a dos cruzados. As expulsões de Judeus foram , aliás, pelo m enos
em F rança, m uito m enos num erosas do que se tem dito, um a vez
que apenas houve três de alcance geral, um a sob São L uís, p or oca­
sião da sua cruzada, as duas outras sob F ilipe, o Belo, ordenadas p o r
cie p o r razões financeiras.
É sob um a acção sem elhante dos poderes laicos, desviando-se
em seu favor, e para fazer um instrum ento de dom inação das m edidas
de defesa tom adas pela Igreja — por vezes, entende-se, com a cum ­
plicidade de certos eclesiásticos isolado: — que a Inquisição adquiriu
a sua deplorável reputação. Contudo, ela só teve um carácter verda­
deiram ente sangrento e feroz na E sp an h a im perial do início do sé­
culo x v i. D urante toda a Idade M édia, é apenas um tribunal ecle­
siástico destinado a «exterm inar» a heresia, quer dizer, a extirpá-la,
expulsando-a p ara fora dos limites (ex terminis) do reino; as peni­
tências que impõe não saem do âm bito das penitências eclesiásticas,
ordenadas em confissão: são esmolas, peregrinações, jejuns. N os casos
graves, unicam ente, o culpado é entregue ao braço secular, o que
significa que incorre em penas civis, com o a prisão ou a m orte;
pois, de todo o m odo, o tribunal eclesiástico não tem o direito
de pronunciar ele próprio semelhantes penas. A liás, segundo de­
claração de autores, de qualquer tendência que sejam, que estu­
daram a Inquisição pelos textos, esta apenas fez, segundo a expres­
são de Lea, escritor protestante, traduzido em francês por Salomon
R einach, «poucas v ítim a s» " . Em novecentas e trinta condenações
produzidas pelo inquisidor B em ard Gui durante a sua carreira, qua­
renta e duas ao todo conduziram à pena de m orte. Q uanto à tortura,
apenas se assinalam , em toda a história da Inquisição no L inguadoque,
três casos certos em que ela foi aplicada; é dizer que o seu uso era
nada m enos que geral. E ra preciso, por outro lado, p ara que ela fosse

(1 1 ) L e a , H isto ire d e l 'I n q u i s i t i o n , t. I, p. 489.


L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 9!

aplicada, que houvesse com eço de prova; só podia servir p ara fazer
com pletar confissões já feitas. A crescentem os que, como todos os
tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e
deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua
culpabilidade.
*

Não deixa de ter interesse, estudando a Igreja na Idade M édia,


consagrar algum a atenção às características da fé m edieval, sobre a
qual m uitos juízos erróneos foram feitos. Vemos facilmente nela um a
época de «fé ingénua», de «fé do carvoeiro», em que se aceitam em
bloco e cegam ente preceitos e prescrições eclesiásticos, em que o
Inferno m antém no pavor populações crédulas, e p o r isso m ais facil­
m ente exploradas, em que, enfim, o rigor das disciplinas e o medo
do pecado excluem todo o prazer tem poral.
Com efeito, é na Idade M édia que se elaborou um a das m ais
vastas e audaciosas sínteses que a história da filosofia conheceu. E sta
conciliação entre a sabedoria antiga e o dogm a cristão, desem bocando
nas grande: obras dos teólogos do século XIII, não representa, posta
de lado qualquer preocupação de ordem religiosa, um magnífico
esforço do espírito? A questão dos U niversais, as discussões sobre
o nom inalism o ou o ilum inism o, que apaixonaram o m undo pensante
de então, testem unham a intensa actividade intelectual de que as
U niversidades, a de P aris, a de Oxford e outras, eram o centro. As
discussões a que assistimos, entre teólogos, as disputas de um A belardo
ou de um Siger de B rabant, ardentem ente seguidas e discutidas pela
juventude das escolas, não são a prova de que, nestas m atérias, m ais
(talvez do que em quaisquer outras, o sentido crítico tinha o po rtu ­
nidade de se exercer? Q uando, depois do assassinato do núncio Pierre
de C astelnau, foi decidida a C ruzada dos Albigenses, haviam decorrido
mais de vinte anos de discussões entre os enviados de R om a e os
defensores do catarism o: poderem os concluir daí que a fé não era
discutida? Parece, pelo contrário, que a religião, tal com o era então
com preendida, preocupava tanto a inteligência quanto o coração e
que se não deixou de nela aprofundar os diferentes aspectos. Não
há aí vestígio de «ingenuidade» — como tam bém o não há naquilo
que ela inspirava, quer se trate das catedrais ou das cruzadas. Poder-
-se-ia objectar que não se passava o mesmo entre o povo, mas é,
contudo, do povo que saíam aqueles m onges e aqueles estudantes
apaixonados pela dialéctica e pela teologia; é o povo que lança, nos
fabulados, os seus ataques contra as riquezas do clero e que, tam bém ,
partia para a cruzada e construía as catedrais. N ão se com etia, entre-
gando-se a voz dos pregadores; um acto irreflectido, de pura obe­
R ÉGINE PERNOUD
92

diência. Os poem as e canções de cruzada que circulam pela época


apelam , p ara convencer, à persuasão — a essa persuasão própria da
do utrin a católica, que pro p õ e ao hom em , com o fim últim o, o am or
d iv in o — , m as é, ainda assim, dialéctica, não apelos sentim entais:

Vous qui a im ez de vraie am our


E ve illez vous, n e d o rm ez point.
Ualouette vous trait le jo u r
E t si vous d it en son latin:
O r e st venu le j o u r de p a ix
Que Dieu, p a r sa très g r a n d douçour
P ro m et à ceu x qui p o u r s*am our
P redront la croix, e t p o u r le u r fa it
Souffriront p e in e n u it e t jo u r .
O r verra-t-il le s am ants vrais [...] 12

E o resultado das C ruzadas, o estabelecim ento dos reinos latinos


de O riente, prova que não se tratav a de arrebatam entos d e :arrazoados;
todos esses cavaleiros que constroem fortalezas e que redigem códigos
para uso dos seus novos principados de m odo nenhum fazem figura
de estouvados ou de exaltados e não se deixam u ltrap assar pelos
acontecim entos. Como o próprio Lavisse notou: «À glória de conquis­
tar, os nossos cavaleiros sabiam acrescentar, sendo caso disso, a de
organizar as conquistas e de fundar um governo. M as talvez eles não
tivessem alcançado um tão grande sucesso se a Igreja não tivesse
colaborado na sua obra.» 13 Se a sua fé era ingénua, devem os então
dizer que não excluía um sólido sentido prático- E as realizações às
quais ela conduz forçam tam bém a pensar que não consistia som ente,
com o se disse, no culto das relíquias. A Idade M édia am a as relíquias,
com o am a tudo o que é sinal visível de um a realidade invisível. N ão
é sentim entalidade, é realism o. A relíquia corresponde a esta traditio,
esta reposição de um símbolo constituindo os actos de vendas, ou a
investidura de um conde: traço geral da época, e não apenas da
religião desta época.
N ão é aqui lugar de discutir a crença no Inferno, que pertence
ao dogm a católico e não é, por conseguinte, particu lar da Idade

(12) Vós que am a is com. verdadeiro a m o r / D esp ertai, não a d o rm e ­


ceis. / A caííiandra traz-vos o dia / E diz-vos n o seu lin g uajar: / C hegou
o dia da p a z / Que Deus, p e la Sua g ra n d e doçura / P ro m ete à q uele s que
por seu a m o r / A rra sta rã o a cruz, e por esse fa cto / so frerão dorn a
n o ite e dia. / A i se conhecerão os verdadeiros a m antes I ..'].
(13) H isto ire d e F rance, t. II, 2, p. 105.
L U Z SOBR E A IDA DE MEDIA 93

M édia. Fica p or saber se as visões do Inferno, m agistralm ente evo­


cadas pelos pintores e pelos poetas, engendravam esse terro r parali-
sante que se im agina facilm ente e se as m ortificações inspiradas pela
Igreja acabavam p or p riv ar os nossos antepassados das alegrias da
existência. Bem parece que a força essencial da fé m edieval foi não
o m edo, m as o amor: «Sem am or, não poderá nenhum hom em bem
servir a D eus», dizia-se, e ainda:

Sans a m our n u l n e p e u t à h o n n e u r p a rv e n ir
S i d o it être a m o u reu x qui veut g ra n d d e v e n ir 1'.

Não é dim inuto espanto encontrar, nos tratados de m oral da


época, oito pecados capitais enum erados, em vez dos sete que conhe­
cem os; ora o oitavo é, coisa inesperada, a tristeza, tristitia. Os teólogos
definem -na, para a condenar, e porm enorizam os rem edia tristitie aos
quais convém recorrer quando se sente exposto à melancolia:

C or irié, m o rn e e t p en sis
P eu t Von bien p erd re P aradis,
E t p le in de j o ie e t envoisié —
M a is quon se g a r d d'o utre p é c h é —
L e p eu t-o n bien conquerre aussi15.

N a base da concepção do m undo na Idade M édia, descobre-se,


pelo contrário, um sólido optim ism o. Com razão ou sem ela, parte-se
então do princípio de que o m undo está bem feito, que se o pecado
perde o hom em , a redenção o salva, e que nada, sofrimento ou alegria,
acontece, que não seja p ara seu bem , de que ele não possa tirar
ensinam ento e vantagem :

C ar m aintes j o i s a ller à Vaventure


E n ce qu'on craint, a vo ir p e in e e t douleur
Vient à effet de douce nourriture:
J e tiens que D ieu fa it tout p o u r le m eilleur.

(14) S e m am or n in g u ém pode a lca n ç a r a h o n ra /D e v e se r am oroso


q uem g ra n d e se q u e r tornar.
(15) P o rq u e acabru nhado, som brio e p e n sa tiv o /P o d e -se perd er o
P ara íso , / E cheio de alegria e de êxtase — /M a s que se evite outro
pecado i P ode-se conquistá -lo também .
94 RÉG IE PERNO

D ieu n 'a p a s fa it chacun d'une jo in tu re ,


Terres n i Heurs toutes d'une couleur:
M a is rien n 'a d v ie n t d o n t Heur n 'a it ouverture.
J e tiens que D ieu fa it tout p o u r le m eilleur )B,

assim se exprim e E ustache D escham ps, um dos poetas que deu o «pano­
ram a» m ais com pleto e m ais exacto da vida do seu tem po. P erante
textos deste género, e sem sequer evocar as patuscadas gigantescas
a que as festas religiosas davam ocasião, é-se bem forçado a pensar
que, se houve, na história do m undo, um a época de alegria, é a
Idade M édia — e a concluir com a observação m uito ju sta de D rieu la
Rochelle: «Não é apesar do cristianism o, m as através do cristianism o
que se m anifesta aberta e plenam ente esta alegria de viver, esta
alegria de ter um corpo, de ter um a alm a nesse corpo ... esta alegria
de ser» ",

is P o rq u e m u ita s vezes cam inhar-se na aventura / D o que se teme,


te r p e n a e dor, / Serve de doce alim entação: / C reio que D e u s fa z tudo
p e lo m e lh o r
D e u s n ã o fe z ca da um ig u a l ao outro, / N e m as terras n e m as flo res
de um a só cor: / M a s n ada aconte ce se a flo r n ã o se abre. / C reio que
D e u s fa z tudo p e lo melhor.
i? A r t i g o s o b r e « L a C o n c e p t i o n d u c o r p s au M oyen Age», na Revue
F ra nçaise,n.° I, 1940, p. 16.
C A P ÍT U L O V III

O ENSINO

A criança, na Idade M édia como em todas as épocas, vai à


escola. É, em geral, a escola da sua paróquia ou do m osteiro m ais
próxim o. Com efeito, todas as igrejas agregam a si um a escola; o
concílio de L atrão , em 1179, faz-lhes disso um a obrigação estrita,
e é um a disposição corrente, ainda visível em Inglaterra, país m ais
conservador do que o nosso, encontrar reunidos a igreja, o cem itério
e a escola. F requentem ente tam bém , são as fundações senhoriais
que asseguram a instrução das crianças; um a aldeiazinha das m argens
do Sena, R osny, tinha, desde o início do século x in , um a e cola
fundada p o r volta do ano 1200 pelo seu senhor, Guy V M auvoisin-
Por vezes, tam bém , trata-se de escolas puram ente privadas: os hab i­
tantes de um lugarejo associam -se p ara sustentar um professor encar­
regado de ensinar as crianças; um pequeno texto divertido conser­
vou-nos a petição de alguns pais solicitando a dem issão de um p ro ­
fessor, que não tendo sabido fazer-se respeitar pelos seus alunos é
por eles desrespeitado, ao ponto de eum p u g íu n t g ra fíoníbus — de eles
o picarem com os seus gratines, os estiletes com os quais eles escre­
vem nas suas tabuinhas revestidas de cera.
M as os privilegiados são evidentem ente aqueles que podem apro­
veitar o ensino das escolas episcopais ou m onásticas, ou ainda das
escolas capitulares, porque os capítulos das catedrais estavam subm e­
tidos à obrigação de ensinar que o referido concílio de L atrão lhes
fixara^. A lgum as adquiriram na Idade M édia um a notabilidade
m uito particular, por exemplo as de C hartres, de L ião, do M ans,
onde os alunos representavam as tragédias antigas, a de Lisieux
onde, no início do século X II, o bispo em pessoa se deleitava em vir
ensinar, a de C am brai, sobre a qual um texto citado pelo erudito
Pithou nos inform a de que elas tinham sido estabelecida, especial-

(1) « E m c a d a d i o c e s e » , d iz L u c h a i r e , « f o r a d a s e s c o l a s r u r a i s ou
p a r o q u i a i s q u e j á e x i s t i a m [...] os c a p í t u l o s e os m o s t e i r o s p r i n c i p a i s
t i n h a m as s u a s e s c o la s , o s e u p e s s o a l de p r o f e s s o r e s e de a l u n o s » . (La
S o c ié té fr a n ç a is e a u te m p d e P h il i p p e d e P h i l i p p e - A u g u s t e , p. 68.)
96 RÉG IE PERNO

m ente a fim de serem úteis ao povo na condução dos seus assuntos


tem porais.
As escolas m onásticas tiveram talvez ainda m ais renom e e os
nom es das de Bec, de F leury-sur-L oire, onde foi aluno o rei R oberto,
o Piedoso, de Saint-G éraud d'A urillac, onde G erbert aprendeu os
prim eiros rudim entos das ciências que ele próprio iria levar até um
tão alto grau de perfeição, vêm -nos naturalm ente à m em ória, como
as de M arm outier, perto de Tours, de Saint-Bénigne de Dijon, etc.
Em Paris, encontram -se desde o século XII três séries de estabele­
cim entos escolares: a escola N otre-D am e, ou grupo de escolas do
bispado, cuja direcção é assum ida pelo chantre para as classes ele­
m entares e pelo chanceler p ara o grau superior; as escolas das abadias
com o Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-G erm ain-des-Prés e,
enfim, as instituições particulares abertas pelos professores que obti­
veram a licença de ensino, como A belardo, por exemplo.
A criança era aí adm itida com sete ou oito anos de idade,
e o ensino que preparava p ara os estudos da U niversidade estendia-se
como hoje por um a dezena de anos; são os núm eros que o abade
Gilles le M uisit dá. Os rapazes eram separados das raparigas, que
tinham , em geral, os seus estabelecim entos particulares, m enos num e­
rosos talvez, m as onde os estudos eram p o r vezes m uito activos.
A abadia de A rgenteuil, onde foi educada H eloísa, ensinava às ra p a­
rigas a Santa E scritura, as letras, a m edicina e m esm o a cirurgia,
sem contar o grego e o hebraico que A belardo lá ensinou. Em geral,
as pequenas escolas proporcionavam aos seus alunos as noções de
gram ática, de aritm ética, de geom etria, de m úsica e de teologia que
lhes perm itiriam aceder às ciências estudadas nas U niversidades;
é possível que algum as tenham com portado um a espécie de ensino
técnico. A H istoire L ittéraire cita, por exem plo, a escola de Vassor,
na diocese de M etz, na qual, aprendendo a Santa E scritura e as letras,
se trab alh av a o ouro, a prata, o c o b re 2. Os m estres eram quase sempre
secundados pelos m ais velhos e m elhor form ados dos estudantes, como
actualm ente no ensino m útuo.

C é to it ce belle chose de p len te d e c o lie rs:


lis m a n o ien t ensem ble p a r loges, p a r soliers,
E nfants de rich es hom m es e t enjanis de toiliers [d'ouvriers] 3,

(2) L. V II, c. 29 ; a s s i n a l a d o p o r J. G u i r a u d , H isfo ire p a rtiale , h i s t o i r e


vraie, p. 348.
(3) Que bela coisa ver a quantid ade de aprendizes: / H a b ita va m cm
conju nto desvãos e quartos, / filh o s de hom ens ric o s e. filh o s de artesã o *
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA
97

diz Gilles le M uisit, lem brando as suas recordações de ju v entu d e; é


que, de facto, nesta época as crianças de todas as «classes» da socie­
dade eram instruídas ju ntas, como o testem unha a anedota célebre
que m ostra C arlos M agno sendo severo p ara com os filhos dos barões
que se m ostravam preguiçosos, ao contrário dos filhos dos servos
e de pessoas pobres. A única distinção estabelecida consistia nas re tri­
buições pedidas, sendo o ensino gratuito p ara os pobres e pago p ara
os ricos. E sta gratuitidade podia prolongar-se, vê-lo-emos, p o r toda
a duração dos estudos, e m esm o p ara o acesso ao ensino, um a vez
que o concílio de L atrão , já citado, proíbe às pessoas que têm a
m issão de dirigir e tom ar conta das escolas «de exigir dos candidatos
ao professorado um a qualquer rem uneração pela outorga da licença».
H á, aliás, p o u ca diferença, na Idade M édia, na educação dada
às crianças de diversas condições; os filhos dos vassalos m enores são
educados na residência senhorial juntam ente com os do suserano,
os dos ricos burgueses são subm etidos à m esm a aprendizagem que o
últim o dos artesãos, se querem tom ar conta, p o r sua vez, da loja
paterna. É sem dúvida p or isto que tem os tantos exemplos de grandes
personagens saídos de famílias de condição hum ilde: Suger, que go­
verna a F rança durante a cruzada de L uís V II, é filho de servos;
M aurice de Sully, o bispo de P aris que m andou construir N otre-D am e,
nasceu de um m endigo; São Pedro D am ião, na sua infância, guarda
porcos, e um a das m ais vivas luzes da ciência m edieval, G erbert
d'A urillac, é igualm ente pastor; o papa U rbano VI é filho de um
pequeno sapateiro de Troyes e Gregório V II, o grande p ap a da
Idade M édia, de um pobre cabreiro. Inversam ente, m uitos dos grandes
senhores são letrados cuja educação não devia diferir m uito da dos
clérigos: R o b erto , o Piedoso, com põe hinos e sequências latinas; G ui­
lherm e IX , príncipe da A q u itân ia,' é o prim eiro, cronologicam ente,
dos trovadores; R icardo C oração-de-Leão deixou-nos poem as, assim
como os senhores de Ussel, dos B aux e tantos outros — para não falar
de casos m ais excepcionais, com o o do rei de E sp an h a Afonso X,
o A strónom o, que escreve sucessivam ente poem as e obras de direito,
faz progredir notavelm ente os conhecim entos astronóm icos da época
com a redacção das suas Tables A lphonsínes [Tábuas A fonsinas],
deixa um a vasta C hroníque [C rónica] sobre as origens da H istória
de Espanha e um a com pilação de direito canónico e de direito rom ano
que foi o prim eiro C ode [C ódigo] do seu país.
Os estudantes m ais dotados tom am , naturalm ente, o cam inho
da U niversidade; fazem a sua escolha, segundo o ram o que os atrai,
porque cada um deles, tem um pouco a sua especialidade- Em M ont-
pcllicr, é a m edicina; desde a data de 1181 que G uilherm e V II, senhor
desta cidade, deu a qualquer particular, quem quer que seja e venha
RÉ G IE PERNO
98

donde vier, a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresente as


garantias de saber suficientes. O rleães faz sua especialidade o direito
canónico e Bologne o direito rom ano. M as, já, «nada se pode com ­
p arar a P aris», onde o ensino das artes liberais e da teologia atrai os
estudantes de todos os países: da A lem anha, da Itália, de Inglaterra,
e m esm o da D inam arca ou da Noruega.
E stas U niversidades são criações eclesiásticas, o prolongam ento,
de algum m odo, das escolas episcopais, das quais diferem no facto
de dependerem directam ente do papa e não do bispo do lugar. A bula
P arens scientiarum de G regório IX pode ser considerada com o a carta
de fundação da U niversidade m edieval, com os regulam entos prom ul­
gados em 1215 pelo cardeal-núncio R o b erto de C ourçon, agindo em
nom e de Inocêncio III, e que reconheciam explicitam ente aos profes­
sores e aos alunos o direito de associação. C riada pelo p apado, a U ni­
versidade tem um carácter inteiram ente eclesiástico: os professores per­
tencem todos à Igreja, e as duas grandes ordens que ilustram , no
século X III, Franciscana e Dom inicana, vão lá, em breve, cobrir-se
de glória, com um S. B oaventura e um S. Tom ás de A quino; os
alunos, m esm o aqueles que não se destinam ao sacerdócio, são cha­
m ados clérigos, e alguns deles usam a tonsura — o que não quer
dizer que aí apenas se ensine a teologia, um a vez que o seu program a
com porta todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, da
gram ática à dialéctica, passando pela m úsica e pela geom etria.
E sta «universidade» de professores e estudantes form a um corpo
livre. Filipe A ugusto tinha, desde o ano 1200, subtraído os seus
m em bros da jurisdição civil — dito de outra m aneira, dos seus p ró ­
prios tribunais; professores, alunos e m esm o os criados destes depen­
dem apenas dos tribunais eclesiásticos, o que é considerado um
privilégio e consagra a autonom ia desta corporação de elite. P rofes­
sores e e?tudantes estão, portanto, inteiram ente isentos de obrigações
relativam ente ao poder central; adm inistram -se a si próprios, tom ando
em com um as decisões que lhes respeitam e gerem a sua tesouraria
sem nenhum a ingerência do E stado. E esta a característica essencial da
U niversidade m edieval e, provavelm ente, aquela que m ais a distingue
da de hoje.
E sta liberdade favorece entre as diversas cidades um a em ulação
da qual teríam os dificuldade em fazer um a ideia actualm ente. D u ­
rante anos, os professores de D ireito Canónico de Orleães e de Paris
disputam entre si os alunos. Os registos da F acu ld ad e de D ecreto,
publicados na colecção dos D ocum ents inédits, formigam de recrim i­
nações a propósito dos estudantes parisienses que vão, fraudulenta
m ente, concluir a sua licenciatura a Orleães, onde os exames sp>
m ais fáceis. Am eaças, anulações, processos, nada surte efeito, c as
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA
99

contestações prolongam -se interm inavelm ente. E m ulação tam bém a


respeito dos professores, m ais ou m enos estim ados, das teses dis­
cutidas com paixão, quais os estudantes tom am a peito, até, por vezes,
ao ponto de en trar em greve. A U niversidade, m ais ainda do que nos
nossos dias, é, na Idade M édia, um m undo turbulento.
É tam bém um m undo cosm opolita; as quatro «nações» entre as
quais estavam repartidos os clérigos parisienses indicam -no suficien­
tem ente: havia os Picardos, os Ingleses, os A lem ã es e os Franceses.
Os estudantes vindos de cada um destes países eram , p o rtan to , sufi­
cientem ente num erosos p ara form ar um grupo que tinha a sua au to ­
nom ia, os seus representantes, a sua actividade particular; fora disto,
assinalam -se correntem ente nos registos nom es italianos, d in am ar­
queses, húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm, tam bém
eles, de todas as p artes do m undo: Siger de B rabant, Jean de Salis-
bury usam nom es significativos; A lberto M agno vem da R enânia,
S. Tom ás de A quino e S. B oaventura, de Itália. N ão há, então,
obstáculo às trocas de pensam ento, e só se ju lg a um professor pela
am plidão do seu saber. E ste m undo m atizado possui um a língua
com um , o latim , o único falado na U niversidade; é, sem dúvida, o
que lhe evita ser um a nova T orre de B abel, apesar dos grupos
diversificados de que é com posta; o uso do latim facilita as relações,
perm ite aos sábios com unicar de um a p o n ta à outra da E uropa,
dissipa, de antem ão, qualquer confusão na expressão e salvaguarda
tam bém a unidade de pensam ento. Os problem as que apaixonam os
filósofos são os m esm os, em Paris, em E dim burgo, em Oxford,
em Colónia ou em Pavia, ainda que cada centro e cada p erso n a­
lidade lhes im prim am o seu carácter próprio. Tom ás de A quino,
vindo de Itália, em P aris acaba de esclarecer e de ultim ar um a dou­
trina cujas bases ele concebera escutando, em Colónia, as lições de
A lberto M agno. N ada se parece m enos com um vaso fechado, vem o-
-lo, do que a Sorbonne do século XIII.

C leres viennent à études de toutes nations


E t en h iv e r s'assem blent p a r p lu siers légions.
On le u r lit e t ils o ien t p o u r le u r instruction;
E n été s'en retra ien t m o u lt en leu rs rég io n s4,

6 assim que Gilles le M uisit, já citado, resum e a vida dos estudantes.


O seu vaivém é perpétuo, com efeito; partem p ara alcançar a
U niversidade da sua escolha, voltam p ara as suas terras nas férias,
(4) C lérigos vêm a o s estu dos de todas a s n a çõ es / E n o In vern o «e
TOúnem em vários gru pos. / F azem -se leitu ra s e escutam in s tr u in d o - s e ; /
N o Verão reg ressa m m u lta s à s su a s regiões.
R É G IN E PERNOUD
100

põem -se a cam inho, entretanto, p ara irem aproveitar as lições de um


professor de nom eada ou estudar um a m atéria na qual determ inada
cidade se especializou. Já m encionám os as «fugas» dos candidatos
aos exam es de direito canónico p ara O rleães; isto repete-se constan­
tem ente, e, por vezes, entre cidades m uito m ais afastadas. E studantes
e professores são frequentadores das estradas reais; a cavalo e m ais
frequentem ente a pé percorrem léguas e léguas, dorm indo em celeiros
ou na hospedaria. Com os peregrinos e os m ercadores, são eles quem
m ais contribui p ara a extraordinária anim ação que reinou nas nossas
estradas, na Idade M édia, e que elas apenas reencontraram no século
do autom óvel, ou, m elhor, depois do desenvolvim ento dos desportos
de ar livre. O m undo letrado é, então, um m undo itinerante. É a tal
ponto que nalguns o m ovim ento se torna um a necessidade, um a m ania;
nos nossos dias, encontram os no Q uartier L atin destes estudantes
envelhecidos na boém ia, que não conseguiram voltar a um a vida
norm al, nem utilizar os estudos cujo peso suportaram durante anos;
na Idade M édia, este tipo de indivíduos vagueava pela estrada: era
o clérigo vagabundo ou golíardo, tipo bem m edieval, inseparável do
«clima» da época; «todo das tabernas e das raparigas», vai de taberna
em taberna, em busca de um a «refeição gratuita obtida p o r m anha»
e, sobretudo, de um copo de vinho, é assíduo dos m aus lugares,
guarda alguns restos de saber dos quais se serve para o assom bro das
boas pessoas, a quem recita versos de H orácio ou fragm entos de
canções de gesta, inicia, ao acaso dos encontros, um a discussão sobre
qualquer questão teológica e acaba por se perder na m ultidão dos
jograis, dos tratantes e dos m altrapilhos — senão por se fazer prender
na sequência de qualquer m á acção; as suas canções correram a
E u ro p a, e o m undo estudantil conhece ainda destes cantos golíardos:

M eum est p ro p o sítu m in taberna mori,


Vinum sit appositum m oríentís ori
Ut d ica n t cum venerint angelorum chori:
D eus s it p ro p itiu s h u ic p o ta to ri!R

A Igreja teve de proceder severam ente, p or várias vezes, relati­


vam ente a estes clérigos vagabundos (clerici vagi) que m antinham a
devassidão e a preguiça no m undo dos estudantes.
Eles são a excepção: no conjunto, o estudante do século XIII
não tem um a vida m uito diferente da do século XX C onservaram -se

(5) E meu propósito morrer numa taberna, / Que o vinho J * f / ~


aos moribundos/E dizem coros de anjos com veneraA. / Que D<u»
seja benevolente com os bebedores!
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 101

e publicaram -se cartas dirigidas aos pais ou a cam aradas " que revelam
as m esm as preocupações de hoje, aproxim adam ente: os estudos, os
pedidos de dinheiro e de provisões, os exames. O estudante rico
m orava na cidade com o seu criado; os de condição m ais m odesta
hospedavam -se em casas de burgueses do bairro Sainte-Geneviève e
faziam-se exonerar de toda ou parte das suas propinas de inscrição
na faculdade: encontram os frequentem ente, à m argem , nos registos,
um a m enção indicando que fulano ou falano nada pagou, ou só pagou
m etade da rem uneração, p ro p te r ínopíam , devido à sua pobreza.
O estudante desprovido de recursos faz frequentem ente pequenos
trabalhos p ara viver: é copista, ou encadernador nos livreiros que
têm loja na R ue des Écoles ou na R ue Saint-Jacques. M as, fora isto,
pode ser custeado de cam a e m esa nos colégios instituídos. O prim eiro,
em data, foi criado no H ôtel-D ieu de P aris p o r um burguês de
L ondres que, no regresso de um a peregrinação à T erra Santa, pelo
fim do século XII, teve a ideia de fazer um a obra piedosa favorecendo
o saber nas pessoas de m odesta condição: deixou um a fundação per­
pétua, encarregada de albergar e de alim entar gratuitam ente dezoito
estudantes pobres, que só ficavam sujeitos, p o r seu turno, a velar
os m ortos do hospital e a levar cruz e água benta por ocasião dos
enterros. Um pouco m ais tarde, fundaram -se, de igual m odo, o colégio
Saint-H onoré e o de São T om ás do L ouvre, seguidos de m uitos outros.
Pouco a pouco, ganhou-se o hábito de organizar nestes colégios
sessões de trabalho em com um , como nos sem inários alem ães, ou
os «grupos de estudos» que funcionam desde há alguns anos nas
nossas faculdades; os professores vieram aí leccionar; alguns fixaram -
-se lá e, p o r vezes, o colégio tornou-se m ais frequentado do que a
própria U niversidade; é o que acontece com o colégio da Sorbonne.
No conjunto, havia todo um sistema de bolsas, não oficialm ente
organizado, m as correntem ente em uso, e que se aparentava com a
nossa Escola N orm al Superior, m enos o exam e de entrada, ou ainda
aquilo que se pratica nas U niversidades inglesas, nas quais o estudante
bolseiro recebe gratuitam ente não apenas a instrução, m as ainda
cam a e m esa, e p o r vezes vestuário.
O ensino é dado em latim ; divide-se em dois ram os, o trívíum,
ou as artes liberais: G ram ática, R etórica e Lógica, e o quadrívíum ,
quer dizer, as ciências: A ritm ética, G eom etria, M úsica e A stronom ia;
o que, com as três F aculdades de Teologia, D ireito e M edicina, form a
o ciclo dos conhecim entos. Como m étodo, utiliza-se sobretudo o
com entário: lê-se em texto, as E tym ologies [Etim ologias], de Isidoro

(6 ) C f H askins, " T h e HIV o f m e d i e v a l s t u d e n t s as i l l u s t r a t e d by


their letters», in A m e r ic a n h isto ric a l review , III ( 1 8 9 2 ) , n .° 2.
R É G IN E PERNOUD
102

de Sevilha, as Sentences (S en ten ç a s], de P ed ro , o L o m b ard o , um


tratado de A ristóteles ou de Séneca, segundo a m atéria ensinada,
e glosava-se o texto, fazendo todas as observações às quais ele pode
dar lugar, do ponto de vista gram atical, ju ríd ico, filosófico, linguís­
tico, etc. E ste ensino é, p o rtan to , sobretudo oral; dá um lugar im por­
tante à discussão; as Q uestiones disputate, questões na ordem do dia,
trata d as e discutidas pelos candidatos na licenciatura, p eran te um
auditório de professores e alunos, deram , p o r vezes, lugar a tratados
com pletos de filosofia ou de teologia, e algum as glosas célebres,
passadas a escrito, eram elas próprias com entadas e explicadas, na
continuação dos cursos. As teses defendidas pelos candidatos ao
doutoram ento não são então simples exposições sobre um a obra
inteiram ente redigida, m as teses em itidas e defendidas p erante todo
um antiteatro de doutores e de professores, durante as quais qualquer
assistente pode tom ar a palavra e apresentar as suas objecções.
Com o se vê, este ensino apresenta-se sob um a form a sintética,
sendo cada ram o recolocado num conjunto onde adquire um valor
próprio, correspondendo à sua im portância p ara o pensam ento hu ­
m ano. P or exem plo, há, nos nossos dias, equivalência entre um a
licenciatura em Filosofia e um a licenciatura em E spanhol ou em In ­
glês, ainda que a form ação suposta por estas diferentes disciplinas
se coloque num plano m uito diferente; na Idade M édia, pode ser-se
m estre de fisolofia, ou de teologia, ou de direito, ou ainda m estre
em artes, o que im plica o estudo do conjunto ou do essencial dos
conhecim entos relativos ao hom em , representando o trivium as ciên­
cias do espírito e o quadrivium as dos corpos e dos núm eros que os
regem. Toda a série de estudos se aplica, p o rtan to , a dar um a cultura
^eral, e só se faz realm ente um a especialização ao sair da faculdade.
E isto que explica o carácter enciclopédico dos sábios e dos letrados
da época; um R oger B acon, um Jean de Salisbury, um A lberto, o
G rande, dom inaram realm ente os conhecim entos da época e podem
entregar-se sucessivam ente aos m ais diferentes assuntos sem tem er
a dispersão, pois a sua visão de base é um a visão de conjunto.
Ao sair das suas sessões de trabalho na faculdade e no colégio,
o estudante m edieval é um desportista capaz de p erco rrer etapas de
várias léguas e tam bém — o s anais da época lastim am -no de mais— ,
de m anejar a espada. P or vezes rebentam rixas, nesta população tur
bulenta, nos arredores de Sainte-Geneviève ou de Saint-G crm ain-des-
P rés, e é por ter sabido servir-se da sua arm a dem asiado bem que-
François Villon teve de deixar Paris. Os exercícios físicos são-lhe-
tão fam iliares com o as bibliotecas e, m ais ainda do que nos outros
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 103

corpos de m estere s7, a sua vida suaviza-se com festas e divertim entos
que alegram o Q uartier Latin. Sem sequer falar da festa dos Loucos
e da dos Tolos, que são ocasiões excepcionais, não há recepção de
doutor que não seja seguida de cerim ónias paródicas, nas quais os
graves professores da Sorbonne participam ; A m broise de C am brai,
que foi chanceler da F aculdade de D ecreto, tom ou o seu papel a
peito e deixou-nos o relato delas nas apreciações críticas p o rm en o ­
rizadas que em preendeu du ran te o tem po em que ocupou o seu cargo.
Um ser assim form ado estava tão p rep arado p ara a acção como
para a reflexão, e é, sem dúvida, por isso que se vê nesta época as
personalidades adaptarem -se às situações m ais diversas e triunfar:
prelados com batentes, com o G uillaum e des B arres ou G uérin de
Senlis na batalha de Bouvines, ju ristas capazes de organizar a defesa
de um castelo, com o Jean d'Ibelin, senhor de B eyrouth, m ercadores
exploradores, ascetas construtores, etc.
A U niversidade foi, aliás, o grande orgulho da Idade M édia;
os p apas falam com benevolência desse «rio de ciência que, através
das suas m últiplas derivações, rega e fecunda o terreno da Igreja
universal»; nota-se, não sem satisfação, que em P aris a m ultidão
dos estudantes é tal que o seu núm ero chega a ultrapassar o da p o p u ­
lação 8. É-se cheio de indulgência p o r eles, apesar das suas «graci­
nhas» e pilhérias que frequentem ente incom odam os burgueses, gozam
da sim patia geral. A lgum as cenas da sua vida foram descritas por
um dos escultores do portal Saint-Étienne, em N otre-D am e de Paris:
vêm o-los a ler e a estudar; um a m ulher vem perturbá-los, arranca-os
dos seus livros e, p ara a punir, é colocada no pelourinho p o r ordem
da autoridade- Os reis dão o exem plo deste m odo de trata r os «esco­
lares» como m eninos m im ados: F ilipe A ugusto, depois da batalha
de Bouvines, enviou um m ensageiro anunciar a sua vitória em p ri­
m eiro lugar aos estudantes parisienses.
Tudo o que respeita ao saber é assim h o n rad o na Id ad e M édia.
«Com desonra m o rra m erecidam ente quem não gosta de livro», dizia
um p ro v é rb io 9; e basta inclinarm o-nos sobre os textos para encon­
trarm os sinal das m edidas pelas quais qualquer apetite de ciência era
encorajado e alim entado; citam os, entre outras, a criação, em 1215,

(7) N o ta m o s que a I d a d e M édia não conhece fosso en tre m e st e re s


m a n u a is e p rofissões lib erais; os t e rm o s são, a este p ro p ósito, sig n ifi­
cativo s: q ualifica-se de m estre ta n to o f ab rica n te de tecid os que term in o u
a sua ap r e n d iz a g e m como o es tu d a n t e de Teo lo gia que o btev e a licença
de ensino.
(8) A a firm a çã o não pode ser to m a d a à le tra, m as não d eix a de ter
In teresse saber que a p o p ulação p arisien se n e s t a épo ca co m p r ee n d ia um
pouco mais de q u a r e n ta mil h a b it an te s.
(9 )R en art, prov. franç., II, 99.
R EGINE PERNO
104

de um a cátedra de teologia em Paris, especialm ente para perm itir aos


p ad res da diocese aperfeiçoarem -se e com pletarem os seus estudos,
o que testem unha a preocupação de m anter um grau elevado de
instrução, m esm o no baixo clero. O «hom em avisado», esse tipo de
hom em com pleto que foi o ideal do século x in , devia ser necessaria­
m ente um letrado:

P o u r rim er, p o u r versifier,


P o u r une lettre bien dicter,
S i m é tie r fut, p o u r bien écrire
E t en p a rch em in e t en cire,
P o u r une chanson controuver^0.

Podem os perguntar-nos se, nestas condições, o povo era tão


ignorante, na Idade M édia, com o, em geral, se supõe; tinha ao seu
alcance, incontestavelm ente, os m eios de se instruir, e a pobreza não
era um obstáculo, um a vez que o decurso dos estudos podia ser intei"
ram ente gratuito, da escola da aldeia, ou antes da paróquia, até
à U niversidade. E ele aproveitava-se disso, um a vez que abundam
os exem plos de pessoas hum ildes tornadas grandes clérigos.
Significa isto que a instrução estava tão divulgada com o nos nos­
sos dias? Parece que sobre este ponto houve um m al-entendido: assi-
m ilou-se, m ais ou m enos, a cultura e a letra. Um iletrado é p ara nós,
fatalm ente, um ignorante. O ra, o núm ero de iletrados era sem dúvida
m aior na Idade M édia do que na nossa época ", M as é justo este
ponto de vista? P ode fazer-se do conhecim ento do alfabeto o critério
da cultura? Do facto de a educação se ter tornado sobretudo visual
pode concluir-se que o hom em apenas se educa pela visão?
Num capítulo dos E statu to s m unicipais da cidade de M arselha,
datando do século XIII, encontram -se enum eradas as qualidades exi­
gidas a um bom advogado e acrescenta-se litteratus vel n o n litteratus
{quer seja letrado, q u er não]. Isto parece m uito significativo: pode,
po rtan to , ser-se um bom advogado e não saber ler nem escrever,
conhecer o costum e, o direito rom ano, o m anejo da linguagem e
ignorar o alfabeto. N oção que nos é difícil de adm itir m as que,
contudo, é de im portância capital p ara com preender a Idade M édia:
(10) C itad o in H isto ire littéraire, t. xx. Segue-se a tr ad u ç ão .
P a ra rim ar, p a ra versificar, / P a ra d ita r bem uma carta, / Se fo r
caso disso, p a ra escrever bem / E m p erg a m in h o ou em cera, / P ara uma
canção inventar.
(11) A in d a que m enos do que se disse, u m a vez que a m aio r parto
d as te s te m u n h a s que in ter v êm nos acto s n o t a ri ais sab em a s si n a r , e qu<i
se tem , en tre o u tro s, o exemplo de Jo a n a d 'A r c, p eq u e n a campon esa
que contudo sabia escrever.
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 105

era-se m ais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por
m uito honrados que sejam, os livros, os escritos têm apenas um lugar
secundário; o papel de prim eiro plano é reservado à palavra, ao
verbo. Isto, em todas as circunstâncias da vida: nos nossos dias, ofi­
ciais e funcionários redigem relatórios; na Id ad e M édia, aconselha­
vam -se e deliberavam ; um a tese não é um a obra im pressa, é um a
discussão; a conclusão de um acto não é um a assinatura aposta ao
fim de um escrito, é a tradição m anual ou o em penham ento verbal;
governar é inform ar-se, inquirir, depois fazer «gritar» as decisões
tom adas.
Um elem ento essencial da vida m edieval foi a pregação. Pregar,
nesta época, não era m onologar em term os a c o lh id o s p eran te um
auditório silencioso e convencido. Pregava-se um pouco por todo o
lado, não apenas nas igrejas, m as tam bém nos m ercados, nos cam pos
de feira, no cruzam ento das entradas, e de m odo m uito vivo, cheio
de calor e de ím peto. O p reg ado r dirigia-se ao auditório, respondia
às suas perguntas, adm itia mesm o as suas contradições, os sem ru m o ­
res, as sua:; invectivas. Um sermão agia sobre a m ultidão, podia
desencadear im ediatam ente um a cruzada, p rop ag ar um a heresia, p re ­
p ara r revoltas. O papel didáctico dos clérigos era então im enso: eram
eles quem ensinava aos fiéis a sua história e as suas lendas, a sua
ciência e a sua fé, quem com unicava os grandes acontecim entos,
transm itia de um a ponta à outra da E u ro p a a notícia da tom ada
de Jerusalém , ou a da perd a de Saint-Jean d'A cre, quem aconselhava
uns e guiava outros, m e m o nos seus negócios profanos. N os nossos
dias, aqueles que não têm m em ória visual, no entanto m ais rara,
e de um exercício m ais autom ático, m enos racional que a m em ória
auditiva, são prejudicados por desvantagem nos seus e tudos e na
vida. N a Idade M édia, não era nada; a pessoa instruí-se escutando,
c a p alavra era de ouro.
Coisa curiosa, a nossa época vê voltar esta im portância do Verbo
e reviver esse elem ento auditivo que se perdera. Pode pensar-se que
u rádio desem penhará, para as gerações vindouras, o papel que
outrora foi desem penhado pela pregação; é de desejar, em todo o
caso, que lhe seja equivalente naquilo que respeita à educação do
povo.
P orque, se o term o «cultura latente» algum a vez teve um sentido,
foi na Idade M édia. T oda a gente então tem um conhecim ento
pelo m enos corrente do latim falado e articula o cantochão que supõe,
senão a ciência, pelo m enos o uso da acentuação. Toda a gente possui
um a cultura m itológica e lendária; ora, as fábulas e os contos dizem
mais sobre a história da hum anidade e sobre a sua natureza do que
uma boa parte tias ciências inscritas nos nossos dias nos program as
106 REF INE PEN O U

oficiais. N os rom ances de m ester publicados p o r Thom as Deloney


vem os os tecelões citar nas suas canções U lisses e Penólope, Ariana
e Teseu. Se se pode cham ar aos vitrais «a Bíblia dos iletrados», não é
p o rq u e os m ais ignorantes aí decifravam sem esforço histórias que
lhes eram fam iliares, realizando com toda a simplicidade esse trabalho
de interpretação que, na época actual, tan ta canseira dá aos arq u eó ­
logos!
F o ra disto, havia os conhecim entos técnicos, que se assim ilavam
no decurso dos anos de aprendizagem ; nem arte nem m ester eram
im provisados: era preciso, p ara os exercer com rendim ento, que eles
se tivesssem tornado com o que um a segunda natureza; é, sem dúvida,
p o r isso que tantos artistas locais, cujos nom es nunca nos serão conhe­
cidos, puderam adquirir a m estria que obras como o Cristo Devoto,
de P erpignan, ou a C rucificação, de V énasque, revelam. Tem -se o
direito de considerar ignorante um hom em que conhece a fundo o seu
trabalho, p o r hum ilde que seja? E é preciso considerar que a estes
conhecim entos de m ester vem acrescentar-se todo um lote de tradições:
o C om post des bergiers, que um a feliz curiosidade fez redescobrir,
não há m uito tem po, oferece-nos um a am ostra das pequenas Som m es
do saber tradicional: astronom ia, m edicina, botânica, m eteorologia —
que podia adquirir-se no seio dos m esteres, variando com cada um
deles, e que constituía a base de um a cultura sem dúvida m ais extensa
e certam ente m elhor adaptada às necessidades locais do que se poderia
acreditar.
C A P ÍT U L O IX

AS LETRAS

A pesar do grande núm ero de trabalhos m odernos consagrados à


literatura m edieval, ainda não conseguim os fazer dela um a ideia ju sta,
apreciá-la com o ela o m ereceria. E la perm anece um a curiosidade de
erudito, ou, o que é m ais perigoso, serve de pretexto a evocações
bastante superficiais. Um passo im portante foi, contudo, dado pelo
facto de se ter conseguido, pelo m enos, convencer o público da exis­
tência de um a literatura m edieval. A grande dificuldade que se opõe
a m ais am plos progressos é a questão linguística; só pode lam entar-se
que, entre a quantidade de conhecim entos discordantes com os quais
se sobrecarrega a adolescência, nenhum lugar, ou um lugar ridicula­
m ente insignificante, seja dado ao francês antigo, que constitui, con­
tudo, inegavelm ente, um a parte do nosso patrim ónio nacional — consi­
derada cada vez m enos desprezível, à m edida que m elhor se conhece \
Os juízos à G ustave L anson ou à Thierry M aulnier, que apenas viram ,
em toda a «literatura versificada da Idade M édia», «salsada, tagarelice
e preciosism o», destinados a soçobrar num «esquecim ento indulgente»,
não resistem a um exame, ainda que superficial, da poesia m edieval.
H á apenas um a época du ran te a qual a F rança possuiu um a
literatura nacional, inteiram ente brotada do nosso solo; e essa época
é a Idade M édia. Passado o século x v , um a predilecção estranha
pela im itação vai determ inar leis rigorosas, restringir os géneros,
jug u lar a inspiração pessoal, a favor de um protótipo im utável, que
será a A ntiguidade. N a verdade, não se trata aqui de denegrir a
A ntiguidade e as suas incontestáveis obras-prim as, nem, sobretudo,
de se equivocar a propósito da m estria inteiram ente pessoal com a

(1) E preciso d izer que este d es am o r é m ais relativo à Id ad e Média


em g eral do que à su a li t e r a tu r a em p ar ti cu la r: estu d a-se d u ra n te vários
meses a q uestão do O riente no século xix, ou as m u d a n ça s de m in istério s,
de M acM ah on a Jule.s Grévy, m as q u anto s b alh aréis têm u m a noção,
nítida que vaga. dos p rin cip ais aco n te cim e n to s d as C ru za d as, ou do modo
como se formou a unidade francesa, nesses séculos que são o fu nd a­
m en to e o sumário da nossa história?
108 REF INE PEN O U

qual um R acine, um M oliére, souberam dom inar a lei da im itação


que o seu tem po lhes im punha; e é preciso contar tam bém com os
dissidentes que, sem terem as honras dos m anuais de literatura, não
constituem m enos por isso um a p arte im portante das letras francesas.
Tem os que, até ao fim do século XIX, no conjunto, clássicos e rom ân­
ticos se subm eteram voluntariam ente a um a disciplina inspirada quer
pelos Gregos e L atinos, quer pelo estrangeiro. Para encontrar um
verdadeiro desenvolvim ento do espírito francês, um a literatura pessoal,
pura, despojada de qualquer em préstim o, fora do nosso século XX,
é preciso recorrer à Idade M édia. O bstinar-se em nada ver p ara além
da R enascença é m utilar-se da mais autêntica m anifestação do génio
da nossa raça; é, de resto, ignorar um a época durante a qual precisa­
m ente a civilização e as letras francesas foram im itadas p o r toda a
E uropa; é, sobretudo, privar-se de um tesouro incom parável de poesia,
de inspiração, de grandeza — o m ais rico, o m ais colorido, o m ais
com ovente, de todos.
Um a boa p arte da produção literária da Idade M édia está ainda
em estado de m anuscrito, enterrada nas nossas bibliotecas, enquanto
se reeditam sem cessar as m esm as obras. É preciso ver nisto um a
falta de curiosidade? O erro caberia m ais aos nossos m étodos de
história literária que, aplicados à literatura da Idade M édia, nos o bs­
truíram consideravelm ente. E. forçaram -se a procurar as fontes das
obras m edievais, fontes do R om an de Renart, fontes dos fabulários,
e tc , como se se tratasse de tragédias clássicas, inspiradas pelo teatro
de Sófocles ou de Séneca. Um tem po precioso foi perdido deste modo.
Ú til no que respeita à nossa literatura desde o século XVI, a inves­
tigação das fontes só constituía um entrave p ara o estudo da Idade
M édia, e provou-se, na m aior parte dos c a o s , ociosa, senão pueril.
B édier prestou um serviço imenso à literatura, m ostrando a im por­
tância destes tem as hum anos que já não pertenciam m ais à ín d ia
ou à China m ais do que à E u ro p a ou à África: o tem a do trapaceiro
enganado, a fábula da raposa e das uvas, e tantas outras, sobre as
quais se tinha discorrido a perder de vista, até estabelecer filiações
com plicadas que caem por si próprias quando nos apercebem os de
que o hom em , em todas as latitudes, teve, perante os m esm os fenóm e­
nos, reflexões semelhantes, e que, se o nosso folclore m edieval tem
pontos com uns com o de tal ou tal povo antigo, é p orque bebeu nas
fontes eternas da hum anidade. N otou-se, nos cantos dos pastores
checos, ritm os sem elhantes aos das nossas pastorais de outrora: não
é porque estas derivem daquelas, m as porque um a m esm a vida e
m esm os hábitos inspiraram cadências idênticas. Do m esm o m odo, os
m arinheiros, em todas as latitudes e em todos os povo , usaram , para
transm itir ordens e harm onizar os seus esforços, tropos, inflexões
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 109

ritm adas e poéticas ditadas pelo seu trabalho, com binadas com a
oscilação do m ar e do navio- Q ualquer conhecim ento do hom em teria
sido preferível, p ara p en etrar na literatura m edieval, à investigação
das fontes segundo as veneráveis tradições da Sorbonne.
Isto não significa que a Idade M édia tenha ignorado a A n ti­
guidade; H orácio, Séneca, A ristóteles, Cícero e m uitos outros são
estudados e citados frequentem ente, e os principais heróis das lite­
ratu ras antigas, A lexandre, H eitor, Píram o e Tisbeu, Fedro e H ipólito,
inspiraram , p o r seu turno, todos os autores m edievais; as M e ta m o r­
fo ses e as H eróides, de Ovídio, foram trad u zid as p o r várias vezes
seguidas; sobretudo, a Idade M édia amou profundam ente Virgílio,
m anifestando nisso um gosto indiscutível, um a vez que Virgílio foi,
sem dúvida, o único poeta latino digno deste nome. M as, se se vê
então na A ntiguidade um reservatório de im agens, de histórias e de
sentenças m orais, não se vai ao ponto de a enaltecer com o um m odelo,
com o o critério de toda a obra de arte; adm ite-se que é possível
fazer tão bem e m elhor do que ela; adm iram -na, m as preservar-se-iam
de a imitar.
Em contrapartida, inteiram ente bro tad a do nosso solo, a literatura
m edieval reproduz-lhe os m enores contornos, os m ínim os cam biantes.
Todas as classes sociais, todos os acontecim entos históricos, todos os
traços da alm a francesa nela revivem , num fresco deslum brante. É que
a poesia foi a grande ocupação da Idade M édia e um a das suas
paixões m ais vivas. R einava por toda a parte: na igreja, no castelo,
nas festas e nas praças públicas; não havia festim sem ela, nem
festejo em que ela não desem penhasse o seu papel, nem sociedade,
universidade, associação ou confraria onde ela não tivesse acesso;
aliava-se às m ais graves funções: alguns poetas governaram condados,
como G uillaum e d'A quitaine ou T hibaut de Cham pagne; outros gover­
naram reinos, com o o rei R ené d'A njou ou R icardo C oração-de-Leão,
outros, com o B eaum anoir, foram ju ristas e diplom atas; podem os
m esm o ver um Philippe de N ovare, sitiado na T orre do H ospital com
um a trintena de com panheiros, escrever à pressa, p ara pedir socorro,
não um apelo de aflição, m as um poem a, e a lenda do tro v ad o r Blon-
del, reencontrando o seu m estre encarcerado com o auxílio de um
canto que tinham com posto ju n to s, apenas exprim e um a verdade de
aplicação corrente na Idade M édia. D izer versos, ou escutá-los, apa­
recia como um a necessidade inerente ao homem- Pouco se veria,
actualm ente, um poeta instalar-se em cavaletes, perante um a b arraca
de feira, p ara aí declam ar as suas obras; espectáculo que era então
comum. Separava-se uni cam ponês do seu trabalho, um artesão da
sua loja, um senhor dos seus falcões, para ir ouvir um cantador (irou-
110 R E G IN E PEN O U

v è r e f ou um jogral. N unca, talvez, excepto nos mais belos dias da


G récia antiga, se m anifestou um tal apetite de ritm o, de cadência de
bela linguagem.
A poesia actualm ente é m ais ou m enos o apanágio de u m a elite.
A Idade M édia não conheceu elite nem dentro nem fora do dom ínio
intelectual, porque cada um podia, na sua esfera, tornar-se um ser
de elite. As alegrias do espírito não eram reservadas aos privilegiados
ou aos letrados e podia-se, sem saber nem grego nem latim , e mesmo
sem saber A ou B, ter acesso às m ais altas delícias da poesia. E ntre
os cerca de quinhentos cantadores e trovadores cujos nom es chegaram
até nós encontram os tanto grandes senhores como o castelão de Coucy,
os senhores dos B aux ou os príncipes já citados como vilãos e clérigos,
como Rutebeuf, Peire Vidal ou B ernard de Ventadour. Ao contrário
do que se passou, p or exem plo, no século XVII, em que um a obra
literária apenas era destinada à C orte e aos salões, houve entre as
classes sociais trocas fecundas; a seiva poética circulava livrem ente
e enriquecia-se com tudo aquilo que o povo lhe podia trazer de vigor
e a alta sociedade de requinte. A inda no século x v , um m esm o tema
poético era tratad o sim ultaneam ente p o r C harles d'O rléans, A lain
Chartier, Jean R égnier, F ranco Villon e outros ainda, todos diferentes
em educação, posição social e profissão, sem que as suas obras fossem
m uito desiguais, de tal m odo a poesia era um dom ínio com um aos
príncipes e aos vagabundos. C onhece-se assim L a F o rê t de L ongue
A tten te ou ainda o refrão das baladas do famoso concurso de Blois:

J e m e u rs de s o if em près de la fo n ta in e 3.

C ertos géneros foram de preferência cultivados pela nobreza: é o


caso dos rom ances de cavalaria; m as os vilãos tinham , eles próprios,
o R om an de R enart, cujos principais tipos ainda vivem e nos são
fam iliares, depois de ter percorrido a E u rop a e seduzido até a plum a
de um Goethe que se tornou o seu adaptador. A os la is e às fábulas,
que faziam as delícias da corte de C ham pagne ou de Inglaterra, cor­
respondiam os fabulários, cuja veia divertida e tru cu lenta inspirou
um La F ontaine e um M olière.
A lguns dom ínios perm anecem com uns a to d a a sociedade m edie­
val: a epopeia, por exem plo, e o teatro. As n o s:as canções de gesta
suscitaram tan ta adm iração nas h ospedarias onde peregrinos e via­
jan tes encontravam um poiso, a cam inho de R o m a ou de Santiago,
como nas residências senhoriais. Q uanto ao teatro , sim ultaneam ente
(2) Trovador do N orte da França, nom eadam ente da Picardia.
(N. do R.)
(3) Morro de sede junto à fonte.
L UZ SO B R E A ID A D E M EDIA 111

religioso e popular, m obilizava um povo inteiro e entusiasm ava os


clérigos tanto com o os nobres e os cam pónios. Se se pode falar, na
Idade M édia, de um a literatura do povo, de um a literatura clerical e
de um a literatura da nobreza, isso deve com preender-se antes como
um a nota dom inante, pois, tanto nos seus criadores com o no seu
público, as obras em geral participam tanto de um as com o de outras
«classes», com apenas um gosto m ais m arcado aqui ou ali.
E este dom ínio literário é tão móvel quanto vasto. D eparam os
com extrem as dificuldades quando querem os fazer um a edição crítica
de um a canção de gesta ou de um poem a m edieval. Tam bém aí,
parece que se fez m al em trazer p ara os textos da Idade M édia um
m étodo que só convinha às obras antigas ou m odernas. N a realidade,
há sem pre, não um a, m as m últiplas form as de um a m esm a obra-
Bédier, reunindo os diversos episódios do R om an de Trístan e t Yseult
[R om ance de Trístão e Isolda], dispersos em diversos poem as, reali­
zou um trabalho ao m esm o tem po dos m ais autênticos e dos m ais
acessíveis — infinitam ente m ais próxim a da Idade M édia do que teria
sido a edição im pecável de cada um desses poem as.
P ara nós, um a obra literária é c o r a pessoal e im utável, fixada
na form a que o seu autor lhe deu; daí a nossa obsessão do plagiato.
N a Idade M édia, o anonim ato é corrente. Sobretudo, um a ideia, unia
vez em itida, pertence im ediatam ente ao dom ínio público; passa de
m ão em m ão, ornam enta-se com mil fantasias, sofre todas as ad ap ta­
ções im agináveis, e só cai no esquecim ento quando dela se esgotaram
os m últiplos aspectos. O poem a leva um a vida independente da do
seu criador; é coisa m óvel, e renascendo incessantem ente; qualquer
descoberta é retom ada, m odificada, am plificada, rejuvenescida, com
o m ovim ento e a anim ação que caracterizam a vida. O erro dos críticos
alem ães, vendo na C hanson de R o la n d [C anção de R oIando\ uma
obra colectiva e im pessoal, explica-se se se considera o carácter fluido,
poderia dizer-se, das nossas grandes gestas e em geral das produções
literárias da Idade M édia. N a sua origem houve certam ente uma
actividade precisa, m as elas não deixaram de evoluir, a contento dos
poetas que as enriqueciam com um a nova seiva, ou sim plesmente dos
jograis que as recitavam a seu m odo e nelas inseriam episódios da
sua lavra. É assim que os rom ances bretões se transform aram inesgo­
tavelm ente, e se reencontravam no século XV, m uito longe da sua
form a prim itiva, no ciclo dos Amadis.
P or vezes, ainda, a obra literária representa o term o de uma
evolução. É o caso desses espantosos «rom ances de m ester», aos quais
já foi feita alusão, e cujo sabor Abel Chevalley nos revelou. O seu
assunto são as canções de oficina, as «boas histórias» que se transm i­
tiam de com panheiro a aprendiz, os relatos de aventuras sucedidas
R E G I N E PERNOUD
112

a tal m estre, à sua m ulher, ao seu criado, as lendas dos santos protec­
tores da corporação; tudo isto acabava por form ar um a m in a desco­
b erta p ara um escritor, ainda que pouco dotado; Thom as D e lo n e y
utilizou-os com felicidade p ara a Inglaterra, no início do século XVI;
os m esteres de F rança não tiveram a m esm a sorte, m as não é im pos­
sível que se encontrem desses «rom ances» em estado de m anuscrito'
Num outro género, Bédier m ostrou lum inosam ente o nascim ento das
nossas epopeias ao longo das entradas de peregrinações e o papel
desem penhado pelos clérigos que instruíam e pelos jograis que dis­
traíam , na form ação das no:sas grandes gestas nacionais. E ainda
um a das form as da fecundidade da vida m edieval, esta criação per­
p étua, que participa da vida do povo, ou, m elhor, da vida de todo
um país, tanto das suas m assas populares como das suas classes «pri­
vilegiadas». Os tem as poéticos, os heróis do rom ance, circulam e
m ultiplicam -se à imagem da hum anidade. R olando, Carlos M agno,
G uilherm e do N ariz C urvo, fizeram p arte do patrim ónio europeu, do
mesm o m odo que o estilo gótico. A penas as diferenciações locais, o
engenho de cada província, de cada dialecto, da cada país, deram
um aspecto particular e um sabor novo a cada um a das suas reencar-
nações. Nesse, como noutros aspectos, a influência francesa, ou mais
exactam ente franco-inglesa, dom inou o m undo conhecido. Os nossos
cantadores tiveram um sucesso internacional, W olfram d'E schenbach,
H artm an n d'A ue, W alter de la Vogelweide e os outros m in n esin g er
im itaram -nos, e os rom ances bretões foram traduzidos em Itália, na
G récia e até na N o ru e g a 6
M óvel, anim ada como o é, esta literatura m edieval tem um a outra
característica que é a de toda a Idade M édia: o am or da vida- D otados
de um a faculdade de assim ilação extraorddinária, os autores desta
época trataram os seus heróis com o seres vivos, actuais, cuja exis­
tência não tivesse sido deslocada na sociedade em que eles próprios
se encontravam . E les não tiveram necessidade de lhes criar um a
atm osfera artificial p ara os justificar. Tais com o os sentiam , assim
os exprim iram . P or outras palavras, a Idade M édia literária dispensa
a cor literária e a docum entação histórica. Pensou-se assinalar exem ­
plos desta fam osa «ingenuidade» m edieval, quando se via o anão
Obéron dizer-se filho de Júlio César, ou A lexandre portar-se como
um cavaleiro cristão. M as, longe de ser um a deficiência, esta facilidade

(4) Cf. L e N o b le M étier e J a c k de N e w b u ry e Thomas de Reading,


ro m an ces dos sap ate ir o s e dos te celães da Cite de L o n d re s, trad uzido »
por A bel Chevalley, G allim ard , 1927.
(5) A influência da poesia m ediev al fra n cesa en co n tr a-s e ta m b ém
na n o ssa poesia tro v a d o re sc a, n o m e ad a m en te a P ro v e n ça l, que en tre n6;i
origino u as c a n tig a s de am o r de raiz a r is t o c r a ta . (N. do R )
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA
113

em tran sp o r os heróis de rom ance do seu passado m orto p ara um a


actualidade viva não será testem unho de um a prodigiosa capacidade
de evocação? A Idade M édia não tinha nenhum a dificuldade em
im aginar A ristóteles, E neias ou H eitor na sociedade m edieval; a sua
vitalidade levava a m elhor sobre as noções de tem po e de espaço.
E é p or isso que, sem nisso porem a m ínim a «ingenuidade», os escul­
tores representaram os tím panos das catedrais de Castor e Pólux como
dois cavaleiros do seu tem po. E ste desprezo pela cor local a favor
da verdade intrínseca não poderia ser, de resto, m elhor com preendido
do que na nossa época, em que o aparelho histórico-docum ental é
cada vez m ais posto de lado em proveito da intensidade de evocação.
É infinitam ente m ais agradável ver a jovem Violaine evoluir num a
«Idade M édia de convenção», sem relação com a realidade histórica
— m as m uito próxim a, pelo espírito, da Idade M édia real — , do que
assistir a um a reconstituição, p o r m ais habilido a que seja, do Vray
m ístère de la P assion ; e tom ou-se um lugar comum dizer que é p re ­
ferível representar É dipo de sw ea ter e calças de flanela a suportar
um a reedição de B urgraves ou de Salamm bô.
A literatura m edieval e::tá fortem ente ligada á sua época, insepa­
rável das realidades que constituíram a vida quotidiana do tem po.
T odas as preocupações contem porâneas: expedições m ilitares, prestí­
gio de um rei, erros de um vassalo, lutas religiosas, foram rim adas,
ritm adas, am plificadas, reatadas, enfim, ao grande do m h ro poético
da hum anidade por estes contadores incansáveis e seu público sequio o
de poesia. As explorações de Carlos M agno inspiraram as no sas
grandes epopeias, as C ruzadas foram cantadas pelos cantadores, Peire
C ardinal exalou nos seus versos a am argura do M id i' albigense e
G uilherm e, o B retão, cantou a glória de F ilipe A ugusto; a instituição
da cavalaria originou a inum erável literatura rom anesca e galante e as
infelicidades da guerra deixaram a sua m arra nas obras de um Jean
Régnier ou de um Charles d'O rléans. Relações dos senhores e dos
seus vassalos, respeito pelo laço feudal, trabalhos dos servos e dos
cam poneses, leituras dos clérigos, orações dos m onges, encontra-se
tudo isto na poesia m edieval, e aqueles que se contentassem com
conhecer a literatura da época saberiam dela bastante p ara poderem
dispensar-se de lhe estudar a história. Ela traz a m arca do país que
a viu nascer e reflecte fielmente as suas fortunas e as suas angústias.
Se, durante os séculos que :e seguiram , ela foi, por vezes, apenas
o exercício de um bom aluno de H orácio ou de Teócrito, ou m esmo
uma brincadeira de erudilo, se esqueceu as suas ligações populares
c se tom ou uma especialidade de bom -tom , durante toda a Idade
Média ela foi fiel a si própria e perm aneceu um a criação nacional
tanto quanto hum ana, popular, tanto quanto pessoal, colectiva, tanto

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R É G IN E PERNOUD
114

quanto individual, bebendo a sua tem ática do solo de F ran ça, das
aventuras dos seus barões, das astúcias das suas m ulheres, n o s seus
cam pos fecundos e nas suas cidades ruidosas, entre as quais já se
destaca P aris, o P aris de Rutebeuf, de E ustache D escham ps e de
F rançois Villon.
M as não é som ente po rq ue canta o nosso pais e a sua ventura
que a poesia m edieval representa o nosso m ais precioso patrim ónio
nacional. E la, que inspirou a E uro p a e p ercorreu o m undo conhecido,
é francesa até nas suas m ais escondidas propensões. Não a podem os
renegar sem renegar a nossa natureza e a nossa personalidade. E stá
im pregnada do nosso espírito, é a sua m ais autêntica criação. E sta veia,
este jo rro perpétuo de ironia, de palavras sem rodeios, de sarcasm os
que nada sabem respeitar, nem sequer as m ais sinceras crenças, este riso
sonoro, enfim, riso dos fabulários, das farsas, dos sermões divertidos,
da festa dos loucos e outras p alh açad as6, este riso, que apenas encontrará
outros ecos na literatura, no teatro de M olière, não estará nele o sinal
distintivo do povo de F rança, com o seu sentido da resposta pronta,
o seu sentido do ridículo, o seu gosto pelas boas histórias e pelas
brincadeiras um pouco livres? É provável que se pude se fazer rep re­
sentar por pessoas de hoje e p erante um auditório popular a m aioria
dos nossos fabulários e algum as cenas do le u de Saint-N icolas ou do
M a ître P athelín com m uito sucesso; lê-se sem pre com sem elhante
p razer os Quinze jo ie s d e m ariage, e as brincadeiras m edievais sobre
a tagarelice das m ulheres e os m aridos enganados são ainda daquelas
que se ouvem quotidianam ente.
A grande censura que se fez a este cóm ico, cuja alegria e exube­
rância não pode ser negada, é a de ser grosseiro. Os autores de m a­
nuais literários têm o costum e de dissim ular o rosto perante estes
«personagens prosaicos», e tas «farsas indecentes» e este vocabulário
em que o bom -tom é algo m altratado. As suas constatações são justas:
um a grande p arte da literatura m edieval, e da m elhor procedência,
está sem eada de brincadeiras bem grosseiras; tam bém isto é m uito
francês — m uito gaulês, p ara em pregar o term o exacto. N a Idade
M édia cham ava-se gato a um gato, e as brincadeiras, mesmo triviais,
desde que fossem espirituosas divertiam enorm em ente. Podem os m e­
lindrar-nos, ou reeditar a atitude de um F rancisque Sarcey abandonando
o seu lugar à prim eira réplica do Ubu Roi, subsiste que, na pena dos
contistas da Idade M édia, com o nas de R abelais ou de Alfred Jarry,
com o na boca do hom em do povo, as grosserias são quase sempre tão
bem recebidas, tão expressivas e tão saborosas, que provocam irresis­
tivelm ente o riso. É preciso, aliás, observar que elas não se acom panham
(6) E n t r e nós esta te m á t i c a está p res en te nas « C an tig as de E s carn i»
e M aldizer». (N. do R.)
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 115

de vulgaridade, que continuam a ser espontâneas e nunca são efeito


de um a atitude ou de um a ideia preconcebida, com o acontece nos
nossos dias em alguns intelectuais- Q uanto aos contos «imorais» e aos
seres «prosaicos» em que abunda a literatura m edieval, fundam -se,
em geral, num a observação m uito ju sta da existência e não contêm
m ais im oralidade do que, p o r exem plo, as fábulas de La Fontaine.
A sua acrim ónia, longe de ser chocante, só pode alegrar um espírito
bem form ado, tanto m ais que ela se acom panha de certo requinte,
desse sentido da resposta p ro n ta que é bem p ró p ria da nossa raça.

P or um curioso efeito do acaso — m as é efectivam ente um aca­


so? — as duas prim eiras obras im portantes da nossa literatura ilustram
perfeitam ente o seu duplo carácter: há a C hanson de R o la n d [C anção
de R o lando] e há a P èlorinage de C harles [P eregrinação de Carlos],
N o prim eiro poem a reinam os m ais puros sentim entos da cavalaria
francesa: fidelidade ao im perador, am or de F rança, a doce, am izade
de dois heróis, grandeza da m orte, valentia e sabedoria; o segundo
é um a gigantesca chalaça, em que Carlos M agno é apenas um jovial
com panheiro — esperando tom ar-se um velho gaiteiro com o no H uon
de B o r d e a u x — e entrega-se com os seus pares às m ais assom brosas
fantasias: g a g s m onstruosos, gabarolices de fanfarrões, conversas
extravagantes m antidas depois de beber: R olando faz a aposta de
tocar a sua trom pa com tanta força que o seu sopro arrom bará todas
as portas da cidade, Olivier oferece-se p ara seduzir num tem po recorde
a filha do rei H ugon. A veia desenfreada dos nossos antepasssados
deu-"e livre curso nesta prim eira am ostra da epopeia francesa, que é
já um a paródia da epopeia e prova que se estava longe de se tom ar
a sério, de se contentar com belas palavras e belos sentimentos. O sen­
tido de hum or surgia sem pre a tem po de corrigir a eloquência e evitar
a ênfase, com o n e t a resposta sim ultaneam ente orgulhosa e cómica
do J e u de Saint-N icolas:

Seigneur, si j e suis je u n e , n e n 'a y e z en dépit


On a veü souvent g ra n d coeur en corps p e tit
J e ferra i cel forceur, j e l'a i p ièça élit:
S a ch ez j e l'o ccirra i, s'il ava n t n e m 'o cc it (7).

(7) Senhor, se. so u jo v e m , n ã o me d esprezeis / J á se tem visto um


g ra n iu co ração em p eq u e n o corpo / U sarei de ta l violência, p o d eis crer: /
S a b ei que o m a ta rei se ele n ã o m e m a ta r prim eiro.
116 R É G IN E PEN O U

D eleitavam -se com estes contrastes de grandeza e de fantasia;


um a obra intitulada: D ialogue de Salom om e t de M a rc o u l opõe assim
constantem ente provérbios, acentuando uns alta sabedoria, outros
bom sentido popular:

Qui sage h o m m e será


J a trop n e pa rlera
(ce dit Salom on)
Qui j a m o t n e dirá
G r a n d n o ise [bruit] n e fera
(M arcoul lu i r é p o n d f.

L e P èlerinage de Charles, antepassado directo de Ubu Roi,


nasceu à volta da abadia e da feira de Saint-Denis. E stes relatos
profanos ou edificantes que os clérigos, por interm édio dos jograis,
transm itiam ao povo, foi preciso que, prim eiro, este povo, na balbúrdia
dos m ercados, dos risos e de bebedeira ingénua, os transform asse
num conto engraçado, no instante em que, sobre estas m esm as lendas,
se elaborava a m ais nobre das nossas epopeias.
P orque, país do riso e da inspiração crepitante, a F ran ça é tam ­
bém a p átria de origem da cavalaria; e esta palavra é preciso com ­
preendê-la no seu sentido m edieval: sim ultaneam ente culto da honra
e respeito pela mulher.
O F rancês, tal como no-lo m ostram as nossas obras literárias, da
C hanson de R o la n d [C anção de R o lando] ao R om an de la R ose
[R om ance da R osa], tem o ho rro r inato de qualquer deslealdade:
rom per o vínculo feudal e trair os com prom issos que o unam ao seu
senhor são p ara ele as piores espécies de pecados. «C ada qual deve
portar-se lealm ente», é assim que E ustache D escham ps resum e todas
as regras de «probidade»- Lancelote, am ante da rainha Genoveva,
e Tristão, de Isolda, a Loura, não cessam de trazer no coração o
rem orso de trair o seu rei; é todo o dram a do seu am or e da sua vida.
Um sentido inabalável da fidelidade à palavra dada m anifesta-se ao
longo de toda a nossa poesia, quer seja o vínculo senhorial, como nos
rom ances de cavalaria, ou, como nas canções dos trovadores, a fide­
lidade ju rad a à sua dam a: Yvain incorre nas m ais terríveis provações
por ter faltado à sua prom essa de voltar no prazo m arcado.
O verdadeiro am ante deve, aliás, estar pronto a tudo afrontar por
amor: proezas físicas, torm entos m orais, angústias das separações,

(8) — Q uem fo r sáb io / fa la rá p o u c o i — Q uem p a la vra não d isse r /


não p ro v o c a rá questões.
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA
117

nad a lhe deve ser difícil quando se trate de conquistar aquela que
am a

P o u r travail n i p o u r p ein e
N i p o u r d ouleur que faie
N i p o u r ire g re v a in é 1
N i p o u r m a l que j e traie7
N e quiers que m e r e t r a i t
D e m a dam e un se u l j o u r \

N unca se dirige a ela senão com um respeito infinito:

D am e, de toutes la no n p a ir
B elle e t bonne, à droit louée 10

ou ainda:

B elle plaisant, que j e n'o se nom m er. "

A m ulher aparece como um a criatura semidivinizada: «formoso


corpo», claro rosto, «resplandecendo tanto com o ouro ao sol», m odos
cheios de graciosidade, ela representa p ara o cavaleiro o ideal de toda
a perfeição:

Dame, d o n t n o s (e) dire le nom


E n qui tous biens so n t am asses
D e courtoisie a ve z renom
E t de valeur toutes p a sse [surpassé]

Oeuvre de Dieu, digne, louée

A u ta n t que n u lle créature


D e tous biens e t vertus douée
Tant d'esprit que de n a tu r e 12

(9) N e m p o r tra balho n e m p o r p e n a / N em p o r d o r que tenha / N em


por ira dolorosa / N e m p o r m a l que sofra / J a m a is aba n d o n a rei /A m inha
dam a um s ó dia.
(10) Senhora, de todas a única / B ela e boa,ju s ta m e n te louvada.
(11) B elo prazer, a qu em n ã o ouso d a r nom e.
(12) Senhora, de quem não ouso d ize r o nome, / Na q ual to das as
virtudes .se c o n fu iu n d e m /D e. cortesia tendes fam a / E de va lo r adm irada.
Obra de Deus. digna, lo u va d a / M a is do que qu a lq u er p e sso a / D e
to dos os bens e virtu des dotada / Q uer de espírito com o de carácter.
REGINE PEN O U
118

É fácil, segundo a nossa literatura, conhecer o tipo de beleza


fem inina da Idade M édia:

E lle a un c h e f blondet
Yeux verts, bouche sadetíe,
Un corps p o u r em brasser,
Une g o rg e blanchette [...]

J e n e vis oncques fle u r en branche


P a r m a foi, qui fû t aussi blanche
C om m e est votre sa d e g o rg ette;
L es bras longuets, le s doigts tretis [déliés] [...]
L es p ie d s petits, orteils m enus
D o iven t être p o u r b ea u x tenus [...]
Vos y e u x riants, à p o in i fendus
Qui frem issem com m e Vestelle
P a r n u it em m i la fontenelle [...] 13.

Os ardis encantadores que o contista nos pinta com traços


delicados — C h restien de Troyes foi nisso excelente— acabam de
fazer dela um ser adorável, todo de delicadeza, de distinção, de ele­
gância de espírito: ardis de pastoras p ara afastar o perseguidor de
encontro, ardis de dam as sim ulando cólera ou orgulho p ara m elhor
seduzir o cavaleiro que as corteja.
E, p ara realçar a delicadeza de sem elhantes quadros, soube-se,
na Id ad e M édia, fazer ressair, m elhor do que em qualquer outra época,
o duplo aspecto do eterno feminino: ao lado da Virgem , da m ulher
respeitada, honrada, aquela pela qual se m orre de am or, e de quem
só se aproxim a trem endo, há Eva, a ten tad o ra, E va p or quem o m undo
foi perdido. Contistas, poetas, autores de fabulários, não lhe poupam
os sarcasmos.

F em m e n e p e n se mal, n i nonne, n i béguine


N e que [pas plus que] fa it le re n a rd qui h appe le g élin e14.

(13) E la tem cabeça lo u ra / O lh os verdes, boca agradável, / Um corp o


p a ra c in g ir com os braços, / Um c olo branquinho.
J a m a is vi flo r em braçada / Juro, que fo sse tão branca / C om o A
ovosso enca n ta d o r colo; / Os b raços com pridos / os dedos fin o s [... \
/ Os p é s p equenos, dedos along a d o s / D evem s e r considerados belo s \ .. ] /
O lhos ridentes, a bertos com p ro p rie d a d e / Que trem em com o estrela s / N a
n o ite a g o te ja r [ .. .] .
(14) A m u lh e r que não seja freira ou beata / Tem tão bons p c n s< i
m e n to s com o a ra posa q uando aboca a ga linha.
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 119

E la apenas ostenta os seus encantos p ara m elhor trair de seguida:

L a douce rien qui fa u sse am ie a no m 15.

G alanteadora, perversa, só sorri p ara m elhor «cativar» os co ra­


ções ingénuos que com isso se deixam prender:

Trop e st fo u qui tant s 'y fie


Q u'il n e s'en p e u i départi r 16

Ele só terá dor e decepção, porque

F em m e est tôt changée


[...] Ci rit, ci va p le u ra n t
[...] P o u r décevoir fu t n é e 17.

D u ra e im piedosa, não se com ove com nenhum a súplica, com


nenhum sofrimento e, com o a Bela D am a sem Piedade, apenas opõe
calm a frieza às m ais apaixonadas estrofes. É ávida e interesseira:

F em m e co nvoite a vo ir p lu s que m ie i n e fa it ourse;


Tant vous aim era fem m e com m e a ve z rien en bourse18.

No lar, ela torna a vida impossível ao infeliz m arido e engana-o


im pudentem ente Se ela vos deixa, é-se ainda m uito feliz em se
resignar, com o faz o p oeta Vaillant:

B onnes gens, fa i p e rd u m a dam e


Qui la trouvera, p a r m o n âm e
D e très bon coeur j e la lu i donne
[...] Car, p a r Dieu, la g en te m ignonne
E st à chacun douce perso n n e 19

(15) O doce n ada que de fa lsa am iga tem nom e.


16 E d em asiado lo u co quem ta nto a í se fia / D e ta l fo rm a que não
pode renunciar.
(17) A m u lh e r cedo m u d a / [...] Ora ri, ora vai chorando / [...] Nas.
ceu p a ra iludir.
(18) A m u lh e r cobiça te r m a is do que a ursa m el; / A d o ra r-v o s-á em
p ro p o rç ã o ao din heiro que tendes.
(19) B o a gente, p e r d i a m in h a dam a / Q uem a encontrar, ju r o -o , / vo­
lu n ta ria m en te a dou / [...] P orque, p o r Deus, a airosa g a la n te / A doce
pessoa, p e rten c ia a cada um.
120 R E G IN E PEN O U

P u ra ou perversa, ridicularizada ou adulada, a m ulher dom ina


na Idade M édia as letras francesas, como dom ina a sociedade:

P o u r je m in e donne l'o n m a in t don


E t controuve m a in te chanson;
M a in ts fo ls en so n t devenus sages,
H om m e bas m onte en parage,
H a rd i en deviendrait couard,
E t large qui su t être a vare20.

É ela que inspira as canções, que anim a os heróis dos rom ances,
que faz suspirar ou com overem -se os trovadores. D edicam -lhe os
versos; p ara ela com põem belos m anuscritos ricam ente ilum inados.
E la é o sol, a rim a e a razão de toda a poesia.
A m ulher é, de resto, ela própria poeta. F ábulas e la is 21 de M aria
de F rança fizeram as delícias dos senhores de C ham pagne e de Além-
-C anal (M ancha); a literatura é, por vezes, p ara ela, um ganha-pão,
com o foi o caso de Christine de Pisan. E las não tiveram de vencer o
desprezo a que, ainda não há m uito tem po, se expuseram entre nós
as «m eias azuis», talvez porque lhes evitavam os defeitos e sabiam
conservar um encanto propriam ente feminino. A Idade M édia rep re­
senta a grande época da m ulher, e, se há um dom ínio em que o seu
reinado se afirma, é o dom ínio literário.
Isto, ainda, era bem francês. O nosso povo era, desde então,
reputado o m ais galante, e já as m aneiras francesas serviam de m odelo
à Europa. N enhum a civilização colocou tão alto o ideal feminino e
pôs tanta prontidão em o honrar. N os países germ ânicos, o hom em
representou sem pre o papel principal, de Siegfried a W erther; sem
dúvida, um a Kriem hild não tinha o que era preciso p ara seduzir um
cavaleiro e provocar nele e se sentim ento m isturado de nobreza e de
am or, que nasceu em F rança, e que se nom eia: a cortesia.
Francesa nos grandes traços que a distinguem , a nossa literatura
é m elhor ainda: um espelho do nosso país nas suas m últiplas p ro ­
víncias. P icardos de veia folgazã, C ham panheses de sorriso delicado,
N orm andos astutos, Provençais, L anguedócio , de língua quente e
cantante como a sua poesia, todas as subtis variedades do nosso solo
nela e tão expressas. N esta literatura que os m anuais nos apresentam
em bloco, com o um a m assa informe, há cam biantes em núm ero

(20) X m u lh er atribuem -se m u ito s d o n s / E inventa-se m uita canção;


/ P o r ela m u ito s lo u co s íomaram-se sábios, / H om em baixo subiu de
linhagem , / O ousado tornar-se-ia pusilânim e, / E p erd u lá rio quem soube
se r avaro.
(21) Poesia cujo tem a são lamentações de amor. (N. do R.)
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 121

infinito. Todo o provinciano pode nela encontrar a sua alma, as suas


paisagens fam iliares, o acento da sua terra — p o r vezes em sentido
próprio, como neste pequeno trecho de Conon de B éthune em que ele
se lam enta de que se tenham rido das suas entoações picardas:

E n co r n e so it m a p a ro le françoise
S i la p eu t-o n bien entendre en françois,
E t cil n e so n t bien appris n i courtois
Qui m 'o n t repris, si j 'a i d it m o t d'Artois,
C ar j e n e j u s p a s n o u rri à P ontoise [...] 22

D epois do século x v i, aproxim adam ente, as nossas obras literárias


usavam um uniform e que, por soberbo que fosse, não pode fazer
esquecer a cintilante m escla de cores da poesia m edieval. L íngua de
o c e língua de o ï l 24, falares de Poitou e falares provençais, dialectos
no rm an d o ; e borgonheses, tudo isto se tornou poesia; todos encontra­
ram o seu M istral, capaz de lhes fazer apreciar a riqueza e de exprim ir
p o r eles o espírito da sua terra. Seria urgente com preender a literatura
m edieval à luz destes mil aspectos das nossas províncias, para com-
p render os mil aspectos que ela apresenta e tudo aquilo que ela pode
revelar-nos sobre nós próprios: Joinville ou Gace Brûlé p ara a C ham ­
pagne, Jean Bodel ou A dam de la H alle p ara o A rtois, B eaum anoir
p ara a Ilha de F rança, os trovadores para o nosso M idi languedócio
e provençal
*

N a inesgotável m ultiplicidade das suas form as, na sua indivi­


dualidades tão bem m arcada, a p o e:ia m edieval é, antes do m ais,
hum ana; ela encontra os tem as eternos de toda a poesia.
Teve olhares m aravilhados p ara o m undo e as coisas: p ara o
canto dos pássaros, p ara o m urm úrio das árvores na floresta, p ara o
b ro tar das fontes, p ara m agia das noites de luar:

E n avril au tem ps p a sc o u r
Que s u r l'h e r b e n a it la flour,
L 'a lo u e tte au p o in t du jo u r

(22) A inda que a m inha p a la v r a nã o seja francesa / Se ela p o d e ser


escutada em francês, / N a o sao bem educados n em corteses / Os que m e
censuram se eu disse p a la vra s de A rtois. / P ois n a o fu i am am entado em
Pontoise.
(23) O c — Língua falada pelos povos do Sul do Rio Loire. (N. do R.)
(21) Oil— D ialecto falado a Norte de F rança; ambos os term os, o c e
oïl, significam « s i m ». (N. do R.)
122 R EGINE PEN O U

C hante p a r m o u lt g ra n d baudour
P o u r la douceur du tem ps nouvel.
S i m e leva i p a r un m atin
J 'o u ïs cha nter s u r l 'arbrissel
Un o iseleï en son la tin 25.

Este sentido da natureza e do seu perpétuo milagre, estes ímpetos


de amor à renovação da Primavera nos ramos, à frescura dos orvalhos
matinais, ao esplendor do poente, animam todas as nossas letras
medievais do grande sopro da vida:

L e nouveau tem ps e t m a i et violei te


E t ro ssig no l m e sem o n t de chante r26.

Natureza amável e sempre surpreendente, flores selvagens que


Nicolette entrançou, ramos de madressilva pelos quais Tristão traduziu
o seu amor, bosquezinhos de verdura onde veio recuperar-se o amante
desesperado da Bela Dama sem Piedade — estes campos, estes jardins,
estes rios que os iluministas pintaram delicadamentenão foram menos
apreciados pelos contistas e pelos poetas. Chega-lhes uma palavra
para evocar os campos, as estações, a sombra da oliveira, a erva
tenra «que verdeja quando o tempo humedece»:

E t la m auvis qui com m ence à tentir


E t le d o ux son du ruissel su r gravelle27.

A sua visão é directa, um simples toque, mas sempre evocador;


mesmo La Fontaine não parece ter tido mais felizes descobertas que
os nossos antepassados da Idade Média, apaixonados pela verdura
e pelo ar livre.
Este frémito da vida universal desapareceu da nossa literatura
depois deles; Ronsard só lamenta os bosques de Gastines pelas ninfas
com que a Antiguidade os povoava, e termina com reflexões filosóficas;
se a fonte Bellerie inspira um poema, é apenas porque Horácio tinha
dirigido uma ode à fonte Bandusie. Com raras excepções, é preciso

(25) E m A b ril n o tem po de P áscoa / So b re a erva n a sce a flor, / A


calhandra ao ro m p er do dia / Canta com g ra n d e beleza / P ela doçura
do n o vo tempo. / L evan ta n d o -m e p e la m adru g a d a / O uço ca n ta r n o s
a rbustos / Um p a ssa rin h o n o seu linguajar.
26 O n o vo tempo, M aio, a violeta / E o ro u x in o l le va m -m e a cantar.
(27) E o tordo que com eça a ca n ta r / E o doce som do a rroio sobre
a s pedras.
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA
123

esperar os românticos para reencontrar, com uma sentimentalidade


algo irritante, fugas para a grande natureza. A nossa época recon­
quistou, com um Apollinaire ou um Francis Jammes, esse sentido
agudo da vida que nos rodeia; é um contacto que havíamos perdido,
mas circula de novo nas nossas letras esse sopro carregado dos odores
da planície e da floresta, das montanhas e do mar, que em grande
parte devemos aos romancistas estrangeiros, a Knut Hamsun, entre
outros — e esse sentido da paisagem e da atmosfera que o G rand
Meaulnes nos restituiu. Porque não são as elevações filosóficas à
Jean-Jacques, ou os desabafos lamartinianos, que constituem o amor
da natureza, mas sim as observações directas da vida familiar, as
notas sem ênfase de um dia de chuva fina ou de uma brilhante manhã
passada à beira de um regato, essas evocações simples de um porme­
nor, de uma parede coberta de hera, de uma rosa num ramo, do voo
de um corvo por cima de um campo de trigo, de um bosquezinho
de lilases num jardim de Touraine — que permanecem ligadas na
recordação às horas de alegria ou de angústia, que dão a sua nota
particular aos acontecimentos da vida humana, que rematam a har­
monia de um instante de beleza.
Mas o tema por excelência da poesia medieval é o amor. Todos
os aspectos, todas as tonalidades do amor humano foram sucessi­
vamente evocados, desde a mais brutal paixão até aos requintes da
retórica amorosa querida aos trovadores. Pode dizer-se ousadamente
que nenhuma literatura conheceu uma tal riqueza e levantou tantos
véus a propósito do coração do homem. Do amor muito nobre de
Guibourc, que não consegue suportar que o ser amado seja um ins­
tante inferior a ele próprio, aos «sórdidos amores» da Belle Heaulmière
não há um suspiro, um beijo, um desejo de amor a que poetas e
romanceiros não tenham mencionado de passagem e que não tenham
nos seus versos fielmente traduzido.
Há os simples e frescos amores pastorais, os de Robin e de
Marion, que, aliás, depressa perderão a sua sinceridade e se tomarão
um tema literário:

Chevalier, p a r S a in t Simon,
N 'a i cure de com pagnon.
P a r ci p a sse n t G uérinet et R obeçon
Qui oncques n e m e req u iren i s i bien non1' .

2 8 Cav aleiro , p o r S. Sim ão, / N ã o p ro c u ro com panheiro. / P o r a q u i


p a & stira m G uérim et e Roberçon / Q ue n unca m e solicitaram .
124 REGI NE PERNO V D

M as, com o na Idade M édia a m alícia nunca está ausente, mais


de um a pastorinha, depois de ter am eaçado o cavaleiro com o cajado,
deixa-se seduzir p o r ele:

M a belle, p o u r D ieu m erci!


E lle rit, si répondit:
N e faiies, p o u r la g e n t ! 29

H á a grandeza do am or conjugal, tal como o canta V illon na


esplêndida balad a p ara R o b ert d'E stouteville, em que tudo aquilo
que faz a nobreza e a beleza do casam ento se encontra dito com um a
sim plicidade, um a facilidade, um dom ínio da palavra e do pensam ento
que raiam a perfeição:

Princesse, o ye z ce que ci vous resum e:


Que le m ien coeur du vôtre désassem ble
J à n e será; tant de vous en presum e,
E t d est la fin p o u r quoi som m es e n se m b le "°.

Ao lado destas páginas serenas ou gentis, os acentos da paixão


carnal, com o este poem a de G uiot de Dijon, em que se exprim e com
um a sensualidade ardente toda a angústia de um desejo insaciado:

Sá chem ise qu 'ot vétue


M 'envoya p o u r em bracier.
L a nuit, q u a n d s'a m o u r m 'a rg u e ,
L a m e ts a vec m o i coucher
M o u lt étro it à m a chair n u e (31).

E p o r vezes tam bém a separação, não m enos aflita, se torna m ais


pura: nunca a am argura lancinante de um am or longínquo foi m elhor
evocada do que nestas páginas de Jaufre R udel, cujo enigm a se p ro ­
curou m uito tem po, e que contudo são tão claras: rajadas de ím petos

(29) M in ha bela, p o r a m o r de D eu s! / E la riu -se e respondeu: / N ã o


se aborreça com a g en te!
(30) P rincesa, escu ta i o que vos digo: / Q ue o m eu co ração do vosso
d esig ual / N ã o será; de vós tenho tão bo m conceito, / R a zã o enfim p o r
q ue esta m os ju n to s.
(31) A cam isa que ela vestira / E n vio u -m e p a ra a beijar. / A noite,
quando sin to fa lta do seu amor, / D eito -a co m ig o/A braçada estreita ­
m en te a o m eu corpo nu.
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA 125

contidos e de desejos im possíveis, sentim ento agudo do irrem ediável,


que ofusca repentinam ente toda a alegria de um dia de Verão:

S i que chants e t fleu rs d'aubespis


N o m p la tz p lu s que l 'hiver g e la tz J 2

É palavra p o r palavra que seria preciso saborear cada um deites


poem as, p ara com preender que riquezas foram extraídas de um a tão
rica m atéria. G eralm ente, quando se evoca a Idade M édia, pensa-se
no am or cortês, e vê-se isso sob a form a de um a «formosa dam a»,
de um cavaleiro no torneio e de insignificantes acessórios. N ad a está
m ais afastado da época que um a tal sensaboria. Sem dúvida que a
elegância de estilo é p o r eles conhecida e apreciada: elegância de
estilo à francesa, prazer de dizer e de escutar lindas coisas, galanteios
e contos de am or, tem as deliciosos da cham a ligeira e da semi-recusa:

Surpris suis d'une am ourette


D o n t tout le coeur m e volette [...]
Hélas, m a D am e e t si fière
E t de si dure m anière,
N e veut o u ir m a p rière
N i chose que j e lu i quière.
A y e z m e rc i douce am ie
D e m o i qui de coeur vous p r i e 33.

Jean le Seneschal, nas suas baladas que são com o que um p an o ­


ram a da vida am orosa, não deixa de fazer alusão a estes jogos de
cortesia:
J à votre coeur n e s'ébahisse
Si p r ie z dam oiselle ou dam e
Qui ra id em e n t vous escondisse:
Tôt se rapaisera, p a r m'âm e,
D o n n e z en à A m o u r le blâm e
E n lu i p ria n t que vous p a rd o n n e [...]
P uis l'e m b ra sse z secrètetnent [...] 34.

(32) C intos e B ores de p irite iro s / A g ra d a m tanto com o o In vern o


gelado.
(33) F u i su rp reendido p e lo a m o r / E n levo do m eu co ração ... / A i de
mim , a m in ha dam a tão org ulhosa / E de m o d o s tão rísp id o s / N ã o q u er
o u vir a m in ha p re c e / N em quanto lh e quero. / Tende p ie d a d e doce
am iga / D e m im que do co ração vos roga.
(34) Vosso co ração n ã o se espanta / Q u er m enina, q u er senhora / Se
p ed ird es o que rig id a m en te vos esconde: / Cedo se apaziguará, p o r m in ha
alma. / D a i ao A m o r a culpa / P ed in d o -lh e que vos perdoe... / B eija i-o
depois secretam ente.
126 RAC IN E PEN O U

U m T hibaut de Cham pagne, um Guy d'U ssel e m u ito s outros


tiveram destas páginas encantadoras, onde só conta a beleza do sen­
tim ento e a beleza do verso; deleitam -se nos jogos de capricho, da
astúcia fem inina, do despertar de um coração para a galanteria;
Chrestien de Troyes m ostrou um incom parável garbo em deslindar
as mil pequenas intrigas, m anhas e ciúm es daquelas que querem
seduzir os outros e ser astutas com elas próprias; isto torna-se em
alguns um tem a literário, de p u ra invenção verbal, que não deixa
de ter interesse:
Qui n 'a u ro it d'autre déport
E n aim er
F ors D o u x P enser
E t Souvenir
A v e c l'e s p o ir de jo u ir ,
S 'auroit-il tort
Si le p o r t
D 'autre confort
Vouloit trouver.
C ar p o u r un coeur saoiâer
E t soutenir,
P lus quérir
N e d o it m é rir
Qui aim e jo r t.
E n co r y a m a in t ressort:
Rem em brer,
Im a g in er
E n d o u x plaisir,
Sa dam e veior, ouir,
Son g e n til port,
L e rec o rt
D u bien qui so rt
D e son p a rle r
E t de son d o u x regarder
D o n t VentrAouvrir
P eu t g u é rir
E t g a ra n tir
A m a n t de m o r t 5.
(35) Q uem d eseja r a m a r / P ara a lém dos doces p en sa m en to s / E re­
cordações/C om a espera nça de g o za r / A tin g irá m a u p o rto / S e ou tro
conforto / Q u iser achar. / P o rq u e p a ra em b ria g a r um co ração / E o m a n ­
ter / M a is do que o p ro c u ra r / D eve m ere ce r / Q uem m u ito ama. / O que
m a is im porta: / R ec o rd a r / im a g in a r / E m doce prazer, / Ver e escu ta r
a sua dam a / O g e n til p orte , ï A m elo dia do seu falar. / E o en treabrir
/ D o seu doce o lh a r / P o d e cu ra r e p ro te g e r / O am ante da morte.
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA 127

É, sem dúvida, um a das belezas da Id ad e M édia, esta cortesia, em


que tudo era apenas nobreza de coração, delicadeza de espírito e
respeito m ístico pela m ulher. M as acreditar que, num a época de vida
intensa com o essa, não houve acentos m ais profundos e m ais apai­
xonados, seria puro absurdo. P or vezes, no próprio cerne da retórica
am orosa, exprim e-se com um a verdade pungente toda a angústia de
um coração desesperado. A B elle D am e sons M e rci [Bela D am a sem
P iedade], de Alain Chartier, é disso um exem plo im pressionante. Esse
poem a, em que o tem a principal vem e volta sem cessar, em que as
réplicas se sucedem e se encontram com um a incansável crueza, e que
tanto contém lam ento com o discussão, é um a das obras-prim as da
poesia de todos os tem pos, pela paix ão contida, pela lucidez na dor,
pela im placável lógica de um am or sem esperança.

A. Vos y e u x o n t s i em preint le u r m erche


E n m o n coeur, que, quoiqu'il advienne,
S i j 'a i l'h o n n e u r ou j e le cherche
11 convient que de vous m e vienne.
F ortune a voulu que j e tienne
M a v/e en votre m e rc i dose:
S i est bien d ro it q u 'il m e souvienne
D e votre h o n n eu r s u r toute chose.

D. A votre h o n n e u r se u l entendez,
P o u r votre tem ps m ie u x em ployer;
D u m ien à m o i vous attendez
S ans p ren d re p e in e à foloyer;
B on fa it craindre e t supployer
Un coeur jo lle m e n t déceu
C ar rom pre vaut m ie u x que ployer.
E t ébranlé m ie u x que cheu.

A. P ensez, m a dame, que depuis


Q u'A m our m o n coeur vous délivra
I I n e pourroit, n i j e n e p u is
E tre autrem ent tant q u 'il vivra:
Tout quitte et jr a n c le vous livra;
Ce don n e se p e u t abolir.
J'a tten d s ce q u ' u s'en ensuivra.
J e r fy p u is m ettre n i tollir.

D. J e n e tiens m ie /H )u r donné
Ce qu'on à qui n e le p rend;
C ar le don e st a b a n d o n n é
RACINE PERNO UD
128

S i le donneur n e le reprend.
Trop a de coeur qui entreprend
D 'en do n n er à qui le refuse,
M a is il est sage, qui apprend
A fe n retraire, q u'il n 'y muse.

A. A h ! coeur p lu s d u r que le n o ir m arbre,


E n qui m e rc i n e p e u t entrer,
P lus fo rt à p lo y e r qu'un g ro s arbre,
Que vous vaut tel rig u eu r m o n trer?
Vous p la it-il m ie u x m e voir outrer
M o rt devant vous p a r votre ébat
Que p o u r un confort dém onirer
R esp irer la m o rt qui m 'a b a t?

D. M o n coeur n i m o i n e vous feim es.


O ncq rien d o n t p la ire vous doyez
R ien n e vous n u it fo rs que vous-mêmes:
D e vous-m êm es ju g e soyez.
Une fo is p o u r toutes croyez
Que vous dem eurez escondit.
D e tant red ire m 'en n u yez
C ar j e vous en a i a ssez d it [...] 36

E que literatura oferece um exemplo m ais com pleto, m ais p até­


tico, de am antes trágicos, do que Tristão e Isolda? H ouve algum a
vez criação m ais forte e m ais perfeita do que estes doi:. seres, perdi­
dam ente dedicados um ao outro, vivendo apenas pelo seu m útuo
am or? «Nem vós sem m im , nem eu sem vós» — ardor dilacerante e
sem ênfase, violência dos contrastes: Tristão rebaixado a um papel

36 A. Os vossos olh os deixaram ta l m arca / N o m e u co ração que,


aconteça o que acontecer, / S e encontro a h o nra onde a p ro c u ro / R eco
n h eço que de vós m e vem. / A fo rtu n a quis q u e tivesse / A m in ha vida
à vossa m ercê / Colocando vossa h o nra acim a de tudo o mais.

D. A vossa h o nra ap en a s dais ouvidos / C om o fo rm a de em p reg a r


o vosso tempo; / D o m eu vos q uereis o cu p a r / Sem in có m o d o p a ra fo l­
ga r; / M elh o r seria te m er e su p lica r / Um co ração lo uca m en te seduzid o /
P o is vaie m a is ro m p er do que ceder, / E m a is vale trem er do que c air

A. Julgai, senhora, p o is desde / Q ue o A m o r vos entregou m eu


coração / N e m ele poderá, n em eu p o sso / S e r de outra fo rm a enquanto
viver; / C om pletam ente liv re e aberto o entregará; / E sta dádiva "<....
L UZ SO B R E A ID A D E M ÉDIA 129

de bobo, Isolda segura do seu am ante e to rtu rad a pelo ciúme, am ores
selvagens e pudicos, m ordeduras dos rem orsos e do afastam ento:

J e suis Tantris qui tant l'a im a i


E t aim erai tant com vivrai
— A n u it fà tes ivre au coucher
E t l'iv re sse vous fit rever!
— Voir est: cl'itel boivre suis ivre
D o n t j e n e cuide être délivre [...]
L e ro i l'e n te n d e t si'en rit,
et d it au foi: Si D ieu fdit,
s i j e te donnais la reine
en hoir, e t la m ette en saisine,
o r m e d is que tu en ferois
ou en quel p a r t tu la m e n ro is?
— Roi, j a i t le foi, là su s en l 'air
a i une salle ou j e re p a ir [e]',
de verre est fait, belle e t grand;
le so leil va p a rm i rayant,
en l'a ir est, e t p a r n u ées pend,
n e berce e t n e croule p o u r vent.
D e le z la salle a une cham bre

pode se r negada. / A qu a n d o o que se segui/rá. / N ã o p o sso in terferir


n em im pedir.

D. N ã o consid ero com o ofe recid o / O que se ofe rece a quem recusa;
/ P o is a dádiva será abandonada / Se o d a d o r a n ã o recuperar. / B d e­
m a sia d o g en ero so quem p ro cu ra / O ferecer a quem recusa, / M a s and a
bem quem sabe / B etira r-se quando n ã o agrada.

A. A h ! co ração m a is duro que o n eg ro m árm ore,Æ m q u e fa v o r


n ã o p o d e entrar, / M a is resisten te a verg a r que um a g ra n d e árvore, / D e
que vos serve m o stra r um ta l rig o r ? / A gra d a r-vo s-á m a is le var-m e
a o p a ro xism o / M o rto p era n te vós p a ra vosso g o zo / E n em seq u er
dar-m e o conforto / D e teste m unhar a m o rte que m e a b a te f

D. N em o m eu co ração n em eu vos ilu d im o s / Ja m a is nada deveis


p a ra a g ra d a r / N e m n a d a vos p reju d ica senão vós m esm os: / D e vós
tiu-sm os sr.d e o ju iz . / D e uma vez p o r todas a cred ita i / Q ue n ã o p a ssa reis
A n uma som bra. / D e tanto re d izer m e enojais / P o is m u ito j á vos
disse [...].

ht t p: / / saom iguel.webng.com /
130 RÉG INE PERNOUD

fa ite de cristal e t de lam bre;


le soleil, q u a n d m ain lèvera,
céans m o u lt g r a n d clarté rendra [...] (37).

N unca m ais rica gam a de tem as inspirou um poeta, nunca o amor


hum ano soube encontrar acentos m ais verdadeiros e m ais intensos.
Com eles tantos outros, como Lancelote e Genoveva, conservam ,
por entre os arrebatam entos da voluptuosidade, o sentido da honra,
da rectidão, do respeito devido ao senhor que se traiu co n tra a sua
vontade. Quão hum anos tam bém , esses m om entos de súbita selvajaria,
como na estranha história que se cham a L a filie du com te de Ponthieu,
em que se vê um a jovem , violada sob os olhos do seu m arido, voltar-se
contra ele, logo que os seus algozes a deixam , e pro curar matá-lo
antes que ele se desem barace dos seus atilhos — incapaz de suportar
o seu olhar depois da grande vergonha que tinha sofrido perante ele.
Estes gritos de dor e de paixão, esta violência de ser sensível, eis a
Idade M édia e eis a sua poesia, ardente, directa, inesquecível, e que
vos prende, um a vez saboreada, como aquele filtro de am or que
beberam inadvertidam ente os seus dois m ais com oventes heróis.
O utros tem as de inspiração dão a nota viril: a guerra, em prim eiro
lugar. A quele que pretendeu que os Franceses não tinham «a cabeça
épica» ignorava a Idade M édia. N enhum a literatura é mais épica do
que a nossa. N ão só se inicia com a C hanson de R o la n d [C anção
de R olando] — um dos pontos altos da epopeia, do qual, parece,
ainda não se apreendeu plenam ente a b elez a— , m as com preende
m ais de cem outras obras que são tão boas com o ela e que continuam ,
tam bém elas, um tesouro a explorar. T odas, ou quase to d as, teste­
m unham essa sim plicidade na grandeza, es:e sentido das im agens,
que fazem do autor da C hanson de R o la n d [C anção de R o lando] um
dos m aiores poetas de todos os tem pos. O carácter da epopeia francesa
é precisam ente este tom simples e despojado que é o de toda a nossa
Idade M édia: os heróis não são nela sem ideuses, são hom ens, cujo

(37) Sou T ãotris que tanto a a m o u / e am ará enquanto d u ra r a su a


vida / — A p o sto que estavas ontem bêbado a o deitares-te / e fo i a c.m
b ria g u e z que te fe z so n h a r isso ! / — H a v ei-lo dito : estou de verd< i< ;,<
em briagado / m a s fo i p o r ter b e bid o um a b e b e r a g em com o n ã o h á o u tr a
n o m undo... / O re i escuto u-o e rin d o -se / p erg u n to u : Q ue D e u s te ajude, i
se te p re se n tea sse a rainha, / diz-me, o que fa ria s d e la ? / P ara onde
o le v a ria s? / — Rei, re sp o n d e u o lo uco , tenho lá em cirna n o céu / uma
sala onde habito ; / é toda feita de vidro, bela e g ra n d e ; / p e n d u ra /In
nas n u v en s / e ioda banhada p e lo sol, i qu a lq u er que seja a violência
dos ventos, / n ã o se m e xe n e m cai. / P erto da sala h á um q u arto feito
de cristal; / quando o S o l se levanta, / a cla rid ade 6 m a ra vilh a m ...
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 131

valor guerreiro não exclui as fraquezas hum anas. A pesar de toda a


arte virgiliana, E neias parece bem pálido e a sua psicologia bem
sum ária ao lado de R olando ou de G uilherm e de O range, destes seres
todos cheios de contrastes, cuja valentia arrasta alternadam ente des­
m esura e hum ildade, excesso e desalento. E sta justeza de observação
im pede as nossas epopeias de se tornarem o que elas teriam podido ser:
um m onótono desfile de indivíduos heróicos e de façanhas prodigiosas.
A valentia é nela estim ada acim a de tudo, m esm o a dos inimigos,
m esm o a dos traidores, e com ela o sentim ento da honra, a fidelidade
ao vínculo feudal; m as tan ta nobreza de alm a teria podido tornar-se
fatigante, sem esses cam biantes que enriquecem os personagens e lhes
dão vida. É p o r isso que, p o r pouco que se conheça a C hanson de
R o la n d [C anção d e R o lando] — a única das nossas epopeias que
teve honras de m anuais esco lares— , os seus heróis perm anecem tão
ricos em cores na nossa im aginação: R olando, bravo m as tem erário,
Turpin, o arcebispo piedoso e guerreiro, Olivier, o Sábio, e Carlos,
alto e poderoso im perador, m as cheio de piedade pelos seus barões
m assacrados e abatido p o r vezes pelo peso da sua existência «penosa».
Tantos personagens que o contista soube evocar por im agens, por
gestos, poderíam os dizer, e não p o r descrições- Sóbrio quando se tra ta
do cenário da acção, ele vai direito ao fim; todos os porm enores que
ele dá são «vistos» e fazem ver; esse estandarte com pletam ente branco,
cujas franjas de ouro lhe descem até aos joelhos, coloca m elhor R o ­
lando na beleza resplandecente do seu trajo do que o faria um a des­
crição m inuciosa à m aneira m oderna. E os feitos e os gestos dos
heróis, os seus pensam entos, as suas preocupações, são deste m odo
tratados com notações visuais, em pinceladas claras e rápidas, com
um a arte infinita na escolha dos porm enores que im pressionam , como
im pressionam na realidade, não a ordenação e a com posição geral
de um cortejo, m as tall silhueta, tal cor dom inante, o reflexo de um
cobre ou o som de um tam bor- São as cintilações que jo rram dos
«elmos claros» durante a confusão de um com bate, os rubis que luzem
nas «maças dos m astros» da arm ada sarracena, ou ainda essa luva
que R olando estende a D eus no seu arrependim ento e que o A rcanjo
Gabriel agarra.
O que desconcertou os literatos nas epopeias m edievais é a ausên­
cia total dos processos analíticos a que a literatura clássica nos h ab i­
tuou: nada de narrações, a acção directa; nada de desenvolvim entos
nobre os caracteres, as tom adas de contacto; n ad a de dissertações,
mas gestos, cores, «instantâneos»; no que era poder de evocação só
vimos p o b re/a do invenção. C ertas técnicas do nosso tem po, por exem ­
plo u do cinem a, to rn aiam -n o s fam iliar esta tradução do pensam ento
132 R E G IN E PEN O U

pela im agem , e poderíam os de novo apreciar estas obras-prim as que


vêm a ser no espírito da nossa época. A té aqui, tinha-se resolutam ente
deixado de lado a sua beleza intrínseca, para apenas nos ocuparm os
com problem as que, a falar verdade, não se punham e teriam parecido
bem fúteis aos cérebros medievais: em p articu lar a questão da filiação
das epopeias e do seu valor histórico. H ouve, originariam ente, um ou
vários poem as sobre a C ouronnem ent de L o u is [C oroação de L uís]'!
Que personagem pode na realidade ser G uilherm e de O range?, e tc,
etc. Seria tem po de tom ar, enfim, estas obras-prim as p o r aquilo que
elas são: contos narrativos, nos quais o ponto de p artid a histórico
é apenas um pretexto e cujo único objectivo foi com over ou encantar,
segundo a im aginação do autor e o gosto do público. O im portante,
é que eles sejam belos, e são-no. Belos e prodigiosam ente variados:
já fizemos notar como as nossas duas m ais antigas epopeias eram,
uma, sublime, a outra, burlesca. A dem ais, no C harroi de N îm es, por
exem plo, estas duas características sobrepõem -se; e nenhum a parte
de hum or p erd e os seus direitos, realçando sem pre a grandeza de certas
cenas pela fantasia burlesca ou prazenteira das outras. É Shakespeare,
a vant la lettre.
Ao lado da poesia épica, a guerra inspirou num erosas obras
literárias, canções de trovadores, narrações de cronistas, poem as n ar­
rativos, sem contar com os inum eráveis duelos e torneios da literatura
rom anesca. P or todo o lado ela é evocada com a m esm a sim plicidade;
por todo o lado transparece um a m esm a adm iração pela valentia
e pelo garbo, o sentido daquilo a que cham am os fa ir play, e que faz
dela um belo jog o , do qual estão excluídos os «golpes baixos», ou,
pelo m enos, sem pre difam ados, em que a coragem , m esm o infeliz,
é sem pre respeitada, em que, enfim, as leis da honra dom inam tudo
o resto. L ancelote vencedor descobre-se p eran te o seu suserano, que
ele fez desm ontar e ajuda-o a m ontar de novo; Joinville defende com
o próprio corpo o rei São Luís. A os excessos da guerra, às cenas de
m assacre e de crueldade, que não estão ausentes, opõe-se sempre
algum acto de clem ência, qualquer eco de piedade.
É com os m esm os olhos que os hom ens da Idade M édia olharam
a m orte. Sem dúvida, em nenhum a literatura ela foi encarada com
tanta coragem sem ênfase e tanta lucidez sem am argura. Os versos
de Villon vêm à m em ória quando se evoca:

L a m o rt le fa it frem ir, pâlir,


L e n e z courber, le s veines tendre
L e col enfler, la chair m o llir
Jo in ctes e t n erfs croître e t étendre
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA
133

E t m eu re P a ris ou H élène
Quiconque meurt, m e u rt à douleur;
C elui qui p e r d vent e t haleine
Son fie l se crève s u r son coeur
P uis sue: D ieu sa it quelle su e u r [...] 38.

N um erosos outros poetas dela falaram com este realism o agudo,


este poder de evocação e esta calm a im pressionante:

M o rt qui sa isis le s terres franches


Qui fa it ta q u eu z des g o rg es M anches
P o u r ton ra seo ir affiler,
Qui l'a r b r e p le in de fru its ébranches
Que le rich e n 'a it que filer,
Qui p a r lo n g m a l le sais piler,
Qui lu i ôtes au p o n t les planches,
D is m o i à ceu x d'A ngivillers
Que tu fa is faiguille enfiler
D o n t tu le u r veux coudre le s m a n ch es [...] 39

M orte dos bravos na confusão, perdendo as entranhas p or gigan­


tescas feridas, m orte dilacerante de T ristão, m orte piedosa do pequeno
Vivien — um a grande serenidade subsiste sem pre no sofrim ento, d es­
crita, contudo, com um a energia propícia a fazer arrepios.
Ao lado destes tem as universais, alguns tem as são especiais da
literatura da Id ad e M édia. E n tre outros, a m ágica; assiste-se a um
tran sb o rd ar da im aginação; o m undo real e os seus tesouros não
bastaram à inspiração dos contistas: foi-lhes necessário beber da fan­
tasm agoria e sem ear de m aravilhas a vida dos seus heróis- Bem fre­
quentem ente, estes porm enores im aginários são apenas figuras enco­
brindo altas verdades. A alegoria está entre estas: podem os achar
artificiais estas evocações de qualidades abstractas, este m odo de fazer
falar D oce P ensar e Falso Parecer, de invocar E sperança e de m al­
dizer Desconfiança ou Traição. É, em todo o caso, m ais um indício

(38) A m o rte fá -Io estrem ecer, em palidecer, / O n a riz cu rv a r a s veias


m ile n a r / O p e sc o ç o entum ecer, a carne a fro u x a r / A rticu la çõ es e
ne rv o s distender. / F a leça P a ris ou H elen a / Q uem q u e r que m orra , m orre
dolorosam ente; / A q u ele que p e rd e o a r e o fô le g o / Sen tin d o a m o rte
a perta r-se n o coração / Bua, D e u s sa b e que su o r [...]
(39) M o rte que te a ssenhoreias das terras liv re s / Q ue fa se s dos
bva iu o s colo s a m o la d o r / P a ra afia res a tua lâm ina / Que p o d a s a
A rv o re p re n h e de fru to s / A panhando o opulento / R o u b a n d o -o por
lo n g a doença / Que arrancas à p o n te a s tábuas / D iz ao s de A n g ivillers /
Que p re p a ra s n agulha / A q u eles a quem queres c o se r [ ... ]
134 REFINE PEN O U

dessa vida prodigiosa que anim a as letras m edievais e que dá uma


alm a, um corpo, um a linguagem a todas as coisas, mesmo às mais
im ateriais. Sabe-se qual foi o gosto da época p o r tudo aquilo que é
concreto, pessoal, visível. O processo alegórico, que se alia curiosa;
m ente ao culto da im agem , m anifesta este gosto m ais um a vez. É
necessário m enosprezá-lo a p río rí? A alegoria parece ser apenas a
transposição de um m undo invisível, ao qual dam os de novo um
lugar de eleição. P orque não há grande distância, no fim de contas,
entre os «debates» com que se deleitou a Idade M édia literária e esses
jogos do inconsciente, aos quais a nossa época concede nom es mais
precisos m as m enos poéticos: actos falhados, censura, reflexos e
reacções m ais ou m enos conscientes do ser hum ano.
Estes factos prodigiosos não aparecem m enos profundos na sua
significação: fontes encantadas jo rran d o sob os passos dos cavaleiros,
p alavras m ágicas a p ronunciar p ara dom inar as forças n aturais, pode­
res m isteriosos que conduzem os hom ens ao seu destino e aos quais
eles obedecem sem m edir o alcance dos seus gestos. A literatura
rom anesca abunda em exem plos deste género, aos quais um Chrestien
de Troyes deu a sua m ais alta expressão: a grandeza de Y vain e de
Perceval reside neste sentido do m aravilhoso que acham os ao mesmo
tem po tão m ágico e tão hum ano.
M as há tam bém , e sobretudo, a fantasia gratuita, o prazer de
acum ular os prodígios e de criar um m undo impossível, o gosto do
estouvado e da brejeirice: cavalo m ágico de C léom adès, zom barias
e feitos burlescos dos pares no P èlerínage de Charles, aventuras de
M erlin e de V iviane ou do anão Obéron. Aí, nenhum obstáculo se
opõe ao fantástico, e as criações, sem itrocistas, sem im aravilhadas,
sucedem -se segundo os caprichos de um a im aginação desenfreada.
N ão parece que qualquer outra época tenha suscitado tantas invenções
bizarras e histórias de fazer dorm ir; a Idade M édia divertiu-se á
grande com esta facilidade pró p ria do hom em de tira r do seu cérelno
um m undo estravagante, tão longe quanto possível da realidade
m aterial; é um jogo de espírito no qual ela foi excelente.
E ste gosto pelo absurdo alia-se às preocupações m ais nobres, as
m ais angustiantes por vezes; p o r exem plo, a este tem a da procura, da
«busca», que é bem um dos m ais dom inantes que o dom ínio lileráno
conheceu e um dos m ais significativos p ara a com preensão de uma
época que por aí se aproxim a singularm ente da nossa. A obses ao
da p artida p ara um tesouro escondido, a necessidade de descoberta e
o desejo pungente da reconquista de um am or perdido são, simultâ-
neam ente, m uito m edievais e m uito m odernos. Perceval é o antepas­
sado do G rand M eaulnes; e se, depois, m uitos «pequenos Meaulnes
nos desgostaram um pouco dos sonhos da infância, subsiste o tem a
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 135

de um paraíso perdido, de um «gesto-chave» a realizar, de um a sede


a saciar, esse ím peto incerto p ara um m isterioso destino encontra um
eco infalível nas letras e no pensam ento m odernos. O Graal, a taça
de um a m atéria desconhecida dos m ortais, que todos procuram , m as
que só um coração puro poderá reaver, continua a ser um dos achados
m ais sedutores da Idade M édia. C laro, a sua interpretação deu lugar
a incríveis tolices; as inevitáveis investigações históricas, em prim eiro
lugar: análise das fontes, das filiações, etc. — quando se trata de dados
hum anos e não de um enigma histórico. A lguns críticos chegaram ao
ponto de se espantar com a atitude de Perceval, olhando, perturb ad o ,
passar a taça m isteriosa, sem ousar pedir sobre ela a m enor explicação;
e, nesta espécie de assom bro, contudo tão natural, tão verdadeiro —
aquele que vos tom a quando se resolve um a dificuldade, quando acon­
tece o inesperado, quando a realidade ultrapassa as vossas am bições
e d esejo s— , apenas se viu um processo poético p ara fazer ressaltar
um a acção que teria podido acabar-se lá. Pode crer-se, contudo, que
sem elhante incom preensão já não seria possível nos nossos dias,
p o rque as reacções escondidas da alm a hum ana nos são m ais fam i­
liares e os seus m otivos desconhecidos nos foram m elhor revelados
do que nas épocas racionais ou sentim entais que nos precederam -
0 ocultism o e, num a certa m edida, a psicanálise prestaram -nos nisso
um grande serviço, apesar dos excessos e dos erros dos ocultistas e dos
psicanalistas. Ver em Perceval ou em G alaad simples heróis de ro-
m ance-folhetim , cujo autor faz render a m assa arquitectando as m ais
com plicadas aventuras, é desconhecer um a das m ais altas criações
do espírito hum ano encarnando essa profunda sabedoria e essa descon­
certante audácia que representa, no m undo, a sim plicidade de coração.
E a dem anda dos cavaleiros errantes traduz tam bém , a seu m odo,
este m ovim ento que caracteriza a Idade M édia. E ra norm al que a
febre itinerante dos nossos antepassados deixasse vestígios na litera­
tura. Fora as obras de C haucer, que dela são a expressão m ais directa,
reencontram o-la nos rom ances de aventuras e na literatura cavalei-
resca. À quele que, na sua juventude, se contenta com as paisagens
familiares c não experim enta o desejo de descobrir outros horizontes
«deviam -lhe os olhos cegar», declara sem rodeios Filipe de Beaum a-
Iloir. Tanto quanto a angústia das separações, cantou a Idade M édia
1 alegria das partidas:

N ’e n p u is m a g ra n d j o i e celer
E n Egypte vais ai le r (40)

(4 0 ) Não posso ocultar a minha im en sa a le g r ia / Para o Egito vou.


136 R E G IN E P E R N O U D

diz um motete anónimo do século XII. A peregrinação, sob todas


as suas formas, é tão familiar à literatura como à vida, fornecendo,
de resto, como tudo o resto, motivo de gracejo: o abuso que dela se
fazia inspira um capítulo bem engraçado do Quinze p ie s de m aríage.
E temos, enfim, um tema universal que se tomou um tema me­
dieval: Deus. Opondo-se diametralmente à teoria que deviam manter
na sequência da A rte P oética e dos clássicos, a Idade Média bebeu
na sua fé como na mais pura fonte de toda a poesia. Com efeito, como
poderia um crente, imbuído da sua religião, abstrair da sua própria
substância na sua actividade poética que exige, mais do que qualquer
outra, a participação de todas as faculdades do ser? Negligenciar o
sentimento religioso em poesia, nesta época de fé sincera, apenas
redundaria em mutilar o homem, em introduzir nele uma dissociação
e uma negação neste domínio essencialmente afirmativo que é a poesia,
condenada, por consequência, a tomar-se artificial e pouco sincera.
Também o pensamento de Deus é inseparável da poesia medieval.
Desde os companheiros de Rolando, que caem na confusão invocando
Deus, até aos cavaleiros do J e u de Sainí-N icolas, que os seus anjos
acolhem em grande alegria depois do seu massacre pelo exército sar­
raceno, da A ve M aria de Beaumanoir à balada que François Villon
fez, a rogo de sua mãe, para rezar a Nossa Senhora, podemos dizer
que todas as formas da piedade medieval passaram alternadamente
nas suas le tras". Como a Idade Média teve uma predilecção pelo
culto da Virgem, a sua graciosa imagem — «mais doce flor do que
é a rosa» — anima o conjunto da poesia, tanto profana como sagrada.

(41) N ã o se pode, sem esp an to , a s s i n a l a r a opinião sin g u la r que sobre


este as su n to M. T h ie rry M a u ln ie r em ite, na sua In tro d u ctio n à la p o ésie
française, onde, de resto , o domínio m ed iev al é to t a l m e n t e n eg lig en ciad o
e ig n o rad o : seg u n do esta o b ra, a p o es ia f ra n ce sa de to d o s os te m p o s
te ria, in s t in tiv a m en te , seguido o conselho de B o ileau e ap e n a s te ri a
conhecido as d iv in dad es d a m ito lo g ia. E o brig ad o , contudo, a ad m itir
a l g u m a s excep ções: «Villon, d 'Au b ig n é, C o m eille, R acin e, es cre v e ram ,
diz ele, p o em as crist ão s , m as era p a r a co m p ra r ou p a g a r o direito de ter
escrito p oem as que o n ão fossem.» N o te m o s, de p as sag em , que se tem
d ificuldade em a c r e d i t a r que Villon só te n h a escrito a B a lla d e des P endus
p a r a fazer a c e i ta r B elle H eaulm ière, ou que Corneille só te n h a co m po sto
P o lyeu cte p a r a se fazer p erd o a r pelo H orace. P a r e c e t a m b é m difícil
elim in ar to do s aq u eles que f al a ra m de um D eu s bem cristão , ain d a que
p a r a b las fem ar o seu nom e, e r is c a r assim , de u m a p en ad a, com todos
os r o m ân t ico s, B au d el air e, R im b au d , V erlain e, P é g u y , Claudel, F ra n ci s
J a m m e s e ta n to s jo v e n s p o etas co n tem p o r ân e o s. E m todo o caso, o
con ju nto da poesia m ed iev al co n trad iz fo rm a lm e n te es ta tese.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 137

Um Thibaut de Champagne não vem procurar junto dela remédio


para o seu desgosto de amor:

Q uand datne perds, D om e m e so it aidant!42

De tal modo é verdade que o poeta medieval sente e pensa natu­


ralmente como cristão, mesmo nas suas faltas e prazeres.
A Igreja foi, de resto, nesta época, uma prodigiosa inspiradora.
Foi ela que deu origem ao teatro, ela que fazia vibrar as multidões
com os pormenores da Paixão de Cristo ou os Milagres de Nossa
Senhora e que fornecia aos jograis as lendas sobre as quais se edifi­
caram as suas narrações. Sem contar com as inumeráveis prosas, se­
quências e hinos litúrgicos que emanam directamente dos clérigos c
que, pela variedade das suas cadências e pela riqueza dos seus ritmos,
figuram com honra no nosso património poético- Podemos citar, por
exemplo, a sequência do Pentecostes atribuída por alguns ao papa
Inocêncio III, por outros ao rei Roberto, o Piedoso:

Verti sa neie Spirítus


E t em itte celitus
L ucis tue radium [...]
In labore requies
In estu tem peries
In jle tu solacium [...] 43

ou ainda esta admirável Oração do Itinerário, de uma prosa sim pie»


e, contudo, sabiamente cadenciada:

[...] esto nobis, Domine,


in procin ctu sujjragium
in via solacium
in estu um braculum
in p lu via et Irigore tegum entum
in la ssitud ine vehiculum
in adversitate p raesid ium

(42) Q uando se perde, a senhora ! Q ue N ossa S enhora mv. valha!


(43) Vem E sp írito Santo, e envia do céu a Tua L u z ra d io sa ... Suavizas
no trabalho, tem peras n o s rigores, a livia s n o pranto..
138 R É G IN E PEN O U

in lúbrico baculus
in naufrágio po rtu s
ut, te duce, quo te n d im u s/p ro sp e re p e rv e n ia m u s
a c dem um in c ó lu m e s/a d p r ó p ria redeam us [...] (44)

Esta arte muito profunda da poesia litúrgica (as estrofes compostas


por São Tomás de Aquino para a festa do Santo Sacramento são
autênticas obras-primas) completa-se com o canto gregoriano que dá
o seu pleno desenvolvimento às sílabas e às frases latinas e faz ressal­
tar as suas sonoridades. Os monges de Sole: mes, fazendo conhecer
do público, por meio do disco, estes tesouros da mú:ica sagrada,
permitiram-lhe igualmente tomar contacto com uma fonte muito pura
da poesia.
Um simples esboço do que foi o domínio literário medieval per­
mite rectificar certas opiniões preconcebidas sobre a literatura fran­
cesa. A pretensa indigência do nosso lirismo não é mais real do que
a pretensa indigência da nossa epopeia. Se a veia poética se encontrou
por vezes esgotada pelos entraves postos à inspiração, não é menos
verdade que os primeiros séculos das nossas letras apresentam toda
uma floração de poetas líricos que podem sustentar comparação com
não importa que poetas estrangeiros, e não se submeteriam senão
talvez à Inglaterra, reino de predilecção do lirismo até à época mo­
derna. Mas os nossos melhores poetas líricos continuam desconhecidos
do público francês, e ser-lhe-ão inacessíveis, enquanto um esforço de
compreensão, pelo seu lado, e de adaptação, pelo lado dos editores
e dos educadores, não tenha sido realizado45.
Só este esforço nos permitiria tomar enfim consciência do nosso
passado e dos seus esplendores: esplendores de pensamento e esplen­
dores de expressão. Porque a literatura medieval é tão rica de géneros
como de temas literários. Tudo aquilo que se pode sonhar pelo que
respeita a formas poéticas nela se encontra representado: há o teatro
e há o romance; há a história e há a epopeia; sobretudo a poesia
lírica apresenta-se com uma incrível diversidade de aspectos: contos
narrativos e romanescos, tais como os la is em que Maria de França
se ilustrou, narrativas mistas de prosas e de versos, como o delicio o

(44) Sê p a ra nós, Senhor, o fa v o r n o cam po das batalhas, o alívio no s


cam inhos, a so m bra n o calor, g a b rig o n a chuva e n o frio, o tra nsporto
n a fadiga, o apo io na adversidade, o bastão n o perig o, o p o rto n o n a u ­
frágio, p o r isso g u ia -n o s n o cam inho, p a ra que cheguem os com êxito t>
fin a lm en te reg ressem o s incólum es.
(45) U m a A nth o lo g ie de la p o ésie lyriq u e du M o yen Age, em pre­
p ar a çã o , t e n t a r á t o r n a r acessív eis alg u n s d estes p o et as a te n u a n d o «IH
dificu ld ad es lin gu ísticas.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA

A ucassin et N icolette, pastorais e redondilhas, tenções e bailias,


canções de «tela» e canções de dança, motes e baladas; a variedade
de formas só tem igual na variedade de ritmos e do verso. Este
adapta-se ao género cultivado; é, geralmente, para a epopeia, o de­
cassílabo, mas, na poesia lírica, os versos de doze, dez, oito, sete
sílabas são empregados alternadamente com refrãos de quatro ou seis
pés. Pode dizer- se que a única regra consiste na cadência exigida pela
marcha geral do poema e pelos sentimentos a exprimir; a armação
do verso, a sua forma, a sua acentuação, tomam, de resto, mais impor­
tância do que o seu final, rima ou assonância.
Esta aparente liberdade encobre, na realidade, uma técnica extre­
mamente sábia e quase sempre extremamente hábil. Ainda não se
soube medir toda a arte dos nossos velhos poetas e a facilidade com
que eles se movem no meio de dificuldades. A sua cadência tão fácil
é, de facto, uma obra-prima de composição. Certos poemas dos
nossos trovadores, com estrofes uniformemente compostas com os
mesmos finais, testemunham uma espantosa virtuosidade, aquela que
encontramos em Villon, em Alain Chartier e, em geral, nos poetas
do século XV, que levaram esta técnica à perfeição. E o ca o das
baladas de rimas retomadas, das quais Christine de Pisan deixou mais
do que um exemplo:

F leu r de beau té en valeur souverain


R aim de bonté, p la n te de toute grâce,
Grâce d'a voir s u r tous le p r ix à p lein
P lein de sa vo ir et qui to u x m a u x efface,
F a ce plaisant, corps digne de louange,
A n g e au sem blan t où il n'a que redire [...]

E t j 'a i espoir q u ’i l so it en votre m ain


M aints jo u r s et nuits, en g ra cieu x espace,
P asse le temps, ca r j à a bien hautain
A ttein t p a r vous, et A m o u r qui m'enlace
L asse m on co eu r qui du votre est échange [...] 46.

(46) F lo r de beleza de va lo r suprem o / R a in h a de beleza, p la n ta cheia


de g ra ça / Graça de ter so b re todas a g ra ça / P le na de sa b e r e q u e todon
o s m a les apaga, / R o sto agradável, corpo dig no de adoração, / Um a njo
n o b re o q u a l n a d a m a is h á o d ize r ... / E tenho espera nça que n a vossa
nulo, / D ia s e n o ites em gra cio so espaço, / O tem po p asse, p o is h á tanto
tem po / A tin g id o p o r vós o A m o r m e enlaça / M u d a n d o o m eu coração
p e lo vosso [ ...] .
140 R É G IN E PEN O U

São jogos de rimas, mas que revelam uma surpreendente habili­


dade. De igual modo, o lamento continuava de uma estrofe para
outra:

[...] S i te supplie su r toute chose


P rie le qu ’i l a it de m o i m erci.

M erci requiers à jo in te s m ains


A foi, trésorière de g râ ces [...] 47.

Há também, num outro género, inumeráveis acrósticos, anagra-


mas e passatempos diversos; tudo isto não faz parte do património
poético propriamente dito, mas mostra, contudo, o gosto da perfeição
verbal, da bela linguagem, comum a toda a Idade Média. Charles
d'Orléans, nesta arte, mostrou-se o príncipe dos poetas, pela mestria
impecável do verbo e da rima, sob uma aparente negligência; não há
uma das suas pecinhas requintadas, alltemadamente melancólicas,
sorridentes ou joviais, que não dê prova de uma arte aperfeiçoada-
É preciso dizer que nestas questões técnicas os nossos antepas­
sados eram ajudados pela excepcional leveza da linguagem. Muito
mais extenso do que o é hoje, o vocabulário, que ainda não sofrera
essas depurações infelizes de que depois foi vítima, prestava-se mara­
vilhosamente às invenções e às investigações poéticas. Não existia,
como nos nossos dias, nenhuma distinção entre estilo nobre e estilo
vulgar; a língua enriquecia-se em particular com toda a gama de
termos de ofício, inesgotável reservatório de imagens de que os séculos
posteriores foram privados. Havia também a facilidade de formar
compostos, de transpor para substantivo o infinitivo de um verbo, de
utilizar as palavras dialectais e termos de região. Tudo isto faz unia
linguagem cheia de inspiração e de exuberância, capaz de se dobrar
às subtilezas da arte poética, com felicidade e audácia. Se há unia
época em que se usou plenamente a magia verbal e se saboreou todo
o valor de uma palavra bem inserida, de um achado de vocabulário,
é a Idade Média. Foi-se ao ponto de usar puramente e simplesmente
malabarismos de palavras encadeadas umas nas outras, nessas extraor­
dinárias F atra s [M iscelâneas] que são nem mais nem menos do que
uma utilização do «automatismo» ao qual apelaram os surrealistas
modernos; cada palavra sugere uma outra, e o poeta deixa-se condu

(47) Peço-te encarecidamente / O favor da tua graça. / E de mão


juntas te agradeço / Seres a depositária das graças.
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA
141

zir por este apelo de imagens sucessivas e de sonoridades, sem que


intervenha a ordenação do pensamento e da lógica:

L e chant d'une raine


Saine une baleine
A u fo n d de la m e r
E t une sirene
S i em portait Seine
D essu s Saint-O m er.
Un m u e t y vint chanter
Sans m o t dire à ha u te h aleine [...] (48).

É puro jogo verbal, e isto não deixa de apresentar para nós algum
atractivo de actualidade.
Este sentido do sabor da palavra, da cadência da frase, ultrapassa,
de resto, na Idade Média, o domínio literário. Toda a linguagem da
época — a dos C rieries de P aris como a dos chamamentos dos mari­
nheiros— testemunha uma preocupação de ritmo que reapareceu nos
nossos dias sob a forma do slogan publicitário. As regras de direito,
as fórmulas jurídicas, os provérbios — por exemplo, aqueles que
Antoine Loisel reuniu — trazem a marca desta preocupação da expres­
são brilhante, com um andamento espontâneo e directo que mostra
bem que se tratava nesses casos de uma capacidade natural de se ex­
primir com felicidade, talvez porque o intelecto ainda não tinha absor­
vido em seu proveito as outras faculdades e codificado como o resto
o poder de afirmação. Todas as expressões que nos restam e que nós
empregamos sem medir a nobreza da sua origem: «neves de antanho»,
«estar como o pássaro no ramo» (andar aos baldões da sorte) ou «como
cão e lobo», «comer o seu trigo enquanto erva» (comer adiantado),
«nem carne nem peixe», etc, testemunham, no seu aspecto poético ou
familiar, mas sempre expressivo, uma intuição muito viva da eficiência
verbal.

(4 8 )Ju stam en te porque é ap e n as um jo g o verbal, não te m nexo


traduzi-lo.
C A P ÍT U L O X

AS ARTES

A nossa época, que se desembaraçou dos últimos restos de pre­


conceitos clássicos e em que a influência dos dogmas da antiguidade
é já nula, está em melhor posição do que qualquer outra para pene­
trar a arte da Idade Média: a ninguém hoje passaria pela cabeça
indignar-se com os camelos verdes do P sau tier de Saint-L ouis [Saltério
de São Luís], e os artistas modernos fizeram-nos compreender que,
para dar uma impressão de harmonia, a obra de arte devia ter em
conta a geometria e a decoração submeter-se à arquitectura.
A arte medieval redescobrimo-la mais facilmente do que a
literatura do mesmo tempo, porque podemos desfrutá-la directamente;
aprendemos a percorrer, pedra por pedra, nas nossas catedrais, nos
nossos museus, os seus vestígios dispersos pela Europa. Os progres­
sos da técnica fotográfica permitem-nos dar a conhecer as maravilhas
das miniaturas insertas nos manuscritos, que até aqui só alguns ini­
ciados podiam apreciar; chega-se a restituir mesmo as suas cores,
com uma rara fidelidade — testemunhos disto, as admiráveis publi­
cações da revista Verve, as das Edições do Chêne ou de Cluny, etc.
A medida que se foi aprofundando o nosso conhecimento da arte
da Idade Média, o nosso gosto foi-se libertando dessa atracção pela
falsa Idade Média: gótico do século XVIII, como a catedral de Orleães,
tão lamentavelmente apregoado pelos românticos como um modelo
do género, excesso de ardor das restaurações, quimeras e gárgulas
de que a ornamentação do século passado abusou tão deploravel-
mente, teorias entemecedoras sobre a origem das nossas catedrais,
provindas do G énie du C hristianism e [G énio do Cristianismo], A
nossa visão actual é ao mesmo tempo mais actual e mais bela.
O que sobressai mais nitidamente na arte medieval é o seu
carácter sintético; as criações, cenas, personagens, monumentos, pare­
cem ter surgido de um só jacto, tal é o seu frémito de vida e de tal
modo forte a expressão do sentimento ou da acção que pretendem
traduzir. Toda a obra, nesta época, é à sua maneira uma Soma, uni­
dade poderosa, mas na qual, sob a aparente fantasia, entram em jogo
144 REF IN E PEN O U

um a m ultiplicidade de elem entos, sabiam ente subordinados uns aos


outros; a sua força provém , antes do m ais, da ordem que presidiu
à sua realização. A arte, m ais do que o génio, é então a recom pensa
de um a longa paciência.
C ontrariam ente ao que poderia fazer crer a fantasia que parece
presidir às suas soluções, o artista está longe de ser livre; ele obedece
a obrigações de ordem exterior e de ordem técnica que regem , ponto
p o r ponto, as etapas da sua obra. A Idade M édia ignora a arte pela
arte, e é a utilidade que, naquela época, dom ina todas as criações.
É aliás dessa utilidade que as obras tiram a sua principal beleza, con­
sistente num a perfeita harm onia entre o objecto e o fim p ara o qual
foi concebido. Neste sentido, os objectos m ais com uns nessa época
aparecem -nos agora revestidos de um a autêntica beleza: um jarro ,
um caldeiro, um a taça, aos quais dam os hoje honras de m useu,
as m ais das vezes não possuem outro m érito senão o dessa perfeita
adaptação às necessidades a que respondem . N outro plano, o artista
m edieval preocupava-se acim a de tudo com a razão de ser das suas
criações. U m a igreja é um local de oração, e, se a arquitectura das
nossas catedrais variou de acordo com as épocas e com as províncias, é
porque estava estreitam ente ligada às necessidades do culto local.
N ão há um a capela, um vitral que tenham sido colocados g ratuita­
m ente ou acrescentados por p ura fantasia; o m esm o na arquitectura
civil e m ilitar, onde todos os porm enores de um torreão, de um a torre
am eada, obedecem às com odidades da defesa e se m odificam à m edida
da evolução das arm as ofensivas. Pode-se dizer que o prim eiro ele­
m ento da arte era, naquela época, a oportunidade.
Vêm em seguida as exigências técnicas. Em p rim eiro lugar a
m atéria, que é alvo de um a cuidadosa procura: a m adeira, o p er­
gam inho, o alabastro e a pedra que deviam servir ao artista sofriam
um a p rep aração apropriada. É assim que, p ara um travejam ento,
só se em prega na Idade M édia o coração da m adeira, a sua p arte
m ais sólida; os travejam entos m edievais são p o r isso extrem am ente
ligeiros e, contudo, de um a resistência a toda a prova; as nossas
florestas, actualm ente, já não poderiam fornecer-nos tão belas m adei­
ras, e constitui um a estranha im pressão passar, na N otre-D am e por
exem plo, da p arte antiga do revestim ento do telhado, onde as vigas
finas suportam alegrem ente a cobertura do edifício, à p arte nova,
coberta de enorm es traves, m ais vulneráveis no entanto do que as
outras ao efeito do tem po e dos insectos. O b,ervou-se que não se
encontravam aranhas nos travejam entos antigos, porque nem vermes
nem m oscas conseguem alojar-se neles. O e cultor, segundo o partido
que deseja tirar da pedra, talha-a directam ente na pedreira ou, pelo
contrário, deixa-a «apurar» antes de se atacar a ela; o tapeceiro
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 145

escolhe cuidadosam ente as suas lãs e as suas sedas; o p intor as suas


cores. A obra é assim antecedida de um trabalho m inucioso, de um a
autêntica génese, no decurso da qual a criação se repete e se adapta
exactam ente ao género escolhido. A situação da obra será igualm ente
objecto de cuidados sem elhantes. U m escultor preocupa-se sempre
com o ângulo sob o qual a sua estátua deve ser vista; as estátuas
colocadas no topo da catedral de R eim s, as quais, um a vez apeadas,
são de um a estranha fealdade, adquirem toda a sua beleza quando
vistas em perspectiva desde baixo-
P or outro lado, há exigências tradicionais que o artista não se
pode d ar ao luxo de desprezar e que fornecem um quadro m uito
estrito à sua inspiração. P ara nos lim itarm os, por exem plo, à arte
sacra, todas as cenas, todos os personagens são acom panhados de
atributos determ inados: o Anjo e a Virgem da A nunciação, a Sagrada
Fam ília e os anim ais do P resépio, o apóstolo, os dois discípulos e as
m ulheres santas da Descida da Cruz; o Cristo do Julgam ento Final
é sem pre enquadrado p o r um a glória e rodeado dos símbolos dos
quatro evangelistas; São Paulo segura um gládio e São Pedro a, cha­
ves. N enhum destes assuntos deixa ao artista um a grande liberdade
e, no entanto, p o r um curioso tour de force, não há, na infindável
teoria das Virgens m edievais, dois rostos de Virgens que se assem e­
lhem. N os estreitos limites que lhes foram designados, os altistas
souberam evitar os lugares com uns, as atitudes convencionais, clás­
sicas. A sua factura, o m ais das vezes anónim a, é sem pre fortemente
caracterizada. E ra preciso, para obter esta originalidade na exp i\ssao
das cenas m ais com uns, p ara criar seres onde seria m uito m ais fácil
contentar-se com protótipos, um singular vigor de tem peram ento e de
im aginação. O academ ism o introduziu-se na arte precisam ente no
m om ento em que a inspiração parecia perder os seus limites, em que
a arte sacra se tom ava cada vez m enos tradicional e litúrgica, ao passo
que a arte profana ganhava cada vez m aior extensão.
Além das exigências técnicas propriam ente ditas, há a visão
particular a cada forma de arte, e essa visão encontra-se m uito desen­
volvida na Idade M édia; a cada actividade corresponde um a ordem ,
um a harm onia caracterizada: a tapeçaria não é a m esm a coisa do
que um quadro, nem o vitral é um a pintura; as leis da perspectiva
são diferentes p ara uns e p ara outros. No dia em que ta p c e iro s e
m estres vidreiros com eçaram a copiar o pintor, a querer, por ar ofícios
de cor ou engenhando «fundos» arquilecturais , obter um relevo e
determ inar vários planos, a sua arte entrou em decadência. Do mesmo
m odo, o ourives não deve im itar o artesão do marfim , nem o esma-
tador o m iniaturista. Cada um deve, na obra que projecta, ler era
conta a beleza própria da m atéria que está a trabalhar, possuir a m u i

h ttp ://s a o m ig u e l.w e b n g .c o m


146 REF IN E PEN O U

perspectiva, a sua com posição, a sua concepção individual, em lugar


de tender para a uniform idade e a im itação. N a sequência disto, o
dom ínio artístico com eçou a ver introduzir-se nas diferentes disciplinas
um a certa desordem , e a decadência das artes m enores é facilmente
explicável por essa confusão. P or vezes ainda, foi um excesso de
técnica que precipitou a decadência; um exem plo é-nos fornecido pela
evolução do vitral: nos vitrais dos séculos XII e XIII as cores são
francas, os vidros são espessos e desiguais, cheios de bolhas de ar
e de im purezas através das quais a luz brinca, e sustentados
p o r chum bos m ais espessos do que largos, que sublinham o desenho
sem o sobrecarregar; m as, quando se substituiu o m osaico de vidro
colorido p o r p in tu ra sobre vidro, quando, em lugar de ser talhado
a ferro em brasa, o vidro passou a ser cortado a diam ante, o que
dava um a superfície de fractura m ais nítida, m ais regular, exigindo
chum bos de rebordos m uito m ais largos, o vitral deixou de ser um a
viva «m anta de retalhos»; o vidro, m ais fino, m ais bem trab alh ado ,
com eçou a deixar passar um a claridade uniform e e o vitral tornou-se
em pouco tem po num vidro colorido, insípido e sem brilho. O que
correspondia, aliás, ao gosto das diferentes épocas: o século XVIII,
com o seu ódio da cor, foi ao p onto de substituir os belos vitrais
da Idade M édia, ainda quase todos intactos, p o r vidros brancos.
A visão p ró p ria da sua arte, o artista adquire-a por um a
longa aprendizagem . R aoul Dufy fez notar que não existe nessa época
dram a algum entre a inspiração e a realização e acrescenta: «Não
resultarão os nossos problem as da ru p tu ra desse equilíbrio da m atéria
e do espírito e, em vez de p ro cu rarm o s soluções estéticas, não deve­
ríam os antes p ro curar um a solução para o ofício?» 1 Com efeito, é
através do ofício que o artista na Idade M édia adquire ao mesmo
tem po e;se dom ínio da m atéria e essa originalidade de expressão que
ainda hoje produzem o nosso espanto. A precisão da sua técnica
é sobrem aneira acentuada, pois ele nunca deixa de ser um artesão
em face do qual, apesar da especialização m oderna, os nossos artistas
actuais fariam figura de im provisadores ou de quase am adores. O pin­
to r e o m estre vidreiro não ignoram nada dos segredos que presidem
à dosagem dos colorantes, à cozedura do vidro; p reparam eles p ró ­
prios as suas cores, ou m andam prepará-las nas suas oficinas, de
acordo com segredos oficinais cuidadosam ente transm itidos c aper­
feiçoados de m estre a aprendiz; o arquitecto continua a ,^er um
m estre-de-obras no meio dos operários, tom ando parle directa nas

(1) A r t ig o p ublicado em B eaux-A rts, edição de 27 d. D ezem b ro de


1937.
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 147

suas tarefas, de que nenhum po rm en o r lhe escapa, pois ele próprio


percorreu um a a um a todas as etapas do ofício.
São todos estes elem entos que com põem a personalidade do
artista e é o seu génio pessoal que produz a unidade. M as, seja qual
for o grau do seu talento, é im pressionante observar o cuidado que
ele põe na com posição da sua obra. Q uando estudam os um quadro
original, ficam os surpreendidos ao descobrir um a ordem rigorosa sob
a aparência fantasista ou d esordenada do conjunto- N a adm irável
Pieta de V illeneuve-les-Avignon, p o r exem plo, não há um a única
linha, um único porm enor das personagens que rodeiam o corpo de
C risto que sejam gratuitos: tudo se encontra subordinado a esse cadá­
ver exangue e rígido que form a o centro da cena; os restantes actores
não passam de um a espécie de enquadram ento, sujeito aos contornos
do corpo, que os panejam entos seguem fielmente, tal como as rugas
de um a toalha de água prolongam a esteira de um navio. O utros qua­
dros são construídos em círculo, em rosáceas, sem que a sua regula­
ridade geom étrica, identificável a um olhar experim entado, seja traída
pela m ais pequena rigidez; certos frescos do Angélico são notáveis
deste ponto de vista. O agrupam ento dos personagens da Crucificação,
de V énasque, é tam bém ele m uito sábio: aos inimigos de Cristo, fari­
seus, soldados, o m au ladrão à direita do quadro, o bom ladrão e as m u ­
lheres santas, à esquerda, dão um a réplica exacta. No Wilton Diptych,
a atitude dos santos protectores e os seus m ovim entos de braços,
no painel esquerdo, acom panham o jovem rei, enquanto à direita
os anjos estendem as asas, num a espécie de corola que en q u adra a
Virgem. C ontudo, será que a qualquer destas obras, de um a tão
com ovedora perfeição, se p o d eria censurar o m enor espírito de
sistema, o m enor p a rti p r ís ?
Se exam inarm os m ais particularm ente a noção que a Idade M édia
possuía da beleza plástica, aperceber-nos-em os de que, contrariam ente
ao que se poderia pensar, a sua visão artística ultrapassa infinitam ente,
neste ponto, a da A ntiguidade. N a representação do corpo hum ano,
com o em geral em todas as artes, a A ntiguidade tinha adoptado um
ponto de vista estático: pintores, escultores, arquitectos obedecem a
cânones, e não, com o os artistas m edievais, a dados de experiência
ou a nec essid ad es de ordem prática. R egulam -se por exigências geo­
m étricas: proporções entre as diversas partes do rosto, leis do equilí­
brio do corpo, e tc , e chegam em geral a um tipo idealizado, a um a
espécie de perfeição m onótona, que repete indefinidam ente o mesmo
m odelo ou os mesm os estilos. Tam bém a Idade M édia conhece os
dados geom étricos c o equilíbrio entre as diferentes partes do corpo;
nenhum a das leis fundam entais da beleza plástica lhe escapa; no álbum
de Villard de H onnecourt, os corpos esboçados decom põem -se em
148 R É G IN E PEN O U

figuras que os cubistas não renegariam : triângulos, cones, paralelepí­


pedos; os grupos de lutadores são prim eiram ente representados em
linhas quebradas, em curvas desenhadas e com passo, etc. M as o
artista, um a vez acabado este trabalho de estudo, de posse do seu
m étodo e da sua técnica capta o hom em na sua totalidade e anim a
os corpos que cria com todo o sopro da vida: deform ados pela paixão,
retorcidos pela dor, engrandecidos pelo êxtase. Surpreende o ser nas
suas atitudes m ais hum anas, m ais naturais, m ais intensas. É pois,
segundo a bela expressão de Claudel, «o m ovim ento que cria o corpo»;
basta ter visto estes seres frem entes de alegria, desfigurados pela
cólera, torturados de angústia, que percorrem os antigos capitéis de
Saint-Sem in de Toulouse, no M useu dos Agostinhos: o rei H erodes
inclinando-se sobre Salomé, Cristo descobrindo o peito esburacado
diante do apóstolo Tom ás, num gesto gritante de verdade e de força,
para com preender o segredo da arte m edieval: ela encontrou a beleza
hum ana no dinam ism o da vida hum ana, na expressão total do indiví­
duo, traduzindo não apenas a sua aparência externa, m as a sua
realidade intrínseca. P ara disto nos convencerm os, bastar-nos-á con­
tem plar as personagens tum ultuosas e frem entes que anim am o tím ­
pano de Vézelay ou de M oissac, ou essas figuras delicadas e sem pre
dissem elhantes que constituem , em cada página do P sa u tíer d e Saint-
L o u is ou de B lanche de C astille {Saltério de São L u ís ou de Branca
de Castela], um a surpresa e um a emoção sem pre renovadas. A since­
ridade foi a sua m ais infalível regra p ara atingir a beleza; sinceridade
na visão interior e na observação exterior, aliada à fidelidade de
expressão e à faculdade de fundir num todo harm onioso a inspiração
e o m étodo, o génio e o ofício.

A expressão m ais com pleta da arte m edieval em F rança encon


tra-se na sua arquitectura, nas suas catedrais, onde quase todas as
técnicas foram em pregadas. N ão que não ten h a existido arte profana:
são num erosas as cenas alegóricas, ou tiradas da A ntiguidade, m ais
num erosos ainda os retratos, os quadros guerreiros, cam pestres ou
idílicos, em que a natureza nunca está ausente. M as foi nas suas
catedrais que pôs toda a sua alma.
A contece — e não é p o r acaso, que a arquitectura m edieval
floresceu m ais ainda em F ran ça do que em qualquer outra região-
P oucas das nossas aldeias escaparão à presença de qualquer vestígio
dela, sob a form a p or vezes m uito hum ilde de um simples pórtico
perdido no meio da alvenaria m oderna, ou p o r vezes sob a forma
de um a m agnífica catedral, desproporcionada em relação à aglom e­
ração que presentem ente a enquadra. A serenidade um tanto m aciça
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 149

dos edifícios rom ânicos é realçada p o r um a decoração agitada e tu r­


bulenta, com cenas de um a grandeza vertiginosa, tiradas do A pocalipse,
e banhadas ainda de influências orientais. U m a evolução desta arte
deu nascim ento ao cruzeiro de ogiva e à arquitectura gótica, de que
o nosso país, exactam ente o coração do nosso país, a Ilha de F rança,
talvez tenha sido berço. O arco em ogiva ia autorizar os nossos arqui­
tectos a todas as audácias e perm itir o florescim ento perfeito da arte
francesa da Idade M édia, na sua época áurea, os séculos XII e XIII.
Como m ais de um a vez se tem observado, os tem plos antigos
estão ligados à terra; as suas colunas m aciças, a absoluta regularidade
do seu plano, os cânones que determ inam a sua disposição e deco­
ração, as suas linhas horizontais — tudo neles se opõe às nossas
catedrais, em que a linha é vertical, em que a flecha aponta p ara o
céu, em que a sim etria é desdenhada sem p o r isso com prom eter a
harm onia, em que por fim as exigências da técnica se aliam à
fantasia dos m estres-de-obras com um a facilidade desconcertante.
Quando se exam ina de perto um a catedral gótica, somos sempre
tentados a ver nela um a espécie de m ilagre: m ilagre dessas colunas
que nunca se encontram em rigoroso alinham ento, e contudo suportam
o peso do edifício, m ilagre dessas abóbadas que giram , se entrecruzam ,
volteiam e se sobrepõem , m ilagre dessas p aredes perfuradas, onde
m uitas vezes entra m ais vidro do que pedra, m ilagre, enfim, do
edifício inteiro, m aravilhosa síntese de fé, de inspiração e de piedade.
N os m onum entos antigos, um simples capitel descoberto perm ite
reconstituir um tem plo inteiro; ainda que se descobrisse três quartos
de um a catedral gótica, continuaria a ser impossível reconstituir o
quarto. No entanto, apesar desta aparente desordem , nenhum a obra
im põe ao arquitecto m ais regras e obrigações do que a construção
de um a igreja: orientação, ilum inação, necessidades do culto, neces­
sidades m ateriais provenientes da natureza do solo ou da sua situação
— outras tantas dificuldades que o m estre-de-obras parece ter quase
sem pre resolvido a brincar; certas igrejas, com o a de E strasburgo,
estão construídas sobre pântanos ou rios subterrâneos; outras, por
exemplo as Santas M arias do M ar, ou algum as igrejas do L inguadoque,
são praças-fortes em que a pró pria obra deve constituir um a defesa.
O conhecim ento geral da liturgia faciKta, aliás, a tarefa do artista,
que se verga quase p o r instinto às suas exigências; assim, nos nossos
dias, o altar está a m aior p arte da vezes m ais elevado, p ara perm itir
aos fiéis seguirem com a vista as cerim ónias; outrora, era sobretudo
através do canto e das orações vocais que os fiéis a elas se associavam ,
donde o exlrem o cuidado dado à acústica: alternância das arcadas,
ordenação d;is abóbadas, etc. Sobretudo, há o problem a da luz. Certas
épocas preferiram igrejas som brias, cuja obscuridade, pensava-se,
REF IN E PEN O U
150

favorece o recolhimento. M as a Idade M édia am ava a luz: a sua


grande preocupação foi ter santuários cada vez m ais claros, e pode-se
dizer que todas as descobertas da técnica arquitectónica tenderam
a possibilitar m ais espaços livres na construção, p ara que as im ensas
vidraças pudessem deixar p assar cada vez m ais sol e ilum inar sempre
m elhor o esplendor do ofício religioso; em B eauvais, p or exem plo,
a parede de nad a m ais serve senão p ara enq u ad rar as p aredes de
n ada m ais serve senão p ara enq u ad rar as paredes de vitral, com um a
ligeireza assustadora, excessiva m esm o, já que o edifício nunca pôde
ser continuado p ara além do transepto.
E no entanto, m ais ainda do que a beleza, era a solidez que era
visada; n ad a se com preendeu de um a catedral gótica antes de se saber
que o volum e de pedra enterrado no solo p ara o trabalho das funda­
ções ultrapassa o da pedra erguida p ara o céu. Sob essa aparente fra­
gilidade, sustentando as gráceis colunetas e as flechas rendilhadas,
esconde-se um a poderosa arm ação de pedra, obra paciente e robusta.
T odas as obras da Idade M édia possuíam esta sólida fundação, que
não se descobre à prim eira vista, tal é a ligeireza e a fantasia com
que sabe ocultar-se.
Q uanto à decoração, tam bém a beleza não provém senão da
utilidade. N ão há porm enor de ornam entação que não esteja subm etido
a um porm enor de arquitectura; nada é deixado ao acaso no que nos
aparece como p u ra exuberância de im aginação. Em certas igrejas, os
painéis esculpidos seguem rigorosam ente a disposição do aparelho:
é m uito visível em R eim s, no famoso baixo-relevo da C om m union
du C hevalier [C om unhão do Cavaleiro], T roça-se p o r vezes da rigidez,
da «ingenuidade» (sempre!) de certas estátuas, como as que ornam en­
tam o pórtico de C hartres; m as, na realidade, é rigidez intencional,
e de nenhum m odo rígida, um a vez que a estátua m ais não é do que
a anim ação do fuste, devendo as suas linhas subordinar-se às linhas
rectas e apertadas de um a fieira de colunas.
Quando contem plam os essas pedras cinzentas das nossas catedrais,
e as suas esculturas, somos tentados a ver nelas o tru n fo do desenho;
na realidade, a cor explodia em toda a parte: não apenas nas pinturas
ou no vitral, m as tam bém na pedra. N ão é exacto fa lar-re do tem po
em que as catedrais eram «brancas»: nelas, a explosão da cor, tanto
no interior com o no exterior, prolongava a da luz; era um m undo
cintilante em que tudo se anim ava. É claro que os tons eram sabia­
m ente com binados: por vezes vivos e exuberantes, cobriam de vastos
frescos espaços hoje insípidos; um conjunto como o de Saint-Savin,
ou os restos de pinturas de Saint-H ilaire de Poitiers, bastam p ara dar
um a ideia do efeito produzido. N outros locais, sublinhavam com uni
simples friso a curva de um a ogiva, faziam sobressair um a aresta
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 151

ou salientavam um a viga. R ealçavam igualm ente as esculturas: não


p o r meio das m ornas gradações que fizeram justam ente a lam entável
reputação dos m odernos «objectos de piedade», m as com tons francos,
fazendo corpo com a pedra, e cujos vestígios, infelizm ente dem asiado
raros, m anifestam a m estria com que a Idade M édia soube m anejar
a cor e a ousadia que utilizou no seu em prego: nas suas catedrais,
m ais um a vez, o m undo m edieval é um m undo colorido. Infelizm ente,
é raro encontrar fora dos m useus, quer dizer, tirados do seu enqua­
dram ento e colocados em condições totalm ente diferentes daquelas
p a ra que foram criados, os quadros e as estátuas pintadas que outrora
as ornavam . Só os vitrais, os de C hartres ou de Saint-D enis, por
exem plo, nos perm item im aginar a intensidade e a perfeição das cores
m edievais, a p ar dos m anuscritos de m iniaturas ciosam ente guar­
dados — talvez ciosam ente de m ais — nas nossas bibliotecas.
P ara lá dos tem as de decoração propriam ente religiosos: cenas
bíblicas que m ostram as correspondências do A ntigo e do N ovo T esta­
m ento, porm enores da vida da Virgem e dos Santos, quadros gran­
diosos do Julgam ento Final ou da Paixão de C risto — pintores e
escultores tiraram largo p artid o do que a natureza lhes p unha diante
dos olhos: toda a flora e toda a fauna do nosso país renascem sob
o pincel ou o cinzel com um a precisão e um golpe de v i:ta de n atu ­
ralista, aliados ao que a fantasia lhes sugeria. Foi possível estudar,
nos pórticos das catedrais, as diferentes espécies reproduzidas e des­
cobrir flores e folhagens da Ilha de F rança, aqui em botão, além em
pleno desabrochar, acolá — em especial na época flam ejan te— sob
o aspecto recortado da folhagem outonal. U tilizaram com igual
à-vontade os m otivos de decoração geom étrica, folhagens, entrançados,
anim ais estilizados cujo m odelo lhes havia sido fornecido pelo O riente
e que os m onges irlandeses tinham feito renascer nas suas m iniaturas
com um a exuberância singular.
O que escapa ainda à ciência m oderna, em bora nos últim os anos
se tenha dado um grande passo em frente, graças sobretudo aos tra ­
balhos adm iráveis de Em ile M âle, é o sim bolism o das catedrais. A inda
não penetrám os a fundo no «porquê» dos porm enores de arquitectura
ou de ornam entação que as com põem ; apenas sabem os que todos
esses porm enores tinham um sentido. N ão há um a única dessas
figuras — que rezam , fazem carantonhas ou gesticulam — que lá
esteja colocada gratuitam ente: toda- possuem a sua significação e
constituem um sím bolo, um signo. D escobriu-se recentem ente o sim bo­
lismo das pirâm ides do Egipto, nas quais — m esmo sem ter em conta
o:s exageros de alguns ocultistas — se deve ver o testem unho de um a
ciência m uito profunda, de autênticos m onum entos de geom etria, de
m atem ática e de astronom ia; resta-nos descobrir o sim bolism o das
152 REF IN E PEN O U

catedrais, dessas igrejas fam iliares que são um apelo à oração, ao


recolhim ento, talvez à m ais m aravilhosa das sensações hum anas, que
é o espanto. E stam os longe de dom inar o seu segredo. Esses vitrais,
nos quais os sim ples cam poneses liam com o num livro, os nossos
sábios ainda não foram capazes de descobrir a sua com pleta in terpre­
tação; esses rostos, que ou tro ra um a criança teria podido nom ear,
nem sempre conseguim os identificá-los- Sabem os que as nossas cate­
drais estavam orientadas, que o seu transepto reproduz os dois braços
da Cruz, m as falta-nos ainda um grande núm ero de noções p ara
p oderm os penetrar no seu m istério. A sua construção participa da
ciência dos núm eros: esses núm eros que são a harm onia do m undo
e que foram consagrados pela liturgia católica. O 3 é o algarism o da
T rindade, algarismos divino p o r excelência, que reconduz tudo à
unidade e representa as três virtudes teologais. O 4 é o algarism o da
m atéria, o dos quatro elem entos, dos quatro tem peram entos hum anos,
dos quatro evangelistas, trad u tores da p alav ra de D eus, e das quatro
virtudes cardeais, as que devem ser praticadas pelo hom em na con­
dução da sua vida terrestre. O 7, que alia o divino ao hum ano, é o
algarism o de Cristo e, após ele, o algarism o do hom em resgatado:
os quatro tem peram entos físicos unidos às três faculdades mentais:
intelecto, sensibilidade, instinto; ao m esm o tem po que um a outra
com binação de 3 e de 4 dá 12, o algarism o do universo, dos doze
m eses do ano, dos doze signos do zodíaco, símbolo do ciclo univer­
sal. O nosso sistem a m étrico não tom ou em conta estes «núm eros-
-chave», m as há que observar que a sua num eração, um tanto abstracta
e rudim entar, não conseguiu adaptar-se, p o r exem plo, às fases solares
e lunares e continua a ser suplantada, em quase toda a p arte nos
cam pos, por m edidas ao mesm o tem po m ais sim ples e m ais sábias.
T udo isto deixa adivinhar um a ciência oculta m ais profunda do que
se tinha podido suspeitar até agora, e a iconografia, que na sua forma
científica está ainda no com eço, poderá abrir dentro de pouco tem po
perspectivas ainda ignoradas.
D evem o-nos contentar, de m om ento, em adm irar a m aneira
com o os artistas da Idade M édia souberam fazer da sua casa do
orações com o que o resum o e o apogeu da sua vida e das suas
preocupações. E la era não apenas o te tem unho visível da sua fé,
da ciência sagrada e profana, da liturgia, m as ainda o reflexo das
suas ocupações quotidianas: lado a lado com um m agistral «Julga­
m ento F inal», súm ula viva da m ajestade divina e dos últim os fins
do hom em , vêem -se cam poneses a atar espigas, a aquecereni-sc ao
canto da lareira, a m atar o porco. E encontram os igualm ente teste­
m unhos desse robusto sentido da beleza que possuíam os nossos
antepassados, do seu am or pela vida, da sua alma serena, am ante
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 153

do trabalho bem feito, da sua im aginação vagabunda, sem pre a


inventar form as novas (saber-se-á que nunca se vêem lado a lado
dois m otivos de folhagem idênticos na ornam entação m edieval?), da
sua veia folgazona, que não conseguem refrear m esm o na igreja —
alguns rostos de vitrais são autênticas caricaturas e certas estátuas
alegres brincadeiras.
Como não nos espantarm os ainda com esse frenesim de construção
a que se assiste nos séculos XII e XIII e que apenas esm orece ligeira­
m ente nos dois séculos seguintes: essas enorm es m assas de pedra
tran sp o rtad as da pedreira p ara o local do edifício, esse m undo de
escultores, cortadores de pedra, carpinteiros, pintores, operários e
ajudantes e, cada vez m ais im pressionante, a actividade das oficinas
onde se trab alhav a o vidro. U m a catedral como a de C hartres não
com porta m enos de cento e quarenta e quatro jan elas altas: posta
de p arte toda a em oção artística, pense-se apenas no trab alho gigan­
tesco representado por essa enorm e superfície de vidro, ou antes,
de parcelas de vidro reunidas; trabalho dos desenhadores, dos fundi-
dores de chum bo, dos cortadores de vidro, dessa m assa de artistas
anónim os cujos esforços conjugados resultaram num deboche de cores
que irradiam no interior do edifício e que são ainda realçadas pelos
jogos de som bra e luz sobre as arestas das ogivas facetadas, pelas
gargantas dos capitéis profundam ente cavadas, pelos toros cilíndricos
ou facetados, pelos colunas onde o claro-escuro é regido por sábias
e variadas alternâncias. C ontrariam ente ao que se crê, sem elhantes
obras-prim as eram construídas rapidam ente e não se hesitava em
d em olir p ara fazer m elhor. M aurice de Sully, p ara reconstruir a
N otre-D am e, destruiu a igreja construída apenas setenta anos antes;
em L aon, o bispo G autier de M ortagne edifica p o r volta de 1140
um a igreja gótica no lugar da igreja rom ânica que, no entanto, datava
apenas de 1114.
E o não m enos adm irável está longe de ser a continuidade, a
unidade, poder-se-ia dizer, desse imenso esforço dos construtores. As
gerações que se sucedem form am um todo; tradições e segredos de
ofício são transm itidos sem soluções de continuidade, e não se hesita,
ao longo da construção, ou das reconstruções parciais, em utilizar
todos os aperfeiçoam entos da técnica: arcobotantes do século x iv vêm
om brear um a nave do século XIII, e o conjunto perm anece h arm o ­
nioso — ao passo que seria im possível, p o r exem plo, conceber um a
jan ela à Le C orbusier espreitando de um edifício de estilo 1900 —
e, contudo, m enos de trinta anos os separam , enquanto no castelo
de Vincennes se pode ver lado a lado duas janelas elaboradas a cem
anos de distância um a da outra, e que parecem feitas p ara conviver,
em bora tolalm enle diferentes com o arte e como arquitectura. E is a
154 R É G IN E PEN O U

razão pela qual certas restaurações demasiado conscienciosas não fize­


ram mais do que desfigurar os monumentos suas vítimas, pois se
tentou refazer tudo de acordo com uma mesma ordenação e com
regras e cânones que nunca existiram na mentalidade dos constru­
tores; assim, onde aqueles atingiam sem esforço a harmonia, não con­
seguiram produzir senão uniformidade. As evoluções da arte medieval
explicam-se quase sempre por aperfeiçoamentos da técnica, bem como
os pormenores de ornamentação através de necessidades da arqui­
tectura: não se teria construído gárgulas se elas não servissem como
goteiras para vazar a água; de igual modo, se a rosácea de estilo
gótico, de contornos nítidos, viu as suas curvas atenuarem-se e toma­
rem a forma característica do estilo flamejante, foi para facilitar o
escoamento das águas da chuva que, ao gelarem no ângulo em que se
alojavam, produziam frequentemente o rebentamento da pedra. Há
assim, através da arte medieval, um elemento de harmonia que um
exemplo ilustra com uma justeza impressionante: nos primórdios da
arte gótica, o botão de flor é um motivo corrente de ornamentação;
é então o período das ogivas nítidas, das pequenas rosáceas; depois
o botão parece abrir-se, desabrochar; e é a época dos arcos lanceo-
lados, das grandes rosas desabrochadas; finalmente, no século XV,
o botão transformou-se em flor e, enquanto a escultura se exaspera
em formas mais que humanas, contorcidas e dolorosas, abrem-se os
arcos de abóbada, as curvas atenuam-se, o arco flamejante termina
a evolução.
Poder-se-iam escrever longas páginas sobre a música medieval,
que iniciativas recentes repõem no devido legar, com tanto de ciência
como de gosto- Que testemunho mais eloquente se poderia invocar
do que o de Mozart: «Daria toda a minha obra para ter escrito o
P refácio da missa gregoriana.»
C A P IT U L O XI

AS C IÊ N C IA S

A ciência m edieval apresenta-se-nos sob um a capa desconcertante,


tão desconcertante que tem em os em a levar a sério. É que, ao con­
trário das nossas ciências exactas, ela não é unicam ente apanágio do
intelecto; o seu dom ínio perm anece ligado ao d a im aginação e da
poesia. Sem pre h av ia sido assim , aliás, du ran te to d a a A ntiguidade.
A form a p rim eira d a h istó ria foi a lenda e, até à época m oderna, não
houve d esco b erta científica que n ão passasse, de u m m odo o u de
ou tro , p a ra a trad ição p o p u lar, sob a form a de poem a, de rito
religioso, de segredo de ofício. Possuím os ain d a hoje exem plos dessa
cap a p o ética recobrindo noções científicas reais: é assim que alguns
p o vos de Á frica conhecem , ao que n os dizem , a im unização contra
a varíola, e p raticam -n a n o decurso de u m a cerim ónia que reveste
o aspecto de u m a iniciação; àquilo a que n ós cham am os «vacinar»,
cham am eles «expulsar o espírito m aligno», ou o u tra coisa no género,
m as a operação n ão deixa de ser a m esm a.
A ciência m edieval conserva este carácter folclórico, o que
explica m uitas d as suas contradições. A q u an d o d a E xposição dos
m ais Belos M anuscritos Franceses, que teve lugar em 1937 n a B iblio­
teca N acional, u m bestiário do século X III; m ostrava lado a lado
duas m iniaturas, u m a representando u m elefante exactam ente re p ro ­
duzido, correcto no desenho e nas p roporções, a o u tra u m dragão
de asas bem abertas: im agem suipreendente d a ciência d a n atu reza
n a Id ad e M édia. N ã o se tra ta de ignorância, m as sim de que, m uito
sim plesm ente, im aginação e observação são p ostas no m esm o plano.
T em o-nos escandalizado longam ente com o tecido de «absurdos»
oferecido p o r um a o b ra com o o I m a g o m u n d i de H onorius d A u tu n :
os Scinópodes só com u m a p ern a, os Blem yes cuja b o ca se abre a
m eio do ventre. R esta saber se o au to r neles acreditava m uito m ais
do que nós, ou se, considerando a n atu reza com o u m vasto reser-

(1) A rtig o ap ar eci d o em Beaux-A rts, n ú m e ro de 2 de D ezem b ro de


1937.
156 REFINE PEN O U

vatório de m aravilhas, não terá voluntariam ente dado rédea solta à


im aginação, convencido de ficar ainda bem aquém da verdade?
Quando se pensa na superabundância de fenóm enos estranhos que
com põem o universo, um título como o de Im a g e du M onde {Im a­
g e m do M u n d o ] não autorizará todas as fantasias? Sabem os hoje
que existem pigm eus, negras de bandejas, m ulheres-girafas cujo p es­
coço possui um a vértebra suplem entar. N ad a disso é m ais ex trao r­
dinário do que os «hom ens de orelhas grandes» esculpidos no tím pano
do pórtico de Vézelay. Sabem os que existem pássaros-m oscas, b orb o ­
letas fosforescentes, flores carnívoras, sem falar desses seres invero­
símeis, aranhas gigantes, polvos fantásticos, que com põem a flora
e a fauna subm arinas. Qual então o inconveniente de inventar o
licorne e o dragão?
Tem os, além do m ais, de contar com essa aptidão, bem m edieval,
p ara p ro cu rar o sentido oculto das coisas, p ara ver na natureza «flo­
restas de símbolos». P ara os nossos antepassados, a história natural
propriam ente dita apenas apresentava um interesse m uito secundário:
toda a m anifestação de um a verdade espiritual, ao contrário, cativa-
va-os no m ais alto grau; de tal m odo que a sua visão do m undo
exterior não passa, as m ais das vezes, de um simples suporte p ara
estear lições m orais: assim acontece com esses bestíáríos em que,
ao descrever anim ais — ta n to os m ais fam iliares como os m ais fan­
tá stic o s— , os autores vêem nos seus hábitos, reais ou supostos, a
im agem de um a realidade superior. O licorne, que só um a virgem
pode acorrentar, representa p ara eles o Filho de D eus encarnando
no seio da Virgem M aria; o galo canta p ara anunciar as horas;
o onocentauro, m etade hom em e m etade asno, é o hom em arrastado
pelos seus m aus instintos; o nycticorax, que se alim enta de dejectos
e de trevas e que só voa às arrecuas, é o povo judeu virando as costas
à Igreja e atingido pela m aldição; a fénix, ave única e de cor p ú rp ura,
que m orre num a fogueira e que ao terceiro dia ressuscita das cinzas,
é Cristo vencendo a m orte. O conjunto, de um a poesia som bria, dá
exactam ente a m edida do que o hom em da Idade M édia gosta de
descobrir na natureza: não um sistem a de leis e de princípios, cuja
classificação, provavelm ente, o teria aborrecido, a supor que a tivesse
conhecido, m as um m undo frem ente de beleza, profuso e secreto
— não tão diferente, afinal de contas, daquele que os nossos instru­
m entos de laboratório detectam hoje- Certa ou erradam ente, colocava
no m esm o plano a verdade histórica e a verdade m oral — preferindo,
se necessário fora, esta àquela. Pense-se, po r exem plo, na lenda, tão
p o p u lar na Id ad e M édia, de São Jorge vencendo o dragão: a questão
de saber o que poderia ter sido exactam ente esse dragão m onstruoso
e qual o grau de autenticidade que lhe devia ser atribuído nem sequer
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 157

aflora os espíritos; o que im porta é a lição de coragem que es:-a luta


lendária deve inspirar ao cavaleiro cristão. Por um processo análogo,
os serm onários da época atribuem imensos porm enores m iraculo os
aos santos que elogiam e atribuem indiferentem ente a um ou a outro
este ou aquele m ilagre: São D inis decapitado, segurando a cabeça
debaixo do braço, teria tido, a crê-los, numeroso:, «im itadores». M as
nem o público nem o predicad o r se deixavam iludir, e seria um a
grande ingenuidade tom á-los à letra: o essencial, p ara eles, não era
a exactidão do porm enor, m as a verdade do conjunto e da lição
a tirar.
Q uererá isto dizer que a Idade M édia não teve curiosidade
científica? Um simples catálogo dos m anuscritos contidos nas nossas
grandes bibliotecas bastaria p ara responder à questão: o inventário
com pleto dos tratados de m edicina, de m atem ática, de astronom ia,
de alquim ia, de arquitectura, de geom etria e outros não foi ainda
levado a cabo, e os seus textos perm anecem , na m aior parte, inéditos.
Os esforços tentados nesse sentido foram até aqui fragm entários e não
perm item um a visão de conjunto da ciência m edieval. M as o que se
sabe de preciso perm ite constatar que ela foi m uito m ais extensa
do que o que tem podido supor-se e que se aparentava à nossa em
m uitos pontos. Um R oger B acon, em pleno século X III, conhecia a
pólvora de canhão, o uso das lentes convexas e côncavas. A lberto
M agno tinha feito, sobre a acústica e os tubos sonoro:, investi­
gações que o haviam conduzido a construir um autóm ato falante —
oitocentos anos antes de Edison. A rnaud de Villeneuve, que ensina
em M ontpellier, descobre o álcool, o ácido sulfúrico, o ácido clo­
rídrico, o ácido azótico. R aim ond L ulle pressentiu a quím ica orgânica
e a função dos sais m inerais nos seres organizados. P or interm édio
dos Á rabes, a Idade M édia beneficiou da ciência dos Persas, dos
Gregos, dos Judeus, e p ôd e realizar a sua síntese, assim ilando os
conhecim entos astronóm icos dos Sírio-Caldeus e a m edicina hebraica.
Oxford, onde ensinava R obert G rossetête, o m estre de R oger Bacon,
era para 03 estudantes de m atem ática o m esmo que M ontpellier para
os estudantes de m edicina, e grandes personagens, com o o rei de
E spanha Alfonso X, o im perador F rederico II, ou R oger, o rei nor-
m ando da Sicília, m antinham , a exemplo de Carlos M agno, um a corte
de sábios: geógrafos, físicos, alquim istas — do m esmo m odo que
tinham os seus filósofos e os seus poetas.
Coisa curiosa, as investigações que apaixonaram a Idade M édia,
e não suscitaram senão sorrisos desdenhosos, enquanto as ciên d as
m odernas não ultrapassaram a linha traçada pelo . enciclopedistas
e pelos seus continuadores do século XIX, são das que as m ais recentes
descoberta, põem de novo na ordem do dia. Que era ao certo a pedra
158 REFINE PEN O U

filosofal, que N icolas Flam el afirm ava ter realizado? É assim defi­
nida: unia m atéria subtil «que se encontra em toda a parte», um «Sol
averm elhado», um «corpo subsistente por si, diferente de todos os
elem entos e corpo- simples». Segundo R aim ond Lulle, trata-se de um
«óleo oculto, penetrável, benfazejo e miscível a todos os corpos, que
aum entará o seu efeito sem m edida com um , de m aneira m ais secreta
que qualquer outro no m undo». T ransponham estes dados p ara a
linguagem científica m oderna e tereis definido a radiactividade. Os
sábios da Idade M édia entreviam , graças à sua intuição, aquilo que
os nossos realizam , graças ao m étodo. Q uanto à transm utação dos
corpos, que foi o m aior sonho dos alquim istas, não entrou ela nos
factos, hoje em dia? A vicena fala de um «elixir que, projectado sobre
um corpo, transform a a m atéria da sua natureza p ró pria n o rtra m até ­
ria» — nos laboratórios consegue-se, através de «bom bardeam entos»
de electrões, fazer fósforo, p o r exem plo, a p artir do alum ínio, e nada
Ae opõe a que se chegue, p o r meio de operações atóm icas, a transfor­
m ar o vil chum bo em ouro puro. As m áquinas expostas no Palais
de la D écouverte, aquando da exposição de 1937, prestam justiça
ao génio dos investigadores do século XIII. De m odo obscuro, é certo,
e m arcad a de erros que tornariam impossível a aplicação prática dos
seus achados, tinham contudo atingido um grau de ciência m uito
superior ao das épocas que se lhe seguiram. O cientista do século XIX,
im buído das ciências físicas, e n atu rais e das descobertas da quím ica,
perm aneceu indiferente face à crença m edieval na unidade da m atéria;
o do século XX, graças às descobertas da biologia e da electroquím ica,
restabeleceu essa m esm a crença, reconhecendo que todo o átom o se
com põe uniform em ente de um p rotão em torno do qual gravitam os
electrões.
D e igual m odo, interessam o-nos hoje novam ente pelo ocultism o
e a astrologia. Se não se trata de ciências exactas propriam ente ditas,
parece cada vez m ais necessário atribuir-lhes um certo valor — valor
hum ano, se não científico. N inguém contesta a influência da L ua
sobre o m ovim ento das m arés, e os cam poneses sabem que não se
deve engarrafar a cidra ou po d ar a vinha senão em épocas deter­
m inadas pelas fases lunares. Será de todo impossível que o u tras in­
fluências, m ais subtis, sejam exercidas pelos astros? P orque um certo
charlatanism o pode facilm ente explorar estas questões, tudo nelas
deverá necessariam ente ser negócio de charlatães? O nosso século XX,
século de ciências ocultas, dará talvez razão, neste ponto com o em
tantos outros, aos sábios da Idade M édia.
N um outro dom ínio, o da exploração e dos conhecimento;; geo­
gráficos, a actividade não foi menor. Fazer rem ontar a época das
grandes viagens ao R enascim ento é, m ais do que um;i injustiça, um
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 159

erro. A descoberta da A m érica fez esquecer que a curiosidade dos


geógrafos e exploradores da Idade M édia não havia sido m enor em
direcção ao O riente do que a dos seus sucessores em direcção ao
Ocidente. D esde os prim órdios do século XII que Benjamim de Toledo
tinha ido até às í n d ia ; cerca de cem anos m ais tarde, O déric de
P ordenone atingia o Tibete. As viagens de M arco Polo, bem como
outras, m enos conhecidas, de Jean du P lan-C arpin, de G uillaum e
de R ubruquis, de A ndré de Longjum eau, de Jean de Béthencourt,
bastam p ara d ar ideia da actividade desenvolvida nesta época p ara
a descoberta da Terra. A Á sia e a África eram então infinitam ente
m ais bem conhecidas do que o foram a seguir. São L uís estabeleceu
relações com o cã dos m ongóis, tal com o com o Velho da M ontanha,
o lerrívei senhor da seita dos Assassinos. D esde a data de 1329 que
era estabelecido em C olom bo, no sul da ín d ia, um bispado, que
recebeu p o r titu lar o dom inicano Jourdain C athala de Séverac. As
C ruzadas haviam sido, p ara o m undo ocidental, oca ião de estabelecer
e de m anter contacto com o Próxim o O riente, m as, na realidade, as
relações nunca haviam cessado com pletam ente, alim entadas como eram
pelos peregrinos e pelos m ercadores. Em direcção a África, as explo­
rações estenderam -se até à A bissínia e às m argens do Níger, que
foi alcançado no princípio do século xv por um burguês de Toulouse,
A nselm o Ysalguier. Poder-se-á, aliás, ter a certeza de que a A m érica
não tenha sido, se não «descoberta», pelo m enos visitada, já desde
e;sa época? Um facto é certo, é que os Viquingues tinham atravessado
o A tlântico N orte e estabelecido relações regulares com a G ronelândia.
Aí se estabeleceram Islandeses; aí se instituiu um bispado e, em 1327,
os G ronelandeses respondiam ao apelo à cruzada do papa João X X II,
endereçando-lhe, como participação nas despesas, um carregam ento
de peles de focas e de dentes de m orsas. N ão é impossível que tenham ,
a p artir de:sa época, explorado um a parte do Canadá e rem ontado
o São L ourenço, onde Jacques C artier haveria de descobrir com
estupor, alguns séculos m ais tarde, que os índios faziam o sinal da
cruz e declaravam que o tinham aprendido dos seus antepassados.
N ada disto é, aliás, tão espantoso se cçmsiderarmos que a Idade
M édia se encontrava, por interm édio dos Á rabes, em relações pelo
m enos indirectas com a ín d ia e a China e beneficiava igualm ente
dos seus conhecim entos astronóm icos e geográficos. U m planisfério
datado de 1413, traçado p o r M ecia de V iladeste e conservado na
Biblioteca N acional, dá a nom enclatura e a situação exacta das
estradas e dos oásis sarianos, em toda a extensão do deserto e até
Tom buctu. Nesse imenso espaço que, até m eado do século XIX,
iria perm anecer em branco nos nossos m apas, um viajante da Idade
Média podia preparar com precisão o seu itinerário e, do Atlas ao
160 R É G IN E PEN O U

Níger, saber quais iriam ser as etapas do seu percurso. Os desastres


da G uerra dos Cem Anos, o Cisma do O riente e, m ais tarde, a
ru p tu ra com o Islão e as invasões turcas, outras tantas causas que
actuaram directam ente sobre as relações da E u ro p a com o O riente e,
p o r ricochete, sobre as ciências geográficas. É preciso acrescentar que,
ao contrário do que se crê, os sábios do R enascim ento m anifestam
um espírito retrógrado em relação aos seus antecessores, ao transfe­
rirem a base dos seus estudos p ara as obras da A n tig u id ad e2. A ris­
tóteles e Ptolom eu tinham sido largam ente ultrapassados neste dom ínio,
e privar-se das lições da experiência p ara regressar às suas teorias
era privar-se de todo um conjunto de aquisições pouco a pouco
reconquistadas pela época m oderna, prestando justiça, ainda neste
ponto, à ciência medieval.

2 Cf. a este resp eito o artig o , muito p ert in en te e m u ito d ocu m en ­


tado. do R. P. Lecler, in titu lad o «La G éog raph ie des h u m an istes » , no
p r im eiro n ú m e ro d a r ev is t a C onstruire (1940).
CAPÍTULO XII

A VIDA QUOTIDIANA

No princípio da Idade M édia, como é acim a de tudo a segurança


que se p rocura, a vida encontra-se totalm ente concentrada no dom í­
nio, ou quase: regim e de au tarq u ia feudal, ou antes fam iliar, durante
o qual cada corte procura bastar-se a si própria, A disposição das
aldeias trai essa necessidade de se agrupar p ara efeitos de defesa;
encontram -se agarradas às encostas do dom ínio senhorial, onde os
servos se refugiarão em caso de alerta; as casas estão am ontoadas
um as às outras, utilizam a m ínim a polegada de terreno, e não u ltra­
passam as escarpas da colina na qual se ergue o torreão. Tal dis­
posição é ainda m uito visível em castelos com o o de R oquebrune,
perto de Nice, que data do século xi. M as, assim que passa a época
das invasões, as residências dos cam poneses afoitam -se pelos cam pos
fora, e a cidade destaca-se do castelo. Se a cidade prim itiva não tem
senão ruelas estreitas, não é p o r gosto m as p o r necessidade, porque
era preciso que a população se anichasse, m elhor ou pior, na cintura
das m uralhas; o m esm o não acontece com os arrabaldes que se m u l­
tiplicam a p artir do fim do século XI. Do m esm o m odo, as ruelas são
tortuosas, é p o r seguirem o traçado das m uralhas, determ inado pela
configuração geral do local. M as que não se pense que o alinham ento
das casas era deixado à exclusiva fantasia dos habitantes; a m aioria
das cidades antigas são construídas de acordo com um plano bem
visível. Em M arselha, p o r exem plo, as vias principais, como a R ua
de São L ourenço, são estritam ente paralelas às m argens do p o rto , onde
vão desem bocar as ruelas transversais. Q uando estas ruas são m uito
estreitas, pode-se estar certo de que isso acontece p o r razões m uito
precisas: p ara defesa do vento, ou do sol, no M idi; é um a disposição
m uito judiciosa: apercebem o-nos disso em M arselha, quando os adeptos
do barão H aussm ann cortaram essa lam entável R u a da R epública,
vasto corredor glacial que desfigura a antiga colina dos M oinhos.
No L inguadoque, p ara protecção contra o terrível cers1, utili-

(1) Vento do Baixo Linguadoque, semelhante ao mistral. (N. do R.)

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162 REGI NE PEN O U

zou-se m uitas vezes o plano central, como na pequena cidade de Bram ,


onde as ruas giram em círculos concêntricos em torno da igreja. M as,
sem pre que podem , e que não são estorvados pelo clima ou pelas
condições exteriores, os arquitectos preferem um plano rectangular
sem elhante ao daA cidades m ais m odernas, as da A m érica ou da
A ustrália: grandes artérias cruzando-se em ângulo recto, com um
espaço reservado no interior do rectângulo p ara a p raça pública,
na qual se erguem a igreja, o m ercado e, se é caso disso, a câm ara
m unicipal, e ruas secundárias paralelas às prim eiras. Foi assim que foi
concebida a m aioria das cidades novas: a de M onpazier, na D ordogne,
é m uito característica a este respeito, com as suas ruas traçad as a
esquadria, recortando blocos de casario de um a absoluta regularidade,
cidades como A igues-M ortes, A rcis-sur-A ube, G im ont no Gers, ap re­
sentam a m esm a sim etria de desenho.
E ste am biente da ru a é m uito im portante p ara o hom em da Idade
M édia, pois vive-:e m uito na rua. E m esm o um a verificação assaz
curiosa de fazer: até então, e de acordo com o uso corrente na A nti­
guidade, as casas eram ilum inadas a p artir de dentro e apresentavam
m uito poucas ou nenhum as aberturas p ara o exterior. N a Idade
M édia, abrem -se p ara a rua: é o índice de um a autêntica revolução
dos costumes. A rua tom a-se um elem ento da vida quotidiana, tal
com o o haviam sido, no passado, a agora ou o gineceu. As pessoas
gostam de sair. Todos os lojistas têm um toldo, que m ontam todas
as m anhãs, e expõem os seus artigos ao ar livre. A ilum inação foi, até
ao século da electricidade, um a das grandes dificuldades da existência,
e a Idade M édia, am ante de luz, resolvia a questão tirando o m aior
proveito da do dia. U m m ercador de panos que arrastava os clientes
até ao fundo da loja era mal considerado: se não existisse qualquer
defeito nos seus tecidos, não teria receado expô-los em plena rua, tal
com o o faziam todos os outros; o que o cliente quer é po d er acoto­
velar-se sob o toldo e exam inar à sua vontade, em pleno dia, as peças
entre as quais fará recair a sua escolha, com os conselhos do seu
alfaiate, que o m ais das vezes o acom panha p ara isso. O cordoeiro,
o barbeiro, m esm o o tecelão, trabalham na rua ou virados p ara ela;
o cam bista instala as suas m esas sobre cavaletes, no exterior, e tudo
que a autoridade m unicipal pode fazer, p ara evitar estorvos, é
lim itar a um a escala fixa a dim ensão destas mesas.
Assim, as ruas são de um a anim ação extraordinária- C ada quartei­
rão possui a sua fisionom ia diferente, pois os corpos de ofício estão,
em geral, agrupados, o que é, aliás, assinalado pelos nom es das ruas:
em Paris, a R ua dos Cuteleiros (Rue de la Coutellerie), o Cais dos
Ourives (Quai des Orfèvres), o dos Peleiros (de la M égisserie), onde
se situavam os curtidores, a R ua dos T anoeiros (Rue des Tonneliers),
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 163

indicam bem quais os corpos de ofício que nelas se encontravam reu-


nidos- Os livreiros encontram -se quase todos agrupados na R ue Saint-
Jacques; o quarteirão Saint-H onoré é o dos carniceiros. M as são
todos m uito vivos porque as lojas, ao m esm o tem po oficinas e locais
de venda, transbordam e assaltam a rua; é um m isto de so u k tunisino
e de P onte-V ecchio de F lorença; no P aris actual, já só os cais da
m argem esquerda, com as tendas dos alfarrabistas e o seu público
de ociosos e de clientes assíduos, conseguem dar um a ideia desses
tem pos. M as haveria que acrescentar a isto o «fundo sonoro», m uito
diferente na Idade M édia do que acontece hoje em dia: a serra dos
carpinteiros, o m artelo dos ferreiros, os apelos dos m arinheiros que
rebocam ao longo do rio as barcas carregadas de víveres, os pregões
dos m ercadores, em lugar das buzinas dos táxis e da barulheira dos
autocarros. P orque tudo se «apregoa» na Id ad e M édia: as novidades
do dia, as decisões de polícia ou de justiça, os levantam entos de
im postos, os leilões ao ar livre, na praça pública, e tam bém , m ais
correntem ente, as m ercadorias p ara venda; a publicidade, em vez de
se expor nas p aredes em cartazes coloridos, é «falada», com o na
rádio dos nossos dias; m uitas vezes, as autoridades locais vêem-se
m esm o obrigadas a reprim ir os abusos e a im pedir os lojistas de
«darem vozes» de m odo exagerado. O tipo m ais p o pular deste género
é o pregoeiro das tabernas. Todo o taberneiro m an da apregoar o seu
vinho a um personagem de poderoso gasganete, que se senta diante
de um a m esa e preside à degustação: os passantes aliciados m andam
vir um copázio e, p ara os que não têm tem po de entrar na taberna,
isso faz as vezes do «balcão» dos cafés parisienses. No leu de Saint-
N icolas, este pregoeiro desem penha um papel im portante:

C éans fa it bon díner, céans


Ci a chaud p a in e t chaud h a re n g
E t vín d A u x e rre à p lein to n n e f.

Ao correio do rei, que se detém um instante, serve um copo,


dizendo:

Tiens, ci te m ontem au chej [à la tête]


B ois bien, le m e illeu r est au fondP

Há que im aginar isto nessas ruas m edievais de que os antigos


bairros de R ouen ou de L isieux dão ainda ideia, com as suas casas

(2) A q u i h á b om ja n ta r , a qui / A q u i bo m p ã o e cald o arenque / E


vin ho de A u xe rre a e sco rrer da pipa.
(3) Vem, que te su b irá á cabeça / B e b e bem, o m e lh o r está n o fu n d o !
164 REGINE PERNOUD

de vigas aparentes e envasam entos esculpidos, a que o u tro ra se p ren ­


diam cartazes em ferro forjado, e de onde surgia de repente a poderosa
arcatu ra de um pórtico de igreja, cuja flecha, levantando a cabeça,
se avistava lá no alto, elevada com o um m astro p o r entre os telhados,
porque nessa época, longe de estarem isoladas, esm agadas pelos grandes
espaços vazios que nos habituám os a criar em torno delas, as igrejas
form am corpo com as habitações que se am ontoam ju nto a elas e
parecem querer situar-se m esm o p o r baixo do seu cam panário; ainda
se pode notar isto atrás de Saint-Germ ain-des-Prés. A pró p ria dispo­
sição exterior trad u z pois a fam iliaridade em que vivem então o povo
e a sua igreja. As nossas catedrais góticas, m uito diferentes nisto dos
tem plos da A ntiguidade, são aliás concebidas p ara serem vistas deste
m odo, em perspectiva vertical; é assim que adquirem o seu autêntico
valor; aquando da reconstrução da catedral de R eim s, houve quem
se espantasse de encontrar, p o r entre as jó ias da nossa escultura
m edieval, estátuas de traços deform ados, de um a fealdade espantosa;
m as bastou voltar a pô-las nos nichos, quase no topo da construção,
p ara com preender: tinham sido esculpidas de tal m odo que, p ara o
espectador que olhava p ara elas desde baixo, os traços proposita­
dam ente exagerados conservavam toda a sua expressão, adquirindo
um a beleza singular; era o fruto de um cálculo de geóm etra, tanto
com o de um trabalho de artista. C onjuntos como Salers em A uvergne,
Peille perto de Nice, com as suas num erosas arcadas: portões largos,
janelas alinhadas nos andares das casas, pontes cobertas lançadas
p o r sobre a rua, ligando entre si duas «ilhas», isto é, dois grupos
de habitações, perm item igualm ente reconstituir assaz fielm ente o
aspecto de um a cidade m edieval.
P oderem os perguntar, peran te estes testem unhos inegáveis, o que
é que terá sugerido a um L uchaire a estranha opinião segundo a qual
as casas m edievais não passavam de «pocilgas fedorentas e as ruas
de clo ac as» 4; é verdade que não cita m onum ento nem docum ento
de espécie algum a em apoio da sua afirm ação; concebe-se dificilm ente
a razão p ela qual, se tinham o hábito de viver em pocilgas, os nossos
antepassados puseram tan to cuidado em as o rn ar de jan elas com
colunas dividindo-as ao m eio, de arcatu ras trabalhadas assentes em
finas colunetas esculpidas, que reproduzem m uitas vezes a ornam en­
tação das capelas vizinhas, com o ainda se pode ver em Cluny, na Bor-
gonha, em Blesle, em A uvergne, na pequena vila de Saint-A ntonin, na
G asconha, p ara não citar senão casas datadas da época romântica., quer
dizer, do século XI ou dos p rim eiros anos do século XII.

(4 ) La Société française ou temps de Philipye Auguste, p. 6.


L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 165

Q uanto às ruas, longe de serem «cloacas», são pavim entadas desde


m uito cedo: P aris foi-o desde os prim eiros anos do reinado de Filipe
A ugusto; p or um procedim ento sem elhante ao da A ntiguidade, as
pedras eram colocadas num a cam ada de cim ento m isturado com telhas
esm agadas; Troyes, Am iens, D ouai, D ijon foram igualm ente p av i­
m entadas em épocas variáveis, como quase todas as cidades de
França. E essas cidades possuíam tam bém os seus esgotos, cobertos
a m aior parte das vezes; em Paris, foram descobertos sob os terrenos
do L ouvre e do antigo palácio da Trém oille, datando do século X III,
e sabe-se que a U niversidade e os arrabaldes da Cite tinham , duzentos
anos m ais tarde, um a rede que com preendia quatro esgotos e um
colector; em R iom , em Dijon e em m uitas outras cidades, foi igual­
m ente possível verificar a presença de esgotos abobadados, atestando
o cuidado com a salubridade pública. O nde não existia o «tudo p ara
o esgoto», tinham sido criados vazadouros públicos, cujas im undícies
eram despejadas nos rios — tal com o se faz ainda h o je — ou queim a­
das. N um erosas prescrições do ban referem -se ao asseio das ruas,
e os agentes de polícia de então, os banniers, tinham p o r m issão fazê-las
respeitar. É assim que os estatutos m unicipais de M arselha ordenam
a cada proprietário que varra os terrenos em frente da sua casa e que
arranje m aneira de as im undícies não poderem , em caso de chuva, ser
arrastadas pelas águas em direcção ao po rto , pelas ruas inclinadas;
haviam , aliás, sido construídas na em bocadura das ruas que davam
p ara o porto um a espécie de paliçadas destinadas a proteger as águas,
que a m unicipalidade entendia conservar m uito lim po; não eram
consagradas m enos de quatrocentas libras p o r ano p ara a sua m an u ­
tenção, e p ara as limpezas que eram efectuadas periodicam ente tinha-se
im aginado um engenho com posto po r um a barca à qual estava fixada
um a ro d a de alcatruzes que vinham alternadam ente ra sp ar o fundo
e depunham a lam a na barca, a qual era em seguida despejada ao largo.
R egulam entos particulares velam pela protecção dos locais que o
interesse público exige preservar especialm ente contra a conspurcação:
a C arniçaria, a Peixaria, que deve ser lavada com água, diariam ente,
de um a p o n ta à outra, a Pelaria, cujas águas nauseabundas devem ser
despejadas num a conduta escavada especialm ente p ara o efeito-
R esulta de tudo isto que, na Idade M édia com o hoje, a salu­
bridade pública não era descuidada- O m aior inconveniente que a isso
se podia opor provinha dos anim ais dom ésticos, então m ais num erosos
do que nos nossos dias: não era raro ver um rebanho de cabras ou
de carneiros, ou mesmo um a m anada de vacas, ab rir passagem por
entre os tabuleiros dos vendedores, provocando desordens e atropelos;
foi-lhes pois fixado um limite a não franquear no perím etro da cidade;
o que, aliás, ainda se pode ver nalgum as cidades e, em L ondres,
166 R E G I N E PERNOUD

rebanhos de carneiros atravessam quotidianam ente um a das praças


m ais m ovim entadas p ara ir p astar nos parques. H avia sobretudo os
porcos — cad a fam ília criava então um a quantidade suficiente para
po der fornecer o consum o fam iliar— , que circulavam na calçada,
a despeito das repetidas proibições; o que não era totalm ente m au,
pois devoravam todos os detrito:, com estíveis e contribuíam p o r con­
seguinte p ara suprim ir um a causa de insanidade.
Nesta cidade ruidosa, onde fervilha um a população incessan­
tem ente atarefada, a voz dos sinos contava as horas, e tam bém isso
faz parte do «fundo sonoro»: o angelus, de m anhã, ao m eio-dia e à
noite, marca as horas de trabalho e de repouso, desem penhado o papel
das m odernas sereias de fábrica. O sino anuncia os dias de festa, isto
é, de feriado, cham a por socorro em caso de alarm e, convoca o povo
para a assembleia geral, ou os alm otacés p ara o conselho restrito;
toque a rebate de incêndio, dobre de finados, carrilhões de festas;
pode-se seguir durante todo o dia, pela sua voz, a vida da cidade,
até soar, à noite, o recolher; extinguem -se então as luzes das lojas,
os clarões dos assadores; recolhem -se os telheiros, fecham -se os p o r­
tões; se se tem e qualquer surpresa, fecha-se a cidade, clausurando as
suas portas, levantando as pontes levadiças e baixando as grades;
p o r vezes é suficiente colocar correntes a atravessar as ruas, o que
tem igualm ente a vantagem , nos b airros m al afam ados, de cortar a
retirada aos m alandrins; só perm anecem ilum inados os m orrões que,
de dia e de noite, pestanejam diante das alm inhas, as estatuetas da
Virgem e dos santos abrigadas em nichos à esquina das casas, e
diante dos Cristos no cruzam ento das ruas enquanto fora da cidade,
nos portos, irradiam os faróis que m arcam a entrada do ancoradouro
e os principais recifes.
Os viajantes retardatário s só têm direito de circular m unidos
de um a tocha; tolera-se, nas cidades m arítim as, as idas e voltas dos
que estão à espera de em barque: em tem po de alarm e, ou se se declara
um qualquer sinistro, incêndio, avaria grave num navio, perigo de
naufrágio, as autoridades m andam colocar tochas à esquina das ruas,
p ara perm itir socorros rápidos e prevenir os acidentes.
A corte do senhor retira-se então p ara o interior das paredes da
casa — essas paredes em que houve a precaução de construir bem
espessas, m uralhas contra o frio, contra o calor, contra os ruídos
im portunos: sabe-se naquela época que não existe conforto sem
p aredes espessas a servir de protecção. Segundo os recursos do local,
são construídas em tijolo, ou em pedra talhada, no caso dos ricos;
m as, na m aio r p arte dos casos, m istura-se m adeira c adobe, como
aconteceu um pouco por to d a a parte até aos nossos tem pos. Cons
trói-se no chão to d a a arm ad u ra da fachada, cm vigas sabiam ente
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 167

unidas um as às outras e, com a ajuda de cabrestantes, m acacos e


polés, a seguir pro ced e-:e ao seu levantam ento, de um a só vez, p ara
depois se guarnecer os interstícios com tijolos, ou com o m aterial
usado na região. As igrejas, que nos restam , dão em geral a nota do
aspecto das casas: no L inguadoque triunfa o tijolo rosa, que dá um
brilho tão particu lar às igrejas de Toulouse ou de Albi; em A uvergne
constrói-se em pedra, naquela som bria p ed ra de Volvic de que a
catedral do Puy ou a de C lerm ont-F errand fornecem im ponentes
exemplos. N as regiões de terra argilosa, com o no M idi provençal,
casas e m onum entos são cobertos de telhas, que tom aram ao sol
e-sa cor de mel tão característica em aldeias como Riez ou Jouques;
na B orgonha, esta telha é de preferência envernizada, e os telhados
rebrilham de cores ofuscantes — o hospício de Beane, Saint-Bénigne
de D ijon são alguns destes espécim es; na T ouraine, no A njou, utili­
za-se a ardósia extraída na região; e quando as igrejas, em vez de
serem abobadadas, são apenas em adeiradas, com o acontece frequen­
tem ente no N o rte e em torno da bacia parisiense, é p o rq u e as florestas,
m ais num erosas do que as pedreiras, tornavam este m odo de revesti­
m ento m ais económ ico; nessas regiões, as residências dos particulares
eram quase sem pre cobertas de colm o, m esm o na cidade, o que não
deixava de aum entar os riscos de incêndio. Um pouco em ioda a
p arte, as autoridades m unicipais prescreviam aos habitantes m edidas
de pru d ên cia p ara evitar os sinistros; o recolher não tinha outra razão
de ser. Em M arselha, recom enda-se aos arm adores que, quando p ro ­
cedam à operação da brusque, que consiste em aquecer a quilha do
navio em construção para o besuntar m ais facilm ente de pez, vú-icin
a cham a, p ara esta não ultrapassar um a certa altura, pois, dizem os
estatutos da cidade: «Nem sem pre está ao alcance do hom em conter
as cham as que ele próprio ateou.» A pós um incêndio, que em Limoges,
em 1244, destruiu vinte e duas casas, m andou-se construir vastos
reservatórios de água aonde os burgueses se vinham abastecer cm caso
de alerta. Q uando se declarava um incêndio, era um dever de Iodos
acorrerem ao toque a rebate com um balde de água; toda a gente
devia colocar outro diante da p o rta de casa, p o r precaução.
O elem ento essencial da casa m edieval, sobretudo no N orte da
F rança, é a sala; a sala com um em que se reúne toda a família às
horas das refeições e que preside a todos os acontecim entos: baptism os,
casam entos, veladas dos m ortos; é na sala que se vive, é nela que a
família se reúne, à noite, sob o m anto da grande cham iné, p ara se
aquecer contando histórias, antes de ir para a cama. F, isto tanto
nas casas dos cam poneses como nos castelos. As outras divisões,
quartos ou outras, são apenas acessórios; o im portante é a sala fam i­
liar, aquela a que os F ranco-C anadianos cham am ainda o «viveiro»
168 REGINE PERNOUD

(le vívoír). Quando o nível da casa o exige, a cozinha é separada;


p o r vezes mesmo, nos castelos, ocupa um edifício à p arte, sem dúvida
p ara lim itar os riscos de incêndio; as vastas cozinhas de m itra da
abadia de Fontevrault, as do palácio dos duques de B orgonha, em
Dijon, perm aneceram tal e qual com o estavam.
À p arte isto, e sem falar das m últiplas salas de guarda, salas
de aparato e outras que pode com portar um a residência senhorial,
a casa burguesa inclui as oficinas de trab alh o , se for caso disso, e os
quartos- P ara entrar em todos os porm enores, não deixam os de encon­
trar, adjacentes aos quartos, os redutos cham ados privados, longaignes
ou retretes, quer dizer, aquilo que nos habituám os a designar pelo
nom e de W. C. P or espantoso que possa parecer, não faltava em
nenhum a casa da Idade M édia aquilo de que o Palácio de V ersalhes
estava desprovido; a delicadeza ia m esm o m uito longe neste aspecto,
pois parecia pouco refinado não possuir as suas retretes particulares;
a regra m anda que, pelo m enos nas casas burguesas, cada um tenha
as suas e seja o único a usá-las; os costum es só se to rn aram grosseiros
neste ponto a p artir do século XVI, que aliás viu serem desprezadas
quase todas as práticas de higiene que a Idade M édia conhecia. A
abadia de Cluny, no século XI, não contava m enos de quarenta latri­
nas e, o que poderá parecer m ais incrível, em bora seja igualm ente
verdadeiro, as latrinas públicas existiam na Idade M édia; tem os
provas disso em cidades com o R ouen, A m iens, A gen; a sua instalação
e m anutenção são objecto de deliberações m unicipais ou entram nas
contas da cidade. N as casas particulares, as retretes situavam -se
m uitas vezes no últim o andar; um a conduta, ao longo da escada,
corresponde aos esgotos ou vazadouros, ou ainda a fossas m uito
sem elhantes às usadas actualm ente; utilizava-se m esm o um pro ced i­
m ento vizinho do das m ais m odernas fossas sépticas, utilizando cinzas
de m adeira, que têm a p ro p ried ad e de decom por os detritos orgânicos;
encontram os assim m enção de com pra de cinzas destinadas às latrinas
do hospital de N im es, no século x v ; no Palácio de A vinhão, as con­
dutas desaguavam num esgoto que ia d ar ao Sorgue. E sabe-se que
foi penetrando pelas fossas das retretes — o único ponto que não se
tinha pensado em fortificar! — que os soldados de F ilipe A ugusto
se apoderaram da fortaleza de C hâteau-G aillard, orgulho de R icardo
C oração-de-Leão.
Os quartos são m obilados com m ais conforto do que geralm ente
se crê; o m obiliário com preende as cam as «bem adornadas e cobertas
de colchas e de tapetes, com lençóis brancos e peles»(5), os tam boretes,
as cadeiras, de espaldar alto e esses baús e cofres esculpidos onde se

(5) L e M é n a g ie r de P aris.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA
169

guarda a roupa, e de que se podem ver ainda belos espécimes, nom ea­
dam ente no hospício de Beaune. As m adeiras desta época são m uito
belas; p rep arad as e enceradas devidam ente, não absorvem a poeira
e são um m au alvo para os insectos; há ainda as arcas p ara o pão,
os aparadores e guarda-louças; quanto às m esas, são simples tábuas
que se m ontam sobre cavaletes no m om ento de servir e que se g uar­
dam seguidam ente ju n to às paredes p ara não estorvarem . Em contra­
partida, faz-se m uito uso de panos e tapeçarias, que protegem do frio
e abafam as correntes de ar; as que nos restam — p o r exem plo, o
adm irável conjunto da D am e à la líco rn e conservado no M useu de
C lu ny — dizem bem que partido delas se podia tirar p ara m obilar
e decorar os interiores; trata-se, evidentem ente, de um luxo reservado
aos castelães e aos ricos burgueses, m as o hábito de usar tapetes
e x a iré is0 era geral. Falando dos cuidados vários de um a dona de
casa, o M é n a g íe r de P a ris recom enda a Agnès, a Beata, que tem o
panei de intendente: «que ordene às serviçais que, logo de m anhãzinha
cedo, as en trad as da vossa casa, a saber a sala e os outros locais por
onde as pessoas entram e se detêm em casa p ara conversar, sejam
varridas e conservadas lim pas, e os escabelos (tam boretes), bancos
e xairéis, os quais estão sobre as arcas, sacudidos e lim pos do pó;
e sub equentem ente os outros quartos limpos e ordenados p ara esse
dia, e de dia p ara dia, tal é p ró p rio do nosso estado...»
E spantar-se-ão talvez de encontrar m encionados nos inventários,
com o fazendo parte do m obiliário, o fundo-de-banho ou tapete-ba-
nheira, espécie de m oletão que guarnecia o fundo das banheiras, p ara
evitar as farpas quase inevitáveis quando o fundo é de m adeira. É
que efectivam ente a Idade M édia, contrariam ente ao que se julga,
conhecia os banhos e fazia largo uso deles; ainda aqui, conviria não
confundir as épocas, atribuindo indevidam ente ao século XIII a p o r­
caria repelente do século x v i e dos que se lhe seguiram até aos nossos
dias. A Idade M édia é um a época de higiene e limpeza. U m dito de
uso corrente fala bem daquilo que era considerado como um dos
prazeres da existência:

Venari, ludere, lavari, bibere,


H o c est viverei7

N os rom ances de cavalaria, vê-se que as leis da hospitalidade


ordenam que se dê um banho aos convidados que chegam de um a
longa viagem. É aliás um hábito corrente, o de lavar os pés e as mãos

(6) Espécie de coberturas (N. do T.)


( 7 ) Caçar, jo g a r , lavar, beber — isto é viver!
170 REG INE PERNOUD

quando se entra em casa; sempre no M é n a g ie r de Paris, se recom enda


a um a m ulher, para conforto e bem -estar do seu m arido, que «tenha
um grande fogão p ara lhe lavar bastas vezes os pés, guarnição de
lenha para o aquecer, um a boa cam a de penas, lençóis e cobertores,
barretes, alm ofadas, m eias e batas limpas». Os banhos faziam parte,
bem entendido, dos cuidados a dar à pequena infância; M aria de
F rança recorda-o num dos seus lais:

P a r le s villes ou ils erroient


S ep t fo is le j o u r reposouoient
L'enfant faisoient allaiter,
C oucher de nouvel, e t b a ig n e r 8.

Se não se tom ava banho todos os dias na Idade M édia (poder-se-ia


afirm ar que :e trate de um hábito generalizado na nossa época?),
pelo menos os banhos faziam parte da vida corrente; a banheira é um a
peça do m obiliário; não passa m uitas vezes de um a simples tina,
e o seu nom e, dolium , que significa tam bém tonel, pode prestar-se
a confusões. A abadia rom ânica de Cluny, que data do século XI,
não com portava m enos de doze salas de banho: células abobadadas
contendo outras tantas banheiras de m adeira. G ostava-se m uito de ir,
no V erão, folgar p ara os rios, e as Três rich es heu res du D u c de B e rry
m ostram aldeões e aldeãs a lavarem -se e a nadarem num belo dia
de Agosto, na m ais simples indum entária, pois a ideia de p u d o r de
então era m uito diferente da que tem os hoje em dia, e tom ava-se
banho nu, tal como se dorm ia nu entre os lençóis.
Existiam banhos ou estufas públicas, que eram m uito frequentados;
o M useu Borély, em M arselha, conservou um a tabuleta de banhos
em pedra esculpida que data do século XIII. P aris, o P aris de Filipe
A ugusto, contava vinte e seis banhos públicos, m ais do que as piscinas
do P aris actual. Todas as m anhãs, os proprietários dos banhos m an ­
davam «apregoar» pela cidade:

O yez qu'on crie au p o in t du jo u r :


Seigneurs, q u 'o r vous a llez baigner
E t étu ver sans délayer;
L es bains so n t clauds, c'est sa n s m e n tir ( 9 ).

(8) P ela s cidades em que erravam / B ete veses a o dia rep o u sa va m /


A criança fa zia m aleitar, / D e ito r de lavado, e banhar.
(9) O uvi o p re g ã o m a tinal: / Senhores, banhai-vos / E la va i-vo s sem
delongas: / O s banhos estã o quentes, e é sem m entir. G u ilh au m e cie
Villeneuve, C rieries de Paris.
L UZ SO B R E A ID A D E M EDIA 171

A lguns exageravam m esm o: no L ivre des M étiers de É tienne


Boileau, prescreve-se: «Que ninguém apregoe nem m ande apregoar
os seus banhos até ser de dia.» Estes banhos eram aquecidos p o r meio
de galerias e de condutas subterrâneas, procedim ento sem elhante ao
dos banhos rom anos. A lguns particulares tinham m andado instalar
em sua caAa um sistem a deste género, e no palácio de Jacques Coeur,
em B ourges, ainda hoje se pode ver um a casa de banho, aquecida por
condutas m uito vizinhas do m oderno aquecim ento central; m as tra-
ta-se, evidentem ente, de um luxo excepcional p a ra um a casa particular.
É a disposição que se encontrou tam bém nos banhos de Dijon, onde
as galerias correspondiam a três salas diferentes: a sala de banhos
propriam ente dita, um a espécie de piscina e o banho de vapor; os
banhos, na Idade M édia, são com efeito acom panhados de banhos
de vapor, tal com o nos nossos dias as saunas finlandesas, e o nome
de estufas que lhes era dado indica suficientem ente que um a coisa não
era separada da outra. Os cruzados trouxeram p ara o Ocidente o
hábito de acrescentar a isto salas de depilação, cujo uso aprenderam
em contacto com os Á rabes.
E os banhos públicos eram m uito frequentados. Podem os m e mo
espantar-nos de ver, no século XIII, alguns bispos censurarem as
religiosas das cidades latinas do O riente por irem aos banhos públicos,
m as isso prova que, não tendo casas de banho instaladas nos seus
m osteiros, elas não deixavam p o r isso de conservar os seus hábitos
de limpeza. Em Provins, o rei Luís X m andou construir, cm I «)'),
novos banhos, um a vez que os antigos já não serviam, o b a fflu e n tia m
pop u li; em M arselha, tinha sido regulam entada a sua entrada e fixado
um dia especial p ara os ju d eu s e outro para as prostitutas, paia evitar
o seu contacto com os cristãos e as m ulheres respeitáveis.
A Idade M édia conhecia igualm ente o valor curativo das águas»
e o uso das curas term ais; no R om an de Flam enca, vê-se uma dama
pretextar enferm idades e pedir ao seu m édico que lhe prescreva os
banhos de B o u rbo n -1'A rcham bault, p ara poder ir ju n tar-se a um M o
cavaleiro.
Tudo isto está evidentem ente longe das ideias aceites acerca do
asseio na Idade M édia, e contudo os docum entos existem. O eito
proveio de um a confusão com as épocas que se seguiram c tam bém
de certos textos cóm icos que foram indevidam ente tom ados á leira.
Langlois fez acerca disto um a observação m uito judiciosa: «Houve
quem se espantasse de encontrar, diz, no C hastoíem ent de R obe ri
de Blois, certos preceitos de asseio e de conveniência elem entares
que podem parecer assaz inúteis para dam as que se não devem supor
desprovidas de educação. 'N ão limpem, diz por exemplo o poeta, os
olhos á toalha, nem o nariz; não bebam de m ais.' Tais conselhos
172 R E G IN E P E R N O U D

fazem -nos hoje sorrir. M as o que im porta saber é se estam os p erante


índices da grosseria intrínseca da antiga sociedade cortês, ou se não
terão sido form ulados pelo seu autor, precisam ente, p ara provocar
o sorriso, e se os hom ens do século XIII não sorririam disso como
n ó s » 10. N ão se deve tom ar isto a sério, tal com o não se poderia con­
siderar um rito tradicional da época o gesto recom endado p o r Villon:

C e s t bien d ín er qu a n d on échappe
Sans débourser p a s un denier
E t dire adieu au tavernier
E n torchant son n e z à la n appe (11).

É m ais ou m enos como se se dissesse hoje: «Se forem convidados


p ara um a recepção de em baixada, evitem cuspir no chão e apagar o
cigarro à toalha.» H á que contar com o hum or, sem pre presente na
Id ad e M édia. Pelo contrário, o refinam ento dos costum es foi bastante
avançado; não só eram gerais hábitos elem entares como o de lavar
as m ãos antes das refeições — n a p arábola do m au rico, vem os este
im pacientar-se porque a m ulher, lenta a lavar as m ãos, o retarda
na ida p ara a m esa — , m as ainda eram apreciados certos preciosism os,
com o o uso de taças p ara lavar as m ãos na mesa. O M é n a g íe r de P aris
dá assim um a receita «para fazer água de lavar as m ãos à mesa»:
«Ponha-se a ferver salva, em seguida escorra-se a água e faça-se
arrefecer até m ais do que morna- Ou se põe ao de cim a cam om ila
ou m anjerona, ou se utiliza rosm aninho, e se põe a cozer com cascas
de laranja. Tam bém a3 folhas de loureiro são boas» P ara que se tenha
sentido necessidade de fornecer tais receitas, é preciso que as donas
de casa tenham levado m uito longe os cuidados com o interior da
casa e o sentido da apresentação.
A m e m a obra fornece esclarecim entos sobre a m aneira como
eram tratados os hóspedes ordinários do lar, quer dizer os criados,
cuja sorte não era p ara grandes lam entos, a ju lg ar pelos textos da
época: «Às horas pertinentes, m andai-os sentar à m esa e dai-lhes
repasto de um a única espécie de carne, largam ente e abundantem ente,
e não de várias, nem deleitáveis ou delicadas, e servi-lhes um a só
bebida alim entícia e não m olesta, vinho ou outra, e não várias; e
adm oestai-os p ara que com am m uito e bebam bem e abundante­
m ente [...] e após o seu segundo labor e nos dias de festa, que tenham
outra refeição, e seguidam ente, a saber nas vésperas, que sejam sacia­
dos abundantem ente como antes, e largam ente, e, se a estação o

(10) La Vie en France au Moyen Age, I, p. 161.


(11) Janta bem o que se escapa / Sem desembolsar moeda alguma /
E diz adeus ao taberneiro / Assoando o nariz à toalha.
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 173

requerer, que sejam aquecidos e postos a contento.» Em suma, três


refeições ao dia, um a alim entação simples, m as sólida, e, com o bebida,
vinho. É o que sobressai igualm ente dos rom ances de ofícios, onde
se vê os burgueses abastados com erem com os criados à m esa e ali­
m entá-los do m esm o m odo que a si próprios, com o já não se pratica
senão nos nossos campos. A dona de casa deve estender m ais longe
a Aua solicitude: «Se um dos vossos serviçais cai em enferm idade,
to d as as coisas com uns postas de p arte, pensai vós pró p ria nele muito
am orosam ente e caridosam ente, e visitai-o variadas vezes, e p e n a i
nele ou nela m uito curiosam ente, avançando a sua cura.»
E la deve igualm ente pensar nos «irm ãos inferiores», nesses ani­
m ais dom ésticos que parece terem sido m uito m ais num erosos então
do que nos nossos dias: não há m iniatura de cenas de interior ou
de vida fam iliar onde não figurem cães saltando ao pé dos donos,
rondando em volta das m esas nos banquetes, ou ajuizadam ente esten­
didos aos pés da dona ocupada a fiar; em todos os jard in s se vêera
pavões desdobrarem ao sol a cauda luzidia. A" sim, o autor do M éna-
g íe r recom enda à m ulher que «m ande cuidar principal, cuidadosa
e diligentem ente dos anim ais dom ésticos, com o cãezinhos e passarinhos
de gaiola: e pensai igualm ente nos outros anim ais dom ésticos, pois não
podem falar, e por isso deveis falar e pensar por eles» 12.
Se se gosta dos anim ais, não se aprecia m enos as flores, e o
cenário habitual da vida é, com a rua e a casa, o jardim , de que
os m anuscritos de ilum inuras nos m ostram inesquecíveis pinturas:
jard in a cercados de m uros a m eia altura, sem pre com um poço ou
um a fonte, e um riacho que corre nas m argens dos relvados; muita.-,
vezes são p arreiras, árvores em latadas onde acabam de am adurece; os
frutos, ou ainda esses bosques de v erdura onde, nos rom ances, se en­
contram cavaleiros e donzelas. O que é notável é que a época não
conhece a nossa distinção entre jardim hortícola e jardim floral; os can­
teiros acolhem flores e legumes, e não restam dúvidas de que se achava
a baga desabrochada de um a couve-flor, a renda delicada das folhas
de cenoura e a abundante folhagem de um a planta de m elão ou de
abóbora tão agradáveis à vista com o um a frisa de jacintos ou de túlipas.
O pom ar é objecto de passeio; é debaixo de um a velha pereira que
Tristão, nas noites de luar, espera a loura Isolda. O que não significa
que não se apreciem as flores de puro enfeite; a nossa literatura lírica
m ostra-nos sem cessar pastoras e donzéis ocupados a entrançar «rosá­
rios» de flores e de folhagem ; num erosos quadros e tapeçarias têm
um fundo de florezinhas de cores suaves. M as, se os autores das ilum i­

(12) As reservas de aves eram numerosas e cada senhor ou burguês


linha o seu equipamento de caça ainda que reduzido: um cão ou uma
matilha, falcões, gaviões ou marelhões. (N. do R.)
174 R ÉGINE PERNOUD

nuras semeiam de flores e pássaros os enquadram entos das páginas


dos m anuscritos, não deixam de tirar partido das plantas hortícolas,
e a folha de alcachofra, estranham ente recortada, serviu de m odelo
a gerações de escultores, nom eadam ente na época da arte flamejante.

U m a lenda tenazm ente arraigada fez do hom em da Idade M édia


um perpetuo m orto-de-fom e, a ponto de se pod er perguntar como
é que um a raça subalim entada durante oito séculos e, o que é m ais,
periodicam ente devastada pelas guerras, as fomes e as epidem ias
conseguiu sobreviver e produzir ainda rebentos razoavelm ente vigo­
rosos. O erro provém em grande p arte de um a m á interpretação dos
term os então em uso. É exacto que na Idade M édia as pessoas se
alim entavam de «ervas e raízes» — m as sem pre assim foi, pois se
designa então por erva tudo o que cresce sobre a terra: couves, espi­
nafres, alfaces, alhos-porros, acelgas, etc., e por ra iz tudo o que cresce
p or baixo: cenouras, nabos, rabanetes, rábanos, etc.13 De igual m odo,
houve quem se im pressionasse por o cardo (chardon) passar então
p or um prato apreciado, m as há que ler alcachofra (cardou), e assim
já não se trata senão de um a questão de gosto! Se o cam ponês ia
m uitas vezes colher bolota, não era por se m ostrar interessado nela
para si próprio, m as p ara alim entar os seus porcos. É possível que
em certos períodos de excepcional penúria, p o r exem plo durante as
lutas franco-inglesas que m arcaram o declínio da Idade M édia, quando
a peste negra veio acrescentar os seus horrores aos da guerra e os
bandos devastavam o país cuja defesa tinha deixado de estar orga­
nizada, a farinha de bolota tenha servido, com o nos nossos dias, como
produto de substituição, m as nenhum texto nos perm ite pensar que
isso tenha acontecido frequentem ente.
De facto, não seria crível que a fom e tivesse reinado em estado
endém ico na Idade M édia. A fazer fé em R aoul G laber, cronista de
im aginação febril e que cede facilm ente aos efeitos de estilo, tem -se
tendência p ara acreditar que não se passava quase ano nenhum em
que não se tivesse de reco rrer à carne hum ana e aos cadáveres de
crianças, desenterrados de fresco, para apaziguar a fome, ao passo
que o monge m edieval, ao relatar estes factos m onstruosos, tem o
cuidado de não assum ir a responsabilidade da afirm ação, acrescen­
tando prudentem ente: diz-se. É certo que houve fomes na Idade
M édia e que essas fom es foram num erosas, como acontece sempre

(13) Este porm enor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck
Brentano.
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 175

que a ausência ou a insuficiência dos m eios de tran sp o rte não perm ite
p restar rapidam ente auxílio a um a região am eaçada e trocar os p ro ­
dutos, a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenam ente acerca
da questão. D urante a alta Idade M édia, em particular, quando cada
dom ínio form ava pela força das coisas um circuito fechado, as
estradas eram ainda pouco seguras e, para assegurar a sua m an u ­
tenção, eram exigidas portagens m uitas vezes onerosas, bastava um
ano de seca p ara a penúria se fazer sentir. M as é igualm ente certo
que essas fomes eram localizadas e em geral não ultrapassavam a
extensão de um a província ou de um a diocese. M esm o durante o
período áureo da Idade M édia, no século X III, quando a autarquia
dom inial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tom ou
fácil em toda a F rança, observam -se variações por vezes m uito im por­
tantes no preço dos géneros, sobretudo do trigo; cada província,
cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local. Os quadros
traçados p o r Avenel e W ailly m ostram , no interior de um a m esm a
região económ ica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo
ao triplo, como aconteceu no Franco Condado, onde, só no ano de
1272. o hectolitro de trigo custou de 4 a 13 francos.
Por outro lado, é preciso ainda que nos entendam os sobre o que
s; designa por fome: um texto citado por L uchaire, pouco suspeito
de indulgência em relação à Idade M édia, e num a o bra onde acum ula
expressam ente docum entos capazes de dar a ver a época a um a luz
das m ais som brias, é próprio p ara deixar perplexos os leitores do
ano 1943. «Nesse ano (1197), conta o cronista de Liège, faltou o
trigo. D a Epifania até A gosto, tivem os de gastar m ais de cem m arcos
p ara obter pão. N ão tivem os nem vinho nem cerveja. Quinze dias
antes da colheita, ainda com íam os p ã o de c e n te io 14» Se a penúria,
p ara eles, consistia em não ter senão pão de centeio, quanto não inve­
jaría m o s nós a sorte dos nossos antepassados da Idade M édia.
N a realidade, a alim entação medieval não era m uito diferente
da nossa em épocas norm ais. A base era, naturalm ente, o pão, que,
de acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio
ou de m istura de trigo e centeio; m as verifica-se que m esm o regiões
não p rodutoras, com o o Sul da F rança, utilizam o pão de trigo can­
dial. Em M arselha, onde o terreno é pobre em trigo e onde as m edidas
de excepção p ara abastecer a cidade são frequentes, não se encontram
previstas, na regulam entação m uito minuciosa da panificação, farinhas
secundárias; fabricam -se três espécies de pão: o pão branco, o pão
m éjan, m ais grosseiro, e o pão integral; os preços são fixados segundo
um a tarifa rigorosa estabelecida após exames feitos p o r três m estres-

(14) La Société française au tem ps de Philippe-A uguste, p. 8.


176 R E G IN E PER N OU D

-padeiros assistidos p o r um perito e por hom ens bons designados


pela com una, tendo em conta os detritos resultantes da m oedura,
a m alaxagem da m assa e a cozedura. Conheciam -se em P aris m últiplas
variedades de pães «de fantasia», das quais o de Chilly e o de Gonesse,
ou pãozinho mole, eram as mais estim adas. N os locais m uito pobres
com iam -se bolos de aveia, ainda hoje cara aos escoceses, ou de trigo-
-mouro. M as não havia região com pletam ente desam parada, pois a
econom ia de então, a do vasto dom ínio, cobrindo um a grande região,
favorece a policultura; não se vê, na Idade M édia, nenhum a região
unicam ente consagrada à cultura do trigo, ou da vinha, e que im porte
o resto dos produto • de que necessita; o regim e de vastas explorações
perm ite v ariar suficientemente as culturas, ao m esm o tem po que são
consagradas a cada um a delas porções de terra equilibradas.
R oupnel, no seu estudo dos cam pos fran ceses15, observa que o
«m anso», essa «ordem de grandeza local», que, segundo a riqueza
das regiões, m ede de 10 ha a 12 ha m odernos, é quase sempre com ­
posto de três elem ento-: cam pos aráveis, p rados, bosques; estes apenas
representam um a porção m uito reduzida, cerca de um décim o da
exploração total; as terras cultivadas têm um a extensão dupla da das
pastagens. «Este pequeno dom ínio m anifesta-se», diz, «como um
conjunto, e aparece-nos construído à imagem reduzida e com pleta
do próprio território. E acrescenta: «Não é só a sua im agem ; tem a
sua vitalidade e duração.» Os m anuscritos de m iniaturas, que se ins­
piram na realidade, são a este respeito m uito rev elad o res vem os em
toda a parte um a proporção sensivelm ente igual de p rado s, campos
e vinhas.
A vinha é cultivada p o r toda a p arte em F rança, o que responde,
aliás, a um a necessidade religiosa, tanto com o económica, pois os
fiéis, até m eados do século XIII, com ungam sob as duas espécies,
de tal m odo que o consum o de vinho p ara a m issa é m uito m aior
do que nos nossos dias. A lgum as das nossas colheitas são, desde essa
época, particularm ente estim adas; as de B eaune, de Saint-Em ilion,
de C hablis, d'E pernay; outras perderam nos nossos dias o renom e
que outrora possuíam , po r exem plo o vinho de A uxerre ou de M antes-
sur-Seine. Torna-se necessário, quase em to d a a p arte, defender a
produção local contra a im portação estrangeira e, num a cidade como
M arselha, são tom adas m edidas draconianas contra a im portação de
vinhos ou de uvas provenientes de outros territórios; só os condes
tinham direito de os im portar p ara seu consum o pessoal, tratava-se
provavelm ente, neste ca:o , de vinhos finos de E spanha ou de Itália;
um navio que entrasse no porto com um carregam ento de vinhos

(18) H istoire de la C am pagne française, p. 366.


L U Z SO B RE A ID A D E M ÉDIA 177

ou de uvas expunha-se a vê-lo atirado ao chão, e as uvas espezinhadas.


N as feitorias ou entrepostos estabelecidos no estrangeiro, é igualm ente
proibido introduzir vinho da região antes de os m ercadores m arselhe-
ses terem vendido o seu. A cultura da vinha estava pois m uito mais
desenvolvida na região m arselhesa do que nos nossos dias, e os esta­
tutos da cidade asseguram -lhe um a protecção m uito particular: p ro i­
bição de caçar nas vinhas, excepto nas que forem propriedade do
próprio, proibição de o lavrador levar m ais de cinco cachos p o r dia
para seu consum o pessoal, etc.
E que o vinho foi a bebida essencial da Idade M édia; conhecia-se
a cerveja, principalm este a cerveja gaulesa, feita de cevada, já fabri­
cada por G auleses e G erm anos, e tam bém o hidrom el; m as nada
era mais apreciado que o vinho, que se encontra em todas as m esas,
desde a do senhor à dos criados. O vinho é ao m esm o tem po uni
prazer e um rem édio; são-lhe reconhecidas toda a espécie de virtudes
fortificantes e entra na com posição de inúm eros elixires e produtos
farm acêuticos, de geleias e xaropes. São tam bém m uito apreciados os
diversos vinhos licorosos ou licores, vinho em que se puseram a
m acerar plantas arom áticas: absinto, hissopo, rosm aninho, m irto, a
que se adiciona açúcar ou mel. A ntes de se irem deitar, era corrente
a absorção de um a m istura escaldante de vinho e leite coalhado, a
que na Inglaterra e na N o rm an d ia se cham ava o posset, ao qual a
literatura gaulesa do tem po atribuía toda a espécie de poderes, cuja
enum eração faria corar as pessoas pudibundas. Em todo o caso,
fornecia o calor que faltava então aos apartam entos; é certo que o
vinho era, com os exercícios violentos lai com o a caça. o que per­
m itia suprir a insuficiência dos m e os de aquecim ento, o no entanto
não parece que os m ales do alcoolism o se tenham feito sentir, nem
a degenerescência que o acom panha: is o deve-se sem dúvida ;m la.:o
de nenhum a preparação quím ica, nenhum subproduto adulterado ser
então servido com o bebida, ou à observação geral das leis eclesiásticas,
que perm itiam o uso e reprim iam o abuso.
Com o pão e o vinho, havia aquilo a c;uc no Midi catalão se
cham ava o acom panham ento isto é, iodos os outros alimentos. Con­
trariam ente à opinião generalizada, o consum o de carne era então
abundante, e, das investigações levadas a cabo, conclui-se que o gado
francês era no século XIII sensivelmente m ais im portante do que hoje
em dia. U m a pequena localidade pirenaica, que hoje não conta mais
de um a dezena de anim ais de chifres, contava outrora duzentos e
cinquenta e, se bem que as proporções não sejam as m esm as cm Ioda
a parte, longe disso, não restam dúvidas de que a criação de pado eia
praticada de m odo m uito m ais intensivo cm França até ao dia em
que a introdução do gado da Am érica, de m enor preço de custo,

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178 R EGINE PERNOUD

tom ou impossível a concorrência p ara os nossos criadores. No que diz


respeito ao carneiro, p o r exemplo, não havia então quinta que não
tivesse o seu rebanho, tanto m ais que este fornecia aos cam pos um
adubo natural que hoje se julgou m ais cóm odo substituir por adubos
quím icos, o que teve como consequência fazer baixar considera­
velm ente o nosso gado ovino. Sobretudo os porcos eram m uito num e­
rosos; tanto na cidade com o no cam po, não havia família, por m ais
p obre, que não criasse pelo m enos um ou dois p ara seu consum o, e
a m atança do porco, que fornecia carne e gordura p ara o ano inteiro,
é um a cena tradicional, nos calendários do; m eses tantas vezes escul­
pidos nos pórticos das nossas igrejas ou pintados nos nossos m anus­
critos; eram conhecidos os processos de salga e de fum eiro ainda hoje
utilizados. M atar o porco era a tal ponto um acontecim ento da vida
fam iliar que só m uito tard e se vê aparecerem os salsicheiros; mesmo
assim, estes não passam , a princípio, de com erciantes de «pratos
preparados», antes de se especializarem na confecção de salsichas
e presuntos. Pelo contrário, a corporação dos carniceiros é poderosa
desde o início da Idade M édia, e é sabido o papel po r ela desem ­
penhado nos m ovim entos populares dos séculos x iv e XV. Segundo
o M é n a g íe r de Paris, o consum o semanal feito nesta cidade ter-se-ia
elevado a 512 bois, 3130 carneiros, 528 porcos e 306 veados — sem
co n tar o consum o dos palácios reais e principescos, os abatim entos
fam iliares e as diversas feiras de presuntos e outras que tinham lugar
na capital e suas redondezas im ediatas. Tam bém em M ar elha é sur­
preendente o núm ero de prescrições relativas aos anim ais pertencentes
a proprietários da cidade, ou destinados ao consum o dos burgueses.
A isto terem os de acrescentar as aves de capoeira, que eram engor­
d adas como se fazia desde a m ais alta A ntiguidade: os fígados de
ganso e as carnes em conserva faziam , então tal com o hoje, parte
das em entas de festa.
Enfim , a caça fornecia abundantes recursos, em florestas m ais
extensas do que hoje em dia e m uito ricas em caça. H á então um a
infinidade de processos p ara apanhar a caça, desde os laços ou
vulgares anéis até às aveA de rap in a especialm ente treinadas, passando
pelas diversas arm adilhas, redes e engenhos tais como o arco, a sara-
batana, a arbaleta. A panhavam -se tam bém as perdizes com isco e
caçavam -se com cães o veado e o javali. Assim, a m ontaria fazia
parte da alim entação corrente; se o senhor, em fins da Id ad e M édia,
tende a reservar p ara si o direito de caça no seu dom ínio, como hoje
em dia os proprietários e o próprio E stad o , o seu pessoal de mon-
teiros, falcoeiros e criados e os cam poneses que o auxiliam
durante as grandes batidas participam dos benefícios das suas reali­
zações; isso vê-se correntem ente nos rom ances e quadros da época.
L U Z SO BRE A IDA DE MÉDIA 179

Os lacticínios fazem igualm ente p arte da alim entação, e as nossas


m anteigas e queijos adquirem já desde então o seu renom e: queijos
gordos de C ham pagne ou de Brie, anjinhos da N orm andia. Nesta
região, a m anteiga é praticam ente a única m atéria gorda em pregada
na cozinha, e com o o uso de toda a gordura anim al é proibido durante
a Q uaresm a, os habitantes obtêm dispensas especiais p o r não lhes ser
possível obter óleo em quantidade suficiente; as esmolas prescritas
para garantir esta dispensa serviram p o r vezes p ara a edificação das
igrejas, é a esta origem que a T orre da M anteiga, em R u ão , deve o
seu nom e. M as trata-se de um caso particular, pois a oliveira encon­
tra-se aclim atada quase em todo o lado em F rança, e o azeite é muito
apreciado; entra, com o o vinho, na com posição de vários remédios.
Só ele é autorizado nos dias m agros, então num erosos e de severa
abstinência, que se estende igualm ente aos ovos; durante a Q uaresm a
endurecem -se os que as galinhas põem p ara os conservar, e foram
estes ovos que, apresentados à bênção do pad re durante as cerim ónias
de Sexta-Feira Santa, deram origem ao costum e dos ovos da Páscoa.
As m esm as necessidades da abstinência conduziam os nossos
antepassados a consum irem m uito peixe; todos os castelos possuem
então um viveiro anexo onde percas, tenças, enguias e cadozes são
objecto de um a autêntica cultura; tam bém os lagos são cultivados,
tal com o ainda hoje se pratica num a província com o a Brenne, e
a pesca nos lagos é seguida p o r um repovoam ento m etódico. Nas
co sta s a pesca m arítim a é um a indústria m uito viva; as associações
de pescadores desem penham um papel im portante quase em toda a
p arte; nas m argens do M editerrâneo são editadas num erosas prescrições
em sua intenção e, p ara proteger o seu com ércio contra o dos simples
revendedores, assegura-se-lhes um a espécie de m onopólio da venda
do peixe; em M arselha, por exem plo, os revendedores só podem
oferecer as suas m ercadorias a partir do m eio-dia; é contudo deixada
livre a venda dos pequenos peixes ou peixes de rede, pescados com
um a rede de m alha fina cham ada bourgín: sardinhas, girelas, que se
distinguem dos peixes m aiores como a cavala ou a dourada e sobre­
tudo do atum , cuja pesca é m uito abundante nas redondezas im ediatas
do porto. Sabe-se conservar o peixe e a carne, e os «m ercadores de
água» que rem ontam o Sena trazem todos os dias p ara P aris barris
cheios de arenques salgados ou fum ados; um p rato com um na época
é então o craspois, sem dúvida um a variedade de baleia.
Vêm por fim os legum es, que lisonjeiam m enos o palato, e são
p o r isso a alim entação m ais ou m enos exclusiva dos m onge., a quem
o seu estado prescreve a sobriedade e as m ortificações. Comia-se
então m uitas favas e ervilhas, que desem penhavam o papel das nessas
batatas. P ara se queixar do seu m au casam ento e exprim ir a m al;g-
180 R E G I N E PERNOUD

nidade da sua mulher, M ahieu de Boulogne não sabe dizer nada


de m elhor que a estrofe seguinte:

N o u s som m es com m e chien e t le u [loup]


Qui se n tre re c h ig n e n t ès bois,
E t s i j e veux a vo ir des p o is
E lle fera de la p u rée !16

São conhecidas diversas variedades de couves: brancas, repolhos,


orelha-de-burro, e de alfaces; o M é n a g ie r de P aris cita a alface de
F rança e a alface de A vinhão como sendo das m ais apreciadas. E sp i­
nafres, azedas, acelgas, abóboras, alhos-porros, nabos, rábanos fazem
parte da alim entação corrente, e tem os de lhes acrescentar as plantas
condim entares então m uito utilizadas para realçar o sabor das carnes
e dos legumes: salsa, m anjerona, segurelha, basilisco, funcho, hortelã,
sem contar as especiarias, m andadas vir cada vez em m aiores quan­
tidades do Oriente, sobretudo a pim enta, tão preciosa que se verá
p o r vezes nela um a espécie de m oeda e algum as com unas m ercantis
dela se servirão p ara fazerem os seus pagam entos, p o r exemplo às
casas das ordens m ilitares.
Os frutos são então m uito apreciados: peras e m açãs, das quais
se sabe extrair a cidra e a perada; o m arm elo, que passa p o r ser
um a planta m edicinal e do qual se faz um a refinada com pota; sobre­
tudo em Orleães, as cerejas, as am eixas, que se põem a secar, tal
com o as uvas e os figos, e que são usados nos p ô té s e nas conservas
de carne, costum e que se m anteve até aos nossos dias nalgum as
regiões, principalm ente no N orte de F rança; o pêssego e o alperce,
introduzidos pelos Á rabes, eram já m uito apreciados no tem po das
C ruzadas, mas os m orangos e as fram boesas perm aneceram por muito
tem po selvagens e só foram cultivados a p artir do século x v i; muito
ante- dessa época, já se vendiam castanhas nas ruas de Paris, e desde
o século x iv que se tentava aclim atar as laranjeiras ao nosso solo.
Tam bém as am êndoas, nozes e avelãs tinham um a especial preferência
e serviam p ara a confecção de manjares. Enfim , de de a A ntiguidade
que os recursos da floresta: castanhas, frutos da faia-do-norte, m o­
rangos, abrunhos, e tc , eram apreciados.
O regim e geral das refeições variava m uito com as regiões, estando
m uito m ais dependente dos recursos locais do que hoje em dia.
É certo que as trocas eram num erosas e m ais extensas do que :e
poderia acreditar, um a vez que os figos de M alta e a uva da A rm énia

(16) So m o s com o cão e lo b o / Que se disputam nos bosques, / E se


eu quero te r ervilhas / E la fa rá p u ré !
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 181

eram apregoados em P aris; os com erciantes italianos e provençais


traziam p ara as grandes feiras da C ham pagne e da F landres os p ro ­
dutos exóticos e, num plano m ais restrito, os m ercados atraíam nego­
ciantes de quase todas as regiões de F rança. M as essas trocas eram
naturalm ente m enos generalizadas do que nos nossos dias e no cam po,
se exceptuarm os o m ovim ento com ercial criado em torno do castelo
senhorial, vivia-se à base das produções locais. N ão eram utilizados
processos de cultura artificiais p ara fazer avançar as estações e com o,
por outro lado, os dias de jejum e abstinência eram m uito num erosos,
a alim entação m udava de época p ara época, m uito m ais do que hoje
em dia: durante toda a Q uaresm a, com punha-se unicam ente de legu­
mes, de peixe e de caça de água, tem perados com azeite, e o m e mo
acontecia nas virgílias ou nas vésperas de dias santos, quer dizer, um a
quarentena de dias p o r ano. Deve-se, aliás, observar que e.4as pres­
crições eclesiásticas estavam perfeitam ente de acordo com os preceitos
da higiene: o jejum da Prim avera, o das m udanças de estação, nos
Q uatro-T em pos, corresponde a um a necessidade de saúde, enquanto
a grande época das festas, que se traduzem inevitavelm ente em com e­
zainas, se situa nos meses m ais frios do Inverno, quando se sente
necessidade de um a alim entação rica.
Em qualquer dos casos, dos tratad o s de cozinhas guardadas nas
nossas bibliotecas e de obras tais com o esse precioso M é n a g íe r de
Paris, conclui-se que a m esa era na Idade M édia m uito cuidada, para
não dizer m uito refinada. Dá-se grande im portância à apresentação
dos pratos e à ordenação geral das refeições. N as residências senho­
riais, os convivas sentam -se em m esas com pridas assentes cm cavaletes
e recobertas de toalhas brancas; o chão está m uitas vezes, nos dias
de festa, ju ncado de flores e de folhagens recém -apanhadas; as mesas
são dispostas em quadrado ao longo das p aredes e não existe o face-a
-face, de m odo que o pessoal dom éstico possa ir c vir c pôr diante
de cada conviva aquilo de que este necessitar. Os convidados são
sem pre num erosos, pois é hábito de todos os barões ter mesa aberta.
R obert de Blois indigna-se com o pensam ento de que alguns senhores
m andam fechar a porta das salas onde com em, em vez de as m anterem
abertas a quem chega; a hospitalidade é então um dever sagrado,
e estende-se tanto à populaça como aos iguais; p o r outro lado, a corte
do senhor com preende todos os escudeiros ligados ao seu serviço, os
filho; dos seus vassalos, grande parte dos seus parentes. De tal modo
que, ao lado da grande m esa, onde o suserano se senta cm lugar de
honra, há, m ais ou m enos bem colocados segundo os seus títulos de
precedência, toda um a m ultidão de co m ensais Este costum e explica
p or que e que os cavaleiros do rei A rtur, entre os quais reina um a
perfeita igualdade, se sentam em redor de um a m esa redonda, ou
182 REG INE PERNOUD

antes desenhando um a espécie de ferradura, de m odo que todos os


lugares sejam igualm ente honrosos, sem no entanto se to rn ar impossível
servir os convivas.
D e facto, a m aior p arte dos prato s não são postos em cim a
da m esa; as carnes põem -se num pequeno trinchante e o m esm o se
passa com as bebidas. C ortam -se p ara cada convidado porções de
carne: é o papel reservado ao escudeiro trinchador, em geral um
jovem gentil-hom em , e, nos rom ances de cavalaria, com o J e a n de
D am m artín e t B londe d'Oxjord, obra de B eaum anoir, o cavaleiro
servidor da dam a cum pre esse papel. D epõem -se os pedaços sobre
fatias de um pão especial, m ais com pacto do que o pão corrente,
dito pão de trinchar, ou directam ente sobre o prato. E ste costum e
substituiu nalgum as regiões de Inglaterra, onde os p rato s de carne
não aparecem à mesa. O m esm o acontece com as bebidas: os jarro s
que as contêm estão sobre um aparador, e o copeiro enche, uns após
outros, ja rro s e taças, à vontade dos convivas. T odas as cenas de
banquete representam assim escudeiros e servidores indo e vindo
durante a refeição, enquanto as dam as perm anecem sentadas, tal
com o o" senhores de alta posição, e os hóspedes fam iliares da casa,
galgos de form as esguias ou pequenos caníches, volteiam à procura
de um pedaço p ara comer. Os festins são m uitas vezes separados por
entrem ezes, no decurso dos quais os jo g rais recitam poem as ou
executam núm eros de acrobacia; p o r vezes é m esm o to d a um a p an ­
tom im a ou um a peça de teatro que se desenrola aos olhos dos convivas.
É posto um cuidado extrem o na apresentação dos pratos: pavões
e faisões são postos de pé, revestidos com as suas penas; e nas
geleias traça-se to d a a espécie de cenários. O serviço com preende
em prim eiro lugar as sopas, de um a grande variedade, desde os caldos
com plicados, m uitas vezes tem perados com ovos batidos, pedaços de
pão torrado e condim entos inesperados com o o verjus (licor de uva),
até às papas de farinha, de sêm ola ou de cevada, que se com em ainda
nos nossos cam pos e que form avam o fundo da alim entação dos
cam poneses. Os Franceses eram reputados como grandes com edores
de sopas, tal com o hoje em dia. E ram igualm ente famosos pela exce­
lência dos seus p â té s e das suas tartes; a corporação dos pasteleiros
de P aris alcançou um a ju sta reputação: p â té s de m ontaria ou de
aves, que se vendiam quentinhos na rua, tartes de legum es ou de
com potas, realçadas com ervas arom áticas, tom ilho, rosm aninho, louro.
N os festins dados pelos príncipes por oca" ião de qualquer recepção,
sobretudo a p artir do século XVI, certos p â té s m onstruosos encerram
cabritos-m onteses inteiros, sem prejuízo dos capões, pom bos e láparos
que o: tem peram , entrem eados de gordura de porco, apaladados com
cravinho e açafrão. E ram tam bém m uito apreciadas as carnes grelha­
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 183

das e assadas, bem como os m olhos, de que cada cozinheiro possuía


um a especialidade, sendo o m ais apreciado o m olho de alho, vendido
já preparado p ara uso das donas de casa. Crem es e pratos doces
term inam a refeição; alguns bolos, como as filhoses e bolos de am êndoa
e o m açapão, contam -se entre aqueles que ainda hoje apreciam os;
com o presente, gostava-se das com potas de frutos, sobretudo da m ar­
m elada, então m uito estim ada, e de bom bons; eram as goluseimas
m ais correntes, ju n tam en te com as com potas e os xaropes.
Tudo isto está evidentem ente a m ilhas das «ervas» e «raízes».
A alim entação e o refinam ento que nela se põe variam , é claro, com
o grau de fortuna, m as está fora de dúvida que não se venderiam nas
ruas coscorões, p â té s e produtos exóticos com o os figos de M alta se
não houvesse ninguém que os com prasse, ou se só estivessem ao alcance
dos ricos burgueses, cujo abastecim ento se fazia a outra escala e que
tinham em casa os seus cozinheiros. N os rom ances de ofício vêem-se
jovens aprendizes com prar regularm ente pequenos p â té s quando vão
de m anhã buscar água à fonte p ara o consum o da casa, quer dizer,
pois, que o seu preço não era inabordável p ara a sua bolsa. E a vida
no cam po, em bora talvez m enos variada, não devia ser m enos à larga
que na cidade, m uito pelo contrário, pois a cultura dos cam pos c a
criação de gado davam aos cam poneses facilidades que o citadino não
tinha; quando se quer criar um a cidade, é-se obrigado, p ara atrair
habitantes , a prom eter-lhes isenções e privilégios, o que não seria
necessário se o cam ponês fosse m iserável ou, com o nos nossos dias,
desfavorecido em relação ao citadino. H á todas a> razões p ara crer
que é da Idade M édia que datam as sãs tradições gastronóm icas que
estabeleceram tão solidam ente em todo o m undo a reputação d a
cozinha francesa.
*

O que surpreende, nos trajos da Idade M édia, é a cor; o m undo


m edieval é um m undo colorido, e o espectáculo da rua devia ser
então um encantam ento para os olhos; p erante este cenário de fa ­
chadas pintadas e de tabuletas rutilantes, o m ovim ento destes p erso ­
nagens, todos vestidos de tons vivos, hom ens e m ulheres, com os
quais contrasta a túnica negra dos clérigos, o burel castanho dos
irm ãos m endigantes e a brancura extrem a de um a coifa, não é p os­
sível, no m undo m oderno, im aginar um a tal festa de cores, a não ser
nos desfiles ainda há pouco conhecido, em Inglaterra, por ocasião
do casam ento de um príncipe ou da coroação de um rei, ou cm certas
cerim ónias eclesiásticas, como as que se desenrolam no Vaticano. Não
se trata apenas de indum entária de luxo; os simples cam poneses
vestem-se com cores claras, vermelhas, ocres, azuis. A Idade M édia
184 RÉG INE PERNOUD

parece ter tido h o rro r dos tons som brios, e tudo o que nos legou,
frescos, m iniaturas, tapeçarias, vitrais, é testem unho desta riqueza
de colorido tão característica da época.
N ão se deve contudo exagerar o pitoresco ou a excentricidade
do trajo m edieval; alguns porm enores, que associam os inevitavelm ente
aos quadros do tem po, só excepcionalm ente fizeram p arte da indu­
m entária: os sapatos de p o n ta revirada, por exem plo, estiveram na
m oda durante um a cinquentena de anos, não m ais, no decorrer do
século x v , que não assistiu a poucos exageros vestim entares; Charles
d O rléans critica os «gorgias», jovens elegantes que usam m angas
«recortadas» — m angas de fenda lateral que deixam aparecer dobras
im pressionantes. Do m esm o m odo, a coifa longa e pontiaguda, irresis­
tivelm ente evocada pela palavra «castelã», foi m uito m enos usada
do que a coifa quadrada ou arredondada que enquadra o rosto e é
m uitas vezes acom panhada de uma fita sob o queixo, m oda corrente
no século x iv .
D e um m odo geral, as m ulheres da Idade M édia usam roupas
que seguem a linha do corpo, com um busto m uito ju sto e am plas
saias de curvas graciosas. O corpete abre-se frequentem ente sobre a
chaínse ou cam isa de tecido e as m angas são por vezes duplas, deten­
d o - A as prim eiras, as da sobreveste ou trajo de cima, nos cotovelos
e indo as de baixo, de tecido m ais ligeiro, até aos pulsos. O pescoço
é sem pre bem destacado, enquanto as saias arrastam pelo chão, presas
p o r um cinto onde por vezes sobressai um a fivela de joalharia.
O trajo m asculino quase não se distingue do trajo fem inino, pelo
m enos nos prim eiros séculos da Idade M édia, m as é m ais curto, o
calção deixa ver as meias, e p o r vezes as bragas ou calções; no
decurso do século XII, sob a influência das C ruzadas, adoptam -se
roupas com pridas e flutuantes, m oda vivam ente censurada pela Igreja
com o sendo efem inada. Os cam poneses usam um a espécie de rom eira
com capuz e os burgueses cobrem a cabeça com um carapuço de
feltro ou de tecido pregueado. São m uito apreciadas as peles, desde
o arm inho reservado aos reis e príncipes de sangue, a m arta ou o
esquilo, até às simples raposas e carneiros, de que os aldeões confec­
cionam sapatos, gorros e p o r vezes casacos com pridos. No século x v ,
os grandes senhores, como o duque de B erri, gastarão fortunas p ara
com prarem peles preciosas, e é tam bém nessa época que o trajo se
com plica, que os calções se tornam estreitos e ju sto s e a vasquinha
exageradam ente curta e franzida na cintura e os seus om bros acol­
choados.
A ro u p a interior existe desde o início da Idade M édia, e o exame
das m iniaturas m ostra que é usada tanto pelos cam poneses como
pelos burgueses; havia p o r toda a p arte, em França, canham eirais
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA ! 8í

cuja fibra era fiada e tecida em casa, fornecendo um belo tecido


resistente. Em contrapartida, a roupa de noite não existe e o seu uso
só m uito tard e é introduzido. P ara a indum entária, circula em toda
a França um a grande variedade de tecidos, através das grandes feiras.
Vendem -se nas cidades m editerrânicas todas as especialidades da
indústria têxtil das Flandres e do N orte da Franca: tecidos de Châlons,
estam enha forte de A rras, lençóis de lã de D ouai, de C am biai, de
Saint-Q uentin, de M etz, panos verm elhos d'Y pres, estanjorts de In ­
glaterra, tecidos finos de R eim s, feltros e capas de Provins, sem
contar as especialidades locais como a brunette de N arbona e os
panos cinzentos e verdes de Avinhão. P or outro lado, o com ércio
das cidades do litoral, G énova, Pisa, M arselha, Veneza, perm itia a
im portação dos produtos exóticos da África do N orte e m esm o da
ín d ia e da A rábia; alguns registos de m ercadores que frequentavam
a feira da C ham pagne são tão sugestivos com o um a página das M il
e Uma N oites: panos de ouro de D am asco, sedas e veludos de A cra,
véus bordados da índia, algodões da A rm énia, peles da T artária,
couros e cordovões de Tunes ou de Bougie, peles trabalhadas de
Orão e de Tlemcen. A seda e o veludo foram durante m uito tempo
apanágio da nobreza, sendo os nobres os únicos suficientem ente ricos
para poderem adquiri-los. E tudo isto era objecto dos presentes dos
príncipes: em ocasiões de grande regozijo, distribuem -se gostosam ente
ao seu séquito, independentem ente do grau, trajos m ais ou m enos
sum ptuosos. M as o luxo excessivo não foi ca ra c te rític o da realeza
capetiana; a corte só se to m o u magnífica sob os Valois, e sobretudo
com os príncipes apanagiados, duques de B erri, de B orgonha e de
Anjou. É sabido, pelo contrário, que um L uís, o Jovem , um São I 11 is,
um Filipe A ugusto se faziam n o tar pela sobriedade do trajo, frequen­
tem ente m ais simples que o dos seus vassalos.
No que respeita ao trajo m ilitar, seria com eter um erro imaginar
o cavaleiro m edieval sob as pesadas arm aduras com plicadas que se
vêem nos nossos m useus, e que não aparecem antes do fim do século
XIV, quando as arm as de fogo necessitam de um aparelho defensivo
aperfeiçoado. N os séculos XII e XIII, a arm adura consisle essencial­
m ente na cota de m alha, que desce até pouco acim a do jo elh o , e no
elm o, que, pesado e m aciço a princípio, se aperfeiçoa e suaviza depois
com viseiras e fitas sob o queixo móveis com nasal e frontal. Sobre o
lorigão ou cota de m alha, p ara lhe atenuar o brilho, passava-se uma
sobreveste de tecido, pano fino ou outro; as grevas e esporões com­
pletavam a farpeia. N ão é possível fazer m elhor ideia da indum entária
de guerra da época do que através da bela estátua do Cavaleiro de
Bam berg, obra-prim a de harm onia e m áscula simplicicidade. M as é
necessário um esforço suplem entar p ara reconstituir o espectáculo
186 REGINE PERNOUD

deslum brante que deviam apresentar os exércitos de então: essa


m ultidão de cascos, lanças e espadas cham ejando ao sol, a ponto de
a sua reverberação ter sido m uitas vezes um a causa de d erro ta p ara
aqueles que se encontravam desfavoravelm ente orientados.
Podem -se conceber os gritos de adm iração arrancados aos cro ­
nistas p o r essas hostes rutilantes, com as suas bandeirolas e estandartes,
os cavalos carapaçonados, as sedas brilhantes abrindo-se sobre as
cotas de aço, cada corte agrupada em torno do seu senhor e usando
as suas cores. De facto, é na mesma época, em princípios do século
XII, que aparece o brasão. Os term os e a m aior p arte das peças foram
tirados do oriente árabe, m as o costume generalizou-se rapidam ente
na E u ro pa, expandido pela prática dos torneios, nos quais, p ara
seguir a evolução dos cavaleiros em cam pos frequentem ente m uito
extensos, os espectadores se fiavam nas suas arm as, como hoje nas
cores de um jóquei. Este brasão, que conhece hoje um a voga renovada,
faz parte integrante da vida medieval: traduz, sob um a form a arti­
culada, a divisa de um senhor ou de um a fam ília; é ao m esm o tem po
grito de guerra e sinal de aliança. É sabido que cada cor, ou antes
cada esm alte, tem a sua significação, como cada móvel a que está
aposto; o azul é símbolo de lealdade, o goles, de coragem , o areia,
de prudência e o sinople, de cortesia; dos dois m etais, a p rata significa
pureza, o ouro, ardor e amor. O brasão foi-se com plicando ao correr
dos séculos, mas desde o seu aparecim ento que constitui um a ciência
e um a espécie de linguagem herm ética, traduzindo, sob essa form a
rica e colorida que tanto apraz à Idade M édia, todo o feixe de tra d i­
ções e de am bições que com põe a personalidade m oral de cada corte.
Os instrum entos de trabalho são, na Idade M édia, sensivelm ente
os m esm os de que nos servim os até ao século XIX, antes do desen­
volvim ento do m aquinism o e da m otorização da agricultura. É neces­
sário contudo m encionar que o carro de m ão, esse carro de m ão
cuja invenção é atribuída a Pascal por um a tradição bem estabelecida,
existia já na Idade M édia, em tudo sem elhante àquele de que nos
servimos actualm ente. É possível ver m anuscritos do século x iv cujas
ilum inuras m ostram trabalhadores tran sp o rtan d o pedras ou tijolos em
carros de m ão, dos quais sustentam um dos braços p o r meio de um a
corda passada sobre o om bro, p ara poderem tran sp o rtar m ais facil­
m ente a carga; o processo continua a ser usado pelos nossos operários.
Devem -se várias invenções à Idade M édia, e a sua im portância
tornar-se-ia dem asiado grande com o andar dos tem pos p ara que p o s­
sam ser passadas em silencio: a albarda dos cavalos, por exemplo. Até
então, a atrelagem concentrava todo o esforço sobre o peito do anim al,
de tal m odo que, com um a carga um pouco m ais im portante, existia
o risco de sufocação: foi no decurso do século x que apareceu a
L U Z SO BRE A ID ADE MÉDIA 187

engenhosa ideia de atrelar as bestas de carga de m odo a que fosse


o corpo inteiro a suportar o peso e o esforço requeridos 11. E sta ino­
vação deveria introduzir um a profunda renovação dos costumes:
a tracção h u m an a havia sido até então superior à tracção anim al; ao
inverter a ordem das coisas, tornava-se fácil e possível praticam ente
a supressão da escravatura, necessidade económ ica na A ntiguidade.
A Igreja tinha lutado p ara que o escravo fosse considerado como
um hom em e p ara que os direitos da pessoa hum ana lhe fossem
reconhecidos — o que constituía já um a revolução social nos costumes.
E ssa revolução foi definitiva a p artir do dia em que cavalos e
b u rro s se encarregaram de um a p arte do trabalho hum ano. O mesmo
se deu com a invenção do m oinho: m oinho hidráulico, depois m oinho
de vento, deveria fazer dar um passo considerável à hum anidade, su­
prim indo a imagem clássica do escravo atrelado à mó. De alcance
m enos profundo, m as de incontestável com odidade, o processo que
perm ite a um a viatura girar facilm ente sobre si própria, graças ao
dispositivo que torna as duas ro d as da frente independentes das rodas
de trás, não deveria contribuir m enos p ara o progresso e o conforto:
pense-se apenas no espaço que devia ser necessário aos grandes carros
carregados de cereais ou de forragem para virar e nos atropelos daí
resultantes! É m ais que certo que estas invenções tiveram m ais efeito
do que nenhum a outra sobre o bem -estar da arraia-m iúda e contri­
buíram , sem sobressaltos nem despesas, p ara m elhorar eficazm ente
a sua sorte.
A estas invenções, que deviam m odificar radicalm ente as con­
dições do trabalho hum ano, é preciso acrescentar as da bússola e da
b arra do lem e, não m enos im portantes na história do m undo. Os p ro ­
gressos da navegação foram p o r elas decuplicados, o que explica,
pelo m enos em parte, essa intensa circulação a que «e assiste no
sécuo XIII.
O ritm o da jo rn ad a de trabalho varia m uito na Idade M édia,
segundo as estações. É o sino da p aró q u ia ou do m osteiro vizinho
que cham a o artesão à oficina e o cam ponês aos cam pos, e as horas
das trindades m udam com a duração do dia solar; as pessoas dei­
tam -se e levantam -se, em princípio, ao m esm o tem po que o Sol: no
Inverno, o trabalho com eça pois p o r volta das oito ou nove horas,
p ara term in ar às cinco ou seis; de V erão, em contrapartida, a jo rn ad a
com eça a p artir das cinco ou seis da m anhã, p ara só term in ar às
sete ou oito da noite. O que faz, com as duas interrupções p ara as
refeições, jo rn ad a s de trabalho que variam de oito a nove horas,
no Inverno, até doze ou treze, ou p o r vezes quinze horas, no V erão,
(17) Cf. Lefebvre des Noettes, L' attelage à travers les ages. Paris,
1931.
188 REGINE PERNOUD

o que é ainda o regim e habitual das fam ílias cam ponesas. M as isto
não se verifica todos os dias. Em prim eiro lugar, pratica-se aquilo
a que se cham a a semana inglesa; todos os sábados e nas vésperas
dos feriados, o trabalho cessa à um a hora da tarde, em certos ofícios,
e p ara toda a gente nas vésperas, quer dizer, o m ais tard ar por volta
das quatro horas. Aplica-se o m esmo regim e às festas que não são
feriados, isto é, um a trintena de dias p or ano, tais com o o dia de
Cinzas, das Im plorações, dos Santos Inocentes, etc. R epousa-se igual­
m ente no dia da festa do p adroeiro da confraria, do da paróquia e,
bem entendido, feriado completo ao dom ingo e nos dias de festas
obrigatórias. Estas são muito num erosas na Idade M édia: de trinta
a trinta e três p o r ano, segundo as províncias; às quatro festas que
conhecem os hoje em dia em F rança vêm acrescentar-se, não só o dia
dos M ortos, a Epifania, as segundas-feiras de P áscoa e do Pentecostes,
e três dias na oitava do N atal, m as ainda num erosas festas que pas­
sam m ais ou m enos desapercebidas actualm ente, tais como a P u ri­
ficação, a Invenção e a E xaltação da Santa Cruz, a A nunciação, o São
João, o São M artinho, o São N icolau, etc. O calendário litúrgico
regula assim todo o ano, introduzindo um a grande variedade, tanto
m ais que se dá a estas festas m uito m ais im portância do que nos
nossos dias. É pelas suas dataA, e não pelos dias do m ês, que se m ede
o tem po: fala-se do «Santo André» e não do 30 de N ovem bro, e diz-se
três dias depois do São M arcos, de preferência a: o 28 de Abril. Em
sua honra são igualm ente preteridas exigências de ordem social, tais
como as da justiça, p or exemplo. Os devedores insolúveis, aos quais
é designada um a residência forçada — regim e que faz lem brar a
prisão p o r dívidas, em bora sob um a form a m ais doce — , podem
ab andonar esta e ir e vir livrem ente desde a Q uinta-F eira Santa até
à terça-feira de Páscoa, do sábado à terça-feira de Pentecostes, e desde
a véspera de N atal até à Circuncisão. E stam os p erante noções que
nos é difícil hoje em dia com preender perfeitam ente.
No total, havia cerca de noventa dias por ano de feriados com ­
pletos, com setenta dias e mais de feriados parciais, quer dizer, cerca
de três m eses de férias rep artid as ao longo do ano, o que garantia
um a variedade inesgotável na cadência do trabalho. Em geral, as
pessoas queixar-se-iam m esm o, com o o sapateiro de La Fontaine, de
terem dem asiados dias feriados.
A organização dos lazeres é de base religiosa: todo o feriado é
dia de festa e toda a festa com eça pelas cerim ónias do culto. Estas
são frequentem ente longas e sem pre solenes. Prolongam -se em espec­
táculos que, dados prim itivam ente na própria igreja, não tardaram
em se ver rechaçados p ara o adro: são as cenas da vida de Cristo, das
quais a principal, a P aixão, suscita obras-prim as redescobertas pela
L U Z SO BRE A IDA DE MÉDIA
18')

nossa época: a Virgem e os santos inspiram tam bém o teatro, e toda


a gente conhece o M íracle de Théophíle [M ilagre de Teófilo], que
teve um a voga extraordinária. Estes espectáculos são essencialm ente
populares; têm o povo com o actor e auditório — auditório activo,
vibrando ao m enor po rm en o r dessas cenas que evocam nele senti­
m entos e em oções de um a qualidade m uito diferente das do teatro
actual, um a vez que não são apenas o intelecto ou a sentim entalidade
que entram em jogo, m as tam bém crenças profundas, capazes de
tran sp o rtar esse mesm o povo até às costas da Á sia M enor p o r apelo
de um papa. É parte integrante sua, com o sem pre, a nota paródica,
levada m uito longe: não se vai ao ponto de subir ao púlpito p ara
d eb itar gracejos apim entados com ditos dos m ais picantes, p o r altura
dos «serm ões alegres»? Os clérigos não vêem m al nenhum nessas
excentricidades, que nos nossos dias fariam escândalo, e tom am ga­
lhardam ente p arte nelas.
N ão existe, aliás, apenas o teatro pro p riam en te religioso, e, sobre
as bancadas levantadas na praça, representam -se frequentem ente far­
sas e sotias, ou ainda peças de assuntos rom anescos ou históricos;
quase todas as cidades possuem a sua com panhia teatral; a dos clérigos
da Basoche, em Paris, ficou célebre. Os festejos públicos têm tam bém
o seu lugar ao lado das festas da Igreja: são p o r vezes magníficos
cortejos que desfilam pelas ruas, p o r ocasião das assem bleias e
cortes gerais convocadas pelos reis num a ou n o u tra das suas residên­
cias, em Paris, em O rleães, fazendo lem brar os cam pos de M arço
e cam pos de M aio, p ara os quais Carlos M agno convocara a nobreza
do país, em Poissy ou A ix-la-Chapelle. Nessas ocasiões, a corte de
F rança, tão simples em geral, com praz-se num a certa ostentação, e,
com o p ara as entradas de reis ou de grandes vassalos nas cidades,
estas são decoradas com todo o fausto imaginável: tapeçarias esten­
didas ao longo das p aredes, casas ornadas de folhagens e de verdura,
ruas jun cad as de flores. Assim acontece, nom eadam ente, aquando da
coroação de um rei; as cidades p o r onde passa após as cerim ónias
de R eim s apressam -se a prestar-lhe um a recepção solene; e essa
recepção nada tem de rígido nem de pom poso; é acom panhada de
cortejos grotescos, nos quais saltim bancos e folgazões de profissão,
m isturados com o público, fazem mil núm eros que pareceriam incom ­
patíveis com a m ajestade real; só aquando da entrada do rei H en ­
rique II em P aris é que se decidiu suprim ir essas festas e «palhaçadas
do tem po antanho». E ram ocasião de munificências p o r vezes inau­
ditas, sobretudo sob o reino dos Valois: fontes debitando vinho, para
as quais se preparavam cozinhas am bulantes, sobre as quais as carnes
se am ontoavam em enorm es espetos. Foi na m esm a época que se
tom ou gosto pelas m ascaradas ou bailes de m áscaras, um dos quais
190 REGINE PERNOUD

ficou tragicam ente na memória sob o nom e de B a l des A rdents


[Baile dos Ardentes]', aquele em que o jovem rei Carlos VI havia
envergado, com mais quatro com panheiros, um disfarce de selvagem ,
feito de estopa besuntada com pez e coberto de penas, e no qual,
tendo-se o grupo aproxim ado im prudentem ente de um a tocha, se lhes
pegou fogo; teria m orrido sem a presença de espírito da duquesa de
Berri, que o envolveu nas pregas do seu m anto, abafando assim as
cham as; m as o perigo a que acabava de escapar não deixou de influir
sobre o cérebro já de si fraco do infortunado m onarca e sobre a
enferm idade que o iria atingir.
Todos os acontecim entos que atingem a fam ília real, ou apenas
a família senhorial do local: nascim entos, casam entos, e tc , são ocasião
p ara distracções e festividades. Tam bém as feiras com portam a sua
dose de diversões. É nessas ocasiões que os jo g rais exibem os seus
talentos, desde os que recitam , ao som do alaúde ou da viola, frag­
m entos de canções de gesta, até aos simples lutadores que, com as
suas carantonhas, acrobacias e m alabarism os, atraem um círculo de
pacóvios; por vezes efectuam pantom inas — antep assad o s de Taba-
rin — , m ostram animais inteligentes, ou fazem equilíbrio sobre um a
corda esticada a alturas im pressionantes.
Depois do espectáculo, seja de que género for, a distracção p re ­
ferida na Idade M édia é a dança. N ão há banquete que não seja
seguido por um baile: danças dos donzéis nos castelos, carolas aldeãs,
rondas em torno da árvore de M aio; nenhum passatem po é m ais
apreciado, sobretudo pela juventude: rom ances e poem as fazem -lhe
frequentes alusões. A precia-se a m istura de cantos e de danças, e certos
refrães servem de pretexto para b a ila r e cantarolar, tal com o as
fogueiras de São João p ara saltar e fazer rondas. Tam bém as com pe­
tições desportivas possuem os seus adeptos: lutas, corridas, saltos
em altura e em com prim ento, tiro ao arco são objecto de concursos
nas aldeias, entre os burgos, e tam bém entre os pajens e escudeiros
que com põem a corte de um senhor. A caça, ocasião de festins e de
regozijo, perm anece o desporto favorito e, bem entendido, ju stas
e torneios são as principais atracções dos dias de festa ou de grandes
recepções. As crianças, como em todas as sociedades do m undo,
im itam nos seus jogos os dos adultos, ou fazem interm ináveis jogos
de escondidas e de m alha.
Os divertim entos de interior não faltam. É sobretudo o xadrez;
durante as C ruzadas era jo g ad o com fervor, tan to no exército cruzado
como no exército sarraceno, e são num erosos os tratados m anuscritos
nas nossas bibliotecas. É sabido que o Velho da M ontanha, o terrível
.senhor tios Assassinos, fez dom a São Luís de um magnífico tabuleiro
de marfim c ouro. M enos sábios, os jogos de mexas, quer dizer, de
L U X SOBR E A ID ADE MEDIA 191

dam as ou gam ão, tinham tam bém os seus adeptos. M as eram sobre­
tudo os dados que faziam furor; vadios e jo g rais arruinavam -se com
eles: R utebeuf fez m ais de um a vez essa am arga experiência e conta
em term os patéticos as esperanças incessantem ente iludidas e o des­
p e rta r angustioso dos infelizes jogadores arruinados; joga-se aos dados
m esm o na casa real. Como é frequente o em prego de im precações
nesta espécie de jogos, as autoridades tom am m edidas contra os blas­
femos: em M arselha, aqueles que tinham esse m au hábito eram m er­
gulhados p o r três vezes num fosso lodoso, próxim o do Vieux-Port.
P uniam -se igualm ente aqueles que utilizavam dados viciados ou faziam
batota de qualquer outro m odo. As crianças, essas, jogavam aos
ossinhos. M ais distintos e praticados na sociedade cortês eram os
diversos jogos de espírito: adivinhas, anagram as, pedaços rim ados.
Christine de Pisan deixou-nos jo g o s p a ra vender, pequenas peças
im provisadas, no género de: «Vendo-vos o m eu cestin h o » — plenos de
encanto e de poesia ligeira.
194 RÉGINE PERNOUD

evolução da arquitectura, m anifesta es,:e espírito positivo, realista,


que p o r vezes fez tra ta r os nossos antepassados de «prosaicos» —
o que é talvez excessivo, m as m ais próxim o da verdade do que a
tendência rom ântica p ara ver neles seres fantasistas e descabelados.
Objectar-se-á o seu gosto pela poesia. M as é que ao contrário
dos m odernos, que viram nela de preferência um capricho, um a
«evasão», e no poeta um a espécie de boém io, um ser à parte, ou
um heredo-sinfilítico, os hom ens da Idade M édia consideram a poesia
como um a form a natural de expressão; p ara eles, ela faz p arte da
vida, ao mesm o título que as necessidades m ateriais ou, m ais exac­
tam ente, com o as faculdades próprias do hom em como o p en sa­
m ento e a linguagem. O poeta não é para eles um anorm al, é ao
contrário um hom em com pleto, m ais com pleto do que aquele
que não é capaz de criação artística ou poética; não pensariam , como
P latão , em bani-lo da R epública, porque a poesia desem penha o seu
papel na sua república, tal como a eloquência na Grécia antiga.
E ste sentido p rático traduz-se, entre outras coisas, p o r um a
grande prudência perante a vida. Faz-se uso de tudo, m as com m esura.
O hom em teve, na Idade M édia, um a espécie de desconfiança instin­
tiva das suas próprias forças — que coexiste curiosam ente com o en­
tusiasm o e a audácia dos grandes em preendim entos a que a época
assistiu. Um dos adágios que explicam este tem po é o de R oger Bacon:
N atura n o n vincitur, n isi parendo. [Só se p o d e vencer a natureza
obedecendo-lhe.] Professa-se então um grande respeito pela tradição,
pelo estado de facto, pelo costum e, que pouco m ais é que a consta­
tação desse estado de facto; tudo o que é consagrado pelo tem po
tom a-se indestrutível, e as descobertas, em arte, em arquitectura, na
vida corrente, só se im põem quando apoiadas na experiência. N ão se
p ro cu ra inovar, m as sim, pelo contrário, fortificar aquilo que nos
é legado pelo passado, aperfeiçoando-o. A Idade M édia é um a época
de em pirism o: a vida não assenta sobre princípios determ inados de
antem ão, são os princípios directores da existência que resultam das
condições a que esta é obrigada a adaptar-se.
Existe um ponto de acusação m uito revelador deste aspecto da
m entalidade medieval: é aquilo a que os ju ristas cham am : crim e de
novidade. D esigna-se deste m odo tudo o que vem rom per violenta e
b rutalm ente o curso natural das coisas, ou o seu estado tradicional,
desde a quebra de um a vedação até à d esp o se ssã o de um direito de
que se gozava até então pacificam ente. E sta «nova força», este acto
que rom pe com um passado que havia dado as suas provas, tem em -se
as suas consequências im previsíveis; trata-se de um a espécie de hum il­
dade p erante a Criação: sabe-se que o hom em pode ser ultrapassado
pelos acontecim entos por si próprio desencadeados e, a este título,
L U Z SOBRE A ID ADE MEDIA 195

desconfia-se de tudo o que não foi sancionado pela tradição. Em


com pensação, o m odo de investigação ou de justificação m ais corrente
consiste em fazer apelo à m em ória dos testem unhos m ais idosos:
quando se prova que o direito contestado está em uso desde há
tem pos im em oriais, todos se inclinam. É em virtude da m esm a ten ­
dência que um rendeiro que se instala num a terra e a cultiva tra n ­
quilam ente du ran te o tem po da prescrição acaba por ser considerado
legítim o proprietário seu: estim a-se que aqueles que teriam fundam ento
p ara oposição deveriam ter-se apercebido no decurso do prazo legal
de «ano e dia», duran te o qual a n ovidade se transm utou em estado
de facto.
M ais significativa é ainda a noção que se tinha então da liberdade
individual. E la não aparece, na Id ad e M édia, com o um direito ou um
bem absoluto. Seria antes considerada com o um resultado: aquele
cuja segurança está assegurada, aquele que possui terras suficientes
p ara po d er enfrentar os agentes do fisco e defender ele próprio o seu
dom ínio, esse é reputado livre, po rq u e tem , de facto a possibilidade
de fazer o que lhe apraz. Os outros têm , p o r princípio; segurança
prim eiro, e não parecem , aliás, sofrer de outro m odo com a restrição,
im posta pela necessidade, à sua liberdade de m ovim ento, nem rei­
vindicar esta com o um direito preestabelecido. N ão se trata aqui,
bem entendido, senão da liberdade individual, «atóm ica», segundo a
expressão de Jacques C hevalier, pois os direitos do grupo ao qual se
pertence, e que são considerados indispensáveis à sua existência, são
ao contrário encarniçadam ente defendidos: liberdades fam iliares, cor­
porativas, com unais e outras são, se necessário, defendidas de arm as
na mão.
E ste sentido prático, este h o rro r inato da abstracção e da ideologia
com pletam -se com um sentido do hum or que vai m uito longe. O h o ­
m em , na Idade M édia, diverte-se com tudo; com ele, o desenho trans-
form a-se facilm ente em caricatura e a em oção convive com a ironia.
É um a característica a não p erd er de vista quando se estuda a época,
pois m ais de um a vez, ao levar certos textos dem asiado a sério, m ais
não se conseguiu do que desfigurá-los e tom á-los pejados. Julgou-se
ver am ostras dessa fam osa «ingenuidade» m edieval ou certas segundas
intenções surdas de vingança do fraco sobre o forte em passagens
em que o autor pro cu rav a divertir-se, e nada mais. Q uando se escul­
pem nas cadeiras do coro de um a igreja freiras de traços grotescos
em p o stu ras ridículas, quando certo cronista, ao falar do fogo grego,
exclam a, a propósito dessa «água» que irradiava o fogo: «(Ela) custa
m ui caro, tal o faz bom vinho!», quando, nos fablíaux, o cura recebe
pauladas, não se deve ver nisso m ais do que o sentido do ridículo,
o prazer de rir e de fazer rir. N ada escapa a esta tendência, nem
196 REGINE PERNOUD

m esm o aquilo que é julgado pela época com o o m ais respeitável;


chocam o-nos por vezes com essas cenas de taberna, de conversas
galhofeiras, introduzidas nos M ystères [M istérios], e seria totalm ente
im possível, nos nossos dias, reconstituir certas cenas religiosas ou ofi­
ciais sem escandalizar o público habituado a m ais gravidade. É so­
bretudo percorrendo os m anuscritos que se torna m ais sensível essa
faculdade de m isturar o sorriso com as m ais austeras preocupações,
essa espécie de travessura natural que tornava os nossos antepassados
incapazes de se m anterem sérios até ao fim: no seguim ento de um
grave tratado sobre os diferentes pesos em uso e as suas equivalências,
encontram os, p o r exem plo, esta conclusão inesperada, acrescentada de
sua pró p ria autoridade p o r um copista que torcia por certo o nariz
à sua tarefa: e t p o n d u s est m ensura, e t m ensuram o d it anim a m ea
[e o p e so é a m edida, e eu detesto a m edida /! O utro, no seguimento
de um a obra de filosofia, form ula tranquilam ente este desejo sem
vergonha: Scriptori p r o p en a sua d etu r p u lch ra puella. [P udesse o
copista, p ela su a pena, s e r presen tea d o com um a bela rapariga]!
Tudo isto sem transição, na mesm a escrita que o resto da obra, e em
m anuscritos destinados a graves personagens. Se passarm os aos dese­
nhos e m iniaturas que ornam as páginas, são incontáveis os exemplos
de m alícia ou ironia sem eados aqui e ali, com um a veia que jo rra
interm inavelm ente e que encontra o meio de se exercer m esm o nos
m ais doutos tratad o s de filosofia.
E ste hum or m edieval está, aliás, curiosam ente ligado à fé religiosa
que anima a época e que há que ter presente tam bém nos m ais p e­
quenos porm enores da história ou da vida corrente. A sua fé ensi-
na-lhe, com efeito, a originalidade da pessoa divina, a quem nada
é impossível e que pode por conseguinte inverter as situações a seu
bel-prazer. O Credo quia absurdum , atribuído a Santo A gostinho,
faz parte da própria essência da vida m edieval, p ara a qual a acção
divina acrescenta a todas as probabilidades da existência terrestre um
cam po pro p riam en te ilim itado de «impossíveis» realizáveis. As p e ­
quenas cenas nas quais escultores e imagistas, do tem po se deleitaram
a representar, por exem plo, um galo arrastando unia raposa, ou unia
lebre deitando ao chão um caçador, não fazem m ais do que traduzir
esse estado de espírilo, no qual a nota hum orística está intim am ente
ligada à crença num Deus T odo-P oderoso tornado homem.
Sc tentarm os resum ir as preocupações da época, aperceber-nos-
-emos de que elas cabem em duas palavras, dois pólos contrários,
m as não contraditórios: residência e peregrinação. Toda a existência
está então ferozmente centrada no lar, na família, na paróquia, no
dom ínio, no grupo a que pertence. Não há costum e ou parte alguma
sua que não tenda a reforçar essa ligação, ou a fazer respeitá-la. Uma
L U Z SOBRE A ID ADE MÉDIA 197

cidade defende tão ciosam ente as suas liberdades como um senhor


a sua castelania; as associações m ostram -se tão intransigentes relati­
vam ente aos seus privilégios com o um pai de fam ília em relação ao
seu feudo, p o r m uito exíguo que seja; a residência (manoir), o local
em que se reside, é considerado com o um santuário; isto sobressai
de tudo o que nos é possível conhecer da história m edieval: direito
privado, instituições fam iliares e m unicipais — e a própria form ação do
dom ínio real, resultado de um a paciente tenacidade, de sábias com bi­
nações de heranças e de casam entos, nad a m ais é do que um a prova
entre outras desse espírito positivo e realista dos nossos antepassados
quando se tra ta de fortificar e de salvaguardar o seu patrim ónio.
E, contudo, esses seres apegados à terra, ligados aos seus ante­
passados e aos seus descendentes, estiveram em m ovim ento perpétuo.
A Idade M édia é ao mesm o tem po um a época em que se constrói
e um a época na qual as pessoas se m ovim entam — duas actividades
que poderão parecer inconciliáveis, e que no entanto coexistiram , sem
dram as nem dilacerações. Assistiu às m aiores deslocações de m u lti­
dões, à m ais intensa circulação conhecida na história do m undo,
exceptuada a nossa época. Que são as em presas coloniais, as dos
Gregos e as do século passado, ao lado desses êxodos de população
que m arcaram as Cruzadas? E trata-se de êxodos fecundos, sem nada
de comum com esses lam entáveis rebanhos que são para nós um a
m ultidão em m archa. A inda m al instalados num a costa hostil, con­
quistada em feroz luta, esse p u nhado de senhores transplantados da
sua província da F landres ou do L inguadoque revelam -se constru­
tores, ju ristas, adm inistradores, com um espantoso génio de ad ap ta­
ção, em países onde a língua, os costum es e o clim a lhes eram des­
conhecidos apenas alguns m eses antes. D ois séculos bastaram p ara
ver nascer, viver e extinguir-se um a civilização original, forjada peça
a peça, e cujos restos ainda hoje nos m aravilham .
Sabemos m edir o trabalho que representa um a fortaleza com o a
de C hâteau-G aillard ou um a catedral como a de Albi, m as o que é
difícil de im aginar é que um a e outra tenham sido edificadas por
personagens cuja vida inteira foi idas e voltas: desde o m ercad o r que
abandona a sua loja Para ir às feiras da C ham pagne ou da F landres,
ou para traficar nos entrepostos de África ou da Á sia M enor, até ao
abade que se vai em bora inspeccionar os seus m osteiros, desde os
estudantes em m archa de um a universidade p ara outra até aos senho­
res que visitam o seu condado ou aos bispos em visita à sua diocese,
desde os reis que partem para a cruzada até à populaça que m archa
para R om a ou Santiago de Com postela — todos eles, em m aior ou
m enor grau, participam nessa febre de m ovim ento que faz do m undo
medieval um inundo em m archa. Quando Guillaum c, de R ubruquis,
198 REG INE PERNOUD

a convite de S. Luís, se desloca à corte do cã dos m ongóis, pouco


se espanta de aí encontrar um ourives parisiense, G uillaum e Boucher,
cujo irm ão tinha loja no Pont au Change, e que, instalado na H orda
de O uro, construía p ara os seus m ecenas asiáticos um a «árvore m á­
gica», na qual serpentes douradas, enroladas à volta do tronco, serviam
leite, vinho e hidrom el. O arquitecto Villard de H onnecourt vai até
ã H ungria, sem eando pelos ares, se se pode dizer, a opus francígenum ,
e é um francês, É tienne de Bonneuil, que constrói, na Suécia, a cate­
dral de Upsala.
E sta facilidade das partidas estava bem enraizada nos costumes.
A p artir do m om ento em que é capaz de agir, quer dizer, desde a
idade de catorze ou quinze anos, o indivíduo tem , de acordo com
os costum es fam iliares, o direito e a possibilidade de se afastar, de
fundar um a família, de exercer um a actividade própria, e nada do
que lhe advém da herança paterna pode ser-lhe subtraído. P or muito
extraordinário que possa parecer, são os próprios laços que o fixam
ao solo que asseguram a sua liberdade. Um pai de família pode partir
para a cruzada, deixando p ara trás a terra, a m ulher e os filhos: os
seus bens pertencem m ais à família do que a si próprio, e pode ser
substituído p o r outros no seu ofício de gerente. O vagabundo que
existe nele não prejudica em nada o adm inistrador, e nada se opõe
a que invista um após o outro os dois papéis. E ste gosto da aventura
é tal que m esm o o servo, preso à gleba, tem perm issão de a ab ando­
n ar p ara ir em peregrinação. Do mesm o m odo que os costum es retêm
o hom em no lugar que a natureza lhe fixou, assim tam bém o espírito
do tem po com preende a necessidade de evasão que corrige e com pensa
o sentido da estabilidade. C ertos costum es autorizam m esmo o via­
jan te a apoderar-se pelo cam inho daquilo que lhe for necessário para
se alim entar, a si e à sua m ontada, e os deveres de hospitalidade são
em toda a parte considerados dos m ais sagrados que existem: recusar
asilo aos errantes é visto com o um a falta grave, provocando uma
espécie de m aldição.
A Idade M édia conheceu, aliás, excessos nesta ordem de coisas:
são disso prova as m edidas que a Igreja se viu obrigada a tom ar
contra os clérigos vagabundos. E esta aptidão do cam ponês para
p artir do lar provocou os m ovim entos de «pastorinhos» que se entre­
garam por vezes às piores desordens. M as não é m enos verdade que
esta alegria das p artid as era um a garantia de vida, um a fonte de
dinam ism o incom parável. Foi assim que as tro a is se m ultiplicaram
na cristandade m edieval, tal com o entre a E uropa e o Oriente. A época
das grandes descobertas é a Idade M édia; foi então que se aclim ata­
ram na nossa terra os frutos bizarros e magníficos: a laranja, o limão,
a rom ã, o pêssego e o alperce; foi graças aos cruzados que a Europa
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 199

conheceu o arroz, o algodão, a cana-de-açúcar, que aprendeu a servir-


-se da bússola, a fabricar o papel, e tam bém , infelizm ente, a pólvora
dos canhões; ao m esm o tem po im plantavam na Síria as nossas indús­
trias: vidraria, tecelagem , tinturaria; os nossos m ercadores exploravam
o continente africano, um arquitecto europeu construía a grande m es­
quita de T om buctu, e os E tíopes faziam apelo aos nossos artífices de
arte, pintores, cinzeladores, carpinteiros. Viu-se na Idade M édia um
pacífico burguês de Toulouse, Anselm e Ysalguier, trazer p ara a sua
cidade um a princesa negra que havia desposado em G ao, ao mesmo
tem po que um médico vindo das m argens do Níger, ao qual recorria
o delfim, o futuro Carlos VII. R esidência e peregrinação, realism o e
fantasia, tais são os dois pólos da vida m edieval, entre os quais o
hom em evolui sem o m enor incóm odo, unindo um e outro e passando
de um ao outro com um a facilidade que não voltou a recuperar desde
então.
D o conjunto sobressai um a confiança na vida, um a alegria de
viver de que não encontram os equivalente em m ais nenhum a civiliza­
ção. Essa espécie de fatalidade que pesa sobre o m undo antigo, esse
terro r do D estino, deus im placável ao qual os próprios deuses estão
subm etidos, o m undo m edieval ignorou-a totalm ente. P odem os aplicar-
-Ihe estes versos do poeta latino:

[...] m etu s om nes et inexorabile F atum


Subjecit p e d i bus [...].

N a sua filosofia, na sua arquitectura, na sua m aneira de viver,


jo rra p or toda a p arte um a alegria de existir, um poder de afirm ação
perante as quais vem à m em ória a frase trocista de Luís VII, a quem
censuravam a sua falta de fausto: «Nós, na corte de F ranca, só lemos
pão, vinho e alegria.» F rase m agnífica, que resum e a Idade M édia,
época em que se soube, m ais que em nenhum a outra, apreciai as
coisas simples e sãs e alegras: o pão, o vinho e a alegria.
PEQUENO DICIONÁRIO DA IDADE MÉDIA
TRADICIONAL

AMÉRICA (Desco berta da). — R em o n ta a cerca do ano 1000; deve-se aos


V iqu in gues, que le v av am de seis a sete d ias p a r a ir da N o r u e g a à
G ro n elân d ia, onde foi criado um bispado. Os G ro nelan d eses, aq u a n d o
do apelo à C ru za d a lan çad o pelo p ap a Jo ã o X XII em 1327, en v i ara m
a R o m a um c a r r e g a m e n to de d en t es de m o rs a e de peles de foca
p a r a p a r ti c ip a re m nos cu sto s d a em p resa.

A N O MEL (T e rro re s d o ). — N ão m e re ce riam os h is to ria d o r es do século


x v i, ao s quais r e m o n t a es ta inv enção, ser conh ecidos pelo seu sentido
do ro m an esco , pelo m e n o s ta n to como M ichelet, que a eles foi b u scar
a su a in sp i ra çã o ?
A R T E GÓTICA. — A p alav ra gótico, aplicada à arte medieval, permanece
o único asp ecto « tenebroso» d es ta época, u m a vez que não deve n ad a
ao s Godos n em ao s o u tr o s b á r b a r o s e viu o dia na Ilh a de F r a n ç a
no s m e ad o s do século XE.

A S I L O (Direito d e ) . — O d ireito da Id ad e M édia a s se n ta em b ases t o t a l ­


m en te d iferentes das do nosso. E s s a d if eren ça ap a rece com m ais
evidência do que em q u al q u e r ou tro lado n esse d ireito de asilo que
dá u m a o p o r tu n id ad e m e sm o ao crim ino so ; a n ossa época, pelo
co n trá rio , con sid era o p rio r i todo o ac u s ad o como culpado, donde
a p risão p o rv en tu ra , à qual, pelo m en o s em p rin cípio, ta n to se expõe
o inocen te como o criminoso.

B E L P R A Z E R (P o i s é este o n o sso ). — O p r im e iro sob eran o a fazer uso


d e s ta fó rm u l a n ão é o u tro sen ão N ap o leão .

B U R G U E S I A .— N as c e cerca dos fins do século x i, aq u an d o da exten são


das cidades; só co m eça a to m a r p ar te efectiv a no p od er cen tral em
fins do século XIII; o seu a p a r ec i m en t o coincide com o declínio da
Id ad e Média.
BOBSOIjA.— A p arece no Ocidente no século XII; descrita em 1269 por
P é r é g r in de M ari co u r t; ap erfeiço ad a no século xiv.

CARRO DE. MÃO. — E m p r e g u e c o r r en te m e n t e na Id ad e Média. A atrib u iç ão


da n ua d es co b ert a a P a sc al, que n ad a ac re sc en ta á g ló ria d este, não
te rá «Ido u m a piada de m a u g o sto ?

CATEDRAL DE ORLEAES. — Citad a como o modelo do género pelos ro m ân ­


tico s; d a t a do século X VIII.
202 REG INE PERNOUD

CORPORAÇÕES.— A p alav ra d ata do século XVIII; Salvo a l g u m a s ex cepções,


de fins do século xv, pelo menos na sua fo rm a es tr i ta e exclusiva,
pois a b u r g u e sia , que semp re deu p ro v as de m ais espírito de cast a
do que a n o breza, sem p o ssu ir os m e sm o s cargo s, r es e rv a p a i a si,
d esde m u ito cedo, o monopólio da m estria.

C R U Z A D A S .— N ão se reduzem, como se po deria p en sar, a oito expedições.


Im ag in e-s e u m a Sociedade d as N açõ es as se n t e n u m a fé co m u m , em
lu g a r de n um encon tro prov isório de in ter ess es , e o r g a n iz an d o ex p e­
dições além -m ar.

EMPAREDAMENTO. — Os emparedados de Carcassona forneceram a um dos


nossos p in to re s acad émicos m ais ap re cia d o s o te m a de u m a ob ra
co mo v ed ora pela boa v on tad e de que dá p rav a. D es ig n av a -s e na
Id ad e Média, pelo term o em paredam ento, a p e n a de prisão.

E P I D E M IA S . — Se fosse possível fazer u m a lista das suas v íti m as na


Id ad e M édia e co m p ará-la co m as da tu b e rcu lo s e e do alcoolismo
no século p assad o , não é certo que o b alanço fosse fav oráv el ao
ú ltimo (tend o-se am b os ab atid o so b re o povo, tal como a p este no
século x v i, não m e rec erã o 0 nom e de e p i d e m i a s ? ).

FEITIÇARIA, FEITICEIROS. — O s abusos dos p ro c e sso s de fe itiç a ria fo r a m


estig m a tiz ad o s n u m a ob ra do P. v o n Spee, S. J., a C autio crím inalis,
ap a r ec id a em 1631. E sp a n t a r -s e - ã o talv ez com esta data: é que os
p ro cesso s em q uestão , se co m eç ara m a ap a r ec e r com o declínio da
Id ad e Média, no fim do século x v, só se to r n a r a m r ea lm en te n u m e ­
rosos no p rincípio do « G ran de Século».

FEUDALISMO.— A ú n ica sociedade no m u n do na qual a base das relações


de h o m em a ho m em te n h a sido a fidelidade recíp ro ca e a, p rotecção,
d ev idas pelo senh or às g en tes h u m ildes do seu domínio. E difícil de
ex plicar por que é que o term o foi em p r eg ad o a propó sito dos trusts,
pois é impo ssível en c o n tr a r nos tex to s o m en o r esboço de en t en ­
d im en to en t re estes senh ores p ar a a ex p lo ração do povo.

F O M E S . — F o r a m n u m e ro sa s, sob retu d o no século XI, m a s é difícil fazer­


m os u m a ideia ex a ct a do que po ssam ter sido, p o rq ue as do nosso
tem p o a b a r c a m u m a v a s t a região, ao passo que na Id ad e Média
são sem p re localizadas: o v alo r de um ou dois d e p a r ta m e n to s, no
m á x im o , atin g id o s por u m ano de m á s colheitas.

GRAÇA D E D E U S (Rei p ela). — Os dois sen tido s to m a d o s por esta fórmula


são m u ito rev elad o res , pela su a oposição, da evolução da m o narq uia.
N a boca de um São L uís, esta ex p ressão , «rei pela g r a ç a de l>eu « \
é u m a fó rm u l a de h u m ild ad e que reconh ece a m ão do C riado r nas
d i v ersas t a r e f a s a t r i b u í d a s às suas c r ia tu r a s ; na boca de um
L uís XIV, a m e sm a fó rm u l a to rn a-s e a p ro cla m aç ão de um privi­
légio de p red estin ad o .
L U Z SO BRE A ID ADE MEDIA 2<M

IEN E . — «Ser receb ido pelo rei se n tad o na sua ca d ei ra é um privilégio


conferido por u m a au to riza ç ão especial, a 'licença de demanda*
(Lav isse, Histoire de France [História de França]); o castelo do
V er salh es n ão co m p o rta casa de n ecessidades, e L uís x i v só tomou
um único b an h o em to d a a su a vida. E s t a s b rev es rem e m o raç õ es
do século XVII m o st ra m a am p litu d e da evolução que se produziu
no s co s tu m es no d ecu rso do R en as cim e n to . B a s t a r á r eco rd ar que
o P a r is de F ilipe A u g u s to co m p reen d ia v in te e seis estabelecim en to s
de banho s públicos.

HOMEM PROBO. — R epresente o ideal medieval, tal como o homem honesto


do século XVII. Seg undo M én ag e, este deve possuir «a ju s t e z a do
espírito e a equidad e do co ra ção ; u m a é u m a v irtud e do espírito que
co m b ate os erro s, a o u t r a u m a v ir tu d e do co ração que impede o
excesso d as paixões, quer p a r a bem quer p a r a mal». N a Id ad e Média,
as q ualidades req u eri d as ao h o m em pro bo (prud'homme) resu m e m se
nos v erso s seg u intes:

Tant est prud'homme, si com semble


Qui a ces deux choses ensemble:
Valeur de corps et bonté d'âme (1).

ING EN UIDA DE . — «O Sr. Bédier fez-me rev er o preconceito da incons­


ciência e da inintelig ên cia dos au to re s d as can çõ es de g esta. Porque
supor, com efeito, que não d es eja ram ou co m p r ee n d e ram aquilo que
fizeram ? » (G. L an so n , Histoire illustrée de la littérature française
[História Ilustrada da Literatura Francesa], 2.“ ed.)

INOCENTES (Ossário d o s ) . — Cf. «Pátio dos Milagres».

I N Q U I S I Ç Ã O .— A p en a do fogo foi ap l ic a d a pela p r im e ira vez aos heré­


ticos por F re d eri co II, m o n a rc a «esclarecido», céptico, v ária* ve/,n*
ex co m u n g ad o e tido por to dos os h i st o riad o r es como um precursor
do R en as cim e n to . Foi no d ecurso desse m esmo R e n as cim e n to que
a In q u isição to m o u , es p ecialm en te em E s p a n h a e nos P aíse s Baixos,
o c a r á c t e r que g u ar d o u na h istó ria e na tr ad ição .

M A S M O R R A .— N ão ex iste nos d o cu m en to s au tê n ti co s n en h u m esboço de


ex p licação p a r a o cu rioso m al-en te n d id o que levou os romancistas
de im ag in açã o a co n fu nd irem a p risão, de que todo o castelo feudal
es ta v a aliás provido, com as suas caves de a r m a ze n a m e n to .

M O N G E S . — Lem brem o s que os m aiores sábios, os m aiores artistas, os


m aio r es filósofos da Id ad e M édia fo ram m o ng es. (Cf. São TOMAS
de A q u ino , R o g e r Bacon, F re i A ng élico, etc.)

(1) E homem probo, como parece, / Quem possui estas duas coisas
ao mesmo tempo: / Valor de corpo e bondade de alma.
204 R ÉG IN E PER NOU D

MORGADIO (D ireito d e ) . — F o i o m éto d o m a is seg u ro que a I d a d e Média


en c o n tro u p a r a evitar o p ar c ela m en to p ro vo cad o pela d eserção dos
ca m p o s e p a r a excitar, nos b en jam in s da família, o esp irito de ini­
ciativa. N ão t e r á sido ao d ireito de m o r g ad io que a I n g l a t e r r a ficou
a d ev er o te r possuído o m a io r im p ério do m u n d o ?

NOTRE-DAME DE P A R IS. — A s m u l t i l a ç õ e s d o s s a n s - c u l o t te s i n ã o n o s d e v e m
fazer esq uecer que é à Rev olução F r a n c e s a que devem o s a co nser­
v ação da sua fachada, se não I n ta c ta nos seus p o rm en o res, pelo
m eno s tal como está no con jun to: p r o j ec ta v a -s e com efeito, nos
ú ltim o s an o s do século X V III, demoli-la, p ar a co n s tru i r o u tr a no
g én e ro d a do P a n teão .

NOTRE-DAME D E PA R IS. — A s m u t i l a ç õ e s d o s s a n s - c u l o t te s (1) n ã o n o s d e v e m


dos h ist o riad o r es p ara quem a Id ad e Média cabe en tre o P áti o dos
M il ag r es e o Ossário dos In o cen tes. P o d e se l a m e n t a r que não te n h a
vivido o suficiente p ar a co nhecer essas flores da civilização que
são a zo n a dos ar red o res de P a r i s e certo s subúrbios d as n o ssas
g r an d e s cidad es; teria ac h ad o ai um te m a m a is au tên ti co p ar a os
seus ta le n t o s de evocação.

PATRIOTISMO. — Se o n acionalismo rem o n t a inegavelmente à Revolução


F ra n ce sa , o p at rio tism o j á ex istia m u ito an tes de Jo a n a d'Arc, pro-
v am .n o os co m p an h eiro s de Carlos M ag no m o rre n d o de rosto virado
p a r a « F ra n ce la doulce».

P E R N AD A (D ireito d e ) . — P e r a n t e cer tas in t er p re taç õ es , fu n d ad as em


jo g o s de p alav ras (cf. « Bel-P razer» , « E m p a re d am e n t o » , « F eu d a­
lismo » ), d as q uais o «direito de pernada» é um exem p lo im p re ssi o ­
n an t e, p od erem o s p e r g u n ta r- n o s se a Id ad e M édia não te rá sido
v íti m a de u m a co nsp iração de « historiado res».

Q U IM E R A S D A N O T R E -D A M E .— A c r e s c e n ta d a s p o r V io lle t-le -D u c a q u a n d o da
re s t a u r a ç ã o do edifício no século XIX

RAPOSA (R o m an ce d a) . — E x em p lo de cria ção po pular, cuja fo rtu n a foi


tal que a alcu n h a de R a p o sa chegou a su b st itu ir o n om e do goupil,
e que Goethe não d esdenho u a d a p t a lo. P e r m a n e c e como um espécime
desse go sto da m istificação , d esse sentido de h u m o r de que não 6
ex a g er ad o d izer se que é a chave da Id ad e Média. H u m o r g r a tu i to
p orq ue, ao co n tr ári o das fáb u las an tig as , não co m p o r ta n en h u m a
in ten ção m o ral izad o ra.

R Ã S .— C f «Tanques».

» N o m e dado ao povo pelas classes a b a s ta d a s da n ob reza e b u rg uesia


no A n tig o R eg im e, pelo facto de as g en tes do povo não u sarem cal<;a.i
m as sim m eias, aliás, g e r a lm e n t e de lã ou calções de burel «sem calças»
(N . d o R .)
L U Z SO B R E A ID A D E M EDIA 205

SERVIDÃO. — A d iferen ça en tre a serv id ão e a e s c r a v a t u r a p erm it e ca p t ar


ao vivo a oposição en tre a sociedade a n t ig a e a sociedade m edieval,
pois, ao co n trár io do escrav o, tr a t a d o como u m a coisa, o serv o é
u m h o m em que possui família, lar, p ro p ried ad e e se en co n tr a livro
p ar a com o seu sen ho r no m o m en to em que p ag a a ren d a, em tro ca
da qual está p ro teg id o co n t ra o d es em p reg o , o serviço m ilita r e os
ag e n te s do fisco.
S uscitou vivos p ro tes to s: os dos serv os, q uand o os q u iseram
li b e rtar em m a ssa . E ste s, pela sua re si s tê n c ia a essa m ed id a, ficaram
na h istó ria sob o n o m e de «servos recalc itr an tes » .

T A N Q U E S . — «O serv o p a s sa as n o ites a b a t e r na su a á g u a p ar a fazer


cala r as rãs que p e r t u r b a m o sono do senhor.» O au to r, que passou
d u as h o ras d u r an te a noite a b ater a ág u a de u m ch arco p ar a te n ta r
ca la r as rãs, oferece u m a g ro ssa rec o m p en sa a quem p ossa d em o n s­
t r a r a v e ro sim ilh an ça da as ser ção do Sr. D e v i n â t ( Manuel d'histoire,,
Cours Moyen [Manual de História, Curso Médio], p. 11).
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A ss in a la m o s n as edições S to ck -P l u s a colecção de te x to s «Moyen


Age» o r ie n t ad a por D an ièle R èg n ier-B o hler.

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