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II
HISTORIA DAS GRANDES IDÉIAS
DO MUNDO OCIDENTAL
Conselho Editorial:
Colaboração:
Pesquisa de Paulo Sérgio de Morais Sarmento — Hobbes
SUMÁRIO
HOBBES
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“Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total,
a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto, a partir da subtração
de uma soma por outra ...” O racionalismo matemático expresso nesse texto de
Hobbes, tem, entre outrasfontes, o contato que o filósofo manteve com
Galileu. (Anônimo: retrato de Galileu; Vila Le Selve, Lastra a Signa.)
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Corpo e alma
Um tal racionalismo, enquanto mate-
maticismo, isto é, redução das operações
lógicas às operações matemáticas de
adição e subtração, não basta para
incluir Hobbes entre os seguidores de
Descartes. Pelo contrário, sua posição
em relação a Descartes era visivelmente
polêmica, chegando mesmo até a mais
profunda antipatia, como se verifica na
correspondência entre os dois. Radicado
na Holanda, Descartes recebeu, através
do Padre Mersenne, as objeções levanta
das por Hobbes contra as suas Medita
ções Metafísicas. A obra foi publicada
por Descartes, em 1641, juntamente
com as objeções de Hobbes e outros filó
sofos e as respostas do autor.
A discussão entre os dois filósofos
possibilita a caracterização do pensa
mento de Hobbes. Em certo momento de
sua Segunda Objeção, Hobbes aceita
que o conhecimento da proposição “eu
existo” possa depender do conhecimento
da proposição “eu penso”. Com isso,
assimila a célebre frase de Descartes
“penso, logo existo”, mas, logo em
seguida, coloca um problema: de onde
viria o conhecimento da proposição “eu
penso”? Hobbes adianta sua própria
resposta nos seguintes termos: como
“não podemos conceber qualquer ato
sem seu sujeito, assim também não
podemos conceber o pensamento sem
uma coisa que pense, a ciência sem uma
coisa que saiba e o passeio sem uma
coisa que passeie”. De onde se segue
“que uma coisa que pensa é alguma
coisa de corporal”. Hobbes serviu ao soberano Carlos I,
Essa conseqíiência é rejeitada por defendendo seu absolutismo contra os
Descartes, dizendo que Hobbes a acres ataques dos parlamentares liberais.
centa “sem qualquer razão e contra toda (Mystens, o Velho: Carlos I;
boa Lógica, e mesmo contra o modo Galeria Nacional de Retratos, Londres.)
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tados nas proposições e estas são conec sas e o filósofo marcou sua presença em
tadas nos silogismos. A conclusão obti inúmeras polêmicas, expondo suas
da — completa Hobbes — “é de todas as idéias e declarando suas opções. Essas
proposições antecedentes”. idéias e opções, que se encontram nos
Na obra Sobre o Corpo, Hobbes expli seus escritos políticos, somente ganham
cita essa posição nominalista no refe dimensão filosófica à luz de seu materia
rente à célebre questão dos universais: lismo e nominalismo. Querer isolar esta
“os conceitos que, no espírito, corres ou aquela parte de sua obra é uma das
pondem aos nomes comuns (que desig possibilidades de leitura, mas não é a
nam coleção de indivíduos) são imagens melhor maneira de compreender o pen
ou fantasmas de objetos singulares. samento do filósofo.
Desse modo, para 'se compreender o Segundo Hobbes, o ponto de partida
valor do universal, não se tem necessi da ação humana e. conseqüentemente,
dade de outra faculdade que a imagina da ação moral e política é o conato (cona-
tiva, faculdade que nos lembra que as tus), ou seja, o esforço ou empenho. Nos
palavras desse gênero suscitaram em Elementos de Lei Natural e Política,
nosso espírito uma coisa ou outra”. Hobbes explicita essa idéia afirmando
O nominalismo de Hobbes é solidário, que o “movimento, que consiste no pra
ftortanto, de um associacionismo psico- zer e no desgosto, é uma solicitação ou
ógico que fará sucesso mais tarde. Para provocação para se aproximar do que
ele, as imagens associam-se na consciên agrada ou para se retirai* do que desa
cia, formando um “discurso mental” e grada; e essa solicitação é o esforço ou
uma tal associação é um tanto quanto começo interno do movimento animal”.
aventureira quando se está sonhando; Desde esse movimento inicial, toda
porém, uma observação atenta poderia ação humana é vista pelo autor de forma
reencontrar o nexo .que associa essas radicalmente determinista; isso aconte
imagens aparentemente descoordenadas. ce, por exemplo, quando explica a per
A razão não passaria, assim, de um uso cepção visual: “a visão se faz por ação
aperfeiçoado da imaginação, pela apli derivada do objeto; ora, toda ação é um
cação correta da análise (que descobre movimento; o movimento é, pois, propa-
noções e definições, partindo da expe gado da luz ao olho”. Assim, para Hob-
riência) e da síntese (isto é, deduções es, não é de se estranhai* que a alegria
que, a partir das primeiras idéias, pro seja causada pela posse de um objeto
vam e explicam todas as realidades). que favoreça o indivíduo. A tendência no
Em suma, o conhecimento humano é sentido desse objeto chama-se “bem”; o
explicado por Hobbes a partir do entre- “mal” seria, ao contrario, a aversao ao
choque de corpos, a partir de movimen objeto que causa dor.
tos exteriores que, por meio dos senti Como lembra Bertrand Russell, as
dos, atingem o espírito (este não passa definições que Hobbes dá das paixões
de um “corpo tênue e sutil”), repercu baseiam-se, em sua maior parte, numa
tindo uns nos outros, associando-se e visão competitiva da vida.
finalmente organizando-se na arquite A vida seria comparável a uma corri
tônica científica. da na qual é preciso vencer sempre. Para
Hobbes, ela começa com o esforço ini
A luta pela vida cial chamado “desejo”, sendo o “amor”
definido como ligação a alguém. “Estar
A teoria nominalista da arquitetônica continuamente ultrapassado é miséria",
científica e a teoria materialista da diz o autor do Leviatã. “Ultrapassar
estrutura da realidade, que se articulam continuamente quem está adiante é feli
como um todo sistemático nas obras de cidade. Abandonar a corrida é morrer. ”
Hobbes, não se esgotam em si mesmas. No racionalismo clássico, a vontade
Pelo contrário, seu materialismo e nomi implica a razão. Em Hobbes, ela se defi
nalismo vinculam-se intimamente aos ne como “último apetite na delibera
problemas práticos do homem. O mundo ção”. Liga-se, portanto, ao conjunto das
vivido por Hobbes era particularmente paixões, alternando-se no jogo estabele
rico em contradições políticas e religio cido entre tendência e aversão ao objeto.
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Natureza e sociedade
A concepção que Hobbes tem do esta
do de natureza distancia-o da maior
parte dos filósofos políticos, que acredi
tam haver no homem uma disposição
natural para viver em sociedade. Na
obra Sobre o Cidadão Hobbes argumenta
contra Aristóteles (384 a.C. — 322 a.C.
para quem o homem é um animal social
e já está naturalmente incluído numa
ordem ideal. Como o instinto de conser
vação é básico na filosofia de Hobbes,
para ele os indivíduos entram em socie
dade só quando a preservação da vida
está ameaçada. Os homens não vivem em
cooperação natural, como o fazem as
abelhas ou as formigas. O acordo entre
elas é natural; entre os homens, só pode
ser artificial.
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toda parte os recursos para a guerra, para exercer o poder deveria ser total
sendo lícito empregá-los’’. De qualquer mente seguido pelos componentes do
modo, a paz é a dimensão mais compa corpo social no que se refere aos proble
tível com o instinto de conservação. mas da paz geral. Um tal poder só seria
Nesse sentido, os homens são levados capaz de corresponder à sua finalidade
a estabelecer contratos entre si. O con se exercido despoticamente.
trato “é uma transferência mútua de Aí está o que os historiadores chamam
direito”. O pacto, isto é, a promessa de de originalidade e novidade do sistema
cumprir o contrato, vale enquanto a de Hobbes: é partidário do poder abso
conservação da vida não estiver sendo luto e admite, ao mesmo tempo, o pacto
ameaçada. Para que seja durável a paz social. Hobbes não estabelece contradi
obtida com o contrato social, “é neces ção entre o pacto e o absolutismo; quan
sário que a multidão dos associados seja do bem compreendido, o pacto conduzi
tão grande que os adversários de sua ría necessariamente ao absolutismo,
segurança não tenham a esperança de segundo o filósofo. Por isso, pode-se
que a adesão de um pequeno número dizer que Hobbes é absolutista sem ser
baste para assegurar-lhes a vitória”. teólogo, o que o distingue dos outros
Para que a vida seja viável, impõe-se, absolutistas do século, desde Jaime I até
pois, uma sociedade civil. Assim, a paz Bossuet; ou seja, Hobbes não deriva o
imprescindível à conservação da vida absolutismo de um direito divino, mas
que a razão solicita cria o pacto social e, do pacto. Além disso, conquanto mani
através deste, o homem é introduzido em feste sua preferência por um rei absolu
uma ordem moral. to, Hobbes reconhece a legitimidade de
No nível das relações morais, é preci outros tipos de governo; o que não admi
so que cada um — segundo Hobbes — te é que o governo seja misto ou tempe
"não faça aos outros o que não gostaria rado, como a monarquia constitucional.
que fizessem a si”; é preciso evitar a A razão dessa restrição está, para ele, no
ingratidão, os insultos, o orgulho, enfim, fato de que competições compromete
tudo o que prejudique a concórdia; que o doras da paz derivam necessariamente
mal seja vingado sem crueldade, que da presença de vários detentores do
haja moderação no uso dos bens; que os poder.
bens sejam distribuídos eqíiitativamente Esse equacionamento do problema
e que haja uso comum daqueles que não político deriva do modo como Hobbes
possam ser divididos; havendo disputas, encara o pacto social. Para o autor do
3ue se recorra a um árbitro imparcial e Leviatã, o contrato é estabelecido unica
esinteressado. Essas leis não são dedu mente entre os membros do grupo que,
zidas por Hobbes de um instinto natu entre si, concordam em renunciar a seu
ral, nem de um consentimento universal, direito a tudo para entregá-lo a um sobe
mas da razão que procura os meios de rano encarregado de promover a paz.
conservação do homem; elas seriam Um tal soberano não precisaria dar
imutáveis por constituírem conclusões satisfações de sua gestão, sendo respon
tiradas por raciocínio. sável apenas perante Deus "sob pena de
morte eterna”. Não submetido a qual-
Ditadura ou democracia? Ípier lei, o soberano absoluto é a própria
ònte legisladora. A obediência a ele
Para Hobbes, o pacto social, sendo deve ser total, a não ser que ele se torne
artificial e precário, não é /suficiente impotente para assegurar paz durável e
para assegurar a paz, pois seiiipre exis prosperidade. A fim de cumprir sua tare
tiríam pessoas que, acreditando saber fa, o soberano deve concentrar todos os
mais do que as outras, poderíam desen poderes em suas mãos. “Os pactos sem a
cadear guerras civis, a fim de conquistar espada não passam de palavras.” Segu
o poder só para elas. Tal conseqüência rança interna e externa estão em suas
somente poderia ser evitada se cada mãos, as mesmas que detêm a legislação
homem submetesse sua própria vontade suprema e o direito de guerra e paz.
à vontade de um único homem ou a uma Para salientar a concepção social e
assembléia determinada. O escolhido política de Hobbes, os historiadores cos-
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Depois do desenvolvimento do madrigal na época elizabetana, a música inglesa
regrediu a ponto de quase desaparecer, com o triunfo do puritanismo
calvinista, nos meados do séc. XVII. Uma nova era de esplendor só viria a
ocorrer com as composições de Henry Purcell (1658-1695), o maior músico
europeu de seu tempo. (Abram Bosse: Instrumentistas; Bibl. Nac., Paris.)
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Jaime II (1633-1701) foi o último representante do absolutismo dos Stuart.
Seu reinado estendeu-se de 1685 até 1688, culminando na Revolução Gloriosa.
Esta significou o triunfo definitivo dasforças liberais do Parlamento
e a conseqüente derrota dos ideais políticos defendidos por Thomas Hobbes.
(J. Riley: Retrato de Jaime II; Galeria Nacional de Retratos, Londres.)
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No séc. XVIII, as idéias de Hobbes sofreram muitas críticas. Entre outros,
James Gillaray satirizou o Leviatã, misturando livremente o conteúdo da obra
com os eventos políticos da Revolução Francesa na caricatura A Nova
Moralidade ou A Prometida Investidura do Sumo Sacerdote dos Teofilantropos,
com a Homenagem do Leviatã e seu Séquito. (Museu Britânico, Londres.)
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rindo a solução liberal de seu conter ção e a autonomia dos poderes, fazendo
râneo John Locke. Em 1689, as forças prevalecer a mentalidade civil, admi
liberais que predominavam no Parla tindo a pluralidade de confissões religio
mento inglês derrotaram definitivamente sas e proporcionando a liberdade de pen
o absolutismo real, instituindo a separa samento e de expressão.
CRONOLOGIA
1588 — A 5 de abril, nasce uma tradução da Guerra do 1651 — Publica, na Ingla
Thomas Hobbes, na aldeia Peloponeso, de Tucídides. terra, o Leviatã ou A Maté
-B R A S IL,
de Westport, Malmesbury, 1640 — Produz seu primei ria, a Forma e o Poder de
Inglaterra. ro tratado, Elementos de Lei uma Comunidade Eclesiás
1603 — Morre Elizabeth I, Natural e Política. Em face tica e Civil.
a última dos Tudor. Suce dos acontecimentos políti 1652 — É banido da corte
PAULO
de-a seu primo Jaime I, que cos ingleses, retira-se para a inglesa no exílio e volta defi
inicia a dinastia dos Stuart. França, onde permanece on nitivamente à Inglaterra.
Hobbes ingressa no Magda
-S Ã O
ze anos. 1654 — Publica Sobre o
len Hall, Oxford. 1642 — Publica Sobre o Ci Corpo.
1608 — Termina seu ba dadão. Inicia-se na Inglater 1658 — Publica Sobre o
E INDUSTRIAL
charelado em Oxford e é in ra a Guerra Civil, quando Homem. Morte de Crom-
dicado para preceptor do fi Carlos I é decapitado, e ini weli.
lho de Lorde Cavendish. cia-se o período da Com- 1660 — Restauração dos
1610 — Faz sua primeira monwealth, sob a liderança Stuart com Carlos II.
viagem ao continente. de Cromwell. 1668 — Hobbes traduz, em
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CAPÍTULO22'
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Inaugurando o racionalismo moderno, a influência de Descartes atravessou os
séculos e asfronteiras da França. Como procura de clareza, apoiada nas
exigências do rigor matemático, o cartesianismo tem sido visto como a
expressão mais plena do espírito filosófico francês. (Planta de Paris, 1575.)
Na página anterior: Descartes, de Franz Hals, Louvre, Paris. (Foto A. Mella.)
m lugarejo nas cercanias de Ulm, verdade e, por isso mesmo, todo feito de
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Descartes foi criado num meio familiar e social marcado pela mentalidade
conservadora. A origem divina do poder real permanecia incontestada na França,
e nem a dúvida metódica preconizada pelo cartesianismo será aplicada às
instituições políticas. (Detalhe de quadro do século XVIII, ãutor desconhecido,
mostrando as festas do casamento de Luís XIII, Museu Camavalet, Paris.)
religiosa e espiritual da Europa; as afir vida como recurso metodológico; e o
mações da ciência e da filosofia medie francês Michel de Montaigne
vais, calcadas principalmente em Aristó (1533-1592), que modernizou e enri
teles; a autoridade da Bíblia, posta em queceu a argumentação do ceticismo e
confronto com os dados das novas desco ressaltou a influência que os fatores pes
bertas científicas; e o prestígio da Igreja soais, sociais e culturais exercem sobre
e do Estado, abalado pelo movimento da as idéias. Através de agudas análises,
Reforma e pelas guerras motivadas por servidas por fina ironia, Montaigne pro
dissidências políticas ou religiosas. curou demolir as superstições, os erros e
Além disso, se o homem europeu desco o fanatismo das opiniões que pretendem
bre que há idéias bem diversas das que impor-se a qualquer preço, mascaradas
vinham docilmente aceitando como úni de verdade, embora carentes de susten
cas verdadeiras, e se passa a saber que tação racional. Depois de olhar em torno
há outros povos vivendo segundo pa e de examinar comportamentos, costu
drões bem diferentes daqueles que lhe mes e idéias, conclui que só há opiniões
pareciam os únicos legítimos, é natural neste mundo incerto. Voltando-se para
que se espraie uma vaga de descrença e dentro de si mesmo, aí julga encontrar
de dúvida. apenas finitude e mortalidade. Sanchez
Principalmente três pensadores ex havia concluído que o homem não pode
pressarão o clima de ceticismo propi conhecer nada com segurança, nem o
ciado pelas conquistas da Renascença e mundo, nem a si mesmo. Montaigne vai
pela falência das concepções e dos valo adiante e proclama que o homem nada
res da Idade Média: o alemão Agripa de sabe porque o homem não é nada. Que
Nettesheim (1487-1535), que proclama outra sábia solução lhe resta — e que
a incerteza das ciências; o médico portu propõe aos outros homens — senão a do
guês Francisco Sanchez (1552-1632), ceticismo: a renúncia à certeza aparen
que lecionou na França, em Montpellier temente inatingível?
e Toulouse, revelando-se adversário das No final do século XVI manifesta-se
doutrinas aristotélicas e adotando a dú um movimento de reação ao ceticismo
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zar uma ciência sustentada pela obser tou. “Eu estava num dos mais célebres
vação e pela experimentação, e que for colégios da Europa, onde pensava que
mularia indutivamente as suas leis, deveriam existir homens sábios, se eles
partindo da consideração dos casos ou existissem em algum lugar da Terra.”
eventos particulares para chegar a gene Mas essa expectativa viu-se cedo frus
ralizações; por outro lado, inaugurando trada: “Alimentei-me de letras desde
o racionalismo moderno, Descartes minha infância, e, devido ao fato de me
busca na razão — que as matemáticas terem persuadido de que por meio delas
encarnavam de maneira exemplar — os podia-se adquirir um conhecimento
recursos para a recuperação da certeza claro e seguro sobre tudo o que é útil à
científica. vida, tinha extremo desejo de aprendê-
las. Porém, assim que terminei todo esse
As inúteis humanidades curso de estudos, ao fim do qual costu
ma-se ser recebido na fileira dos douto
Os Descartes constituíam uma família res, mudei inteiramente de opinião”. O
de burgueses radicados na região entre desencanto de Descartes não se referia
Tours e Poitiers, e dedicados principal ao sistema de ensino de La Flèche nem
mente ao comércio e à medicina. Ligan aos seus mestres. Pelo contrário, por
do-se aos Sain e aos Brochard, torna estes conservou sempre estima, e, mais
ram-se proprietários de terras e tarde, consultado por um pai sobre a
ascenderam socialmente. Tanto que Joa- escolha de uma escola, recomendou La
chim Descartes, casado com Jeanne Bro Flèche com insistência. A decepção de
chard, passará a ostentar o título de Descartes fora causada pelo próprio
conselheiro do rei no Parlamento da conteúdo dos ensinos que recebera, que
Bretanha. Com esse título ele é identifi exprimiam uma cultura sem funda
cado na ata de batismo de seu filho mentos racionalmente satisfatórios e
René, nascido em La Haye, na Touraine, vazia de interesse para a vida. O que o
em 1 596. decepcionou foram as próprias “letras”,
De saúde frágil, René passou o início as litterae humaniores, as chamadas
da infância sob os cuidados da avó, “humanidades”, de que ele avidamente
Jeanne Sain, pois perdera a mãe com um se alimentou no curso de La Flèche (de
ano de idade. E, chegado o momento de 1606 a 1614) e depois nos estudos de
começar os estudos, o pai enviou-o, em direito, em Poitiers (de 1614 a 1616).
1606, ao já célebre colégio jesuíta de La Em La Flèche, onde o latim era a única
Flèche. Era um estabelecimento de ensi língua admitida e Cícero o autor mais
no fundado recentemente, mas logo lido, a base do estudo era a lectio, ou
transformado numa das mais renomadas seja, a leitura e a explicação de um texto
escolas da Europa. Os jesuítas o haviam antigo , completada por uma repetição
criado, em 1604, sob a proteção de Hen que tinha o objetivo de afastar quaisquer
rique IV, que, para essa finalidade, dúvidas; finalmente, a erudição deveria
doou-lhes um palácio e amplos recursos. enriquecer as noções recebidas, apoian-
Conscientes do papel que lhes estava do-as em diversas informações (sobre
reservado numa França pacificada de história, geografia, direito, etc.). Esse
pois de tantos distúrbios políticos e de procedimento pedagógico aplicava-se
tantas lutas religiosas, os jesuítas esme- inicialmente às ciências de erudição (es
raram-se em sua tarefa de educadores. O tudo de línguas antigas, grego e latim,
colégio recebeu o nome de colégio real e história e “fábulas”); num segundo está
o soberano decidiu que, quando morres gio, o aluno era levado a estudar
se, seu coração deveria ser trasladado eloqüência, poesia e teologia; por fim,
para lá e ser depositado em sua capela. as ciências que naquela época eram
Isso de fato aconteceu, em maio de designadas genericamente pelo nome de
1610, e o jovem Descartes esteve pre filosofia (lógica, física, metafísica e
sente às solenidades. moral) e as que seriam aplicações dos
Mais tarde, no Discurso do Método, princípios filosóficos (medicina e juris
ele falará das esperanças e das decep prudência). Esse campo da filosofia
ções que o ensino de La Flèche lhe susci pareceu a Descartes um caos, onde as
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tomo dos comentários dos antigos (par serviam então de base para um campo
ticularmente de Aristóteles, no campo bastante limitado de aplicações (o das
filosófico) e predisposta a rejeitar e a artes mecânicas); por outro lado, embo
condenar, em nome da tradição e da ra dotadas de tão grande riqueza racio
autoridade, quaisquer manifestações de nal, elas não ensinavam nada de funda
uma nova mentalidade científica. mental para os problemas da vida, que
permaneciam obietos de especulações
A sedução das matemáticas vagas.
Em 1619, Descartes deixa a Holanda
Depois dos cursos realizados em La e viaja por vários países: Dinamarca,
Flèche e em Poitiers — e desencantado Polônia, Hungria, Alemanha. Continua
com a instabilidade e a inutilidade prá seus estudos de matemática, na mesma
tica das “letras” —, Descartes resolve época em que ingressa na confraria
procurar apenas a ciência que “poderia Rosa-Cruz, caracterizada por um misti
encontrar em mim mesmo, ou antes, no cismo de índole fortemente racional. O
grande livro do mundo”, seguindo o ano de 1619 foi, assim, marcado por
caminho apontado por Montaigne. In grande atividade científica e por uma
gressa, entãç, na carreira militar, e vai efervescência espiritual que culminaram
para os Países Baixos, onde passa a ser nos sonhos da noite de 10 para 1 1 de
vir sob o corçando de Maurício de Nas- novembro. Descartes alcançava então ó
sau, que combatia os espanhóis. Nessa desvelamento de sua missão filosófica:
época liga-se por forte amizade a Isaac certo de que existia um acordo funda
Beeckman, jovem médico, holandês apai mental entre as leis matemáticas e as
xonado pela física-matemática. leis da natureza, conclui que a ele cabe
Paralelamente à decepção causada ría a tarefa de reviver e atualizar o anti
pelas “humanidades”, Descartes já go ideal pitagórico de submeter o uni
havia sido tocado — certamente desde os verso aos números, abrindo a via para o
tempos do colégio — pela sedução das conhecimento claro e seguro de todas as
matemáticas, todos aqueles conheci coisas.
A partir de 1620, Descartes renuncia
mentos regidos pelas noções de número e definitivamente à carreira militar para
medida. “Eu me comprazia principal dedicar-se à investigação científica e
mente com as matemáticas, devido à cer filosófica. Realiza novas viagens, inclu
teza e à evidência de suas razões”, sive à Itália. Em 1627, durante sua
escreverá mais tarde no Discurso do Mé permanência em Paris, participa de um1
todo. E não sem motivo: ao contrário da debate na residência do núncio papal, e
fragilidade dos argumentos e da dissen- causa tão viva impressão que o Cardeal
são típica das íl-humanidades”, as mate de Bérulle exorta-o a se consagrar à
máticas exibiam uma construção sólida reforma da filosofia.
e clara, que a todos se impunha com a Até esse momento Descartes havia
força de demonstrações incontestáveis e escrito alguns trabalhos, dos quais só se
que atravessara incólume as crises de conhecem extratos ou os títulos, onde
pensamento instauradas pelos novos transparecem suas preocupações cientí
ventos da Renascença. A validade das ficas aliadas à influência dos temas da
proposições matemáticas parecia pairar sociedade Rosa-Cruz. Dentre esses es
acima das contigências de espaço e de critos encontram-se o Pamassus, os
tempo, sugerindo a possibilidade de Olympica, um Compendium Musicae
seguras e perenes verdades que escapas (dedicado a Beeckman), uma Álgebra, a
sem à corrosão do ceticismo. As mate Democritica e o Studium Bonae Mentis,
máticas eram a promessa de se ir além que dá início às investigações metodoló
de Montaigne. Mas, ao lado do encanta gicas de obras posteriores, como as Re
mento pelas matemáticas — estimulado gras para a Direção do Espírito (Regu-
pela comunhão com os interesses de seu lae ad Directionem Ingenii), escritas em
amigo Beeckman —, o jovem Descartes 1628. Nesse mesmo ano, fixa-se na
faz duas verificações que o surpreen Holanda, onde vive até 1649 e onde faz
dem: apesar de apresentarem solidez e vários amigos, particularmente Constan-
perfeito encadeamento, as matemáticas tin Huygens ( pai do futuro cientista
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DE LA METHODE
Pour bien conduire fã raiíbn.&r chcrchcr
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LA DIOPTRIQVE.
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Dc rimprimeric dc I a n M a i r e.
t 1 3 13 C XXXVIJ.
slnec TriHile^e.
t-ABBRI
A ambição de Descartes era a de abranger, num conjunto unitário e claro,
todos os problemas propostos à investigação cientifica. Preocupado com
óptica, tanto quanto com medicina e moral, pretendeu estender a precisão das
matemáticas aos problemas humanos. (Ilustração, de 1667, do Tratado sobre
o Homem, e frontispício da primeira edição do Discurso do Método, de 1637.)
com campo matemático, Descartes tende uma das dificuldades que se apresentem
a ver o desconhecido como um termo em tantas parcelas quantas sejam neces
ignorado, mas que será necessariamente sárias para serem resolvidas), o da sín
descoberto desde que, a partir do já tese (conduzir com ordem os pensamen
conhecido, seja construída uma “cadeia tos, começando dos objetos mais simples
de razões"’ que conduza a ele. Genera e mais fáceis de serem conhecidos, para
liza o procedimento matemático que faz depois tentar gradativamente o conheci
do desconhecido um termo relativo a ou mento dos mais complexos) e o da
tros termos (o conhecimento existente), enumeração (realizar enumerações de
e que em função destes pode ser desco modo a verificar que nada foi omitido).
berto. O importante — e que constitui o Tais preceitos representam a submissão
preceito metodológico básico que Des a exigências estritamente racionais. E
cartes aponta no Discurso do Método — justamente o que Descartes prescreve
é que só se considere como verdadeiro o como recurso para a construção da ciên
que for evidente, ou seja, o que for intuí- cia e também para a sabedoria de vida é
vel com clareza e precisão. Mas a seguir os imperativos da razão, que, a
ampliação da área do conhecimento nem exemplo de sua manifestação matemá
sempre oferece um panorama permeável tica, opera por intuições e por análises.
à intuição, e, conseqíientemente, ade De nada adiantaria afiar o gume do
quado de saída à aplicação do preceito instrumental analítico se ele, porém, não
da evidência. Eis por que Descartes pro atingisse um alvo real — é o que Descar
põe outros preceitos metodológicos com tes parece mostrar nas partes do Dis
plementares ou preparatórios da evidên curso do Método e das Meditações, em
cia: o preceito da análise (dividir cada que a exacerbação da dúvida, por via da
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DESCARTES
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OS PENSADORES
FABB.RI
Desde cedo Descartes reconhecera que um dos melhores caminhos para a ampliação
dos conhecimentos era ler “no grande livro do mundo”. No decorrer de sua
vida fez várias viagens, inicialmente em campanhas militares, depois
com o intuito de conhecer diferentes povos e países. E, afinal, acabou
morrendo na distante Suécia. (Planta da cidade de Estocolmo, gravura de 1730.)
mesmo o sumo Bem, o Sol que toma os da idéia de infinito e de perfeição (efei
objetos inteligíveis e os sujeitos capazes to). Essa idéia estaria na mente do
de intelecção, é que a ciência torna-se homem como “a marca do artista im
possível como construção clara sobre a pressa em sua obra”. Já na quinta de
realidade. E o sono se distingue da vigí suas Meditações Descartes reformula o
lia, e estar acordado, olhando os objetos argumento ontológico, forjado inicial
iluminados por esse Sol, é mais do que mente, na Idade Média, por Santo Ansel
sonhar o terrível sonho de quem sonha, mo (1035-1109), e que, antes de Descar
com perfeita concatenação de imagens, tes, fora retomado por São Boaventura
que está acordado, vendo um fictício Sol (1221-1274) e rejeitado por Santo
a iluminar objetos ilusórios. Tomás de Aquino (1225-1274). Esse
Na terceira de suas Meditações, Des argumento pretende provar a existência
cartes apresenta provas da existência de de Deus a partir exclusivamente da idéia
Deus baseadas no princípio de causali de Deus, que, como ser perfeitíssimo,
dade, como a que afirma que só exis exigiria a afirmação de sua existência —
tindo realmente Deus (causa) pode-se desde que se entenda a existência como
explicar a existência de um ser finito e uma perfeição que possa ser atribuída,
imperfeito, o eu pensante, porém dotado necessariamente ou não, a uma essência.
300
DESCARTES
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OS PENSADORES
te, criado por um ser que tudo pode. constituído a partir de idéias claras.
Mas, além disso, há napensée uma idéia Baseada primariamente no plano do
clara referente ao mundo físico — a de pensamento, a física cartesiana resulta,
extensão. Essa idéia que existe no espí assim, de construções abstratas, regidas
rito humano — como a de algo dotado de pela razão. Mas Descartes reconhece
grandeza e forma — é fundamental à que os eventos do mundo físico não são
geometria e toma provável a existência facilmente absorvidos pelas idéias cla
dos corpos. Mas, para chegar à certeza, ras ligadas por cadeias dedutivas. De
Descartes recorre novamente a Deus: se qualquer modo, porém, a física carte
à idéia clara e inata de extensão não siana mostra p mundo tal como ele se
apresenta ao intelecto: constituído ape
correspondesse uma realidade extensa, nas pela extensão, que é a essência da
isso significaria aquela inclinação fatal corporeidade.
do espírito humano para o erro, ohra de A aplicação das exigências estrita
um malin génie, mas incompatível com a mente racionais à compreensão do
idéia de um bon Dieu. Porque Deus é mundo físico leva Descartes a concebê-lo
bom é que a imagem que o homem faz de como finito e pleno: a matéria seria divi
um mundo exterior não representa uma dida em partículas perfeitamente contí
ficção de sua mente, na maior parte nuas (não existiría o vazio). Num uni
apoiada nos dados sensíveis: se Deus verso assim cheio, toda partícula que se
existe — como garantia da objetividade move só pode fazê-lo na medida em que
—, então pode-se ter certeza de que o ocupa o lugar de outra que também se
mundo físico existe. A passagem da cer move. Porém o mais importante é que
teza a respeito da existência do pensa Descartes concebe que esse movimento
mento (res cogitans) para a certeza está submetido a uma determinação tal
sobre a existência do mundo físico (res que, se nada o afetar, ele deverá reali
extensa) pressupõe, assim, o apoio em zar-se de modo retilíneo e uniforme,
Deus (res infinita). Deus serve de inter segundo o princípio de inércia. Descar
mediário entre duas certezas: a de que tes reconhece que num mundo em que,
"sou uma coisa que pensa” e a de que devido àquele princípio, as partículas
tenho realmente um corpo. O infinito que constituem a matéria deveríam
sustenta, mediando-as logicamente, mover-se retilineamente, de fato elas se
duas finitudes: a do pensamento humano movem em trajetórias circulares — o que
e a do mundo fisico. significa que o princípio de inércia é um
Definidos como substâncias perfeita- princípio geral, mas que não se efetiva
mente distintas, a extensão e o pensa nunca. Fora deste mundo é que uma par
mento coexistem, todavia, no homem tícula se moveria em linha reta e unifor
através da dualidade corpo/alma. E, memente: continuando a tradição platô
para justificar as relações entre essas nica, Descartes vê o mundo físico como
duas substâncias opostas, Descartes um caso particular de um mundo ideal,
terá que desenvolver (como faz no Trata este alcançável apenas pelo intelecto.
do das Paixões) engenhosas explicações, Também na consideração das ações
apelando para a ação intermediária do humanas Descartes reconhece que o pro
que chama de “espíritos animais”, res pósito de generalizar as exigências de
ponsáveis pelas interligações entre uma razão matemática encontra obstá
corpo e espírito. O dualismo cartesiano culos: a urgência da ação demanda a
será substituído, dentro mesmo da ver aceitação de imposições puramente fac
tente do racionalismo moderno, por ou tuais. Por isso, embora a pretensão de
tras explicações sobre a relação criar uma “matemática universal” conti
corpo/alma, dadas principalmente por vesse o ideal de uma sabedoria, guiada
Spinoza e por Leibniz. pela razão e aplicável às contingências
da vida, Descartes é compelido a propor
Uma moral provisória uma “moral provisória” — espécie de
arte de ser feliz, apesar das dúvidas que
A física cartesiana representa uma possam persistir no julgamento que se
aplicação de sua metafísica, na qual faça sobre as coisas. Essa moral reco
Deus garante o conhecimento científico menda o conformismo social, a obe-
302
DESCARTES
FAB B RI
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OS PENSADORES
diência às leis e aos costumes do país. O dúvida cartesiana, que chegou a atingir
que confirma que a formação conserva as idéias claras da matemática, jamais
dora de Descartes, fruto do meio fami se voltou para os temas políticos e
liar e social e fortalecida pela atmosfera sociais. Será necessário aguardar o sé
cultural de La Flèche, deixou marcas no culo XVIII para que, na França, em
seu pensamento. Por outro lado, mostra nome da razão analítica prescrita pelo
que o destino de Giordano Bruno e de cartesianismo, o poder político e as
Galileu sugeria uma prudência que instituições sociais sejam julgados e
pautou não apenas a vida como também condenados, em nome do ideal de uma
certos aspectos da obra de Descartes. sociedade constituída por indivíduos li
Mesmo quando ampliada ao máximo, a vres e iguais.
CRONOLOGIA
1596 — Nasce Descartes, 1620 — Renuncia à vida 1635 — Nasce Francine,
em La Haye. militar. filha de Descartes e de Hele
1606 — Entra para o colé 1622 — Volta à França. na, talvez uma criada.
gio jesuíta de La Flèche. 1623 — Viagem à Itália. 1637 — Publica o Discur
1610 — Início do reinado 1624 — O Cardeal Riche- so do Método.
de Luís XIII. O coração de lieu entra para o Conselho 1641 — Aparecem as Me
Henrique IV é transferido do Rei e logo se toma chefe ditações.
para La Flèche. desse órgão. 1642 — Morre Richelieu.
1614 — Descartes sai do 1628 — Descartes escreve 1644 — Descartes viaja à
Colégio de La Flèche. as Regras para a Direção do França.
1618 — Início da Guerra Espírito. Passa a viver na 1647 — Nova viagem à
dos Trinta Anos. Descartes Holanda. França. Encontro com Pas
vai para a Holanda, onde 1629 — Harvey, médico cal.
realiza sua instrução militar inglês, publica a obra Sobre 1648 — Descartes vai ou
sob a direção de Maurício o Movimento do Coração. tra vez à França.
de Nassau. 1633 — Galileu é conde 1649 — Descartes parte
1619 — Descartes deixa a nado pela Inquisição. para a Suécia, a convite da
Holanda, seguindo para a 1634 — Descartes renun Rainha Cristina.
Dinamarca, depois para a cia à publicação de seu Tra 1650 — Morre em Esto
Alemanha. tado do Mundo. colmo, de pneumonia.
BIBLIOGRAFIA
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Hamelin, Octave: Le Système de Descartes, Paris, Alcan, 1911; trad. esp. Editorial Losada,
Buenos Aires, 1949.
Mesnard, Pierre: Descartes, Éditions Seghers, Paris, 1966.
Gouhier, Henri: Essais sur Descartes, J. Vrin, Paris, 1949.
Brunschvicg, Leon: Descartes, Rieder, Paris, 1937.
Brunschvicg, Leòn: Les Étapes de la Philosophie Mathématique, Presses Universitaires de
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Gueroult, Martial: Descartes selon l’Ordre des Raisons (2 vol.), Aubier, Paris, 1953.
Laporte, Jean: Le Rationalisme de Descartes, Presses Universitaires de France, Paris, 1950.
Alquie', Ferdinand: La Découverte Métaphysique de 1’Homme chez Descartes, Presses
Universitaires de France, Paris, 1950.
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Chevalier, Jacques: Descartes, Plon, Paris, 1921.
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Alquie', Gouhier, Gueroult, J. Hyppolite, J. Wahl e outros: Descartes, Cahiers de
Royaumont, Les Éditions de Minuit, Paris, 1957.
304
CAPÍTULO 23
OS PENSADORES
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PASCAL
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OS PENSADORES
a família Pascal, Blaise conheceu Jac- seus hábitos, foi morar no campo, onde
ques Forton, senhor de Saint-Ange- tanto fez para abandonar o mundo que o
Montcard, com quem teve as primeiras mundo afinal o abandonou”.
discussões a respeito da Bíblia, dos dog Assim, depois do período em que pro
mas da Igreja Católica e da teologia em curou a verdade científica e a glória hu
geral. Blaise e outros jovens, seus ami mana no domínio da natureza e da
gos, logo consideraram Saint-Ange- razão, Pascal dirigiu seu interesse para
Montcard um herético pernicioso. Come as questões da Igreja e da Revelação,
ça então a fase apologética da obra de acalentando o projeto de reunir a socie
Pascal, quando ele se une aos janse- dade laica e a cristã e de combater a cor
nistas de Port-Royal, sob a influência de rupção que teria sido causada pela evo
sua irmã, Jacqueline Pascal, que havia lução dos últimos séculos. Nesse período
entrado para ó convento. Segundo o rela escreve o Memorial, obra mística, e os
to de Gilberte, Jacqueline conseguiu per trabalhos de cunho apologético Coló-
suadir o irmão de que “a salvação devia quios com o Senhor de Saci sobre Epic-
ser preferível a todas as coisas e que era teto e Montaigne e as Provinciais.
um erro atentar para um bem passageiro Na verdade, Pascal foi decisivamente
do corpo quando se tratava do bem eter marcado por um acontecimento, que
no da alma”. Pascal tinha então trinta determinou a mudança de sua trajetória
anos, quando “resolveu desistir dos espiritual: o “milagre do Santo Espi
compromissos sociais. Começou mudan nho”. O fato é narrado pela irmã de Pas
do de bairro e, para melhor romper com cal, Gilberte Périer: “Foi por esse tempo
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Da militância
ao recolhimento
O jansenismo podia propor uma atitu
de abstencionista em relação à política
porque estava constituído por pessoas
que pertenciam a um grupo social cuja
base econômica dependia diretamente
do Estado. Enquanto nobreza togada, os
BETTMANN ARCHIVE. INC.
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Racionalismo e
consciência trágica
Cruzam-se em Pascal duas histórias:
a do racionalismo e a do jansenismo, a
ciência e a apologética. No prefácio ao
Tratado do Vácuo, ele define a história
das ciências como progressão e a da teo
logia como transmissão. Os conheci
ARBORiO MELLA
mentos que dependem da razão aperfei
çoam-se com o tempo — e por isso os
modernos conheceríam mais e melhor a
física do que os antigos. As verdades da
fé, ao contrário, seriam fundadas na
autoridade e na memória; assim, numa “Quando se lê depressa demais ou
questão como a da graça, torna-se neces demasiado devagar, não se entende
sário averiguar o que pensaram São nada. ” (Pascal em seu atelier,
Paulo ou Santo Agostinho. Essa posição Biblioteca Nacional de Paris.)
conduz Pascal à crítica ao conservado
rismo de seu século: combate os físicos em si mesmo o seu fundamento. Essas
que apelam para a autoridade dos anti duas inovações liberam, no plano social,
gos e os teólogos que pretendem inven as idéias de liberdade, de igualdade, de
tar “verdades” novas. A escolástica, de justiça, mas, sobretudo, a de isolamento
um lado, e os jesuítas, de outro, susci ou de auto-suficiência individual. Tra
tam em Pascal — como em todos os gran ta-se, na verdade, de uma característica
des pensadores da época — uma atitude do Terceiro Estado — como se designava,
permanentemente polêmica. na época, a parte não privilegiada da
E, no entanto, a visão pascalina é uma nação francesa (as duas ordens privile
visão trágica, que não se concilia com o giadas da sociedade eram a nobreza e o
racionalismo expansionista típico de seu clero, enquanto essa terceira ordem era
tempo. Cartesiano pelo método, Pascal é constituída por burgueses, artesãos,
um anticartesiano resoluto pelas idéias. operários e camponeses). Explica Lucien
A física, ao destruir o cosmo e geome- Goldmann: “Em vez de uma sociedade
trizar o espaço, construiu a imagem de hierarquizada, na qual cada homem pos
um universo infinito; a filosofia, por sua suiría seu lugar próprio, diferente de
vez, propôs um método cuja garantia todo outro homem, segundo o ofício ou a
seria a própria correção do ato de pen categoria social, e onde cada um julgava
sar. Com isso elas destruíram duas o valor de seu lugar comparando-o com
noções medievais: a de mundo e a de o dos demais, o Terceiro Estado desen
comunidade. Em seu lugar surgiram a volveu progressivamente indivíduos iso
de espaço infinito e a de indivíduo racio lados, livres e iguais, três condições ine
nal. O mundo, de um lado*, não apresenta rentes às relações de troca entre
mais hierarquia, enquanto o conheci vendedores e compradores”. Nesse isola
mento, de outro lado, tem de encontrar mento é que Pascal enfrenta os espaços
316
PASCAL
FABBRI
“Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total. . . Sente então seu
nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu
vazio. Incontinentesubirá do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a
tristeza . . . ” (Luís XIII no Teatro, Museu de Artes Decorativas de Paris.)
infinitos, o infinito em grandeza e o infi fator importante da vida humana, um
nito em pequenez. fator de que o homem pode se orgulhar;
O mecanicismo e o racionalismo esva mas ela não seria todo o homem, nem
ziaram a noção de mundo fisico e de deve e nem pode ser suficiente para a sua
comunidade humana e explicaram a vida, mesmo no plano da investigação
natureza e a sociedade através de leis científica. Por isso Pascal retoma ao que
naturais; com isso, esvaziaram também o racionalismo havia abandonado: à
os problemas do bem e do mal e a neces moral e à religião — esta no sentido
sidade de o homem encontrar um apoio amplo de fé num conjunto de valores
exterior a ele. Deus não mais podendo transcendentes ao indivíduo. Mas essa
falar aos homens por intermédio do volta não significa a recriação da noção
mundo, abandonou-o, escondeu-se. O antiga de comunidade: a moral e a fé
“Deus dos filósofos” apresenta-se ape pascalinas são a moral e a fé do homem
nas como uma hipótese, um artificio solitário, do homem perdido em busca
para provar, como em Descartes, a exis de apoio. O individualismo marca Pas
tência do mundo: é um puro conceito cal como marcou os outros raciona-
teórico. Opondo-se a essa concepção listas, só que para estes o indivíduo
generalizada em seu século, o jansenista constituía uma fortaleza racional, en
Pascal desenvolve uma consciência trá quanto para Pascal ele seria um abismo
gica: reconhece tudo o que havia de pre de miséria e de fraqueza.
cioso e de definitivo no novo conheci A consciência trágica faz de Pascal
mento científico e, simultaneamente, um filósofo do paradoxo: afirma que a
recusa-se radicalmente a considerar este verdade é sempre a reunião dos contrá
mundo como a única perspectiva para o rios e que o homem é um ser paradoxal,
homem. Considera a razão como um ao mesmo tempo grande e pequeno,
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SNARK INTERNATIONAL
Além de filósofo e pensador religioso, Pascal foi matemático, físico experimental e
cientista prático, tendo inventado a máquina de calcular,
que se vê acima (Museu de Artes e Ofícios, Paris), precursora das atuais.
Na mesma época, outros tiveram a mesma preocupação e construíram as máquinas
vistas em detalhe na página seguinte: em cima, a de Tito Lívio Burattini
(Museu de História da Ciência, Florença) e a de Samuel Morlando, embaixo.
fraco e forte. Grande e forte porque ría um ponto fixo, a partir do qual as
nunca abandona a exigência de uma ver coisas passam a existir: Deus. Haveria
dade e de um bem puros, sem mistura também um ponto fixo a partir do qual
com o falso e com o mal. Pequeno e fraco as idéias passam a ter existência: o
porque jamais pode chegar a um conhe sujeito racional. Para Pascal, todavia, é
cimento ou produzir uma ação que impossível encontrar o ponto fixo das
alcance plenamente esses valores. O pen coisas e das idéias, embora “ardamos de
samento de Pascal é trágico justamente desejo de encontrar uma base constante
porque assume esse “tudo ou nada”, que e um ponto seguro”. Para exprimir sua
proíbe o abandono da busca dos valores visão de um universo e de um homem
e, no entanto, proíbe qualquer ilusão marcados pelo dilaceramento e pelo
quanto aos resultados alcançados pelo paradoxo, Pascal utiliza a imagem dos
esforço humano. dois infinitos e a do círculo cujo centro
Para o racionalismo clássico tudo o está em toda parte, enquanto a circunfe
que existe e tudo o que o homem conhece rência não está em nenhuma. A essas
têm uma causa ou uma razão que deve imagens acrescenta uma terceira: a da
ser encontrada; a totalidade das coisas e balança cujos braços são infinitos e pen
a totalidade das idéias teriam, portanto, dem incessantemente para um e para
um fundamento real e indubitáveL Have outro lado, sendo impossível fixá-la ou
318
PASCAL
As razões do coração
Ao contrário de Descartes, que busca
um método universal. Pascal fala em
métodos: para cada problema preciso
deve-se elaborar o método preciso para
resolvê-lo. Haveria, assim, tantos méto
dos quantos os problemas a resolver. A
particularidade da questão exige a
particularidade do instrumento capaz de
resolvê-la, e esse renovado esforço de
invenção é que caracterizaria o matemá
tico, cujo talento residiria justamente
em descobrir as noções e os princípios
úteis à resolução dos diferentes proble
mas. () descobrimento das relações entre
as figuras não dependería, portanto, de
um método '■‘■democraticamente” comu
nicável a todos (como em Descartes),
mas de certo talento, de certo espírito
que muito poucos possuem: o espírito
geométrico.
Mas o espírito de geometria não cons
titui, para Pascal, a totalidade do espí
rito científico. Quando se faz expe
riência em física, verifica-se que na
determinação de cada fenômeno entra
grande número de princípios. Na física
deve imperar, portanto, outro tipo de
espírito: o espírito de justeza. Todavia,
há casos em que o cientista não traba
lha, nem pode trabalhar, com princípios.
Então — como no caso do estudo do
PHOTO RESEARCHERS. INC
3I9
OS PENSADORES
“Não sei quem me pôs no mundo; nem o que é o mundo, nem o que sou eu mesmo;
vivo numa terrível ignorância acerca de todas as coisas; não sei o que é o
meu corpo, o que são meus sentidos, a minha alma e essa parte mesma de mim
que pensa o que digo, que medita sobre tudo e sobre ela própria, e não se
conhece mais do que o resto.” (Pascal, Biblioteca Nacional de Paris.)
320
PASCAL
os. porém, com entusiasmo. Sua idéia a humanidade: Jesus Cristo. Embora
fundamental é a do ajustamento do espí venha de fora do humano e seja ininteli
rito ao domínio dos objetos de que se gível para os critérios humanos, só a
ocupa. Assim, um espírito que é '■‘■corre religião seria capaz de esclarecer o mis
to” num domínio poderá tomar-se “falso tério do homem.
e insuportável” noutro. Pascal tem horror aos princípios
O tipo peculiar de espírito do homem considerados válidos para tudo e para
comum é um talento que nada tem a ver todos. Detesta tanto a casuística dos
com os raciocínios e as observações dos jesuítas quanto a filosofia de um dos
cientistas. () homem comum sente mais seus discípulos, Descartes, as quais
do que raciocina. Ele pensa, mas pensa através de princípios universais afinal
espontaneamente, naturalmente, tacita- não explicam nada. Os princípios pode
mente. Está dotado de um espírito muito ríam ser universais se e somente se o
diferente do geométrico: o espírito de homem pudesse alcançar os primeiros
finura, que consiste principalmente em princípios de tudo o que existe — mas a
.“ver a coisa de uma só vez e não por pro natureza humana não tem essa força.
gresso do raciocínio”. Trata-se do espí Nos Pensamentos Pascal escreve: “O
rito intuitivo, que apreende num só homem é, na natureza, nada com relação
lance. ao infinito, tudo com respeito ao nada:
Pascal separa aquilo que Descartes um meio entre o nada e o tudo”. Eis por
unira: a unidade do método. Entretanto, que o homem pode conhecer alguma
de outro ponto de vista, compara e apro coisa de si e dos outros seres, mas não
xima, pois considerando, embora, que o deve esperar conhecer o princípio e o fim
valor de um “espírito” consiste em sua deles e de si próprio.
aptidão para resolver os problemas de Como usar, então, certos conheci
seu próprio domínio, pondera que esti- mentos como princípios para outros?
má-lo apenas por esse valor é julgar Qual a faculdade que permite ao homem
somente como especialista. Além disso, fazer isso? Pascal diz que é o “coração”.
acha Pascal, é necessário também julgar Mas não se trata dos sentimentos, pois,
o que aquele “espírito” vale para o ao contrário, as paixões impedem o
homem como homem. E novamente aqui homem de se conhecer e de se salvar;
Descartes e Pascal se separam: para o trata-se de um tipo peculiar de inteli
primeiro todas as ciências servem para gência, que Pascal opõe à razão dos
fortificar o juízo porque seriam uma racionalistas. A razão é o conhecimento
inteligência única a utilizar um único discursivo, demonstrativo, que funciona
método; para Pascal a especialidade extraindo conclusões de certas premis
prevalece e para que um espírito seja sas dadas. O coração, essa forma singu
fecundo é preciso que seja exclusivo em lar de inteligência, seria, ao contrário, o
seu domínio. Afirma: “E raro que os geô- conhecimento imediato e intuitivo dos
metras tenham finura e é raro que os princípios. Assim, seria o coração que
dotados de finura sejam geômetras”. alcança os axiomas da geometria, ou
Desse modo, segundo Pascal, somente que Jesus Cristo é o mediador entre o fi-
a religião Lería resposta no que tange à . nito e o infinito: o coração é a intuição
vida humana. Aqui o espírito de geome dos princípios indemonstráveis. Ao dizer
tria nada pode fazer. Mas, assim como que “o coração tem razões que a razão
em geometria e em fisica cada problema desconhece”, Pascal não está afirmando
exige que se encontre uma solução que que os sentimentos e a inteligência se
lhe é peculiar, recorrendo não aos pró opõem. Está mostrando que há no
prios dados dos problemas, mas a certas homem duas maneiras de conhecer: o
relações exteriores a eles e, todavia, conhecimento intuitivo e imediato de
capazes de resolver a questão, também uma verdade (p. ex„ que o espaço tem
no problema do homem a solução deve três dimensões) e o conhecimento discur
ser particular e não é fornecida pelos sivo ou mediato de uma realidade (p.
próprios dados da existência humana, e ex., que a quarta proporcional é encon
sim por algo exterior a ela e que, no trada pela operação com os outros três
entanto, seria o único capaz de justificar elementos dados). A fé seria um con/iecí-
321
OS PENSADORES
mento do coração — e por isso Pascal nem que Deus não existe, já que não se
critica os filósofos que pretendem de pode provar que haverá ou não salvação
monstrar ou desacreditar as verdades da eterna — só se pode apostar. Mas ao
fé por meio da razão, que nada tem a ver apostar, deve-se levar em conta as per
com ela, do mesmo modo que o espírito das e os ganhos; assim, se se aposta que
de geometria nada tem a ver com o de Deus não existe, e se ele existir, está-se
finura. O Deus dos filósofos não é o Deus perdido; se se aposta que Deus existe, e
da fé: não é Deus. ele não existir, nada acontece. Deve-se
então apostar na existência de Deus,
O Deus escondido pois a condição humana é risco, perigo
de fracasso e esperança de vitória: o
As Provinciais foram escritas por Pas homem sente que Deus existe quando
cal na fase em que, militante, defende a experimenta cruelmente sua ausência.
concepção jansenista da graça, do mila O Pascal apologeta não lê as Escritu
gre, da razão e da fé. Já no período final ras para demonstrá-las, mas para mos
de sua vida, a partir de março de 1657, é trar que somente nelas existe aquela
marcado pela submissão exterior aos religião que corresponde completamente
poderes políticos e eclesiásticos, embora às necessidades do homem. A única
interiormente os recuse através do recur prova das verdades religiosas é, para
so ao paradoxo, à tragédia e a Deus. ele, a revelação, e Deus — fonte dessa
Nessa fase — que é a dos Pensamentos —, revelação — é a única autoridade. Por
Pascal aproxima-se da posição dos isso os Pensamentos partem de verdades
jansenistas do retiro completo, da visão reveladas referentes ao destino sobrena
trágica da vaidade do mundo e dos tural do homem e à mediação de Cristo.
homens. Os jansenistas das duas tendên Se as provas aqui fossem como as
cias tinham em comum o postulado do geométricas, a apologética seria inútil,
Deus escondido, isto é, da distância pois as provas religiosas — milagres e
insuperável entre Deus e o homem. Mas profecias — são inúteis para o incrédulo.
os militantes e o Pascal das Provinciais Nelas Deus se revela ocultando-se, e, por
acreditavam que Deus deu ao homem os isso, só a fé as alcança. E a fé depende
meios de conhecer as verdades essen da graça, não do raciocínio. Dirigindo-
ciais por meio da luz natural e das se ao incrédulo, é necessário empregar
Escrituras, e se algumas vezes o homem provas, mostrar que a religião cristã é a
as ignora é por uma depravação da von única que pode levar o homem a
tade e por viver fora dos quadros da compreender a si mesmo. Mas as provas
Igreja. Já os jansenistas trágicos e o não são provas da verdade religiosa,
Pascal dos Pensamentos acreditam que mas um estímulo para que o incrédulo
a incerteza recobre tudo e que a vida venha a crer.
cristã é um misto de esperança e tremor. Para Pascal, o ponto de partida para
Deus se esconde irremediavelmente e se subir à fé é o autoconhecimento. Os
não há Graça que o torne manifesto ao estóicos e Descartes teriam, portanto,
homem. Deus tendo abandonado o entrevisto uma parte da verdadeira natu
mundo e a Igreja, o homem só pode ser reza humana. Montaigne (1533-1592)
um miserável pecador. No terceiro pe também teria tido razão ao apontar a
ríodo de sua vida, Pascal vive assim o fraqueza e a debilidade do homem, do
paradoxo de ter de se submeter ao poder homem sempre enganado por sua imagi
monárquico e eclesiástico, e de dedicar- nação, volúvel e escravo da opinião pú
se aos trabalhos científicos, ao mesmo blica, sujeito às doenças e à morte. Mas
tempo que admite a incerteza radical de isso seria também apenas uma parte da
tudo. Assume então o paradoxo janse natureza humana. Esta, para Pascal, é a
nista do “pecador justo”, do homem que unidade paradoxal e trágica daquelas
vive simultaneamente na recusa e na duas verdades contrárias. O homem é
aceitação do mundo. Desse modo é que uma incoerência e essa incoerência é trá
se deve compreender a famosa “aposta” gica, porque não se oferece ao próprio
que aparece nos Pensamentos: já que homem como um quadro que ele pode
não se pode provar nem que Deus existe, contemplar com indiferença: ao contrá-
322
PASCAL
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OS PENSADORES
CRONOLOGIA
BRASIL
saio sobre as Cônicas, pri itci — Ãsorre o pai de Grandes.
meira obra de Pascal. Pascal a 24 de setembro. 1662 — Pascal obtém pa
164 5 — Publicação da Car 1653 — Pascal redige o tente para exploração de
-SÃO PAULO
ta Dedicatória a Monsenhor Tratado do Equilíbrio dos uma empresa de transportes
Chanceler acerca dj. va Licores e Tratado da Gravi coletivos; morre a 19 de
Máquina (Aritmética; )n- dade oa Mass i de Ar. agosto.
ver.iada pelo Sennor Blaise 1655 - Pascal redige o Co- 1670 — Primeira edição
Pascal. lóquio de Pascal com o Se dos Pensamentos de Pascal.
-
E INDUSTRIAL
BIBLIOGRAFIA
Pascal: Pensame.Aos, tra i. Sergi.- Milliet; Les írovinciales, in Oeuvres Complètes, Éditions
du Seuil, Paris, 196".
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CAPÍTULO 24
ESPINOSA
OS PENSADORES
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ESPINOSA
Espinosa foi marcado, desde suas origens remotas, por uma formação étnica e
culturalfeita de elementos contraditórios. Suafamília era judia efoi
obrigada a converter-se ao cristianismo em Portugal. Depois, emigrou para
os Países-Baixos, e ofilósofo integrou-se na cultura holandesa. (Jakob van
Ruysdael (1628-1682): Cemitério Hebraico-Português; Pinacoteca de Dresde.)
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conhecem a fundo e, embora desco dade judaica julgava ter saído do bom
nheçam o essencial, estão convencidos camirlho, por influência de Juan dei
de que conhecem muito bem todas as Prado.
matérias”. Ainda segundo Oróbio, esses Espinosa tem então 24 anos e é cha
elementos arrogantes e orgulhosos mado pelo talmudista Morteira, chefe
negam a verdade das Escrituras e do espiritual da comunidade e diretor da
Deus nelas revelado, substituindo-o por Academia da Coroa e da Lei, a fim de
um Deus-Natureza. Negam a fé, só acei que se retrate. Espinosa recusa-se e a
tam o poder natural da razão e, portan convocação passa a ser feita em nível
to, negam os milagres. Negam que haja superior, pela própria Sinagoga de Ams
um povo eleito e perguntam por que terdam. As autoridades o submetem a
Deüs não se teria dado a conhecer a intenso e malicioso interrogatório, cuja
todos os homens. Oróbio acusa explici finalidade é mostrar seu ateísmo. Antes
tamente o médico Juan dei Prado como que a Sinagoga se visse compelida a
herege, mas a acusação visava sobre excomungá-lo, Espinosa toma a inicia
tudo ao jovem Espinosa, que a comuni tiva de afastar-se e redige o opúsculo
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ESPINOSA
Apologia para Justificar uma Ruptura aprendeu a polir lentes para lunetas.
com a Sinagoga, atualmente perdido. Saiu-se tão bem no oficio que a clientela
aumentou rapidamente, fornecendo-lhe o
O partido da liberdade suficiente para viver.
A mais importante das consequências,
A exclusão da comunidade judaica foi contudo, foi sua integração na vida cul
seguida por outras transformações na tural holandesa, no momento em que os
vida de Espinosa. Como por essa época Países-Baixos viviam seu século de
as finanças da família não iam hem, os ouro. O novo Estado holandês fundava-
irmãos e cunhados viram na excomu se na liberdade burguesa, entendida
nhão um bom motivo para deserdá-lo e como liberdade de empresa e liberdade
afastá-lo dos negócios familiares. Espi de consciência. Valorizava-se a ativi
nosa não se abalou e procurou uma ocu dade econômica e promovia-se a tole
pação que resolvesse o problema da rância religiosa, pois as barreiras con
subsistência. Pondo em prática uma fessionais apresentavam-se como
regra de vida dos antigos sábios judeus, empecilho para o intercâmbio comer
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ciai. A Igreja Romana, com seus tribu integração na cultura holandesa se fez,
nais, sua fiscalização, sua intolerância, assim, no momento de maior intensidade
aparecia aos burgueses da Holanda dos conflitos sócio-econômicos, caracte
como manifestação de sua dependência rísticos dos Países-Baixos, e na fase de
em relação a um poder estrangeiro e maior esplendor da vida intelectual e
contrário a seus interesses vitais. A alta artística da nação.
burguesia adotou então o calvinismo em
sua forma liberal, também chamado Um homem do mundo
evangélico ou libertino e que se opunha
ao calvinismo ortodoxo. Os libertinos Dentro desse panorama, após a exco
defendiam a tolerância em matéria de munhão em 1656, Espinosa abandonou
religião, afirmavam a supremacia do os estudos judaicos e penetrou no huma
poder civil sobre a autoridade religiosa nismo clássico. Aprendeu latim e um
e declaravam que esta não tinha direito pouco de grego com Franz Van den
de legislar em assuntos de fé e de moral. Enden, ex-jesuíta, médico, filólogo e
Opunham-se, assim, aos ortodoxos, par livreiro, que em 1648 tentou a paz entre
tidários da dominação do Estado pela os Países-Baixos e a Espanha, em 1650
Igreja e que condenavam o desenvolvi ofereceu-se a Johannes de Witt para
mento econômico como contrário à Bí lutar contra a Inglaterra e, em 1654, foi
blia. O calvinismo ortodoxo foi, em enforcado pelos franceses depois de par
geral, adotado por todas as classes e ticipar de um complô de alta traição.
camadas sociais prejudicadas com o Com esse mestre, Espinosa leu obras de
desenvolvimento da economia mercante Terêncio, Tácito, Tito Lívio, Petrônio,
e com a nascente indústria. Ortodoxos Virgílio, Sêneca, César, Salústio, Mar
eram, assim, os camponeses pobres, cial, Plínio, Ovídio, Cúrcio, Plauto e Cí
artesãos, marinheiros, operários portuá cero. Dos gregos, leu Diofanto, Aristóte
rios e a nobreza, constituindo todos a les, Hipócrates, Epiteto, Luciano,
clientela da Casa de Orange. Homero e Euclides.
O conflito entre as duas tendências Na mesma época, Espinosa estuda a
opostas explodiu abertamente após o filosofia de Descartes, sobre o qual
tratado de vestfália (1648). As Provín escreverá, em 1663, os Princípios da
cias Vnidas haviam participado da Filosofia Cartesiana. O peso do cartesia-
Guerra dos Trinta Anos, ao lado da nismo sobre Espinosa é, na verdade, o
França contra a Espanha, e assinaram peso do novo racionalismo do século
um tratado de paz em separado, o que XVII; é a confiança no poder da razão
abria as portas das colônias espanholas tanto nos domínios da teoria, quanto na
para o comércio holandês, satisfazendo ação prática e que começou pela necessi
portanto aos interesses da burguesia. A dade de elaborar as noções de método,
Casa de Orange, ao contrário, desejava a de verdade e, a partir delas, as noções de
continuação da guerra, sem a qual sua ser e de ação.
existência não tinha sentido. Firmada a Os. calvinistas libertinos eram favorá
Eaz, o poder passou a ser ocupado pela veis ao cartesianismo. Entre eles, for-
urguesia e pela ala calvinista libertina. mou-se o grupo dos colegiantes (inte
Seu maior representante era Johannes de grantes do Coílegi Prophetica), entre os
Witt, eleito Grande Pensionário em quais se encontrava a maior parte dos
1653, permanecendo até 1672, quando amigos de Espinosa. Os colegiantes
foi assassinado e a Casa de Orange reto dedicavam-se especialmente ao estudo
mou o poder. da Bíblia e da nova filosofia; foram eles
Espinosa, amigo de Witt, viveu inten os primeiros a ler o manuscrito da Ética,
samente todo o conflito. Partidário de redigida por Espinosa a partir de 1661.
sua política e horrorizado com o crime, Além dos amigos colegiantes, Espi
quis pregar nas paredes de Amsterdam nosa relacionava-se com muito mais
um cartaz que dizia “Últimos dos Bár gente dos círculos culturais holandeses.
baros”, mas foi impedido por um amigo. Não é verdadeira, portanto, a imagem
Durante esse período, Espinosa escre muito difundida, segundo a qual teria
veu a maior parte de suas obras e sua sido uma espécie de eremita, solitário,
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Afirmou Espinosa: “O desejo é a própria essência do homem, enquanto concebida
como determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada . . . A
alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior . . . A
tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor. ”
(Amsterdam, por Jakob van Ruysdael; Museu Fitzwilliam, Cambridge.)
que não crê em Deus, mas o “que não crê trágico, como o autor dos Pensamentos.
no nosso Deus”. Ateu é menos uma Para Espinosa, uma consciência dilace
designação religiosa do que política e rada por paixões contrárias e atônita
refere-se ao homem que concebe Deus diante do infinito jamais alcançará a
contra a concepção tradicional e, por verdade nem se sentirá unida a Deus,
tanto, abala o edifício da religião e do isto é, à Natureza. Não é possível sentir
Estado que se sustenta nela. alegria e amor sob as ruínas da razão.
Comparado com os outros filósofos do No autor da Ética não há tragédia,
século XVII, Espinosa distingue-se pelo nem há mistério; ao contrário, confiança
racionalismo absoluto. Descartes e plena na razão, capaz não só de conhe
Leibniz, por exemplo, a despeito de seu cer, mas de fazer o homem trilhar o
racionalismo, deixam permanecer misté caminho das paixões positivas, a alegria
rios subjacentes ao conhecimento racio e o amor.
nal, enquanto Espinosa procura desfazer
a própria noção de mistério e não apenas A correção do intelecto
os conteúdos misteriosos. A filosofia,
para Espinosa, é conhecimento racional Os instrumentos de trabalho utiliza
de Deus, da Natureza e da união do dos por Espinosa no combate ao irracio-
homem com a Natureza, isto é, com nalismo e à superstição foram dois: o
Deus. O Deus espinosano não é o Deus método histórico-crítico e o método
Escondido de Pascal; Espinosa não é um genético. O primeiro serviu-lhe para
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adequação. Com Espinosa o raciona o seu próprio fim, ou seja, entre o ato de
lismo ocidental descobriu a imanência produção e o produto não há distância a
da verdade ao objeto, graças à demons separá-los, são uma só e mesma coisa.
tração da gênese do objeto. Não são Separar o produtor do produto é aceitar
necessários critérios para a verdade; é a incompreensibilidade divina, o misté
ela que julga o falso, e não o contrário. rio da criação e o mistério da natureza.
A Ética de Espinosa constitui a mais É ser vítima da superstição. É ter uma
completa aplicação dessa nova teoria da compreensão alienada da produção, pois
verdade. O autor procura mostrar de que ao separar o produtor do produto, este
modo Deus se produz a si mesmo, às coi não permite mais identificar seu produ
sas e ao homem, demonstrando que esse tor e o homem passa a imaginar o produ
modo de autoproduçào é o próprio modo tor possível, acabando por chegar ao
de produção do real. Com isso, Espinosa Deus voluntarioso, que tudo governa
elimina a principal idéia sustentáculo da para e segundo seus caprichos.
teologia e da filosofia cristãs: a idéia de A Ética é uma ontologia universal,
criação, isto é, de um Deus preexistente uma lógica e uma antropologia, lima
que tira o mundo do nada. A expressão ontologia universal, porque é a teoria do
Deus ou Natureza, encontrada a todo Ser; uma lógica, porque a teoria do Ser é
passo da Ética tem vários significados: a explicitação da inteligibilidade deste
1) o ato pelo qual Deus se produz é o ato Ser; uma antropologia, porque define o
pelo qual produz as coisas; 2) Deus é a ser. humano. Se conhecer é conhecer pela
causa de si mesmo e das coisas como causa, o homem só poderá ser conhecido
causa imanente e não transcendente; 3) a se forem explícitas as causas de sua
produção divina não visa a fim algum, é essência, de sua existência e de sua
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que existem entre elas. O conhecimento que Deus é matéria e não um puro espí
deve, portanto, partir do incondicionado rito como sempre foi afirmado pela teo
rumo àquilo que é determinado por ele — logia e pela filosofia. Além disso, o dua
ou seja, deve partir de Deus. lismo cartesiano das substâncias é
O livro I da Ética trata, portanto, da abolido, pois pensamento e extensão não
essência de Deus, demonstrando que são substâncias ao lado da substância
nela há uma identidade absoluta com a infinita, mas atributos de uma única
existência e com a potência. Deus é a substância. Espinosa amplia até o ponto
Substância, ou seja, o Ser que é causa de extremo a idéia de total homogeneidade
si, que existe em si e por si, que é conce entre Deus e Natureza e, portanto, das
bido em si e por si e que é constituído leis divinas e naturais. Por outro lado,
por infinitos atributos, infinitos em seu ao afirmar que o pensamento é um atri
gênero e cada um deles exprimindo uma buto de Deus, afirma a total inteligibi
das qualidades infinitas da substância. lidade do real, não podendo haver nada
Desses atributos conhecemos dois: o que deixe de ser compreensível. Entre
pensamento e a extensão. Do livro I outras coisas, esta afirmação destrói
devem ser destacadas as principais teses definitivamente a noção de milagre e de
da ontologia espinosana: vontade divina. A vontade de Deus é
1) A substância é causa de si mesma. idêntica à necessidade e inteligibilidade
Tal afirmação não significa, como na das leis com que produz a realidade.
teologia cristã e na filosofia cartesiana,
dizer que Deus é incausado, mas é dizer
que Deus é autoprodutor. Corpo e alma
2) A substância é causa de si do
mesmo modo que é causa das coisas. Nos quatro livros seguintes da Ética,
Isto significa que o ato pelo qual Deus se Espinosa examina a produção e produti
produz é o ato pelo qual ele produz a vidade da natureza humana não como se
totalidade da natureza. A causa de si é esta fosse uma substância criada pela
causa imanente. Fica abolida a idéia de substância divina, mas como um modo
criação. da substância Única e infinita. O modo é
3) Deus é causa eficiente e não causa a modificação da substância através de
final da realidade. A causa final é uma seus atributos. Assim, o corpo é um
pura projeção antropomórfica na nature modo da extensão e a alma é um modo
za. Os homens estão habituados a consi do pensamento. A natureza humana re
derar que fazem as coisas com um deter pete de maneira finita a mesma estru
minado fim e consideram a ação divina tura que possui a substância infinita. A
também submetida à finalidade. Neste alma é idéia do corpo. O corpo é uma
caso, de duas uma: ou Deus age em vista máquina complexa de movimento e de
de um fim diferente dele próprio e há, repouso composto por corpos menores,
portanto, algo mais perfeito ou superior que por sua vez são máquinas de movi
a Deus a que ele visa atingir quando pro mento e de repouso. É pelo corpo quê
duz as coisas — isto é, obviamente, um tomamos contacto com a realidade ex
absurdo. Ou, então, Deus age tendo tensa exterior, isto é, com os demais cor
como fim sua própria satisfação, o que pos, com os quais interagimos. A alma,
significa que Deus precisa das coisas idéia do corpo, não é um reflexo do
para tornar-se satisfeito, isto é, com corpo, mas a consciência do corpo e de
pleto e perfeito — o que é um absurdo sua inteligibilidade, bem como a de ou
ainda maior. A causa final, ao antropo- tros corpos. Corpo e alma são totalmente
morfizar Deus, destrói a divindade como individuais — são individuais no plano
ser infinito e, portanto, Absoluto. Faz da existência e no plano da essência. Por
dele um ser carente que procura fora de isso Espinosa repele a tentativa de escla
si mesmo aquilo que possa completá-lo. recer o que seja a natureza humana pela
A finalidade é um verdadeiro delírio. comparação dos homens entre si. Na
4) O pensamento e a extensão são carta n.° 21, a Blyenbergh, Espinosa
atributos infinitos de Deus. Esta tese é a considera que é um absurdo dizer que
mais chocante: com ela Espinosa afirma um cego é imperfeito ou menos perfeito
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do que um vidente. O cego seria imper nem as idéias são causa dos movimentos
feito se a visão fizesse parte de sua do corpo. Alma e corpo exprimem no seu
essência e ele estivesse privado dela. modo próprio o mesmo evento. O indiví
Ora, a cegueira não é ausência de visão, duo é uma estrutura: isto é, uma organi
mas uma forma diferente de existir. A zação determinada de partes relacio
essência é sempre singular e nunca che nadas necessariamente entre si e esta
garemos a ela se procedermos por organização e relacionamento são inteli
comparação. Pela mesma razão, não é gíveis. Desta maneira, Espinosa critica o
comparando por semelhança e diferença mecanicismo cartesiano: o indivíduo é
que saberemos o que um homem é. “Ob uma máquina complexa no sentido de
servando a existência de vinte homens, que essa máquina é um organismo ou
não saberei o que é a essência de um uma estrutura e não uma soma ou justa
homem, pois o número vinte nada tem a posição de partes exteriores umas às
ver com a essência singular de cada outras. Há uma unidade e uma inteligi
um.'” Espinosa recusa a indução e a bilidade intrínsecas e que constituem a
quantificação como formas para conhe essência de um modo singular. Vemos
cer o homem. dessa maneira como a causa divina
A relação entre a alma e o corpo não é enquanto causa imanente vem reapare
ada ação e da paixão — a alma ativa e o cer integralmente no modo, de sorte que
corpo passivo; nem a obscura relação o mecanicismo fundado numa casuali
cartesiana de uma ação recíproca do dade externa é substituído por um
corpo sobre a alma e vice-versa. A rela “mecanicismo,, fundado numa casuali
ção espinosana é uma relação de corres dade interna. Esta transformação é
pondência ou de expressão. Espinosa fundamental para compreender a teoria
foge de uma explicação de tipo mecani- espinosana das afecções da natureza hu
cista: o corpo não é causa das idéias, mana — isto é, das ações e paixões da
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CRONOLOGIA
u
1632 — Baruch de Espino Conselho dos rabinos publi tripla aliança com a Ingla a
a
sa nasce em Amsterdam. ca o mandado de excomu terra e a Suécia, impedindo I
1639-1650 — Frequenta os nhão de Espinosa. uma invasão francesa. C
cursos da nova escola judai 1660-1663 — Espinosa en- 1670 — Espinosa publica,
ca, onde aprende o hebreu. contra-se em Rijnsburg (su anonimamente, o Tratado Q
1646-1650 — Espinosa pre búrbio de Leyde). Aí escreve Teológico Político. É obri C
»<
para-se talvez para o rabina- o Breve Tratado, o Tratado gado a sair de Voorsburg e u
1654 — Segunda guerra en Inglaterra. Luís XIV con 21 de fevereiro. Em novem a
tre a Holanda e a Inglaterra quista os Países-Baixos es bro é publicada a maior par a
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Na época em que John Locke escreveu suas obras, Londres era uma das maiores
cidades da Europa, com uma população estimada em quinhentos mil
habitantes. Grande parte dessa população vivia de atividades manufature iras e
ligava-se ao extraordinário surto do comércio com as colônias. Tela de John
Griffier (1656-1718) mostra o porto de Londres. (Galeria Sabauda, Turim.)
rologia até a teologia. Finalmente, optou para fazê-lo ingressar nos círculos polí
pela medicina como atividade profissio ticos da Inglaterra. Em 1666, Locke tor-
nal. Datam dessa época suas amizades nou-se médico de Anthony Ashley Coo
com Robert Boyle (1627-1691) e Tho- per (1621-1683), posteriormente lorde e
mas Sydenham. O primeiro, repudiando primeiro conde de Shaftesbury. Como
a teoria aristotélica dos quatro elemen obteve sucesso no tratamento, Ashley o
tos (água, ar, terra e fogo), foi o pri empregou como médico particular e aca
meiro a formular o moderno conceito de bou por atribuir-lhe outras funções,
elementos químicos. O segundo revolu como a de seu assessor. Locke partici
cionou a medicina clínica, abandonando pou, assim, da elaboração de uma cons
os dogmas de Galeno (130-200) e outras tituição para a colônia de Carolina,
hipóteses especulativas e baseando o situada na América do Norte. Em Exeter
tratamento das doenças na observação House, residência de lorde Ashley em
empírica dos pacientes. Locke integrava, Londres, Locke convivia com os mais
assim, o círculo daqueles que valori altos círculos intelectuais e políticos da
zavam a experiência como fonte de época. Nesse período começou a escrever
conhecimento, e sua obra posterior siste uma de suas obras principais, o Ensaio
matizaria a filosofia empirista. Nesses sobre o Entendimento Humano, na qual
anos, redigiu uma pequena obra em trabalharia durante quase vinte anos.
latim, Ensaios sobre a Lei da Natureza. Com a rápida ascensão de lorde
Embora fortuitamente, sua dedicação Ashley, multiplicaram-se suas ocupa
à medicina experimental também serviu ções políticas. Em 1672, lorde Ashley
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FAB B RI
No período em que aumentou o número de perseguições aos adversários da
política absolutista do rei Carlos II, muitos ingleses procuraram refúgio na
Holanda, onde se gozava de real liberdade intelectual e religiosa.
O filósofo John Locke foi um deles, tendo permanecido por seis anos naquele
país. (A. Cuyp: vista do porto sobre o rio Maas, em Dordrecht, Holanda.)
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CHYMISTA SCEPTlCVSs
VE L,
DVBIA ET PARADOXA
CH YMICO-PH YSICA j
ÍTM Sr A c y * I c O * V M Principia,-Vllt/fi ia« Hy T O » T A T1C A,
PramfnfoK! Crfnfupuriftlnt i Turít
ALCHYMISTARUM-
Caw Pars pr&útm>ir
Alteriuicujufdam Diflcitationii ad idem Argutncntum (peólans.
•4J Htntrtúfíun»
ROBERTO BOYLE
Nobili Anclo, è Sociitati Rxgia.
FABBRI
No século XVII houve grande desenvolvimento das ciências experimentais.
Dois de seus maiores expoentes foram amigos pessoais de Locke: Thomas
Sydenham, que revolucionou a medicina, e Robert Boyle, um dos fundadores da
física. (Sydenham, em gravura de 1716; Bibl. Nac. Braidense e frontispício
de O Químico Cético, de Boyle; Museu da Ciência e da Técnica, Mdão.)
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Numa época em que a cirurgia era ainda muito primitiva, John Locke
realizou um verdadeiro milagre médico: dirigiu uma operação para remover um
abscesso no fígado de lorde Ashley, inserindo um pegueno tubo através da
parede do estômago. O acontecimento ocorreu na residência de Lorde Ashley em
Exeter. (Mapa ae Exeter, executado por G. Braun e G. Hogenburg, em 1617.)
substância como um conjunto de idéias tidade (ou diferença), quando se diz que
simples de sensação. Analogamente, A é B ou A não é B; relação, como a
deve-se entender a realidade interior expressa na frase “João é filho de
(alma, na metafísica medieval) como Paulo”, ou qualquer outra referente a
conjunto de idéias de reflexão. semelhança e dessemelhança, maior e
menor, etc; e de coexistência.
Os fundamentos da certeza Além desses três tipos de vínculos
entre as idéias, existiría uma quarta
Depois de analisar os materiais cons classe de conveniência, referente não às
tituintes do entendimento humano, o En relações possíveis entre as próprias
saio aborda o problema dos limites do idéias, mas à correspondência que uma
conhecimento e suas formas legítimas, idéia possa ter com a realidade exterior
ou seja, a verdade. Para o autor, o ao espírito humano. Nos termos do pró
conhecimento constitui percepção de prio Locke, a quarta classe de conve
conveniência ou discordância entre as niência é “a de uma existência real e
idéias e expressa-se através dos juízos. atual que convém a algo cuja idéia
Trata-se, portanto, da percepção de vín temos em mente”. A percepção da exis
culos, que podem ser de três tipos: iden tência — diz Locke — é irredutível à per
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cepção de uma relação entre duas idéias, certeza, no domínio das ciências experi
em virtude de a existência não ser uma mentais, dependería do critério de verifi
idéia como a de doce ou amargo, quente cação da conveniência entre as idéias
ou frio. Existem várias espécies de certe que estão na mente humana e a realidade
za com relação à existência das coisas. exterior a ela.
Uma primeira espécie é a certeza intuiti
va, proveniente da reflexão, que o O poder é de todos
homem tem de sua própria existência.
Uma segunda espécie seria a certeza A teoria do conhecimento exposta no
demonstrativa da existência de Deus. Ensaio sobre o Entendimento Humano
Finalmente, uma terceira espécie é a constitui uma longa, pormenorizada e
“certeza por sensação”, referente aos hábil demonstração de uma tese: a de
corpos exteriores ao homem. 3ue o conhecimento é fundamentalmente
A dualidade dos juízos, separando de erivado da experiência sensível. Fora
um lado as relações que se podem esta de seus limites, a mente humana produ
belecer entre as próprias idéias e, de ziría, por si mesma, idéias cuja validez
outro, aquelas que se referem à exis residiría apenas em sua compatibilidade
tência real dos correspondentes às interna, sem que se possa considerá-las
idéias, coloca-se também quanto ao pro como expressão de uma realidade exte
blema da verdade e de sua contraparte, a rior à própria mente.
falsidade. Segundo Locke, há duas cate As teses sociais e políticas de Locke
gorias de juízos falsos. Na primeira caminham em sentido paralelo. Assim
categoria, a relação expressa pela lin como não existem idéias inatas no espí
guagem não corresponde à relação per rito humano, também não existe poder
cebida intuitivamente entre as idéias. Na que possa ser considerado inato e de ori
segunda, o erro.não consiste em perceber gem divina, como queriam os teóricos do
mal uma relação, mas em percebê-la absolutismo. Antes, Robert Filmer
entre idéias não correspondentes a qual (1588-1653), autor de O Patriarca, e um
quer realidade. No primeiro caso é pos dos defensores do absolutismo, procu
sível, evitando o erro, formular-se um rara demonstrar que o povo não é livre
juízo verdadeiro que, no entanto, nada para escolher sua forma de governo e
diz respeito à realidade; é o que ocorre que os monarcas possuem um poder
quando, por exemplo, se diz que cavalo inato. Contra O Patriarca, Locke dirigiu
alado não é centauro. Somente no segun seu Primeiro Tratado sobre o Governo
do caso se pode ter conhecimento real. Civil; depois desenvolveu suas idéias no
Este, contudo, supõe os dois elementos Segundo Tratado. Neles, Locke sustenta
da verdade: a conveniência das idéias que o estado de sociedade e, consequen
entre si e das idéias em relação à temente, o poder político nascem de um
realidade. pacto entre os homens. Antes desse acor
Da distinção entre dois tipos de verda do, os homens viveríam em estado
de deduzem-se dois tipos de disciplinas natural.
científicas. O primeiro tipo — pensa A tese do estado natural e do pacto so
Locke — é constituído pelas matemáticas cial também fora dpfendida por Thomas
e pelas ciências morais; nelas todo o Hobbes (1588-1679), mas o autor de O
conhecimento é absolutamente certo Leviatã tinha objetivos inteiramente
porque seu conteúdo são idéias produzi opostos aos de Locke, pois pretendia
das pela própria mente humana. Locke justificar o absolutismo. A diferença
afirma, por exemplo, que é perfeita- entre os dois resultava basicamente do
mente demonstrável que o homicídio que entendiam por estado natural, acar
deva ser castigado; a certeza dessa retando diferentes concepções sobre a
demonstração seria tão segura quanto a natureza do pacto social e a estrutura do
de um teorema matemático. O segundo governo político.
tipo é o das ciências experimentais, que Para Locke, no estado natural “nasce
formariam uma área de conhecimento na mos livres na mesma medida em que
qual a certeza das ciências ideais (mate nascemos racionais”. Os homens, por
máticas e morais) não está presente. A conseguinte, seriam iguais, indepen-
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E S S A I
PHILOSOPHIQUE
r o x c f. r x .1 x r
LENTENDEMENT
H U M A I N,
or /.r..v i:sr VF.ri.xnrF. df. xox
COXXQÍSò /.s CF.miXF.lt. ÍT I..I MXXFf.RF.
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PAR M. LOCKE.
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CRONOLOGIA
1632 — Nasce John Locke, 1660 — Carlos II passa a Londres sua hipótese sobre
em Wrington, no dia 29 de ocupar o trono inglês. a gravitação universal. Leib-
agosto. 1662 — Morre Pascal. niz escreve o Discurso de
1642 - 1646 — Guerra civil 1666 — Dá-se, em Oxford, Metafísica e o Systema
na Inglaterra: puritanos e o primeiro encontro entre o Theologicum.
presbiterianos escoceses futuro conde de Shaftesbury 1688 — Revolução contra
aliam-se contra o rei Carlos e Locke. Jaime II; sobe ao trono Gui
I; Oliver Cromwell coman 1672 — Carlos II concede a lherme de Orange.
da os rebeldes. tolerância religiosa. 1689 — Locke retorna à
1649 — Condenado pelo 1675 — Locke torna-se se Inglaterra.
Parlamento, Carlos I é exe cretário do Conselho de 1689 - 1690 — São publica
BRASII
cutado a 30 de janeiro. Plantações e Comércio. dos os Dois Tratados sobre
1651 — Hobbes publica 1681 — Carlos II dissolve o o Governo Civil, de Locke.
sua principal obra: O Levia- Parlamento. 1690 — Locke edita o En
-
tã. 1683 — Morre o conde de saio sobre o Entendimento
SÃO PAULO
1653 - 1658 — Duração do Shaftesbury. Locke refugia- Humano.
“Protetorado de Cromwell”. se na Holanda. 1702 — Com a morte de
1656 — Locke bacharela-se 1685 — Nasce Bach. Jaime Guilherme de Orange, sobe
em artes. II ascende ao trono inglês. ao trono sua filha Anne.
1658 — Morte de Oliver 1686 — Isaac Newton co 1704 — Locke morre a 28
-
E INDUSTRIAL
Cromwell. munica à Royal Society de de outubro.
BIBLIOGRAFIA
Cranston, M. VI.: John Locke, a Biography, Londres, 1957.
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NEWTON
OS PENSADORES
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NEWTON
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OS PENSADORES
iW/f t /Já..
menos que seja obrigado a mudar seu es
tado por forças impressas nele”. A
segunda lei estabelece que “a mudança
PHILOSOPHIE do movimento é proporcional à força
motriz impressa e se faz segundo a linha
reta pela qual se imprime essa força”.
NATURALIS Finalmente, a terceira lei diz que “a uma
ação sempre se opõe uma reação igual,
PRINCIPIA ou seja, as ações de dois corpos um
sobre o outro são sempre iguais e se diri
gem a partes contrárias”.
MATHEMATICA Na base dessas leis (e de outras
proposições gerais do primeiro e segun
do livros dos Princípios), Newton pro
Autore J S. NEJPTO N, Thjv. Cdl. C^jb. Soc. Matbcícos pôs-se demonstrar todos os demais fenô
Profeflorc Lxctfuato, 8c Socictatis Rcgalò Soda li.
menos. No terceiro livro dos Princípios
encontra-se um exemplo disso, quando o
IMPRIMATUR autor expõe seu sistema do mundo,
S. P E P Y S, *rg. &c. PROSES. centralizado na lei da gravitaçào univer
5. 1686. sal: a matéria atrai a matéria na razão
direta das massas e no universo do qua
drado das distâncias. No terceiro livro
L 0 N D I NI,
dos Princípios, Newton afirma que
hillu Sotictatir Regi.e ac Typis Jojcfbi Sire.ttcr. Proliant Vcna- “pelas proposições matematicamente
FABBRI
, ii^apud Sjm. Smilbid inli-nu Principis U jlli.r ii> Orinirci ia demonstradas nos livros anteriores, de
j 1^-/J«//,aliofq;noiinuIlo5Bi!>!io|K>|js. d«»MDCLXXX\ li.
rivam-se dos fenômenos celestes as for
ças de gravidade pelas quais os corpos
tendem para o Sol e para os vários
Frontispício da primeira edição planetas”.
(Londres, 1687) da principal obra de Newton não fica somente no exemplo e
Newton. Nela se encontram as bases vai muito além, expressando sua fé
metodológicas e os elementos numa concepção mecânica de toda a
fundamentais dafísica moderna. natureza: “Oxalá pudéssemos também
derivar dos princípios mecânicos os ou
rigorosa matemática e da ciência da tros fenômenos da natureza, por meio do
natureza. Suas mais importantes contri mesmo gênero de argumentos, porque
buições nesses terrenos foram a criação muitas razões me levam a suspeitar que
do cálculo infmitesimal, o desenvolvi todos esses fenômenos podem depender
mento e sistematizaçào da mecânica, a de certas forças pelas quais as partí
teoria da gravitaçào universal e o desen culas dos corpos, por causas ainda
volvimento das leis de reflexão e refra- desconhecidas, ou se impelem mutua
ção luminosas, além da teoria sobre a mente, juntando-se segundo figuras re
natureza corpuscular da luz. gulares, ou são repelidas e retrocedem
Os Princípios Matemáticos da Filoso umas em relação as outras. Ignorando
fia Natural constituem a primeira gran essas forças, os filósofos tentaram em
de exposição e a mais completa sistema- vão até agora a pesquisa da natureza.
tização da física moderna, sintetizando Espero, no entanto, que os princípios
num todo único a mecânica de Galileu e aqui estabelecidos tragam alguma luz
a astronomia de Kepler, e fornecendo os sobre esse ponto ou sobre algum método
princípios e a metodologia da pesquisa melhor de filosofar”.
cientifica da natureza. Além de formular uma concepção de
O núcleo central dos Princípios são as ciência inteiramente mecanicista, que
três leis fundamentais da mecânica. A permanecería incontestável por muito
primeira afirma que “todo corpo perma tempo, os textos iniciais dos Princípios
nece em seu estado de repouso, ou de contêm a essência da metodologia new-
movimento uniforme em linha reta, a toniana, nos seus aspectos matemáticos.
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FABB3I
Ainda em vida, Newton foi recoberto de honras e glória,
reverenciado em toda a Europa e apontado como exemplo de grandeza “moderna”,
contraposta à grandeza “antiga” de Aristóteles. Seu epitáfio na Abadia de
Westminster afirma: “É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha
existido”. (Gravura de Hollar: Westminster Hall: Museu Britânico, Londres.)
seguinte problema: se a aceleração de sistema. Essas dificuldades de ordem ló
um corpo estiver na dependência do sis gica, contudo, não chegam a obscurecer
tema ae referências utilizado, tem-se, o extraordinário valor operacional das
para cada sistema, um valor de acelera leis newtonianas.
ção. Consequentemente, pela segunda lei A teoria newtoniana do tempo abso
da mecânica newtoniana, obtêm-se dife luto liga-se à do espaço absoluto. Tam
rentes valores para a força que produziu bém nesse caso, o conceito é tomado
essa aceleração. Lo^o, a questão se colo sobretudo como ferramenta operacional.
ca em termos da existência de um siste Para Newton, “o tempo absoluto, verda
ma de referências em que sejam medidos deiro e matemático, por si mesmo e por
os “'verdadeiros” valores da aceleração. sua própria natureza, flui uniforme
Para tanto, é necessário supor um siste mente sem relação com nada externo;
ma de referências absoluto, ou seja, um por isso mesmo é chamado duração”. O
sistema que forneça correspondência fato de não manter “relação com nada
real para a aceleração medida. Essa externo” confere ao tempo absoluto
correspondência seria medida por uma caráter de imutabilidade. Em outras
força, por exemplo, a ação de uma mola palavras, as coisas mudam, mas não
ou a atração gravitacionaL O sistema muda o tempo. Isso implica que as
inercial normalmente utilizado neste úl mudanças ocorrem no tempo e este em
timo caso está em repouso em relação às nada contribui para que tal aconteça.
estrelas fixas. Essa a razão de não se Assim, o tempo absoluto não é tomado
poder utilizar a Terra como sistema por Newton como uma propriedade de
mercial, pois está acelerada em relação cada coisa considerada particularmente,
ao Sol. Contudo, sendo a Terra o habitat mas na medida em cpie se relaciona com
de qualquer observador, as medidas por todas as outras coisas, na medida em
ele mesmo realizadas evidenciarão, em que estas durem.
alguns casos, erros devidos ao movi Apesar da configuração metafísica
mento relativo do próprio observador. que as teorias do espaço e do tempo
Nesse caso, ou se desprezam os erros absolutos possam conferir ao pensa
(desde que sua magnitude não seja rele mento de Newton, deve-se sublinhar que,
vante), ou se atribuem a certas “forças na investigação dos fenômenos físicos, o
ficticias” esses erros, isto é, as acelera autor dos Princípios repele qualquer ine-
ções oriundas da própria aceleração do rência de ordem metafísica ou religiosa.
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OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1642 — A 8 de janeiro, 1672 — Newton é eleito no Parlamento como depu
morre Galileu. Em Wools membro da Royal Society. tado pela Universidade de
thorpe, a 25 de dezembro, 1673 — Publicação do Ho- Cambridge.
nasce Isaac Newton. rologium Oscillatorium, do 1701 — Funda-se, em New
1655 — Morre o filósofo e físico holandês Christiaan Haven, a Universidade de
matemático Pierre Gassen- Huygens. Yale. Nasce Celsius, criador
di. 1675 — Newton envia à da escala termométrica que
1661 — Newton matricula Royal Society suas anota leva seu nome.
se no Trinity College, em ções sobre a reflexão e as 1703 — Newton é eleito
Cambridge. cores da luz. presidente da Royal Society.
1665 — Obtém o grau de 1684 — Leibniz publica 1704 — Publica a óptica.
Bachelor of Arts. Nova Methodus pro Maxi- 1705 — A rainha Ana da
1668 — Torna-se Master of mis et Minimis. Inglaterra outorga-lhe o tí
Arts. Nasce Giambattista 1685 — São apresentados à tulo de cavaleiro.
Vico. Royal Society os dois pri 1707 — Escócia e Inglater
1669 — É autorizada a re meiros livros dos Philoso- ra unem-se sob o nome de
presentação de Tartufo, de phiae Naturalis Principia Grã-Bretanha.
Molière. Morre Rembrandt. Mathematica, de Newton. 1716 — Morre Leibniz.
1670 — Publicação do 1687 — Primeira edição 1724 — Nasce Kant.
Tractatus Theologico-Politi- dos Principia, de Newton. 1727 — A 20 de março,
cus, de Espinosa. 1689 — Newton ingressa morre Newton.
BIBLIOGRAFIA
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CRONOLOGIA
1646 — A l.° de julho, nas 1676 — Descobre o cálculo 1705 — Publica as Consi
ce Gottfried Wilhelm Leib dtferencial. Nesse mesmo derações sobre o Princípio
niz, em Leipzig. ano, viqja a Hanôver como de Vida.
1666 — Leibniz recebe, em bibliotecário-chefe. 1710 — Publica Commen-
Altdorf, o título de Doutor 1677 — Morre Espinosa. tatio de Anima Brutorum,
em Direito. 1679 — Morre Thomas De Libertate e Ensaios de
1667 — Filia-se à sociedade Hobbes. Teodicéia.
secreta Rosa-Cruz. 1686 — Leibniz escreve o 1711 — Viqja para a Rús
1670 — É nomeado conse Discurso de Metafísica. sia, com o fito de propor ao
lheiro da Alta Corte do elei 1689 — Nasce Montes czar Pedro um plano de or
torado de Mogúncia. quieu. ganização civil e moral para
1672 — Na qualidade de 1700 — Leibniz funda, em o país.
conselheiro, viqja a Paris Berlim, aquela que se toma 1712 — Nasce Rousseau.
com o objetivo de convencer rá a Academia de Ciências 1714 — Surgem A Mona-
o rei Luís XIV a conquistar Prussianas. dologia e Princípios da Na
o Egito. 1701-1704 — Redige os tureza e da Graça, ambas de
1673 — Viqja para a Ingla Novos Ensaios sobre o En Leibniz. cz
terra onde conhece Olden- tendimento Humano, que só 1716 — A 14 de novembro, <
a
burg, amigo de Espinosa, e virão a ser publicados em acometido de uma crise de cc
o químico Boyle. 1765. gota, morre Leibniz. I
M lIN D IA I 1 Ç )7 R -A R R II R A C 1JIT U R A I F IN D U S T R IA I - S Ã O P A U IO
BIBLIOGRAFIA
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Costabel, P.: Leibniz et la Dynamique, Hermann, Paris, 1960.
c C O P Y R IG H T
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OS PENSADORES
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VICO
FAB B RI
Pintura anônima da escolafrancesa do século XVII mostra um panorama da baía
de Nápoles, cidade onde Vico nasceu e passou toda a vida. Nápoles era um dos
mais importantes centros culturais da Itália e, na época de Vico,
caracterizava-se por manter desperto o espírito científico-natural, iniciado
por Galileu mas condenado pela Igreja. (Museu de San Martino, Nápoles.)
riadores, Vico teria nascido em 1668 e nismo, a partir das quais se constituiría
não em 1670. o arcabouço metodológico de sua princi
Através da Autobiografia, fica-se sa pal obra, a Ciência Nova.
bendo que o primeiro mestre espiritual Depois dos nove anos passados em
de Vico foi um filósofo nominalista, o Vatolla, Vico voltou a Nápoles e, em
padre jesuíta Antonio dal Balzo; depois 1699, passou a ocupar o cargo de profes
Vico estudou com um seguidor de Duns sor de retórica da universidade. Nessa
Scot (1266-1309), o padre Giuseppe função, um de seus deveres era abrir o
Ricci, também jesuíta. Em seguida, a ano letivo com uma dissertação em
Autobiografia relata os nove anos latim; foi a partir de uma dessas lições
(1686-1695) de relativa solidão, que que nasceu Sobre o Método de Estudos
Visco passou em Vatolla (Cilento), onde de Nosso Tempo, publicada em 1709.
foi preceptor do filho do marquês Dome- Pela primeira vez, Vico tomava pública
nico Rocca e onde se dedicou ao estudo sua posição anticartesiana, analisando
de Platão (428/7-348/7 a.C.), do qual uma questão acadêmica e convencional:
admirava o valor metafísico e o caráter qual a melhor maneira de estudar? a dos
ético-social de suas doutrinas. Parte antigos ou a dos modernos? Vico respon
especialmente importante desse período de, condenando a prática, comum em seu
passado em Vatolla é o referente aos pri tempo, de colocar o ensino crítico ou arte
meiros contatos com a filosofia materia de julgar antes da ‘■‘■tópica” ou arte da
lista de Gassendi (1592-1655) e, sobre invenção; tal costume destruiria a imagi
tudo, com a filosofia cartesiana, então nação e incapacitaria o aluno para a vida
em voga em Nápoles. Datam dessa época prática. Vico condena também o método
suas primeiras reações contra o cartesia- geométrico na física, o analítico na
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VICO
FAB B RI
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Uma tela de Pieter Paul Rubens, Os Quatro Filósofos, retrata Justus Lipsius
e seus discípulos, entre os quais se encontra, provavelmente, Hugo Grotius,
um dos pensadores do século XVII que elaboraram teorias
abstratas e racionalistas sobre a sociedade. Vico criticou-os por deixarem de
considerar o homem em sua concreção histórica. (Galeria Pitti, Florença.)
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OS PF2NSADORES
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VICO
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Vico ocupou o cargo de professor de retórica da universidade de Nápoles desde
1699 e, em 1735, tomou-se historiador oficial de Carlos III, rei de Nápoles.
Essa alta posição em nada alterou sua vida, que continuou a ser
sempre modesta. (Tela de Michele Foschini representa o soberano
em uma cena de caça ao javali; Museu Nacional de San Martino, Nápoles.)
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OS PENSADORES
A verdadeira ciência
A rigor, o princípio de Vico, segundo o
qual o verdadeiro e o feito (a verdade e o
fato) são idênticos, não era uma idéia
totalmente nova na história da filosofia.
Uma primeira expressão dessa idéia
encontra-se num escrito pseudo-hipo-
crático da Antiguidade, onde o autor in
dica as operações que devem ser realiza
das para a penetração nos mistérios da
natureza, afirmando que a chave para
isso acha-se à disposição dos homens
“porque eles conhecem o que fazem”.
Outra expressão no mesmo sentido
acha-se em Fílon de Alexandria, ou
Fílon, o Judeu (c. 25 a.C. — c. 50), que
fundamentou a onisciência divina na
idéia de que Deus é o criador e demiurgo
Retrato de Carlos III (Museu Nacional de todas as coisas. Uma terceira formu
de San Martino, Nápoles). Na página lação do mesmo princípio encontra-se
anterior, o soberano em Festa de em Marsílio Ficino (1433-1499), que,
Piedigrotta, de Antonio Joli. (Museu comparando a capacidade divina e hu
Nacional de San Martino, Nápoles.) mana de conhecer, atribui a onisciência
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VICO
a Deus, por ser Ele o próprio autor e consequências até então insuspeitadas.
criador de todas as coisas. Mais próxima Elaborada em diametral oposição à epis-
de Vico situa-se a metodologia de Gali- temologia cartesiana, a idéia de que a
leu, segundo a qual o conhecimento cien verdade e o fato se identificam constituiu
tífico da natureza somente pode ser o ponto de partida para uma revolucio
alcançado através do experimento, ou nária teoria da história e do desenvolvi
seja, da reprodução dos fenômenos; para mento social.
Calileu, o homem possui as causas que A história foi posta pelo cartesianismo
são “razões das coisas” e, portanto, como um aglomerado confuso de fatos,
pode produzir fenômenos que são neces uma miscelânea de absurdos, algo total
sários e racionais. mente inapto à apreensão de idéias cla
Esses antecedentes históricos, ao que ras e distintas, as quais constituiriam a
tudo indica, não exerceram influência base de um verdadeiro conhecimento.
sobre o autor da Ciência Nova; Vico for Para Vico, esse desprezo é infundado e
mulou o princípio de que o verdadeiro e tem raízes no erro de admitir um único
o feito são idênticos independentemente método como válido para todos os domí
desses precursores. Contudo, o mais nios da investigação; além disso, a histó
importante aspecto de sua contribuição ria pode proporcionar esclarecimentos
reside no desenvolvimento e amplitude decisivos sobre aquilo que subjaz à pró
que conferiu ao princípio, chegando a pria ciência natural e que constitui o
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OS PENSADORES
conhecimento humano. Vico afirma que, autores viveram. Rejeitando tais siste
por mais desenvolvida e engenhosa que mas, que lhe pareciam errôneos, Vico
seja a técnica de exploração do mundo sustenta a absoluta necessidade de se
natural, este permanecerá para sempre abordar os fenômenos humanos em suas
algo exterior ao próprio homem, jamais dimensões históricas.
podendo tornar-se um produto de seu Esse projeto de investigação implica
espírito; com a história ocorre exata necessariamente uma volta aos modos de
mente o contrário: seu campo de ação é compreensão das coisas, aos sentimentos
aquilo que o próprio homem cria. O ob e às atitudes das comunidades humanas
jeto da investigação histórica, escreve primitivas: “'toda teoria deve começar
Vico, resulta da expressão da vontade pelo ponto onde a matéria em questão
humana, e o próprio historiador, em vir começou a tomar forma pela primeira
tude de sua humanidade, tem todas as vez”. Para Vico, somente quando o
condições para apreender seu objeto, de investigador se liberta da idéia de que os
maneira total e completa, íntima e seres humanos sempre se consideraram a
indubitável. si mesmos e interpretaram o mundo de
Ao formular essa clara distinção entre maneira distinta do modo de ver do pró
as ciências naturais e o conhecimento prio investigador, é que ele se capacita a
histórico, Vico estabeleceu um princípio reconhecer os sentimentos, atitudes e
metodológico que viria desempenhar concepções de outras épocas.
papel fundamental na história da episte-
mologia. Mas o autor da Ciência Nova A chave da ciência
não se limitou a criar uma metodologia:
procurou também investigar como, con O pesquisador das coisas humanas,
cretamente, ocorreu o desenvolvimento liberto dos preconceitos de seu tempo e
da humanidade. Nessa tarefa, orientou- dos sistemas racionalistas e abstratos,
se pela idéia de que o passado não deve deve mergulhar — segundo Vico — nos
ser visto com os olhos do presente, sob aspectos mais concretos da história a fim
pena de não se chegar a um verdadeiro de conhecer verdadeiramente o homem e
conhecimento. Em outros termos, o seus produtos. Material para isso Vico
historiador não deveria deixar-se levar encontra sobretudo na linguagem, a
por seus próprios sentimentos, interes conserva em seu seio os mitos, as fábu
ses, atitudes e modos particulares de ver las, as tradições e expressões do espírito
as coisas. Ao fazer essa advertência, humano. Vico procura, assim, uma união
Vico tinha em mente os teóricos que íntima entre filologia e filosofia.
desenvolviam teorias abstratas sobre o Para Vico, o papel especialmente
homem, como Grotius (1583-1645), importante da linguagem reside no fato
Pufendorf (1632-1694) e Hobbes de que os termos empregados pelo
(1588-1679). Esses autores modernos homem, em sua grande maioria, in
partiram de pontos de vista estáticos e cluindo os mais teóricos e abstratos,
imutáveis, segundo os quais existiría acham-se profundamente enraizados em
uma lei natural ou um CQntrato social remotas formas de vida e de experiência.
que estaria na base de todas as transfor Assim, estudando-se etimologicamente a
mações humanas. Segundo o autor da derivação das palavras, iluminam-se não
Ciência Nova, tais idéias não passam de só as condições ambientais de gerações
abstrações criadas pelo estado do desen anteriores, mas também os efeitos mais
volvimento do espírito em que essas pró característicos dessas condições; o dis
prias idéias vieram à luz. Ao proceder curso e o icnsamento ligam-se intima-
assim, os teóricos racionalistas que mente. A inguagem não constitui um
construíram grandes sistemas de inter meio artificial que os homens teriam
pretação dos fatos sociais acabaram por inventado deliberadamente para expres
atribuir, aos homens de épocas anterio sar idéias preexistentes; pelo contrário,
res e primitivas, modos de conceber as ela desenvolveu-se naturalmente, e o
coisas, faculdades mentais e juízos de curso de seu desenvolvimento ê insepa
valor, todos eles característicos do pró rável do curso do espírito humano.
prio universo espiritual em que esses Analisando a evolução da linguagem,
398
VICO
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OS PENSADORES
’ ilíSt-C.X 7 '
JOH. BAPTISTAE VICI
30 H. BAPTISTAÉ VIC1»
In Regia Neafolitana Academia
D B Eloquentiae Professoris
FR A N Cl SCU M
V È N T -U BL A ar
A REG1S CONSILI1S-
Ec Criminum Quocftorem Altcrum«
Vico distingue a linguagem mítica da Por outro lado, ao distinguir fala míti
linguagem silogística. A primeira, me ca e fala silogística, Vico não atribui à
diante o emprego da mimese e da seme primeira o caráter de pura e necessária
lhança, animava toda a natureza, fazen ilogicidade; isso seria incorrer no erro
do dela um “vasto corpo” e abreviando o cartesiano de admitir exclusivamente as
hiato final entre o som e a representação coordenadas opostas do verdadeiro e do
mental. Em termos da linguística do sé falso. A proposição de Vico, ao contrá
culo XX, poder-se-ia traduzir a concep rio, é a de quem descobriu o caráter pró
ção de Vico pela idéia de que essa lin prio da atividade da fantasia, por meio
guagem ainda não se assentara de todo do estudo de fábulas e figuras inscritas
no esquema da dupla articulação, pelo nas línguas antigas. Esse caráter dispõe
qual há, no interior do signo, elementos de uma lógica, nada tem de bizarro nem
mínimos, opacos, despidos de significa de absurdo; é necessário entendê-lo em
ção; a palavra mítica, ao contrário, ten suas leis imanentes. Nesse sentido, Vico
dería a uma estrutura imanentemente afirma que a fala heróica foi uma fala
dotada de significação, assim como o de por semelhanças, imagens, compara
sejo e o medo, o prazer e a dor, que rece ções, nascida da carência de gêneros e de
bem, de um só golpe, determinado senti espécies necessárias para definir as coi
do e valor para o sistema nervoso que os sas com propriedade e, em consequência,
experimenta. nascida “por necessidade de natureza
400
VICO
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VICO
PRINCIPJ
D I
SCIÉNZA NUOVA
D I
GIAMBATTISTA VICO
D’IN1ORNO ALLA COMUNE NATURA
DELLE NAZIONI
JN ígJESTA TERZA IMPRESSIONE
Dal mcdc/imq Aurore in un gran numero di luoghi
Correcta, Schiarita, e nocabilmcntc Accrcfciuta•
TOMO I.
IN NA POLI MDCCXL1V.
NELLA STAMPERIA MUZÍANA
A fpefe di Gactano , e Stcffano Elia .
FABBRl
Os Princípios de uma Ciência Nova sobre a Natureza Comum das Nações, título
completo da principal obra de Vico, foram escritos e reescritos diversas
vezes. Ofilósofo napolitano dedicou-se ao livro por mais de vinte anos
e supervisionou cuidadosamente as três edições feitas em sua vida, em 1725,
1730 e 1744. Acima, o frontispicio da terceira edição feita pelo autor.
403
OS PENSADORES
contudo, não é entendida pelo autor da Em suma, não sendo intervenção mila
Ciência Nova, como uma intervenção grosa nem determinação imanente ao
exterior, a corrigir milagrosamente as processo histórico, a providência divina
orientações e aberrações do homem. A é concebida por Vico como valor e norma
história ideal e eterna, com sua ordem situados além (e nesse sentido é trans
providencial, não seria transcendente à cendente) dos acontecimentos particula
história temporal, não seria estranha e res: é o valor ideal que sustenta os
externa a ela; se assim fosse, o único acontecimentos em seu curso ordenado,
agente da história seria Deus e não o mas ao qual os acontecimentos jamais se
homem. Por outro lado, Vico nega igual conformam totalmente. Somente na rela
mente que a história ideal e eterna seja ção com a providência o homem pode
imanente à história temporal humana, e criar a capacidade de produzir o mundo
R A R II
que a ordem desta última esteja sempre da história e conservá-lo.
garantida por aquela. Em outras pala Para Vico, a providência está presente
R
vras, a providência não deve ser enten no homem, primeiramente sob a forma
- RÃO PAUI O
dida como necessidade racional intrín de sabedoria poética, isto é, de um obs
seca aos acontecimentos históricos, curo mas certo aviso; depois como sabe
como uma razão impessoal que atua doria reflexiva, ou seja, como verdade
sobre os indivíduos e coordena suas filosófica. Mas tanto em um caso quanto
ações. Nesse caso, a reprodução da his em outro, trata-se de sabedoria essen
-
tória ideal e eterna nas histórias particu cialmente religiosa porque se refere a
N D I IR T R IA I
lares de cada nação seria necessária e uma ordem transcendente e divina.
uniforme; nenhuma história particular Assim se compreende a apaixonada defe
poderia separar-se, em nenhum evento, sa da função cívica da religião, que Vico
da sucessão providencial dos períodos. faz na conclusão da Ciência Nova.
F
T I IR A I I
CRONOLOGIA
II
1668 — A 23 de junho, em Nosso Tempo. Nova sobre a Natureza Co
A R R ll R A C l
Nápoles, nasce Giambattis- 1710 — Vico publica So mum das Nações e, no mes
ta Vico. bre a Antiquissima Sabedo mo ano, escreve sua Auto
1694 — Vico gradua-se ria dos Italianos a ser com biografia.
em direito pela Universidade pletado. 1730 — Surge a 2.a edição
de Nápoles. 1720 — Publicação de So da Ciência Nova, totalmente
_
1699 — É indicado para a bre o Princípio e o Único reescrita.
1Q 7A
cadeira de eloquência na Fim Únicos do Direito Uni 1735 — Vico torna-se his
mesma universidade. versal, de Vico. toriador real.
C O P Y R IG H T M l IN O I A l
1709 — Publica Sobre o 1725 — Vico publica os 1744 — Morre a 23 de ja
Método dos Estudos de Princípios de uma Ciência neiro, em Nápoles.
BIBLIOGRAFIA
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Ithaca, Nova York, 1944.
Berlin, L: The Philosophical Ideas of Giambattista Vico in Art and Ideas in Eighteenth Cen-
c
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MONTESQUIEU
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OS PENSADORES
ARBORIO MEILA
Durante o longo reinado de Luís XIV, o Rei Sol, que se estendeu de 1643 até
1715, a cultura clássica francesa atingiu seu ponto culminante. Grandes nomes da
literatura e das artes plásticas surgiram nesse período. (Quadro a óleo
executado por Pierre Mignard (1610-1695), retratando Luís XIV com suafilha,
Mme de Maintenon, o Duque de Borgonha e o Duque D’Anjou.)
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MONTESQUIEU
FAQBRI
“Platão agradecia por ter nascido no tempo de Sócrates; e eu rendo-lhe graças por
me terfeito nascer no governo em que vivo e por ter querido que eu
obedecesse aos que mefez amar. ” Montesquieu nasceu durante o remado de Luís
XIV, o Rei Sol, que mandou construir, em 1661, o famoso Palácio de Versalhes,
visto acima numa tela de Pierre Patel, o Velho (1605-1671). (Museu de Versalhes.)
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FAB8SI
“O estudo tem-me sido remédio contra todos os dissabores da vida; não tive
nunca aborrecimento algum que uma hora de estudo não dissipasse. ”
Montesquieu gostava também dos prazeres mundanos, comuns na vida cortesã do
século XVIII, como os representados nos quadros de Antoine Watteau. (Watteau:
Festas Venezianas, Galeria Nacional da Escócia, Edimburgo.)
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Os ataques a Montesquieu, logo após verso político que estava nascendo. Seu
a publicação do Espírito das Leis, foram objeto são "as leis, costumes e os diver
em muito maior numero e mais contun sos usos de todos os povos da terra”,
dentes do que os que sofrerá ao publicar assunto evidentemente imenso, pois
as Cartas Persas. A preocupação dos abarca "todas as instituições humanas”.
adversários tinha razão de ser. Nas Car
tas a destruição dos valores tradicio O mais importante, contudo, não resi
nais, embora inteligente e espirituosa, de na extensão dos assuntos abordados,
não vai muito além da superfície das coi mas na maneira pela qual o autor os tra
sas. O Espírito das Leis, ao contrário, tou. A mais significativa originalidade
procura análisar extensa e profunda de Montesquieu consiste na revolução
mente a estrutura e a conexão interna metodológica representada pelo Espírito
dos fatos humanos e formular um rigo das Leis.
roso esquema de interpretação do O método de Montesquieu comporta
mundo histórico, social e político. Isso dois aspectos inter-relacionados, mas
foi sentido como capaz de abalar os ali que podem ser distinguidos com sufi
cerces do sistema social e político, de ciente clareza. O primeiro exclui da
maneira muito mais perigosa, do que a ciência social toda perspectiva religiosa
simples crítica sarcástica. Era uma ati ou moral; o segundo afasta o autor das
tude de ciência teórica diante do uni- teorias abstratas e dedutivas e o dirige
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MONTESQUIEU
FABBRI
Toda a carreira literária de Montesquieu transcorreu durante o reinado de Luís
XV, neto de Luís XIV e seu sucessor imediato. Antes quefosse proclamada a sua
maioridade em 1723, a Françafoi governada pelo regente Dugue de Orleans, e
como tutorfoi nomeado o então Bispo Fleury. (Um pintor anonimofrancês do
século XVIII retratou uma aula do jovem Luís XV; Museu Camavaíet de Paris.)
para a abordagem descritiva e compara quência, tanto uma quanto outra perma
tiva dos fatos sociais. neceríam para sempre na infância. O
Quanto ao primeiro, constituía um propósito de Montesquieu não é contri
solapamento do finalismo teológico e buir para isso, fazendo-se de teólogo.
moral que ainda predominava na época, Deliberadamente dispõe-se a permane
segundo o qual todo o desenvolvimento cer nos estritos domínios dos fenômenos
histórico do homem estaria subordinado políticos, e jamais abandona tal projeto.
ao cumprimento de desígnios divinos, tal Assim como o religioso é excluído
como Santo Agostinho (354-430) tinha como fator determinante dos fatos so
expressado na Cidade de Deus e Bossuet ciais, da mesma forma o juízo moral
(1627-1704) repetia, em suas linhas deve ser eliminado na apreciação do
essenciais, na História Universal. Mon mundo histórico. Já nas primeiras pági
tesquieu, ao contrário, reduz as institui nas do Espírito das Leis adverte o leitor
ções a causas puramente humanas e não contra um possível mal-entendido no que
leva em consideração a providência divi diz respeito à palavra "virtude”, que
na. Segundo ele, introduzir princípios emprega amiúde com significado exclu
teológicos no domínio da história, como sivamente político e não moral.
fatores explicativos, é confundir duas Em suma, para Montesquieu, o corre
ordens distintas de pensamento e con to conhecimento dos fatos humanos só
fundir duas disciplinas. Como conse pode ser realizado cientificamente na
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OS PENSADORES
medida em que eles sejam visados como atingidos de maneira obrigatória, pos
são e não como deveríam ser. Enquanto suindo, assim, estrutura de ação humana
não forem abordados como indepen consciente.
dentes de fins religiosos e morais, ja Montesquieu afasta-se radicalmente
mais poderão ser compreendidos. As de tal concepção e aproxima-se delibe-
ciências humanas deveriam libertar-se radamente dos criadores da metodologia
da visão finalista, como já haviam feito das ciências físicas. Lei, para ele, é uma
as ciências naturais, que só progrediram relação necessária que deriva da natu
realmente quando se desvencilharam do reza das coisas, de tal forma que “cada
finalismo aristotélico-escolástico. diversidade é uniformidade, cada modi
Hobbes e Spinoza (1632-1677) apre ficação é constância”. Nesse sentido,
sentam pontos comuns com Montesquieu “todos os seres têm suas leis: a divinda
na medida em que, como ele, estabe de .. . o mundo material ... as inteli
lecem como princípio preliminar à ciên gências superiores ao homem ... os ani
cia política o não julgar a história mais ... os homens . . .”
segundo critérios religiosos e morais. Tendo cada domínio de seres suas pró
Opinam que a religião e a moral, ao prias leis, elas não podem ser apreen
contrário, devem ser inseridas no con didas senão a partir dos próprios fatos,
junto dos fatos humanos que podem ser pela comparação e pesquisa, pelo tateio,
tratados cientificamente. e não pela intuição de essências. Mon
O projeto e a linguagem de Montes tesquieu não pretende extrair princípios
quieu, por um lado, e de Hobbes e Spi de preconceitos, mas da natureza mesma
noza, por outro, são idênticos. Diferem, das coisas.
contudo, na maneira de abordar o objeto O projeto de investigação das coisas
da ciência social. O autor das Cartas humanas em sua legalidade específica
Persas parte dos fatos, tais como se dão foi o caminho que levou Montesquieu a
concreta e particularmente, e tenta outra inovação, que se articula com a
extrair hipotéticas leis que os gover noção de lei: a categoria de totalidade.
nam; Hobbes e Spinoza procedem de Ela se encontra nos capítulos do Espírito
maneira abstrata e dedutiva. O Espírito das Leis dedicados à distinção entre
das Leis almeja ser uma obra de ciência natureza e princípio dos Estados e prefi-
positiva; o Leviatá de Hobbes e o Trata gura a concepção dialética da história,
do Teológico Politico de Spinoza são que só no século XIX será levada até
construções teóricas sobre a essência da suas últimas conseqiiências pelo filósofo
sociedade. Hegel (1770-1831).
Para Montesquieu, natureza de um
Lei e totalidade Estado é aquilo que ele é (república,
monarquia, despotismo), ou seja, é uma
Recusando submeter-se aos princípios certa forma. Princípio é uma disposição
religiosos e morais, e distanciando-se do dos homens no sentido de realizar uma
racionalismo abstrato do século XVII, determinada forma e não outra; é, por
Montesquieu deu início ao estudo descri tanto, uma paixão específica. Na repú
tivo e comparativo dos fatos humanos, blica essa paixão é a virtude (entendida
formulando um novo conceito de lei, que em sentido político, e não moral); na
constituía, então, uma inovação teórica e monarquia é a honra; e no governo des
representava sua principal contribuição pótico é o temor.
para a formação da ciência social. Até Os elementos que configuram as for
então, o significado da noção de lei esta mas e os princípios componentes do Es
va impregnado de finalismo. O pensa tado vinculam-se entre si, não de manei
mento antigo, tanto quanto o medieval, ra somatória, mas como totalidade viva.
ao utilizar a noção de lei, supunha seres O Estado, para Montesquieu, é uma
humanos, ou semelhantes a eles, aos totalidade real, em que todos os porme
quais a lei se aplicaria como manda nores da legislação, instituições e costu
mento. Supondo uma vontade legisla- mes são efeitos e expressões de uma uni
dora e o respeito de súditos a ela, a lei se dade interna. Isso significa dizer que o
definiría em termos de alvos a serem desenvolvimento histórico das socieda-
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CRONOLOGIA
1689 — Montesquieu nasce 1721 — Montesquieu publi derações sobre as Causas da
no Castelo de La Brède, per ca as Cartas Persas. Fun- Grandeza e Decadência dos
to de Bordeaux. da-se a primeira loja maçô- Roman< s.
1690 — Huyghens escreve nica na França. 1743 — É publicado o Tra
o Tratado da Luz e Purcell 1722 — Vem à luz o Trata tado de Dinâmica de
compõe King Arthur. do de Harmonia de Rameau D’Alembert.
1694 — Aparece o Dicioná e Bach compõe O Cravo 1747 — Franklin descobre
rio da Academia Frencesa t Bem Temperado. o princípio do pára-raios.
La Fontaine escreve as Fá 1725 — Montesquieu publi 1748 — Montesquieu publi
bulas. ca Templo de Gnido. Vico ca O Espírito das Leis. Des-
1695 — Vem à luz o Dicio escreve os Piincípios de Fi cobrem-se as ruínas de
nário Histórico e Crítico de losofia da História. Pompéia e Euler torna pú
Bayle. 1726 — Montesquieu deixa blica a Introdução à Análise
1705 — A bula Vineam Do- o cargo que ocupava no dos Infinitos.
mini condena o jansenismo Parlamento de Bordeaux. 1750 — Montesquieu escre
1715 — Montesquieu casa- Bernouilli publica o Tratado ve a Defesa do Espírito das
se com Jeanne de Lartigue, das Leis de Comunicação Leis.
R R A S II
moça protestante. Morte de do Movimento, Vico a Ciên 1751 — Surge o primeiro
Luís XIV e consequente as cia Nova e Jonathan Swift volume da Enciclopédia.
censão de Luís XV. /Ls Viagens de Gulliver. 1754 — Condillac publica
-
1716 — Montesquieu herda 1728 — Montesquieu é elei o Tratado das Sensações.
S Ã O P A I II O
o título de Barão de Montes to para a Academia France 1755— Montesquieu falece
quieu. sa e inicia um período de em Paris, no dia 10 de feve
1719 — Daniel Defoe pu viagens pela Europa. reiro, com sessenta e seis
blica Robinson Crusoé. 1734 — Publica as Consi anos de idade.
-
IN D U S T R IA I
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1934.
—
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BERKELEY
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Johrf Locke tinha desenvolvido, no En particular), essa idéia é apenas o resul
saio sobre o Entendimento Humano, a tado final das inúmeras e sucessivas
concepção de que todo conhecimento se impressões de árvores particulares, que
origina da experiência sensível e não foram produzidas cada vez que esse
existem idéias no intelecto humano pro homem viu árvores concretamente exis
duzidas exclusivamente pelo próprio tentes na natureza. Assim, todas as
intelecto. Não existiríam as chamadas idéias que o homem possui em sua mente
“idéias inatas”, admitidas por Descar seriam o resultado de um processo que
tes. As idéias matemáticas de quanti se inicia com uma sensação particular
dade, por exemplo, não constituem, para (pela visão, tato, olfato, paladar ou
Locke, formas impressas na mente antes audição), repetida muitas vezes.
do aparecimento das funções sensíveis Essa teoria supunha, consequente
na criança. Quando o homem nasce, sua mente, que as coisas exteriores à mente
mente seria como um papel em branco. humana possuiríam qualidades objeti
Sobre esse papel, os contatos fisicos, vas, capazes de provocar o aparecimento
estabelecidos pelos cinco sentidos, im das sensações subjetivas da mente hu
primiríam aos poucos os caracteres que, mana e as idéias resultantes. Chegava-
depois de múltiplas experiências do se, assim, à concepção de que o mundo
mesmo tipo, formariam as idéias gerais. exterior é constituído por algumas qua
Exemplificando, se o homem tem em sua lidades primárias, à soma das quais os
mente uma idéia geral de árvore (que filósofos da natureza deram o nome de
não deve ser confundida com a represen matéria, ou substância material. Essa
tação mental desta ou daquela árvore em substância material não poderia ser
“Não argumento contra a existência das coisas que podemos apreender pelos
sentidos ou pela reflexão. Em absoluto, não ponho em dúvida que as coisas que
vejo com meus olhos e toco com minhas mãos existam e existam realmente. ” Uma
das coisas que Berkeley viu e tocou foi a Casa da Velha Guarda de St. James
Park, representada por Canaletto. (Coleção Malmesbury, Basingstoke.)
428
BERKELEY
"Dado que a filosofia não é outra coisa senão o estudo do saber e da verdade,
deveria supor-se fundadamente que os que dedicaram muito tempo e esforços a
ela deveríam gozar maior calma e serenidade de pensamento . . . Na realidade,
porém, vemos, ao contrário, que a grande massa iletrada da humanidade . . . vive
em sua maioria tranqüila ...” (Berkeley, gravura de W. Skeldon, executada
sobre um quadro pintado por Vanderbank, Biblioteca Nacional de Paris.)
revelada diretamente aos sentidos, re dos para o conceito abstrato de subs
sultando seu conhecimento de um pro tância material. Aderindo ao mais
cesso de inferência puramente intelec completo empirismo, afirma que essa
tual. Em outros termos, a matéria — substância material nâo pode ser conhe
difefentemente das coisas materiais — cida em si mesma. O que conhecemos do
não pode ser vista, ouvida, cheirada, etc. mundo exterior resume-se às qualidades
Esses processos sensoriais só ocorre reveladas no processo de percepção e
ríam com as coisas constituídas a partir nada mais, de tal forma que é forçoso
da matéria. concluir pela afirmação de que a exis
Berkeley concorda com as linhas ge tência das coisas nâo é mais do que um
rais da teoria empirista de John Locke, feixe de sensações. Em poucas palavras,
mas não admite a passagem do conheci "ser é ser percebido” ("esse est perci-
mento dos dados fornecidos pelos senti pi”). Dizendo o mesmo de maneira mais
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concreta, a cor dos objetos não seria (1672-1729) e Jonathan Swift, e escre
mais do que algo visto; o som, algo ouvi veu alguns artigos contra os livres-pen-
do; a forma, algo visto ou sentido pelo sadores. Numa segunda estada na capi
tato e assim por .diante. Todo o mundo tal inglesa, de 1716 a 1721, escreveu
corpóreo seria sempre o sensorial, um um pequeno ensaio em latim, Sobre o
conjunto de fatos existentes unicamente Movimento, no qual critica a filosofia da
nos sujeitos que conhecem. Nâo existiría natureza de Newton e a teoria da força
qualquer possibilidade de conhecer-se de Leibniz (1646-1716).
uma existência independente, determi Em 1724 tomou-se deão em Derry (Ir
nada pela estrutura das próprias coisas, landa) e, na mesma época, projetou a
como queriam Locke e os filósofos da fundação de um colégio nas Bermudas,
natureza do século XVII. onde pretendia educar, para o ministério
Nâo se tratava, portanto, de negar a evangélico, não só os filhos dos colonos
existência das coisas materiais que americanos, mas também negros e indí
constituem o meio ambiente do homem. genas. Procurou ajuda financeira e par
O que Berkeley pôs em questão foi a tiu para Rhode Island, nos Estados Uni
idéia abstrata, então corrente, de maté dos, onde planejava estabelecer
ria como uma substância fundamental, fazendas para prover o colégio de ali
constitutiva de todas as coisas e radical mentos. Depois de algum tempo, cansa
mente diferente da substância pensante, do de esperar pelo apoio que acabou não
segundo a terminologia cartesiana. vindo, abandonou o projeto e voltou
A teoria berkeleiana de que “ser é ser para Londres, em 1731. Nesse meio
percebido” não significa, contudo, que o tempo escreveu uma obra sob forma de
mundo se reduz à mente de cada indiví diálogos, Alciphron, contra os livres-
duo, pois Berkeley ajunta um comple pensadores e, no período de 1732 a
mento essencial para evitar todo subjeti- 1734, redigiu O Analista, no qual criti
vismo individualista. Trata-se da cava o cálculo diferencial e integral de
postulação da existência de uma mente Newton, e Uma Defesa do Livre Pensa
cósmica, superior à mente de cada mento em Matemática.
homem. Essa mente cósmica é Deus, Em 1734 foi escolhido para o cargo
concebido como sujeito cognoscente ab de bispo de Cloyne, região isolada e
soluto, no espírito do qual todas as coi pobre da Irlanda, onde encontrou pro
sas seriam percebidas. O mundo é, por blemas que o fizeram refletir sobre os
tanto, concebido por Berkeley como um assuntos econômicos. O resultado disso
conjunto de coisas corpóreas existentes foi O Questionador, obra na qual apre
na mente divina e tendo nela toda sua senta uma série de questões econômicas
raz'âo de ser. e sociais, como a pobreza e a ociosidade,
propondo algumas soluções, através de
Um homem idealista trabalhos públicos e educação. Preocu
pou-se também com problemas de saúde
Berkeley tentou salvar o espírito e a pública e entusiasmou-se com os valores
religião com suas obras filosóficas. Se medicinais da água de alcatrão, na qual
alcançou o objetivo almejado, ou apenas acreditou ter encontrado uma verdadeira
substituiu a idéia abstrata de matéria panacéia universal. Escreveu então sua
por outra não meniqs abstrata, a de última obra, Siris ou Reflexões e Inves
Deus, é assunto discutível. Não se discu tigações Filosóficas sobre as Virtudes da
te, contudo, que foi um homem piedoso e Agua de Alcatrão, na qual se, aproxima
idealista (no sentido moral da palavra) de doutrinas do antigo neoplatonismo e
até os últimos dias de sua vida. analisa as causas dos fenômenos fisicos,
Depois de concluído o essencial de sua achando que elas devem ser explicadas
filosofia imaterialista, em 1713, quando pela ação divina.
contava apenas 28 anos de idade, viajou Siris foi publicada em 1744 e, dessa
para Londres, onde manteve contatos data em diante, pouco se sabe sobre a
com os poetas Joseph Addison vida de George Berkeley, a não ser que
(1672-1719) e Alexander Pope em 1752 se estabeleceu em Oxford, onde
(1688-1744), o escritor Richard Steele faleceu no ano seguinte.
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CRONOLOGIA
1685 — George Berkeley de Dublin. Denis Papin Derry (Irlanda). Nasce o fi
nasce em Kilkenny, Irlanda, constrói um barco a vapor. lósofo Emanuel Kant.
o 12 de março. Nascimento 1709 — Berkeley publica o 1728 — Berkeley casa-se e
de Bach, Hãndel e do pintor Ensaio para uma Nova Teo vai morar em Newport,
J. M. Nattier. ria da Visão. Rhode Island, nos Estados
1687 — Malebranche publi 1710 — Surge o Tratado Unidos.
ca Colóquios sobre a Meta sobre os Princípios do Co 1732 — Novamente em
física e Newton, os Princí nhecimento Humano de Londres, Berkeley publica
pios de Filosofia Natural. Berkeley. Leibniz publica a Alciphron.
1690 — Vem à luz o Ensaio Teodicéia. 1734 — É escolhido para o
sobre o Entendimento Hu 1713 — Berkeley cuida da cargo de bispo de Cloyne
mano de John Locke. publicação dos Três Diálo (Irlanda) e publica O Ana
1700 — Berkeley ingressa gos entre Hilas e Filonous e lista.
no Trinity College de Du começa um período de via 1735 — Publica Uma Defe
blin. gens, que se estende até o sa do Livre Pensamento em
1701 — Funda-se, na Ingla ano seguinte. Matemática e O Questiona-
terra, a Sociedade para Fo 1716 — Novo período de dor. Surge o Ensaio sobre o
mento do Conhecimento viagens que se prolonga até Homem de Alexander Pope.
Cristão. 1720. 1744 — Berkeley publica
1702 — Funda-se o primei 1721 — Publica um peque Siris. Nasce Lamarck.
ro diário inglês, o Daily no ensaio Sobre o Movi 1752 — Berkeley transfere-
Courant. mento, no qual critica New se para Oxford.
1707 — Berkeley torna-se ton e Leibniz. 1753 — Falece em Oxford,
professor no Trinity College 1724 — Torna-se deão de no dia 14 de janeiro.
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Modem Studies in Philosophy: Locke and Berkeley, editado por C. B. Martin e D. M. Arms
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432
OS PENSADORES
434
HUME
“O puro filósofo é uma personagem que o mundo em geral não acolhe muito bem,
porjulgar que ele não contribui nada para o proveito ou o prazer da
sociedade; enquanto ele, por seu lado, vive afastado do contato humano,
absorvido em princípios e idéias alheios à compreensão humana.” Não foi o caso
de Hume quando participou da vida mundana na corte de Viena, cidade acima
representada por Bellotto (1721-1 780). (Museu de História da Arte, Viena.)
os “donos” da filosofia oficial e as auto cepção o espera: é recusado sob a acusa
ridades religiosas. Dois anos depois a ção de heresia, ateísmo e por ser "notó
obra veio à luz, sem receber, contudo, a rio infiel”.
recepção triunfal que o ambicioso Hume Os planos ambiciosos do homem de
esperava. Ninguém Ibe deu maior aten letras e filósofo não davam certo. Parte
ção e o autor retirou-se decepcionado então para outros afazeres, que não
para Ninewells, em busca do conforto serão menos infelizes. Passa algum
dos amigos. Entre eles estava Adam tempo como tutor do Marquês de Annan-
Smitb (1723-1790), posteriormente fa dalfe e, logo depois, torna-se secretário
moso como principal figura da economia do General Saint-Clair numa expedição
política clássica. militar contra a França. O ataque foi
totalmente malogrado e todos voltam
Filósofo e embaixador humilhados para a Inglaterra. No ano
seguinte acompanha o mesmo general,
Apesar de aborrecido com o insucesso agora numa embaixada pacífica, até as
da primeira obra, Hume continua a cortes de Viena e Turim. Com o pomposo
escrever e publica, em 1741, os Ensaios título de marechal-de-campo, tem a
Morais e Políticos. O estilo elegante faz incumbência de auxiliar Saint-Clair no
a obra bem recebida, mas náo o sufi sentido de reforçar a aliança entre Ingla
ciente para satisfazer a ambição do terra, Áustria e Piemonte contra a Fran
autor. Hume tenta, então, outro cami ça. O papel não lhe cabia muito bem;
nho, apresentando-se como candidato ao segundo uma testemunha da época,
cargo de professor da cadeira de ética da parecia desajeitado e canhestro dentro
Universidade de Edimburgo. Nova de de suas vestimentas escarlates.
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FABBRI
tunada obra da juventude. DAVID Í1VA1E ESQÍ
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“Não há homem, por mais jovem e inexperiente, que não tenha formado, pela
observação, muitos preceitos gerais e justos sobre os assuntos humanos . . . mas
é preciso confessar que o homem que vem a pô-los em prática corre grandes
perigos de errar, enquanto o tempo e novas experiências não tiverem ampliado
esses preceitos . . Alguma coisa sobre os assuntos humanos Hume aprendeu em
Paris, onde certamente participou de passeios nos jardins do palácio real,
como o representado pela gravura acima, hoje no Museu do Louvre, Paris.
ca a de igualdade dos ângulos internos a ser amarelas. Os fatos concretos nâo se
dois retos, da mesma forma como a idéia riam passíveis de conhecimento demons
de movimento conduz às de espaço e trativo; nâo seria possível, portanto,
tempo, pouco importando saber se exis provar que o mundo deve ter esta ou
tem ou não as realidades concretas aquela estruturação.
correspondentes. Apenas nesse puro
nível de significados, sem relação com a Causas e efeitos
experiência sensível, é possível o conhe
cimento demonstrativo, isto é, o domínio Nâo é até esse ponto que a teoria de
da dedução lógica. Segundo Hume, esse Hume é mais original, pois, com algu
nível restrínge-se às idéias de quanti mas diferenças, ela já se encontra em
dade da matemática. Locke. A partir daí, Hume traça um
Por outro lado, os fatos concretos caminho próprio, desenvolvendo uma
revelados pela experiência sensível mos- doutrina da causalidade, especialmente
trar-se-iam ao sujeito do conhecimento importante porque os conceitos de causa
tais como são, sem quaisquer relações e efeito constituem um dos núcleos das
lógicas; deveríam ser aceitos como são metafísicas racionalistas. Esj;as conce
dados. Que as margaridas sejam bran bem a relação causai como conexão
cas, o chumbo seja pesado e o fogo quei necessária entre os fatos, mas, analisan
me — seriam fatos fechados em si mes do-se os fenômenos sensíveis, verifica-se
mos e logicamente estéreis. Poderíam a inexistência de qualquer impressão a
ser diferentes do que são e isso não ela correspondente. Se, por exemplo —
implicaria contradição alguma, ao con diz Hume —, toma-se o juízo causai “a
trário dos conceitos matemáticos. O pedra esquenta porque os raios de sol
triângulo plano nâo pode ser concebido incidem sobre ela”, constata-se que a
sem a idéia de soma dos ângulos igual a primeira e a última partes (“a pedra
dois retos, mas as margaridas poderíam esquenta” e “os raios de sol incidem
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HUME
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OS PENSADORES
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HUME
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OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1711 — David Hume nasce tar obter a cátedra de filoso go e edita os Discursos
a 7 de maio em Edimburgo, fia moral da Universidade Políticos.
Escócia. de Edimburgo. 1754 — Surge o primeiro
1723 — Hume ingressa na 1746 — Hume participa de dos quatro volumes de sua
Universidade de Edimbur uma fracassada missão mili História da Inglaterra.
go. Nasce Holbach, o siste- tar em território francês, co 1757 — Publica Quatro
matizador do materialismo mo secretário do General Dissertações.
francês. Saint-Clair. 1761 — Todas as obras de
1734 — Hume viaja para a 1748 — Hume acompanha Hume são colocadas no In
França onde, nos três anos o General Saint-Clair em dex dos livros proibidos.,
seguintes, escreverá o Trata missão diplomática na corte 1763 — Hume passa a resi
do sobre a Natureza Huma de Viena e publica Três En dir em Paris como secretá
na. Voltaire publica as Car saios sobre Moral e Política rio da embaixada inglesa.
tas Inglesas. e Investigação sobre o En 1766 — Retorna a Londres
1739 — Hume publica, na tendimento Humano. Surge e protege Rousseau, do qual
Inglaterra, os dois primeiros o Espírito das Leis de Mon se afastará pouco depois.
volumes do Tratado da Na tesquieu. 1769 — Hume volta a resi
tureza Humana, sem ne 1751 — Hume publica In dir em Edimburgo. Nascem
nhum êxito. Fréderico II, vestigação sobre os Princí Napoleão Bonaparte e o na
imperador da Prússia, publi pios da Moral. Surge o pri turalista Alexandre de
ca o Anti-Maquiavel. meiro volume da Enciclopé Humboldt.
1741 — A publicação dos dia. 1776 — Hume redige A Vi
Ensaios Morais c Políticos 1752 — Hume torna-se da de David Hume Escrita
traz algum renome a Hume. conservador da Biblioteca por Ele Mesmo e morre no
1744 — É recusado ao ten- dos Advogados de Edimbur- dia 25 de agosto.
BIBLIOGRAFIA
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e Melbourne, 1968.
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OS PENSADORES
44 6
VOLTA IRE
Aventuras precoces
Na mesma época, seu padrinho, o
abade de Châteauneuf, introduziu-o nos
círculos literários de Paris e no salão dt
famosa cortesà Ninou de Lenclos. Vol-
taire é ainda um menino e já conhece os
meios desregrados, onde o modo de viver
é comandado por epicuristas volup
tuosos e poetas galantes.
O pai não vê com bons olhos aquela
vida e providencia-lhe uma ocupação
mais séria, logo que o jovem completa o
curso no colégio. Voltaire torna-se
pajem do Marquês de Châteauneuf, em
O pintor Nicolas de Larguillière
missão diplomática na Holanda. Nessa
retratou Voltaire, quando era apenas
época, apaixona-se por Olympe Dunoyer
o brilhante poeta que encantava as
(Pimpette) e trama para que a moça vá
damas e satirizava os grandes da
morar com ele na França. Como Pim época. (Coleção Furstenberg.)
pette é protestante, a solução é conven
cer o padre Toumemine e o bispo de
Evreux de que se trata de obra piedosa barba, olhos vivos e perspicazes, jeito de
fazê-la voltar ao seio da Igreja Católica, sátiro, terrivelmente malicioso, encanta
mas para isso ela precisaria estar na dor e muito bem tratado com perfume de
França. Os padres, no entanto, não se essência de cravo.
deixam enganar pelo astuto apaixonado Torna-se amante de Susanne de Livry.
e o romance chega ao seu ponto final: freqiienta os salões mundanos, agrada à
Voltaire é mandado de volta à casa jovem Rainha Maria Leczinska, faz ver
paterna. sos galantes para as damas e pequenos
Triste e desolado, põe-se a escrever poemas satíricos. Pretensioso ao extre
versos. Compõe uma ode a Luís XIII, mo, quer tomar-se o grande trágico do
submete-a a concurso na Academia século, em substituição a Comeille e
Francesa, mas é vencido por um concor Racine. Escreve, então, uma peça.
rente. Vinga-se compondo uma sátira Edipo, em 1715, e compõe um poema
contra o rival e o resultado é uma briga épico sobre a Liga e Henrique IV, a
espalhafatosa, que o obriga a fugir de Henríada.
Paris. Em 1717, algumas anedotas contra o
Não seria a primeira briga nem a pri regente, Duque de Orléans, são atri
meira fuga. Voltaire começa a tornar-se buídas a Voltaire e valem-lhe uma pri
conhecido como turbulento e um relató meira passagem pela Bastilha. Na
rio policial o descreve como um moço mesma época, começa a aparecer como
magro, lábios finos e apertados, sem homem de negócios, nem sempre muito
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OS PENSADORES
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VOLTAIRE
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OS PENSADORES
o faz de maneira brilhante: tem o dom de da vida futura. Para Voltaire, os Pensa
apaixonar o leitor, fazê-lo compreender mentos de Pascal foram escritos com o
as idéias mais complexas e convertê-lo intuito de mostrar o homem sob uma luz
às suas opiniões. Desempenhou, assim, odiosa, pintando-o como um ser malva
um papel importante dentro da história do e infeliz, para sempre condenado em
das idéias. virtude do pecado original. Voltaire
Seu desenvolvimento intelectual teve insurge-se contra isso e toma o partido
um momento decisivo quando viveu na da humanidade. “Ouso assegurar que
Inglaterra. Anteriormente, Voltaire não somos tão malvados nem tão infeli
tinha aderido à dúvida metódica carte- zes”. Deseja apresentar um programa de
siana, ao ceticismo de Montaigne melhorias sociais para o aprimoramento
(1533-1592), ao epicurismo dos segui do homem e, para isso, acha necessário
dores de Gassendi (1592-1655), e ao combater as doutrinas defendidas por
espírito crítico de Pierre Bayle Pascal: pecado original, graça, predesti
(1647-1706). Contudo, foi o contato nação,providência divina.
com a atmosfera social, política e inte
lectual inglesa o fator determinante na A metafísica é uma quimera
articulação final de seu pensamento. As
Cartas Filosóficas ou Cartas Inglesas A partir das Cartas Filosóficas, Vol
expressam nitidamente essa influência e, taire foi o grande divulgador de algumas
de um ponto de vista estritamente filosó doutrinas correntes no século XVIII
fico, as mais ricas de conteúdo são as francês, tomando-as acessíveis a um pú
referentes a Newton, John Locke e Pas blico muito numeroso: o empirismo, o
cal (1 623-1662). ceticismo, o deísmo, a religião natural e
Com relação ao primeiro, os princí o humanismo ético.
pios metodológicos da física fundada na O empirismo voltairiano não ultra
observação e experimentação encora passa os limites da teoria do conheci
jaram Voltaire a criticar todas as teorias mento formulada por Locke, consistindo
e hipóteses puramente especulativas. apenas na crença dê que todo conheci
Por outro lado, a lei da gravitação-uni mento provém da experiência.
versal inspirou seu permanente temor O ceticismo não chega a ser, em Vol
pela grandeza dos céus, em comparação taire, uma doutrina sistemática, como a
com a pequenez da terra, e sua crença na desenvolvida pelos céticos da Antigui
existência de um ser supremamente inte dade greco-latina ou, mais moderna
ligente e criador do Universo. mente, por David Hume (17 1 1-1776). É
Mais significativas são as opiniões de antes uma atitude espiritual e refere-se,
Voltaire sobre Locke e a teoria empirista sobretudo, à impossibilidade de conhe
do conhecimento. Louva-lhe a análise cimento em matéria de metafísica. Para
paciente dos processos de formação do doxalmente, ele, que escreveu um Trata
conhecimento, a negação da existência do de Metafísica, não acredita ser
de idéias inatas independentes da expe possível chegar.ao desvendamento dos
riência e a afirmação das limitações da segredos últimos do Universo. “Como
mente finita, ao pretender o conheci pensamos”, “por que os pés e as mãos
mento do universo infinito. Locke foi, obedecem aos ditados da vontade” ou “o
para Voltaire, o homem que, modesta que é a matéria” seriam questões insolú
mente, escreveu a história da alma. veis. Sobre a alma, Voltaire afirma
Antes do filósofo inglês, uma “multidão numa carta a Boswell: “Você parece
de raciocinadores”, desde Anaxágoras apreensivo com relação a essa coisa cha
até Malebranche (1638-1715), teria mada alma. Devo declarar que nada sei
feito apenas o romance da alma. dela; nem se ela existe, nem o que ela é,
Na carta sobre Pascal, delineiam-se tampouco o que virá a ser. Jovens sábios
os elementos essenciais do pensamento e padres sabem tudo isso perfeitamente;
ético e social de Voltaire. Ele critica de minha parte, não sou mais que um
Pascal por ter este encontrado valor nos camarada muito ignorante”. A metafí
sofrimentos da existência terrena do sica, para Voltaire, é feita “de duas coi
homem como preparação para as glórias sas: a primeira, aquilo que todas as pes-
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VOLTAIRE
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OS PENSADORES
soas de bom senso sabem; a segunda,
aquilo que jamais saberão11. Em suma,
todo conhecimento seria quimérico, a
nâo ser o resultado do cálculo da medida
e da observação, vale dizer, o que se re
fere ao mundo físico.
Não obstante todo o ceticismo metafí
sico, expresso freqüentemente em suas
obras, Voltaire acredita numa certa
ordem inerente à natureza, na qual
encontram-se objetivos e desígnios; ela
não é caótica. Dessa ordem Voltaire
deduz como válidas as três provas da
existência de Deus, formuladas por
Santo Tomás de Aquino (c. 1 224- 1 274):
primeira causa, motor imóvel e inteli
gência suprema. Voltaire é, assim, um
filósofo teísta, pois acredita na exis
tência de um ser supremo, criador de
todas as coisas, mas não aceita os de
mais atributos que a tradição judaico- ,
cristã confere a Deus. Para ele, o criador
de todas as coisas fez o mundo e abando
nou-o à própria mercê.
A negação da providência divina e o
questionamento da bondade de Deus
encontram-se no Poema sobre o Desastre
de Lisboa e no Cândido. Ambos atacam a
teoria da harmonia preestabelecida e o
otimismo de Leibniz e Pope. Da mesma
forma, Voltaire não aceita o dogma do
pecado original e a doutrina cristã
segundo a qual Deus deixou o homem
livre para escolher entre o bem e o mal, a .
fim de testar sua alma. Se assim fosse,
pergunta o filósofo, como se pode expli
car que, no terremoto de 1 755, só a ci
dade de Lisboa tenha sido destruída? E
que inocentes tenham sido punidos jun
tamente com culpados?
Voltaire, no entanto, não foi um pessi
mista, como se poderia pensar à pri
meira vista. Ele combate apenas o oti
mismo metafísico, segundo o qual o
homem vive no melhor dos mundos pos
síveis e dentro do qual exclui-se a exis
tência do mal. Ao contrário, o mal esta
ria sempre presente, mas seria possível
superá-ío através das luzes da razão e
através do trabalho.
O mal que é preciso combater e o bem
que deve ser preservado são esvaziados
Maurice Quentin de La Tour retratou pelo autor do Cândido de todo signifi
Voltaire em 1736, dois anos após a cado metafísico e tornam-se realidades
publicação das Cartas Inglesas, obra sociais. A ética de Voltaire, como em
que causou escândalo em Paris efoi geral a de seus contemporâneos, ê uma
proibida. (Museu de Versalhes.) ética social. Seus valores são humanís-
4 52
VOLTAIRE
Em Femey, Voltaire tornou-se um fidalgo rural, que sabia cuidar, com métodos
modernos, de suas terras e tirar delas os maiores lucros. Ao lado dessas
atividades, continuou a escrever incessantemente até seus últimos dias,
polemizando contra as injustiças, o fanatismo religioso e a Igreja Católica.
(Gravura representando o castelo de Femey, Biblioteca Nacional, Paris.)
153
OS PENSADORES
CRONOLOGIA
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454
CAPÍTUIO33
IDEROT
OS PENSADORES
4 56
DIDEROT
sendo, ingressa no colégio jesuíta da ci derot aceita e põe-se a trabalhar, proje
dade natal, onde se revela brilhante tando refazer a obra totalmente. Procura
aluno, sobretudo em latim e matemática. obter o apoio oficial do rei, mas conse
Com apenas treze anos de idade recebe a gue apenas a boa vontade do censor das
tonsura, veste a sotaina e é chamado se publicações, desde que os artigos sobre
nhor abade. Os parentes ficam muito religião, metafísica e filosofia fossem
contentes, pensando que ele estivesse fiscalizados por um teólogo. Diderot
disposto a seguir a carreira eclesiástica, convida D’Alembert para ocupar o cargo
mas logo se desiludem. Diderot quer de co-diretor para os assuntos científicos
apenas estudar e para isso dirige-se a e reúne a intelectualidade francesa na
Paris e ingressa no Colégio Louis, le casa da Sra. Deffand, a fim de distribuir
Grand, onde Voltaire estudara anos tarefas. Rousseau encarrega-se da parte
antes. Aprofunda-se em lógica, física, de música, Dumarsais fica com a gramá
moral, matemática e metafísica, disci tica, ao abade Mallet reserva-se a teolo
plinas vestidas convenientemente, no en gia. O próprio Diderot incumbe-se da
sino da época, em roupagem aristotélica história da filosofia, ofícios, artes técni
e teológica. Em 1732 torna-se “maitre cas e de tudo aquilo para o qual não
des arts” pela Universidade de Paris e achasse redator. Além disso, escreveria
mostra-se possuidor de considerável o Prospecto, ficando para D’Alembert o
erudição em grego, italiano e inglês, Discurso Preliminar.
adquirida autodidaticamente. Ao lado do trabalho da Enciclopédia,
As necessidades da vida prática, con cuja história seria longa e cheia de vicis-
tudo, precisavam ser satisfeitas e a famí situdes, Diderot dedica-se a outras tare
lia opunha-se a sustentar um intelectual. fas, em parte porque as cem libras pagas
Diderot torna-se entáo procurador, mas pelos editores não permitiam satisfazer
a profissão lhe é tão desagradável que a os encargos com Antoinette e a Sra.
abandona depois de dois anos. Passa Puissieux, mas sobretudo porque suas
fome, pede dinheiro emprestado e não inquietações intelectuais e artísticas
paga, dá algumas au!as de matemática e exigiam outros meios de expressão.
redige sermões para sobreviver. Em Escreve e publica, em 1746, os Pensa
1741, encontra Antoinette, atraente mu mentos Filosóficos, que lhe rendem cin
lher de 31 anos de idade, filha de uma quenta luíses e provocam sua condena
pequena comerciante de roupas feitas. ção pelo Parlamento de Paris. O autor
Casa-se, apesar dos protestos do pai, sustenta, nessa obra, os direitos da
que chega a solicitar sua prisão. Em razão e da crítica diante da fé e da reve
1744, nasce uma filha, Angélica, e os lação, e isso parecia altamente perigoso
problemas de subsistência continuam a às autoridades. Mas Diderot está dis
atormentá-lo. O abismo entre o casal é posto a enfrentar os inimigos. Escreve O
cada vez maior: Antoinette representa o Passeio do Cético e é perseguido pela
prosaico, a ordem, a limpeza, a ignorân polícia, que acaba confiscando-lhe o
cia, enquanto Diderot é boêmio, desor manuscrito. Não se amedronta e redige a
denado e inteligente. Suficiência da Religião Natural e /Is
Para piorar ainda mais a situação, Joias Indiscretas, obra que causa escân
Diderot arranja uma amante, a Sra. de dalo, mas vende bem. Tantas são as crí
Puissieux, também atormentada por ticas, que desiste de imprimir a alegoria
problemas econômicos. priápica O Pássaro Branco, Conto Azul.
Entretanto isso de nada adianta e as
Uma enciclopédia perseguições sucedem-se, culminando
abala a França pela prisão no castelo de Vincennes.
Só em agosto de 1749, cessa sua
A salvação veio sob a forma de um incomunicabilidade e Diderot passa a
convite dos livreiros Briasson, Durand e receber a esposa e os amigos. No mesmo
David para que Diderot traduzisse do ano publica a Carta sobre os Cegos para
original inglês a C.yclopédia de Uso Daqueles que Vêem, onde coloca um
Ephraim Chambers, publicada em 1 7 28. problema de especial interesse para a
Pagar-lhe-iam cem libras mensais. Di teoria empirista do conhecimento: pode
OS PENSADORES
458
DIDEROT
FAB B RI
Catarina II, a Grande (1729-1796), governou a Rússia de 1762 até sua morte.
Discípula dos enciclopedistas, continuou a ocidentalização iniciada por
Pedro, o Grande (1672-1725) e foi grande amiga de Diderot, do qual adquiriu
toda a biblioteca e encarregou de jazer uma edição especial da Enciclopédia.
(Catarina II, tela de Erichsen Vigilius, Museu de Belas-Artes, Chartres.)
459
OS PENSADORES
O que é o mundo?
A frase de Diderot, contudo, não sig
nifica que ele tenha sido, dentro da his
tória da filosofia, um representante das
doutrinas céticas. Seu pensamento inse
re-se dentro das correntes materialistas
resultantes do desenvolvimento das ciên
cias naturais. Estas, por sua vez, têm
suas origens nos fins da Idade Média,
quando o homem europeu deixava de
organizar-se exclusivamente em torno
da idéia de Deus e voltava suas atenções
para o mundo material.
Como conseqiiência, renovou-se o in
teresse pelas teorias dos antigos atomis-
tas gregos, Leucipo (séc. V a.C.), Demó- ENCYCLOPEDIE,
crito (c. 460-370 a.C.) e Epicuro (c. Ol
341-270 a.C.), e formularam-se as dou DICTIONNAIRE RAISONNE
trinas materialistas de Pierre Gassendi
(1592-1655) e de Thomas Hobbes DES SCIENCES,
(1588-1679). Na época de Diderot o DES ARTS ET DES MÉTIERS,
materialismo sistematizou-se nas obras UV£ ÍOC/£T£ DE CENS DE LETTR.Es.
460
DIDEROT
FAB B RI
A Enciclopédia, dirigida por Diderot, não serviu apenas aos assuntos
filosóficos, mas também para a difusão de novos conhecimentos científicos,
como as notações químicas, feitas por Lavoisier, Dalton e Priestley,
abandonando a alquimia antiga. Uma gravura da Enciclopédia representa um
laboratório e uma tabela de elementos. (Bibl. Nacional Braidense, Milão.)
materialista própria, que integra concei assim, visto por Diderot como obediente
tos explicativos das ciências biológicas às leis formuladas por Descartes para a
e se afasta da física. Em vários escritos matéria; é dinâmico e está em perma
seus encontra-se essa concepção, espe nente transformação, em vez de estático
cialmente na Carta sobre os Cegos, e criado como um conjunto de coisas
Pensamentos sobre a Interpretação da fixas, como concebia a tradição aristoté-
Natureza e Sonho de DAlembert. lica e escolástica cristã.
A principal idéia de Diderot é a da Diferentemente de Descartes, que
existência de uma organização na natu supõe o movimento como algo ajuntado
reza, que a faz compor um verdadeiro à matéria (cuja essência seria a exten
sistema, isto é, um conjunto onde tudo são), Diderot esposa a tese de John To-
está unido, constituindo uma cadeia con land (16707-17 22) de que o movimento
tínua, desde as formas mais primitivas constitui a própria essência da matéria.
de organização da matéria até as mais Aproveita, assim, a teoria idealista de
complexas, nos domínios do humano. Leihniz sobre as mónadas e confere-lhe
Esse "sistema da natureza” estaria um significado positivo. Os corpos não
animado por um fluxo, tal como aquele seriam movimentados por forças exte
concebido por Heráclito de Éfeso (séc. riores, mas os próprios átomos conte-
VI-V a.C.) na Antiguidade. O Universo é, ríam forças internas, ou seja, uma espé-
461
OS PENSADORES
FAB B RI
462
DIDEROT
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OS PENSADORES
CRONOLOGIA
1713 — Diderot nasce em 1748 — Publica Jóias In 1760 — Diderot escreve A
Langres, a 5 de outubro. discretas. Surge O Espírito Religiosa.
1726 — Diderot recebe a das Leis de Montesquieu. 1762 — Supressão da or
tonsura. 1749 — Diderot publica dem dos jesuítas na França.
1728 —- É publicada, na In Carta sobre os Cegos. A 24 O Emílio de Rousseau é
glaterra, a Cyclopaedia de de julho é encarcerado. condenado.
Chambers. 1750 — O Prospecto da En 1769 — Diderot termina O
1732 — Diderot torna-se ciclopédia é levado ao co Sonho de D’Alembert.
“maítre des arts” pela Uni nhecimento do público. 1770 — Nascimento de
BRASIL
versidade de Paris. 1751 — Publicação do pri Beethoven.
1741 —Encontra Antoinet- meiro tomo da Enciclopé 1773 — Diderot escreve
te. Hume escreve os Ensaios dia. Jacques, o Fatalista. Viaja
-
Morais e Políticos. 1752 — Primeira condepa- para a Rússia.
SÃO PAULO
1742 — Diderot inicia sua ção da Enciclopédia. 1774 — Deixa Petersburgo
amizade com Rousseau. 1754 — Diderot publica os e retorna a Paris. Morte de
1743 — Casa-se com An- Pensamentos sobre a Inter Luís XV e ascensão de Luís
toinette. pretação da Natureza. Surge XVI.
1746 — Diderot é convida o Discurso sobre a Origem 1775 — Início da guerra de
-
E INDUSTRIAL
do a traduzir a Cyclopaedia da Desigualdade de Jean- independência americana.
de Chambers. Jacques Rousseau. 1776 -— Diderot publica o
1747 — Redige o Passeio 1756 — Nasce Mozart. Iní Colóquio de um Filósofo
do Cético, que será publica cio da Guerra dos Sete com a Marechala.
do em 1830. Anos. 1784 — Falece em Paris.
ABRIL S. A. CULTURAL
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-
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-COPYRIGHT MUNDIAL. 1973
464
OS PENSADORES
O despertar da imaginação
Chamava-se Jean-Jacques Rousseau e
nascera em Genebra, a 28 de junho de
1712, filho de Isaac Rousseau, cujos
Allan Ramsay (1 713-1784) retratou antepassados protestantes provinham da
Rousseau em roupas de armênio. (Gal. região de Paris e da Sabóia e se refugia
Nac. da Escócia). Napág. anterior: ram na cidade de Calvino, durante as
busto de Rousseau, por Houdon, guerras religiosas na França do século
Museu Fabre, Montpellier. (Fabbri). XVI. O primeiro desses antepassados
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ROUSSEAU
FABBRI
“Nasci quase morto;poucas esperanças tinham de me salvar. Trazia comigo o
germe duma enfermidade que os anos pioraram e que, agora, não me dá descanso
senão para deixar-me, com maior crueldade, sofrer de outro modo. Uma irmã de
meu pai . . . cuidou tanto de mim que conseguiu salvar-me.” (Genebra, cidade
natal de Rousseau, numa gravura; Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.)
467
OS PENSADORES
SNARK INTERNATIONAL
“Enfim chego: vejo a Sra. de Warens. Esta época de minha vida determinou
meu caráter . . . Estava na plenitude dos meus dezesseis anos. ” Tomando-se
protetora de Rousseau, a Sra. de Warens exerceu profunda influência sobre
ele, acompanhando-o durante sua adolescência. (Encontro de Rousseau com
a Sra. de Warens, ilustração das Confissões, Biblioteca Nacional de Paris.)
468
ROUSSEAU
FABBRI
na vida de Jean-Jacques.
Na noite de 15 de março de 1728, dor
miu na esplanada externa das portas da Nesta casa de campo — chamada Les
cidade, jurando partir para sempre Charmettes e de propriedade da Sra.
quando raiasse o dia. Partia animado de Warens — Rousseau viveu dos vinte
pelos mais belos sonhos. Livre e senhor aos vinte e oito anos, lendo muito
de si mesmo acreditava poder fazer tudo e escrevendo alguns poemas.
o que quisesse. Entrava com a maior
segurança no mundo, onde julgava poder
encontrar festins, tesouros, aventuras, da por missionária tão encantadora não
amigos e amantes. poderia deixar de conduzir ao paraíso. A
Mas nada ocorreu como esperava e Sra. de-Warerts quis conservá-lo junto a
Jean-Jacques logo sentiu as angústias si, mas por prudência achou melhor
da fome. Procurou então o cura de Con- enviá-lo a Turim, onde havia um asilo
fignon, Senhor de Pontverre, que se destinado a catecúmenos. Chamava-se
dedicava à tarefa de reconduzir ao seio Asilo do Espírito Santo e causou a pior
da Igreja Romana os jovens calvinistas impressão no jovem Jean-Jacques. Su
de Genebra. Jean-Jacques orienta logo a portou, contudo, os aspectos negativos e
conversa nesse sentido, pois era uma representou o papel de catecúmeno por
maneira fácil de resolver problemas de que não via como safar-se.
subsistência, e o cura, pretendendo Foi declarado converso, fizeram-lhe
arrancar mais uma alma à heresia, suge uma coleta que rendeu vinte francos: es
riu-lhe dirigir-se a Annecy: “Lá encon tava livre para novas aventuras.
trareis uma senhora muito caritativa”. Os vinte francos acabaram logo e
Jean-Jacques viu-se obrigado a procurar
Protestante ou católico? trabalho. Ofereceu seus conhecimentos
como gravador à Sra. Basile, com a qual
A Sra. de Warens não era uma velha ficou pouco tempo, e depois trabalhou
devota como imaginara. Tinha 28 anos como secretário da condessa de Vercel-
de idade, um belo rosto, olhos azuis ple lis, da qual roubou uma fita cor de rosa,
nos de doçura, cor de pele maravilhosa e pondo a culpa na camareira. Com o fale
um pescoço encantador. Jean-Jacques cimento da condessa, três meses depois,
tornou-se imediatamente prosélito cató passou a ser empregado do conde de
lico, pois, para ele, uma religião prega- Gouvon. Enamorou-se da jovem nora do
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“Oh! virtude, ciência sublime das almas simples! Serão necessários, então,
tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? . . . não bastará para aprender tuas
leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das
paixões? Aí está a verdadeira filosofia ...” (Gravura representando a Rua
Saint Denis, Paris, em 1745, Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.)
tardes que entreviu o caminho a ser tri posta à sua disposição pela Sra.
lhado pelo seu pensamento inquieto, ao d’Epinay. Ali põe-se a escrever o roman
responder negativamente à questão ce epistolar A Nova Heloísa, obra bem
sobre se o progresso das ciências e das típica de sua personalidade romântica. É
artes tinha contribuído para aprimorar a estória de um homem que conhece o
os costumes. amor mais pela imaginação do que na
No ano seguinte recebeu o primeiro realidade. Os cuidados exteriores de que
prêmio nesse concurso e com ele veio cerca o trabalho não são menos signifi
também a fama, há tanto esperada, e cativos: usava o mais belo papel doura
sobretudo a possibilidade de ser ouvido do, pó de ultramarino e de prata para
por círculos mais amplos. Dois anos secar a tinta e fita azul para costurar os
depois, um intermezzo operístico de sua cadernos. Ao mesmo tempo, apaixona-se
autoria, O Adivinho da. Aldeia, é levado pela Sra. d’Houdedot, briga com o
à cena em Fontainebleau e lhe é ofere amigo Diderot por achá-lo implicado em
cida uma pensão real, que orgulhosa intrigas com a referida senhora e apre
mente recusa. Publica a Carta sobre a senta os primeiros sinais claros da
Música Francesa, na qual defende o esti mania de perseguição, que se toma cada
lo italiano; visita Genebra, onde retoma vez mais doentia nos anos seguintes.
à fé protestante que abjurara e escreve Em 1757, deixa o Ermitage e passa a
dois discursos Sobre a Origem da Desi viver em Montlouis, onde permanece
gualdade e Sobre a Economia Política, o durante cinco anos muito produtivos e
último por encomenda de Diderot para a felizes. Escreve a Carta sobre os Espetá
Enciclopédia. culos, em que critica um artigo de
Em 1756, passa a morar no Ermitage, D’Alembert sobre Genebra, publicado na
uma enorme casa em Montmorency, Enciclopédia, e opõe-se ao estahelecí-
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fabbri
“O que há de mais cruel ainda é que, todos os progressos da espécie humana
distanciando-a incessantemente de seu estado primitivo, quanto mais
acumulamos novos conhecimentos, tanto mais afastamos os meios de adquirir o
mais importante de todos, e ainda que, num certo sentido, à força de estudar
o homem, tomamo-nos incapazes de conhecê-lo. ” (Gravura do séc. XVIII mostra
Ermitage, uma das casas em que Rousseau viveu; Museu Rousseau, Montmorency.)
que se realiza na luta contra os obstá sentimento, essa “outra faculdade infini
culos e na atividade criadora do espirito tamente mais sublime”, como o verda
livre de pressões. deiro caminho para a penetração na
O retomo à pureza da consciência essência da interioridade.
natural é o dever fundamental de todo O sentimento como instrumento de
homem, segundo Rousseau. Com isso, penetração na essência da interioridade
ele retoma de certa forma, o “conhece-te é outro dos elementos estruturais do
a ti mesmo” socrático. Em Sócrates, no pensamento de Rousseau. Núcb o central
entanto, a análise da consciência tem de todo pensar filosófico, constituiría a
significado completamente diverso, inse- chave com que se pode compree nder
rindo-se em outro quadro de referências. toda a natureza e alcançar misticamente
Diante dos filósofos anteriores que se o próprio infinito. Deixar de lado as
preocupavam em descobrir a constitui convenções da razão civilizada e imergir
ção fundamental do mundo da matéria, no fundo da natureza através do senti
Sócrates reivindicou como centro do mento significa elevar-se da superfície
pensar filosófico o próprio homem e os da terra até a totalidade dos “seres, ao
valores que orientam sua conduta. Mas a sistema universal das coisas, ao ser
diferença maior entre Sócrates e Rous incompreensível que a tudo engloba”.
seau não reside nisso mas no fato de que Perdido o espírito nessa imensidão, o
o “conhece-te a ti mesmo” socrático é ta indivíduo não pensa, não raciocina, não
refa intelectual a cargo da razão e Rous filosofa, mas sente com voluptuosidade,
seau, ao contrário, vê no intelecto uma abandona-se ao arrebatamento, perde-se
faculdade que conduz o homem para com a imaginação no espaço e lança-se
fora de si mesmo. Rousseau aponta o ao infinito. Essa imersão mística no infi-
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Defendendo a
pureza infantil
Rousseau desloca, assim, duplamente
o centro de gravidade da reflexão filosó
fica. Em primeiro lugar, não é a razão
mas o sentimento o verdadeiro instru
mento de conhecimento; em segundo
lugar, não é o mundo exterior o objeto a
ser visado mas o mundo humano. Ambos
os aspectos vinculam-se intimamente e
implicam a passagem da atitude teórica
para o plano da valorização moral.
Dessa forma, o traço mais significativo
do pensamento de Jean-Jacques Rous
seau passa a residir nos caminhos práti
cos que ele procurou apontar para o
homem alcançar a felicidade, tanto no
que se refere ao indivíduo quanto no que
se relaciona à sociedade. No primeiro
caso, formulou uma pedagogia, que se
encontra no Emílio; no segundo, teori
zou sobre o problema político e escreveu
o Contrato Social, além de outras obras
menores.
O Emílio é um ensaio pedagógico sob
forma de romance e nele Rousseau pro
cura traçar as linhas gerais que deve
ríam ser seguidas com o objetivo de
faz.er da criança um adulto bom. Mais
exatamente, trata dos princípios para
evitar que a criança se tome má, já que o
pressuposto básico do autor é a crença
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“Se tivera de escolher o lugar de meu nascimento . . . teria procurado um país
no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos, pois quem
melhor do que eles pode saber quais as condições em que lhes convém viver
juntos numa mesma sociedade?” (Guache do pintor Moretti, representando o
moinho e os jardins de Ermenonville, onde Rousseau terminou os seus dias.)
social, mas à vontade geral, que é “uma que não é um ser isolado mas parte de
força real, superior à ação de qualquer um grande todo. Liberto dos estreitos
vontade particular”. Essa obediência ja limites de seu próprio ser individual,
mais suscita qualquer apreensão, pois a encontra plenitude numa verdadeira ex
vontade geral, segundo Rousseau, é periência social de fraternidade e igual
sempre dirigida para o bem comum. dade, junto a cidadãos que aceitam o
A alienação total ao Estado envolve mesmo ideal.
igualdade ainda noutro sentido, na me A concepção rousseauniana do direito
dida em que a vontade geral não é auto político é, portanto, essencialmente de
ridade externa obedecida pelo indivíduo mocrática, na medida em que faz depen
a despeito de si mesmo, mas corporifi- der toda autoridade e toda soberania de
cação objetiva de sua própria natureza sua vinculação com o povo em sua tota
moral. Aceitando a autoridade da vonta lidade. Além disso, a soberania é inalie
de geral, o cidadão não só passa a per nável e indivisível e, como base da pró
tencer a um corpo moral coletivo, como pria liberdade, é algo a que o povo não
adquire liberdade obedecendo a uma lei pode renunciar ou partilhar com os
que prescreve para si mesmo. É por outros, sob pena de perda da dignidade
intermédio da lei que ele ultrapassa os humana. A soberania pode, contudo, ser
limites da vida apetitiva para seguir os delegada em suas funções executivas,
ditames da razão e da consciência. A segundo formas diversas; nascem,
submissão à vontade geral, possuidora assim, os governos monárquicos, aristo
de “inflexibilidade que nenhuma força cráticos e republicanos, cada um deven
humana pode superar”, conduz a uma do corresponder a circunstâncias histó
liberdade que “resguarda o homem do ricas e geográficas específicas.
vício” e a uma moralidade que “o eleva Para Rousseau, a lei, como ato da
até a virtude”. O indivíduo é, assim, vontade geral e expressão da soberania,
investido de uma outra espécie de bon é de vital importância, pois determina
dade, aquela virtude genuína do homem, todo o destino do Estado. Assim os legis
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ladores têm relevante papel no Contrato que formulou, nem a penetração analí
Social, sendo investidos de qualidades tica dos problemas. Seu pensamento
quase divinas. É deles que o cidadão procede antes pela expressão de intui-
“recebe, de certa forma, sua vida e seu ções resultantes da paixão permanente
ser” e transforma-se superando a exis com que viveu todos os problemas da
tência independente, que usufrui no esta existência mais comum, como também
do natural, e penetrando na vida moral os da cultura no nível superior das
como um ser comunitário. Esse novo idéias. Mas soube como poucos expres
modo de existência nâo lhe é imposto de sar essas intuições e defendê-las apaixo-
fora, mas resulta de uma vontade prove nadamente. As idéias correspondentes a
niente do fundo de seu ser interior. Os essas intuições não são conceitos abstra
legisladores devem, assim, assemelhar- tos mas realidades vividas intensamente
se aos deuses, mas perseguindo sempre o e valores morais imersos na mais nervo
objetivo de servir às necessidades essen sa sensibilidade. Opor-se aos filósofos
ciais da natureza humana. não foi para ele apenas assunto teórico,
Nos últimos capítulos do Contrato mas questão de honra pessoal.
Social, Rousseau acrescenta um con Toda essa carga emocional e a capaci
junto de sanções rigorosas que acredi dade de expressão estética que possuía
tava serem necessárias para a manuten deram força incomum ao seu pensa
ção da estabilidade política do Estado mento e fizeram dele um marco revolu
por ele preconizado. Propõe a introdu cionário dentro da história da cultura.
ção de uma espécie de religião civil, ou Sua influência estendeu-se aos mais
profissão de fé cívica, a ser obedecida diversos campos. Os princípios de liber
pelos cidadãos que, depois de aceita- dade e igualdade política, formulados
rem-na, deveriam segui-la sob pena de por ele, constituíram as coordenadas
morte. Nisso se viu algo de extrema teóricas dos setores mais radicais da
mente chocante, mas é preciso não Revolução Francesa (Robespierre era
esquecer que Rousseau jamais foi um seu fervoroso seguidor) e inspiraram sua
liberal no sentido político do termo. Ele segunda fase, quando forám destruídos
não acredita na possibilidade de qual os restos da monarquia e foi instalado o
quer rígida separação entre o indivíduo e regime republicano, colocando-se de
o Estado — como queriam os teóricos lado os ideais do liberalismo de Voltaire
liberais — e acha inconcebível o desen e Montesquieu (1689-1755). As teorias
volvimento da plena vida moral sem políticas do idealismo alemão do século
ativa participação do indivíduo no corpo XIX — que glorificaram o Estado como
inteiro da sociedade; por outro lado, Deus na história — também devem a
estabelece que a unidade e permanência Rousseau, quando passam de sua dou
do Estado depende da integridade moral trina de que o Estado é legalmente oni
e da lealdade indivisível de cada cida potente para a exaltação absolutista do
dão. A profissão de fé cívica formulada mesmo. Isso, apesar de Rousseau ter
por Rousseau reduz-se a alguns poucos afirmado claramente que a maioria
dogmas simples que todo ser racional e deveria ser limitada por restrições mo
moral deveria aceitar: crença num ser rais, e insistido no direito do povo de
supremo, vida futura, felicidade dos jus derrubar o governo quando este deixasse
tos, punição dos culpados. A esses dog de ser expressão da vontade geral.
mas positivos deve-se acrescentar ape Por outro lado, a valorização rous-
nas um negativo: a rejeição de todas as seauniana do mundo dos sentimentos,
formas de intolerância. em detrimento da razão intelectual, e da
natureza mais profunda do homem, em
A herança de Rousseau contraposição ao artificialismo da vida
civilizada, encontra-se precisamente na
Jean-Jacques Rousseau não terá sido base do amplo movimento romântico
um filósofo no sentido mais estrito do que caracterizou a primeira metade do
termo. Seu forte não era o encadeamento século XIX e permanece vigorando até
lógico das idéias nem a fundamentação os dias de hoje, como uma das formas
rigorosamente racional dos princípios básicas de sentir e pensar o mundo.
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CRONOLOGIA
1712 Jean-Jacques Rous 1749 — Rousseau redige o Rousseau é perseguido, re
seau nasce em Gendbra, Discurso sobre as Ciências fugiando-se em Neuchâtel.
no dia 28 de junho. e as Artes. 1764 — Redige um Proje
1719 — É publicado o Ro- 1752 — O “intermezzo” to de Constituição para a
binson Crusoé de Daniel operístico de Rousseau, O Córsega e as Confissões.
Defoe, que expressa um dos Adivinho da Aldeia, é ence 1765 — É obrigado a dei
traços fundamentais do pen nado em Fontainebleau. A xar Neuchâtel e refugia-se
samento de Rousseau. Enciclopédia, dirigida por na Inglaterra, junto a David
1722 — Rousseau passa a Diderot, é condenada pela Hume; desconfia do amigo e
estudar na casa do ministro primeira vez. sente-se cada vez mais alvo
Lambercier, em Bossey. Ra 1754 — Rousseau visita de conspirações.
meau publica o Tratado de Genebra e volta ao protes 1767 — Volta à França,
Harmonia e Bach compõe o tantismo. O filósofo Condil- casa-se com Thérèse Levas
Cravo Bem Temperado. lac publica o Tratado sobre seur e publica o Dicionário
1728 — Rousseau foge de as Sensações. de Música.
Genebra, encontra a Sra. de 1755 — Rousseau publica 1771 — Escreve as Consi
Warens e converte-se ao ca os discursos Sobre a Origem derações sobre o Governo
tolicismo em Turim. da Desigualdade e Sobre a da Polônia. Para justificar-
1740 — Torna-se precep- Economia Política. se de ataques, alguns reais,
tor, mas não consegue bons 1756 — Passa a morar no outros imaginários, compõe
resultados como pedagogo. Ermitage e começa a escre os Diálogos — Rousseau,
Richardson publica o ro ver o romance A Nova Juiz de Jean-Jacques.
mance Pamela e Satã. Heloísa. 1776 — Escreve os Deva
1742 — Rousseau chega a 1757 — Escreve o Emílio neios de um Caminhante
Paris, em busca de sucesso. e o Contrato Social. A ma Solitário.
D’Alembert redige o Trata nia de perseguição começa a 1778 — Falece em 2 de ju
do de Dinâmica. apresentar os primeiros sin lho e é enterrado na ilha dos
1745 — Rousseau liga-se tomas. Choupos, em Ermenonville.
a Thérèse Levasseur, com a 1762 — O Contrato So Durante a Revolução Fran
qual passará toda a vida e cial e o Emílio são condena cesa, seus restos mortais se
terá cinco filhos. dos pelas autoridades, e rão colocados no Panteão.
BIBLIOGRAFIA
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Derathe, Robert: Le Rationalisme de J. J. Rousseau, Presses Universitaires de France,
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Mondolfo, Rodolfo: Rousseau y la Conciencia Moderna (original italiano), Editorial
Universitária de Buenos Aires, 1962.
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ARBORIO MELLA
A Guerra dos Sete Anos (1756/1763) envolveu Prússia e Inglaterra, de um lado,
e Áustria e França, de outro. Com ela, a Prússia, sob liderança de Frederico,
o Grande, conseguiu aumentar seu poderio e consolidar sua liderança sobre a
Europa central, em detrimento da Áustria. (Festa comemorativa da paz de 1763,
no Palácio de Versalhes; Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.)
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A obra de Kant. A Religiào dentro dos Limites da Simples Razáo sofreu severa
censura por parte de Frederico Guilherme II, rei da Prússia. Segundo um
decreto real, o livro desfigurava a essência do cristianismo e o autor não
deveria mais abordar questões religiosas, oralmente ou por escrito.
(Biblioteca de Frederico Guilherme II, no castelo de Charlottenburg, Berlim.)
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Sobre sua vida pessoal, Kant quase nada deixou para os historiadores.
Com relação aos primeiros anos da vida, o filósofo afirmava que o homem que
sente nostalgia aa infância jamais saiu dela. Seus biógrafos afirmam que ele
sentia angústia e terror, quando se voltava para os anos de “escravidão
juvenil”. (Casa de Kant, segundo gravura de 1845; Museu de Kõnigsberg.)
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Herder, inicialmente seguidor do filósofo, opôs-se depois radicalmente à
filosofia transcendental ae Kant. Klopstock, buscando inspiração nas fontes
nacionais, foi um dos precursores do romantismo alemão. Kant não gostava de
sua poesia, por achá-la carente de força plástica. (Retrato ae
Herder, por A. Frajf, e de Klopstock, por Jens Juel; Museu de Halberstadt.)
antes “idéia de um procedimento univer cias, ou seja, os objetos tais cõmo resul
sal da imaginação” que torna possível tam das sínteses apriorísticas do próprio
uma imagem do conceito. Enquanto a ato de conhecer. A matemática e a física,
imagem é produto da faculdade empírica por se constituírem dentro dessas con
da imaginação reprodutiva, o esquema dições, podem arrogar o título de disci
dos conceitos sensíveis é um produto e, plinas científicas. O problema colocado
por assim dizer, um monograma da pura em seguida por Kant (na “Dialética
imaginação a priori, mediante o qual Transcendental”) foi o de saber se o
tornam-se possíveis as imagens. O es mesmo direito poderia ser pretendido
quema da substância, por exemplo, é a pela metafísica.
permanência do real no tempo; o esque
ma da causalidade é a sucessão tempo As idéias da razão
ral da diversidade, de acordo com uma
regra. A metafísica analisada por Kant é a
Em síntese, a teoria desenvolvida por disciplina que sempre pretendeu dar res
Kant na “Estética” e na “Analítica” postas últimas e definitivas para os vá
transcendentais mostra que todo conhe rios problemas, procurando conhecer as
cimento é constituído por sínteses dos coisas em si mesmas. Nesse sentido a
dados ordenados pela intuição sensível metafísica tradicional afirma a imortali
espaço-temporal, mediante as catego dade da alma humana; diz o que é o uni
rias apriorísticas do entendimento. Por verso enquanto totalidade; procura pro
conseguinte, não seria possível conhecer var, de maneiras diversas, a existência
o noumenon, as coisas em si mesmas, de um ser supremo. Todas essas afirma
mas tão somente o fenômeno, as aparên ções, segundo Kant, não são legítimas
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As obras de Kant que tratam dos problemas morais não abordam os costumes e as
ações humanas, tais como elas ocorrem de fato. Ofilósofo buscou os
princípios necessários e universais das ações humanas enquanto produtos da
razão pura em sua dimensão prática. (Tela de Daniel Chodowieck: “Reunião
Campestre no Tiergarden de Berlim”; Museu de Artes Plásticas, Leipzig.)
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enumeração de causas dos fenômenos também por uma dimensão prática, que
até se chegar a uma causa não causada, determina seu objeto mediante a ação.
que seria Deus. Para Kant o erro dessa Nesse sentido, a razão cria o mundo
argumentação é óbvio: não há motivo moral e é nesse domínio que podem ser
algum para se cessar a aplicação da encontrados os fundamentos da metafí
categoria de causalidade. sica. Para dar conta do problema da
Finalmente, o argumento físico-teo- moral, Kant escreveu, depois da Crítica
lógico (todos os seres da natureza cum da Razão Pura, a Fundamentação da
prem algum fim, servem para alguma Metafísica dos Costumes (1885) e a Crí
coisa, logo deve haver um fim último: tica da Razão Prática, suas obras mais
Deus) utiliza indevidamente o conceito importantes nesse terreno.
de fim. Kant mostra que se trata de um Na Fundamentação da Metafísica dos
conceito metodológico, empregado para Costumes, Kant afirma a necessidade de
descrever a realidade, mas do qual não se formular uma filosofia moral pura,
se pode extrair qualquer outra conse despida, portanto, de tudo que seja
quência, como fazem os teólogos. Não é empírico. Repetia, assim, no que diz res
lícito, sem se sair dos limites da expe peito à ação humana, as linhas mestras
riência, tirar da adequação a finalidades do projeto que formulara ao abordar o
quaisquer conclusões referentes a um ser problema do conhecimento. Dentro
superior. dessa perspectiva, a moral é concebida
Em síntese, a metafísica ultrapassaria como independente de todos os impulsos
todas as limitações inerentes ao ato de e tendências naturais ou sensíveis; a
conhecer (tal como definido na “Estéti ação moralmente boa seria a que obede
ca” e na “Analítica” transcendentais), cesse unicamente à lei moral em si
fazendo afirmações inteiramente ilegíti mesma. Esta somente seria estabelecida
mas. Ela aplica as categorias apriori do pela razão, o que leva a conceber a liber
entendimento fora dos limites da intui- dade como postulado necessário da vida
.ção sensível; os juízos sintéticos com os moral. A vida moral somente é possível,
quais se apresenta são na verdade falsos, para Kant, na medida em que a razão
porque são sínteses no vazio. A metafí estabeleça, por si só, aquilo que se deva
sica pretende conhecer as coisas-em-si e obedecer no terreno da conduta.
essa é uma pretensão contraditória: o Na Crítica da Razão Prática, o méto
ato de conhecer, pela sua própria natu do kantiano é invertido, em relação à
reza, transforma as supostas coisas-em- Fundamentação da Metafísica dos Cos
si em fenômenos, isto é, aparências. tumes. Nesta, a vida moral aparece
A metafísica, contudo, existia há sé como forma através da qual se pode
culos e Kant se pergunta quais ter iam conhecer a liberdade, enquanto na Crí
sido as razões desse fato. É perfeita- tica da Razão Prática a liberdade é
mente legítimo indagar se não haveria investigada como a razão de ser da vida
um outro fundamento que pudesse, não
moral. Na Crítica da Razão Prática,
validá-la como forma de conhecimento Kant demonstra que a lei moral provém
teórico, pois isso é impossível, mas dar da idéia de liberdade e que, portanto, a
conta de sua existência. Com essas ques razão pura é por si mesma prática, no
tões, transita-se para o segundo grande sentido de que a idéia racional de liber
problema que preocupou o filósofo: o dade determina por si mesma a vida
problema moral. moral e com isso demonstra sua própria
realidade. Em suma, o incondicionado e
absoluto (inatingível pela razão no ter
O imperativo categórico reno do conhecimento) seria alcançado
verdadeiramente na esfera da morali
dade; a liberdade seria a coisa-em-si, o
Na parte final da Crítica da Razão noumenon, almejado pela razão. Nesse
Pura, Kant afirma que a razão não é sentido, a razão prática tem primazia
constituída apenas por uma dimensão sobre a razão pura.
teórica, que busca conhecer (e ultra A Crítica da Razão Prática foi divi
passa os limites do conhecimento), mas dida por Kant. da mesma forma que a
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FABBRI
Os Prolegômenos a Qualquer Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada
como Ciência explicitaram, para um público mais amplo o conteúdo da Crítica da
Razào Pura. A Fundamentação <fa Metafísica dos Costumes, por outro lado,
constitui um estudo preparatório àprincipal obra de Kant sobre moral, a Crítica
da Razào Prática. (Frontispícios; Biblioteca Nacional Braidense, Milão.)
Crítica da Razão Pura, mas não se condição considerada pelo sujeito como
encontra nela uma “Estética”. Isso se válida somente para sua vontade. As leis
deve ao fato de que, enquanto as funções morais, ao contrário, seriam objetivas,
de conhecimento têm como fundamento contendo uma condição válida para a
a sensibilidade espaço-temporal, a fa vontade de qualquer ser racional. Feitas
culdade prática e a atividade moral essas distinções, Kant demonstra que
opõem-se a toda determinação sensível. todos os princípios práticos que pressu
O elemento sensível no comportamento põem um objeto ou matéria do querer
moral não pode ser pressuposto, mas, ao são empíricos e não podem proporcionar
contrário, deve ser deduzido da raciona leis práticas. Esse objeto material do
lidade pura. Esse é o objeto da parte da querer é a felicidade e ela depende da
Crítica da Razão Prática intitulada natureza empírica de cada sujeito parti
“Analítica”. cular. Por conseguinte, as leis práticas
A “Analítica” da Crítica da Razão só podem ser formais. Uma vontade
Prática distingue, inicialmente, as máxi determinada apenas pela forma da lei e,
mas morais das leis morais. As primei por consequência, independente de todo
ras seriam subjetivas, contendo uma estímulo empírico é livre; por isso a
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O belo e as formas
A Crítica da Razão Pura e a Crítica da
Razão Prática opõem a razão teórica à
atividade moral, o mundo sensível ao
reino do inteligível, o real ao ideal.
Poder-se-ia afirmar que constituem dois
momentos antitéticos de um processo
dialético. A Crítica da Faculdade de Jul
gar constituiría o momento de síntese,
no qual Kant investiga o sentimento de
prazer e desprazer como uma terceira
faculdade fundamental, indagando se
“Silenciemos a respeito de nós ela, como as demais, possui princípios a
mesmos. ” Kant encontrou essa máxima priori. Na Crítica da Faculdade de Jul
latina em Bacon e adotou-a como regra gar, Kant quer ainda saber se existem
permanente de conduta. (Retrato do formas universais e necessárias de su
filósofo; Biblioteca Nac. de Paris.) bordinação do mundo natural, dominado
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CRONOLOGIA
1724 — Immanuel Kant terpretados Mediante os So 1785 — Kant publica os
nasce a 22 de abril em Kõ nhos da Metafísica, de Fundamentos da Metafísica
nigsberg, Prússia. Kant. dos Costumes.
1727 — Morre Isaac New- 1770 — Kant apresenta à 1788 — Publica a Crítica
ton. Universidade de Kõnigsberg da Razão Prática.
1738 — Publicação do Tra a Dissertação sobre a For 1789 — A 14 de julho, eclo-
tado sobre a Natureza Hu ma e os Princípios do Mun de a Revolução Francesa: o
mana, a principal obra de do Sensível e do Mundo In povo toma a Bastilha.
David Hume. teligível. Nasce George Wi- 1790 — Publicação da Crí
1762 — Nasce Johann Got- Ihelm Friedrich Hegel. tica da Faculdade de Julgar,
tlieb Fichte. 1781 — Kant publica a pri de Kant.
1763 — Publicação de O meira edição da Crítica da 1793 — Kant publica A
Único Argumento Possível Razão Pura. Religião dentro dos Limites
para uma Demonstração da 1783 — Publica os Prolegô- da Simples Razão.
Existência de Deus, de menos a Qualquer Metafísi 1798 — Publica O Conflito
Kant. ca Futura que Possa Vir a das Faculdades.
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OS PENSADORES
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FICHTE
507
OS PENSADORES
Johann Wolfgang Goethe foi a grande figura alemã da época de Fichte. Embora
não fosse propriamente um filósofo, tem importância na história da filosofia por
suas idéias sobre a natureza corno um grande todo, a se manifestar em um
número infinito de formas em constante evolução. (“Goethe Ditando suas
Memórias”, tela de J. ./. Schmeller, Turingsche Landes Bibliothek, Weimar.)
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FABBRI
Goethe foi um dos mais destacados participantes do grupo Tempestade e ímpeto,
do qual também faziam parte Schiller, Klinger e Lenz. O movimento colocara a
vida como valor supremo e recusava todas as formas que pudessem limitar o
desenvolvimento individual; com isso iniciou o Romantismo. (Ilustração para o
Fausto de Goethe, aquarela de F. M. .4. R.ctzsch, iVIuseu Goethe, Frankfurt.)
duais e tomada como pura atividade; princípios. Esses princípios são três e
encerra em si a estrutura de todo e qual constituem o fundamento da ação moral
quer conhecimento teórico, ao mesmo e de todo pensamento científico.
tempo que o fundamento de toda e qual O primeiro princípio constitutivo do
quer ação prática do homem. Em outros eu é uma versão metafísica do princípio
termos, o eu fichtiano constitui uma uni da identidade lógica, segundo o qual A é
dade daquilo que Kant separou como igual a A. Aplicado por Fichte, o princí
duas razões, a pura e a prática. Toda a pio se fórmula nos seguintes termos; "O
obra puramente filosófica de Fichte pro eu põe a si mesmo como sendo-”. Em ter
cura demonstrai' essa unidade radical. mos lógicos se d iria: o A que é é idêntico
Tal tarefa foi considerada por ele como a ao A que é posto: outra forma seria a
forma através da'qual se poderia elevar seguinte: se A é posto, é.
a filosofia à condição de ciência eviden Assim como o primeiro princípio
te. saber do saber, conhecimento da constitutivo do eu é encontrado a partir
razão pela razào. Por isso Fichte empre de um princípio lógico (o da identidade),
gou a expressão "doutrina da ciência o segundo também é encontrado por
para designar sua análise do eu. Fichte pela análise do pensamento lógi
\ doutrina da ciência aborda o eu co. Em lógica, os juízos podem ser inclu-
mediante uma intuição intelectual, que sivo (uma coisa é X) e exclusivo (aquela
apreende sua estrutura e descobre seus coisa não é X). Dessa dualidade decorre
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A essência da liberdade
Para resolver a contradição existente
entre a determinação do não-eu pelo eu
com a posição infinita do eu, Fichte afir
ma que o eu determina o não-eu através
de esforço permanente e constante. Se
esse esforço levasse à consecução plena
de seu objetivo, desapareceria toda a
consciência, todo o sentimento e toda a
vida. Para Fichte, o eu é infinito na me
dida em que luta para ser infinito; por
outro lado, o eu é finito enquanto não
consegue realizai* seu ideal. Além disso,
o sentimento do limite, por parte do eu, é
um sentimento de força, pois o limite só
é sentido enquanto se pretende ultrapas
sá-lo.
Na doutrina da ciência está implica
da, portanto, uma filosofia prática, que
se desenvolve de maneira semelhante ã
filosofia teórica e visa a determinar as
condições da liberdade moral. Em ou
tros termos, a análise do eu enquanto
estrutura cognitiva desvenda também
sua natureza moral.
“Meu impulso, na medida em que sou
parte da natureza, minha tendência,
enquanto espírito puro”, pergunta Fich
te, '■'são eles impulsos diferentes?” E
responde: “Nao; sob o ponto de vista
transcendental, ambos são um e o
mesmo impulso original, que é a minb;<
Inicialmente, os alemães saudaram em natureza essencial; só que esse impulso
Napoleão o advento de uma nova era, é visto de dois lados diferentes. Em ou
mas logo se desiludiram. (Napoleão, em tras palavras, eu sou sujeito-objeto e
detalhe da tela de Antoine Jean Gros, meu ser verdadeiro consiste na identi
“Batalha de Eylau”; Museu Versalhes.) dade e inseparabilidade desses dois
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CRONOLOGIA
1762 — Fichte nasce em 1790 — Goethe publica talício, por plebiscito. Nasce
Rammenau, a 19 de maio. fragmentos do Fausto. Victor Hugo.
1766 — Nascimento de 1793 — Nasce Nicolai Iva- 1803 — Nasce Berlioz.
Thomas Robert Malthus. novich Lobachevski, pionei 1804 — Edita-se A Doutri
1770 — Nasce Beethoven. ro da moderna geometria. na da Ciência, Exposição de
1772 — Nascem Friedrich 1794 — Fichte publica Os 1804, talvez a obra mais im
Schlegel, Novalis e David Princípios Fundamentais da portante de Fichte.
Ricardo. Doutrina da Ciência em seu 1806 — Derrota de Napo
1775 — Nascimento de conjunto e as Lições sobre a leão na Rússia. A Prússia
Schelling. Destinação do Sábio. declara guerra à França.
1776 — Declaração de In 1797 — Schelling edita 1807 — Fichte publica os
dependência dos Estados Idéias para uma Filosofia Discursos à Nação Alemã.
Unidos da América. Adam da Natureza. Nasce Schu- 1809 — Nascem Mendels-
Smith publica A Riqueza bert. sohn, Poe, Darwin, Proud-
das Nações. Funda-sc o pri 1798 — É publicado O Sis hon e Gogol. Metternich é o
meiro sindicato operário na tema da Ética segundo os novo chanceler da Áustria.
Inglaterra. Princípios da Doutrina da 1811 — Nasce Liszt
1781 — É publicada a Crí Ciência, de Fichte. Nasce 1812 — Nascimento de
tica da Razão Pura, de Comte. Charles Dickens. Os Esta
Kant. 1800 — Volta inventa a pi dos Unidos declaram guerra
1782 — Nasce Paganini. lha elétrica. à Inglaterra.
1784 — Fichte completa 1801 — Publica-se a Expo 1813 — Nascem Kierke-
seus estudos de teologia. sição da Doutrina da Ciên gaard e Verdi. Simón Bolí
1788 — Vem à luz a Crítica cia, de Fichte, que será co var retoma a Venezuela dos
da Razão Prática, de Kant. nhecida como a Doutrina da espanhóis.
1789 — A 14 de julho, o Ciência de 1801. 1814 — Fichte falece no dia
povo francês toma a Basti 1802 — Napoleão Bona- 29 de janeiro.
lha: inicia-se a Revolução. parte é nomeado cônsul vi-
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Os mitos clássicos sempre constituíram matéria de inspiração para os poetas
e artistas plásticos, como o flamengo renascentista Pieter Brueghel, cuja
tela “A Oficina de Vulcano” se vê acima em detalhe (Galeria Doria-Pamphili,
Roma). Schelling, renovando a interpretação dos mitos, tornou-os objeto
de reflexão filosófica na obra A Filosofia da Mitologia, seu último escrito.
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A revelação do divino
A última fase do pensamento de Schel
ling (que se estende desde 1809 até sua
morte, em 1854) caracteriza-se pela
integração do problema do pensamento
religioso dentro de uma filosofia mais
ampla do que o sistema da identidade,
embora o inclua. As obras referentes a
essa fase foram publicadas postuma
mente: As Idades do Mundo, Introdução
à Mitologia, Filosofia da Mitologia e
Filosofia da Revelação. Nelas, Schelling
procurou construir uma filosofia posi
tiva (segundo sua própria expressão),
fundamentada na pesquisa da evolução
do pensamento religioso através da his
tória, especialmente o expressado nos
mitos.
Nessa fase do pensamento de Schel
ling, assume grande importância a idéia
de que o mundo finito existe como algo
separado do absoluto, do qual se des
prendeu, mas aspira à reincorporação no
absoluto, através da evolução da natu
reza e do desenvolvimento histórico.
Entre 20 e 35 anos de idade, A partir dessa idéia geral, Schelling
Schelling exerceu forte influência passou a considerai' como tarefa primor
junto ao público de sua época. As dial da filosofia a explicação do pro
obras escritas depois disso só foram cesso de volta ao absoluto. Para isso, a
publicadas postumamente. (Franz filosofia deveria converter-se fundamen
Kruger: Schelling aos 69 anos.) talmente numa filosofia da mitologia.
A mitologia — afirma Schelling — é
se deve propor a filosofia, mediante a um sistema simbólico de idéias, com
intuição intelectual. Assim procedendo, sua própria estrutura apriorística, da
a filosofia penetraria na unidade essen mesma forma como o entendimento —
cial existente entre o mundo natural e o como mostrara Kant na Crítica da
mundo do espírito, intuindo o desabro Razão Pura — é constituído por catego
char e o desenvolvimento de suas poten rias responsáveis pelo pensamento lógico.
cialidades respectivas; cada uma das Desvendadas as estruturas apriorís
potencialidades de um dos dois domínios ticas da mitologia, seria possível ver
corresponde — segundo Schelling — a como os mitos constituem formas de
uma potencialidade do outro. expressão da volta ao absoluto divino.
A melhor via de. acesso ao absoluto, Deus é concebido por Schelling como a
entretanto, não seria constituída pela evolução de uma oposição, na qual o
intuição intelectual dos filósofos, mas absoluto vazio do nada contrapõe-se à
pela criação artística. Nessa idéia en plenitude do ser, operando-se a síntese
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SCHELLING
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CRONOLOGIA
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