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HISTÓRIA DAS GRANDES IDÉIAS DO MUNDO OCIDENTAL

II
HISTORIA DAS GRANDES IDÉIAS
DO MUNDO OCIDENTAL

EDITOR: VICTOR CIVITA


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Espinosa
Leibniz
Voltaire
Diderot
Rousseau
Kant
Rubens Rodrigues Torres Filho — Fichte
Schelling

Colaboração:
Pesquisa de Paulo Sérgio de Morais Sarmento — Hobbes
SUMÁRIO

-HOBBES ............................................................................... 265


-DESCARTES .......................................................................285
-PASCAL ............................................................................... 305
-ESPINOSA ........................................................................... 325
- LOCKE ..................................................................................345
- XEWTON ............................................................................. 365
- LEIBNIZ ............................................................................... 373
-VICO .................................................................................. ”385
- MONTESQUIEU .......................................................... . .405
-BERKELEY ......................................................................... 425
-HUME ....................................................................................433
- VOLTAIRE ........................................................................... 445
- DIDEROT ............................................................................. 455
- ROUSSEAU ......................................................................... 465
- KANT .................................................................................... 485
-FICHTE ..................................................................................505
-SCHELLING ......................................................................... 515
CAPITULO 21

HOBBES

I
I
OS PENSADORES

homas Hobbes nasceu na Ingla­ tindo a continuidade e o aprofundamento

T terra, na aldeia de Westport, adja­


cente a Malmesbury, no Wiltshire,
do seu contato com os clássicos.

a 5 de abril de 1588. De família pobre,


Em 1610, Hobbes e seu aluno visita­
ram a França e a Itália, onde se aplicou
filho de um clérigo semiletrado, muito ao estudo de idiomas estrangeiros. De
cedo deixou de contar com a assistência volta a Chatsworth, prosseguiu na leitu­
paterna. Seus estudos passaram a ser ra dos historiadores clássicos, que lhe
custeados por um tio, luveiro relativa­ interessaram, não só pelos aspectos lite­
mente próspero em Malmesbury. rários como também pelas intuições
Aos sete anos, Hobbes foi recebido sobre o homem e a política. Este último
como pupilo por Robert Latimer, pre- aspecto ficaria claramente demonstrado
ceptor versado na cultura clássica e que no primeiro trabalho publicado por
lhe proporcionou sólidos conhecimentos Hobbes, em 1629. Nesse ano veio a pú­
de latim e grego. Pode-se dizer que essa blico sua tradução da Guerra do Pelopo-
formação inicial constitui o fundo sobre neso, de Tucídides, que, embora de cará­
o qual se destacariam mais tarde seus ter literário, apresentava antecipações
pendores literários e sua familiaridade do Leviatã, sua principal obra. Essas
com os clássicos. Em 1603 ingressou no antecipações aparecem tanto nas insi­
Magdalen Hall, em Oxford. Tinha então nuações que Hobbes faz no prefácio,
catorze anos. De um ponto de vista quanto em vigorosas frases da tradução.
convencional, sua passagem pela univer­ Desde essa época já manifestava sua
sidade não revelou um estudante que aversão à democracia e por isso reco­
ftudesse ser considerado dos mais bri- mendava a leitura de Tucídides: “um rei
hantes. O currículo escolar, marcado é mais capaz que uma república”.
pela Escolástica, era estreito e rígido, Nessa época, elaborou, em latim, um
exercendo pouca atração sobre Hobbes. longo poema descritivo (publicado ape­
Sem muito entusiasmo, estudou vagaro­ nas em 1636), no qual se encontra a nar­
samente a Lógica e a Física, chegou a ração de uma viagem que fizera à região
gostar de Astronomia e de Geografia — montanhosa próxima de Chatsworth.
por “aliviar a imaginação” — e deixou- Além desse poema, literariamente pouco
se impressionar pela Retórica. significativo, a ligação de Hobbes com a
Apesar de concluir o bacharelado sem literatura se manifestará até o fim da
muito brilhantismo, em 1608, Hobbes vida. Exemplo nesse sentido é o ensaio
foi indicado pela direção do seu college de crítica literária no prefácio ao poema
para preceptor do filho de William épico Gondibert de Sir William Dave-
Cavendish, que, depois, seria o primeiro nant (1606-1668), bem como as tradu­
Conde de Devonshire. A indicação foi ções da Iliada e da Odisséia, feitas nos
decisiva, marcando o início de uma seus últimos anos.
convivência e amizade, conservada du­
A experiência literária de Hobbes,
rante toda a vida. Apesar da insegurança
todavia, não o afastou de um certo
financeira da casa dos Cavendish, esse
preconceito doutrinário. Acreditava no
emprego permitiu-lhe poupar-se da hu­ propósito didático do poema heróico e
milhante pobreza em que geralmente vi­ concebia a literatura como algo orna­
viam os preceptores no século XVIII. A mental e secundário em relação a um
permanência de Hobbes na casa dos tipo de discurso mais verdadeiro. Este
Cavendish foi extremamente importante seria a filosofia.
para o seu desenvolvimento intelectual.
Encontrou tempo e tranquilidade para Da literatura à filosofia
dedicar-se à leitura e à reflexão, e uma
grande biblioteca permitia-lhe o acesso A problemática filosófica de Hobbes,
a centenas de obras literárias, garan- embora já anunciada em suas incursões
pela literatura, somente começou a
estruturar-se a partir do contato com
Página anterior: Thomas Hobbes, por Francis Bacon (1561-1626), do qual foi
M. Wright, Galeria Nacional de secretário entre 1621 e 1626. Bacon
Retratos, Londres. (Foto Fabbri.) tinha Hobbes em alta conta, julgando-o

266
HOBBES

capaz de compreender seu pensamento e


chegando mesmo a autorizar que tradu­
zisse algumas de suas obras para o
latim.
Contudo, sua formação filosófica não
se limitou ao empirismo baconiano. Em
sua segunda viagem ao continente, em
1629, teve a oportunidade de ler, em
Genebra, na Suíça, os Elementos de Geo­
metria, de Euclides (século III a.C.),
obra fundamental para a formulação do
método proposto pelos grandes raciona-
listas do século XVII. Em nova viagem
ao continente (1634/37), Hobbes entrou
em contato com o Padre Mersenne,
amigo e correspondente de Descartes
(1 596-1650). Em torno de Mersenne, em
Paris, reunia-se uma plêiade de pensa­
dores e homens de ciência e foi através
dele que Hobbes entrou em polêmica
com Descartes. Igualmente importante
para Hobbes foi seu encontro com Gali-
leu (1564-1642), na Itália.
Os novos horizontes intelectuais aber­
tos por esses contatos, entretanto, não o
desviaram da situação concreta em que
se encontrava a Inglaterra. Era profundo
o seu interesse pelos problemas sociais.
De volta à Inglaterra, em 1640, colo­
cou-se como defensor do rei, Carlos I
(1600-1649), então ameaçado por uma
revolução liberal. Em apoio ao sobera­
no, compôs seu primeiro tratado, Ele­
mentos de Lei Natural e Política, obra
destinada a fundamentai" a ciência da
política e da justiça. O trabalho circulou
em cópias manuscritas, vindo a ser
publicado apenas em 1650 na forma de
dois tratados separados: Natureza Hu­
mana e Sobre o Corpo Político. Hobbes
colocava-se visivelmente ao lado do rei
e, como a força do parlamento era cres­
cente, foi obrigado a refugiar-se em
Paris, temendo a ameaça dos anti-rea­
listas.
Em Paris, ainda em defesa do poder
real, publicou Sobre o Cidadão, em
1642, ano em que se desencadeou a
Guerra Civil na Inglaterra. Mesmo exi­
lado, Hobbes não deixou de participar
das controvérsias políticas e religiosas
Robert Dudley, Conde de Leicester com homens da corte inglesa refugiados
(Gal. Nacional de Retratos, Londres), na França. A mais destacada dessas
foi um dos principais instrumentos da polêmicas foi a que manteve com John
política absolutista de Elizabeth I, Bramhall, bispo de Derry, a propósito
sob cujo reinado Hobbes nasceu. da questão do livre arbítrio. Nessa oca-

267
OS PENSADORES

sião, o bispo acusou-o de impiedade e, nalismo do francês René Descartes


(>osteriormente, condenaria também o (1596-1650), apesar do antagonismo
ivre pensamento veiculado pelo Leviatã, que os separava, foram momentos bási­
rtublicado, em Londres, em 1651. O cos na superação da escolástica medie­
ivro Sobre o Cidadão já exibia o que os val e constituíram, ao mesmo tempo,
adversários consideravam sentimentos expressões fundamèntais de uma nova
ateístas, o que dificultou a aceitação de atitude do homem em face da natureza e
Hobbes como preceptor do Príncipe de do próprio homem.
Gales, futuro Carlos 11 (1630-1685) da Essas duas posições apresentavam-se
Inglaterra, então no exílio. Frente à opo­ como opostas e conflitantes. Cada qual,
sição que se criara em tomo da sua indi­ reiterando seu próprio extremismo, jus­
cação, Hobbes viu-se obrigado a prome­ tificava a reiteração do extremismo da
ter que se limitaria estritamente ao outra, como se a razão só existisse na
ensino da Matemática, em suas funções transparência de sua auto-afirmação
de preceptor. A publicação do Leviatã racionalista e como se a experiência só
precipitou as controvérsias a respeito de existisse na sua diluição empírica.
suas opiniões religiosas e políticas, e a Mas quando se estuda a filosofia de
situação chegou a um ponto tal que Hobbes o problema da dominância do
Hobbes foi banido da corte inglesa exi­ racionalismo ou do empirismo pode ser
lada em Paris. colocado em outros termos. É possível
Em 1652, Hobbes retomou definitiva­ perguntar, por exemplo, se não havia um
mente à Inglaterra, encontrando-a domi­ secreto intercâmbio entre ambos, apesar
nada pela atuação de Cromwell das diferenças; se não estavam constan­
(1599-1658), o Lord Protector que temente voltados um para o outro, à es­
comandara a revolução liberal de 1642 e pera de um terreno comum em que
que, com mãos fortes, garantia o sentido pudessem exercer ação conjunta.
econômico-burguês dessa revolução. A obra de Hobbes abriu justamente
Nessa atmosfera, Hobbes retomou o tra­ um espaço de convivência entre esses
balho, publicando a seguir Sobre o extremos, manifestando, assim, um
Corpo (1654) e Sobre o Homem (1658). campo de conciliação entre eles. É preci­
A Restauração dos Stuart, em 1660, so, contudo, evitar que essa visão geral
ocorreu quando Hobbes já contava 72 do lugar teórico da obra de Hobbes deri­
anos e se sentia distante dos problemas ve para uma caracterização ingênua de
políticos imediatos. Seu encontro com o seu pensamento. Hobbes não foi o resul­
novo rei (e antigo pupilo) marcou a tado mecânico do convívio com Bacon,
reconciliação entre ambos, mas Hobbes, do encontro com Galileu ou do contato
nessa altura, já tinha retornado ao con­ com o Padre Mersenne. Sua obra não
vívio dos Cavendish e retomado o estudo constituiu uma simples justaposição de
dos clássicos, fazendo traduções de par­ variantes empiristas e racionalistas do
tes da Ilíada e da Odisséia. Depois de século XVII; ele não somou as palavras
uma velhice tranquila, durante a qual de Bacon e as de Descartes. Hobbes
escreveu uma autobiografia em versos impôs à razão e à experiência um modo
latinos, Hobbes faleceu em Hardwick, particular de vida comum.
em 1679, dez anos antes do triunfo das Desvendar essa particularidade é uma
idéias liberais das quais fora ferrenho forma de revelar a originalidade de sua
adversário. filosofia. Não se pode dizer apenas que
seu “grande mérito” esteja — como afir­
Entre a razão e a experiência ma Bertrand Russell — no fato de ter
sido empirista e de ter “concedido, não
Todo historiador da filosofia sente-se obstante isso, a devida atenção à mate­
obrigado a reconhecer, nos capítulos de mática”. É preciso ir aos detalhes que
abertura da Época Moderna do pensa­ salientam a fisionomia do filósofo.
mento ocidental, a presença decisiva da Do ponto de vista estritamente, baco-
orientação baconiana e do caminho niano, a obra de Hobbes poderia ser jul­
cartesiano. Tanto a filosofia experi­ gada como demasiado carente de recur­
mental de Francis Bacon quanto o racio- so aos fatos e metodologicamente pobre

268
HOBBES

“Quando alguém raciocina, nada mais faz do que conceber uma soma total,
a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto, a partir da subtração
de uma soma por outra ...” O racionalismo matemático expresso nesse texto de
Hobbes, tem, entre outrasfontes, o contato que o filósofo manteve com
Galileu. (Anônimo: retrato de Galileu; Vila Le Selve, Lastra a Signa.)

269
OS PENSADORES

THE MANSELL COLLECTION


A filosofia de Thomas Hobbes pode ser interpretada como uma espécie de
síntese entre o racionalismo e o empirismo. O primeiro foiformulado por
Descartes, com quem Hobbes polemizou; o segundo constitui a contribuição
inovadora de Francis Bacon, do qualfoi secretário. (Retrato de Bacon
pertencente à Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão, e retrato de Hobbes.)

em induções. Essa interpretação, contu­ jeto filosófico em obras que manifestam


do, não é inteiramente verdadeira. Ape­ um encadeamento lógico-dedutivo, defi­
sar de deduzir sua ciência política de nindo previamente os termos dos quais
conceitos e definições, esses conceitos se serviu.
correspondem para ele aos fatos da Esse procedimento reitera-se tanto
natureza humana; os capítulos I a XI do nos escritos sobre aquilo que ele enten­
Leviatã encerram considerável número dia por física, quanto nas obras políti­
de fatos da experiência. Além disso, se cas. Suas teses estão escalonadas, suce­
Hobbes estrutura a teoria política como dendo-se umas às outras em rigorosa
um geômetra, sua doutrina do homem construção lógica; no livro Sobre o
(fundamento da política) admite apenas Corpo encontra-se a declaração expressa
uma espécie de demonstração e mesmo segundo a qual concluir é adicionar e
essa não é dedutiva, não se tratando, subtrair. A filosofia seria, assim, “co­
portanto, de demonstração no sentido nhecimento adquirido por um raciocínio
rigoroso da palavra. A única espécie de correto, dos efeitos ou fenômenos con­
demonstração admitida por Hobbes, no forme as causas ou gerações concebidas
caso, consiste em cada um encontrar em e, inversamente, das gerações possíveis
si mesmo a “humanidade” (a natureza conforme os efeitos conhecidos”.
do homem), que o próprio autor encon­ O racionalismo empirista (ou empi­
trou “lendo-se a si mesmo”. rismo racionalista), formulado por Hob­
Dando continuidade ao pensamento de bes no texto acima, consiste em partir da
Bacon. Hobbes realizou seu próprio pro­ natureza e voltar a ela, percorrendo um

270
HOBBES

trajeto em que o real é reduzido a ele­


mentos simples, a fim de que se possa
utilizá-los numa dedução capaz de
recompor as realidades Concretas. Ini­
cialmente atomizado, o real é ideal­
mente encontrado, visando-se ou não à
sua útil transformação.
Em resumo, a originalidade de Hob­
bes no campo do empirismo encontra-se
no racionalismo metodológico e nominal
que arma e encadeia suas teses.

Corpo e alma
Um tal racionalismo, enquanto mate-
maticismo, isto é, redução das operações
lógicas às operações matemáticas de
adição e subtração, não basta para
incluir Hobbes entre os seguidores de
Descartes. Pelo contrário, sua posição
em relação a Descartes era visivelmente
polêmica, chegando mesmo até a mais
profunda antipatia, como se verifica na
correspondência entre os dois. Radicado
na Holanda, Descartes recebeu, através
do Padre Mersenne, as objeções levanta­
das por Hobbes contra as suas Medita­
ções Metafísicas. A obra foi publicada
por Descartes, em 1641, juntamente
com as objeções de Hobbes e outros filó­
sofos e as respostas do autor.
A discussão entre os dois filósofos
possibilita a caracterização do pensa­
mento de Hobbes. Em certo momento de
sua Segunda Objeção, Hobbes aceita
que o conhecimento da proposição “eu
existo” possa depender do conhecimento
da proposição “eu penso”. Com isso,
assimila a célebre frase de Descartes
“penso, logo existo”, mas, logo em
seguida, coloca um problema: de onde
viria o conhecimento da proposição “eu
penso”? Hobbes adianta sua própria
resposta nos seguintes termos: como
“não podemos conceber qualquer ato
sem seu sujeito, assim também não
podemos conceber o pensamento sem
uma coisa que pense, a ciência sem uma
coisa que saiba e o passeio sem uma
coisa que passeie”. De onde se segue
“que uma coisa que pensa é alguma
coisa de corporal”. Hobbes serviu ao soberano Carlos I,
Essa conseqíiência é rejeitada por defendendo seu absolutismo contra os
Descartes, dizendo que Hobbes a acres­ ataques dos parlamentares liberais.
centa “sem qualquer razão e contra toda (Mystens, o Velho: Carlos I;
boa Lógica, e mesmo contra o modo Galeria Nacional de Retratos, Londres.)

271
OS PENSADORES

ordinário de falar”. Descartes não admi­ dependerá do movimento dos órgãos


te que todas as substâncias sejam corpó- corporais; e assim o espírito não será
reas. Com efeito — diz ele —, “os sujeitos outra coisa senão um movimento em cer­
de todos os atos são bem verdadeira­ tas partes do corpo orgânico”.
mente entendidos como sendo substân­ Hobbes cava cada vez mais fundo o
cias (ou, se desejais, como matérias, a abismo que o separa de Descartes. Este
saber, matérias metafísicas), mas nem rejeita a aproximação entre espírito e
por isso como corpos”. Mais adiante, movimento e não admite confusão entre
Descartes reafirma o seu dualismo, a “imaginação” e o “puro conceito de
dizendo que há duas substâncias, uma entendimento”; do mesmo modo, não
extensa, corpórea, outra espiritual, pen­ aceita a redução da “idéia” a “imagens
sante. A substância extensa é a pressu­ de coisas materiais desenhadas na fanta­
posta pelos “atos que chamamos corpo­ sia corporal”.
rais, como a grandeza, a figura, o Dessa diferença em relação a Descar­
movimento”; esses atos “residem” em tes é que se pode destacar o princípio
corpos. Porém — diz Descartes “há ou­ fundamental da filosofia de Hobbes.
tros atos que chamamos intelectuais”, Para Descartes, as noções de extensão e
como o “querer, imaginar”, etc., atos de movimento bastam para explicar as
que dependem do “pensamento ou per­ substâncias, propriedades e transforma­
cepção”, da “consciência e conhecimen­ ções do mundo corporal, e essa concep­
to”; esses atos “residem” em “uma coisa ção mecanicista considera o movimento
que pensa”, tenha ou não esta coisa o como puro entrechoque de corpos exte­
nome de espírito, pouco importa, “con­ riores uns aos outros. Mas, para Descar­
quanto não a confundamos com a subs­ tes, o mecanicismo é explicativo apenas
tância corporal, uma vez que os atos do que diz respeito ao mundo corporal,
intelectuais não têm qualquer afinidade não sendo válido para explicar o que
com os atos corporais”. Em suma, “o acontece no mundo intelectual, na ordem
pensamento . . . difere totalmente da ex­ psicológica, etc.
tensão”. Hobbes manteve a idéia de que Hobbes universaliza o mecanicismo.
o sujeito do pensamento é corporal e Para ele, “toda mudança se liga a um
aliou a esse materialismo uma posição movimento de corpos modificados, isto
empirista. Radicalizando seu materia­ é, de partes do agente e do paciente”. O
lismo na Quarta Objeção, Hobbes per­ espaço é a primeira das noções funda­
gunta: mentais de sua filosofia. Para ele, espa­
“Que diremos agora, se talvez o racio­ ço “é o fantasma de uma coisa que existe
cínio não seja outra coisa senão uma enquanto existe, isto é, enquanto não se
reunião e encadeamento de nomes pela considere nela nenhum acidente a não
palavra ‘é’? De onde se seguirá que, pela ser aquele de aparecer fora daquele que
razão, nada concluímos no tocante à a imagina”. Existir é existir no espaço, é
natureza das coisas, mas só no tocante ser corpo em movimento.
às suas denominações; isto é, pela
razão, vemos simplesmente se reunimos As palavras e as coisas
bem ou mal os nomes das coisas, segun­
do as convenções que, de acordo com Estabelecidas as noções de corpo e de
nossa fantasia, tenhamos feito no tocan­ movimento, Hobbes leva o mecanicismo
te às. suas significações”. Nesse texto a inva.dir os domínios do espírito. É essa
encontra-se o que os historiadores cha­ a finalidade de sua física e o sentido da
mam de “nominalismo” de Hobbes, isto obra denominada Sobre o Corpo, a pri­
é, a redução de conceitos a palavras, de meira do seu “plano” filosófico.
significações ideais a significações con­ A física de Hobbes procura explicar
vencionais. mecanicamente a maneira pela qual os
Hobbes vai ainda mais longe: “Se isso corpos exteriores afetam o corpo huma­
é assim, como parece ser, o raciocínio no e aí produzem as percepções e os
dependerá de nomes, os nomes depende­ fenômenos que delas dependem. Afeta­
rão da imaginação, e a imaginação tal­ dos pelos movimentos dos objetos exte­
vez (e isto segundo o meu sentimento) riores, os sentidos seriam postos em

272
HOBBES

FAB B RI

A história da Inglaterra no século XVIIfoi marcada pelos conflitos entre o


absolutismo dos reis e as tentativas de tomada do poaer pelos representantes
da burguesia no Parlamento. Hobbes defendeu o absolutismo em suas obras
teóricas efoipreceptor de Carlos II, filho de Carlos I. (Uma tela de Anton
van Dyck representa os trêsfilhos do liei Carlos I; Galeria Sabauda, Turim.)

movimento e este se transmitiría ao cé­ tos do edifício científico seriam simples


rebro e, daí, ao coração; neste órgão, nomes. “A proposição”, diz Hobbes, “é
começaria um movimento de reação em constituída pela adição de dois nomes; o
sentido inverso. Para Hobbes, o início silogismo, pela adição de duas proposi­
de sse movimento de reação é precisa­ ções; a demonstração, pela adição de vá­
mente o que constitui a sensação: “a sen­ rios silogismos.” Uma tal somatória
sação é o princípio do conhecimento dos conduziría à ciência, que se define,
próprios princípios, e a ciência é inteira­ assim, como “conhecimento das conse­
mente dela derivada”. quências de uma palavra a outra”. Uma
Alicerçados nas sensações, os elemen­ vez bem definidos, os nomes são conec-

273
OS PENSADORES

A vida de Hobbes transcorreu num período muito rico da história britânica,


não só do ponto de vista político, como também no que diz respeito à
literatura. Entre os escritores dessa época, encontra-se Ben Johnson,
cujas obras retratam satírica e realisticamente a sociedade londrina.
(Anônimo do séc. XVII: Ben Johnson; Gal. Nacional de Retratos, Londres.)

274
HOBBES

tados nas proposições e estas são conec­ sas e o filósofo marcou sua presença em
tadas nos silogismos. A conclusão obti­ inúmeras polêmicas, expondo suas
da — completa Hobbes — “é de todas as idéias e declarando suas opções. Essas
proposições antecedentes”. idéias e opções, que se encontram nos
Na obra Sobre o Corpo, Hobbes expli­ seus escritos políticos, somente ganham
cita essa posição nominalista no refe­ dimensão filosófica à luz de seu materia­
rente à célebre questão dos universais: lismo e nominalismo. Querer isolar esta
“os conceitos que, no espírito, corres­ ou aquela parte de sua obra é uma das
pondem aos nomes comuns (que desig­ possibilidades de leitura, mas não é a
nam coleção de indivíduos) são imagens melhor maneira de compreender o pen­
ou fantasmas de objetos singulares. samento do filósofo.
Desse modo, para 'se compreender o Segundo Hobbes, o ponto de partida
valor do universal, não se tem necessi­ da ação humana e. conseqüentemente,
dade de outra faculdade que a imagina­ da ação moral e política é o conato (cona-
tiva, faculdade que nos lembra que as tus), ou seja, o esforço ou empenho. Nos
palavras desse gênero suscitaram em Elementos de Lei Natural e Política,
nosso espírito uma coisa ou outra”. Hobbes explicita essa idéia afirmando
O nominalismo de Hobbes é solidário, que o “movimento, que consiste no pra­
ftortanto, de um associacionismo psico- zer e no desgosto, é uma solicitação ou
ógico que fará sucesso mais tarde. Para provocação para se aproximar do que
ele, as imagens associam-se na consciên­ agrada ou para se retirai* do que desa­
cia, formando um “discurso mental” e grada; e essa solicitação é o esforço ou
uma tal associação é um tanto quanto começo interno do movimento animal”.
aventureira quando se está sonhando; Desde esse movimento inicial, toda
porém, uma observação atenta poderia ação humana é vista pelo autor de forma
reencontrar o nexo .que associa essas radicalmente determinista; isso aconte­
imagens aparentemente descoordenadas. ce, por exemplo, quando explica a per­
A razão não passaria, assim, de um uso cepção visual: “a visão se faz por ação
aperfeiçoado da imaginação, pela apli­ derivada do objeto; ora, toda ação é um
cação correta da análise (que descobre movimento; o movimento é, pois, propa-
noções e definições, partindo da expe­ gado da luz ao olho”. Assim, para Hob-
riência) e da síntese (isto é, deduções es, não é de se estranhai* que a alegria
que, a partir das primeiras idéias, pro­ seja causada pela posse de um objeto
vam e explicam todas as realidades). que favoreça o indivíduo. A tendência no
Em suma, o conhecimento humano é sentido desse objeto chama-se “bem”; o
explicado por Hobbes a partir do entre- “mal” seria, ao contrario, a aversao ao
choque de corpos, a partir de movimen­ objeto que causa dor.
tos exteriores que, por meio dos senti­ Como lembra Bertrand Russell, as
dos, atingem o espírito (este não passa definições que Hobbes dá das paixões
de um “corpo tênue e sutil”), repercu­ baseiam-se, em sua maior parte, numa
tindo uns nos outros, associando-se e visão competitiva da vida.
finalmente organizando-se na arquite­ A vida seria comparável a uma corri­
tônica científica. da na qual é preciso vencer sempre. Para
Hobbes, ela começa com o esforço ini­
A luta pela vida cial chamado “desejo”, sendo o “amor”
definido como ligação a alguém. “Estar
A teoria nominalista da arquitetônica continuamente ultrapassado é miséria",
científica e a teoria materialista da diz o autor do Leviatã. “Ultrapassar
estrutura da realidade, que se articulam continuamente quem está adiante é feli­
como um todo sistemático nas obras de cidade. Abandonar a corrida é morrer. ”
Hobbes, não se esgotam em si mesmas. No racionalismo clássico, a vontade
Pelo contrário, seu materialismo e nomi­ implica a razão. Em Hobbes, ela se defi­
nalismo vinculam-se intimamente aos ne como “último apetite na delibera­
problemas práticos do homem. O mundo ção”. Liga-se, portanto, ao conjunto das
vivido por Hobbes era particularmente paixões, alternando-se no jogo estabele­
rico em contradições políticas e religio­ cido entre tendência e aversão ao objeto.

275
OS PENSADORES

O estilo renascentista chegou relativamente tarde à Inglaterra; a primeira


arte sensível às inovações foi a arquitetura. O progresso economico
ocorrido no séc. XVI levou a nobreza britânica a construir as manor houses,
mansões senhoriais simples e austeras, mas imponentes. Exemplo disso
é Kingston House, edificada em 1580, em Bradfora-on-Avon, Northamptonshire.

Em suma, um determinismo mecanicista todos contra todos”. Ambas são funda­


regeria não só os movimentos do uni­ mentais como síntese do que Hobbes
verso como também a atividade psicoló­ pensa a respeito do estado natural em
gica do homem. Nessa mesma ordem de que vivem os homens. O estado de natu­
idéias, a liberdade, em Hobbes, reduz-se reza é o modo de ser que caracterizaria
à “ausência de tudo que impede a ação e o homem antes de seu ingresso no estado
que não está contido na natureza e na social. No estado de natureza, “a utili­
qualidade intrínseca do agente”. O dade é a medida do direito”. Isso signi­
“livre arbítrio” não passaria de ilusão: fica que, levado por suas paixões, o
seria apenas uma expressão destinada a homem precisa conquistar o bem, ou
ocultar a ignorância das verdadeiras seja, as comodidades da vida, aquilo que
causas das decisões humanas. resulta em prazer. O altruísmo não
seria, portanto, natural. Natural seria o
Egoísmo e altruísmo egoísmo, inclinação geral do gênero
humano, constituído por “um perpétuo e
“O homem é o lobo do homem” é uma irrequieto desejo de poder e mais poder
das frases mais repetidas por aqueles que só termina com a morte”. Essa idéia
que se referem a Hobbes. Essa máxima é afirmada por Hobbes em relação a
aparece na obra Sobre o Cidadão, coroa­ todos os homens. Apesar de defensor do
da por uma outra, menos citada, mas despotismo político e adversário da
igualmente importante: “guerra de democracia política, Hobbes afirma que

276
HOBBES

“todos os homens são naturalmente


iguais”.
Essa igualdade baseia-se no desejo
universal de autopreservaçâo, isto é, da
procura do que é necessário e cômodo à
vida. Com isso, fica estabelecido um
direito fundamentalde autoconservação.
Como todos os homens seriam dotados
de força igual (pois o fisicamente mais
fraco pode matar o fisicamente mais
forte, lançando mão deste ou daquele
recurso), e como as aptidões intelectuais
também se igualam, o recurso à violên­
cia generaliza-se e complica-se, cada
qual elaborando novos meios de destrui­
ção do próximo, com o que a vida se
torna “solitária, pobre, sórdida, embru-
tecida e curta”, na qual cada um é lobo
para o outro, em guerra de todos contra
todos. Assim, o estado natural exige uma
saída com base no próprio instinto de
conservação da vida. Deixado a si, o ins­
tinto de conservação é a abertura para a
violência que o reitera e, ao mesmo
tempo, para a paz tática que prometa
conservação. É esse o campo da lei
natural.

Natureza e sociedade
A concepção que Hobbes tem do esta­
do de natureza distancia-o da maior
parte dos filósofos políticos, que acredi­
tam haver no homem uma disposição
natural para viver em sociedade. Na
obra Sobre o Cidadão Hobbes argumenta
contra Aristóteles (384 a.C. — 322 a.C.
para quem o homem é um animal social
e já está naturalmente incluído numa
ordem ideal. Como o instinto de conser­
vação é básico na filosofia de Hobbes,
para ele os indivíduos entram em socie­
dade só quando a preservação da vida
está ameaçada. Os homens não vivem em
cooperação natural, como o fazem as
abelhas ou as formigas. O acordo entre
elas é natural; entre os homens, só pode
ser artificial.
FAB B RI

Guiado pela razão, o instinto de


conservação ensina que — diz Hobbes —
“é preciso procurar a paz quando se tem
a esperança de obtê-la”, pois a vida de A partir de 1603, Hobbes estudou no
cada um estaria sempre ameaçada se Magdalen College de Oxford, onde
cada qual tudo fizesse para exercer seu imperava um ensino escolástico, cuja
poder sobre todas as coisas. Não sendo rigidez e estreiteza o desagradaram.
possível a paz, “é preciso procurar em (Torre do Magdalen College, Oxford.)

277
OS PENSADORES

toda parte os recursos para a guerra, para exercer o poder deveria ser total­
sendo lícito empregá-los’’. De qualquer mente seguido pelos componentes do
modo, a paz é a dimensão mais compa­ corpo social no que se refere aos proble­
tível com o instinto de conservação. mas da paz geral. Um tal poder só seria
Nesse sentido, os homens são levados capaz de corresponder à sua finalidade
a estabelecer contratos entre si. O con­ se exercido despoticamente.
trato “é uma transferência mútua de Aí está o que os historiadores chamam
direito”. O pacto, isto é, a promessa de de originalidade e novidade do sistema
cumprir o contrato, vale enquanto a de Hobbes: é partidário do poder abso­
conservação da vida não estiver sendo luto e admite, ao mesmo tempo, o pacto
ameaçada. Para que seja durável a paz social. Hobbes não estabelece contradi­
obtida com o contrato social, “é neces­ ção entre o pacto e o absolutismo; quan­
sário que a multidão dos associados seja do bem compreendido, o pacto conduzi­
tão grande que os adversários de sua ría necessariamente ao absolutismo,
segurança não tenham a esperança de segundo o filósofo. Por isso, pode-se
que a adesão de um pequeno número dizer que Hobbes é absolutista sem ser
baste para assegurar-lhes a vitória”. teólogo, o que o distingue dos outros
Para que a vida seja viável, impõe-se, absolutistas do século, desde Jaime I até
pois, uma sociedade civil. Assim, a paz Bossuet; ou seja, Hobbes não deriva o
imprescindível à conservação da vida absolutismo de um direito divino, mas
que a razão solicita cria o pacto social e, do pacto. Além disso, conquanto mani­
através deste, o homem é introduzido em feste sua preferência por um rei absolu­
uma ordem moral. to, Hobbes reconhece a legitimidade de
No nível das relações morais, é preci­ outros tipos de governo; o que não admi­
so que cada um — segundo Hobbes — te é que o governo seja misto ou tempe­
"não faça aos outros o que não gostaria rado, como a monarquia constitucional.
que fizessem a si”; é preciso evitar a A razão dessa restrição está, para ele, no
ingratidão, os insultos, o orgulho, enfim, fato de que competições compromete­
tudo o que prejudique a concórdia; que o doras da paz derivam necessariamente
mal seja vingado sem crueldade, que da presença de vários detentores do
haja moderação no uso dos bens; que os poder.
bens sejam distribuídos eqíiitativamente Esse equacionamento do problema
e que haja uso comum daqueles que não político deriva do modo como Hobbes
possam ser divididos; havendo disputas, encara o pacto social. Para o autor do
3ue se recorra a um árbitro imparcial e Leviatã, o contrato é estabelecido unica­
esinteressado. Essas leis não são dedu­ mente entre os membros do grupo que,
zidas por Hobbes de um instinto natu­ entre si, concordam em renunciar a seu
ral, nem de um consentimento universal, direito a tudo para entregá-lo a um sobe­
mas da razão que procura os meios de rano encarregado de promover a paz.
conservação do homem; elas seriam Um tal soberano não precisaria dar
imutáveis por constituírem conclusões satisfações de sua gestão, sendo respon­
tiradas por raciocínio. sável apenas perante Deus "sob pena de
morte eterna”. Não submetido a qual-
Ditadura ou democracia? Ípier lei, o soberano absoluto é a própria
ònte legisladora. A obediência a ele
Para Hobbes, o pacto social, sendo deve ser total, a não ser que ele se torne
artificial e precário, não é /suficiente impotente para assegurar paz durável e
para assegurar a paz, pois seiiipre exis­ prosperidade. A fim de cumprir sua tare­
tiríam pessoas que, acreditando saber fa, o soberano deve concentrar todos os
mais do que as outras, poderíam desen­ poderes em suas mãos. “Os pactos sem a
cadear guerras civis, a fim de conquistar espada não passam de palavras.” Segu­
o poder só para elas. Tal conseqüência rança interna e externa estão em suas
somente poderia ser evitada se cada mãos, as mesmas que detêm a legislação
homem submetesse sua própria vontade suprema e o direito de guerra e paz.
à vontade de um único homem ou a uma Para salientar a concepção social e
assembléia determinada. O escolhido política de Hobbes, os historiadores cos-

278
HOBBES

FAB B Ri

Os reis Stuartforam incapazes de controlar todas as contradições da política


inglesa do século XVII. Diante de sua fraqueza, Oliver Cromwell (1599-1658)
liderou os puritanos na guerra civil que estourou em 1642 e, posteriormente,
enfeixou toaos os poderes em suas mãos, governando a Inglaterra como ditador.
(Peter van der Faes: retrato de Oliver Cromwell; Galeria Pitti, Florença.)

279
OS PENSADORES

FABBRI
Depois do desenvolvimento do madrigal na época elizabetana, a música inglesa
regrediu a ponto de quase desaparecer, com o triunfo do puritanismo
calvinista, nos meados do séc. XVII. Uma nova era de esplendor só viria a
ocorrer com as composições de Henry Purcell (1658-1695), o maior músico
europeu de seu tempo. (Abram Bosse: Instrumentistas; Bibl. Nac., Paris.)

tumam confrontá-la com a idéia de con­ mas sujeitos”. Derrubar as assembléias


trato social e de vontade geral em Rous- soberanas é ilegítimo, mas os sistemas
seau (1712-1778), para quem o homem sujeitos — para ele — são todos suspei­
é naturalmente bom, naturalmente livre tos. Hobbes teme a ignorância de seus
e naturalmente igual aos outros homens. membros, tanto no que se refere aos
O contrato social, única forma de asso­ assuntos internos quanto no que diz res­
ciação legítima, em Rousseau, manifes­ peito aos externos; estes devem perma­
ta-se em um pacto estabelecido entre o necer secretos. Ele teme igualmente a
povo e os governantes. Esse pacto esta­ eloquência, o que hoje se chamaria de
belece a submissão dos governantes, demagogia. “É a loucura do vulgo e a
assim como de todos os cidadãos, à Von­ eloqíiência que concorrem para a sub­
tade Geral. Esta se volta, não para os versão dos Estados”, diz Hobbes. Por
bens particulares, mas para o bem isso, embora a sua filosofia admita a
comum. Nas assembléias, a Vontade democracia (no caso das assembléias
Geral, segundo Rousseau, seria manifes­ soberanas), desde que os indivíduos
tada pela maioria absoluta, se bem que o abram mão do seu direito natural (fonte
número não crie essa Vontade; ele ape­ de desavenças),ele prefere um rei, asses­
nas indica onde ela se encontra. sorado por um conselho secreto de ho­
Hobbes pensa diferentemente. O autor mens escolhidos.
do Leviatá distingue as assembléias “so- Ao soberano absoluto deve pertencer
beranas” daquelas que ele chama “siste­ também — segundo Hobbes — todo poder

280
HOBBES

FABBRl
Jaime II (1633-1701) foi o último representante do absolutismo dos Stuart.
Seu reinado estendeu-se de 1685 até 1688, culminando na Revolução Gloriosa.
Esta significou o triunfo definitivo dasforças liberais do Parlamento
e a conseqüente derrota dos ideais políticos defendidos por Thomas Hobbes.
(J. Riley: Retrato de Jaime II; Galeria Nacional de Retratos, Londres.)

de decisão em matéria religiosa, em vir­ e sua própria forma de culto, o autor do


tude de a religião implicar a existência Leviatã responde, afirmando não acredi­
de um poder distinto da soberania civil, tar que o soberano viesse a permitir o
originando conflitos: “Não há quase ne­ ensino de idéias que poderíam implicar
nhum dogma referente ao serviço de sua condenação eterna. Na verdade, a
Deus ou às ciências humanas de onde dificuldade apontada persiste, sobre­
não nasçam divergências que se conti­ tudo quando se verifica que reis católi­
nuam em querelas, ultrajes e, pouco a cos governavam súditos protestantes, na
pouco, não originem guerras; o que não Inglaterra da época. Apesar disso, Hob­
sucede por falsidade dos dogmas, mas bes desenvolve sua argumentação,
porque a natureza dos homens é tal que, pondo de lado as possíveis opiniões pes­
vangloriando-se de seu suposto saber, soais do soberano e declarando que o Es­
querem que todos os demais julguem o tado deve instituir um culto único e obri­
mesmo”. gatório: “porque, caso contrário, seriam
Hobbes não vê solução para esses con­ encontradas em uma mesma cidade as
flitos a não ser pela entrega de toda mais,absurdas opiniões referentes à natu­
autoridade religiosa ao soberano abso­ reza divina e as mais impertinentes e
luto; caso contrário, a religião ameaça­ ridiculas cerimônias jamais vistas”. A
ria a paz civil. única restrição que Hobbes faz ao sobe­
À objeção de que o soberano poderia rano em matéria religiosa é a de que os
impor aos súditos suas próprias crenças súditos não deveríam obedecer-lhe se

281
OS PENSADORES

FABBRl

O Leviatâ de Thomas Hobbespretende demonstrar rigorosamente que o homem é


egoísta por natureza, que cada indivíduo é um veraadeiro lobo para todos os
outros, que o mundo vive em permanente luta de todos contra todos e aue, por
essas razões, o detentor do poder deve governar despoticamente. (Leviatã.
frontispício da edição de 1651; Fotoieca Histórica Nacional, Milão.)

282
HOBBES

FABBRl
No séc. XVIII, as idéias de Hobbes sofreram muitas críticas. Entre outros,
James Gillaray satirizou o Leviatã, misturando livremente o conteúdo da obra
com os eventos políticos da Revolução Francesa na caricatura A Nova
Moralidade ou A Prometida Investidura do Sumo Sacerdote dos Teofilantropos,
com a Homenagem do Leviatã e seu Séquito. (Museu Britânico, Londres.)

mandasse ultrajar a Deus e adorar um a atitude crítica do autor diante do papel


homem a quem conferisse atributos da Igreja.
divinos.
Outra dificuldade poderia ser levanta­ O veredicto da história
da: não há no decálogo e nos preceitos
evangélicos leis obrigatórias, diferentes As idéias de Hobbes sobre a religião,
por sua origem das leis civis? Para res­ assim como toda sua teoria da natureza
ponder à objeção, Hobbes afirma que os humana e da organização política, não
mandamentos do decálogo são leis civis, podem ser compreendidas sem se levar
pois Moisés possuía soberania temporal em conta duas ordens de fato­
sobre o povo judeu. Além do mais, um res. Por um lado suas idéias constituem
mandamento como “não roubarás” não elementos que se vinculam a uma metafí­
tem sentido se antes não se definisse a sica materialista e à sua teoria nomina-
natureza da propriedade; o mesmo ocor­ lista da natureza do conhecimento, com­
rería com todos os restantes mandamen­ pondo um sistema filosófico rígido. Por
tos. O pecado, o justo, o injusto, só têm outro lado, as teorias do homem e do
sentido na medida em que recebem sua Estado, formuladas no Leviatã e em
existência das leis civis. Por outro lado, Sobre o Cidadão, inserem-se dentro de
os preceitos dos evangelhos — segundo um processo histórico de lutas sociais e
Hobbes — não são leis, mas chamados à econômicas bem definido: os conflitos
fe; nos evangelhos não haveria regra al­ entre o poder real e o poder do Parla­
guma que permitisse distinguir entre “o mento, na Inglaterra do século XVII.
teu e o meu”, como também eles não Apesar da rigorosa ordem de razões
estabelecem quaisquer regras de inter­ lógicas que concatenam as idéias do
câmbio comercial ou outras análogas. autor, elas constituem menos um con­
Em suma, só ao soberano caberia distin­ junto de verdades intemporais do que as
guir entre o justo e o injusto, entre o opções concretas do homem Thomas
certo e o errado. Hobbes. Na realidade política em que
Por conseguinte, o fundamento da paz vivia, optou pelo fortalecimento extre­
religiosa, condição da paz social, é o mado da autoridade, pelo militarismo
conformismo e não a tolerância, como do executivo, pelo controle severo de
muitos contemporâneos de Hobbes jul­ todas as formas de criação intelectual.
gavam. O Leviatã expressa nitidamente A história não lhe deu razão, prefe-

283
OS PENSADORES

rindo a solução liberal de seu conter­ ção e a autonomia dos poderes, fazendo
râneo John Locke. Em 1689, as forças prevalecer a mentalidade civil, admi­
liberais que predominavam no Parla­ tindo a pluralidade de confissões religio­
mento inglês derrotaram definitivamente sas e proporcionando a liberdade de pen­
o absolutismo real, instituindo a separa­ samento e de expressão.

CRONOLOGIA
1588 — A 5 de abril, nasce uma tradução da Guerra do 1651 — Publica, na Ingla­
Thomas Hobbes, na aldeia Peloponeso, de Tucídides. terra, o Leviatã ou A Maté­

-B R A S IL,
de Westport, Malmesbury, 1640 — Produz seu primei­ ria, a Forma e o Poder de
Inglaterra. ro tratado, Elementos de Lei uma Comunidade Eclesiás­
1603 — Morre Elizabeth I, Natural e Política. Em face tica e Civil.
a última dos Tudor. Suce­ dos acontecimentos políti­ 1652 — É banido da corte

PAULO
de-a seu primo Jaime I, que cos ingleses, retira-se para a inglesa no exílio e volta defi­
inicia a dinastia dos Stuart. França, onde permanece on­ nitivamente à Inglaterra.
Hobbes ingressa no Magda­

-S Ã O
ze anos. 1654 — Publica Sobre o
len Hall, Oxford. 1642 — Publica Sobre o Ci­ Corpo.
1608 — Termina seu ba­ dadão. Inicia-se na Inglater­ 1658 — Publica Sobre o

E INDUSTRIAL
charelado em Oxford e é in­ ra a Guerra Civil, quando Homem. Morte de Crom-
dicado para preceptor do fi­ Carlos I é decapitado, e ini­ weli.
lho de Lorde Cavendish. cia-se o período da Com- 1660 — Restauração dos
1610 — Faz sua primeira monwealth, sob a liderança Stuart com Carlos II.
viagem ao continente. de Cromwell. 1668 — Hobbes traduz, em

ABRIL S.A. CULTURAL


1625 — Morre Jaime I, su­ 1645 — Hobbes é nomeado versos ingleses, partes da
cedendo-o no trono seu filho preceptor do príncipe de Ilíada e da Odisséia.
Carlos I. Gales, que virá a ser o Rei 1679 — Morte de Hobbes,
1629 — Hobbes publica Carlos II da Inglaterra. em Hardwick.

BIBLIOGRAFIA
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Londres, 1966.

-MUNDIAL, 1973
Robertson, G. C.: Hobbes. Londres, 1886.
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Warrender, H.: The Political Philosophy of Hobbes, his Theory of Obligation, Oxford,
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® COPYRIGHT
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Mac Pherson, C. B.: The Political Theory of Possessive Individualism, Hobbes to Locke,
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Mintz, S. I.: The Hunting of Leviathan, Cambridge University Press, 1962.
Brown, K. C.: Hobbes Studies, Blackwell, Oxford, 1965.

284
I

CAPÍTULO22'

I
OS PENSADORES

FAB B RI
Inaugurando o racionalismo moderno, a influência de Descartes atravessou os
séculos e asfronteiras da França. Como procura de clareza, apoiada nas
exigências do rigor matemático, o cartesianismo tem sido visto como a
expressão mais plena do espírito filosófico francês. (Planta de Paris, 1575.)
Na página anterior: Descartes, de Franz Hals, Louvre, Paris. (Foto A. Mella.)
m lugarejo nas cercanias de Ulm, verdade e, por isso mesmo, todo feito de

U Alemanha, .1619. De 10 para 11


de novembro, René Descartes,
jovem francês engajado nas tropas
certezas racionais.
Já havia algum tempo Descartes
vinha
do meditando sobre este tema: a
Duque Maximiliano da Baviera, vive superioridade das obras — seja um edifi­
uma noite extraordinária. Depois de um cio, uma cidade, uma legislação — que
período de febril atividade intelectual, o resultam da atividade de um único
dia transcorrera em meio a grande exal­ homem. Na Alemanha, depois de assis­
tação e entusiasmo: afinal, parecia ter tir, em Frankfurt, de julho a setembro
descoberto os fundamentos de uma daquele ano, às cerimônias e às festivi­
“ciência admirável”. O arrebatamento dades da coroação do Imperador Ferdi-
prossegue durante o sono, atravessado nando, Descartes entregara-se a longo
por três sonhos sucessivos cujas ima­ período de recolhimento. Havia chegado
gens o próprio Descartes interpretará o inverno e cessaram as manobras mili­
como símbolos da iluminação que rece­ tares. Nada perturbava o jovem soldado,
bera e, ao mesmo tempo, como indicação que podia então ocupar-se de suas pró­
da missão a que deveria consagrar a prias idéias. Ele mesmo descreverá,
vida. Essa missão era a de unificar todos mais tarde, essa fase tranquila, mas
os conhecimentos humanos a partir de decisiva para seu destino intelectual:
bases seguras, construindo um edificio “ . . .Não encontrando nenhuma conver­
científico plenamente iluminado pela sação que me divertisse e não tendo,

286
DESCARTES

A ciência seria também uma arquite­


tura que, embora destinada a abrigar o
assentimento de todos os espíritos atra­
vés de sua dimensão universal, poderia e
deveria ser alicerçada pelo trabalho de
uma inteligência isolada. Um único espí­
rito, atento exclusivamente às exigên­
cias da razão, seria capaz de conceber o
plano urbanístico do conhecimento, a
"cidade nova” onde todos poderiam
habitar em ruas claras, de traçado per­
feito porque integrado numa concepção
unitária. Essa a conclusão a que cliega
Descartes. E o entusiasmo do dia 10 de
novembro e os sonhos que povoaram a
noite provinham não somente da desco­
berta do instrumental que permitiria a
construção da "ciência admirável”: re-
sultavam, mais ainda, da convicção de
que era ele, Descartes, o arquiteto desti­
nado a traçar o plano e lançar as bases
daquela cidade onde não haveria as
"ruas tortuosas e desiguais” das múlti­
plas opiniões acumuladas pelo tempo e
ensombradas pela dúvida. A ele cabia a
tarefa de inaugurar, desde os fundamen­
tos, o luminoso reino da certeza.

Durante o reinado de Henrique IV Tempo de inovações


foifundado o Colégio de La Flèche, e incertezas
onde Descartes estudou. Para a capela
do colégio foi trasladado, em 1610, O século XVI foi uma época de profun­
o coração do grande soberano. das transformações na visão de mundo
do homem ocidental, época marcada por
além disso, por felicidade, preocupações verdadeira paixão pelas descobertas. No
ou paixões que me perturbassem, ficava tempo e no espaço abrem-se novos hori­
todo o dia fechado sozinho num cômodo zontes: eruditos redescobrem antigas
aquecido por uma estufa, onde dispunha doutrinas filosóficas e científicas, forja­
de todo o tempo para me entreter com das pelos gregos, e em nome das quais
meus pensamentos” (Discurso do Méto­ torna-se possível constituir uma sabedo­
do). Um desses pensamentos era justa­ ria nova, oposta às concepções que
mente o de como “as construções come­ prevaleceram na Idade Média; simulta­
çadas e concluídas por um único neamente, viajantes e aventureiros ras­
arquiteto são geralmente mais belas e gam continentes e mares, descobrindo
mais bem ordenadas que aquelas que vá­ terras e povos. A antiguidade greco-ro-
rios esforçaram-se por reformar, servin- mana renasce através de seus pensado­
do-se de velhas muralhas que haviam res e artistas, enquanto se constitui uma
sido construídas para outros fins”. Do nova imagem geográfica do mundo. Essa
mesmo modo, as cidades novas, fruto do efervescência, que caracteriza a atmos­
traçado ditado pela fantasia de um enge­ fera intelectual do Renascimento, traz
nheiro, ofereceríam à razão satisfações consigo, inevitavelmente, a rejeição das
que ela não encontra nas ruas tortuosas idéias até então vigentes e que estiveram
e desiguais” das velhas cidades, resul­ garantidas sobretudo pelo peso de auto­
tantes da expansão desordenada de anti­ ridades agora contestadas. Tudo é sacu­
gos burgos. dido ou destruído: a unidade política,

287
OS PENSADORES

Descartes foi criado num meio familiar e social marcado pela mentalidade
conservadora. A origem divina do poder real permanecia incontestada na França,
e nem a dúvida metódica preconizada pelo cartesianismo será aplicada às
instituições políticas. (Detalhe de quadro do século XVIII, ãutor desconhecido,
mostrando as festas do casamento de Luís XIII, Museu Camavalet, Paris.)
religiosa e espiritual da Europa; as afir­ vida como recurso metodológico; e o
mações da ciência e da filosofia medie­ francês Michel de Montaigne
vais, calcadas principalmente em Aristó­ (1533-1592), que modernizou e enri­
teles; a autoridade da Bíblia, posta em queceu a argumentação do ceticismo e
confronto com os dados das novas desco­ ressaltou a influência que os fatores pes­
bertas científicas; e o prestígio da Igreja soais, sociais e culturais exercem sobre
e do Estado, abalado pelo movimento da as idéias. Através de agudas análises,
Reforma e pelas guerras motivadas por servidas por fina ironia, Montaigne pro­
dissidências políticas ou religiosas. curou demolir as superstições, os erros e
Além disso, se o homem europeu desco­ o fanatismo das opiniões que pretendem
bre que há idéias bem diversas das que impor-se a qualquer preço, mascaradas
vinham docilmente aceitando como úni­ de verdade, embora carentes de susten­
cas verdadeiras, e se passa a saber que tação racional. Depois de olhar em torno
há outros povos vivendo segundo pa­ e de examinar comportamentos, costu­
drões bem diferentes daqueles que lhe mes e idéias, conclui que só há opiniões
pareciam os únicos legítimos, é natural neste mundo incerto. Voltando-se para
que se espraie uma vaga de descrença e dentro de si mesmo, aí julga encontrar
de dúvida. apenas finitude e mortalidade. Sanchez
Principalmente três pensadores ex­ havia concluído que o homem não pode
pressarão o clima de ceticismo propi­ conhecer nada com segurança, nem o
ciado pelas conquistas da Renascença e mundo, nem a si mesmo. Montaigne vai
pela falência das concepções e dos valo­ adiante e proclama que o homem nada
res da Idade Média: o alemão Agripa de sabe porque o homem não é nada. Que
Nettesheim (1487-1535), que proclama outra sábia solução lhe resta — e que
a incerteza das ciências; o médico portu­ propõe aos outros homens — senão a do
guês Francisco Sanchez (1552-1632), ceticismo: a renúncia à certeza aparen­
que lecionou na França, em Montpellier temente inatingível?
e Toulouse, revelando-se adversário das No final do século XVI manifesta-se
doutrinas aristotélicas e adotando a dú­ um movimento de reação ao ceticismo

288
DESCARTES

que Montaigne soubera justificar e


exprimir com tanta acuidade. No campo
religioso, ali na própria França, Pierre
Charron (1541-1603) extrai do ceti­
cismo uma indireta defesa da fé. Segun­
do ele, a crítica cética destrói-se a si
mesma: as provas a favor de alguma
coisa de nada valeríam, mas também as
provas contra seriam sem valor. Assim,
perante as incertezas da razão natural,
Charron exalta a certeza sobrenatural
da crença religiosa. Mas, na verdade, o
fideísmo de Charron não teve mais
ampla repercussão, nem conseguiu reter
a expansão do ceticismo. Este se alimen­
tava de fortes argumentos colhidos na
derrocada de toda uma visão de mundo e
de toda uma concepção de ciência e de
filosofia.
No campo filosófico e científico, a
superação das incertezas não poderia
resultar de correções parciais que ten­
tassem aproveitar as ruínas da visão de
mundo medieval. Não era possível utili­
zar as “velhas muralhas que haviam
sido construídas para outros fins”. Ao
contrário, era preciso começar tudo de
novo, encontrar novo ponto de partida e
demarcar novo itinerário que condu­
zisse, com segurança, a certezas cientí­
ficas universais. As múltiplas opiniões
eram caminhos vários e inseguros que
não levavam a nenhuma meta definitiva
e estável. Era necessário, portanto, que
se encontrasse não um caminho — mais
um ao lado de tantos outros —, porém o
caminho certo, aquele que se impusesse
a todos os demais como o único legítimo
porque o único capaz de escapar ao labi­
rinto das incertezas e das estéreis cons­
truções meramente verbais, para condu­
zir à descoberta de verdades
permanentes, irretorquíveis, fecundas.
Era preciso achar a via — o ódos dos gre­
gos — que levasse à meta ambicionada:
precisava-se achar o método para a
ciência. ,
Essa é uma preocupação que se gene­
raliza a partir do final do século XVI e
vai caracterizar a investigação filosófica
do século XVII. Duas grandes orienta­
ções metodológicas surgem então, abrin­ O Cardeal Richelieu foi a figura mais
do as principais vertentes do pensa­ importante do cenário político da
mento moderno: de um lado a França na época de Descartes. Apoiou
perspectiva empirista proposta por a ascensão da burguesia. (Tela de
Francis Bacon (1561-1626), a preconi- F. Champaigne, M. do Louvre, Paris.)

289
OS PENSADORES

zar uma ciência sustentada pela obser­ tou. “Eu estava num dos mais célebres
vação e pela experimentação, e que for­ colégios da Europa, onde pensava que
mularia indutivamente as suas leis, deveriam existir homens sábios, se eles
partindo da consideração dos casos ou existissem em algum lugar da Terra.”
eventos particulares para chegar a gene­ Mas essa expectativa viu-se cedo frus­
ralizações; por outro lado, inaugurando trada: “Alimentei-me de letras desde
o racionalismo moderno, Descartes minha infância, e, devido ao fato de me
busca na razão — que as matemáticas terem persuadido de que por meio delas
encarnavam de maneira exemplar — os podia-se adquirir um conhecimento
recursos para a recuperação da certeza claro e seguro sobre tudo o que é útil à
científica. vida, tinha extremo desejo de aprendê-
las. Porém, assim que terminei todo esse
As inúteis humanidades curso de estudos, ao fim do qual costu­
ma-se ser recebido na fileira dos douto­
Os Descartes constituíam uma família res, mudei inteiramente de opinião”. O
de burgueses radicados na região entre desencanto de Descartes não se referia
Tours e Poitiers, e dedicados principal­ ao sistema de ensino de La Flèche nem
mente ao comércio e à medicina. Ligan­ aos seus mestres. Pelo contrário, por
do-se aos Sain e aos Brochard, torna­ estes conservou sempre estima, e, mais
ram-se proprietários de terras e tarde, consultado por um pai sobre a
ascenderam socialmente. Tanto que Joa- escolha de uma escola, recomendou La
chim Descartes, casado com Jeanne Bro­ Flèche com insistência. A decepção de
chard, passará a ostentar o título de Descartes fora causada pelo próprio
conselheiro do rei no Parlamento da conteúdo dos ensinos que recebera, que
Bretanha. Com esse título ele é identifi­ exprimiam uma cultura sem funda­
cado na ata de batismo de seu filho mentos racionalmente satisfatórios e
René, nascido em La Haye, na Touraine, vazia de interesse para a vida. O que o
em 1 596. decepcionou foram as próprias “letras”,
De saúde frágil, René passou o início as litterae humaniores, as chamadas
da infância sob os cuidados da avó, “humanidades”, de que ele avidamente
Jeanne Sain, pois perdera a mãe com um se alimentou no curso de La Flèche (de
ano de idade. E, chegado o momento de 1606 a 1614) e depois nos estudos de
começar os estudos, o pai enviou-o, em direito, em Poitiers (de 1614 a 1616).
1606, ao já célebre colégio jesuíta de La Em La Flèche, onde o latim era a única
Flèche. Era um estabelecimento de ensi­ língua admitida e Cícero o autor mais
no fundado recentemente, mas logo lido, a base do estudo era a lectio, ou
transformado numa das mais renomadas seja, a leitura e a explicação de um texto
escolas da Europa. Os jesuítas o haviam antigo , completada por uma repetição
criado, em 1604, sob a proteção de Hen­ que tinha o objetivo de afastar quaisquer
rique IV, que, para essa finalidade, dúvidas; finalmente, a erudição deveria
doou-lhes um palácio e amplos recursos. enriquecer as noções recebidas, apoian-
Conscientes do papel que lhes estava do-as em diversas informações (sobre
reservado numa França pacificada de­ história, geografia, direito, etc.). Esse
pois de tantos distúrbios políticos e de procedimento pedagógico aplicava-se
tantas lutas religiosas, os jesuítas esme- inicialmente às ciências de erudição (es­
raram-se em sua tarefa de educadores. O tudo de línguas antigas, grego e latim,
colégio recebeu o nome de colégio real e história e “fábulas”); num segundo está­
o soberano decidiu que, quando morres­ gio, o aluno era levado a estudar
se, seu coração deveria ser trasladado eloqüência, poesia e teologia; por fim,
para lá e ser depositado em sua capela. as ciências que naquela época eram
Isso de fato aconteceu, em maio de designadas genericamente pelo nome de
1610, e o jovem Descartes esteve pre­ filosofia (lógica, física, metafísica e
sente às solenidades. moral) e as que seriam aplicações dos
Mais tarde, no Discurso do Método, princípios filosóficos (medicina e juris­
ele falará das esperanças e das decep­ prudência). Esse campo da filosofia
ções que o ensino de La Flèche lhe susci­ pareceu a Descartes um caos, onde as
290
DESCARTES

A época de Descartes foi de expansão científica e técnica. Ofilósofo ficou


surpreso, porém, ao verificar que as matemáticas eram usadas apenas para
aplicações mecânicas. Concebeu então o projeto de uma “matemática universaP',
que levasse clareza a todos os campos do conhecimento. (O Louvre e o Sena
Vistos da Ponte Nova, anônimo do século XVII, Museu Camavalet, Paris.)

291
OS PENSADORES

teses mais contraditórias já haviam sido


defendidas e “cultivadas pelos melhores
espíritos”. Assim, na filosofia que apren­
de — como aliás em todos os domínios
das “letras” —, Descartes defronta-se
com opiniões inseguras e sem qualquer
utilidade prática: as “humanidades” não
serviam verdadeiramente ao homem.
Certo é que, porém, em La Flèche,
Descartes recebeu uma educação im­
pregnada de profundo espírito religioso
e imbuída de um civismo que assumia a
forma de fidelidade à monarquia. Prove­
niente de um meio marcado por fortes
tradições conservadoras, Descartes con­
viveu em La Flèche com uma mentali­
dade imbuída de religiosidade e de sub­
missão às instituições políticas. A marca
daquela origem burguesa e do espírito
conservador de La Flèche irá transpare­
cer, segundo muitos intérpretes, no pen­
samento cartesiano, embora contraba­
lançada pelo senso de tolerância ditado
pelo eixo central de sua construção filo­
sófica — a razão.
A natureza do ensino recebido em La
Flèche tem a ver com as condições políti­
cas da época em que vive Descartes. De­
pois de Henrique IV, Luís XIII, seu
filho, ocupou o trono da França (de
1610 a 1643). Porém, a partir de 1624,
a efetiva direção dos negócios públicos
esteve nas mãos do Cardeal Richelieu,
que durante dezoito anos foi a figura
mais proeminente do cenário político
francês. Mais ainda do que a de Henri­
que IV, a diretriz de governo do cardeal
desenvolveu-se no sentido de sustenta­
ção da burguesia. Atribuiu toda sorte de
privilégios e monopólios aos nego­
ciantes e manufatureiros e ampliou o
comércio marítimo. Com isso, expandi­
ram-se em grande escala as manufaturas
e multiplicaram-se os engenhos mecâni­
cos. Essa expansão científica e técnica
foi obra da burguesia; mas, se o absolu­
tismo real favorecia a burguesia, ele não
pretendia entregar-lhe o poder. A mo­
narquia procurava simplesmente fortifi-
car-se, utilizando a burguesia contra a
nobreza e contendo uma por meio da
A filosofia de Descartes é construída outra. Explica-se desse modo, em gran­
como um encadeamento de idéias claras de parte, o retardamento da “ciência ofi­
e distintas. Seu ponto de partida cial” da época — que desencantara Des­
é a evidência do cogito, que supera cartes desde os tempos do colégio de La
toda dúvida.: “Penso, logo existo”. Flèche —, completamente estagnada em
292
DESCARTES

tomo dos comentários dos antigos (par­ serviam então de base para um campo
ticularmente de Aristóteles, no campo bastante limitado de aplicações (o das
filosófico) e predisposta a rejeitar e a artes mecânicas); por outro lado, embo­
condenar, em nome da tradição e da ra dotadas de tão grande riqueza racio­
autoridade, quaisquer manifestações de nal, elas não ensinavam nada de funda­
uma nova mentalidade científica. mental para os problemas da vida, que
permaneciam obietos de especulações
A sedução das matemáticas vagas.
Em 1619, Descartes deixa a Holanda
Depois dos cursos realizados em La e viaja por vários países: Dinamarca,
Flèche e em Poitiers — e desencantado Polônia, Hungria, Alemanha. Continua
com a instabilidade e a inutilidade prá­ seus estudos de matemática, na mesma
tica das “letras” —, Descartes resolve época em que ingressa na confraria
procurar apenas a ciência que “poderia Rosa-Cruz, caracterizada por um misti­
encontrar em mim mesmo, ou antes, no cismo de índole fortemente racional. O
grande livro do mundo”, seguindo o ano de 1619 foi, assim, marcado por
caminho apontado por Montaigne. In­ grande atividade científica e por uma
gressa, entãç, na carreira militar, e vai efervescência espiritual que culminaram
para os Países Baixos, onde passa a ser­ nos sonhos da noite de 10 para 1 1 de
vir sob o corçando de Maurício de Nas- novembro. Descartes alcançava então ó
sau, que combatia os espanhóis. Nessa desvelamento de sua missão filosófica:
época liga-se por forte amizade a Isaac certo de que existia um acordo funda­
Beeckman, jovem médico, holandês apai­ mental entre as leis matemáticas e as
xonado pela física-matemática. leis da natureza, conclui que a ele cabe­
Paralelamente à decepção causada ría a tarefa de reviver e atualizar o anti­
pelas “humanidades”, Descartes já go ideal pitagórico de submeter o uni­
havia sido tocado — certamente desde os verso aos números, abrindo a via para o
tempos do colégio — pela sedução das conhecimento claro e seguro de todas as
matemáticas, todos aqueles conheci­ coisas.
A partir de 1620, Descartes renuncia
mentos regidos pelas noções de número e definitivamente à carreira militar para
medida. “Eu me comprazia principal­ dedicar-se à investigação científica e
mente com as matemáticas, devido à cer­ filosófica. Realiza novas viagens, inclu­
teza e à evidência de suas razões”, sive à Itália. Em 1627, durante sua
escreverá mais tarde no Discurso do Mé­ permanência em Paris, participa de um1
todo. E não sem motivo: ao contrário da debate na residência do núncio papal, e
fragilidade dos argumentos e da dissen- causa tão viva impressão que o Cardeal
são típica das íl-humanidades”, as mate­ de Bérulle exorta-o a se consagrar à
máticas exibiam uma construção sólida reforma da filosofia.
e clara, que a todos se impunha com a Até esse momento Descartes havia
força de demonstrações incontestáveis e escrito alguns trabalhos, dos quais só se
que atravessara incólume as crises de conhecem extratos ou os títulos, onde
pensamento instauradas pelos novos transparecem suas preocupações cientí­
ventos da Renascença. A validade das ficas aliadas à influência dos temas da
proposições matemáticas parecia pairar sociedade Rosa-Cruz. Dentre esses es­
acima das contigências de espaço e de critos encontram-se o Pamassus, os
tempo, sugerindo a possibilidade de Olympica, um Compendium Musicae
seguras e perenes verdades que escapas­ (dedicado a Beeckman), uma Álgebra, a
sem à corrosão do ceticismo. As mate­ Democritica e o Studium Bonae Mentis,
máticas eram a promessa de se ir além que dá início às investigações metodoló­
de Montaigne. Mas, ao lado do encanta­ gicas de obras posteriores, como as Re­
mento pelas matemáticas — estimulado gras para a Direção do Espírito (Regu-
pela comunhão com os interesses de seu lae ad Directionem Ingenii), escritas em
amigo Beeckman —, o jovem Descartes 1628. Nesse mesmo ano, fixa-se na
faz duas verificações que o surpreen­ Holanda, onde vive até 1649 e onde faz
dem: apesar de apresentarem solidez e vários amigos, particularmente Constan-
perfeito encadeamento, as matemáticas tin Huygens ( pai do futuro cientista

293
OS PENSADORES

No Discurso do Método, Descartes descreve sua formação intelectual,


relata o desencanto que lhe causaram as “letras” e proclama a superioridade
das matemáticas. Finalmente, apresenta os preceitos metodológicos capazes
de conduzir o espírito à verdade. Do ano da publicação do Discurso (1637)
é este quadro de Verwer, mostrando trecho de Paris. (Museu Camavalet.)
Christiaan Huygens — 1629-169.)). tir a tranqüilidade de sua vida e evitar a
Os cinco primeiros anos de sua repressão da Igreja.
permanência na Holanda foram dedica­ Em 1637, Descartes reconsidera sua
dos à elaboração de um pequeno tratado intenção de nada mais publicar, e edita
de metafísica e, principalmente, à com­ três pequenos tratados: a Dióptrica, os
posição de uma obra que deveria abar­ Meteoros e a Geometria, precedidos do
car o conjunto da física: o Traité du Discours de la Méthode pour bien Con-
Monde et de la Lumière (Tratado do duire Sa Raison et Chercher la Vérité à
Mundo e da Luz). O trabalho já estava travers les Sciences, obra escrita em
pronto para ser impresso quando Des­ francês, o que constitui uma novidade
cartes soube da condenação de Galileu, para a época, pois desde a Idade Média
motivada por uma tese a que ele também as obras científicas e filosóficas eram
havia aderido: a do movimento da Terra. escritas em latim. Dessa forma Descar­
Por prudência, Descartes renuncia à tes marca já pela roupagem de seu pen­
publicação de sua obra. E por prudência samento em “língua vulgar”, nacional, a
(que alguns críticos considerarão às afirmação do espírito moderno, tendente
vezes excessiva), toda a obra posterior a romper com a latinização unificadora
do filósofo ficará até certo ponto muti­ da cultura.
lada ou deformada: Descartes apresen- Anos mais tarde (1641), Descartes
tar-se-á como um “filósofo mascarado” publica as Méditations sur la Philoso-
(segundo sua própria expressão), pas­ phie Prémière, que suscitaram numero­
sando a se exprimir de forma frequente­ sas objeções por parte de filósofos e teó­
mente embuçada e ambígua, para garan­ logos (como Hobbes, Caterus, Amault,

294
DESCARTES

Gassendi), obrigando-o a redigir as Res­


postas, que contêm elementos impor­
tantes para a compreensão de suas dou­
trinas. Em 1644, para completar a
exposição de sua filosofia e de sua físi­
ca, publica, em latim, os Princípios da
Filosofia, dedicados à Princesa Eliza-
beth da Boêmia, com quem Descartes
manteve assídua correspondência sobre
temas filosóficos e que, de certo modo, o
induziu a escrever o Traité des Passions,
publicado em 1649. Descartes já era
então um nome internacional, louvado
por uns e combatido por outros. No final
daquele mesmo ano, aceita o convite da
Rainha Cristina da Suécia — que gostava
de se cercar de artistas e intelectuais — e
parte para a corte de Estocolmo. Sua
saúde, que sempre fora frágil, não resis­
te, porém, aos rigores do clima nórdico:
tendo contraído pneumonia. Descartes
morre poucos meses depois de sua che­
gada (1 1 de fevereiro de 1 650).
Se duvido, penso
Nos Princípios da Filosofia Descartes
compara a sabedoria a uma árvore que Malebranche (1638-1 715) adotou o
estaria presa ao domínio do ser, à reali­ racionalismo cartesiano, vinculando-o
dade, através de suas raízes metafísicas. aos dogmas cristãos. Para ele, Deus
O tronco da árvore seria a física, ou seja, seria a causa de tudo, a atuar
o conjunto dos conhecimentos sobre o por meio das “ocasiões” concretas.
mundo sensível, redutíveis, porém, à sua
estrutura matemática. Os ramos repre­ fornecia simultaneamente as leis dos nú­
sentariam as principais artes que apli­ meros e das figuras. Mas sua ambição é
cam conhecimentos científicos: a mecâ­ maior, como maior era o âmbito da tare­
nica, a medicina, a psicologia, a moral. fa intelectual de que se julgara investi­
Uma única seiva circularia por todo esse do, principalmente depois dos sonhos de
complexo organismo, garantindo-lhe a novembro de 1619. Tratava-se de unifi­
vitalidade. Por outro lado, a imagem car, com o auxílio do instrumental mate­
deixa perceber claramente que Descar­ mático, todo o vasto campo dos conheci­
tes, embora desde cedo voltado para as mentos, até então dispersos em débeis
pesquisas científicas, não considera que construções isoladas. Mas, para isso,
estas se bastem a si mesmas: o tronco da era necessário que, antes, o terreno fosse
física sustenta-se em raízes metafísicas. preparado de modo a que nele não
A maior parte da obra de Descartes é medrasse qualquer dúvida. Só então a
consagrada às ciências; mas ele com­ árvore da sabedoria poderia expandir-se
preende que não é suficiente pesquisar e com o pleno viço da certeza.
resolver problemas científicos — o que Descartes percebe que existe apenas
faz sobretudo nos domínios da matemá­ um caminho que supera a dúvida: o que
tica e da óptica —, se, naquele tempo de a atravessa toda, esgotando-lhe todas as
incertezas, não consegue justificar a dimensões. Ou seja: parece-lhe impos­
própria legitimidade da ciência. Desde sível vencer a dúvida evitando-a ou
os 23 anos Descartes havia aplicado a pretendendo instalar-se desde logo numa
álgebra à geometria, encontrando um frágil certeza — e frágil justamente por­
método matemático geral e abstrato que que ainda não submetida, aos testes da

295
OS PENSADORES

A vida de Descartes esteve sempre ligada à Holanda. Na juventude, lá conheceu


o médico Isaac Beeckman, outro apaixonado pelas investigações matemáticas.
Mais tarde, de 1628 a 1649, viveu outra vez na Holanda, quando então
tomou-se amigo de Constantin Huygens, pai do futuro grande cientista
Christiaan Huygens. (Rotterdam, segundo uma gravura do século XVIII.)
dúvida. Descartes aceita o desafio da somente com idéias desse tipo — parecia
dúvida que transpassava a atmosfera exequível a construção de uma “cadeia
cultural de sua época; aceita para de razões”, cujos elos seriam intuídos
combatê-la com suas próprias armas. com a clareza das evidências matemá­
Eis porque duvida metodicamente de ticas e interligados com a coerência per­
tudo. Adota em princípio a sugestão de feita das demonstrações de que a mate­
Montaigne: o decisivo campo de batalha mática fornecia os exemplos. Construída
entre a certeza e a incerteza é o próprio por sucessivas intuições ligadas por vín­
eu. Fazendo a sondagem de suas pró­ culo dedutivo, a perfeita sabedoria —
prias idéias, verifica que as que parecem aplicável a quaisquer objetos — deveria
referir-se a objetos físicos são instáveis e ser uma tessitura de idéias claras. A cla­
obscuras, facilmente atingíveis pela in­ reza das idéias, porém, representa uma
certeza; outras, ao contrário, apresen­ garantia apenas subjetiva: porque são
tam-se ao espírito com grande nitidez e perfeitamente claras e distintas é que as
estabilidade — exatamente as utilizadas idéias se impõem com a força de evidên­
pelas matemáticas (como “figura”, “nú­ cias. Mas quem garante que a tais
mero”). Essas idéias claras e distintas idéias, embora claras, corresponda algo
são concebidas por todos da mesma real?
maneira, o que parece mostrar que elas Nesse ponto de seu esforço de funda­
independem das experiências dos senti­ mentação da certeza científica, Descar­
dos (individuais e mutáveis), consti­ tes amplia a dúvida ao máximo, tornan-
tuindo o substrato inato da pensée. do-a “hiperbólica”: passa a duvidar até
Essas idéias inatas satisfazem plena­ mesmo das idéias claras e distintas, que
mente o ideal de construir uma “mate­ o espírito espontaneamente admite como
mática universal”, que passara a ser o evidentes.
objetivo de Descartes. Com elas — e Para levar a dúvida a essa dimensão

296
DESCARTES

extrema, Descartes lança mâo de um


artifício: a hipótese do "gênio maligno”.
E se a realidade toda fosse regida por
um malin génie, um princípio de maíig-
nidade e de malícia, que justamente
manifestasse sua mais requintada mal­
dade ao fazer com que o homem esti­
vesse errando toda vez em que tivesse a
mais forte impressão de estar certo? O
que a hipótese do malin génie levanta é,
na verdade, uma séria questão: a do
valor objetivo dos conhecimentos cientí­
ficos. O que Descartes, através desse
artifício, está lembrando é que, enquanto
se permanecesse apenas no interior da
consciência, onde a ciência aparece
como uma representação, nada garante,
nem mesmo a máxima clareza e o per­
feito encadeamen to lógico dessa represen­
tação, que ela possui um correspondente
“■lá fora”, no mundo objetivo. A hipótese
do gênio maligno faz, desse modo, pai­
rar sobre o universo científico a ameaça
de ele nada mais ser que uma ficção,
uma criação apenas subjetiva, um
sonho, embora o mais bem concatenado.
No entanto, na medida mesma em que
é estendida até sua máxima dimensão e
mostra seu tamanho ameaçador, é que a
dúvida manifesta seu limite e pode dar
lugar à sua superação. De cada nível de
conhecimento em que é aplicada — das
idéias obscuras provenientes de impres­
sões sensíveis até as idéias claras uni­
versais —, a dúvida permite extrair um
núcleo de certeza, que cresce à medida
que ela se radicaliza: é indubitável que,
"se duvido, penso”. E quanto mais duvi­
de, mais se repete, reforçando-se, a
mesma experiência: se duvidar de que
duvido, só posso fazê-lo pensando essa
dúvida a respeito da própria dúvida
inicial.
Penso, logo existo
No final da Geometria, obra escrita
em 1637, Descartes afirma: “Em maté­
FABBRI

ria de progressões matemáticas, quando


se tem os dois ou os três primeiros ter­
mos, não é difícil encontrar os outros”.
Essa idéia de uma ordem natural, ine­ Na Holanda o jovem Descartes serviu
rente à progressão do conhecimento, é no exército comandado por Maurício de
fundamental para o projeto cartesiano Nassau. (Detalhe de Mercado de Ervas
de construir uma “matemática univer­ em Amsterdam, de Gabriel Metzu,
sal”. A partir do que ele experimenta pintor do século XVII, Louvre, Paris.)

297
OS PENSADORES

101 Rimàti Des*Caktb*


DISCOVRS

DE LA METHODE
Pour bien conduire fã raiíbn.&r chcrchcr
la veritc danslcsícicnccs.
I> t u s

LA DIOPTRIQVE.
LES METEORES.
ET
LA GEOMETR1E.
Qsd font des ejfius de cete Methode.

a L E Y D E

Dc rimprimeric dc I a n M a i r e.
t 1 3 13 C XXXVIJ.
slnec TriHile^e.

t-ABBRI
A ambição de Descartes era a de abranger, num conjunto unitário e claro,
todos os problemas propostos à investigação cientifica. Preocupado com
óptica, tanto quanto com medicina e moral, pretendeu estender a precisão das
matemáticas aos problemas humanos. (Ilustração, de 1667, do Tratado sobre
o Homem, e frontispício da primeira edição do Discurso do Método, de 1637.)
com campo matemático, Descartes tende uma das dificuldades que se apresentem
a ver o desconhecido como um termo em tantas parcelas quantas sejam neces­
ignorado, mas que será necessariamente sárias para serem resolvidas), o da sín­
descoberto desde que, a partir do já tese (conduzir com ordem os pensamen­
conhecido, seja construída uma “cadeia tos, começando dos objetos mais simples
de razões"’ que conduza a ele. Genera­ e mais fáceis de serem conhecidos, para
liza o procedimento matemático que faz depois tentar gradativamente o conheci­
do desconhecido um termo relativo a ou­ mento dos mais complexos) e o da
tros termos (o conhecimento existente), enumeração (realizar enumerações de
e que em função destes pode ser desco­ modo a verificar que nada foi omitido).
berto. O importante — e que constitui o Tais preceitos representam a submissão
preceito metodológico básico que Des­ a exigências estritamente racionais. E
cartes aponta no Discurso do Método — justamente o que Descartes prescreve
é que só se considere como verdadeiro o como recurso para a construção da ciên­
que for evidente, ou seja, o que for intuí- cia e também para a sabedoria de vida é
vel com clareza e precisão. Mas a seguir os imperativos da razão, que, a
ampliação da área do conhecimento nem exemplo de sua manifestação matemá­
sempre oferece um panorama permeável tica, opera por intuições e por análises.
à intuição, e, conseqíientemente, ade­ De nada adiantaria afiar o gume do
quado de saída à aplicação do preceito instrumental analítico se ele, porém, não
da evidência. Eis por que Descartes pro­ atingisse um alvo real — é o que Descar­
põe outros preceitos metodológicos com­ tes parece mostrar nas partes do Dis­
plementares ou preparatórios da evidên­ curso do Método e das Meditações, em
cia: o preceito da análise (dividir cada que a exacerbação da dúvida, por via da

298
DESCARTES

como absolutamente dependente do pen­


samento: “se deixasse de pensar, deixa­
ria totalmente de existir”. Mas a enorme
importância do cogito na construção do
cartesianismo é de duplo sentido: por
um lado, ele se apresenta como um para­
digma para as intuições que deverão
suceder-se numa visão clara da realida­
de, ou seja, tudo que for afirmado deverá
ser afirmado com a evidência plena do
tipo “penso, existo”; por outro lado, o
cogito repercute no plano metafísico,
pois significa o encontro, pelo pensa­
mento, de algo que subsiste, de uma
substância. O desdobramento “natural”
do “Penso, logo existo” é: existo “como
coisa pensante”. Do pensamento ao ser
que pensa — realiza-se, então, o salto
sobre o abismo que separa a subjetivi­
dade da objetividade
Sem dúvida, trata-se de um domínio
extremamente exíguo da objetividade
- que é assim conquistado: apenas a subs-
2 tância pensante (a res cogitans). Mas era
um termo conhecido, a partir do qual,
devido à confiança depositada na razão,
A condenação de Galileu pela Igreja Descartes podia alimentar a esperança
mostrou a Descartes que era prudente de resolver definitivamente a grande
não dizer tudo o que pensava, equação do universo.
ou então dizê-lo de forma indireta ou A única certeza contida no cogito era
velada. (Tribuna Galileana, Florença.) a da existência do eu enquanto ser pen­
sante. Todavia, Descartes estaria conde­
hipótese do malin génie, coloca em nado filosoficamente à solidão se o
xeque a objetividade do conhecimento exame de suas próprias idéias — par­
cientifico. Se da máxima incerteza des­ tindo sempre do já conquistado — não o
ponta uma primeira certeza — “Se duvi­ levasse a provar com evidência, critério
do, penso” —, esta é ainda, contudo, uma jamais abandonado, outra existência
certeza a respeito da própria subjetivi­ que não a do seu espírito, essa “coisa
dade (“penso”). Nada fica até aí garan­ que pensa”. E, antes mesmo de tentar
tido a respeito de qualquer realidade demonstrar racionalmente a existência
subsistente. Todavia, já é um primeiro do mundo físico — onde se situa seu pró­
elo na cadeia de razões — e basta uma prio corpo —, Descartes procura provar
primeira certeza plena para que a a existência de Deus, garantia última de
“ordem natural”, como numa progres­ qualquer subsistência e, portanto, fun­
são matemática, faça jorrar luz sobre o damento absoluto da objetividade.
que até então permanecia desconhecido.
A dinâmica inerente às séries de termos O bom Deus
dispostos racionalmente (como as pro­
gressões matemáticas) leva à inevitável A sugestão era platônica e já havia
explicitação do que está contido no “Se sido aproveitada, cristianizada, por
duvido, penso”. Leva ao cogito: “Penso, Santo Agostinho: o fundamento do ser e
logo existo” (Cogito, ergo sum). do conhecer é um Bem. E só por isso o
Surge assim, depois da dúvida, uma conhecer — o conhecer de um certo tipo,
primeira certeza sobre um existente o conhecer científico, epistêmico — pode
(“existo”). Toda a existência do eu apa­ corresponder ao ser, a “o que é”. Porque
rece dada, nesse primeiro momento, o fundamento da realidade é bom, sendo

299
OS PENSADORES

FABB.RI
Desde cedo Descartes reconhecera que um dos melhores caminhos para a ampliação
dos conhecimentos era ler “no grande livro do mundo”. No decorrer de sua
vida fez várias viagens, inicialmente em campanhas militares, depois
com o intuito de conhecer diferentes povos e países. E, afinal, acabou
morrendo na distante Suécia. (Planta da cidade de Estocolmo, gravura de 1730.)
mesmo o sumo Bem, o Sol que toma os da idéia de infinito e de perfeição (efei­
objetos inteligíveis e os sujeitos capazes to). Essa idéia estaria na mente do
de intelecção, é que a ciência torna-se homem como “a marca do artista im­
possível como construção clara sobre a pressa em sua obra”. Já na quinta de
realidade. E o sono se distingue da vigí­ suas Meditações Descartes reformula o
lia, e estar acordado, olhando os objetos argumento ontológico, forjado inicial­
iluminados por esse Sol, é mais do que mente, na Idade Média, por Santo Ansel­
sonhar o terrível sonho de quem sonha, mo (1035-1109), e que, antes de Descar­
com perfeita concatenação de imagens, tes, fora retomado por São Boaventura
que está acordado, vendo um fictício Sol (1221-1274) e rejeitado por Santo
a iluminar objetos ilusórios. Tomás de Aquino (1225-1274). Esse
Na terceira de suas Meditações, Des­ argumento pretende provar a existência
cartes apresenta provas da existência de de Deus a partir exclusivamente da idéia
Deus baseadas no princípio de causali­ de Deus, que, como ser perfeitíssimo,
dade, como a que afirma que só exis­ exigiria a afirmação de sua existência —
tindo realmente Deus (causa) pode-se desde que se entenda a existência como
explicar a existência de um ser finito e uma perfeição que possa ser atribuída,
imperfeito, o eu pensante, porém dotado necessariamente ou não, a uma essência.
300
DESCARTES

infinita (Deus) e a res cogitans (o


pensamento).
Todavia, se Deus existe — um Deus
que não o Deus da religião, mas um
Deus fundamento da ciência, um “Deus
de filósofos e de sábios” —, e existe
como ser perfeitíssimo, então ele é bom e
veraz, conclui Descartes. Assim sendo,
não pode permitir o erro sistemático do
espírito humano. A bondade de Deus im­
pede a sustentação da hipótese do gênio
maligno e justifica o otimismo científico
e a própria crença na razão. Substi­
tuindo o malin génie pelo bon Dieu, Des­
cartes pode agora afirmar, com toda a
segurança, que a evidência é mesmo o
critério da verdade: às idéias claras
correspondem de fato realidades — elas
não são a terrível armadilha de um gênio
enganador e cruel. O Deus cartesiano é,
assim, a garantia da objetividade do
conhecimento científico; enquanto bon
Dieu, toma-se a expressão do otimismo
racionalista que pressupõe que ao máxi­
mo de clareza subjetiva corresponde o
cerne da objetividade. O bon 'Dieu é na
verdade uma deusa: a Deusa-Razão, que
Descartes cultua e que será exaltada
pelo Iluminismo do século XVIII.
Com base na bondade e na veracidade
divinas é que Descartes irá também — na
sexta das Meditações — demonstrar
A Rainha Cristina da Suécia, mulher racionalmente a existência do mundo fí­
inteligente, gostava de se cercar sico: Deus serve de apoio para retirar do
de artistas, filósofos, cientistas. domínio da dúvida o conhecimento rela­
A seu convite, em 1649, Descartes tivo aos corpos.
foi conhecer a corte de Estocolmo. Mas como o testemunho sobre o
mundo físico é, na maioria das vezes,
Descartes, certamente atraído pelo arca­ fornecido por idéias obscuras, origina­
bouço estritamente racional desse argu­ das de impressões sensíveis, Descartes
mento — pois não faz apelo senão ao não pode aplicar diretamente a ele o pre­
esforço lógico de tornar explícito o ceito metodológico da evidência. A exis­
significado de uma noção supostamente tência do mundo físico — e como tal
inata —, insere-o em sua metafísica. exterior ao pensamento — deve ser então
Mas, para sobrepor-se às críticas feitas, comprovada através de etapas sucessi­
no passado e em sua época, a esse tipo vas, numa forma de argumentação por
de argumentação, procura fazer dela aproximações que representa um crescer
não a passagem, acusada de indébita, da da certeza. Descartes primeiro demons­
ordem dos conceitos {idéia de Deus) tra que a existência do mundo exterior é
para a ordem real {existência de Deus), possível; em seguida, que é mais que
mas uma passagem entre dois existen­ possível — é provável; finalmente, que é
tes: porque Deus existiría é que se justi­ mais que provável — é certa.
ficaria a existência da idéia de Deus na A possibilidade da existência do
mente humana. O argumento ontológico mundo fisico sustenta-se na onipotência
apenas mostraria, na versão cartesiana, divina, em nome da qual pode-se legiti­
a relação entre duas substâncias: a res mamente supor que aquele mundo exis­

301
OS PENSADORES

te, criado por um ser que tudo pode. constituído a partir de idéias claras.
Mas, além disso, há napensée uma idéia Baseada primariamente no plano do
clara referente ao mundo físico — a de pensamento, a física cartesiana resulta,
extensão. Essa idéia que existe no espí­ assim, de construções abstratas, regidas
rito humano — como a de algo dotado de pela razão. Mas Descartes reconhece
grandeza e forma — é fundamental à que os eventos do mundo físico não são
geometria e toma provável a existência facilmente absorvidos pelas idéias cla­
dos corpos. Mas, para chegar à certeza, ras ligadas por cadeias dedutivas. De
Descartes recorre novamente a Deus: se qualquer modo, porém, a física carte­
à idéia clara e inata de extensão não siana mostra p mundo tal como ele se
apresenta ao intelecto: constituído ape­
correspondesse uma realidade extensa, nas pela extensão, que é a essência da
isso significaria aquela inclinação fatal corporeidade.
do espírito humano para o erro, ohra de A aplicação das exigências estrita­
um malin génie, mas incompatível com a mente racionais à compreensão do
idéia de um bon Dieu. Porque Deus é mundo físico leva Descartes a concebê-lo
bom é que a imagem que o homem faz de como finito e pleno: a matéria seria divi­
um mundo exterior não representa uma dida em partículas perfeitamente contí­
ficção de sua mente, na maior parte nuas (não existiría o vazio). Num uni­
apoiada nos dados sensíveis: se Deus verso assim cheio, toda partícula que se
existe — como garantia da objetividade move só pode fazê-lo na medida em que
—, então pode-se ter certeza de que o ocupa o lugar de outra que também se
mundo físico existe. A passagem da cer­ move. Porém o mais importante é que
teza a respeito da existência do pensa­ Descartes concebe que esse movimento
mento (res cogitans) para a certeza está submetido a uma determinação tal
sobre a existência do mundo físico (res que, se nada o afetar, ele deverá reali­
extensa) pressupõe, assim, o apoio em zar-se de modo retilíneo e uniforme,
Deus (res infinita). Deus serve de inter­ segundo o princípio de inércia. Descar­
mediário entre duas certezas: a de que tes reconhece que num mundo em que,
"sou uma coisa que pensa” e a de que devido àquele princípio, as partículas
tenho realmente um corpo. O infinito que constituem a matéria deveríam
sustenta, mediando-as logicamente, mover-se retilineamente, de fato elas se
duas finitudes: a do pensamento humano movem em trajetórias circulares — o que
e a do mundo fisico. significa que o princípio de inércia é um
Definidos como substâncias perfeita- princípio geral, mas que não se efetiva
mente distintas, a extensão e o pensa­ nunca. Fora deste mundo é que uma par­
mento coexistem, todavia, no homem tícula se moveria em linha reta e unifor­
através da dualidade corpo/alma. E, memente: continuando a tradição platô­
para justificar as relações entre essas nica, Descartes vê o mundo físico como
duas substâncias opostas, Descartes um caso particular de um mundo ideal,
terá que desenvolver (como faz no Trata­ este alcançável apenas pelo intelecto.
do das Paixões) engenhosas explicações, Também na consideração das ações
apelando para a ação intermediária do humanas Descartes reconhece que o pro­
que chama de “espíritos animais”, res­ pósito de generalizar as exigências de
ponsáveis pelas interligações entre uma razão matemática encontra obstá­
corpo e espírito. O dualismo cartesiano culos: a urgência da ação demanda a
será substituído, dentro mesmo da ver­ aceitação de imposições puramente fac­
tente do racionalismo moderno, por ou­ tuais. Por isso, embora a pretensão de
tras explicações sobre a relação criar uma “matemática universal” conti­
corpo/alma, dadas principalmente por vesse o ideal de uma sabedoria, guiada
Spinoza e por Leibniz. pela razão e aplicável às contingências
da vida, Descartes é compelido a propor
Uma moral provisória uma “moral provisória” — espécie de
arte de ser feliz, apesar das dúvidas que
A física cartesiana representa uma possam persistir no julgamento que se
aplicação de sua metafísica, na qual faça sobre as coisas. Essa moral reco­
Deus garante o conhecimento científico menda o conformismo social, a obe-

302
DESCARTES

FAB B RI

A obra de Descartes manifesta um único objetivo: converter em pura claridade


racional todos os fenômenos do universo. Certo de que a ele cabia a missão
de construir a tlcidade nova” da sabedoria. Descartes usou as armas da
dúvida para combater a própria dúvida. (Detalhe de A Rainha
Cristina Cercada de Sábios, entre eles Descartes; de Dumesnil, Versalhes.)

303
OS PENSADORES

diência às leis e aos costumes do país. O dúvida cartesiana, que chegou a atingir
que confirma que a formação conserva­ as idéias claras da matemática, jamais
dora de Descartes, fruto do meio fami­ se voltou para os temas políticos e
liar e social e fortalecida pela atmosfera sociais. Será necessário aguardar o sé­
cultural de La Flèche, deixou marcas no culo XVIII para que, na França, em
seu pensamento. Por outro lado, mostra nome da razão analítica prescrita pelo
que o destino de Giordano Bruno e de cartesianismo, o poder político e as
Galileu sugeria uma prudência que instituições sociais sejam julgados e
pautou não apenas a vida como também condenados, em nome do ideal de uma
certos aspectos da obra de Descartes. sociedade constituída por indivíduos li­
Mesmo quando ampliada ao máximo, a vres e iguais.

CRONOLOGIA
1596 — Nasce Descartes, 1620 — Renuncia à vida 1635 — Nasce Francine,
em La Haye. militar. filha de Descartes e de Hele­
1606 — Entra para o colé­ 1622 — Volta à França. na, talvez uma criada.
gio jesuíta de La Flèche. 1623 — Viagem à Itália. 1637 — Publica o Discur­
1610 — Início do reinado 1624 — O Cardeal Riche- so do Método.
de Luís XIII. O coração de lieu entra para o Conselho 1641 — Aparecem as Me­
Henrique IV é transferido do Rei e logo se toma chefe ditações.
para La Flèche. desse órgão. 1642 — Morre Richelieu.
1614 — Descartes sai do 1628 — Descartes escreve 1644 — Descartes viaja à
Colégio de La Flèche. as Regras para a Direção do França.
1618 — Início da Guerra Espírito. Passa a viver na 1647 — Nova viagem à
dos Trinta Anos. Descartes Holanda. França. Encontro com Pas­
vai para a Holanda, onde 1629 — Harvey, médico cal.
realiza sua instrução militar inglês, publica a obra Sobre 1648 — Descartes vai ou­
sob a direção de Maurício o Movimento do Coração. tra vez à França.
de Nassau. 1633 — Galileu é conde­ 1649 — Descartes parte
1619 — Descartes deixa a nado pela Inquisição. para a Suécia, a convite da
Holanda, seguindo para a 1634 — Descartes renun­ Rainha Cristina.
Dinamarca, depois para a cia à publicação de seu Tra­ 1650 — Morre em Esto­
Alemanha. tado do Mundo. colmo, de pneumonia.

BIBLIOGRAFIA
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Hamelin, Octave: Le Système de Descartes, Paris, Alcan, 1911; trad. esp. Editorial Losada,
Buenos Aires, 1949.
Mesnard, Pierre: Descartes, Éditions Seghers, Paris, 1966.
Gouhier, Henri: Essais sur Descartes, J. Vrin, Paris, 1949.
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Brunschvicg, Leòn: Les Étapes de la Philosophie Mathématique, Presses Universitaires de
France, Paris, 1912.
Gueroult, Martial: Descartes selon l’Ordre des Raisons (2 vol.), Aubier, Paris, 1953.
Laporte, Jean: Le Rationalisme de Descartes, Presses Universitaires de France, Paris, 1950.
Alquie', Ferdinand: La Découverte Métaphysique de 1’Homme chez Descartes, Presses
Universitaires de France, Paris, 1950.
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Universitaire, Sorbonne, Paris, s/d.
Chevalier, Jacques: Descartes, Plon, Paris, 1921.
Milhaud, Gaston: Descartes Savant, Alcan, Paris, 1921.
Alquie', Gouhier, Gueroult, J. Hyppolite, J. Wahl e outros: Descartes, Cahiers de
Royaumont, Les Éditions de Minuit, Paris, 1957.
304
CAPÍTULO 23
OS PENSADORES

ascido em Clermont-Ferrand, a 19 um problema não o largava até resolvê-

N de junho de 1623, Blaise Pascal


era filho de Êtienne Pascal, presi­
lo plenamente. Aos onze anos, suas
experiências sobre os sons levaram-no a
escrever um pequeno tratado, conside­
dente da Corte de Apelação, e de Antoi-
nette Bégon. Segundo sua irmâ e biógra­ rado muito bom para sua idade.
fa, Gilberte Périer, Pascal revelou desde Êtienne Pascal era matemático e sua
cedo um espirito extraordinário, não só casa era muito freqüentada por geôme-
pelas respostas que dava a certas ques­ tras. Como queria que Blaise estudasse
tões, mas sobretudo pelas questões que línguas e, sabendo como a matemática é
ele próprio levantava a respeito da natu­ apaixonante e absorvente, evitou por
reza das coisas. Tendo perdido a mãe muito tempo que o filho a conhecesse,
aos três anos de idade e sendo o único prometendo-lhe que a ensinaria quando
filho do sexo masculino, o pai apegou-se ele já soubesse grego e latim. Essa pre­
muito a ele e encarregou-se de sua caução serviu apenas para aumentar a
instrução, nunca o enviando a colégios. curiosidade de Blaise, que passou a se
Mesmo quando, em 1631, a família Pas­ divertir com as figuras geométricas que
cal mudou-se para Paris, a educação de o pai lhe havia mostrado. Procurava tra­
Blaise permaneceu ao encargo do pai. A çá-las corretamente; depois passou a
irmã Gilberte escreverá mais tarde: “A buscar as proporções entre elas e, afinal,
máxima dessa educação consistia em depois de propor axiomas relativos às
manter a criança acima das tarefas que figuras, dedicou-se a fazer demonstra­
lhe eram impostas; por esse motivo só ções exatas. Com isso chegou até a 32.a
deixou que aprendesse latim aos doze proposição do livro I de Euclides. Estar­
anos, para que aprendesse com maior recido, o pai verificou que o filho desco­
facilidade. Durante esse intervalo não o brira sozinho a matemática. A partir de
deixou ocioso, pois o ocupava com todas então, Blaise recebeu os livros dos Ele­
as coisas de que o julgava capaz. mentos de Euclides e pôde dedicar-se à
Mostrava-lhe de um modo geral o que vontade ao estudo da geometria. Os
eram as línguas; ensinou-lhe como ha­ avanços foram rápidos: aos dezesseis
viam sido reduzidas as gramáticas sob anos escreveu o Tratado sobre as Côni­
certas regras, que tais regras tinham cas, que, no entanto, por sua própria
exceções assinaladas com cuidado, e que vontade, não foi impresso na época.
por esses meios todas as línguas haviam
podido ser comunicadas de um país para Entre a ciência
outro. Essa idéia geral esclarecia-lhe o e a religião
espírito e fazia-o compreender o motivo
das regras da gramática, de sorte que Não apenas na matemática revelou-se
quando veio a aprendê-las sabia o que o gênio precoce de Pascal. Nas demais
fazia e dedicava-se aos aspectos que lhe ciências realizou surpreendentes pro­
exigiam maior dedicação”. gressos e aos dezenove anos inventou a
Além das línguas, Êtienne Pascal ensi­ máquina aritmética, que permitia que se
nava outras coisas ao filho: dava-lhe fizesse qualquer operação sem lápis nem
rudimentos sobre as leis da natureza e papel, sem que se soubesse qualquer
sobre as técnicas humanas. Tudo isso regra de aritmética, mas com segurança
aguçava ainda mais a curiosidade do infalível. O invento de Pascal foi consi­
menino, que queria saber a razão de derado uma verdadeira revolução, pois
todas as coisas e não se satisfazia diante transformava uma máquina em ciência,
de explicações incompletas ou superfi­ ciência que reside inteiramente no espí­
ciais. Diante de uma explicação insufi­ rito. A construção da máquina foi, toda­
ciente, passava a pesquisar por conta via, muito complicada e Pascal levou
própria até encontrar uma resposta dois anos trabalhando com os artesãos.
satisfatória e quando se defrontava com Essa fadiga comprometeu definitiva­
mente sua saúde, que se tornou muito
Na página anterior: Quesnel, o jovem, frágil daí por diante.
retrato de Blaise Pascal, Museu de Aos 23 anos, tendo tomado conheci­
Versalhes, Paris. (Foto Fabbri.) mento da experiência de Torricelli

306
PASCAL

A carreira científica e filosófica de Blaise Pascal perdurou durante a


primeira década do longo reinado de Luís XIV, o Rei Sol, guando o classicismo
francês atingiu o auge de seu desenvolvimento. A tela acima representa uma
visita do monarca à Academia de Ciências de Paris, da qual Pascal participou,
apresentando trabalhos de matemática em 1654. (Museu de Versalhes, Paris )

(1608-1647) referente à pressão atmos­ des, permite calcular as combinações


férica, realizou uma outra denominada possíveis de m objetos agrupados n a n.
“a experiência do vácuo”, provando que Um dos últimos trabalhos científicos
os efeitos comumente atribuídos ao de Pascal nesse período é o Tratado
vácuo eram, na verdade, resultantes do sobre as Potências Numéricas, em que
peso do ar. Mais tarde — a partir de aborda a questão dos “ infinitamente
1652 —, Pascal passou a se interessar pequenos”. À essa questão voltará mais
pelos problemas matemáticos relacio­ uma vez em 1658, num derradeiro estu­
nados com os jogos de dados. As pesqui­ do científico sobre a área da ciclóide,
sas que fez a esse respeito conduziram- curva descrita por um ponto da circunfe­
no à formulação do cálculo das rência que rola sem deslizar sobre uma
probabilidades, que ele denominou reta. O método aplicado por Pascal para
Aleae Geometria (Geometria do Acaso). estabelecer essa área abriu caminho à
O chamado Triângulo de Pascal foi um descoberta, mais tarde, do cálculo inte­
dos resultados dessas pesquisas sobre gral, realizada por Leibniz (1646-1716)
jogos de azar: trata-se de uma tabela e Newton (1642-1727).
numérica que, entre outras proprieda­ Em Ruão, para onde se havia mudado

307
OS PENSADORES

A abadia cistersiense de Port-Royal des Champsfoi centro de grande atividade


intelectual no século XVII na França e núcleo do movimento espiritual
iniciado pelo holandês Comélio Jansênio. Foi dentro do jansenismo que Pascal
encontrou expressão para sua sede de absoluto e transcendência religiosa.
(Port-Royal des Champs, Coleta de Esmolas, Museu de Versalhes, Paris.)

a família Pascal, Blaise conheceu Jac- seus hábitos, foi morar no campo, onde
ques Forton, senhor de Saint-Ange- tanto fez para abandonar o mundo que o
Montcard, com quem teve as primeiras mundo afinal o abandonou”.
discussões a respeito da Bíblia, dos dog­ Assim, depois do período em que pro­
mas da Igreja Católica e da teologia em curou a verdade científica e a glória hu­
geral. Blaise e outros jovens, seus ami­ mana no domínio da natureza e da
gos, logo consideraram Saint-Ange- razão, Pascal dirigiu seu interesse para
Montcard um herético pernicioso. Come­ as questões da Igreja e da Revelação,
ça então a fase apologética da obra de acalentando o projeto de reunir a socie­
Pascal, quando ele se une aos janse- dade laica e a cristã e de combater a cor­
nistas de Port-Royal, sob a influência de rupção que teria sido causada pela evo­
sua irmã, Jacqueline Pascal, que havia lução dos últimos séculos. Nesse período
entrado para ó convento. Segundo o rela­ escreve o Memorial, obra mística, e os
to de Gilberte, Jacqueline conseguiu per­ trabalhos de cunho apologético Coló-
suadir o irmão de que “a salvação devia quios com o Senhor de Saci sobre Epic-
ser preferível a todas as coisas e que era teto e Montaigne e as Provinciais.
um erro atentar para um bem passageiro Na verdade, Pascal foi decisivamente
do corpo quando se tratava do bem eter­ marcado por um acontecimento, que
no da alma”. Pascal tinha então trinta determinou a mudança de sua trajetória
anos, quando “resolveu desistir dos espiritual: o “milagre do Santo Espi­
compromissos sociais. Começou mudan­ nho”. O fato é narrado pela irmã de Pas­
do de bairro e, para melhor romper com cal, Gilberte Périer: “Foi por esse tempo

308
PASCAL

As análises sobre o milagre são funda­


mentais no pensamento de Pascal, pois
determinam o centro de todas as suas
reflexões religiosas e filosóficas: a figu­
ra de Cristo, mediador entre o finito (as
criaturas) e o infinito (Deus criador). Em
função de Cristo, Pascal estabelece a
verdadeira relação entre os dois Testa­
mentos: o Antigo revelaria a justiça de
Deus, perante a qual todos os homens
seriam culpados pela transmissão do pe­
cado original; o Novo revelaria a miseri­
córdia de Deus, que o leva a descer entre
os homens por intermédio de seu Filho,
cujo sacrifício infunde a graça santifi-
cante no coração dos homens é os redi­
me. A idéia central de Pascal sobre o
problema religioso é, portanto, a de que
sem Cristo o homem está no vício e na
miséria; com Cristo, está na felicidade,
na virtude e na luz.
A figura de Cristo permite ainda a
Pascal distinguir os pagãos, os judeus e
os cristãos: os pagãos (isto é, os filóso­
fos) seriam aqueles que acreditam num
Deus que é simplesmente o autor das
verdades geométricas e da ordem dos
elementos; os judeus seriam os que acre­
O fundador do jansenismo opôs-se aos ditam num Deus que exerce sua provi­
métodos escolásticos e revitalizou a dência sobre a vida e os bens dos homens
doutrina agostiniana da predestinação. a fim de dar-lhes uma seqüência de anos
(Gravura retratando Jansênio, Civica felizes; já os cristãos seriam os que
Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.) crêem num Deus de amor e de consola­
ção, que faz com que eles sintam inte­
que aprouve a Deus curar minha filha de riormente a miséria em que vivem e a
uma fístula lacrimal que a afligia há três infinita misericórdia de quem os criou.
anos e meio. Essa fístula era maligna e Somente aquele que chega ao fundo da
os maiores jcirurgioes de Paris a consi­ miséria e da indignidade e que sabe que
deravam incurável: e enfim Deus permi­ essa é a natureza humana poderá sentir
tiu que ela se curasse tocando o Santo a necessidade do mediador (Cristo), che­
Espinho que existe em Port-Royal, e gando por intermédio dele a conhecer o
esse milagre foi atestado por vários verdadeiro Deus, pois só o mediador
cirurgiões e médicos, e reconhecido pelo poderia reparar a miséria do homem.
juízo solene da Igreja”. A cura de sua
sobrinha e afilhada repercutiu profunda­ Jansenismo e
mente em Pascal: “ . . .ele ficou emocio­ monarquia absoluta
nado com o milagre porque nele Deus
era glorificado e porque ocorria num Com o intuito de reformular global­
tempo em que a fé da maioria era medío­ mente a vida cristã, o holandês Comélio
cre. A alegria que experimentou foi tão Jansênio (1585-1638) deu início a um
grande que se sentiu completamente movimento que abalou a Igreja Católica
penetrado por ela, e, como seu espírito durante os séculos XVII e XVIII. Des­
ocupava-se de tudo com muita reflexão, contente com o exagerado racionalismo
esse milagre foi a ocasião para que nele dos teólogos escolásticos, Jansênio —
se produzissem muitos pensamentos doutor em teologia pela Universidade de
importantes sobre milagres em geral. Louvain e bispo de Ypres — uniu-se a

309
OS PENSADORES

condenação ou para a salvação. Desse


modo, independentemente das ações que
cometa, o homem estaria predestinado
para o céu ou para o inferno.
O jansenismo expandiu-se principal­
mente na França, graças à atuação do
abade de Saint-Cyran e de Antoine
Arnauld (1612-1694), que, juntamente
com outros intelectuais, instalaram-se
em Port-RoyaL Ali o jansenismo assu­
miu forma ascética e polêmica, apresen­
tando-se como um verdadeiro cisma, que
logo foi atingido pelos anátemas do papa.
Era uma época de profundas transfor­
mações políticas na França. A monar­
quia, em sua evolução, passava de
monarquia temperada do antigo regime
(caracterizada pela primazia da realeza
sobre os senhores, graças ao apoio do
Terceiro Estado, do corpo de legistas, de
administradores e de oficiais) à monar­
quia absoluta, na qual as atribuições
dos oficiais e das cortes são transferidas
Antoine Arnauld (16 12- 1694), grande para o corpo de comissários do rei. Os
defensor do jansenismo, contou com a iniciadores do movimento jansenista na
cola boração de Pascal para a redação França — Saint-Cyran, Amaud
da Lógica ou Arte de Pensar, também d’Andilly, Antoine Le Maitre — perten­
conhecida como Lógica de Port-Royal. ciam à nobreza togada e em especial a
um grupo desses nobres que esperavam
Jean Duvergier de Hauranne, futuro passar à condição de comissários do rei.
abade de Saint-Cyran, que também pre­ E a ideologia que vai diversificar o inte­
tendia o retomo do catolicismo à disci­ rior desse grupo apresenta como núcleo
plina e à moral religiosa dos primórdios a afirmação da impossibilidade radical
do cristianismo. Os jansenistas dedica­ de se realizar uma vida válida neste
ram-se particularmente à discussão do mundo; isso leva homens e mulheres não
problema da graça, buscando nas obras apenas a abandonar a vida mundana, no
de Santo Agostinho (354-430) elemen­ sentido corrente do termo, mas a aban­
tos que permitissem conciliar as teses donar toda e qualquer função social.
dos partidários da Reforma com a dou­ Antes do início do movimento, os
trina católica. mais destacados integrantes do grupo de
Jansênio em sua obra Augustinus Port-Royal eram amigos e companheiros
declarava que a razão filosófica era “a do cardeal Richelieu, embora dele dis­
mãe de todas as heresias”. Baseando em cordassem quanto a alguns pontos im­
Santo Agostinho sua doutrina do dúplice portantes: preconizavam uma aliança
amor, sustentava que Adão, antes de com a Espanha católica e luta mortal
pecar, era livre; pelo pecado perdeu a contra os huguenotes, que estivessem
liberdade e tornou-se escravo da concu- dentro ou fora do país.
piscência, que o arrastou para o mal. Em Até 1637, a oposição entre o griipo e
consequência disso, o homem não pode Richelieu não consistia em indagar se a
deixar de pecar, a não ser que interve- vida cristã era ou não compatível com a
nha a caridade (amor celeste), que o política, mas sim qual era a política
orienta infalivelmente para o bem. Sub­ cristã. A vitória de Richelieu desenca­
metidos à lei férrea desse dúplice amor, deou a ruptura com o grupo e um de seus
os seres humanos tornaram-se escravos membros (Saint-Cyran) permaneceu, du­
da Terra ou do Céu, arrastados para a rante dez anos, na prisão do castelo de

31 0
PASCAL

Vincennes. A partir de então é que nasce


o jansenismo propriamente dito: afirma­
ção de que é impossível para o verda­
deiro cristão e para o verdadeiro ecle­
siástico participar da vida política e
social. A vanguarda jan sen ista era cons­
tituída por advogados e suas famílias,
que se incompatibilizaram com a polí­
tica de Richelieu; os simpatizantes do
movimento eram, em geral, oficiais,
advogados e membros das cortes supre­
mas, desgostosos com o poder"dos comis­
sários do rei, que passaram a exercer as
antigas funções dos oficiais e das cortes.
Deve-se notar que o pai de Pascal era
membro da Corte Suprema de Clermont-
Ferrand.
A oposição dos jansenistas constituía
apenas uma das modalidades de oposi­
ção que se fazia, na época, à monarquia
e que contará com maior número de
adeptos depois da Fronda (sublevaçâo
contra o primeiro-ministro Mazarin, que
se estendeu de Paris às províncias, de
1648 a 1652). Mas o jansenismo apre­
sentou duas vertentes: uma preconizava
o retiro completo, a segunda optava pela
militância religiosa. Esta última é que
terá maior sucesso depois da Fronda e é
ela que prossegue, no século XVIII, a
luta contra a monarquia absoluta. Pas­
cal participa de ambas as correntes, em
momentos diversos de sua vida.

Da militância
ao recolhimento
O jansenismo podia propor uma atitu­
de abstencionista em relação à política
porque estava constituído por pessoas
que pertenciam a um grupo social cuja
base econômica dependia diretamente
do Estado. Enquanto nobreza togada, os
BETTMANN ARCHIVE. INC.

oficiais, os membros das Cortes depen­


diam economicamente do Estado, embo­
ra, ideologicamente, dele se afastassem
e a ele se opusessem. A situação dos
jansenistas é, assim, paradoxal: expri­
me o descontentamento em face da
monarquia absoluta, sem, contudo,
poder desejar sua destruição ou sua
transformação radical. Os jansenistas “Épreciso conhecer-se a si mesmo; se
são trágicos porque vivem uma situação isso não servisse para encontrar a
trágica — e por isso afirmam tragica­ verdade, serviria ao menos para
mente a vaidade essencial do mundo e a regular a vida, e não há nada de mais
salvação pelo retiro e pela solidão. justo. ” (Retrato de Pascal.)

311
OS PENSADORES

O centro da trajetória espiritual de mundo e o apelo de Deus. E é estendendo


Pascal reside no seu encontro com o o paradoxo até o próprio Deus — que
jansenismo, que lhe permitiu exprimir para o homem é certo e incerto, presente
melhor sua sede de ahsoluto e de trans­ e ausente, esperança e risco — que Pas­
cendência. A vocação religiosa de Pascal cal pôde escrever os Pensamentos e abrir
encontra no jansenismo o solo favorável um capítulo novo na história do pensa­
para sua expansão. O “milagre do Santo mento filosófico.”
Espinho” reforçou-lhe a tendência mís­ Pascal morreu a 29 de agosto de
tica e a certeza de que “há alguma coisa 1662, à uma hora da madrugada. Tinha
acima daquilo que chamamos natureza” 39 anos de idade.
— como escreve sua irmã Gilberte. Até o
encontro com o jansenismo havia na vida O século
de Pascal uma contradição entre a pri­ do Grande Racionalismo
mazia atribuída, em princípio, à reli­
gião, e a realidade prática de uma vida O filósofo francês Maurice Merleau-
consagrada ao mundo. Esse encontro Ponty (1908-1961) denomina o século
permite a Pascal estabelecer o acordo XVII de “século do Grande Racionalis­
entre a consciência e a vida, através da mo”, e explica: “Momento privilegiado
militância religiosa que procura o triun­ em que o conhecimento da natureza e da
fo da verdade (ciência) na Igreja e o metafísica acreditaram encontrar um
triunfo da fé (religião) na sociedade fundamento comum”. O Grande Racio­
laica. Esse acordo, porém, não se mante­ nalismo buscou a harmonia do finito
rá. Todavia, será ainda entre os janse- com o infinito: da natureza e de Deus, do
nistas que Pascal chegará à conclusão homem e de Deus; buscou a harmonia do
de que é importante retirar-se definitiva­ exterior e do interior, isto é, da alma e
mente do mundo e até mesmo da mili­ do corpo; buscou os fundamentos de
tância religiosa. Pascal transita, assim, tudo o que existe num plano visível e
entre as duas atitudes que já existiam num plano invisível; acreditou no poder
entre os próprios jansenistas: da mili­ teórico e prático da razão, em sua capa­
tância (Amauld, Nicole) passa ao retiro cidade para produzir o conhecimento
(Barcos, Jacqueline Pascal). À fase verdadeiro das coisas e para dominar
apologética das Provinciais segue-se tecnicamente a natureza. A possibili­
então a fase dos Pensamentos. dade dessas harmonias, dessas investi­
Essa mudança é determinada pela gações e desse domínio fundam-se na­
condenação do jansenismo pelo papa quilo que é o “segredo do Grande
Alexandre VI. Pascal acaba submeten­ Racionalismo”: a admissão do infinito
do-se ao poder papal — e isso significa atual, isto é, de um ser atualmente infi­
que a militância religiosa não mais pode nito, ou infinitamente infinito, produtor
ser efetuada. Nessa terceira fase de sua de si mesmo, das coisas e das verdades,
vida, Pascal volta a dedicar-se à ciência e que é denominado Deus.
(estudos sobre a ciclóide e sobre a role­ O século XVII representa a vitória do
ta, seguidos de discussões com vários racionalismo filosófico e. de seu corolá­
sábios da época), mas seus escritos reli­ rio, o mecanicismo científico, contra a
giosos perdem o tom apologético para se filosofia e a física aristotélico-tomista
tornarem trágicos. Os Pensamentos re­ que preponderaram na Idade Média, e
velam ser os escritos de um homem a contra a filosofia animista que reinara
quem “o silêncio eterno dos espaços infi­ durante o Renascimento. No período ini­
nitos apavora”. ciado no século XVI, que se prolonga
Na fase final de sua vida e de sua através do XVII, ocorre uma verdadeira
obra, Pascal exprime uma única certe­ revolução espiritual, que já foi chamada
za: a de que a única verdadeira gran­ de “crise da consciência européia”. O
deza do homem reside na consciência de desenvolvimento de uma nova cosmolo-
seus limites e de suas fraquezas. “Pascal gia substituiu o mundo geocêntrico dos
descobre a tragédia”, escreve Lucien gregos e o mundo antropomórfico da
Goldmann, “a incerteza radical e certa, Idade Média pelo universo descentrado
o paradoxo, a recusa intramundana do da astronomia moderna. Ao mesmo

312
PASCAL

No período 1652/54, Pascal freqüentou salões da sociedade parisiense, na


companhia de amigos de espírito livre e emancipado. Essa experiência talvez
explique por que tenha afirmado mais tarde: "O sentimento da falsidade dos
prazeres presentes e a ignorância dos prazeres ausentes causam a inconstância".
(Bosse Àbraham: "Reunião de Senhoras", Museu de Artes Decorativas, Paris.)
tempo, como assinalam alguns historia­ prias estruturas de seu pensamento.
dores, a ■'‘ciência contemplativa” foi ( . . .) As mudanças produzidas no século
substituída pela “ciência ativa” — o que XVII podem ser reduzidas a dois ele­
fez com que o homem se transformasse mentos principais, estreitamente ligados
de espectador em possuidor e senhor da entre si: a destruição do cosmo e a
natureza. No lugar da preocupação com geometrização do espaço”.
o “outro mundo” (típica da mentalidade A destruição do cosmo significa a
religiosa que predominou na Idade destruição do mundo enquanto conce­
Média) colocou-se o interesse por este bido como um todo finito e bem ordena­
mundo, enquanto a imagem do universo do, no qual a estrutura espacial encar­
como um organismo regido por uma nava uma hierarquia de graus de valor e
finalidade foi substituída pela explica­ de perfeição, indo da matéria corruptível
ção causai e mecanicista. ao espírito eterno e puro. Nessa hierar­
Todos esses aspectos seriam, porém, quia, a Terra, pesada e opaca, ocupa o
segundo A. Koyré, “expressões concomi­ centro da região sublimar, mutável,
tantes de um processo mais profundo e corruptível e situada abaixo das “esfe­
mais grave, em vista do qual o homem ras celestes”, dos astros imponderáveis,
perdeu seu lugar no mundo, ou, mais incorruptíveis e luminosos. O cosmo —
exatamente, perdeu o próprio mundo mundo ordenado e fechado, provido de
que formava o quadro de sua existência limites definidos — é então substituído
e o objeto de seu saber, e precisou trans­ por um universo infinito, que não mais
formar e substituir não somente suas comporta hierarquia natural e que se
concepções fundamentais, mas as pró­ apresenta unido apenas pela identidade

313
OS PENSADORES

das leis que o regem em todas as suas independentemente da tradição e das


partes componentes. opiniões correntes. O método surge,
Dessa nova visão do universo decorre, assim, como garantia para um pensa­
como corolário, a geometrização do mento verdadeiro; por isso, sua procura
espaço. A concepção aristotélica do es­ torna-se urgente e imprescindível. A
paço era qualitativa e diferenciava os novidade trazida pelo século XVII não
“lugares naturais” (o centro da Terra pretende valer apenas porque é novida­
era o lugar natural dos corpos pesados, de, mas porque é verdadeira. E só será
que por isso cairiam; o ar era o lugar verdadeira se for encontrada graças a
natural dos corpos leves, que por isso um método que conduza eficaz e firme­
subiriam, etc.). Essa concepção é substi­ mente a razão.
tuída pela do espaço homogêneo da geo­ Para o racionalismo do século XVII, o
metria euclidiana, onde todos os lugares método é fundamentalmente sinônimo de
são equivalentes. A geometrização do regra e de ordem: o método deve forne­
espaço, decorrência das leis físicas da cer o conjunto de regras que permitam
queda livre e da gravitaçâo, expulsou do ao pensamento ordenar numa “cadeia de
pensamento científico as noções de razões” todas as idéias. O modelo do
valor, de perfeição, de hierarquia, de método é o procedimento dedutivo da
finalismo, estabelecendo o divórcio entrè geometria: lugar privilegiado da aplica­
o mundo neutro dos fatos governados ção do método, a matemática passa
pelas relações de causa e efeito e o então a servir de modelo para os outros
mundo dos valores. ramos do saber. Não que se aplicasse a
A infínitização do espaço será vista matemática à filosofia ou à teologia: o
por Pascal de maneira muito peculiar. que se aplica é o procedimento dedutivo,
Por um lado, elaborará a famosa alter­ pois o encadeamento ordenado da geo­
nativa dos dois infinitos — em grandeza metria é que serve de padrão básico para
e em pequenez —, e, de outro lado, outras áreas do conhecimento.
sentir-se-á apavorado perante o silêncio O método é então entendido como um
glacial dos espaços infinitos. Pascal ex­ instrumento da razão e esta é a “luz
trai as conseqíiências humanas da revo­ natural” que pode conhecer tudo o que
lução científica de sua época. Sua preo­ estiver a seu alcance, diferindo da “luz
cupação será a de saber onde colocar o sobrenatural”, isto é, da fé. Mas os pen­
homem finito no universo infinito. Trá­ sadores da época estabelecem diferente­
gica será sua resposta. mente as fronteiras entre essas duas
“luzes”: para Descartes (1596-1650), a
A ordem e a medida razão humana pode conhecer a verdade,
mas encontra certos limites intranspo­
Característica marcante do século níveis; no interior de seus limites a
XVII é a busca do método que permita a razão encontra certeza completa; para
constituição de legítimo e seguro conhe­ além desses limites o conhecimento seria
cimento. Várias propostas são feitas por revelado por Deus e objeto da fé; razão e
diversos pensadores: Francis Bacon es­ fé teriam cada qual uma certeza que lhe
creve o Novum Organum; Descartes, o é própria. Em Spinoza (1632-1677), a fé
Discurso do Método e as Regras para a é totalmente eliminada, sendo colocada
Direção do Espírito; Spinoza, o Tratado junto às formas imperfeitas de conheci­
da Reforma da Inteligência; Malebran- mento; a razão humana, embora limita­
che, a Procura da Verdade; os janse­ da, pode conhecer mesmo aquilo que
nistas de Port-Royal, a Arte de Pensar; e antes se atribuía à fé; o que não pode ser
Leibniz dedica ao assunto vários e conhecido pela razão é obscuro, absur­
importantes opúsculos. do, contraditório ou falso. Já para Pas­
Essa generalizada preocupação com o cal a razão só conhece se for iluminada
método é explicada pela ruptura dos pela fé: a “luz natural é impotente
pensadores com toda autoridade prees- mesmo para conhecer as verdades natu­
tabelecida em matéria de conhecimento. rais se não for sustentada pela fé”. Pas­
Tal ruptura exigiu que os pensadores cal permanece, portanto, desconfiado
encontrassem apoio para suas idéias, quanto aos poderes da razão.

314
PASCAL

Sob a inspiração da matemática, o


racionalismo do século XVII projeta
construir uma ciência universal da
ordem e da medida, uma mathesis
universalis que transforma a análise
num método de aplicação universal.
Desde Descartes, a análise aparece
como procedimento capaz de produzir
um conhecimento novo, referindo o
desconhecido que se procura ao já
conhecido. E, nesse sentido, a análise,
que é o método, subordina-se à noção de
ordem. A matemática serve de exemplo:
a progressão aritmética e geométrica
consistem essencialmente numa série de
termos ordenados de tal maneira, que
dessa ordem decorre a determinação do
termo seguinte pelo termo precedente. A
ordem permite não apenas colocar cada
termo em seu lugar, como também e
sobretudo determinar — pelo próprio
lugar que deve ocupar — o valor de outro
termo desconhecido. Assim, a ordem ofe­
rece uma realidade na qual os vínculos
das partes são determinados interna­
mente, de sorte que a ordenação é ine­
rente aos termos ordenados. Por isso
mesmo, a ordem permite a comparação
entre termos conhecidos para determi­
nar um outro desconhecido. E, para o
racionalismo do século XVII, essa
ordem é tanto a ordem da própria reali­
dade quanto a ordem dos conhecimentos
sobre a realidade.
Mas, se conhecer é referir o desconhe­
cido ao já conhecido, é necessário supor
que esses dois termos tenham a mesma
medida, isto é, sejam da mesma nature­
za. A medida é, portanto, o critério da
homogeneidade e da diferença entre os
seres. Assim, a medida do corpo seria a
extensão, enquanto a da alma seria o
pensamento. Esse dualismo, que provém
de Descartes, leva à conclusão de que o
conhecimento do corpo não pode ser
alcançado mediante o conhecimento da
alma, e o da alma não pode ser feito por
meio do conhecimento do corpo. Um
corpo só permitiria conhecer outro
corpo, como o estudo de uma figura
geométrica, e uma idéia pode levar ao
“Deus existe ou não existe? Para que conhecimento de outra idéia. Por outro
lado nos inclinaremos? A razão não o lado, torna-se impossível conhecer uma
pode determinar: há um caos infinito realidade por intermédio de outra que
que nos separa ...” (Estátua de lhe é heterogênea, isto é, que não possui
Pascal, M. Artes e Ofícios, Paris.) a mesma medida.

315
OS PENSADORES

A questão da medida coloca um dos


principais problemas propostos à medi­
tação dos racionalistas do século XVI1:
o das relações entre corpo e alma. Sob a
influência do jansenismo, esse problema
se aguça em Pascal. O sacrifício ascético
do corpo é por ele considerado uma con­
dição para a salvação da alma. Mas
como essa relação é possível se o corpo e
a alma são incomensuráveis?

Racionalismo e
consciência trágica
Cruzam-se em Pascal duas histórias:
a do racionalismo e a do jansenismo, a
ciência e a apologética. No prefácio ao
Tratado do Vácuo, ele define a história
das ciências como progressão e a da teo­
logia como transmissão. Os conheci­

ARBORiO MELLA
mentos que dependem da razão aperfei­
çoam-se com o tempo — e por isso os
modernos conheceríam mais e melhor a
física do que os antigos. As verdades da
fé, ao contrário, seriam fundadas na
autoridade e na memória; assim, numa “Quando se lê depressa demais ou
questão como a da graça, torna-se neces­ demasiado devagar, não se entende
sário averiguar o que pensaram São nada. ” (Pascal em seu atelier,
Paulo ou Santo Agostinho. Essa posição Biblioteca Nacional de Paris.)
conduz Pascal à crítica ao conservado­
rismo de seu século: combate os físicos em si mesmo o seu fundamento. Essas
que apelam para a autoridade dos anti­ duas inovações liberam, no plano social,
gos e os teólogos que pretendem inven­ as idéias de liberdade, de igualdade, de
tar “verdades” novas. A escolástica, de justiça, mas, sobretudo, a de isolamento
um lado, e os jesuítas, de outro, susci­ ou de auto-suficiência individual. Tra­
tam em Pascal — como em todos os gran­ ta-se, na verdade, de uma característica
des pensadores da época — uma atitude do Terceiro Estado — como se designava,
permanentemente polêmica. na época, a parte não privilegiada da
E, no entanto, a visão pascalina é uma nação francesa (as duas ordens privile­
visão trágica, que não se concilia com o giadas da sociedade eram a nobreza e o
racionalismo expansionista típico de seu clero, enquanto essa terceira ordem era
tempo. Cartesiano pelo método, Pascal é constituída por burgueses, artesãos,
um anticartesiano resoluto pelas idéias. operários e camponeses). Explica Lucien
A física, ao destruir o cosmo e geome- Goldmann: “Em vez de uma sociedade
trizar o espaço, construiu a imagem de hierarquizada, na qual cada homem pos­
um universo infinito; a filosofia, por sua suiría seu lugar próprio, diferente de
vez, propôs um método cuja garantia todo outro homem, segundo o ofício ou a
seria a própria correção do ato de pen­ categoria social, e onde cada um julgava
sar. Com isso elas destruíram duas o valor de seu lugar comparando-o com
noções medievais: a de mundo e a de o dos demais, o Terceiro Estado desen­
comunidade. Em seu lugar surgiram a volveu progressivamente indivíduos iso­
de espaço infinito e a de indivíduo racio­ lados, livres e iguais, três condições ine­
nal. O mundo, de um lado*, não apresenta rentes às relações de troca entre
mais hierarquia, enquanto o conheci­ vendedores e compradores”. Nesse isola­
mento, de outro lado, tem de encontrar mento é que Pascal enfrenta os espaços

316
PASCAL

FABBRI
“Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total. . . Sente então seu
nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu
vazio. Incontinentesubirá do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a
tristeza . . . ” (Luís XIII no Teatro, Museu de Artes Decorativas de Paris.)
infinitos, o infinito em grandeza e o infi­ fator importante da vida humana, um
nito em pequenez. fator de que o homem pode se orgulhar;
O mecanicismo e o racionalismo esva­ mas ela não seria todo o homem, nem
ziaram a noção de mundo fisico e de deve e nem pode ser suficiente para a sua
comunidade humana e explicaram a vida, mesmo no plano da investigação
natureza e a sociedade através de leis científica. Por isso Pascal retoma ao que
naturais; com isso, esvaziaram também o racionalismo havia abandonado: à
os problemas do bem e do mal e a neces­ moral e à religião — esta no sentido
sidade de o homem encontrar um apoio amplo de fé num conjunto de valores
exterior a ele. Deus não mais podendo transcendentes ao indivíduo. Mas essa
falar aos homens por intermédio do volta não significa a recriação da noção
mundo, abandonou-o, escondeu-se. O antiga de comunidade: a moral e a fé
“Deus dos filósofos” apresenta-se ape­ pascalinas são a moral e a fé do homem
nas como uma hipótese, um artificio solitário, do homem perdido em busca
para provar, como em Descartes, a exis­ de apoio. O individualismo marca Pas­
tência do mundo: é um puro conceito cal como marcou os outros raciona-
teórico. Opondo-se a essa concepção listas, só que para estes o indivíduo
generalizada em seu século, o jansenista constituía uma fortaleza racional, en­
Pascal desenvolve uma consciência trá­ quanto para Pascal ele seria um abismo
gica: reconhece tudo o que havia de pre­ de miséria e de fraqueza.
cioso e de definitivo no novo conheci­ A consciência trágica faz de Pascal
mento científico e, simultaneamente, um filósofo do paradoxo: afirma que a
recusa-se radicalmente a considerar este verdade é sempre a reunião dos contrá­
mundo como a única perspectiva para o rios e que o homem é um ser paradoxal,
homem. Considera a razão como um ao mesmo tempo grande e pequeno,

317
OS PENSADORES

SNARK INTERNATIONAL
Além de filósofo e pensador religioso, Pascal foi matemático, físico experimental e
cientista prático, tendo inventado a máquina de calcular,
que se vê acima (Museu de Artes e Ofícios, Paris), precursora das atuais.
Na mesma época, outros tiveram a mesma preocupação e construíram as máquinas
vistas em detalhe na página seguinte: em cima, a de Tito Lívio Burattini
(Museu de História da Ciência, Florença) e a de Samuel Morlando, embaixo.

fraco e forte. Grande e forte porque ría um ponto fixo, a partir do qual as
nunca abandona a exigência de uma ver­ coisas passam a existir: Deus. Haveria
dade e de um bem puros, sem mistura também um ponto fixo a partir do qual
com o falso e com o mal. Pequeno e fraco as idéias passam a ter existência: o
porque jamais pode chegar a um conhe­ sujeito racional. Para Pascal, todavia, é
cimento ou produzir uma ação que impossível encontrar o ponto fixo das
alcance plenamente esses valores. O pen­ coisas e das idéias, embora “ardamos de
samento de Pascal é trágico justamente desejo de encontrar uma base constante
porque assume esse “tudo ou nada”, que e um ponto seguro”. Para exprimir sua
proíbe o abandono da busca dos valores visão de um universo e de um homem
e, no entanto, proíbe qualquer ilusão marcados pelo dilaceramento e pelo
quanto aos resultados alcançados pelo paradoxo, Pascal utiliza a imagem dos
esforço humano. dois infinitos e a do círculo cujo centro
Para o racionalismo clássico tudo o está em toda parte, enquanto a circunfe­
que existe e tudo o que o homem conhece rência não está em nenhuma. A essas
têm uma causa ou uma razão que deve imagens acrescenta uma terceira: a da
ser encontrada; a totalidade das coisas e balança cujos braços são infinitos e pen­
a totalidade das idéias teriam, portanto, dem incessantemente para um e para
um fundamento real e indubitáveL Have­ outro lado, sendo impossível fixá-la ou

318
PASCAL

equilibrá-la. E se a ordem consistisse


justamente nesse desequilíbrio perma­
nente da balança? “A oposição faz apa­
recer a ordem e a ordem faz aparecer a
oposição”, afirma Pascal. A ordem
seria, assim, circular e os braços da
balança só se encontrariam no infinito.
O ponto de encontro dos braços da
balança e o centro do círculo infinito não
estariam situados nem na natureza (físi­
ca), nem na natureza humana (razão),
mas em Jesus Cristo. Para Pascal, a físi­

PHOTO RESEARCHES, INC.


ca e a filosofia deveriam desembocar na
fé, pois o ponto fixo não seria nem físico
nem metafísico, mas religioso.

As razões do coração
Ao contrário de Descartes, que busca
um método universal. Pascal fala em
métodos: para cada problema preciso
deve-se elaborar o método preciso para
resolvê-lo. Haveria, assim, tantos méto­
dos quantos os problemas a resolver. A
particularidade da questão exige a
particularidade do instrumento capaz de
resolvê-la, e esse renovado esforço de
invenção é que caracterizaria o matemá­
tico, cujo talento residiria justamente
em descobrir as noções e os princípios
úteis à resolução dos diferentes proble­
mas. () descobrimento das relações entre
as figuras não dependería, portanto, de
um método '■‘■democraticamente” comu­
nicável a todos (como em Descartes),
mas de certo talento, de certo espírito
que muito poucos possuem: o espírito
geométrico.
Mas o espírito de geometria não cons­
titui, para Pascal, a totalidade do espí­
rito científico. Quando se faz expe­
riência em física, verifica-se que na
determinação de cada fenômeno entra
grande número de princípios. Na física
deve imperar, portanto, outro tipo de
espírito: o espírito de justeza. Todavia,
há casos em que o cientista não traba­
lha, nem pode trabalhar, com princípios.
Então — como no caso do estudo do
PHOTO RESEARCHERS. INC

vácuo —, nem o espírito de geometria,


nem o de justeza são úteis: é imprescin­
dível adotar o método experimental.
Cada um dos métodos revela, segundo
Pascal, uma direção e um dom do espíri­
to. Pascal não os descreve, não especula
sobre eles e nem lhes dá regras: pratica-

3I9
OS PENSADORES

“Não sei quem me pôs no mundo; nem o que é o mundo, nem o que sou eu mesmo;
vivo numa terrível ignorância acerca de todas as coisas; não sei o que é o
meu corpo, o que são meus sentidos, a minha alma e essa parte mesma de mim
que pensa o que digo, que medita sobre tudo e sobre ela própria, e não se
conhece mais do que o resto.” (Pascal, Biblioteca Nacional de Paris.)

320
PASCAL

os. porém, com entusiasmo. Sua idéia a humanidade: Jesus Cristo. Embora
fundamental é a do ajustamento do espí­ venha de fora do humano e seja ininteli­
rito ao domínio dos objetos de que se gível para os critérios humanos, só a
ocupa. Assim, um espírito que é '■‘■corre­ religião seria capaz de esclarecer o mis­
to” num domínio poderá tomar-se “falso tério do homem.
e insuportável” noutro. Pascal tem horror aos princípios
O tipo peculiar de espírito do homem considerados válidos para tudo e para
comum é um talento que nada tem a ver todos. Detesta tanto a casuística dos
com os raciocínios e as observações dos jesuítas quanto a filosofia de um dos
cientistas. () homem comum sente mais seus discípulos, Descartes, as quais
do que raciocina. Ele pensa, mas pensa através de princípios universais afinal
espontaneamente, naturalmente, tacita- não explicam nada. Os princípios pode­
mente. Está dotado de um espírito muito ríam ser universais se e somente se o
diferente do geométrico: o espírito de homem pudesse alcançar os primeiros
finura, que consiste principalmente em princípios de tudo o que existe — mas a
.“ver a coisa de uma só vez e não por pro­ natureza humana não tem essa força.
gresso do raciocínio”. Trata-se do espí­ Nos Pensamentos Pascal escreve: “O
rito intuitivo, que apreende num só homem é, na natureza, nada com relação
lance. ao infinito, tudo com respeito ao nada:
Pascal separa aquilo que Descartes um meio entre o nada e o tudo”. Eis por­
unira: a unidade do método. Entretanto, que o homem pode conhecer alguma
de outro ponto de vista, compara e apro­ coisa de si e dos outros seres, mas não
xima, pois considerando, embora, que o deve esperar conhecer o princípio e o fim
valor de um “espírito” consiste em sua deles e de si próprio.
aptidão para resolver os problemas de Como usar, então, certos conheci­
seu próprio domínio, pondera que esti- mentos como princípios para outros?
má-lo apenas por esse valor é julgar Qual a faculdade que permite ao homem
somente como especialista. Além disso, fazer isso? Pascal diz que é o “coração”.
acha Pascal, é necessário também julgar Mas não se trata dos sentimentos, pois,
o que aquele “espírito” vale para o ao contrário, as paixões impedem o
homem como homem. E novamente aqui homem de se conhecer e de se salvar;
Descartes e Pascal se separam: para o trata-se de um tipo peculiar de inteli­
primeiro todas as ciências servem para gência, que Pascal opõe à razão dos
fortificar o juízo porque seriam uma racionalistas. A razão é o conhecimento
inteligência única a utilizar um único discursivo, demonstrativo, que funciona
método; para Pascal a especialidade extraindo conclusões de certas premis­
prevalece e para que um espírito seja sas dadas. O coração, essa forma singu­
fecundo é preciso que seja exclusivo em lar de inteligência, seria, ao contrário, o
seu domínio. Afirma: “E raro que os geô- conhecimento imediato e intuitivo dos
metras tenham finura e é raro que os princípios. Assim, seria o coração que
dotados de finura sejam geômetras”. alcança os axiomas da geometria, ou
Desse modo, segundo Pascal, somente que Jesus Cristo é o mediador entre o fi-
a religião Lería resposta no que tange à . nito e o infinito: o coração é a intuição
vida humana. Aqui o espírito de geome­ dos princípios indemonstráveis. Ao dizer
tria nada pode fazer. Mas, assim como que “o coração tem razões que a razão
em geometria e em fisica cada problema desconhece”, Pascal não está afirmando
exige que se encontre uma solução que que os sentimentos e a inteligência se
lhe é peculiar, recorrendo não aos pró­ opõem. Está mostrando que há no
prios dados dos problemas, mas a certas homem duas maneiras de conhecer: o
relações exteriores a eles e, todavia, conhecimento intuitivo e imediato de
capazes de resolver a questão, também uma verdade (p. ex„ que o espaço tem
no problema do homem a solução deve três dimensões) e o conhecimento discur­
ser particular e não é fornecida pelos sivo ou mediato de uma realidade (p.
próprios dados da existência humana, e ex., que a quarta proporcional é encon­
sim por algo exterior a ela e que, no trada pela operação com os outros três
entanto, seria o único capaz de justificar elementos dados). A fé seria um con/iecí-

321
OS PENSADORES

mento do coração — e por isso Pascal nem que Deus não existe, já que não se
critica os filósofos que pretendem de­ pode provar que haverá ou não salvação
monstrar ou desacreditar as verdades da eterna — só se pode apostar. Mas ao
fé por meio da razão, que nada tem a ver apostar, deve-se levar em conta as per­
com ela, do mesmo modo que o espírito das e os ganhos; assim, se se aposta que
de geometria nada tem a ver com o de Deus não existe, e se ele existir, está-se
finura. O Deus dos filósofos não é o Deus perdido; se se aposta que Deus existe, e
da fé: não é Deus. ele não existir, nada acontece. Deve-se
então apostar na existência de Deus,
O Deus escondido pois a condição humana é risco, perigo
de fracasso e esperança de vitória: o
As Provinciais foram escritas por Pas­ homem sente que Deus existe quando
cal na fase em que, militante, defende a experimenta cruelmente sua ausência.
concepção jansenista da graça, do mila­ O Pascal apologeta não lê as Escritu­
gre, da razão e da fé. Já no período final ras para demonstrá-las, mas para mos­
de sua vida, a partir de março de 1657, é trar que somente nelas existe aquela
marcado pela submissão exterior aos religião que corresponde completamente
poderes políticos e eclesiásticos, embora às necessidades do homem. A única
interiormente os recuse através do recur­ prova das verdades religiosas é, para
so ao paradoxo, à tragédia e a Deus. ele, a revelação, e Deus — fonte dessa
Nessa fase — que é a dos Pensamentos —, revelação — é a única autoridade. Por
Pascal aproxima-se da posição dos isso os Pensamentos partem de verdades
jansenistas do retiro completo, da visão reveladas referentes ao destino sobrena­
trágica da vaidade do mundo e dos tural do homem e à mediação de Cristo.
homens. Os jansenistas das duas tendên­ Se as provas aqui fossem como as
cias tinham em comum o postulado do geométricas, a apologética seria inútil,
Deus escondido, isto é, da distância pois as provas religiosas — milagres e
insuperável entre Deus e o homem. Mas profecias — são inúteis para o incrédulo.
os militantes e o Pascal das Provinciais Nelas Deus se revela ocultando-se, e, por
acreditavam que Deus deu ao homem os isso, só a fé as alcança. E a fé depende
meios de conhecer as verdades essen­ da graça, não do raciocínio. Dirigindo-
ciais por meio da luz natural e das se ao incrédulo, é necessário empregar
Escrituras, e se algumas vezes o homem provas, mostrar que a religião cristã é a
as ignora é por uma depravação da von­ única que pode levar o homem a
tade e por viver fora dos quadros da compreender a si mesmo. Mas as provas
Igreja. Já os jansenistas trágicos e o não são provas da verdade religiosa,
Pascal dos Pensamentos acreditam que mas um estímulo para que o incrédulo
a incerteza recobre tudo e que a vida venha a crer.
cristã é um misto de esperança e tremor. Para Pascal, o ponto de partida para
Deus se esconde irremediavelmente e se subir à fé é o autoconhecimento. Os
não há Graça que o torne manifesto ao estóicos e Descartes teriam, portanto,
homem. Deus tendo abandonado o entrevisto uma parte da verdadeira natu­
mundo e a Igreja, o homem só pode ser reza humana. Montaigne (1533-1592)
um miserável pecador. No terceiro pe­ também teria tido razão ao apontar a
ríodo de sua vida, Pascal vive assim o fraqueza e a debilidade do homem, do
paradoxo de ter de se submeter ao poder homem sempre enganado por sua imagi­
monárquico e eclesiástico, e de dedicar- nação, volúvel e escravo da opinião pú­
se aos trabalhos científicos, ao mesmo blica, sujeito às doenças e à morte. Mas
tempo que admite a incerteza radical de isso seria também apenas uma parte da
tudo. Assume então o paradoxo janse­ natureza humana. Esta, para Pascal, é a
nista do “pecador justo”, do homem que unidade paradoxal e trágica daquelas
vive simultaneamente na recusa e na duas verdades contrárias. O homem é
aceitação do mundo. Desse modo é que uma incoerência e essa incoerência é trá­
se deve compreender a famosa “aposta” gica, porque não se oferece ao próprio
que aparece nos Pensamentos: já que homem como um quadro que ele pode
não se pode provar nem que Deus existe, contemplar com indiferença: ao contrá-

322
PASCAL

rio, diz respeito ao que ele tem de mais


íntimo e profundo. A incoerência do
homem retira de sua moral e de sua ciên­
cia todo apoio e toda a segurança, der-
xando-o desesperado e descentrado. O
homem é essa “glória e escória do
universo”, que nâo sabe de onde veio e
nem para onde irá. Em si mesmo o
homem encontra seu próprio eu miserá­
vel e cujo sentido só poderá ser encon­
trado referindo-o ao seu destino sobre­
natural revelado pelo cristianismo: sua
grandeza vem de sua origem divina, sua
esperança de salvação é sustentada pela
redenção de Jesus Cristo, sem a qual o
conhecimento de Deus seria inútil para o
homem.
O Deus das Escrituras, ao contrário
do Deus dos filósofos, nâo é uma idéia
da razão: o homem o perde e o reencon­
tra, pode sentir sua existência ao sentir
sua ausência. Encontrá-lo não significa
sentir uma satisfação intelectual, à
semelhança da que o matemático experi­
menta ao resolver um problema difícil:
encontrá-lo é mudar de vida, é esquecer
tudo, menos o próprio Deus.
A apologética pascalina começa,
portanto, provocando uma tomada de
consciência da contradição irredutível
que definiría uma vida humana. Estabe­
lece, de saída, uma exigência de lucidez:
o homem não pode nem deve fugir de si
mesmo, inventar desculpas para suas
fraquezas e glórias para suas grandezas,
nem inventar razões filosóficas para jus­
tificar o que ele é. Em seguida, a apolo­
gia consiste em decifrar os dois Testa­
mentos e a história da Igreja,
enunciando os motivos para se crer no
drama da queda e da redenção, que
explicaria a antinomia da condição
humana. Nâo se trata de provar a fé, mas
de estimular sua vinda. Mesmo porque
não é possível transformar a natureza
humana: só o mistério da Graça pode
realizar essa transformação e isso de­
pende de Deus. A tarefa do apologeta
não pode, portanto, ser demonstrativa,
mas apenas persuasiva. Eis por que Pas­
“Tudo o que sei é que devo morrer cal não emprega a arte de demonstrar,
logo, e contudo o que mais ignoro é mas a de persuadir, que éa que se ajusta
essa morte que não poderei evitar. à disposição do ouvinte e que “consiste
Assim como não sei de onde venho, não tanto em agradá-lo como em convencê-
sei para onde vou ...” lo, pois os homens se governam mais por
(Máscara mortuária de Pascal.) capricho do que pela razão”.

32 3
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1623 — Nascimento de 1646 — Pascal converte-se nhor de Saci sobre Epicteto


Pascal, em Clermont-Fev- ao jansenismo; repete, em e Montaigne.
rand, a 19 de junho. Ruão, as experiências de 1656 — Condenação do
1631 — O pai de Pascal Torricelii sobre o vácuo. jornalista Arnauld pela Sor-
instala-se em Paris com cs 1647 — Pascal encontra-se bonne; Pascal entra na polê­
filhos. com Descartes; publica as mica e publica a primeira
1635 — Manifestação de Novas Expeiiências sobre o Provincial.
precocidade do gênio cientí­ Vácuo e edige o Prefácio 1657 — As autoridades re­
fico de Pascal, que descobre para um Tratado do Vácuo. ligiosas põem as Provinciais
sozinho as primeiras 32 pro­ 1648 — Pascal escreve, em de Pascal no Index.
posições de Euclides. latim, a Generatio Conisec 1658 ’— Pascal redige a Pri­
1638 — A família Pascal t.cnum;/az experiências so- meira Carta Circular Relati­
retira-se para a pro mzi Ire pressão atmosférica na va à Ciclóide.
Auvergne. tor^e de Saint-Jacques, em 1659/1660 — Pascal escre­
1639 — Pascal inventa a I v is; re lige a Descrição da ve a Oração para o Bom
máquina de calcular. Gr..5 de Experiência do Uso das Doenças e Discur­
1640 — Impressão do En­ r milítrio òos Licores. sos sobre a Condição dos

BRASIL
saio sobre as Cônicas, pri­ itci — Ãsorre o pai de Grandes.
meira obra de Pascal. Pascal a 24 de setembro. 1662 — Pascal obtém pa­
164 5 — Publicação da Car­ 1653 — Pascal redige o tente para exploração de

-SÃO PAULO
ta Dedicatória a Monsenhor Tratado do Equilíbrio dos uma empresa de transportes
Chanceler acerca dj. va Licores e Tratado da Gravi­ coletivos; morre a 19 de
Máquina (Aritmética; )n- dade oa Mass i de Ar. agosto.
ver.iada pelo Sennor Blaise 1655 - Pascal redige o Co- 1670 — Primeira edição
Pascal. lóquio de Pascal com o Se­ dos Pensamentos de Pascal.

-
E INDUSTRIAL
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324
CAPÍTULO 24

ESPINOSA
OS PENSADORES

ela decisão dos anjos e julgamento em português, ou Benedictus em latim).


dos santos, excomungamos, ex- Nasceu marcado pelo conflito de suas
_1_ pulsamos, execramos e maldize­ origens: judeu, porque recebido na co­
mos Baruch de Espinosa . . . Maldito munidade de Abraão e por receber edu­
seja de dia e maldito seja de noite; mal­ cação rabínica; português (e com o cato­
dito seja quando se deita e maldito seja licismo implícito nesse fato), porque
quando se levanta; maldito seja quando seus pais eram emigrantes portugueses,
sai, maldito seja quando regressa. . . o português sua língua materna; holan­
Ordenamos que ninguém mantenha com dês, porque nasceu em Amsterdam, mor­
ele comunicação oral ou escrita, que nin­ reu em Haia e porque participou da vida
guém lhe preste favor algum, que nin­ política e cultural dos Países-Baixos. A
guém permaneça com ele sob o mesmo verdade está provavelmente com o histo­
teto ou a menos de quatro jardas, que riador Carl Gebhardt, quando afirma
ninguém leia algo escrito ou transcrito que Espinosa era marrano e seu destino
por ele.” foi determinado pelo fato de que sua
Essas palavras fazem parte do texto nação, como sua religião, não foi para
de excomunhão de Espinosa, promul­ ele propriamente uma realidade, mas
gada pela comunidade judaica de Ams- sobretudo um problema. Espinosa foi a
terdam a 27 de julho de 1656. Com­ única exceção à regra que liga cada pen­
preender-lhe o significado mais sador moderno a seu povo e à participa­
profundo exige que se saiba o que ele ção deste em sua obra.
pensou e exprimiu, a que situação con­ Pouco se sabe da infância de Espino­
creta esse pensamento respondia e quais sa. Consta que seu pai, homem muito
as suas consequências; como se formou e sensato, foi o primeiro a ensinar-lhe a
como se desenvolveu. não confundir carolice com devoção.
Sabe-se também que na adolescência foi
educado como os demais jovens'marra­
Um cristão-novo? nos de família abastada. Estava desti­
nado à profissão mercantil, mas isso não
A família de Espinosa é originária da excluía o estudo do hebraico, da Bíblia e
cidade castelhana de Espinoza de los da história do povo judeu. Esses estudos
Monteros. Em 1492, seus membros emi­ foram feitos na escola Árvore da Vida.
graram para Portugal; seis anos depois, Frequentou também a Academia da
foram obrigados a converter-se ao cris­ Coroa e da Lei, onde penetrou nos gran­
tianismo. Tornaram-se marranos ou des problemas do judaísmo. Impressio­
cristãos-novos, isto é, judeus converti­ nou-se muito com Abraão Ibn Ezra, o
dos. Embora aceitassem a nova fé, os primeiro a despertar-lhe dúvidas quanto
marranos permaneceram vinculados à à unidade do Pentateuco; essas dúvidas
tradição judaica. aumentaram quando leu Gersonides, que
O pai de Espinosa, Miguel, nasceu nas assinala discrepâncias cronológicas nos
cercanias de Beja. Daí, emigrou com a Livros Sagrados. Na Academia da Coroa
família para a cidade francesa de Nantes e da Lei, Espinosa conheceu a obra de
e depois para Amsterdam, numa das inú­ Maimônides, escolástico de tendência
meras levas de marranos que procura­ aristotélica; leu o judeu-espanhol Chas-
ram a Holanda por causa do declínio da dai Cresçam e o renascentista Leon
Espanha. O império espanhol enfraque­ Hebreu. Este último tentou conciliar o
cia-se porque sua economia, baseada no judaísmo e a cultura do Renascimento,
privilégio e no monopólio, não era capaz especialmente o platonismo renovado, e
de competir com o livre comércio, do propôs uma concepção do mundo basea­
qual a Holanda era pioneira. da no amor como força cósmica. A teoria
No dia 24 de novembro de 1632, em espinosana do amor intelectual de Deus
Amsterdam, nasceu Baruch (ou Bento mostra clara influência de Leon Hebreu.
Na mesma época, Espinosa estudou com
Na página anterior: retrato de Morteira, o maior talmudista da comu­
Espinosa, por van Hoogsraten; Herzog nidade de Amsterdam e conheceu a Ca­
August Bibliothek, Wolfenbüttel. bala que, posteriormente, trataria com o

326
ESPINOSA

Espinosa foi marcado, desde suas origens remotas, por uma formação étnica e
culturalfeita de elementos contraditórios. Suafamília era judia efoi
obrigada a converter-se ao cristianismo em Portugal. Depois, emigrou para
os Países-Baixos, e ofilósofo integrou-se na cultura holandesa. (Jakob van
Ruysdael (1628-1682): Cemitério Hebraico-Português; Pinacoteca de Dresde.)

maior desprezo, considerando-a como se depois de submetido à flagelação pú­


uma das formas de superstição. blica. Desesperado, suicidou-se em abril
Todos esses elementos de sua forma­ de 1640. Com apenas oito anos de idade,
ção eram, até certo ponto, contraditó­ Espinosa assistiu à flagelação, e o
rios, como era contraditório e problemá­ acontecimento, certamente, causou-lhe a
tico o mundo judaico em que vivia. As mais profunda impressão.
mais variadas tendências se entrecru- Dentro de tal cenário, o jovem Espi­
zavam, obrigando os pensadores a bus­ nosa cada vez mais passou a fazer parte
car soluções próprias. Nem sempre o daqueles que — no dizer de Oróbio de
resultado era aceito pela comunidade, Castro — “ . . . chegam ao judaísmo de­
como aconteceu com Uriel da Costa, que pois de haver estudado durante todo seu
afirmava não existir beatitude eterna, período de idolatria algumas ciências
pois na Bíblia não se fala em imortali­ profanas como a lógica, a metafísica e a
dade da alma, mas em felicidade tempo­ medicina. Ignoram a lei tanto quanto os
ral. Uriel da Costa foi perseguido por princípios, mas cheios de arrogância e
causa dessa idéia e obrigado a retratar- de orgulho estão convencidos de que a

327
OS PENSADORES

Os marranos, cristãos-novos da península Ibérica, emigraram no século XVII


para os Países-Baixospor tres motivos básicos: o medo da Inquisição,o
espírito empresarial e as promessas de liberdade religiosa. Amsterdam era
conhecida como a Nova Jerusalém. (Gravura de fins do século XVIII representa
duas sinagogas de judeus alemães de Amsterdam; coleção particular, Paris.)

conhecem a fundo e, embora desco­ dade judaica julgava ter saído do bom
nheçam o essencial, estão convencidos camirlho, por influência de Juan dei
de que conhecem muito bem todas as Prado.
matérias”. Ainda segundo Oróbio, esses Espinosa tem então 24 anos e é cha­
elementos arrogantes e orgulhosos mado pelo talmudista Morteira, chefe
negam a verdade das Escrituras e do espiritual da comunidade e diretor da
Deus nelas revelado, substituindo-o por Academia da Coroa e da Lei, a fim de
um Deus-Natureza. Negam a fé, só acei­ que se retrate. Espinosa recusa-se e a
tam o poder natural da razão e, portan­ convocação passa a ser feita em nível
to, negam os milagres. Negam que haja superior, pela própria Sinagoga de Ams­
um povo eleito e perguntam por que terdam. As autoridades o submetem a
Deüs não se teria dado a conhecer a intenso e malicioso interrogatório, cuja
todos os homens. Oróbio acusa explici­ finalidade é mostrar seu ateísmo. Antes
tamente o médico Juan dei Prado como que a Sinagoga se visse compelida a
herege, mas a acusação visava sobre­ excomungá-lo, Espinosa toma a inicia­
tudo ao jovem Espinosa, que a comuni­ tiva de afastar-se e redige o opúsculo

328
ESPINOSA

Espinosa foi excomungado da comunidade judaica de Amsterdam guando tinha


apenas 24 anos de idade. Ainda não tinha escrito suas obras, mas já formulava
uma das idéias essenciais que caracterizaria toda sua filosofia: a crítica da
religião judaico-cristã, fundada na onipotência cega de Deus e na crença em
profecias e milagres. (Rembrandt, “O Rabino”; Museu Real de Amsterdam.)

Apologia para Justificar uma Ruptura aprendeu a polir lentes para lunetas.
com a Sinagoga, atualmente perdido. Saiu-se tão bem no oficio que a clientela
aumentou rapidamente, fornecendo-lhe o
O partido da liberdade suficiente para viver.
A mais importante das consequências,
A exclusão da comunidade judaica foi contudo, foi sua integração na vida cul­
seguida por outras transformações na tural holandesa, no momento em que os
vida de Espinosa. Como por essa época Países-Baixos viviam seu século de
as finanças da família não iam hem, os ouro. O novo Estado holandês fundava-
irmãos e cunhados viram na excomu­ se na liberdade burguesa, entendida
nhão um bom motivo para deserdá-lo e como liberdade de empresa e liberdade
afastá-lo dos negócios familiares. Espi­ de consciência. Valorizava-se a ativi­
nosa não se abalou e procurou uma ocu­ dade econômica e promovia-se a tole­
pação que resolvesse o problema da rância religiosa, pois as barreiras con­
subsistência. Pondo em prática uma fessionais apresentavam-se como
regra de vida dos antigos sábios judeus, empecilho para o intercâmbio comer­

329
OS PENSADORES

ciai. A Igreja Romana, com seus tribu­ integração na cultura holandesa se fez,
nais, sua fiscalização, sua intolerância, assim, no momento de maior intensidade
aparecia aos burgueses da Holanda dos conflitos sócio-econômicos, caracte­
como manifestação de sua dependência rísticos dos Países-Baixos, e na fase de
em relação a um poder estrangeiro e maior esplendor da vida intelectual e
contrário a seus interesses vitais. A alta artística da nação.
burguesia adotou então o calvinismo em
sua forma liberal, também chamado Um homem do mundo
evangélico ou libertino e que se opunha
ao calvinismo ortodoxo. Os libertinos Dentro desse panorama, após a exco­
defendiam a tolerância em matéria de munhão em 1656, Espinosa abandonou
religião, afirmavam a supremacia do os estudos judaicos e penetrou no huma­
poder civil sobre a autoridade religiosa nismo clássico. Aprendeu latim e um
e declaravam que esta não tinha direito pouco de grego com Franz Van den
de legislar em assuntos de fé e de moral. Enden, ex-jesuíta, médico, filólogo e
Opunham-se, assim, aos ortodoxos, par­ livreiro, que em 1648 tentou a paz entre
tidários da dominação do Estado pela os Países-Baixos e a Espanha, em 1650
Igreja e que condenavam o desenvolvi­ ofereceu-se a Johannes de Witt para
mento econômico como contrário à Bí­ lutar contra a Inglaterra e, em 1654, foi
blia. O calvinismo ortodoxo foi, em enforcado pelos franceses depois de par­
geral, adotado por todas as classes e ticipar de um complô de alta traição.
camadas sociais prejudicadas com o Com esse mestre, Espinosa leu obras de
desenvolvimento da economia mercante Terêncio, Tácito, Tito Lívio, Petrônio,
e com a nascente indústria. Ortodoxos Virgílio, Sêneca, César, Salústio, Mar­
eram, assim, os camponeses pobres, cial, Plínio, Ovídio, Cúrcio, Plauto e Cí­
artesãos, marinheiros, operários portuá­ cero. Dos gregos, leu Diofanto, Aristóte­
rios e a nobreza, constituindo todos a les, Hipócrates, Epiteto, Luciano,
clientela da Casa de Orange. Homero e Euclides.
O conflito entre as duas tendências Na mesma época, Espinosa estuda a
opostas explodiu abertamente após o filosofia de Descartes, sobre o qual
tratado de vestfália (1648). As Provín­ escreverá, em 1663, os Princípios da
cias Vnidas haviam participado da Filosofia Cartesiana. O peso do cartesia-
Guerra dos Trinta Anos, ao lado da nismo sobre Espinosa é, na verdade, o
França contra a Espanha, e assinaram peso do novo racionalismo do século
um tratado de paz em separado, o que XVII; é a confiança no poder da razão
abria as portas das colônias espanholas tanto nos domínios da teoria, quanto na
para o comércio holandês, satisfazendo ação prática e que começou pela necessi­
portanto aos interesses da burguesia. A dade de elaborar as noções de método,
Casa de Orange, ao contrário, desejava a de verdade e, a partir delas, as noções de
continuação da guerra, sem a qual sua ser e de ação.
existência não tinha sentido. Firmada a Os. calvinistas libertinos eram favorá­
Eaz, o poder passou a ser ocupado pela veis ao cartesianismo. Entre eles, for-
urguesia e pela ala calvinista libertina. mou-se o grupo dos colegiantes (inte­
Seu maior representante era Johannes de grantes do Coílegi Prophetica), entre os
Witt, eleito Grande Pensionário em quais se encontrava a maior parte dos
1653, permanecendo até 1672, quando amigos de Espinosa. Os colegiantes
foi assassinado e a Casa de Orange reto­ dedicavam-se especialmente ao estudo
mou o poder. da Bíblia e da nova filosofia; foram eles
Espinosa, amigo de Witt, viveu inten­ os primeiros a ler o manuscrito da Ética,
samente todo o conflito. Partidário de redigida por Espinosa a partir de 1661.
sua política e horrorizado com o crime, Além dos amigos colegiantes, Espi­
quis pregar nas paredes de Amsterdam nosa relacionava-se com muito mais
um cartaz que dizia “Últimos dos Bár­ gente dos círculos culturais holandeses.
baros”, mas foi impedido por um amigo. Não é verdadeira, portanto, a imagem
Durante esse período, Espinosa escre­ muito difundida, segundo a qual teria
veu a maior parte de suas obras e sua sido uma espécie de eremita, solitário,

330
ESPINOSA

pobre e asceta. Nada mais distante da


realidade. Entre a burguesia libertina e
progressista, encontram-se amigos ínti­
mos do filósofo. Loedwjk Meijer, Simon
de Vries, Jarig Jelles, Pieter Balling,
.Johannes Rienwertz, Conrad von Beu-
ning, Johannes Hudde mantêm relações
com Espinosa e todos são representantes
expressivos das altas esferas adminis­
trativas e científicas da Holanda. O
Grande Pensionário Johannes de Witt e
seu irmào Cornelius visitam-no em casa,
assim como o filósofo Leibniz. A corres­
pondência de Espinosa revela que discu­
tiu íongamente com o químico inglês Ro-
bert Boyle, a respeito da natureza do
salitre. Outro correspondente foi Olden-
burg, diplomata holandês na Inglaterra.
As cartas revelam também que foi convi­
dado para lecionar na Universidade de
lleidelberg, mas recusou, pois o convite
solicitava-lhe não ensinar teorias com­
prometedoras para a religião. Prova
também de seu intenso relacionamento
encontra-se na viagem a Utrecht. reali­
zada em 1673, como embaixador.
Que não era um asceta e solitário,
preocupado exclusivamente com a sal­
vação de sua alma e desinteressado do
mundo, prova-o melhor ainda o Tratado
Teológico-Político, onde defende a sepa­
ração entre Estado e Igreja, política e
religião, filosofia e revelação. O Tratado
preocupa-se com a violência política e
nele aparece a meditação teórica articu­
lada com as exigências objetivas, pró­
prias da sociedade em que viveu e dos
interesses da classe com a qual era
solidário.
O Tratado Teológico-Político foi es­
crito em 1665 e, por precaução, publi­
cado sem o nome do autor. Além dessa
obra e dos Princípios da Filosofia Carte-
siana (única obra publicada com seu
nome), escreveu, em 1660, o Breve Tra­
tado, forma juvenil e preparatória da
Ética, o Tratado da Correção do Intelec­
to, em 1661, e a Ética, sua maior obra,
iniciada nesse mesmo ano e terminada
em 167 5. A Ética não pôde ser publica­
da, logo após a efervescência causada
Guilherme de Orange (em baixo) dirigiu pelo Tratado Teológico-Político, por
a sublevação das Províncias Unidas e causa das acusações que pesavam sobre
o duque de Alba organizou a repressão o autor; os teólogos o consideravam
religiosa contra os holandeses em “ateu, blasfemador e elemento nocivo
nome de Filipe, soberano da Espanha. para a república’1. Em 1677, após sua

331
OS PENSADORES

imaginação que, impotente para com­


preender as leis necessárias do universo,
oscila entre o medo dos males e a espe­
rança dos bens. Dessa oscilação, a
imaginação forja a idéia de uma Natu­
reza caprichosa, dentro da qual o
homem é um joguete. Em seguida, essa
concepção é projetada num ser supremo
e todo-poderoso, que existiria fora do
mundo e o controlaria segundo seu
capricho: Deus. Nascida do medo e da
esperança, a superstição faz surgir uma
religião onde Deus é um ser colérico ao
qual se deve prestar culto para que seja
sempre benéfico. A superstição cria uma
casta de homens que se dizem intér­
pretes da vontade de Deus, capazes de
oficiar os cultos, profetizar eventos e
invocar milagres. A superstição engen­
dra, portanto, o poder religioso que do­
mina a massa popular ignorante. O
poder religioso, por sua vez, forma um
aparato militar e político para sua
sustentação, de forma tal que a supersti­
ção está na raiz de todo Estado autori­
tário e despótico, onde os chefes se man­
têm fortes alimentando o terror das
massas, com o medo dos castigos e com
suas esperanças de recompensa. Toda
Christiaan Huygens (1629-1695) foi um filosofia que tentar explicar a Natureza
dos maiores representantes do grande apoiada na idéia de um Deus transcen­
desenvolvimento científico holandês, dente, voluntarioso e onipotente, não
na época de Espinosa. (Retrato será filosofia, será apenas uma forma
anônimo, Het Trippenhuis, Amsterdam.) refinada de superstição.
A crítica da superstição leva Espinosa
morte, Meijer e Schuller enviaram a a escrever a Ética, onde demonstra como
Rienwartz os manuscritos e Jelles finan­ Deus é a causa racional produtora e
ciou uma edição, que saiu com o título conservadora de todas as coisas, segun­
de Obras Póstumas, compreendendo a do leis que o homem pode conhecer
Ética, o Tratado da Correção do Intelec­ plenamente; a escrever o Tratado da
to, o Tratado Teológico-Político, uma Correção do Intelecto, onde separa a
Gramática Hebraica e as Cartas. imaginação da razão e mostra o cami­
Espinosa era fisicamente muito fraco nho que esta deve seguir para conhecer a
e sofreu de tuberculose, durante quase realidade; a escrever o Tratado Teológi­
vinte anos. Na manhã de domingo, 21 de co-Político, onde analisa a gênese e os
fevereiro de 1677, o amigo Meijer foi efeitos da superstição e elabora a pri­
visitá-lo porque o filósofo não se sentia meira interpretação histórico-crítica da
muito bem. Almoçaram juntos e logo de­ Bíblia. A crítica da superstição leva
pois Espinosa faleceu. Espinosa a negar a existência de causas
finais na realidade e a redefinir a liber­
Um racionalismo absoluto dade humana, não mais como livre; arbí­
trio, mas como consciência da necessi­
A filosofia de Espinosa é uma crítica dade. A virulência dessas críticas
da superstição em todas as suas formas: acarretou-lhe a acusação de ateu,
religiosa, política e filosófica. A supers­ sendo que, no século XVII (como em
tição é uma paixão negativa nascida da todos os tempos), ateu não é o homem

332
ESPINOSA

FABBRI
Afirmou Espinosa: “O desejo é a própria essência do homem, enquanto concebida
como determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada . . . A
alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior . . . A
tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor. ”
(Amsterdam, por Jakob van Ruysdael; Museu Fitzwilliam, Cambridge.)

que não crê em Deus, mas o “que não crê trágico, como o autor dos Pensamentos.
no nosso Deus”. Ateu é menos uma Para Espinosa, uma consciência dilace­
designação religiosa do que política e rada por paixões contrárias e atônita
refere-se ao homem que concebe Deus diante do infinito jamais alcançará a
contra a concepção tradicional e, por­ verdade nem se sentirá unida a Deus,
tanto, abala o edifício da religião e do isto é, à Natureza. Não é possível sentir
Estado que se sustenta nela. alegria e amor sob as ruínas da razão.
Comparado com os outros filósofos do No autor da Ética não há tragédia,
século XVII, Espinosa distingue-se pelo nem há mistério; ao contrário, confiança
racionalismo absoluto. Descartes e plena na razão, capaz não só de conhe­
Leibniz, por exemplo, a despeito de seu cer, mas de fazer o homem trilhar o
racionalismo, deixam permanecer misté­ caminho das paixões positivas, a alegria
rios subjacentes ao conhecimento racio­ e o amor.
nal, enquanto Espinosa procura desfazer
a própria noção de mistério e não apenas A correção do intelecto
os conteúdos misteriosos. A filosofia,
para Espinosa, é conhecimento racional Os instrumentos de trabalho utiliza­
de Deus, da Natureza e da união do dos por Espinosa no combate ao irracio-
homem com a Natureza, isto é, com nalismo e à superstição foram dois: o
Deus. O Deus espinosano não é o Deus método histórico-crítico e o método
Escondido de Pascal; Espinosa não é um genético. O primeiro serviu-lhe para

333
OS PENSADORES

interpretar a Bíblia e mostrar como nas e do amor humanos; desejando-se ou


Escrituras Sagradas não há verdades, no amando-se coisas perecíveis, a felici­
sentido próprio da expressão, mas tão- dade será, consequentemente, perecível
somente preceitos morais e políticos, ou estará dilacerada. É preciso desejar e
necessários para preservar a comuni­ amar um Bem verdadeiro, capaz de
dade judaica através dos tempos. Me­ comunicar-se a todos. A primeira tarefa
diante o método histórico-crítico, Espi­ a ser cumprida nesse sentido é a elimina­
nosa salienta o papel político dos ção de pseudo-formas de conhecer, o
profetas e dos grandes dirigentes do Es­ conhecimento “por-ouvir-dizer” e o co­
tado hebraico, mas ressalta também o nhecimento “por-experiência-vaga”; em
fato de terem sido homens de forte suma, é necessário controlar os desati­
imaginação, não preocupados em conhe­ nos da imaginação. Conhecer, para Espi­
cer Deus, mas em dirigir um povo. Dessa nosa, é conhecer pela causa. Neste caso,
maneira, quando os teólogos pretendem também é preciso eliminar um tipo de
usar a Bíblia como se fosse ciência ou conhecimento tido por racional: o conhe­
filosofia, cometem um grave engano. cimento a partir dos efeitos. Conhecer
Espinosa vai mais longe ainda ao salien­ pela causa significa descobrir o modo
tar que se os teólogos e os soberanos pelo qual algo é produzido; trata-se,
fazem esse uso fraudulento da Bíblia é portanto, de um processo genético.
porque têm interesse nisso: pretendem Dizer-se, por exemplo, que o círculo é
manter a superstição. uma figura na qual todos os pontos eqüi-
Através do mesmo método de análise distam do centro, é descrever o círculo,
histórico-crítica, o autor do Tratado em vez de defini-lo. Um círculo é defi­
Teológico-Político marca a dupla dife­ nido quando se diz que ele é produto da
rença entre Cristo e Moisés. A primeira rotação de um segmento em torno de um
diferença reside no tipo de lei que pro­ eixo ou de um ponto extremo central.
põem. A lei mosaica é a “pena de Fazer isso é conhecer o círculo genetica­
talião”, olho por olho, dente por dente. A mente, isto é, através da causa que o
lei cristã é a da resignação, “dá a outra produz.
face”. A lei mosaica é a expressão polí­
tica de um Estado sadio e poderoso, a lei Uma ética geométrica
cristã é lei para um Estado oprimido. A
segunda diferença está no modo de O Tratado da Correção do Intelecto
relacionamento com Deus: Moisés teve formula, assim, uma nova concepção de
contato exterior (Deus lhe falava pela verdade. Nos escolásticos e nos filósofos
boca), Cristo relacionava-se interior­ modernos anteriores a Espinosa, a ver­
mente (espírito com espírito). A verdade dade sempre fora concebida como ade­
do cristianismo, para Espinosa, está no quação do intelecto com a coisa dada ao
Evagelho de São João quando afirma conhecimento. A adequação implica que
que estamos e somos em Deus; a Encar­ haja uma exterioridade entre a idéia e
nação não significa que Deus veio viver aquilo de que ela é idéia, sendo neces­
entre os homens, mas que ele vive nos sária uma garantia para a verdade. Em
homens. Espinosa ataca impiedosamente Descartes, a garantia é o Deus Veraz,
a teologia e a política “cristãs” por nos filósofos empiristas é a experiência.
terem destruído essa verdade do cristia­ Tanto num caso quanto noutro, a garan­
nismo, guardando apenas a imagem da tia é extrínseca à verdade. Espinosa
cruz, isto é, da dor e do castigo. A Igreja demonstra, revolucionariamente, que a
e a Política cristãs parecem conhecer verdade é imanente ao próprio conheci­
apenas a sexta-feira da paixão e ignorar mento, não necessitando de qualquer
o sábado de aleluia. garantia externa: conhecer adequada­
O segundo método espinosano de com­ mente uma coisa é conhecer seu modo de
bate ao irracionalismo, o método genéti­ produção. A verdade é índice de si
co, encontra-se formulado pela primeira mesma e do falso, não reside na adequa­
vez no Tratado da Correção do Intelecto. ção da idéia à coisa. Pelo contrário, é
O autor começa afirmando que a felici­ porque a idéia revela a produção da
dade está vinculada ao objeto do desejo coisa que ela mesma dá a garantia à

334
ESPINOSA

E errônea a imagem que sefaz de Espinosa como uma espécie de eremita,


solitário, pobre e asceta. Depois da excomunhão pela sinagoga de Amsterdam,
o filósofo manteve permanente contato com os holandeses influentes social e
culturalmente e manteve atividades políticas como qualquer cidadão.
(Rembrandt van Rijn: “A Ronda Noturna’ , Museu Real de Amsterdam, Holanda.)

335
OS PENSADORES

A população dos Países-Baixos foi a primeira da Europa a realizar com sucesso


a revolução contra o mundo feudal, iniciando a ordem capitalista na forma
mercantil. Essa libertação ocorreu com a libertação da tutela do império
espanhol e a luta assumiu as formas de guerra religiosa. (O povo holandês,
Paisagem de Inverno de H. Avercamp (1585-1634); Museu Real de Amsterdam.)

adequação. Com Espinosa o raciona­ o seu próprio fim, ou seja, entre o ato de
lismo ocidental descobriu a imanência produção e o produto não há distância a
da verdade ao objeto, graças à demons­ separá-los, são uma só e mesma coisa.
tração da gênese do objeto. Não são Separar o produtor do produto é aceitar
necessários critérios para a verdade; é a incompreensibilidade divina, o misté­
ela que julga o falso, e não o contrário. rio da criação e o mistério da natureza.
A Ética de Espinosa constitui a mais É ser vítima da superstição. É ter uma
completa aplicação dessa nova teoria da compreensão alienada da produção, pois
verdade. O autor procura mostrar de que ao separar o produtor do produto, este
modo Deus se produz a si mesmo, às coi­ não permite mais identificar seu produ­
sas e ao homem, demonstrando que esse tor e o homem passa a imaginar o produ­
modo de autoproduçào é o próprio modo tor possível, acabando por chegar ao
de produção do real. Com isso, Espinosa Deus voluntarioso, que tudo governa
elimina a principal idéia sustentáculo da para e segundo seus caprichos.
teologia e da filosofia cristãs: a idéia de A Ética é uma ontologia universal,
criação, isto é, de um Deus preexistente uma lógica e uma antropologia, lima
que tira o mundo do nada. A expressão ontologia universal, porque é a teoria do
Deus ou Natureza, encontrada a todo Ser; uma lógica, porque a teoria do Ser é
passo da Ética tem vários significados: a explicitação da inteligibilidade deste
1) o ato pelo qual Deus se produz é o ato Ser; uma antropologia, porque define o
pelo qual produz as coisas; 2) Deus é a ser. humano. Se conhecer é conhecer pela
causa de si mesmo e das coisas como causa, o homem só poderá ser conhecido
causa imanente e não transcendente; 3) a se forem explícitas as causas de sua
produção divina não visa a fim algum, é essência, de sua existência e de sua

336
ESPINOSA

Religião para poderem viver juntos e


sobreviver. Fica claro, portanto, que.
para Espinosa, a Ética nada tem a ver
com a moralidade. E é por esta via que
se deve ler a teoria espinosana do desejo,
isto é, sua antropologia.
Deus ou Natureza
Espinosa coloca o erro como uma
abstração. Que significa isso? Em pri­
meiro lugar que o erro não é uma ausên­
cia de conhecimento, mas um conheci­
mento parcial ou mutilado da
totalidade, isto é, abstrato (separado).
Em segundo lugar, que o erro consiste
em anexar conhecimentos parciais para
querer retirar daí um conhecimento
geral, e este será também abstrato na
medida em que resulta de uma simples
Representantes típicos da burguesia justaposição de parcialidades.•() caso tí­
holandesa:da época de Baruch Espinosa pico do conhecimento abstrato é o dos
são estes membros do Conselho da universais. Nossa imaginação entra em
Guilda de São Lucas de Haarlem, contato com os objetos exteriores e.
retratados pelo pintor J. de Bray. sendo incapaz de controlá-los, não tem
outro recurso senão o de associá-los por
ação. A causa de sua existência singular semelhanças ou dissociá-los por diferen­
é a existência de outros homens singula­ ças. A partir daí fornece nomes gerais às
res que o produzem. A causa de sua associações feitas e passa a tomar esses
essência é Deus: o homem é uma modifi­ nomes como se fossem conceitos, isto é,
cação (modus) dos atributos divinos, idéias verdadeiras das coisas particu­
pensamento e extensão. A causa de sua lares percebidas. Associando por seme­
ação é seu desejo. É no exame do pro­ lhanças, dissociando por diferenças, jus­
blema do desejo, das paixões e da liber­ tapondo por contigíiidade espacial e por
dade do homem que o termo Ética se sucessão temporal, a imaginação tece
esclarece. Para o senso comum, Ética e uma teia de nomes vazios e abstratos e
Moral são uma só e mesma coisa: dou­ quer com eles explicar a realidade.
trina dos deveres do homem. A primeira Ora, a realidade é constituída por
coisa que espanta o leitor de Espinosa é essências e existências particulares e,
que este separe Ética e Moral, colocando portanto, o conhecimento verdadeiro
esta última junto à Religião e definindo tem que ser um conhecimento que pre­
ambas, Moral e Religião, como sistemas serve o particular sem destruí-lo numa
que impõem certos deveres ao homem. A nomenclatura abstrata.
Ética nada tem a ver com os deveres: A crítica da abstração como conheci­
aliás, para Espinosa, quem age por mento parcial, como nomenclatura
dever não é autônomo, não é livre, age geral, unida à concepção genética do
por mandamento. A Ética é a definição conhecimento, leva Espinosa a afirmar
(ou apresentação genética) do ser do que o conhecimento verdadeiro é o
homem tal como ele é, e demonstrando conhecimento das leis que produzem as
porque o homem é tal como é. Assim coisas singulares e que determinam a
procedendo, Espinosa recupera o sentido natureza própria e o lugar próprio de
grego de ethos: modo ou maneira de ser. cada uma delas no Todo. O conheci­
No livro IV da Ética o filósofo dirá: mento das leis necessárias do real deve,
aqueles que não conseguirem alcançar a então, partir da idéia que é causa e
verdadeira liberdade devem pelo menos sustentáculo do real, causa das coisas
aceitar as imposições da Moral e da singulares e das relações necessárias

337
OS PENSADORES

que existem entre elas. O conhecimento que Deus é matéria e não um puro espí­
deve, portanto, partir do incondicionado rito como sempre foi afirmado pela teo­
rumo àquilo que é determinado por ele — logia e pela filosofia. Além disso, o dua­
ou seja, deve partir de Deus. lismo cartesiano das substâncias é
O livro I da Ética trata, portanto, da abolido, pois pensamento e extensão não
essência de Deus, demonstrando que são substâncias ao lado da substância
nela há uma identidade absoluta com a infinita, mas atributos de uma única
existência e com a potência. Deus é a substância. Espinosa amplia até o ponto
Substância, ou seja, o Ser que é causa de extremo a idéia de total homogeneidade
si, que existe em si e por si, que é conce­ entre Deus e Natureza e, portanto, das
bido em si e por si e que é constituído leis divinas e naturais. Por outro lado,
por infinitos atributos, infinitos em seu ao afirmar que o pensamento é um atri­
gênero e cada um deles exprimindo uma buto de Deus, afirma a total inteligibi­
das qualidades infinitas da substância. lidade do real, não podendo haver nada
Desses atributos conhecemos dois: o que deixe de ser compreensível. Entre
pensamento e a extensão. Do livro I outras coisas, esta afirmação destrói
devem ser destacadas as principais teses definitivamente a noção de milagre e de
da ontologia espinosana: vontade divina. A vontade de Deus é
1) A substância é causa de si mesma. idêntica à necessidade e inteligibilidade
Tal afirmação não significa, como na das leis com que produz a realidade.
teologia cristã e na filosofia cartesiana,
dizer que Deus é incausado, mas é dizer
que Deus é autoprodutor. Corpo e alma
2) A substância é causa de si do
mesmo modo que é causa das coisas. Nos quatro livros seguintes da Ética,
Isto significa que o ato pelo qual Deus se Espinosa examina a produção e produti­
produz é o ato pelo qual ele produz a vidade da natureza humana não como se
totalidade da natureza. A causa de si é esta fosse uma substância criada pela
causa imanente. Fica abolida a idéia de substância divina, mas como um modo
criação. da substância Única e infinita. O modo é
3) Deus é causa eficiente e não causa a modificação da substância através de
final da realidade. A causa final é uma seus atributos. Assim, o corpo é um
pura projeção antropomórfica na nature­ modo da extensão e a alma é um modo
za. Os homens estão habituados a consi­ do pensamento. A natureza humana re­
derar que fazem as coisas com um deter­ pete de maneira finita a mesma estru­
minado fim e consideram a ação divina tura que possui a substância infinita. A
também submetida à finalidade. Neste alma é idéia do corpo. O corpo é uma
caso, de duas uma: ou Deus age em vista máquina complexa de movimento e de
de um fim diferente dele próprio e há, repouso composto por corpos menores,
portanto, algo mais perfeito ou superior que por sua vez são máquinas de movi­
a Deus a que ele visa atingir quando pro­ mento e de repouso. É pelo corpo quê
duz as coisas — isto é, obviamente, um tomamos contacto com a realidade ex­
absurdo. Ou, então, Deus age tendo tensa exterior, isto é, com os demais cor­
como fim sua própria satisfação, o que pos, com os quais interagimos. A alma,
significa que Deus precisa das coisas idéia do corpo, não é um reflexo do
para tornar-se satisfeito, isto é, com­ corpo, mas a consciência do corpo e de
pleto e perfeito — o que é um absurdo sua inteligibilidade, bem como a de ou­
ainda maior. A causa final, ao antropo- tros corpos. Corpo e alma são totalmente
morfizar Deus, destrói a divindade como individuais — são individuais no plano
ser infinito e, portanto, Absoluto. Faz da existência e no plano da essência. Por
dele um ser carente que procura fora de isso Espinosa repele a tentativa de escla­
si mesmo aquilo que possa completá-lo. recer o que seja a natureza humana pela
A finalidade é um verdadeiro delírio. comparação dos homens entre si. Na
4) O pensamento e a extensão são carta n.° 21, a Blyenbergh, Espinosa
atributos infinitos de Deus. Esta tese é a considera que é um absurdo dizer que
mais chocante: com ela Espinosa afirma um cego é imperfeito ou menos perfeito

338
ESPINOSA

telas de Rembrandt van Rijn, à parte seu valor puramente pictórico,


constituem excelentes documentos psicológicos e sociais para estudo dos
indivíduos e das comunidades holandesas ae sua época. Entre os inúmeros
quadros de Rembrandt que representam profissões e atividades econômicas,
encontra-se “Os Negociantes de Tecidos”. (Acervo do Museu Real de Amsterdam.)

do que um vidente. O cego seria imper­ nem as idéias são causa dos movimentos
feito se a visão fizesse parte de sua do corpo. Alma e corpo exprimem no seu
essência e ele estivesse privado dela. modo próprio o mesmo evento. O indiví­
Ora, a cegueira não é ausência de visão, duo é uma estrutura: isto é, uma organi­
mas uma forma diferente de existir. A zação determinada de partes relacio­
essência é sempre singular e nunca che­ nadas necessariamente entre si e esta
garemos a ela se procedermos por organização e relacionamento são inteli­
comparação. Pela mesma razão, não é gíveis. Desta maneira, Espinosa critica o
comparando por semelhança e diferença mecanicismo cartesiano: o indivíduo é
que saberemos o que um homem é. “Ob­ uma máquina complexa no sentido de
servando a existência de vinte homens, que essa máquina é um organismo ou
não saberei o que é a essência de um uma estrutura e não uma soma ou justa­
homem, pois o número vinte nada tem a posição de partes exteriores umas às
ver com a essência singular de cada outras. Há uma unidade e uma inteligi­
um.'” Espinosa recusa a indução e a bilidade intrínsecas e que constituem a
quantificação como formas para conhe­ essência de um modo singular. Vemos
cer o homem. dessa maneira como a causa divina
A relação entre a alma e o corpo não é enquanto causa imanente vem reapare­
ada ação e da paixão — a alma ativa e o cer integralmente no modo, de sorte que
corpo passivo; nem a obscura relação o mecanicismo fundado numa casuali­
cartesiana de uma ação recíproca do dade externa é substituído por um
corpo sobre a alma e vice-versa. A rela­ “mecanicismo,, fundado numa casuali­
ção espinosana é uma relação de corres­ dade interna. Esta transformação é
pondência ou de expressão. Espinosa fundamental para compreender a teoria
foge de uma explicação de tipo mecani- espinosana das afecções da natureza hu­
cista: o corpo não é causa das idéias, mana — isto é, das ações e paixões da

339
OS PENSADORES

alma e do corpo, de sorte que a alma


será passiva quando o corpo for passivo,
e ativa quando ele também for ativo.
B. d.
As paixões e os desejos
O movimento interno do corpo e o
nexo interno das idéias na alma consti­
tuem a essência do homem — esta essên­
OPERA
cia se denomina conatus, esforço para P O S T H U M A,
perseverar na existência, poder para
vencer os obstáculos exteriores a esta
existência, poder para expandir-se e (A [cries p(ft '1/ r xfiitionem
realizar-se plenamente. Ora, cada cona­ IxLibeíur.
tus está perpetuamente relacionado com
outros e cada um pode realizar uma ver­ .U M' ” '• ls; r

dadeira guerra contra os demais para


poder preservar-se, e o mundo exterior
surge como um conjunto de causas que
podem aumentar ou diminuir o poder do
conatus de cada um. A ação consiste em
apropriar-se de todas as causas exterio­
res que aumentem o poder do conatus. A
paixão, em deixar-se vencer por todas
aquelas que diminuem seu poder. Ora,
isto significa que na ação o conatus
(alma e corpo) incorpora o exterior gra­
ças ao seu próprio poder, enquanto na
paixão ele se torna incapaz disso.
Assim, Espinosa definirá ação e paixão Em 1677, após a morte de Espinosa,
em termos de causa adequada e de causa os amigos reuniram os manuscritos de
inadequada. “Somos ativos quando em suas principais obras e fizeram-nos
nós ou fora de nós ocorre algo de que publicar, sob o título de Obras
somos a causa adequada, isto é, quando Póstumas. (Frontispício da edição.)
em nós ou fora de nós ocorre algo que
depende apenas de nosso poder.” zindo no plano dos modos a atividade di­
“Somos passivos, ao contrário, quando vina como atividade imanente.
em nós ou fora de nós ocorre algo de que A paixão procura bens capazes de
somos causa inadequada, isto é, quando conservar o conatus, tanto quanto a ação
o que ocorre em nós ou fora de nós não o faz, mas é guiada pela imaginação e
depende de nosso próprio poder.” A ação não pelo intelecto. Assim sendo, os bens
é uma potência positiva, a paixão, um que procura para satisfazer seus desejos
declínio da potência. O homem livre não permanecem exteriores ao conatus, e
é aquele que decide o que quer, como mais ainda, a imaginação os apresenta
quer e onde quer. O homem livre é aque­ como bens conflitantes, e.contrários, dei­
le qüe, conhecendo as leis da natureza e xando o homem numa situação desespe-
as de seu corpo, não se deixa vencer pelo radora, incapaz de decidir-se por um óu
exterior, mas sabe dominá-lo. A partir outro objeto desejado. Esta flutuação
daí, Espinosa definirá a essência huma­ interna enfraquece o conatus, que come­
na pelo desejo. O desejo é a tendência ça a deixar-se dominar pelas causas
interna do conatus a fazer algo que con­ exteriores. Este enfraquecimento faz
serve ou aumente sua força. O desejo do com que os objetos da paixão sejam
homem livre é o desejo no qual, entre o negativos: tristeza, ódio, medo, ciúme,
ato de desejar e o objeto desejado, deixa vingança, etc. Mas há pior que isso: o
de haver distância para haver união. O mesmo objeto pode ser simultaneamente
desejo é a causalidade humana reprodu- causa das paixões positivas inversas:

340
ESPINOSA

é, mais real ou menos real. Uma paixão


cujo objeto é imaginado como presente é_
mais forte do que uma paixão cujo obje­
to é imaginado como ausente; uma pai­
xão cujo objeto é imaginado mais pró­
ximo no passado ou no futuro é mais
forte do que aquela cujo objeto é imagi­
nado mais distante no passado ou no
futuro. Sobretudo: uma paixão é mais
forte quando o objeto é imaginado como
necessário do que quando é imaginado
como contingente. Assim, embora seja
impossível que não sejamos passivos, é
possível vencer as paixões negativas
pelas positivas modificando a direção do
desejo rumo a objetos que destruam a
oscilação do conatus e aumentem sua
força. A partir daqui Espinosa começa a
definir a liberdade humana. Como a
escravidão, a liberdade depende da
natureza do objeto desejado, e de causas
muito definidas que excluem totalmente
a idéia de livre-arbítrio.
A primeira tarefa de Espinosa consiste
em destruir os valores correntes: bem,
mal, belo, feio, justo, injusto, perfeito,
imperfeito. São nomes gerais, abstra­
ções que não,se referem a nada concreto.
Nascem de comparações que os homens
“O amor é a Alegria acompanhada da fazem entre si e entre os objetos. A liber­
idéia de uma causa exterior . . . A dade nada tem a ver com tais valores ou
vontade do amante de se unir à coisa preconceitos. Que é o bem? A cons­
amada não exprime a essência do Amor, ciência que temos de nossa alegria. Que
mas uma propriedade deste. ” é o mal? A consciência que temos de
nossa tristeza. Que é a perfeição? A
alegria, amor, coragem, etc. Ser escravo consciência que temos de nossa potên­
das paixões é oscilar permanentemente cia. Que é a imperfeição? A consciência
entre os opostos até o aniquilamento do que temos de nossa impotência. Assim, o
congtus. bem é o que procuramos para aumentar
nossa potência; o mal, aquilo de que
A liberdade fugimos porque diminui nossà potência.
A primeira forma de liberdade não Que é virtude? É virtú. É vis. É força: é o
consistirá em livrar-se das paixões — próprio conatus se expandindo. A virtu­
elas são necessárias, isto é, não depen­ de, dirá o livro V, não é o preço da felici­
dem de nossa vontade, mas das leis da dade, mas a prçpria felicidade. A virtude
natureza humana. Ser livre não será, ou liberdade consiste em procurar aque­
portanto, escapar das leis da natureza le bem que por sua realidade atual e
humana, mas, conhecendo tais leis, necessária realiza plenamente nosso
começar a deixar-se vencer apenas pelas desejo: Deus. Por isso a liberdade é defi­
paixões positivas. E isto também é pos­ nida como amor intelectual de Deus.
sível pelas leis da natureza humana. Amor: paixão positiva. Intelectual: pai­
Espinosa considera que não é uma ação xão guiada pela consciência que temos
que vence uma paixão, mas uma paixão de alcançar a plenitude de nosso ser na
mais forte que vence outra mais fraca. compreensão de nós mesmos através de
Ora, a paixão é forte ou fraca conforme o nossa compreensão de Deus, isto é, da
objeto desejado seja forte ou fraco, isto totalidade.

341
OS PENSADORES

A virtude da alma é conhecer. Ela é une; a eternidade é justamente a identi­


passiva quando o conhecimento depende dade da essência e da existência. Pode­
de causas exteriores — é passiva na mos dizer que a existêneia em sua dis­
imaginação. EL é ativa quando o conhe­ persão temporal de acontecimentos é
cimento depende dela própria, de sua uma superfície que precisa ser explica­
força própria — é ativa na razão. É ativa da. A História, entendida como Lógica,
quando consegue compreender a ordem e está do lado da eternidade e não do lado
conexão necessária do real, a produção do tempo: a História (Lógica) não é o
do real e a inserção do homem nessa conhecimento da sucessão dos aconteci­
produção. mentos, mas da necessidade interna de
Por tudo que foi dito, compreende-se sua produção. Por isso Espinosa diz que
que o retrato do homem livre, para Espi­ a definição do círculo não implica que o
nosa, seja o do homem que não faz o mal círculo surja dessa maneira na experiên­
justamente porque o ignora — é o homem cia, isto é, não é a experiência dos círcu­
que age para além do bem e do mal por­ los que nos dá a essência do círculo, mas
que age apenas pela força interior de seu é esta que nos garante que temos expe­
desejo e de sua compreensão. É o homem riência do círculo. A eternidade vincula-
que não teme, não odeia, nem tem se à idéia de um Infinito que é Infinito
remorsos porque domina os objetos não porque não tenha fim (no espaço e
exteriores em vez de ser uma vítima no tempo), mas porque apresentou a
deles. Por isso a sabedoria é uma medi­ total necessidade e inteligibilidade do
tação sobre a vida e o sábio pensa em Real. É isto que se denomina Infinito
tudo menos na morte. Dessa maneira, Atual, e é esta idéia que leva Hegel ao
Espinosa nega a pregação platônica e elogio de Espinosa.
cristã que considera a sabedoria uma
preparação para a morte e para a vida
eterna. Para Espinosa, a eternidade é a O Estado
identidade da essência e da existência —
a eternidade não está fora da vida pre­ 1) O Estado não é resultado da ação
sente, mas nela mesma, quando alcança­ racional dos homens, mas do choque de
mos a identidade de nossa essência e de suas paixões. Sozinhos, os homens não
nossa existência numa alegria e num podem sobreviver. Ao-se unirem e forma­
amor duradouros, na compreensão e rem um Estado, simplesmente trocam
aceitação daquilo que somos: modos da seus medos e esperanças individuais por
substância divina, forças em expansão, um medo e uma esperança comunitários.
agentes da história e não pacientes dela. 2) Se o Estado nasce e vive da paixão,
Quando Espinosa diz que o conheci­ sua essência é a violência. Escrever uma
mento e o amor verdadeiros se dão sub ciência política, desejando que a violên­
specie aeternitatis, é preciso lembrar cia saia de cena, é escrever ou uma uto­
que, para ele, a eternidade nada tem a pia ou uma sátira, nunca uma teoria.
ver com o tempo, mas é ausência de 3) O Estado, como indivíduo, tem seu
tempo. Isto significa que conhecer e próprio conatus, que pode ou não estar
amar sub specie aeternitatis é: 1) tomar em conflito com o conatus dos indiví­
um ente na identidade de sua essência e duos que o compõem. Se o conflito é tal
de sua existência; 2) portanto, tomar um que aniquila os cidadãos, estes natural­
ente em sua necessidade intrínseca; 3) mente se revoltam. A revolução está ins­
portanto, tomar um ente como causa sui crita no interior do próprio Estado quan­
(Deus) ou como causa adequada do este é contrário às necessidades da
(homem); 4) portanto, tomar um ente comunidade. Assim sendo, o Estado
cumprindo sua potência ou produtivi­ menos violento e menos conflituoso só
dade essencial. O tempo é a maneira de a pode ser o Estado democrático.
imaginação tentar medir a Duração. 4) O Estado pode ser destruído inter­
Nesta, a essência e a existência podem namente por uma revolução ou externa­
ser separadas. Na Eternidade, isto é, no mente por uma guerra ou invasão. É por
não-tempo, a essência e a existência causa deste segundo perigo que se tende
mostram a necessidade interna que as a aceitar a militarização do Estado

342
ESPINOSA

A sociedade holandesa, que constituiu o pano de fundo da vida e do pensamento


de Espinosa, fundava-se na liberdade burguesa e na valorização do trabalho e
do indivíduo. Seus pintores exprimiram essa ideologia, abandonando os temas
grandiosos e voltanao-separa as coisas simples. “A Pequena Rua”, de Vermeer de
Delft, é um claro exemplo nesse sentido. (Detalhe, Museu Real de Amsterdam.)
como forma de sua preservação. Ocorre ção como arma, tende a censurar a liber­
que: ou o exército disputa o poder com a dade de pensamento e de expressão.
autoridade civil e aniquila o Estado com Neste caso, a censura gera o desconten­
uma guerra interna; ou, então, o exér­ tamento e este se expande pouco a pouco
cito toma o poder, mas o despotismo para a massa, a sublevação acabando
leva a uma revolução dos súditos. Espi­ por vir. Por isso o Tratado Teológico-
nosa considera que o Estado só pode se Politico afirma que a liberdade de pen­
preservar e se defender externamente se sar e falar não é contrária à paz do Esta­
o povo puder estar armado, em vez de do, mas sim a condição dessa paz.
entregar as armas aos mercenários ou a Nota-se que a teoria política de Espi­
uma casta militar. nosa vincula-se diretamente à sua teoria
5) A sublevação popular pode ocorrer da ação e da paixão humanas — o con­
ainda por uma outra razão. Quando o flito das paixões aniquila o conatus; os
poder político, para assegurar-se, une-se conflitos no interior do Estado também o
com o poder religioso e usa a supersti­ aniquilam. Assim como uma paixão

343
OS PENSADORES

mais fraca (negativa) é vencida por a liberdade verdadeira, puramente ra­


outra mais forte (positiva), também um cional. O Estado está sempre sub specie
Estado mais fraco (despótico) é vencido durationis, sendo que conhecê-lo sub
por outro mais forte (democrático), sem specie aetemitátis é apenas demonstrar
que se deva confundir, porém, a liber­ aquelas cinco teses que apresentamos,
dade política, puramente passional, com isto é, apresentar a essência do Estado.

CRONOLOGIA
u
1632 — Baruch de Espino­ Conselho dos rabinos publi­ tripla aliança com a Ingla­ a
a
sa nasce em Amsterdam. ca o mandado de excomu­ terra e a Suécia, impedindo I
1639-1650 — Frequenta os nhão de Espinosa. uma invasão francesa. C
cursos da nova escola judai­ 1660-1663 — Espinosa en- 1670 — Espinosa publica,
ca, onde aprende o hebreu. contra-se em Rijnsburg (su­ anonimamente, o Tratado Q
1646-1650 — Espinosa pre­ búrbio de Leyde). Aí escreve Teológico Político. É obri­ C
»<
para-se talvez para o rabina- o Breve Tratado, o Tratado gado a sair de Voorsburg e u

to. da Correção do Intelecto e a passa a viver em Haia. I


1648 — Declaração da in­ Ética, primeira parte da sua 1672 — As tropas francesas
dependência das sete Pro­ Filosofia. invadem a Holanda. A 20 a
l-
víncias Unidas. 1663 — Espinosa muda-se de agosto, os irmãos De Witt u

1652 — Primeira guerra an- para Voorsburg (subúrbio são assassinados. ç

glo-holandesa. Espinosa fre­ de Haia) e publica os Princí­ 1673 — Espinosa recusa a


quenta os cursos dos ex-je- pios. cadeira de filosofia na Aca­
suítas Van den Enden. 1665 — Interrompe a Ética demia de Heidelberg. D
1653 — Johannes de Witt, para escrever um tratado so­ 1675 — Vai a Amsterdam P
Pensionário de Dordrecht, bre a liberdade do pensa­ para mandar imprimir a Éti­ C
torna-se Grande Pensioná­ mento. ca, mas desiste da idéia.
rio da Holanda. 1667 — Paz entre Breda e a 1677 — Falece em Haia, a U

1654 — Segunda guerra en­ Inglaterra. Luís XIV con­ 21 de fevereiro. Em novem­ a
tre a Holanda e a Inglaterra quista os Países-Baixos es­ bro é publicada a maior par­ a

pela hegemonia marítima. panhóis. te de suas obras, sob o título I


1656 — A 27 de julho, o 1668 — De Witt assina a de Obras Póstumas.
a
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344
OS PENSADORES

história política da Inglaterra do micos divergentes. Além das oposições

A século XVII tem como marcos bem


nítidos os anos de 1603 e 1689.
Em 1603, faleceu Elizabeth
entre a aristocracia medieval e a burgue­
sia, contrapunham-se os interesses da
I
burguesia mercantil, protegida por pri­
(1533-1603) e a coroa foi colocada na vilégios de monopólio, e de novos seto­
cabeça de Jaime Stuart (1566-1625). res que procuravam quebrar esses mono­
Em 1689, a Revolução Gloriosa fez pólios, alterando as relações existentes
ascender ao trono real Guilherme de no comércio internacional. Ao lado des­
Orange (1650-1702) e sua esposa Maria sas forças, havia ainda uma nova classe
(1662-1 694). Entre aquelas datas, ocor­ de empresários agrícolas e novas cama­
reram os conflitos decorrentes do abuso das urbanas, interessadas na expansão
do poder, por parte dos monarcas da da indústria de transformação.
dinastia dos Stuart, e as tentativas de O resultado final dos conflitos foi a
consolidação dos interesses da burgue­ derrota final do absolutismo com a
sia, realizadas pelos seus representantes Revolução Gloriosa. Em 1689, a Câma­
na Câmara dos Comuns. ra dos Comuns triunfou, mandando cha­
No século anterior, o absolutismo dos mar Guilherme de Orange e sua esposa
Tudor constituía expressão dos interes­ Maria, que se encontravam refugiados
ses da burguesia, e, além disso, os prin­ na Holanda. Outorgando-lhes o poder
cipais representantes do absolutismo real, o Parlamento burguês deixava
desse período, Henrique VII claro que esse poder era derivado do seu
(1491-1547) e Elizabeth I, foram muito e nele deveria fundamentar-se.
hábeis em manter seu poder com todas
as aparências de governo popular. Quan­ Médico, filósofo e político
do desejavam decretar medidas de popu­
laridade duvidosa, recorriam à formali­ No navio que transportava Guilherme
dade de obter aprovação parlamentar; de Orange e sua esposa Maria encontra-
quando necessitavam mais dinheiro, sa­ va-se o filósofo John Locke e isso não
biam como fazer para que as desapro­ era obra de simples acaso. Locke parti­
priações parecessem dádivas voluntá­ cipou ativamente do processo revolucio­
rias dos representantes do povo. nário realizado em seu país e essa parti­
No século XVII, contudo, a situação cipação poderia ser remontada, até suas
alterou-se. A burguesia já estava sufi­ origens familiares.
cientemente fortalecida e poderia pres­ John Locke nasceu a 29 de agosto de
cindir de governos fortes para solidificar 1632, no seio de uma família de burgue­
seu domínio sobre a nação. Acrescenta­ ses comerciantes da cidade de Bristol.
va-se a isso o fato de que os soberanos Quando estourou a revolução de 1648,
Stuart não tinham a mesma habilidade seu pai adotou a causa dos puritanos e
que seus antecessores. Jaime I, por alistou-se no exército do Parlamento.
exemplo, a quem Henrique IV da França Na mesma época, Locke estudava na
(1553-1610) chamava “o imbecil mais Westminster School e, em 1652, transfe-
esclarecido da cristandade”, pretendia riu-se para o Christ Church College de
fundamentar a autoridade real no poder Oxford, instituição à qual estaria ligado
divino. Seus sucessores caminharam até 1684, primeiro como aluno, depois
pelas mesmas vias e todo o século XVII como “fellow”. Em Oxford, Locke desen­
ficou marcado pelos constantes conflitos cantou-se com o aristotelismo escolás-
entre a autoridade real e a autoridade do tico ali ensinado, mas recebeu também
Parlamento. Esses conflitos assumiam duas influências fundamentais para o
aspectos religiosos, envolvendo protes­ curso posterior de seu pensamento: a de
tantes contra católicos, mas, sobretudo, John Owen (1616-1683), que enfatizava
eram expressão de interesses econô- a importância da tolerância religiosa, e
ade Descartes (1596-1650), que o liber­
tou “do ininteligível modo de falar”
Napágina anterior: retrato de John dos escolásticos. Seus interesses como
Locke, por Kneller. (Galeria estudante foram bastante diversificados,
Nacional de Retratos, Londres.) abrangendo desde a química e a meteo-

346
LOCKE

FABBRI
Na época em que John Locke escreveu suas obras, Londres era uma das maiores
cidades da Europa, com uma população estimada em quinhentos mil
habitantes. Grande parte dessa população vivia de atividades manufature iras e
ligava-se ao extraordinário surto do comércio com as colônias. Tela de John
Griffier (1656-1718) mostra o porto de Londres. (Galeria Sabauda, Turim.)

rologia até a teologia. Finalmente, optou para fazê-lo ingressar nos círculos polí­
pela medicina como atividade profissio­ ticos da Inglaterra. Em 1666, Locke tor-
nal. Datam dessa época suas amizades nou-se médico de Anthony Ashley Coo­
com Robert Boyle (1627-1691) e Tho- per (1621-1683), posteriormente lorde e
mas Sydenham. O primeiro, repudiando primeiro conde de Shaftesbury. Como
a teoria aristotélica dos quatro elemen­ obteve sucesso no tratamento, Ashley o
tos (água, ar, terra e fogo), foi o pri­ empregou como médico particular e aca­
meiro a formular o moderno conceito de bou por atribuir-lhe outras funções,
elementos químicos. O segundo revolu­ como a de seu assessor. Locke partici­
cionou a medicina clínica, abandonando pou, assim, da elaboração de uma cons­
os dogmas de Galeno (130-200) e outras tituição para a colônia de Carolina,
hipóteses especulativas e baseando o situada na América do Norte. Em Exeter
tratamento das doenças na observação House, residência de lorde Ashley em
empírica dos pacientes. Locke integrava, Londres, Locke convivia com os mais
assim, o círculo daqueles que valori­ altos círculos intelectuais e políticos da
zavam a experiência como fonte de época. Nesse período começou a escrever
conhecimento, e sua obra posterior siste­ uma de suas obras principais, o Ensaio
matizaria a filosofia empirista. Nesses sobre o Entendimento Humano, na qual
anos, redigiu uma pequena obra em trabalharia durante quase vinte anos.
latim, Ensaios sobre a Lei da Natureza. Com a rápida ascensão de lorde
Embora fortuitamente, sua dedicação Ashley, multiplicaram-se suas ocupa­
à medicina experimental também serviu ções políticas. Em 1672, lorde Ashley

347
OS PENSADORES

recebeu o título de conde de Shaftesbury consequente ascensão ao trono de Gui­


e tornou-se Presidente do Conselho de lherme de Orange e Maria. Nesses anos,
Colonização e Comércio; logo depois, Locke publicou a Carta sobre a Tolerân­
ascendeu ao cargo de chanceler. Acom- cia, os Dois Tratados sobre o Governo
panhando-o, Locke tornou-se Secretário Civil e o Ensaio sobre o Entendimento
para a Apresentação de Benefícios, Humano. A primeira Carta sobre a Tole­
devendo cuidar de todos os problemas rância causou muita polêmica e Locke
eclesiásticos. escreveu outras três. Nelas, advoga a
Shaftesbury representava, na política liberdade de consciência religiosa (um
britânica, os interesses do Parlamento e dos principais temas políticos da época),
cada vez mais opunha-se às medidas do sustentando a tese dè que o Estado deve­
soberano Carlos II (1630-1685), contrá­ ria apenas cuidar do bem-estar material
rias a esses interesses e que tentavam dos cidadãos e não tomar partido de
fortalecer o absolutismo. Em 1675, uma religião. O Primeiro Tratado sobre
Shaftesbury foi destituído de todos os o Governo Civil combate, ironicamente,
seus cargos e Locke foi também obri­ a tese de sir Robert Filmer (1588-1653),
gado a abandonar as atividades políti­ defensor do absolutismo dos Stuart,
cas. Viajou então para a França, onde segundo a qual os monarcas reinantes
permanecería durante três anos e se remontavam seu poder a Adão e Eva. O
relacionaria com os círculos intelectuais Segundo Tratado do Governo Civil de­
de Montpellier e Paris. Em 1679, voltou senvolve as teses políticas liberais de
à Inglaterra encontrando-a em grande Locke. O Ensaio sobre o Entendimento
agitação política. Shaftesbury, líder da Humano seria sua obra mais impor­
oposição a Carlos II, estivera preso, mas tante, do ponto de vista estritamente
voltara a fazer parte do governo, em filosófico. Além dessas obras, Locke
1678, desempenhando as funções de publicou Alguns Pensamentos Referen­
Presidente do Conselho Privado. Os ser­ tes à Educação, em 1693, e Racionabi-
viços de Locke foram novamente requisi­ lidade do Cristianismo, em 1695. A pri­
tados, mas suas relações com o governo meira é especialmente importante por
do monarca Carlos II não durariam constituir uma aplicação de sua teoria
muito tempo. Em 1681, Shaftesbury, empirista do conhecimento aos proble­
acusado de chefiar uma rebelião para mas do ensino. Locke sustentava que
depor o soberano, foi preso e compelido “pode-se levar, facilmente, a alma das
a trocar a Inglaterra pela Holanda, onde crianças numa ou noutra direção, como
faleceu em 1683. Locke passou a ser a própria água”.
vigiado pelo partido do rei e também Os últimos anos da vida de Locke
acabou procurando refugio na Holanda, foram relativamente calmos, dentro da
onde existia liberdade de pensamento. nova situação política criada pela Revo­
lução Gloriosa. Depois de viver dois
anos com o modesto cargo de Comis­
A vitória dos Comuns sário de Recursos e recusar oferta para
desempenhar as funções de embaixador
Mesmo na Holanda os agentes de Car­ em Brandenburgo, passou a residir nas
los II perseguiam Locke, que se disfar­ terras de sir Francis Mashan. Na resi­
çou, em Amsterdam, sob o nome de dr. dência de Mashan, em Oates, recebia a
Van der Linden. Apesar de perseguido, visita de seus amigos, entre os quais
conseguiu relacionar-se com Jean Leclerc Isaac Newton (1642-1727), um dos cria­
(1657-1736), editor de um periódico dores da física moderna.
literário intitulado Biblioteca Universal Em 1696, Locke assumiu o cargo de
e Histórica. Para essa publicação, Locke Comissário da Câmara de Comércio,
contribuiría com vários artigos. Contava sendo obrigado a deslocar-se frequente­
então 54 anos de idade. mente até Londres. Quatro anos depois,
Suas principais obras, contudo, só se­ com a saúde já debilitada, renunciou ao
riam publicadas entre 1689 e 1690, ao cargo, dedicando-se a uma vida de medi­
voltar à Inglaterra, depois da vitória do tação e contemplação. Morreu no dia 27
Parlamento na Revolução Gloriosa e de outubro de 1704.

348
LOCKE

Anthony Ashley Cooper, primeiro conde de Shaftesbury (tela de J. Greenhill,


Galeria Nacional de Retratos, Londres), foi uma das principais figuras nas
lutas entre o Parlamento e o soberano Carlos II, ultimo dos monarcas
absolutistas da Inglaterra. John Locke trabalhou para Shaftesbury,
primeiramente como médico particular, depois como assessor político.

349
OS PENSADORES

Não há idéias inatas


Durante toda a vida, Locke participou
das lutas pela entrega do poder à bur­
guesia, classe a que pertencia. Na época,
isso significava lutar contra a teocracia
anglicana e suas teses legitimadoras: a
de que o poder do rei seria absoluto e a
de que esse poder diria respeito tanto ao
plano espiritual quanto ao temporal, o
soberano tendo direito de impor à nação
determinada crença e determinada
forma de culto.
Locke insurgia-se contra essas teses
políticas, vinculando-as a teses filosó­
ficas mais gerais, fundamentadas, em úl­
tima instância, numa certa teoria do
conhecimento. As palavras iniciais do
Ensaio sobre o Entendimento Humano
são muito claras nesse sentido. Rela­
tando as circunstâncias da origem da
obra, o autor diz que o Ensaio resultou
das dificuldades surgidas para a solução
de um problema filosófico, abordado em
discussão fortuita entre amigos; diante
da dificuldade, Locke sugeriu uma pré­
via indagação sobre a extensão e o limi­
te do entendimento humano. A indaga­
ção proposta acabou por se transformar
na obra com a qual o pensador pretendia
“fundamentar a tolerância religiosa e
filosófica”.
Papel fundamental no Ensaio é desem­
penhado pela análise crítica da doutrina
das idéias inatas. O problema surgiu na
mente de Locke pela leitura da obra O
Verdadeiro Sistema Intelectual do Uni­
verso, de autoria de um dos principais
animadores da escola platônica de Cam-
bridge, o filósofo Ralph Cudworth
(1617-1688). Esse pensador sustentava
que a demonstração da verdade da exis­
tência de Deus exige o pressuposto de
que o homem possui idéias inatas, isto é,
idéias que se encontram na alma desde o
nascimento, e que, portanto, não deri­
vam de qualquer experiência. Para Cud­
worth, a doutrina empirista, segundo a
qual “nada está no intelecto que antes
não tenha estado nos sentidos”, conduz
diretamente ao ateísmo e por isso deve
O primeiro conde de Clarendon foi ser combatida.
chanceler de Carlos II e esforçou-se O livro I do Ensaio de Locke é dedi­
para que houvesse equilíbrio entre o cado à crítica do inatismo defendido por
Parlamento e o rei. (Tela de Hanneman, Cudworth. Locke procura demonstrar
Gal. Nac. de Retratos, Londres.) que o inatismo é uma doutrina do

350
LOCKE

FAB B RI
No período em que aumentou o número de perseguições aos adversários da
política absolutista do rei Carlos II, muitos ingleses procuraram refúgio na
Holanda, onde se gozava de real liberdade intelectual e religiosa.
O filósofo John Locke foi um deles, tendo permanecido por seis anos naquele
país. (A. Cuyp: vista do porto sobre o rio Maas, em Dordrecht, Holanda.)

preconceito, levando diretamente ao têm maior utilidade, pois seria possível


dogmatismo individual. Se os princípios chegar ao mais exato conhecimento sem
fossem verdadeiramente inatos, consti- nenhuma necessidade de se recorrer a
tuiriam uma certeza irredutível, sem ne­ eles. Para julgar que o doce não é amar­
nhum outro fundamento a não ser a afir­ go, por exemplo, bastaria perceber o
mação do indivíduo. Critica ainda o doce e o amargo em separado; imediata­
inatismo, afirmando que os princípios mente se concluiría que são diferentes.
chamados inatos deveríam encontrar-se Nesse caso, não haveria qualquer neces­
em todos os indivíduos, como aspectos sidade de se utilizar o princípio de iden­
constantes e universais. Mas isso, entre­ tidade lógica, segundo o qual é impos­
tanto, não ocorre. Examinando-se os sível que uma coisa seja distinta de si
indivíduos — diz Locke —, verifica-se mesma. Analogamente seria possível,
que apenas uns poucos conhecem, por segundo Locke, provar a existência de
exemplo, os princípios de identidade e Deus sem qualquer fundamentação
contradição lógicas. Da mesma forma, numa suposta idéia inata de Deus; ou
nem todos conheceríam os princípios da seja, o chamado “argumento ontológi-
vida prática, como “age com relação aos co” não teria nem validade nem utilida­
outros como gostarias que agissem com de. Santo Agostinho (354-430), Santo
relação a ti”. Anselmo (1035-1109), Descartes
Além de negar que os princípios (1596-1650), defensores do inatismo,
supostamente chamados inatos sejam afirmavam a existência no espírito hu­
universais, Locke afirma que eles não mano, antes de qualquer experiência, da

351
OS PENSADORES

seus conteúdos: as idéias provenientes —


todas — da experiência.
Locke procurou, então, descobrir
quais seriam os elementos constitutivos
do conhecimento, quais as suas origens e
processos de formação, e qual a ampli­
tude de sua aplicabilidade. Em outras
palavras, se o homem não possui idéias
inatas — ao contrário do que afirmavam
Platão (428/7 — 348/7 a.C.), Agosti­
nho, Descartes e outros —, pergunta-se:
como pode o homem constituir um
conhecimento certo e indubitável e em
que casos isso é possível?

Que significa pensar?


No livro II do Ensaio sobre o Entendi­
mento Humano, Locke começa por afir­
mar que as fontes de todo conhecimento
são a experiência sensível e a reflexão.
Em si mesmas, a experiência sensível e a
reflexão não constituiríam propriamente
conhecimento; seriam, antes, processos
que suprem a mente com os materiais do
conhecimento. A esses materiais, Locke
dá o nome de idéias, expressão que
adquire, assim, o sentido de todo e qual­
Henrietta, duquesa de Orléans, tentou quer conteúdo do processo cognitivo.
convencer seu irmão Carlos II “Idéia” é, para Locke, o objeto do enten­
a aderir àfé católica. Isso originou dimento, quando qualquer pessoa pensa;
mais um ponto de atrito entre o rei e a expressão “pensar” e assim tomada no
o Parlamento. (Gal. Sabauda, Turim.) mais amplo sentido, englobando todas
as possíveis atividades cognitivas. In­
idéia de um ser perfeito; daí concluíam cluem-se no significado da expressão
sua existência autônoma. Ao contrário, “idéia” os “fantasmas” (entendidos, por
segundo Locke, a existência de Deus Locke, como dados imediatamente pro­
poderia ser demonstrada por uma va­ venientes dos sentidos), lembranças,
riante da prova “por contingência do imagens, noções, conceitos abstratos.
mundo”: a existência do ser contingente, As idéias de sensação proviríam do
que é o homem (conhecimento adquirido exterior, enquanto as de reflexão teriam
pela experiência), supõe a existência de origem no próprio interior do indivíduo.
um ser eterno, todo-poderoso e inteli­ Nesse sentido, expressões como “amare­
gente. Além disso, a não universalidade lo”, “branco”, “quente” designam idéias
da idéia de Deus ficaria comprovada de sensação; enquanto que as palavras
pelo fato de que há selvagens que seriam “pensar”, “duvidar”, “crer”, nomeiam
mteiramente destituídos dessa idéia. idéias de reflexão. Essas duas catego­
A crítica ao inatismo, realizada por rias de idéias seriam recebidas passiva­
Locke, levou-o a conceber a alma huma­ mente pelo entendimento e Locke lhes dá
na, no momento do nascimento, como o nome de “idéias simples”.
uma “tabula rasa”, uma espécie de A simplicidade das idéias não decor­
papel em branco, no qual inicialmente rería de nenhum caráter interior a elas
nada se encontra escrito. Chega, então, à mesmas; seriam simples as idéias que
conclusão de que, se o homem adulto não se pode ter a não ser mediante expe­
possui conhecimento, se sua alma é um riências bem concretas, como frio e
“papel impresso”, outros deverão ser os quente, doce e amargo, etc. Essas expe-

352
LOCKE

Depois da ditadura puritana de Oliver Cromwell (1599-1658), foi restaurada a


monarquia dos Stuart, com a ascensão de Carlos IIao trono da Inglaterra, em
1661. Seu reinadofoi marcado pelas disputas entre os adeptos do absolutismo
real e os que defendiam a entrega do poder ao Parlamento. Locke colocou-se
entre os últimos. (Desenho de Antoine Masson: Carlos II; Museu Magnin, Dijon.)

353
OS PENSADORES

riências concretas forneceríam idéias


simples de três tipos: de sensação, de
reflexão e de ambas ao mesmo tempo.
Exemplos das primeiras são o quente, o
sólido, o duro, o amargo, a extensão, o
movimento; entre as segundas, encon-
tram-se a atenção, a memória, a vonta­
de; finalmente, idéias simultaneamente
de sensação e reflexão seriam as de exis­
tência, duração, número.
A noção de idéias simples coloca de
imediato o problema de saber se elas são
mesmo representativas, isto é, imagens
das coisas exteriores ao sujeito que as
percebe. Para melhor solucionar a ques­
tão, Locke separa as idéias simples em
dois grupos. O primeiro é formado por
idéias “enquanto percepções em nosso
espírito”; o segundo, “enquanto modifi­
cações da matéria nos corpos causado­
res de tais percepções”. Estas últimas
seriam efeitos de poderes ou potências
capazes de afetar os sentidos humanos.
Tal distinção conduz Locke a uma
outra: entre qualidades primárias e qua­
lidades secundárias dos corpos exterio­
res à mente. Assim, Locke transita da
teoria do conhecimento para a teoria do
mundo físico. As qualidades primárias
seriam inseparáveis dos corpos, tais
como a solidez, a extensão, a figura e o
movimento; mesmo que um certo corpo
seja dividido em dois, essas qualidades
persistiríam nas partes resultantes. As
qualidades secundárias, ao contrário,
não persistiríam e não estariam nos
objetos, senão como poderes para produ­
zir várias sensações nos sujeitos perci-
pientes; assim ocorre com os sons, os
gostos e as cores.
As idéias simples constituiríam os ele­
mentos com os quais se formam as idéias
compostas, que se dividem em dois gru­
pos. O primeiro é constituído por idéias
simples combinadas na idéia de uma
coisa única, como por exemplo a idéia
de homem ou de ouro. O segundo é for­
mado por idéias que se reúnem para for­
mar uma idéia composta, mas que conti­
nuam representando coisas distintas; é o
que ocorre com todas as idéias de rela­
Depoimentos de seus contemporâneos ção, como a de filiação, que une, sem
afirmam que Locke era um homem alterá-las, as idéias de pai e filho.
que detestava a intolerância O primeiro grupo, por sua vez, subdi­
religiosa epolítica. (Locke, por J. vide-se em duas classes: idéias de modo
Greenhill; Gal. de Retratos, Londres.) das coisas que não podem subsistir por

354
LOCKE

CHYMISTA SCEPTlCVSs
VE L,

DVBIA ET PARADOXA
CH YMICO-PH YSICA j
ÍTM Sr A c y * I c O * V M Principia,-Vllt/fi ia« Hy T O » T A T1C A,
PramfnfoK! Crfnfupuriftlnt i Turít

ALCHYMISTARUM-
Caw Pars pr&útm>ir
Alteriuicujufdam Diflcitationii ad idem Argutncntum (peólans.
•4J Htntrtúfíun»

ROBERTO BOYLE
Nobili Anclo, è Sociitati Rxgia.

THOAIAS < 5} DENHAAÍ

FABBRI
No século XVII houve grande desenvolvimento das ciências experimentais.
Dois de seus maiores expoentes foram amigos pessoais de Locke: Thomas
Sydenham, que revolucionou a medicina, e Robert Boyle, um dos fundadores da
física. (Sydenham, em gravura de 1716; Bibl. Nac. Braidense e frontispício
de O Químico Cético, de Boyle; Museu da Ciência e da Técnica, Mdão.)

si mesmas (um triângulo ou um número, inatistas se julgavam capazes de resol­


por exemplo) e as substâncias que, como ver. Dentre esses problemas, os mais
diz a própria palavra, subsistem por si; importantes, a seu ver, eram os referen­
seria o caso da idéia de homem, entre tes às noções de infinito, de potência e de
outras. Os próprios modos dividem-se substância.
em simples e compostos, ou mistos. Nos O infinito é concebido por Locke como
primeiros, a idéia simples combina-se um modo simples, resultante da repeti­
consigo mesma, como a idéia de número, ção da unidade homogênea de número,
que resulta da combinação das idéias de duração e espaço, distinguindo-se do fi­
unidades; ou a de espaço, proveniente da nito tão-somente pelo fato de que tal
combinação das idéias de partes homo­ repetição não tem limite. Portanto, é
gêneas. Os modos compostos, ou mistos, falso — diz Locke — considerar o infinito
derivam da combinação de idéias sim­ como anterior ao finito e que o finito seja
ples heterogêneas, como a idéia de bele­ uma limitação do infinito. Pelas mesmas
za ou de assassinato. razões, é falso também conceber um infi­
nito de perfeição, diferente do infinito de
A substância incognoscível quantidade.
A idéia de poder é concebida pelo
Segundo o projeto de Locke, a teoria autor do Ensaio como um modo simples,
elaborada no Ensaio sobre o Entendi­ formado pela repetida experiência de
mento Humano possibilitaria encami­ certas modificações comprovadas nas
nhar de outra forma a solução de muitos coisas sensíveis e no próprio homem.
problemas filosóficos, que só as teorias Este chega à idéia de poder, quando nota

355
OS PENSADORES

que suas idéias se modificam sob in­


fluência das impressões dos sentidos ou
por escolha de sua própria vontade. A
idéia de poder formar-se-ia também
3uando o homem imagina a possibili-
ade de tais modificações virem a ocor­
rer no futuro; nesse caso produzem-se as
idéias de potência ativa, referente àquilo
que causou a modificação, e de potência
passiva, que diz respeito àquilo que
sofre a modificação. Mas, em geral, a
idéia de potência ativa seria uma idéia
de reflexão, proveniente das modifica­
ções produzidas pela vontade do homem
nas coisas externas; nesse sentido, a
vontade é uma potência ativa.
O terceiro problema abordado por
Locke foi o da natureza da substância. A
substância sempre foi entendida como
realidade primitiva, mas filósofo algum
— pensa Locke — foi capaz de dizer cla­
ramente o que entendia por esse subs­
trato de todos os atributos. No Ensaio
sobre o Entendimento Humano encon-
tra-se a tese de que as insuficiências das
doutrinas tradicionais decorrem de
terem os filósofos erradamente conce­
bido a substância como uma idéia sim­
ples, quando, na verdade, se trata de
idéia composta. Tomando-se como
exemplo o ouro, de acordo com a tese de
Locke, sua substância não seria mais do
que um conjunto de idéias simples, que a
experiência mostra sempre agrupadas:
amarelo, dúctil, denso, etc. Nesse caso a
substância não seria mais do que um
modo misto, que é também um grupo
constante de idéias simples denomi­
nadas por uma só palavra.
Essa tese de Locke sobre a substância
não significa, contudo, que ele afirmasse
a realidade como formada exclusiva­
mente pelas idéias simples; Locke admi­
te a existência real das substâncias, mas
acha que elas não podem ser conhecidas
em si mesmas. A tese de Locke é, assim,
referente ao conhecimento e não tem,
propriamente, um significado metafí­
sico. A substância reduzir-se-ia a uma
espécie de infinito em ato; existe mas
não se pode saber o que seja, e a única
A ascensão de Guilherme de Orange e investigação possível é a pesquisa expe­
Maria ao trono da Inglaterra foi, em rimental das qualidades que nela coexis­
larga medida, resultado dos esforços tem. Dessa forma, para conhecer os cor­
de Charles Montagu, conde de Halifax. pos que compõem a realidade exterior
(Gal. Nac. de Retratos, Londres.) ao homem, é suficiente considerar a

356
LOCKE

Numa época em que a cirurgia era ainda muito primitiva, John Locke
realizou um verdadeiro milagre médico: dirigiu uma operação para remover um
abscesso no fígado de lorde Ashley, inserindo um pegueno tubo através da
parede do estômago. O acontecimento ocorreu na residência de Lorde Ashley em
Exeter. (Mapa ae Exeter, executado por G. Braun e G. Hogenburg, em 1617.)
substância como um conjunto de idéias tidade (ou diferença), quando se diz que
simples de sensação. Analogamente, A é B ou A não é B; relação, como a
deve-se entender a realidade interior expressa na frase “João é filho de
(alma, na metafísica medieval) como Paulo”, ou qualquer outra referente a
conjunto de idéias de reflexão. semelhança e dessemelhança, maior e
menor, etc; e de coexistência.
Os fundamentos da certeza Além desses três tipos de vínculos
entre as idéias, existiría uma quarta
Depois de analisar os materiais cons­ classe de conveniência, referente não às
tituintes do entendimento humano, o En­ relações possíveis entre as próprias
saio aborda o problema dos limites do idéias, mas à correspondência que uma
conhecimento e suas formas legítimas, idéia possa ter com a realidade exterior
ou seja, a verdade. Para o autor, o ao espírito humano. Nos termos do pró­
conhecimento constitui percepção de prio Locke, a quarta classe de conve­
conveniência ou discordância entre as niência é “a de uma existência real e
idéias e expressa-se através dos juízos. atual que convém a algo cuja idéia
Trata-se, portanto, da percepção de vín­ temos em mente”. A percepção da exis­
culos, que podem ser de três tipos: iden­ tência — diz Locke — é irredutível à per­

357
OS PENSADORES

cepção de uma relação entre duas idéias, certeza, no domínio das ciências experi­
em virtude de a existência não ser uma mentais, dependería do critério de verifi­
idéia como a de doce ou amargo, quente cação da conveniência entre as idéias
ou frio. Existem várias espécies de certe­ que estão na mente humana e a realidade
za com relação à existência das coisas. exterior a ela.
Uma primeira espécie é a certeza intuiti­
va, proveniente da reflexão, que o O poder é de todos
homem tem de sua própria existência.
Uma segunda espécie seria a certeza A teoria do conhecimento exposta no
demonstrativa da existência de Deus. Ensaio sobre o Entendimento Humano
Finalmente, uma terceira espécie é a constitui uma longa, pormenorizada e
“certeza por sensação”, referente aos hábil demonstração de uma tese: a de
corpos exteriores ao homem. 3ue o conhecimento é fundamentalmente
A dualidade dos juízos, separando de erivado da experiência sensível. Fora
um lado as relações que se podem esta­ de seus limites, a mente humana produ­
belecer entre as próprias idéias e, de ziría, por si mesma, idéias cuja validez
outro, aquelas que se referem à exis­ residiría apenas em sua compatibilidade
tência real dos correspondentes às interna, sem que se possa considerá-las
idéias, coloca-se também quanto ao pro­ como expressão de uma realidade exte­
blema da verdade e de sua contraparte, a rior à própria mente.
falsidade. Segundo Locke, há duas cate­ As teses sociais e políticas de Locke
gorias de juízos falsos. Na primeira caminham em sentido paralelo. Assim
categoria, a relação expressa pela lin­ como não existem idéias inatas no espí­
guagem não corresponde à relação per­ rito humano, também não existe poder
cebida intuitivamente entre as idéias. Na que possa ser considerado inato e de ori­
segunda, o erro.não consiste em perceber gem divina, como queriam os teóricos do
mal uma relação, mas em percebê-la absolutismo. Antes, Robert Filmer
entre idéias não correspondentes a qual­ (1588-1653), autor de O Patriarca, e um
quer realidade. No primeiro caso é pos­ dos defensores do absolutismo, procu­
sível, evitando o erro, formular-se um rara demonstrar que o povo não é livre
juízo verdadeiro que, no entanto, nada para escolher sua forma de governo e
diz respeito à realidade; é o que ocorre que os monarcas possuem um poder
quando, por exemplo, se diz que cavalo inato. Contra O Patriarca, Locke dirigiu
alado não é centauro. Somente no segun­ seu Primeiro Tratado sobre o Governo
do caso se pode ter conhecimento real. Civil; depois desenvolveu suas idéias no
Este, contudo, supõe os dois elementos Segundo Tratado. Neles, Locke sustenta
da verdade: a conveniência das idéias que o estado de sociedade e, consequen­
entre si e das idéias em relação à temente, o poder político nascem de um
realidade. pacto entre os homens. Antes desse acor­
Da distinção entre dois tipos de verda­ do, os homens viveríam em estado
de deduzem-se dois tipos de disciplinas natural.
científicas. O primeiro tipo — pensa A tese do estado natural e do pacto so­
Locke — é constituído pelas matemáticas cial também fora dpfendida por Thomas
e pelas ciências morais; nelas todo o Hobbes (1588-1679), mas o autor de O
conhecimento é absolutamente certo Leviatã tinha objetivos inteiramente
porque seu conteúdo são idéias produzi­ opostos aos de Locke, pois pretendia
das pela própria mente humana. Locke justificar o absolutismo. A diferença
afirma, por exemplo, que é perfeita- entre os dois resultava basicamente do
mente demonstrável que o homicídio que entendiam por estado natural, acar­
deva ser castigado; a certeza dessa retando diferentes concepções sobre a
demonstração seria tão segura quanto a natureza do pacto social e a estrutura do
de um teorema matemático. O segundo governo político.
tipo é o das ciências experimentais, que Para Locke, no estado natural “nasce­
formariam uma área de conhecimento na mos livres na mesma medida em que
qual a certeza das ciências ideais (mate­ nascemos racionais”. Os homens, por
máticas e morais) não está presente. A conseguinte, seriam iguais, indepen-

358
LOCKE

FABBRI

Culminando com a entrega da coroa inglesa a Maria, esposa de Guilherme de


Orange, a Revolução Gloriosa marcou a definitiva predominância da burguesia nos
destinos da nação. O regime liberal resultante inspirou a Revolução
Francesa e outros acontecimentos que mudaram aface do mundo ocidental.
(Retrato de Guilherme de Orange, Galeria Nacional de Retratos, Londres.)

359
OS PENSADORES

E S S A I
PHILOSOPHIQUE
r o x c f. r x .1 x r

LENTENDEMENT
H U M A I N,
or /.r..v i:sr VF.ri.xnrF. df. xox
COXXQÍSò /.s CF.miXF.lt. ÍT I..I MXXFf.RF.
xr xocs r r.tRrF.xi/xx.

PAR M. LOCKE.

.1 i/ ç t i: r. n ,-t i/ r. t .-i LF.irzi

Chez J. SCIIREUDER & P1ERRE MORTIER le Jeune.


li d c c L v.

As obras de John Locke exerceram grande influência no pensamento


ocidental do século XVIII. Sobretudo na França, suas idéias serviram
parafundamentar a maior parte das teorias dosfilósofos iluministas.
(Locke, em gravura de Vanderoank; Biblioteca Nac. de Paris. Frontispício da
traduçãofrancesa do Ensaio,publicada em 1 755; Biblioteca Braidense, Milão.)
dentes e governados pela razão. O esta­ propriedade seria natural e anterior à
do natural seria a condição na qual o sociedade civil, mas não inato. Sua ori­
poder executivo da lei da natureza per­ gem residiría na relação concreta entre o
manece exclusivamente nas mãos dos homem e as coisas,, através do processo
indivíduos, sem se tornar comunal. de trabalho. Se, graças a este, o homem
Todos os homens participariam dessa transforma as coisas — pensa Locke —, o
sociedade singular que é a humanidade, homem adquire o direito de proprie­
ligando-se pelo liame comum da razão. dade: “Todo homem possui uma pro­
No estado natural todos os homens te- priedade em sua própria pessoa, de tal
riam o destino de preservar a paz e a forma que a fadiga de seu corpo e o tra­
humanidade e evitar ferir os direitos dos balho de suas mãos são seus”. Assim,
outros. em lugar de opor o trabalho à proprie­
Entre os direitos que Locke considera dade, Locke sustenta a tese de que o tra­
naturais, está o de propriedade, ao qual balho é a origem e o fundamento da
os Dois Tratados sobre o Governo Civil propriedade. As coisas sem trabalho te-
concedem especial destaque. O direito à riam pouco valor, e seria mediante o tra-

360
LOCKE

Depois da queda da ditadura puritana de Oliver Cromwell, a dinastia dos


Stuartfoi restaurada com a ascensão de Carlos II ao trono da Grã-Bretanha.
O espírito da corte nos tempos da restauração ficou documentado para a
posteridade nos quadros do pintor Peter Lely, de origem holandesa.
(Peter Lely: “Duas Senhoras da Família Lake”; Tate Gallery, Londres.)
balho que elas deixariam o estado em trato não entre governantes e governa­
3ue se encontram na natureza, tornan- dos, mas entre homens igualmente li­
o-se propriedades. vres. O pacto social não criaria nenhum
Vivendo em perfeita liberdade e igual­ direito novo, que viesse a ser acrescen­
dade no estado natural, o homem, contu­ tado aos direitos naturais. O pacto seria
do, estaria exposto a certos inconve­ apenas um acordo entre indivíduos, reu­
nientes. O principal seria a possível nidos para empregar sua força coletiva
inclinação no sentido de beneficiar-se a na execução das leis naturais, renun­
si próprio ou a seus amigos. Como ciando a executá-las pelas mãos de cada
consequência, o gozo da propriedade e a um. Seu objetivo seria a preservação da
conservação da liberdade e da igualdade vida, da liberdade e da propriedade,
ficariam seriamente ameaçados. bem como reprimir as violações desses
Justamente para evitar a concreti­ direitos naturais. Assim, em oposição às
zação dessas ameaças, o homem teria idéias de Hobbes, Locke acredita que,
abandonado o estado natural e criado a através do pacto social, os homens não
sociedade política, através de um con­ renunciam aos seus próprios direitos

361
OS PENSADORES

naturais, favor do poder dos governantes.


Na sociedade política formada pelo
contrato, as leis aprovadas por mútuo
consentimento de seus membros e apli­
cadas por juizes imparciais manteriam a
harmonia geral entre os homens. O mútuo
consentimento colocaria os indivíduos,
que se incorporam através do pacto, “em
condições de instalar a forma de governo
que julguem conveniente”. Consequente­
mente, o poder dos governantes seria
ourtorgado pelos participantes do pacto
social e, portanto, revogável. Hobbes
achava que a rebelião dos cidadãos con­
tra as autoridades constituídas só se jus­
tifica quando os governantes renunciam
a usar plenamente o poder absoluto do
Estado. Contra essa tese, Locke justifica
o direito de resistência e insurreição,
não pelo desuso, mas pelo abuso do
poder por parte das autoridades. Quan­
do um governante se torna tirano, colo­
ca-se em estado de guerra contra o povo.
Este, se não encontrar qualquer repara­
ção, pode revoltar-se, e esse direito é
uma extensão do direito natural que
cada um teria de punir seu agressor.
Para o homem, a razão de sua participa­
ção no contrato social é evitar o estado
de guerra, e esse contrato é quebrado
quando o governante se coloca contra o
povo. Mediante o pacto social, o direito
legislativo e executivo dos indivíduos
em estado de natureza é transferido para
a sociedade. Esta, devido ao próprio
caráter do contrato social, limita o
poder político. O soberano seria, assim,
o agente e executor da soberania do
povo. Este é que estabelece os poderes
legislativo, executivo e judiciário. Locke
distingue o processo de contrato social —
criador da comunidade — do subse-
qüente processo pelo qual a comunidade
confia poder político a um governo.
Esses processos podem ocorrer ao
mesmo tempo, mas são claramente dis­
tintos; embora contratualmente relacio­
nados entre si, os integrantes do povo
não estão contratualmente submetidos
ao governo. Ê o povo que decide quando
ocorre uma quebra de confiança, pois só
Arguto, modesto, piedoso, prudente e, o homem que confia poder é capaz de
sobretudo, prático. Assim sepoderia dizer quando se abusa do poder.
resumir o perfil psicológico de John Com suas idéias políticas, Locke exer­
Locke, com base nas fontes deixadas ceu a mais profunda influência sobre o
pelos que conviveram com ele. pensamento ocidental. Suas teses encon-

362
LOCKE

Depois da consolidação da monarquia parlamentar inglesa sob o reinado de


Guilherme de Orange e sua esposa Maria, a naçãofoi governada pela rainha
Anne (1665-1714). Os últimos anos da vida de John Locke transcorreram sob o
seu reinado. (Tela de sir Godfrey Kneller. representando a rainha Anne e seu
filho, duque de Gloucester; Galeria Nacional de Retratos, Londres.)

363
OS PENSADORES

tram-se na base das democracias libe­ Francesa. Montesquieu (1689-1755)


rais. Seus Dois Tratados sobre o Gover­ inspirou-se em Locke para formular a
no Civil justificaram a revolução teoria da separação dos três poderes. A
burguesa na Inglaterra. No século mesma influência encontra-se nos pensa­
XVIII, os iluministas franceses foram dores americanos que colaboraram para
buscar em suas obras as principais a declaração da Independência America­
idéias responsáveis pela Revolução na, em 1776.

CRONOLOGIA
1632 — Nasce John Locke, 1660 — Carlos II passa a Londres sua hipótese sobre
em Wrington, no dia 29 de ocupar o trono inglês. a gravitação universal. Leib-
agosto. 1662 — Morre Pascal. niz escreve o Discurso de
1642 - 1646 — Guerra civil 1666 — Dá-se, em Oxford, Metafísica e o Systema
na Inglaterra: puritanos e o primeiro encontro entre o Theologicum.
presbiterianos escoceses futuro conde de Shaftesbury 1688 — Revolução contra
aliam-se contra o rei Carlos e Locke. Jaime II; sobe ao trono Gui­
I; Oliver Cromwell coman­ 1672 — Carlos II concede a lherme de Orange.
da os rebeldes. tolerância religiosa. 1689 — Locke retorna à
1649 — Condenado pelo 1675 — Locke torna-se se­ Inglaterra.
Parlamento, Carlos I é exe­ cretário do Conselho de 1689 - 1690 — São publica­

BRASII
cutado a 30 de janeiro. Plantações e Comércio. dos os Dois Tratados sobre
1651 — Hobbes publica 1681 — Carlos II dissolve o o Governo Civil, de Locke.
sua principal obra: O Levia- Parlamento. 1690 — Locke edita o En­

-
tã. 1683 — Morre o conde de saio sobre o Entendimento

SÃO PAULO
1653 - 1658 — Duração do Shaftesbury. Locke refugia- Humano.
“Protetorado de Cromwell”. se na Holanda. 1702 — Com a morte de
1656 — Locke bacharela-se 1685 — Nasce Bach. Jaime Guilherme de Orange, sobe
em artes. II ascende ao trono inglês. ao trono sua filha Anne.
1658 — Morte de Oliver 1686 — Isaac Newton co­ 1704 — Locke morre a 28

-
E INDUSTRIAL
Cromwell. munica à Royal Society de de outubro.

BIBLIOGRAFIA
Cranston, M. VI.: John Locke, a Biography, Londres, 1957.

ABRIL S.A. CULTURAL


MacPherson, C. B.: The Political Theory of Possessive Individualism, Oxford University
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©COPYRIGHT MUNDIAL, 1973

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Mandelbaum, M.: Locke’s Realism in Philosophy, Science and Sense Perception, Baltimore,
1964.

364
NEWTON
OS PENSADORES

saac Newton não foi propriamente Matemático, físico e teólogo


I um filósofo. Não formulou uma
teoria do ser, nem uma ética, nem
uma completa teoria do conhecimento.
Newton nasceu em Woolsthorpe, Lin-
colnshire, Inglaterra, no Natal do ano
Não é possível, porém, compreender a em que faleceu Galileu: 1642. Aos 18
maior parte da reflexão filosófica do sé­ anos de idade, ingressou na Universi­
culo XVIII e seus desenvolvimentos dade de Cambridge, onde trabalhou
posteriores, sem se conhecerem sua físi­ durante toda a vida. Em 1665 era
ca e sua mecânica celeste. Sua principal bacharel, em 1668 doutorou-se, e um
obra, Princípios Matemáticos aa Filoso­ ano depois tornava-se catedrático, com
fia Natural, constitui — no dizer de apenas 26 anos de idade.
Wilhelm Windelband — “um fundamento Suas principais contribuições para a
duradouro das ciências naturais, válido história da ciência foram iniciadas em
para o futuro, com toda perfeição possí­ 1666, quando a grande peste que asso­
vel de uma ciência particular”. Os Prin­ lou a Grã-Bretanna obrigou a Universi­
cípios sintetizam, íntima e completa­ dade de Cambridge a fechar as portas e
mente, as duas grandes correntes fez Newton refugiar-se em sua casa, na
metodológicas da ciência moderna — a zona rural de Woolsthorpe. Nesse perío­
matematizaçâo e a experiência —, unin­ do, Newton desenvolveu o teorema do
do e superando o empirismo de Francis binômio, que ficaria conhecido pelo seu
Bacon (1561-1626) e o racionalismo de nome, e o metódo matemático das flu-
Descartes (1596-1650). xões, que originaria o cálculo diferen­
Galileu (1564-1642) e Kepler cial e integrado, considerado a mais
(1571-1670) — segundo Ernst Cassirer importante inovação da história da
— já tinham concebido a idéia de lei matemática, desde os gregos antigos. O
natural em toda a sua amplitude e método das fluxões considera cada gran­
profundidade, e em sua significação deza finita como engendrada por um
metodológica, mas só a aplicaram corre­ movimento ou fluxo contínuo, tornando
tamente em alguns poucos fenômenos possível calcular áreas limitadas, total
particulares, como o movimento dos cor­ ou parcialmente, por curvas, bem como
pos em queda livre ou as órbitas dos pla­ os volumes das figuras sólidas. A essas
netas. Faltava mostrar que a legalidade duas contribuições seguiram-se duas
rigorosa, encontrada nesses casos parti­ outras, concebidas também, nos aspec­
culares, poderia ser estendida para todo tos essenciais, no retiro forçado em
o universo. A obra de Newton cumpriu Woolsthorpe: uma teoria sobre a natu­
essa tarefa e o século XVIII com­ reza da luz e as primeiras idéias sobre a
preendeu e admirou o sentido profundo atração gravitacionaL A primeira mos­
de seu trabalho, vendo nele a comprova­ tra que a luz branca é constituída pela
ção do caminho a ser seguido pelas ciên­ união das chamadas sete cores funda­
cias da natureza. Os pensadores do sécu­ mentais do espectro. A segunda explica
lo XVIII veneraram suas qualidades de ?rue a Lua mantém-se em órbita graças à
grande investigador experimental e a orça gravitacionaL
aliança definitiva que estabeleceu entre Essas descobertas, contudo, tiveram
a experimentação e a matematizaçâo. que esperar aproximadamente vinte
Kant (1724-1804), o divisor de águas anos para serem desenvolvidas e conca-
entre o pensamento moderno e o contem­ tenadas num todo sistemático, que veio
porâneo, ao propor-se a analisar a estru­ à luz em 1687, sob o título de Princípios
tura e os limites do conhecimento, Matemáticos da Filosofia Natural.
tomou a física e a mecânica celeste ela­ Dois anos após a publicação dos Prin­
boradas por Newton, como sendo a pró­ cípios, Newton foi eleito membro do Par­
pria ciência. lamento como representante da Univer­
sidade de Gambridge, cargo que
deixaria, em 1690, com a dissolução do
Na página anterior: retrato de Parlamento. Em 1701 seria novamente
Isaac Newton, óleo de G. Kneller; eleito, mas sua atuação nos negócios
Galeria Nac. de Retratos, Londres. políticos não teve qualquer relevo. Ocu-

366
NEWTON

No Trinity College da Universidade de Cambridge, Isaac Newton estudou e


tomou-se catedrático aos 26 anos de idade, sucedendo a Isaac Barrow. Este
foi escolhido para ocupar o cargo de reitor e, durante seu mandato, encarregou
o cientista e arquiteto Sir Christopher Wren (1632-1723) de projetar e
construir uma nova biblioteca para o Trinity College (foto acima).

pações mais importantes foram a dire­ ambos chegaram às mesmas descobertas


ção da Casa da Moeda, em 1695, e a independentemente.
presidência da Royal Society, desde Nos últimos vinte anos de sua vida,
1703 até 1727, data de sua morte. A Newton não fez mais qualquer contribui­
Royal Society desempenhou papel extre­ ção significativa para a história das
mamente significativo na vida científica ciências. Dedicou-se a assuntos teológi­
inglesa, congregando todos os elementos cos, chegando mesmo a considerá-los,
de relevo nas ciências da época. na opinião de muitos historiadores, mais
Em 1704, Newton publicou sua Ópti­ importantes do que a física e a matemá­
ca, na qual se encontram suas desco­ tica. Entre os escritos dessa época desta-
bertas experimentais nesse campo e uma cam-se as Observações sobre as Profe­
teoria sobre a natureza da luz. A luz, cias de Daniel e do Apocalipse de São
para Newton, seria constituída por cor­ João, publicadas em 17 33.
púsculos emanados pelos corpos lumino­
sos. Nessa mesma época ocorreram as As bases da física
controvérsias sobre a criação do cálculo
infinitesimal, opondo Newton e Leibniz A despeito da importância dada por
(1646-1716). Muito posteriormente Newton aos assuntos de ordem religiosa,
ficou comprovado — apesar de Newton seu significado dentro da história do
acusar Leibniz de plagiário — que pensamento situa-se no terreno da mais

367
OS PENSADORES

iW/f t /Já..
menos que seja obrigado a mudar seu es­
tado por forças impressas nele”. A
segunda lei estabelece que “a mudança
PHILOSOPHIE do movimento é proporcional à força
motriz impressa e se faz segundo a linha
reta pela qual se imprime essa força”.
NATURALIS Finalmente, a terceira lei diz que “a uma
ação sempre se opõe uma reação igual,
PRINCIPIA ou seja, as ações de dois corpos um
sobre o outro são sempre iguais e se diri­
gem a partes contrárias”.
MATHEMATICA Na base dessas leis (e de outras
proposições gerais do primeiro e segun­
do livros dos Princípios), Newton pro­
Autore J S. NEJPTO N, Thjv. Cdl. C^jb. Soc. Matbcícos pôs-se demonstrar todos os demais fenô­
Profeflorc Lxctfuato, 8c Socictatis Rcgalò Soda li.
menos. No terceiro livro dos Princípios
encontra-se um exemplo disso, quando o
IMPRIMATUR autor expõe seu sistema do mundo,
S. P E P Y S, *rg. &c. PROSES. centralizado na lei da gravitaçào univer­
5. 1686. sal: a matéria atrai a matéria na razão
direta das massas e no universo do qua­
drado das distâncias. No terceiro livro
L 0 N D I NI,
dos Princípios, Newton afirma que
hillu Sotictatir Regi.e ac Typis Jojcfbi Sire.ttcr. Proliant Vcna- “pelas proposições matematicamente
FABBRI

, ii^apud Sjm. Smilbid inli-nu Principis U jlli.r ii> Orinirci ia demonstradas nos livros anteriores, de­
j 1^-/J«//,aliofq;noiinuIlo5Bi!>!io|K>|js. d«»MDCLXXX\ li.
rivam-se dos fenômenos celestes as for­
ças de gravidade pelas quais os corpos
tendem para o Sol e para os vários
Frontispício da primeira edição planetas”.
(Londres, 1687) da principal obra de Newton não fica somente no exemplo e
Newton. Nela se encontram as bases vai muito além, expressando sua fé
metodológicas e os elementos numa concepção mecânica de toda a
fundamentais dafísica moderna. natureza: “Oxalá pudéssemos também
derivar dos princípios mecânicos os ou­
rigorosa matemática e da ciência da tros fenômenos da natureza, por meio do
natureza. Suas mais importantes contri­ mesmo gênero de argumentos, porque
buições nesses terrenos foram a criação muitas razões me levam a suspeitar que
do cálculo infmitesimal, o desenvolvi­ todos esses fenômenos podem depender
mento e sistematizaçào da mecânica, a de certas forças pelas quais as partí­
teoria da gravitaçào universal e o desen­ culas dos corpos, por causas ainda
volvimento das leis de reflexão e refra- desconhecidas, ou se impelem mutua­
ção luminosas, além da teoria sobre a mente, juntando-se segundo figuras re­
natureza corpuscular da luz. gulares, ou são repelidas e retrocedem
Os Princípios Matemáticos da Filoso­ umas em relação as outras. Ignorando
fia Natural constituem a primeira gran­ essas forças, os filósofos tentaram em
de exposição e a mais completa sistema- vão até agora a pesquisa da natureza.
tização da física moderna, sintetizando Espero, no entanto, que os princípios
num todo único a mecânica de Galileu e aqui estabelecidos tragam alguma luz
a astronomia de Kepler, e fornecendo os sobre esse ponto ou sobre algum método
princípios e a metodologia da pesquisa melhor de filosofar”.
cientifica da natureza. Além de formular uma concepção de
O núcleo central dos Princípios são as ciência inteiramente mecanicista, que
três leis fundamentais da mecânica. A permanecería incontestável por muito
primeira afirma que “todo corpo perma­ tempo, os textos iniciais dos Princípios
nece em seu estado de repouso, ou de contêm a essência da metodologia new-
movimento uniforme em linha reta, a toniana, nos seus aspectos matemáticos.

368
NEWTON

THE MANSELL COLLECTION

Numafeira de Woolsthorpe, sua cidade natal, Newton comprou um pequeno


prisma de vidro, com o qual descobriu ofenômeno da decomposição da luz
branca nas sete cores do espectro luminoso. Além dessa descoberta, Newtonfez
inúmeras outras, que se encontram em sua óptica. A qravura acima, a partir de
uma tela de Adam Houston, mostra Newton descobrindo o espectro luminoso.

369
OS PENSADORES

Os Princípios estruturam-se segundo a


ordem das idéias em geometria, isto é,
definições, axiomas, teoremas, etc. Por
outro lado, Newton desenvolveu o cál­
culo infinitesimal, como instrumento de
medida e de descoberta dos fenômenos
fisicos.
O segundo aspecto da metodologia
newtoniana consiste na análise indutiva,
definida claramente numa passagem da
Óptica que afirma que o método cientí­
fico consiste em “fazer experimentos e
observações, e em derivar conclusões ge­
rais das mesmas mediante indução, e em
não admitir objeções contra as conclu­
sões, exceto as que procedem de experi­
mentos ou de certas outras verdades”. À
análise indutiva seguir-se-ia a síntese,
3ue consistiría em “assumir as causas
escobertas e os princípios estabele­
cidos e, por seu intermédio, explicar os
fenômenos que procedem deles e de­
monstrar as explicações”.
Papel especialmente importante para
a história da filosofia é desempenhado
pelas noções de espaço e tempo absolu­
tos, tal como Newton as formulou nos
Princípios. Essas noções não apresentam
apenas um aspecto físico, tendo conse­
quências de ordem metafísica. A própria
origem do conceito de espaço absoluto
em Newton poderia ser encontrada —
como afirma J. J. C. Sniart — nos traba­
lhos de Henry More (1614-1687), poeta
e filósofo platônico, e, através deste, nas
doutrinas cabalísticas.
No dizer do próprio Newton, “o espa­
ço absoluto permanece constantemente
igual e imóvel, em virtude de sua nature­
za, e sem relação alguma com nenhum
objeto exterior; o espaço relativo, ao
contrário, é uma medida ou uma parte
móvel do primeiro, que nossos sentidos
assinalam graças à sua situação em
relação a outros corpos e que, geral­
mente, se confunde com o próprio espaço
imóvel, por erro . . .”
Segundo alguns autores, a concepção
FAB BRI

do espaço absoluto formulada por New­


ton não apresenta relevância do ponto de
vista da sua teoria mecânica propria­
Descobridor do cometa que leva seu mente dita. Não obstante, é possível
nome, Halley incentivou Newton estabelecer uma certa correlação entre a
a desenvolver as idéias que noção de espaço absoluto e a de sistema
resultariam na publicação dos inercial. Este último representou uma
Princípios. (Bibl. Boldleian, Oxford.) tentativa de Newton para solucionar o

370
NEWTON

FABB3I
Ainda em vida, Newton foi recoberto de honras e glória,
reverenciado em toda a Europa e apontado como exemplo de grandeza “moderna”,
contraposta à grandeza “antiga” de Aristóteles. Seu epitáfio na Abadia de
Westminster afirma: “É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha
existido”. (Gravura de Hollar: Westminster Hall: Museu Britânico, Londres.)
seguinte problema: se a aceleração de sistema. Essas dificuldades de ordem ló­
um corpo estiver na dependência do sis­ gica, contudo, não chegam a obscurecer
tema ae referências utilizado, tem-se, o extraordinário valor operacional das
para cada sistema, um valor de acelera­ leis newtonianas.
ção. Consequentemente, pela segunda lei A teoria newtoniana do tempo abso­
da mecânica newtoniana, obtêm-se dife­ luto liga-se à do espaço absoluto. Tam­
rentes valores para a força que produziu bém nesse caso, o conceito é tomado
essa aceleração. Lo^o, a questão se colo­ sobretudo como ferramenta operacional.
ca em termos da existência de um siste­ Para Newton, “o tempo absoluto, verda­
ma de referências em que sejam medidos deiro e matemático, por si mesmo e por
os “'verdadeiros” valores da aceleração. sua própria natureza, flui uniforme­
Para tanto, é necessário supor um siste­ mente sem relação com nada externo;
ma de referências absoluto, ou seja, um por isso mesmo é chamado duração”. O
sistema que forneça correspondência fato de não manter “relação com nada
real para a aceleração medida. Essa externo” confere ao tempo absoluto
correspondência seria medida por uma caráter de imutabilidade. Em outras
força, por exemplo, a ação de uma mola palavras, as coisas mudam, mas não
ou a atração gravitacionaL O sistema muda o tempo. Isso implica que as
inercial normalmente utilizado neste úl­ mudanças ocorrem no tempo e este em
timo caso está em repouso em relação às nada contribui para que tal aconteça.
estrelas fixas. Essa a razão de não se Assim, o tempo absoluto não é tomado
poder utilizar a Terra como sistema por Newton como uma propriedade de
mercial, pois está acelerada em relação cada coisa considerada particularmente,
ao Sol. Contudo, sendo a Terra o habitat mas na medida em cpie se relaciona com
de qualquer observador, as medidas por todas as outras coisas, na medida em
ele mesmo realizadas evidenciarão, em que estas durem.
alguns casos, erros devidos ao movi­ Apesar da configuração metafísica
mento relativo do próprio observador. que as teorias do espaço e do tempo
Nesse caso, ou se desprezam os erros absolutos possam conferir ao pensa­
(desde que sua magnitude não seja rele­ mento de Newton, deve-se sublinhar que,
vante), ou se atribuem a certas “forças na investigação dos fenômenos físicos, o
ficticias” esses erros, isto é, as acelera­ autor dos Princípios repele qualquer ine-
ções oriundas da própria aceleração do rência de ordem metafísica ou religiosa.

371
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1642 — A 8 de janeiro, 1672 — Newton é eleito no Parlamento como depu­
morre Galileu. Em Wools membro da Royal Society. tado pela Universidade de
thorpe, a 25 de dezembro, 1673 — Publicação do Ho- Cambridge.
nasce Isaac Newton. rologium Oscillatorium, do 1701 — Funda-se, em New
1655 — Morre o filósofo e físico holandês Christiaan Haven, a Universidade de
matemático Pierre Gassen- Huygens. Yale. Nasce Celsius, criador
di. 1675 — Newton envia à da escala termométrica que
1661 — Newton matricula Royal Society suas anota leva seu nome.
se no Trinity College, em ções sobre a reflexão e as 1703 — Newton é eleito
Cambridge. cores da luz. presidente da Royal Society.
1665 — Obtém o grau de 1684 — Leibniz publica 1704 — Publica a óptica.
Bachelor of Arts. Nova Methodus pro Maxi- 1705 — A rainha Ana da
1668 — Torna-se Master of mis et Minimis. Inglaterra outorga-lhe o tí­
Arts. Nasce Giambattista 1685 — São apresentados à tulo de cavaleiro.
Vico. Royal Society os dois pri­ 1707 — Escócia e Inglater­
1669 — É autorizada a re­ meiros livros dos Philoso- ra unem-se sob o nome de
presentação de Tartufo, de phiae Naturalis Principia Grã-Bretanha.
Molière. Morre Rembrandt. Mathematica, de Newton. 1716 — Morre Leibniz.
1670 — Publicação do 1687 — Primeira edição 1724 — Nasce Kant.
Tractatus Theologico-Politi- dos Principia, de Newton. 1727 — A 20 de março,
cus, de Espinosa. 1689 — Newton ingressa morre Newton.
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372
OS PENSADORES
FABBRI

Para muitos historiadores, Leibniz representou na filosofia alemã o mesmo


papel de Bach na história da música: a síntese ae todas as tendências.
Leibniz nasceu em Leipzig, em cuja igreja de Sto. Tomás compôs Bach algumas
de suas mais importantes obras, (igreja de Sto. Tomás; Arquivo Bach, Leipzig.)
(Pág. ant.: retrato de Leibniz, por A. Scheitz; Herzog August Bibliothek.)

a opinião de Wilhelm Dilthey mungado da comunidade judaica de

N (1833-1911), se a missão suprema


da filosofia consiste em elevar a
Amsterdam e condenado a viver humil­
demente, Leibniz teria deixado de publi­
cultura de uma época à consciência decar
si os melhores trabalhos que escreveu,
mesma, Leibniz foi, sem dúvida, quem porque não eram apropriados para con­
mais completamente realizou tal mis­ seguir popularidade; só trouxe à luz
são. Inventor do cálculo diferencial inde- algumas obras destinadas a conquistar
Íiendente de Newton, um dos primeiros a aprovação de príncipes e princesas”.
úndamentar o princípio de conservação
da energia, o primeiro a reconhecer no Um homem de muitas faces
jogo das representações do subcons­
ciente o princípio da explicação psicoló­ Gottfried Wilhelm Leibniz nasceu em
gica, um dos pioneiros nos domínios da Leipzig, a l.° de julho de 1646, filho de
investigação histórica e filológica, Leib­ um professor de filosofia moral. Desde
niz teria sido o “espírito mais universal muito cedo, teve contato, na biblioteca
que os povos modernos produziram paterna, com filósofos e escritores anti­
antes de Goethe”. Ainda segundo Dil­ gos, como Platão (428-347 a.C.), Aris­
they, a atribulada vida política de Leib­ tóteles (384-322 a.C.) e Virgílio (c.
niz e suas tentativas de conciliação entre 70-19 a.C.), e com a filosofia e a teolo­
os diferentes credos religiosos da época gia escolásticas. Aos quinze anos come­
subordinavam-se ao seu grande objetivo çou a ler Bacon (1561-1626), Hobbes
de uma cultura humana que abrangesse (1588-1679), Galileu (1564-1642) e
todas as nações. Descartes (1596-1650), passando a de­
Bertrand Russell (1872-1970) pinta dicar-se às matemáticas. Ainda aluno da
de Leibniz, um retrato diferente. Para Universidade de Leipzig, escreveu, em
Russell, Leibniz foi um dos maiores 1663, um trabalho sobre o princípio de
intelectos de todos os tempos, “mas individuação; depois foi para lena, a fim
como criatura humana não foi admirá­ de seguir os cursos do matemático
vel”. Era diligente, econômico, come­ Ehrara Wigel. Desde essa época, Leib­
dido e honrado, mas “inteiramente desti­ niz se preocupou em vincular a filosofia
tuído das virtudes filosóficas superiores, às matemáticas, escrevendo uma Disser­
tão notáveis em seu contemporâneo tação sobre a Arte Combinatória. Nesse
Espinosa (1632-1677). Enquanto Espi­ trabalho, procurou encontrar para a filo­
nosa jamais fez qualquer concessão no sofia leis tão certas quanto as matemá­
terreno das idéias e por isso foi exco­ ticas e esboçou as premissas do cálculo

374
LEIBNIZ

diferencial, que inventaria ao mesmo


tempo que Newton. Por outro lado, no
estudo da lógica aristotélica, Leibniz
encontrou os elementos que o levaram à
idéia de uma análise combinatória filo­
sófica, vislumbrando a possibilidade de
criar um alfabeto dos pensamentos
humanos, com o qual tudo poderia ser
descoberto.
Nos anos seguintes, doutorou-se em
direito na Universidade de Altdorf e, em
Nuremberg, filiou-se à Sociedade Rosa-
Cruz. O ingresso nessa Sociedade valeu-
lhe uma pensão e, ao que tudo indica,
permitiu que ele se iniciasse na vida
política.
A partir de então, a vida de Leibniz,
segundo o historiador Wilhelm Windel-
band, apresenta muitas semelhanças
com a de Bacon: Leibniz sabia mover-se
agilmente em meio às intrigas da corte a
fim de realizar seus grandes planos,
sendo dotado também daquela “ardente
ambição que levara Bacon à ruma”.
Em 1667, Leibniz dedicou ao prínci-
pe-eleitor de Mogúncia um trabalho no
qual mostrava a necessidade de uma
filosofia e uma aritmética do direito e
uma tabela de correspondência jurídica.
Por causa desse trabalho, foi convidado
fiara fazer a revisão do “corpus juris
atini”.
Em 1670, foi nomeado conselheiro da
Alta Corte de Justiça de Mogúncia. Com
esse título, Leibniz foi encarregado de
uma missão em Paris, em 1672. Preten­
dia convencer o rei Luís XIV a conquis­
tar o Egito, aniquilando, assim, a Tur­
quia e protegendo a Europa das invasões
“bárbaras”. Esperava, desse modo, des­
viar as atenções do rei e evitar que ele
utilizasse sua potência militar contra a
Alemanha. Seu projeto foi rejeitado, mas
os três anos de estada em Paris não lhe
foram inúteis. Entrou em contato com al­
guns dos mais conhecidos intelectuais
da época: Amauld (1612-1694), Huy-
gens (1629-1695). Em 1676, Leibniz
FABBRI

descobriu o cálculo diferencial, situan-


do-se entre os maiores matemáticos da
época.
Em Nuremberg, Leibniz ingressou na Fora, no entanto, precedido por New­
sociedade secreta Rosa-Cruz, ton, que, desde 1665, já inventara, em­
dedicada às ciências ocultas bora sob ponto de vista diferente, um
e à alquimia. (Fachada de Fembohaus, novo método de cálculo, o método das
Nuremberg, começo do século XVII.) fluxões. Em Newton, as variações das

375
OS PENSADORES

funções sào comparadas ao movimento ções sobre o Princípio da Vida, Sobre a


dos corpos, sendo, portanto, a idéia de Sabedoria, Sobre a Liberdade e Corres­
velocidade que fundamentava seu cálcu­ pondência com o Padre Bosses.
lo. Leibniz, ao contrário, parte de uma Parte considerável da obra de Leibniz
colocação metafísica, introduzindo a é constituída por escritos de circuns­
noção de quantidades infinitamente pe­ tância, com os quais — segundo muitos
quenas, o que o leva a empregar o historiadores — tentava apenas obter
algoritmo. favores dos governantes, fazendo todas
Em 1676, Leibniz encontra-se em as conciliações possíveis. Dilthey, ao
Amsterdam com Espinosa, com quem contrário, considera que Leibniz perse­
discute problemas metafísicos. No guia um sincero ideal de síntese de todos
mesmo ano torna-se bibliotecário-chefe os conhecimentos e das diferentes confis­
em Hanôver, cidade na qual passaria os sões religiosas de seu tempo. Outra
restantes quarenta anos de sua vida. parte (a volumosíssima correspondência
Saiu de Hanôver apenas para percorrer, e os trabalhos publicados somente após
durante três anos, a Alemanha e a Itália, sua morte) revela — segundo Russell e
realizando pesquisas em bibliotecas e outros — um pensador bastante diferente
arquivos destinadas a fundamentar suas do Leibniz público. Acrescentando-se a
missões diplomáticas. essa dupla face de seus escritos o fato de
Em 1711, viajou para a Rússia a fim que muitos deles sequer foram concluí­
de propor ao czar Pedro, o Grande, um dos, torna-se bastante difícil uma inter­
plano de organização civil e moral para pretação da filosofia leibniziana que não
o país. Em seguida, esteve em Viena, dê margem a dúvidas e não suscite
onde conheceu o príncipe Eugênio de polêmica.
Savóia, ao qual dedicaria a Monadolo- De qualquer modo — e embora Leibniz
gia. Nessa época, realizou seus princi­ tenha criado um amplo sistema de idéias
pais trabalhos filosóficos. dotado de "múltiplas entradas” —, po­
De volta a Hanôver, Leibniz encon­ dem-se tomar para ponto de partida da
trou diminuído seu prestígio, com a compreensão de sua filosofia dois temas
morte de sua protetora, a princesa Sofia, provenientes de fontes distintas: um da
apesar de ter sido um dos maiores filosofia de Descartes, outro de Aristó­
responsáveis para que Hanôver se trans­ teles e da escolástica medieval.
formasse em eleitorado e para que fosse Descartes forneceu-lhe o ideal de uma
criada a Academia de Ciências de Ber­ explicação matemática do mundo; a
lim. Relativamente esquecido e isolado ftartir dessa idéia, Leibniz pretendia
dos assuntos públicos, Leibniz veio a ançar as bases de uma combinatória
falecer a 14 de novembro de 1716. universal, espécie de cálculo filosófico
3ue lhe permitiría encontrar o verda-
As raízes do saber eiro conhecimento e desvendar a natu­
reza das coisas. De Aristóteles e da
Apesar de sua intensa e agitada vida escolástica, Leibniz conservou a concep­
pública, Leibniz deixou uma obra exten­ ção segundo a qual o universo está orga­
sa, em que trata de quase todos os nizado de maneira teleológica, ou seja,
assuntos políticos, científicos e filosó­ tudo aquilo que acontece, acontece para
ficos de seu tempo. Dentre seus escritos cumprir determinados fins.
destacam-se: Sobre a Arte Combina- As duas doutrinas foram sintetizadas
tória, Monadologia, Discurso de Metafí­ pela filosofia de Leibniz, aparecendo
sica, Novos Ensaios sobre o Entendi­ unificadas na concepção de Deus. Para
mento Humano, Sobre a Origem Radical Leibniz, a vontade do Criador (na qual
das Coisas, O que é Idéia, Cálculo Dife­ se fundamenta o finalismo) submete-se
rencial e Integral, Característica Univer­ ao Seu entendimento (racionalismo);
sal, Correspondência com Arnauld, Cor­ Deus não pode romper Sua própria lógi­
respondência com Clarke, Sobre o ca e agir sem razões, pois estas consti­
Verdadeiro Método em Filosofia e Teo­ tuem Sua natureza imutável. Conse­
logia, Sobre as Noções de Direito e de quentemente, o mundo criado por Deus
Justiça, Ensaio de Teodicéia, Considera­ estaria impregnado de racionalidade,

376
LEIBNIZ

Muitosfilósofos do século XVIII, sobretudo os iluministasfranceses, não


pouparam criticas a Leibniz, em quem viam o renascimento de concepções
medievais. Voltairefoi o mais espirituoso inimigo do otimismo leibniziano,
caricaturando Leibniz na figura do dr. Pangloss, em sua novela Cândido.
(Casa de Leibniz em Hanôver; Niedersãchsische Landesbibliothek, Hanôver.)

377
OS PENSADORES

Para Leibniz, além da causa eficiente


que produz as coisas segundo o princí­
pio de razão (não contradição e suficiên­
cia), intervém também nessa produção a
causa final. A primeira é de tipo mate­
mático e mecânico, a segunda é dinâ­
mica e moral. O fim da produção das
coisas é a vontade justa, boa e perfeita
de Deus, c|ue deseja essa produção. O
finalismo e que sustenta o princípio do
melhor: Deus calcula vários mundos
possíveis, mas faz existir o melhor des­
ses mundos. O critério do melhor é
sobretudo moral; com ele Leibniz pre­
tende demonstrar que o mal é a simples
sombra necessária do bem. O finalismo
sustenta, desse modo, o otimismo leibni-
ziano do melhor dos mundos possíveis.
Além dos princípios de razão (não-
contradição e suficiência) e do princípio
do melhor, que dão conta da produção
FABBRI

das coisas, Leibniz faz com que interve-


nham também os princípios da continui­
A um dos maiores “condottieri” de sua dade e dos indiscerníveis.
época, o príncipe Eugênio de Savóia O princípio da continuidade afirma
(acima), o filósofo Leibniz dedicou a que a natureza não dá saltos; assim
Monadologia, uma de suas obras mais como não há vazios no espaço, assim
conhecidas. (Galeria Sabauda, Turim.) também não existem descontinuidades
na hierarquia dos seres. Leibniz afirma,
cumprindo objetivos propostos pela por exemplo, que as plantas não passam
mente divina. de animais imperfeitos.
Essa síntese entre o racionalismo car- O princípio dos indiscerníveis daria
tesiano e o finalismo aristotélico apre­ conta da multiplicidade e individua­
senta como núcleo uma série de princí­ lidade das coisas existentes. Leibniz
pios de conhecimento, dos quais se afirma que não há no universo dois seres
poderíam deduzir uma concepção do idênticos e que sua diferença não é
mundo e uma ética, dotada inclusive de numérica nem espacial ou temporal, mas
implicações políticas. intrínseca, isto é, cada ser é em si dife­
O primeiro desses princípios é o de rente de qualquer outro. A diferença é de
razão. O princípio de razão consiste em essência e manifesta-se no plano visível
submeter toda e qualquer explicação ou das próprias coisas.
demonstração a duas exigências. A pri­ Os princípios do melhor, da não-con­
meira funda-se no caráter não-contradi- tradição, da razão suficiente, da conti­
tório daquilo que é explicado ou de­ nuidade e dos indiscerníveis são conside­
monstrado; é a razão necessária ou rados, por Leibniz, constitutivos da
princípio de não-contradição. A segunda própria razão humana e, portanto, ina­
exigência consiste em que, além de tos, embora apenas virtualmente. Nos
explicado ou demonstrado não ser con­ Novos Ensaios sobre o Entendimento
traditório (e sendo, portanto, possível Humano, Leibniz rejeita a teoria empi-
sua existência), a coisa em questão tam­ rista de Locke (1632-1704), segundo a
bém existe realmente; é a razão sufi­ qual a origem das idéias encontra-se na
ciente. O princípio de razão afirma, por­ experiência, apenas uma “tabula rasa”,
tanto, que uma coisa só pode existir uma folha de papel em branco. Para
necessariamente se, além de não ser Leibniz, ao contrario, a experiência só
contraditória, houver uma causa que a fornece a ocasião para o conhecimento
faça existir. dos princípios inatos ao intelecto: “Não

378
LEIBNIZ

A maior parte das obras filosóficas de Leibnizforam escritas nos últimos


quinze anos de sua viaa, quando cessaram suas atividades políticas e
diplomáticas. As últimas missões de Leibniz levaram-no a visitar o czar Pedro,
o Grande, e o imperador da Áustria. (Gravura do século XVIII, de Jarischa,
representando o Prater de Viena; Graphische Sammlung Albertine, Viena.)
se deve imaginar que se possa ler na materiais, por sua resistência e impene-
alma, sem esforço e sem pesquisa, essas trabilidade, revelam-se não como exten­
eternas leis da razão, como o édito do são mas como forças; por outro lado, a
pretor é lido em seu caderno; mas é bas­ experiência indica que o que se conserva
tante que as descubramos em nós por um num ciclo de movimento não é — como
esforço de atenção, uma vez que as oca­ pensava Descartes — a quantidade de
siões são fornecidas pelos sentidos”. Os movimento, mas a quantidade de força
empiristas teriam razão ao afirmar que viva”. A partir da noção de matéria
as idéias surgem do contato com o como essencialmente atividade, Leibniz
mundo sensível, mas errariam ao esque­ chega à idéia de que o universo é com­
cer o papel do espírito. Por isso, Leibniz posto por unidades de força, as môna­
completa a fórmula de Locke — “Nada das, noção fundamental de sua metafí­
há no intelecto que não tenha passado sica. Essa noção, contudo, não se esgota
primeiro pelos sentidos” — com o aden­ na adição do atributo força ao conceito
do “a não ser o próprio intelecto”. de matéria, formulado por Descartes.
Leibniz chega também à noção de môna-
As mônadas da mediante a experiência interior que
cada indivíduo tem de si mesmo e que o
Os princípios do conhecimento for­ revela como uma substância ao mesmo
mulados por Leibniz levaram-no a uma tempo una e indivisível.
concepção do mundo oposta à carte- As notas que caracterizam as môna­
siana. Enquanto Descartes formula uma das leibnizianas são a percepção, a
concepção geométrica e mecânica dos apercepção, a apetição e a expressão.
corpos, Leibniz constrói uma concepção Pela percepção as mônadas representam
dinâmica. Nesse sentido, explica os as coisas do universo; cada uma de per
seres não como máquinas que se movem, si espelha o universo todo. A apercepção
mas como forças vivas: “Os corpos é a capacidade que a mônada espiritual

379
OS PENSADORES

FABHHI

Leibniz viveu no período da história alemã iniciado pela Paz de Vestfália


(1648), que assinalou a vitória nominal da França sobre a Áustria e
reconheceu o crescente poder da Prússia. A Alemanha, no entanto, continuou
dividida entre a Prússia, protestante, e a Áustria, católica. (Aquarela de
1709: Dresden. Parada na Praça do Mercado; Gabinete de Gravuras, Dresden.)

tem de auto-representar-se, isto é, de mentos correspondem certas “percep­


refletir; a mônada é consciência. A ape- ções” ou pensamentos mais ou menos
tição consiste na tendência de cada mô­ confusos da alma. Assim, a alma tam­
nada de fugir da dor e desejar o prazer, bém tem algum pensamento de todos os
passando de uma percepção para outra. movimentos do universo. “É verdade”,
Finalmente, as mônadas, não tendo diz Leibniz, “que não nos apercebemos
“portas nem janelas”, não recebem seus distintamente de todos os movimentos
conhecimentos de fora, mas têm o poder de nosso corpo, como por exemplo o da
interno de exprimir o resto do universo, linfa (...), mas é preciso que eu tenha
a partir de si mesmas; a mônada é um alguma percepção do movimento de
ponto de vista. cada vaga de um rio, a fim de poder me
Cada representação por parte das mô­ aperceber daquilo que resulta de seu
nadas é um reflexo obscuro, jamais conjunto, isto é, esse grande ruído que se
havendo consciência clara de todas as escuta perto do mar.”
impressões. Isso se deve ao fato de que o A percepção consciente (apercepção)
universo é múltiplo e infinito, enquanto resulta do conjunto das “pequenas per­
que toda substância, isto é, toda môna- cepções”, como o ruído do choque de
aa, com exceção de Deus, é necessaria­ duas gotas de água, que se deve ouvir
mente finita. Portanto, não é possível mesmo sem se ter consciência. Isso
“que nossa alma (mônada superior) explicaria a conservação das lembran­
possa atingir tudo em particular”. O ças, o trabalho da imaginação nos “bas­
corpo humano, para Leibniz, é afetado, tidores da consciência”, assim como a
de alguma forma, pela mudança de realidade dos sonhos, mesmo quando
todos os outros; a todos os seus movi­ esquecidos no estado de vigília. Dessa

380
LEIBNIZ

Leibniz participou ativamente de toda a intricada política da Alemanha,


dividida entre a Prússia e a Áustria; envidou esforços no sentido de uma
unificação política e religiosa e desempenhou papel de conciliador. Uma
das principais cidades dessa época era Weimar, cujo castelo é visto
acima em aquarela do séc. XVIII. (Thüringische Landesbibliothek, Weimar.)

forma, os estados sucessivos da alma cepçôes e desejos) e as “mônadas racio­


estariam ligados uns aos outros e a todo nais”, com consciência e vontade.
o universo.
O inconsciente seria inerente a todas O melhor dos
as substâncias criadas e seus diferentes mundos possíveis
graus seriam paralelos aos graus de per­
feição dessas substâncias; a continui­ O racionalismo leibniziano tende à
dade existente entre os seres nâo anula a constituição de um saber globalizador,
diferença de natureza entre as simples de uma mathesis universalis. Do ponto
mônadas e os espíritos. Leibniz afirma de vista lógico, o sistema de Leibniz
ainda que existem dois tipos de incons­ estrutura-se como um conjunto de múlti­
ciente: o inconsciente de percepção, pró­ plas séries que convergem e se entrecru-
prio das simples mônadas enquanto são zam; cada ponto de uma das séries é
apenas “espelhos do universo”, e o definido, dentro da complexa teia, por
inconsciente de imitação, pertencente seu lugar, sua posição; por conseguinte,
apenas aos espíritos enquanto não são o conjunto todo organiza-se numa topo­
apenas espelhos, mas espelhos dotados logia. A noção de ordem, em Leibniz, as­
de reflexão. A razão dessa diferença sume feição diferente da que possuía em
encontra-se no fato de que as mônadas Descartes: desliga-se da de nexo linear e
nâo possuem o mesmo grau de perfeição: passa a se vincular à noção de “situa­
acima das “mônadas nuas” (corpos bru­ ção” (as situações resultantes das diver­
tos que só têm percepções inconscientes sas séries que se entrecruzam). O siste­
e apetiçôes cegas) existem “mônadas ma todo, assim estruturado, conduz à
sensitivas” (animais dotados de aper- possibilidade da tradução de uma ordem

381
OS PENSADORES

FABBRI

Os pensadores racionalistas do século XVII tomaram o método das matemáticas


como modelo da certeza científica e construíram grandes sistemasfilosóficos.
Leibniz fez mais do que isso: foi, ele próprio, um matemático
e inventou o cálculo diferencial ao mesmo tempo que Newton. (Instrumentos
matemáticos do século XVII; Museu de História da Ciência, Florença.)
em outra. O pluralismo das séries mos operem sozinhos. Assim, Deus teria
convergentes que constituem o universo colocado em cada mônada, no instante
r>ode assim apresentar-se como plura- da criação, todas as suas percepções,
ismo conciliado e harmônico. Em Leib­ criando-as de tal modo que cada uma se
niz, revive o modelo estóico: o universo desenvolve como se estivesse só; seu
é concebido à semelhança de um orga­ desenvolvimento, todavia, corresponde,
nismo pleno, cujas partes convivem a cada instante, exatamente ao de todas
numa harmonia natural e onde tudo é as outras. Graças a essa harmonia prees­
análogo a tudo. tabelecida, os pontos de vista de cada
Para Leibniz, os atos de cada mônada mônada sobre o universo concordariam
foram antecipadamente regulados de entre si. Ao mesmo tempo, Deus escolhe
modo a estarem adequados aos atos de o melhor dos mundos dentre todos aque­
todas as outras; isso constituiria a har­ les que se apresentam como possíveis.
monia preestabelecida. Coloca-se então a questão: como expli­
A doutrina leibniziana da harmonia car a presença do mal no mundo?
preestabelecida sustenta que Deus cria Leinniz tentou responder a esse pro­
as mônadas como se fossem relógios, blema, afirmando inicialmente que o
organiza-os com perfeição de maneira a mal se manifesta de três modos: metafí­
marcarem sempre a mesma hora e dá- sico, físico e moral. O mal metafísico
lhes corda a partir do mesmo instante, seria a fonte do mal moral, e deste
deixando em seguida que seus mecanis­ decorrería o mal físico. O mal metafísico

382
LEIBNIZ

atraso, assim também Deus é a causa da


perfeição da natureza, mas não de seus
defeitos. Ao produzir o mundo tal como
ele é, Deus escolheu o menor dos males,
de tal forma que o mundo comporta o
máximo de bem e o mínimo de mal. Na
própria origem das coisas, diz Leibniz,
exerce-se uma certa matemática divina,
ou mecânica metafísica, responsável
pela determinação do máximo de exis­
tência, tão rigorosa quanto a dos máxi­
mos e mínimos matemáticos ou as leis
do equilíbrio.
O mal físico é entendido por Leibniz
como consequência do mal moral, po­
dendo ser considerado, ao mesmo tempo,
como consequência física da limitação
original e como consequência ética, isto
é, como punição do pecado. Em decor­
rência da harmonia preestabelecida, a
dor física seria expressão da dor metafí­
sica, que a alma experimenta por causa
de sua imperfeição. Segundo Leibniz,
Deus autoriza o sofrimento porque este é
necessário para a produção de um Bem
Superior: “Experimenta-se suficiente­
mente a saúde, sem nunca se ter estado
doente? Não é preciso que um pouco de
Mal torne o Bem sensível, isto é,
Em Paris, Leibniz teve contato com maior?”
Constantijn Huygens, um dos mais A teoria do mal, formulada por Leib­
versáteis intelectuais da Renascença niz, concluiría assim sua tentativa de
na Holanda. (Retrato de Constantijn síntese sistemática de uma filosofia qut
Huygens; Museu de Hofwyck.) concebe o mundo como rigorosamente
racional e como o melhor dos mundos
é a imperfeição inerente à própria essên­ possíveis. Algumas passagens das obras
cia da criatura, pois se ela não fosse do próprio Leibniz, contudo, deixam
imperfeita, seria o próprio Deus. A uma réstia de dúvida sobre seu otimis­
imperfeição metafísica original se defi­ mo: “Pode-se duvidar se o mundo avan­
niría, assim, apenas como uma não-per- ça sempre em perfeição ou se avança e
feição, um nâo-ser, retomando Leibniz a recua por períodos (...) Pode-se pois
concepção neoplatônica e agostiniana. questionar se todas as criaturas avan­
O mal metafísico e a raiz do mal çam sempre, ao menos no final de seus
moral, pois aquilo que é perfeito pode períodos, ou se existem também aquelas
contemplar o Bem, sem possibilidade de que perdem e recuam sempre, ou, enfim,
erro, mas uma substância imperfeita não se existem aquelas que realizam perío­
é capaz de apreender o todo, tem percep­ dos no final dos quais percebem não ter
ções inadequadas e se deixa envolver ganho nem perdido; da mesma forma
pelo confuso. Não se deveria, contudo, que existem linhas que avançam sempre,
responsabilizar o criador pela exis­ como a reta, outras que voltam sem
tência do mal, porque Deus proporciona avançar ou recuar, como a circular, ou­
a todos as mesmas graças, mas cada um tras que voltam e avançam ao mesmo
pode se beneficiar delas de acordo com tempo, como a espiral, outras, final­
sua limitação original. Leibniz afirma mente, que recuam depois de terem
3ue, assim como a correnteza é a causa avançado, ou avançam depois de terem
o movimento do barco, mas não de seu recuado, como as ovais”.

383
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1646 — A l.° de julho, nas­ 1676 — Descobre o cálculo 1705 — Publica as Consi­
ce Gottfried Wilhelm Leib­ dtferencial. Nesse mesmo derações sobre o Princípio
niz, em Leipzig. ano, viqja a Hanôver como de Vida.
1666 — Leibniz recebe, em bibliotecário-chefe. 1710 — Publica Commen-
Altdorf, o título de Doutor 1677 — Morre Espinosa. tatio de Anima Brutorum,
em Direito. 1679 — Morre Thomas De Libertate e Ensaios de
1667 — Filia-se à sociedade Hobbes. Teodicéia.
secreta Rosa-Cruz. 1686 — Leibniz escreve o 1711 — Viqja para a Rús­
1670 — É nomeado conse­ Discurso de Metafísica. sia, com o fito de propor ao
lheiro da Alta Corte do elei­ 1689 — Nasce Montes czar Pedro um plano de or­
torado de Mogúncia. quieu. ganização civil e moral para
1672 — Na qualidade de 1700 — Leibniz funda, em o país.
conselheiro, viqja a Paris Berlim, aquela que se toma­ 1712 — Nasce Rousseau.
com o objetivo de convencer rá a Academia de Ciências 1714 — Surgem A Mona-
o rei Luís XIV a conquistar Prussianas. dologia e Princípios da Na­
o Egito. 1701-1704 — Redige os tureza e da Graça, ambas de
1673 — Viqja para a Ingla­ Novos Ensaios sobre o En­ Leibniz. cz
terra onde conhece Olden- tendimento Humano, que só 1716 — A 14 de novembro, <
a
burg, amigo de Espinosa, e virão a ser publicados em acometido de uma crise de cc
o químico Boyle. 1765. gota, morre Leibniz. I

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c C O P Y R IG H T

384
OS PENSADORES

os séculos XV e XVI, a cultura cesco D’Andrea (1625-1698), Tommaso

N européia foi dominada pelos pa­ Cornelio (1614-1684), Leonardo da


drões de sensibilidade e de pen­ Capua (1617-1695) e outros fundaram a
samento provenientes da Accademia degli Investiganti, copiando
Itália.
Os pintores, escultores e arquitetos o modelo da Accademia dei Cimento,
renascentistas italianos criaram novas fundada em 1657 pelos Mediei em Flo-
formas de expressão visual e de relacio­ rença e que desaparecería em 1667. Um
namento do homem com o espaço e a dos membros da Accademia degli Inves-
natureza circundante; os filólogos huma­ tic/anti, Tommaso Cornelio, foi o respon­
nistas reinterpretaram os textos da Anti­ sável pela introdução das obras de Des­
guidade e trouxeram à tona formas de cartes (1596-1650) na Itália, em 1649;
pensar e conceber as coisas que a Idade outro membro, Giovanni Borelli
Média tinha sepultado ou relegado ao (1608-1679), preocupou-se em demons­
esquecimento; os filósofos da natureza trar a afirmação de Descartes, segundo a
lançaram as bases de um novo conheci­ qual os animais são máquinas. Assim, a
mento do mundo físico. Tudo isso expan- Accademia degli Investiganti difundiu o
diu-se para os outros países europeus e pensamento cartesiano, mantendo o inte­
configurou os primeiros tempos da Idade resse dos italianos pelas novas conquis­
Moderna. tas intelectuais. Posteriormente, Nápo­
Essa primazia intelectual e artística les seria também o centro de difusão da
da Itália, no entanto, cederia lugar, filosofia de John Locke (1632-1704). A
desde meados do século XVI e, sobretu­ primeira figura expressiva dessa in­
do, nos séculos XVII e XVIII a outros fluência foi Antonio Genovesi
centros culturais, sediados principal­ (1712-1769), que tentou harmonizar o
mente na França e na Inglaterra. As empirismo de Locke com a teoria leibni-
razões para essa decadência encontram- ziana das mônadas espirituais.
se, de um lado, na perda do poder econô­ Todos esses pensadores, contudo, não
mico das cidades italianas dedicadas ao foram mais do que pálido reflexo de
comércio internacional e, de outro, no idéias produzidas em outros países, que
triunfo da Contra-Reforma católica e no tinham agora a liderança do pensamento
poder do papado sobre a península. europeu. A Itália dos séculos XVII e
Momentos decisivos nesse sentido foram XVIII estava muito distante da exube­
os anos de 1616 e 1633; no primeiro, a rância intelectual e artística dos tempos
nova ciência determinada pela teoria da Renascença. Paradoxalmente, foi
heliocêntrica de Copérnico (1473-1543) nesse cenário inexpressivo que surgiu,
foi condenada pela Igreja Católica; em no consenso da quase unanimidade dos
1633, o próprio Galileu (1564-1642) foi historiadores, a maior figura da filosofia
censurado e obrigado a retratar-se, por­ italiana: Giovanni Battista Vico.
que suas concepções minavam pela base
toda concepção medieval do mundo Um filósofo ignorado
físico.
A partir de então, a Itália foi conde­ “O senhor Giambattista Vico nasceu
nada a papel inteiramente secundário na em Nápoles no ano de 1670, filho de
história das idéias por mais de dois sécu­ honrados pais, que deixaram muito boa
los. Dentro desse panorama negativo, de fama de si. O pai era de humor alegre, a
ausência de espírito criador nos domí­ mãe, de temperamento muito melancó­
nios da inteligência, manteve-se, contu­ lico; assim, ambos concorreram para a
do, desperto o interesse científico nos natureza deste seu filho.”
seguidores de Galileu e Telésio Com essas palavras Vico inicia sua
(1509-1588), que se centralizaram em Autobiografia, escrita entre 1725 e
Nápoles. Nessa cidade, em 1663, Fran- 1728. Nela encontram-se quase todos os
elementos essenciais para se conhecer a
história do desenvolvimento de suas
Napágina anterior: retrato de idéias, muito embora contenha algumas
Giovanni Battista Vico, por Solimena; incorreções como, por exemplo, o ano de
Museu de Roma. (Foto Fabbri.) nascimento do autor: segundo os histo-

386
VICO

FAB B RI
Pintura anônima da escolafrancesa do século XVII mostra um panorama da baía
de Nápoles, cidade onde Vico nasceu e passou toda a vida. Nápoles era um dos
mais importantes centros culturais da Itália e, na época de Vico,
caracterizava-se por manter desperto o espírito científico-natural, iniciado
por Galileu mas condenado pela Igreja. (Museu de San Martino, Nápoles.)

riadores, Vico teria nascido em 1668 e nismo, a partir das quais se constituiría
não em 1670. o arcabouço metodológico de sua princi­
Através da Autobiografia, fica-se sa­ pal obra, a Ciência Nova.
bendo que o primeiro mestre espiritual Depois dos nove anos passados em
de Vico foi um filósofo nominalista, o Vatolla, Vico voltou a Nápoles e, em
padre jesuíta Antonio dal Balzo; depois 1699, passou a ocupar o cargo de profes­
Vico estudou com um seguidor de Duns sor de retórica da universidade. Nessa
Scot (1266-1309), o padre Giuseppe função, um de seus deveres era abrir o
Ricci, também jesuíta. Em seguida, a ano letivo com uma dissertação em
Autobiografia relata os nove anos latim; foi a partir de uma dessas lições
(1686-1695) de relativa solidão, que que nasceu Sobre o Método de Estudos
Visco passou em Vatolla (Cilento), onde de Nosso Tempo, publicada em 1709.
foi preceptor do filho do marquês Dome- Pela primeira vez, Vico tomava pública
nico Rocca e onde se dedicou ao estudo sua posição anticartesiana, analisando
de Platão (428/7-348/7 a.C.), do qual uma questão acadêmica e convencional:
admirava o valor metafísico e o caráter qual a melhor maneira de estudar? a dos
ético-social de suas doutrinas. Parte antigos ou a dos modernos? Vico respon­
especialmente importante desse período de, condenando a prática, comum em seu
passado em Vatolla é o referente aos pri­ tempo, de colocar o ensino crítico ou arte
meiros contatos com a filosofia materia­ de julgar antes da ‘■‘■tópica” ou arte da
lista de Gassendi (1592-1655) e, sobre­ invenção; tal costume destruiria a imagi­
tudo, com a filosofia cartesiana, então nação e incapacitaria o aluno para a vida
em voga em Nápoles. Datam dessa época prática. Vico condena também o método
suas primeiras reações contra o cartesia- geométrico na física, o analítico na

387
OS PENSADORES

mecânica, o dedutivo na medicina, e a Vico descreve as circunstâncias de publi­


utilização dos métodos das ciências cação das diferentes redações que deu à
naturais no estudo dos problemas huma­ Ciência Nova, comentando as polêmicas
nos. Defende a união intima entre a eru­ que provocou, criticando com desdém
dição filológica e histórica e, por outro seus detratores e revelando orgulhosa­
lado, entre conhecimento abstrato e mente que todos os homens doutos ti­
dedutivo. Em outros termos, para Vico, a nham por ela a maior admiração.
filosofia não deve isolar-se no plano das Mas, na verdade, apesar de sua impor­
puras abstrações lógicas; ao contrário, tância na história das idéias, a obra de
deve mergulhar no terreno concreto dos Vico não despertou qualquer entusiasmo
produtos culturais humanos, sobretudo durante a vida do autor cujos últimos
aqueles gerados pela literatura, no anos transcorreram em relativa solidão.
amplo sentido da palavra. Essa orienta­ Vico faleceu em sua terra natal, a 23 de
ção metodológica daria seu primeiro janeiro de 1744.
fruto em um trabalho publicado em
1710: Sobre a Antiquissima Sabedoria A herança de Vico
dos Itálicos, Extraíaa de Originais em
Língua Latina. Nessa obra, inspirando- Embora ignoradas pela quase totali­
se no diálogo Crátilo, onde Platão anali­ dade dos pensadores europeus da época,
sa o problema da origem e da natureza as idéias de Vico exerceram influência
da linguagem, Vico propõe-se a investi­ sobre algumas figuras italianas de seu
gar a mais remota filosofia itálica, atra­ tempo. É o caso de Mario Pagano
vés da etimologia de algumas palavras (1748-1799), representante da escola
eruditas, considerando-se como restos de napolitana, que tentou harmonizar as
uma civilização extinta. idéias de Vico com a filosofia de Rous-
Na época em que Vico escreveu Sobre seau (1712-1778); é também o caso de
a Antiquissima Sabedoria dos Itálicos, Gaetano Filangieri (1752-1788), outro
começou a amadurecer em seu pensa­ napolitano, autor de Ciência da Legisla­
mento a idéia de conciliar o sistema filo­ ção, que tinha Vico em alta conta e ofere­
sófico platônico-cristão com uma filolo­ ceu a Ciência Nova a Goethe
gia de caráter científico que pudesse (1749-1832). Além de Pagano e Filan­
englobar, a um só tempo, a história das gieri, Gian Domenico Romagnosi
línguas e a história das coisas. Uma pri­ (1761-1835), autor de importantes tra­
meira expressão desse projeto encontra- balhos sobre filosofia social e teoria
se na obra Direito Universal, três volu­ econômica, tinha grande respeito pelas
mes publicados entre 1720 e 1722. idéias de Vico. Todos esses pensadores
Um ano depois, Vico candidatou-se ao manifestaram, de uma maneira ou de
cargo de professor catedrático de direito outra, seu débito para com o autor da
civil na Universidade de Nápoles, mas Ciência Nova, mas a verdadeira herança
foi recusado. O fato amargurou-o pro­ de Vico encontra-se em seu filho Genna-
fundamente. Vico teve que se contentar ro, seu sucessor na cadeira de retórica da
com o cargo modesto que já ocupava — o Universidade de Nápoles e, principal­
de professor de retórica —, no qual per­ mente, em Vincenzo Guoco (1770-1 823).
maneceu até seus últimos dias. Este último ridicularizou os “ideólogos”
Desencantado com a carreira universi­ franceses, então em moda na Itália, e
tária, Vico passou a dçdicar-se quase desenvolveu as idéias de Vico, salien­
exclusivamente à realização do projeto tando o platonismo da Ciência Nova. Em
cuja primeira versão viera à luz com o Cuoco a noção de “história eterna” de
livro Direito Universal. Em 1725 surgiu Vico transforma-se em um padrão deter-
a primeira edição de sua obra maior, minístico, que dirige o desenvolvimento
Ciência Nova, que seria reescrita diver­ dos homens, como se fossem simples
sas vezes, dando lugar a edições diferen­ joguetes da providência divina.
tes, em 17 30 (conhecida como Segunda Nos demais países europeus, durante o
Ciência Nova) e em 1744. Em sua século XVIII, as obras de Vico sequer
Autobiografia, escrita entre 1725 e foram lidas, a não ser por alguns poucos,
1728, e posteriormente completada, como os alemães Johann Hamann

388
VICO

FAB B RI

Ao lado daqueles que procuravam difundir as últimas conquistas científicas e


filosóficas dos demais países europeus, persistia ainda na Itália da época de
Vico uma tradição de erudição acadêmica de gramáticos e latinistas, que não
conseguiam superar seus antecessores da Renascença. Vico contrapôs-se tanto a
uns quanto a outros. (Nápoles, em tela do séc. XVII, Museu San Martino.)

389
OS PENSADORES

Uma tela de Pieter Paul Rubens, Os Quatro Filósofos, retrata Justus Lipsius
e seus discípulos, entre os quais se encontra, provavelmente, Hugo Grotius,
um dos pensadores do século XVII que elaboraram teorias
abstratas e racionalistas sobre a sociedade. Vico criticou-os por deixarem de
considerar o homem em sua concreção histórica. (Galeria Pitti, Florença.)

390
VICO

(1730-1788) e Johann Gottfried Herder pouco são evidentes. Produtos humanos


(1744-1803); a filosofia da história ela­ fundamentais, como a retórica, a poesia,
borada pelo último chega mesmo a ter a história e a própria prudência que re­
muitos pontos de contato com a Ciência gula a vida prática, não se baseiam em
Nova. verdades de tipo matemático, mas ape­
Esse plano secundário a que foi rele­ nas sobre o verossímil. Este constitui
gado o filósofo italiano deve-se ao fato uma espécie de verdade problemática,
de que suas teses, em geral, opunham-se colocando-se entre o verdadeiro e o
às principais linhas do Iluminismo. Essa falso; o verossímil, na maior parte dos
corrente de idéias, que dominou o pensa­ casos, é verdadeiro, mas de qualquer
mento europeu no século XVIII, procu­ forma sua característica reside na ausên­
rava estudar os fatos humanos de manei­ cia de uma garantia infalível de verdade.
ra análoga aos procedimentos das Apesar dessa fragilidade em relação à
ciências naturais, enquanto a orientação evidência de caráter matemático, a filo­
metodológica de Vico valorizava a fanta­ sofia não deve ignorar o verossímil ou
sia poética e o espírito platônico. Por relegá-lo a segundo plano. Vico diz que a
essa razão, somente no século XIX, com filosofia não deve cair nesse erro, pois
a ascensão do Romantismo alemão, ela nunca serviu para outra coisa senão
criou-se um clima intelectual favorável para tomar as nações ‘‘‘ativas, despertas,
ao seu pensamento. Na Inglaterra, por capazes, agudas e reflexivas”, e para
exemplo, escritores como Coleridge que os homens sejam “dóceis, prontos,
(1772-1834) e Thomas Aroold magnânimos, engenhosos e prudentes”.
(1795-1842) admiravam e citavam Vico. Todas essas funções e qualidades cons-
Na França, o historiador Jules Michelet troem-se à margem da razão abstrata. O
(1798-1874) considerava-o seu mestre e “campo dos filósofos” seria, assim, o do
divulgou a Ciência Nova, traduzindo provável, como o terreno dos matemá­
suas passagens mais importantes. Na ticos é o do verdadeiro. Afirma Vico: o
Alemanha, Karl Marx (1818-1885) fato de Descartes ter pretendido levar a
apontou-o como precursor de muitos filosofia ao plano da verdade demonstra­
estudos históricos do século XIX. tiva dos geômetras foi tão-somente causa
Mas o verdadeiro reconhecimento dos de dúvidas e desordem. À razão carte­
méritos dos trabalhos de Vico só ocorreu siana, órgão da verdade demonstrativa,
mais plenamente no século XX. O filó­ Vico contrapõe o engenho, faculdade de
sofo Robin George Collingwood descobrir o verossímil e o novo; à crítica,
(1889-1943) chamou a atenção para sua nova arte cartesiana fundada na razão,
obra e foi profundamente influenciado Vico contrapõe a tópica, arte que disci­
por ela. O mesmo aconteceu com Bene- plina e dirige os procedimentos inventi­
detto Croce (1866-1952), possivelmente vos do engenho.
seu mais importante intérprete. Vico, porém, não se limita a combater
o cartesianismo, defendendo a inserção
Razão e engenho do provável no campo da indagação filo­
sófica. Essa tarefa constitui apenas um
O núcleo metodológico que serve de primeiro momento lógico; sua crítica vai
base à filosofia de Vico pode ser esclare­ ainda mais longe e procura mostrar
cido a partir de sua atitude em relação como os próprios alicerces da filosofia
ao cartesianismo. Para o filósofo italia­ cartesiana padeceríam de defeitos congê­
no, a teoria do conhecimento formulada nitos. No ensaio sobre a mais antiga
por Descartes, orientando-se exclusiva­ sabedoria dos itálicos, Vico ataca as três
mente pelo conhecimento matemático, premissas fundamentais do cartesia­
subordina todas as demais esferas de nismo, a saber: o apelo à autocons-
indagação à evidência da razão abstrata. ciência contido no cogito, ergo sum; a
Essa pretensão racionalista do cartesia­ crença de que a existência de Deus pode
nismo constitui uma pretensão quimé- ser demonstrada de maneira apriori; e o
rica, pois, diz Vico, existem certezas princípio segundo o qual as idéias claras
humanas fundamentais que não podem e distintas constituem critério universal
ser logicamente demonstradas e tam­ de verdade.

391
OS PF2NSADORES

FABBRI

Vico foi um piedoso católico e a noção cristã de providência divina desempenha


papelfundamental em sua filosofia. Apesar disso, defendeu a tese
de que o homem é o próprio criador do mundo social e o historiador deve
estudar os fatos humanos em suas origens, a fim de descobrir o sentido da
evolução da humanidade. (Claustro da Cartuxa de San Martino, em Nápoles.)

392
VICO

FABBRI
Vico ocupou o cargo de professor de retórica da universidade de Nápoles desde
1699 e, em 1735, tomou-se historiador oficial de Carlos III, rei de Nápoles.
Essa alta posição em nada alterou sua vida, que continuou a ser
sempre modesta. (Tela de Michele Foschini representa o soberano
em uma cena de caça ao javali; Museu Nacional de San Martino, Nápoles.)

O fundamento da crítica de V ico a critério da própria mente, pois, enquanto


esses princípios da filosofia de Descartes a mente apreende a si mesma, eia não
encontra-se em sua concepção de que a produz a si mesma e, por não poder
verdade e o fato ou o verdadeiro e o feito produzir-se a si mesma, ela ignora a
são a mesma coisa, e um pode ser con­ forma ou modo através do qual apreende
vertido no outro (verum ipsum factum, a si mesma”.
verum et factum convertuntur. Em outros Por razões análogas, a prova da exis­
termos, só pode ser conhecido de manei­ tência de Deus (outro princípio básico da
ra indubitável aquilo que o próprio metafísica cartesiana) também é falsa,
sujeito cognoscente faz, cria ou produz. resultando da “curiosidade ímpia”, da
De acordo com essa premissa metodo­ pretensão do homem que se considera
lógica, o homem não pode conhecer-se a “deus de Deus”.
si mesmo, como pretendeu Descartes. O O terceiro princípio cartesiano ataca­
coqito, mostra Vico, é apenas a cons­ do por Vico é o das idéias claras e distin­
ciência do próprio ser e não sua ciência. tas, as únicas que Descartes considerava
Consciência e ciência constituem coisas como verdadeiras. A essa tese, Vico obje­
distintas; a primeira pode ser possuída ta, em primeiro lugar, que muitas propo­
pelo ignorante, mas a segunda não, pois sições referentes a fatos podem parecer
trata-se de conhecimento verdadeiro fun­ claras e indubitáveis numa primeira ins­
dado sobre causas. Assim, o homem não peção, mg.s, posteriormente, podem reve­
conh-ece a causa de seu próprio ser por­ lar-se falsas. Em segundo lugar, Vico
que éle não é essa causa, ele não se cria a concorda com Descartes no sentido de
si mesmo. Desenvolvendo essa tese, Vico que as proposições matemáticas satisfa­
escreve: “ . . . a idéia clara e distinta da zem 3 critério de auto-evidência das
mente não pode ser critério de outras idéias claras e distintas, mas discorda de
verdades, como também não pode ser que o fundamento da certeza dessas

393
394
395
FABBRI
OS PENSADORES

proposições deva ser encontrado na pró­


pria auto-evidência. Para Vico, as verda­
des matemáticas são irrefutáveis porque
constituem partes de um sistema produ­
zido pelo próprio homem. A matemática
seria mesmo a melhor prova de que o
verdadeiro e o feito são idênticos.
Ainda como conseqüência desse prin­
cípio, Vico conclui que a pretensão do
cartesianismo, no sentido de conhecer a
natureza, é totalmente infundada. So­
mente Deus pode conhecer os fenômenos
naturais em sua totalidade, pois ele é seu
criador. Isso, no entanto, não significa
que Vico considere a natureza como
absolutamente fora de qualquer possibi­
lidade de conhecimento por parte do
homem. Para o autor da Ciência Nova, o
homem, ao investigar a natureza, não se
limita a um papel inteiramente passivo;
deve, ao contrário, imitá-la, criando e
recriando as condições em que os fenô­
menos naturais ocorrem. Em outras
palavras, para Vico, é possível um certo
conhecimento de alguns fenômenos natu­
rais (aqueles que podem ser reproduzi­
dos), mas não é possível apreender a
natureza como um todo; a verdade só
pode ser encontrada no domínio das
abstrações matemáticas e de tudo aquilo
que o próprio homem produz.

A verdadeira ciência
A rigor, o princípio de Vico, segundo o
qual o verdadeiro e o feito (a verdade e o
fato) são idênticos, não era uma idéia
totalmente nova na história da filosofia.
Uma primeira expressão dessa idéia
encontra-se num escrito pseudo-hipo-
crático da Antiguidade, onde o autor in­
dica as operações que devem ser realiza­
das para a penetração nos mistérios da
natureza, afirmando que a chave para
isso acha-se à disposição dos homens
“porque eles conhecem o que fazem”.
Outra expressão no mesmo sentido
acha-se em Fílon de Alexandria, ou
Fílon, o Judeu (c. 25 a.C. — c. 50), que
fundamentou a onisciência divina na
idéia de que Deus é o criador e demiurgo
Retrato de Carlos III (Museu Nacional de todas as coisas. Uma terceira formu­
de San Martino, Nápoles). Na página lação do mesmo princípio encontra-se
anterior, o soberano em Festa de em Marsílio Ficino (1433-1499), que,
Piedigrotta, de Antonio Joli. (Museu comparando a capacidade divina e hu­
Nacional de San Martino, Nápoles.) mana de conhecer, atribui a onisciência

396
VICO

A principal obra de Vico, Ciência Nova,procura mostrar como a história


se desenvolve de maneira cíclica, percorrendo três etapas
sucessivas: a idade dos deuses, a idade dos heróis e a idade propriamente
humana. (Pintura de autor anônimo da escola napolitana do século XVIII
representa uma alegoria da vida humana; Casa Serristori, Florença.)

a Deus, por ser Ele o próprio autor e consequências até então insuspeitadas.
criador de todas as coisas. Mais próxima Elaborada em diametral oposição à epis-
de Vico situa-se a metodologia de Gali- temologia cartesiana, a idéia de que a
leu, segundo a qual o conhecimento cien­ verdade e o fato se identificam constituiu
tífico da natureza somente pode ser o ponto de partida para uma revolucio­
alcançado através do experimento, ou nária teoria da história e do desenvolvi­
seja, da reprodução dos fenômenos; para mento social.
Calileu, o homem possui as causas que A história foi posta pelo cartesianismo
são “razões das coisas” e, portanto, como um aglomerado confuso de fatos,
pode produzir fenômenos que são neces­ uma miscelânea de absurdos, algo total­
sários e racionais. mente inapto à apreensão de idéias cla­
Esses antecedentes históricos, ao que ras e distintas, as quais constituiriam a
tudo indica, não exerceram influência base de um verdadeiro conhecimento.
sobre o autor da Ciência Nova; Vico for­ Para Vico, esse desprezo é infundado e
mulou o princípio de que o verdadeiro e tem raízes no erro de admitir um único
o feito são idênticos independentemente método como válido para todos os domí­
desses precursores. Contudo, o mais nios da investigação; além disso, a histó­
importante aspecto de sua contribuição ria pode proporcionar esclarecimentos
reside no desenvolvimento e amplitude decisivos sobre aquilo que subjaz à pró­
que conferiu ao princípio, chegando a pria ciência natural e que constitui o

397
OS PENSADORES

conhecimento humano. Vico afirma que, autores viveram. Rejeitando tais siste­
por mais desenvolvida e engenhosa que mas, que lhe pareciam errôneos, Vico
seja a técnica de exploração do mundo sustenta a absoluta necessidade de se
natural, este permanecerá para sempre abordar os fenômenos humanos em suas
algo exterior ao próprio homem, jamais dimensões históricas.
podendo tornar-se um produto de seu Esse projeto de investigação implica
espírito; com a história ocorre exata­ necessariamente uma volta aos modos de
mente o contrário: seu campo de ação é compreensão das coisas, aos sentimentos
aquilo que o próprio homem cria. O ob­ e às atitudes das comunidades humanas
jeto da investigação histórica, escreve primitivas: “'toda teoria deve começar
Vico, resulta da expressão da vontade pelo ponto onde a matéria em questão
humana, e o próprio historiador, em vir­ começou a tomar forma pela primeira
tude de sua humanidade, tem todas as vez”. Para Vico, somente quando o
condições para apreender seu objeto, de investigador se liberta da idéia de que os
maneira total e completa, íntima e seres humanos sempre se consideraram a
indubitável. si mesmos e interpretaram o mundo de
Ao formular essa clara distinção entre maneira distinta do modo de ver do pró­
as ciências naturais e o conhecimento prio investigador, é que ele se capacita a
histórico, Vico estabeleceu um princípio reconhecer os sentimentos, atitudes e
metodológico que viria desempenhar concepções de outras épocas.
papel fundamental na história da episte-
mologia. Mas o autor da Ciência Nova A chave da ciência
não se limitou a criar uma metodologia:
procurou também investigar como, con­ O pesquisador das coisas humanas,
cretamente, ocorreu o desenvolvimento liberto dos preconceitos de seu tempo e
da humanidade. Nessa tarefa, orientou- dos sistemas racionalistas e abstratos,
se pela idéia de que o passado não deve deve mergulhar — segundo Vico — nos
ser visto com os olhos do presente, sob aspectos mais concretos da história a fim
pena de não se chegar a um verdadeiro de conhecer verdadeiramente o homem e
conhecimento. Em outros termos, o seus produtos. Material para isso Vico
historiador não deveria deixar-se levar encontra sobretudo na linguagem, a
por seus próprios sentimentos, interes­ conserva em seu seio os mitos, as fábu­
ses, atitudes e modos particulares de ver las, as tradições e expressões do espírito
as coisas. Ao fazer essa advertência, humano. Vico procura, assim, uma união
Vico tinha em mente os teóricos que íntima entre filologia e filosofia.
desenvolviam teorias abstratas sobre o Para Vico, o papel especialmente
homem, como Grotius (1583-1645), importante da linguagem reside no fato
Pufendorf (1632-1694) e Hobbes de que os termos empregados pelo
(1588-1679). Esses autores modernos homem, em sua grande maioria, in­
partiram de pontos de vista estáticos e cluindo os mais teóricos e abstratos,
imutáveis, segundo os quais existiría acham-se profundamente enraizados em
uma lei natural ou um CQntrato social remotas formas de vida e de experiência.
que estaria na base de todas as transfor­ Assim, estudando-se etimologicamente a
mações humanas. Segundo o autor da derivação das palavras, iluminam-se não
Ciência Nova, tais idéias não passam de só as condições ambientais de gerações
abstrações criadas pelo estado do desen­ anteriores, mas também os efeitos mais
volvimento do espírito em que essas pró­ característicos dessas condições; o dis­
prias idéias vieram à luz. Ao proceder curso e o icnsamento ligam-se intima-
assim, os teóricos racionalistas que mente. A inguagem não constitui um
construíram grandes sistemas de inter­ meio artificial que os homens teriam
pretação dos fatos sociais acabaram por inventado deliberadamente para expres­
atribuir, aos homens de épocas anterio­ sar idéias preexistentes; pelo contrário,
res e primitivas, modos de conceber as ela desenvolveu-se naturalmente, e o
coisas, faculdades mentais e juízos de curso de seu desenvolvimento ê insepa­
valor, todos eles característicos do pró­ rável do curso do espírito humano.
prio universo espiritual em que esses Analisando a evolução da linguagem,

398
VICO

Segundo o historiador De Sanctis, a Ciência Nova é uma obra “prenhe de


pressentimentos, de adivinhações, de idéias científicas, de verdades e
descobertas; obra defantasia incitada pelo talento filosófico e solidificada
pela erudição”. (Desenho de Domenico Antonio Vaccaro, sob direção ao próprio
Vico, para ilustrar o conteúdo da obra; Biblioteca Municipal de Milão.)

399
OS PENSADORES

’ ilíSt-C.X 7 '
JOH. BAPTISTAE VICI
30 H. BAPTISTAÉ VIC1»
In Regia Neafolitana Academia
D B Eloquentiae Professoris

, Ü N I VER SI J. U R I L^TINJfE OR^TIONES


UNO principio; çt fine uno

Libcr Unxr Nunc primum colleflae.


AD AMPLISSIMUM VIRUM

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V È N T -U BL A ar
A REG1S CONSILI1S-
Ec Criminum Quocftorem Altcrum«

ExcudebaC N«A»õtfFeta Mu£t


£sf Ptdiico AStrúM NEAPOLI MDCCLXVI.
Anno da. foec. xx. Excud. Josefhus Raymundus .
QZ
CD
CD
JUCTORITATB PUBLICA.

Ofilósofo italiano Benedetto Croce, intérprete do pensamento


de Vico, afirma que a obra deste “assombra e quase espanta, tanta
energia mental está nela contida”. (Frontispício de edições do século XVIII
de duas obras de Vico: Sobre o Princípio e o Fim Únicos do Direito Universal
e Orações Latinas, pertencentes ao acervo da Biblioteca Ambrosiana de Milão.)

Vico distingue a linguagem mítica da Por outro lado, ao distinguir fala míti­
linguagem silogística. A primeira, me­ ca e fala silogística, Vico não atribui à
diante o emprego da mimese e da seme­ primeira o caráter de pura e necessária
lhança, animava toda a natureza, fazen­ ilogicidade; isso seria incorrer no erro
do dela um “vasto corpo” e abreviando o cartesiano de admitir exclusivamente as
hiato final entre o som e a representação coordenadas opostas do verdadeiro e do
mental. Em termos da linguística do sé­ falso. A proposição de Vico, ao contrá­
culo XX, poder-se-ia traduzir a concep­ rio, é a de quem descobriu o caráter pró­
ção de Vico pela idéia de que essa lin­ prio da atividade da fantasia, por meio
guagem ainda não se assentara de todo do estudo de fábulas e figuras inscritas
no esquema da dupla articulação, pelo nas línguas antigas. Esse caráter dispõe
qual há, no interior do signo, elementos de uma lógica, nada tem de bizarro nem
mínimos, opacos, despidos de significa­ de absurdo; é necessário entendê-lo em
ção; a palavra mítica, ao contrário, ten­ suas leis imanentes. Nesse sentido, Vico
dería a uma estrutura imanentemente afirma que a fala heróica foi uma fala
dotada de significação, assim como o de­ por semelhanças, imagens, compara­
sejo e o medo, o prazer e a dor, que rece­ ções, nascida da carência de gêneros e de
bem, de um só golpe, determinado senti­ espécies necessárias para definir as coi­
do e valor para o sistema nervoso que os sas com propriedade e, em consequência,
experimenta. nascida “por necessidade de natureza

400
VICO

comum a nações inteiras”. Ao escrever


essas palavras, Vico intuiu com exatidão
que a fala mítica constitui uma lingua­
gem que inclui também um princípio
classificador, o que foi plenamente con­
firmado pelos estudos de Marcei Mauss
(1872-1950) e de Claude Lévi-Strauss
(1 908- ) sobre a coerência do pensa­
mento selvagem. Para o autor da Ciência
Nova, o processo de nomeação das expe­
riências singulares faz-se mediante a
incorporação dos “fantasmas” a proto-
conceitos, os universais poéticos ou
analógicos, que correspondem, no seu
nível, aos universais lógicos dos siste­
mas reflexivos: “Os homens, ignorantes
das causas naturais que produzem as
coisas, quando não as podem explicar
nem sequer por coisas parecidas, dão às
coisas a sua própria natureza, como o
povo, por exemplo, diz que o ímã está
enamorado do ferro ... O trabalho mais
sublime da poesia é dar senso e paixão
às coisas sem sentido, e é próprio das
crianças tomar coisas inanimadas entre
as mãos e, brincando, falar-lhes como se
fossem pessoas vivas”. Assim, para Vico.
é pelo reconhecimento do lúdico que a
reprodução das constantes adquire sua
possibilidade. Em outras palavras, a
mente humana é naturalmente levada a Durante quase toda sua vida, Vico foi
deleitar-se no uniforme. E da natureza um homem triste e amargurado pela,
da crianças o processo de, a partir das pequena ressonância de sua obra.
idéias e dos nomes de homens, mulheres (Retrato do filósofo, feito em 1831;
e coisas que conheceram pela primeira Biblioteca Municipal de Milão.)
vez, apreender e nomear mais tarde
todos os homens, mulheres e coisas que que o povo, numa primeira instância,
têm com os primeiros alguma seme­ comunicava-se por meio de gestos, qua­
lhança ou relação. dros ou objetos representativos e, mais
Assim, as formas de linguagem e as tarde, pelo que se denomina “universais
representações empregadas pelo homem imaginativos” ou “caracteres poéticos”.
fornecem valiosas indicações dos proces­ Aquilo que é verdade para a linguagem
sos mentais a que estava submetido. No aplica-se igualmente a outras manifesta­
entanto, para Vico, esses processos dife­ ções da vida humana e da consciência.
rem notadamente no curso do tempo. Quando, por exemplo, se pensa nos even­
Nesse sentido, Vico se esforçou para tos descritos pela mitologia como apenas
mostrar que as metáforas utilizadas no ficções extravagantes, ou quando se
discurso moderno tinham, nas idades inclina a tratar trabalhos de poesia ou
primitivas, um significado bastante dife­ pintura como objetos de prazer ou de
rente: representavam os termos segundo entretenimento, deve-se tomar cuidado
os quais o homem apreendia o mundo em em não projetar essas atitudes nos povos
sua volta e que, desse modo, “fazia sen­ antigos. Houve períodos em que, longe
tido” para sua experiência. Vico insistia de ser encarada como uma espécie de
que a habilidade para empregar pala­ embelezamento dispensável da exis­
vras gerais ou abstratas é um desenvol­ tência civilizada, a poesia era, ao con­
vimento relativamente sofisticado, sendo trário, modo natural e universal da

401
OS PENSADORES

expressão humana. Do mesmo modo, as giram as cidades, sob hegemonia da


figuras das lendas e das fábulas senta­ classe aristocrática, que cultivava as vir­
vam para os homens que as criaram tudes heróicas da piedade, da prudência,
fecundas personificações imaginativas da moderação, da fortaleza e da magna­
de verdades que se relacionavam direta­ nimidade. Os homens faziam derivar sua
mente com suas circunstâncias materiais própria nobreza de Deus e a fantasia
e preocupações: “As fábulas”, escreveu prevalecia ainda sobre a reflexão. O uni­
Vico, “são as primeiras histórias dos verso da cultura heróica era um universo
povos gentios, e podem ser imensamente de violência e espanto, de euforia e de
relevantes, e informativas, desde que êxtase, não existindo fronteiras entre
corretamente interpretadas”. imaginação e realidade. Na 1 liada ou no
Antigo Testamento, obras características
Deuses, heróis e homens da idade heróica, é interminável a lista
de raptos, cruezas sem nome, deuses que
Todo o trabalho de erudição filo- exigem hecatombes.
lógica foi empregado por Vico com A idade heróica, segundo Vico, é suce­
a finalidade de investigar o sentido do dida pela idade humana, engendrada por
universo humano em seu desenvolvi­ luta de classes: os plebeus passam a exi­
mento histórico. Assim, partindo da gir direitos iguais e, pouco a pouco, os
idéia de que tudo aquilo que o homem obtêm, nascendo, assim, os sistemas
sente, pensa e produz, em determinado legais. Depois da metafísica sentida ou
tempo, mantém vinculações entre si, for­ imaginada dos tempos heróicos, o
mando unidades estruturais, e partindo homem passa a explicar o universo
do princípio de que essas estruturas mediante uma metafísica raciocinada; a
espirituais modificam-se com o correr relação com uma ordem providencial
dos tempos, Vico chegou à conclusão de toma a forma de reflexão, que procura
que o homem percorre três etapas distin­ rastrear a idéia de bem, sobre o qual
tas em sua evolução: a idade divina, a todos os homens devem estar de acordo.
idade heróica e a idade humana. A idade humana é a fase na qual surgiu a
Na idade divina, mostra Vico, a sabe­ filosofia platônica, que procurou encon­
doria primitiva do gênero humano era trar no mundo das idéias a conciliação
uma sabedoria poética. Os homens que entre os interesses privados e o critério
fundaram a sociedade humana eram de uma justiça comum.’ No entanto, o
“néscios, insensatos e horríveis bestas”, afrouxamento dos laços tradicionais e o
sem nenhum poder de reflexão, mas questionamento dos costumes e dos valo­
dotados de sentidos agudos e poderosa res, resultantes do estabelecimento de
fantasia. Nas forças naturais que os repúblicas livres e democráticas, acarre­
ameaçavam, sentiam e imaginavam di­ tam, segundo Vico, a dissolução e a cor­
vindades terríveis e castigadoras; por rupção inevitáveis. Assim terminaria um
temor dessas divindades, começaram a ciclo histórico e a sociedade revertería
refrear os instintos, criando as famílias e ao barbarismo primitivo de que surgiu,
as primeiras ordens civis. Desse modo, iniciando-se novo ciclo.
constituíram-se o que Vico chama repú­
blicas monásticas, dominadas pela po- A providência divina
testade paterna e fundadas sobre o temor
a Deus. O próprio homem cria os ciclos histó­
A idade heróica teria surgido como ricos, mas isso, segundo Vico, não signi­
resultado de alianças entre os chefes de fica que todas as consequências e desdo­
famílias, com a finalidade de, por um bramentos de seus atos estejam em suas
lado, conter os ataques externos, e, por mãos. É na relação com uma história
outro, evitar as dissidências internas ideal e eterna que a história humana
entre os próprios dependentes. Assim, adquire seu verdadeiro sentido. Em ou­
estabeleceu-se a oligarquia como forma tros termos, Vico vale-se da idéia cristã
de governo e a sociedade passou a ser de providência divina a fim de explicar o
dividida entre patrícios e servos ou significado mais profundo da história do
escravos, dominados por leis cruéis. Sur­ homem. A ação da providência divina,

402
VICO

PRINCIPJ
D I

SCIÉNZA NUOVA
D I

GIAMBATTISTA VICO
D’IN1ORNO ALLA COMUNE NATURA
DELLE NAZIONI
JN ígJESTA TERZA IMPRESSIONE
Dal mcdc/imq Aurore in un gran numero di luoghi
Correcta, Schiarita, e nocabilmcntc Accrcfciuta•
TOMO I.

IN NA POLI MDCCXL1V.
NELLA STAMPERIA MUZÍANA
A fpefe di Gactano , e Stcffano Elia .
FABBRl

CON HÇESXA DS' SWKIM1.

Os Princípios de uma Ciência Nova sobre a Natureza Comum das Nações, título
completo da principal obra de Vico, foram escritos e reescritos diversas
vezes. Ofilósofo napolitano dedicou-se ao livro por mais de vinte anos
e supervisionou cuidadosamente as três edições feitas em sua vida, em 1725,
1730 e 1744. Acima, o frontispicio da terceira edição feita pelo autor.

403
OS PENSADORES

contudo, não é entendida pelo autor da Em suma, não sendo intervenção mila­
Ciência Nova, como uma intervenção grosa nem determinação imanente ao
exterior, a corrigir milagrosamente as processo histórico, a providência divina
orientações e aberrações do homem. A é concebida por Vico como valor e norma
história ideal e eterna, com sua ordem situados além (e nesse sentido é trans­
providencial, não seria transcendente à cendente) dos acontecimentos particula­
história temporal, não seria estranha e res: é o valor ideal que sustenta os
externa a ela; se assim fosse, o único acontecimentos em seu curso ordenado,
agente da história seria Deus e não o mas ao qual os acontecimentos jamais se
homem. Por outro lado, Vico nega igual­ conformam totalmente. Somente na rela­
mente que a história ideal e eterna seja ção com a providência o homem pode
imanente à história temporal humana, e criar a capacidade de produzir o mundo

R A R II
que a ordem desta última esteja sempre da história e conservá-lo.
garantida por aquela. Em outras pala­ Para Vico, a providência está presente

R
vras, a providência não deve ser enten­ no homem, primeiramente sob a forma

- RÃO PAUI O
dida como necessidade racional intrín­ de sabedoria poética, isto é, de um obs­
seca aos acontecimentos históricos, curo mas certo aviso; depois como sabe­
como uma razão impessoal que atua doria reflexiva, ou seja, como verdade
sobre os indivíduos e coordena suas filosófica. Mas tanto em um caso quanto
ações. Nesse caso, a reprodução da his­ em outro, trata-se de sabedoria essen­

-
tória ideal e eterna nas histórias particu­ cialmente religiosa porque se refere a

N D I IR T R IA I
lares de cada nação seria necessária e uma ordem transcendente e divina.
uniforme; nenhuma história particular Assim se compreende a apaixonada defe­
poderia separar-se, em nenhum evento, sa da função cívica da religião, que Vico
da sucessão providencial dos períodos. faz na conclusão da Ciência Nova.

F
T I IR A I I
CRONOLOGIA

II
1668 — A 23 de junho, em Nosso Tempo. Nova sobre a Natureza Co­

A R R ll R A C l
Nápoles, nasce Giambattis- 1710 — Vico publica So­ mum das Nações e, no mes­
ta Vico. bre a Antiquissima Sabedo­ mo ano, escreve sua Auto­
1694 — Vico gradua-se ria dos Italianos a ser com­ biografia.
em direito pela Universidade pletado. 1730 — Surge a 2.a edição
de Nápoles. 1720 — Publicação de So­ da Ciência Nova, totalmente

_
1699 — É indicado para a bre o Princípio e o Único reescrita.

1Q 7A
cadeira de eloquência na Fim Únicos do Direito Uni­ 1735 — Vico torna-se his­
mesma universidade. versal, de Vico. toriador real.

C O P Y R IG H T M l IN O I A l
1709 — Publica Sobre o 1725 — Vico publica os 1744 — Morre a 23 de ja­
Método dos Estudos de Princípios de uma Ciência neiro, em Nápoles.

BIBLIOGRAFIA
Abbagnano, N.: Historia de la Filosofia, tomo II, Montaner y Simon, Barcelona, 1955.
Ithaca, Nova York, 1944.
Berlin, L: The Philosophical Ideas of Giambattista Vico in Art and Ideas in Eighteenth Cen-
c

tury ltaly, Roma, 1960.


Bosí, A.: O Ser e o Tempo da Poesia in Discurso n.° 3, USP, São Paulo, 1973.
Caponigri, A. R.: Time and Idea: The Theory of History in Giambattista Vico, Londres,
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Croce, B.: La Filosofia di Giambattista Vico, Laterza, Bari, 1947.
Giusso, L.: La Filosofia di Giovan Battista Vico e l’Età Barroca, Roma, 1943.
Sabarini, R.: II Tempo in Giovan Battista Vico, 1954.
Mondoefo, R.: Problemas y Métodos de Investigación en la Historia de Filosofia, Editorial
Universitária de Buenos Aires, Buenos Aires, 1960.
I
OS PENSADORES

No Museu de Versalhes encontra-se esta tela, em que Antoine Coypel (1671-1772)


retratou a última cerimônia presidida por Luís XIV (1638-1715), ao receber o
embaixador da Pérsia. Montesquieu se teria inspirado no acontecimento para a
composição das Cartas Persas. Na página anterior: busto de Montesquieu, porjean
Baptiste Lemoyne, Museu de Artes Decorativas, Bordeaux. (Foto Fabbri.)

um dia qualquer do ano de 1719, fez com que os dois se projetassem ao

N em Paris, um nobre da Pérsia tra­


vou conhecimento com uma figura
que lhe pareceu muito estranha: um
chão. O geômetra explicou a ocorrência
como o choque e a deslocação de dois
corpos, em função de suas respectivas
geô-
metra, profundamente absorto a pensar, massas e velocidades. O persa não
há dias, em determinada questão de entendeu a explicação, nem o diálogo
matemática. Um amigo comum fez as que se seguiu entre os dois desastrados.
apresentações e os três dirigiram-se Ó outro homem era, por coincidência,
para um café, onde a estranha persona­ um velho amigo do geômetra, e tinha
gem foi recebida com muita solicitude acabado de publicar uma tradução das
pelos presentes, chegando mesmo a ser Odes de Horácio. Aproveitou o encontro
alvo de maiores atenções do que alguns para contar a novidade, mas obteve
conhecidos espadachins, que ali beberi­ como resposta a censura severa do geô­
cavam. O espanto do persa era cada vez metra, que considerava inútil tentar
maior, pois a conversação do geômetra fazer renascer os ilustres homens do
era a mais singular que seu espírito passado. As traduções poderíam dar-
oriental jamais tinha ouvido. O geôme­ lhes um corpo, mas não seriam sufi­
tra insistia para que tudo fosse dito com cientes para fazê-los viver de novo. O
exatidão e ofendia-se com a falta de arremate da censura, feita pelo geôme­
rigor de pensamento. Qualquer fato, por tra, assumiu forma de interrogação: por
mais corriqueiro, era explicado ao atô­ que o amigo não se dedicava à tarefa
nito persa através de estranhas compa­ mais útil de pesquisar verdades novas,
rações. Um violento encontrão entre o que um simples cálculo permitiría des­
geômetra e outro homem que passava cobrir todos os dias?

406
MONTESQUIEU

Esse episódio encontra-se nas Cartas


Persas de Montesquieu, e, embora fictí­
cio, náo é por isso menos característico
da época em que é situado: o século
XVI11, chamado o Século das Luzes.

O Século das Luzes


A filosofia do século XVII inaugu­
rara as principais vertentes do pensa­
mento moderno: de um lado, o raciona-
lismo, que, partindo de Descartes
(1596-1650), pretendia reduzir todo o
conhecimento científico a idéias claras e
distintas, sob a inspiração das matenfá-
ticas; de outro, o empirismo inglês, que.
desde Francis Bacon (1561-1626), mos­
trava que todas as idéias se originavam
na experiência sensível, nada havendo
no intelecto que antes não houvesse exis­
tido nos sentidos. Apesar de divergirem
quanto à origem do conhecimento, essas
duas correntes concordavam num ponto
fundamental: a verdade é obra do
homem. Consequentemente, o critério de
legitimidade dos conhecimentos seria a
evidência — inteligível ou sensível —, e
não a autoridade. O desvendamento dos
segredos da realidade estaria ao alcance
das condições humanas, naturais, de
conhecimento: abolia-se o sentido de
mistério que envolvera a visão de mundo
medieval e em seu lugar colocava-se a
noção de problema, como algo que pode-
ria ser resolvido desde que para tanto se
dispusesse do instrumento metodológico
adequado. O próprio Deus que aparece
como peça fundamental da construção
metafísica do cartesianismo é um Deus
entendido como fundamento último da
validade do conhecimento científico e
como garantia para a correspondência
existente entre as evidências subjetivas e
a objetividade.
A confiança na ciência apresenta-se
como característica do espírito moderno,
herdeiro de Descartes e de Bacon. Essa
confiança alimenta uma expectativa que
passou a animar a modernidade: a de
que todos os problemas, em quaisquer
setores, viessem a ser elucidados, escla­
recidos, iluminados. O avanço da ciência A vida literária de Montesquieu
— passou-se a acreditar firmemente — transcorreu durante o reinado de Luís
afastaria todas as sombras e instauraria XV (1710-1774), acima retratado por
a claridade, a lúcida compreensão. Em Lambert Sigisbert Adam (1700-1 796).
lugar do mistério, das crendices, da cega (Museu Vitória e Alberto de Londres.)

107
OS PENSADORES

ARBORIO MEILA
Durante o longo reinado de Luís XIV, o Rei Sol, que se estendeu de 1643 até
1715, a cultura clássica francesa atingiu seu ponto culminante. Grandes nomes da
literatura e das artes plásticas surgiram nesse período. (Quadro a óleo
executado por Pierre Mignard (1610-1695), retratando Luís XIV com suafilha,
Mme de Maintenon, o Duque de Borgonha e o Duque D’Anjou.)

submissão à autoridade, seria instalado esclarecerá todas as questões, quanto na


o primado da razão, o reino das luzes. E, esperança de que seja possível reorga­
se no plano do conhecimento isso signifi­ nizar as bases da sociedade através de
caria o fim da ignorância e da supersti­ princípios estritamente racionais.
ção, no plano social e político represen­ O desenvolvimento das ciências natu­
taria a base para a defesa da liberdade e rais permite aos pensadores da Ilustra­
da igualdade entre os homens. Um tal ção concluir que o domínio efetivo da
otimismo é que alimenta a raiz do pen­ natureza constitui a tarefa principal do
samento do século XVIII, que se tomou homem. Por outro lado, a idéia de pro­
conhecido como a época do Iluminismo, gresso contínuo dos conhecimentos le­
da Ilustração, ou como o Século das va-os a considerar a história como relato
Luzes. Particularmente na França, na dos erros cometidos pela humanidade —
Inglaterra e na Alemanha, esse período erros compreensíveis enquanto signifi­
histórico caracterizou-se por um estado cam a precária expansão da razão no
de espírito que se manifesta não apenas passado. O Iluminismo — como mostra
na reflexão filosófica como também nos Voltaire em sua crítica a Leibniz — não
diversos aspectos da atividade humana. advoga um otimismo metafísico; seu oti­
O otimismo é o traço fundamental dessa mismo decorre tão-somente do advento e
generalizada atmosfera cultural: oti­ do progresso da consciência que a huma­
mismo que transparece tanto na convic­ nidade teria de seus próprios erros e
ção de que a razão, em seu progresso, acertos. E é tal otimismo que transpa-

408
MONTESQUIEU

FAQBRI
“Platão agradecia por ter nascido no tempo de Sócrates; e eu rendo-lhe graças por
me terfeito nascer no governo em que vivo e por ter querido que eu
obedecesse aos que mefez amar. ” Montesquieu nasceu durante o remado de Luís
XIV, o Rei Sol, que mandou construir, em 1661, o famoso Palácio de Versalhes,
visto acima numa tela de Pierre Patel, o Velho (1605-1671). (Museu de Versalhes.)

rece nos diferentes campos de investiga­ primeiro lugar, a Ilustração, em geral,


ção ou de atividade. No aspecto social e valoriza o conhecimento sensível, embo­
político manifesta-se através do "despo­ ra admita que a realidade apreendida
tismo esclarecido”; no terreno da ciência pelos sentidos é, no fundo, racional. Mas
exprime-se no pressuposto de que o a razão mesma é entendida de forma
conhecimento da natureza é o meio para diferente: no racionalismo cartesiano, tí­
sua dominação: no campo religioso e pico do século XVII, a razão era vista
moral apresenta-se por intermédio da como uma faculdade capaz de conduzir
tese de que o esclarecimento das origens aos princípios constitutivos da realida­
dos dogmas e das leis seria o único de: sua função era fundamentalmente a
recurso para se chegar a uma "religião de decompor a complexidade dos dados
natural-”, igual para todos os homens. aparentes até atingir seus componentes
mais simples e a partir deles reconstruir
Uma nova razão a realidade. A razão analítica do carte-
sianismo é uma razão de alcance metafí­
A confiança na razão manifestada sico, que. justamente por isso, opera
pelo Iluminismo não significa a simples dedutivamente a partir de princípios que
adoção do racionalismo do século XVII. não estariam fora do sujeito, mas no seu
Este abriu o caminho para o Século das próprio interior, como "idéias inatas”.
Luzes, mas, na verdade, o século XVIII Por isso é que Descartes podia prescre­
teve sua própria concepção de razão. Em ver a sondagem da subjetividade como

409
OS PENSADORES

Segundo o crítico Ferdinand Brunetière (1849-1906), o autor do Espírito das Leis


era um homem de amabilidade seca e beneficência magnânima; até nas
fórmulas de polidez colocava um toque irônico, e existiría algo de
enigmático e desdenhoso até em sua arte de agradar. (O Castelo de La Brède
provinha da família materna de Montesquieu. AH nasceu e viveu toda a vida.)
caminho de acesso às verdades científi­ como repositório de verdades eternas,
cas. Já a razão do lluminismo é de outro mas antes como fonte de energia intelec­
tipo: trata-se não de um princípio, mas tual. Mais que um “fundamento”, a
de uma força, de uma faculdade que se razão da Ilustração constitui um "cami­
desenvolve com a experiência. É uma nho” que, em princípio, poderia e deve­
razão operativa, que atua sobre dados ria ser percorrido por todos os homens.
provenientes dos sentidos. É uma razão- As fontes inspiradoras da transfor­
ativ idade, não uma razão-substância mação do conceito de razão encontram-
(como a res cogitans de Descartes); é se nas regras de investigação científica
uma razão sem metafísica, e que se con­ contidas na física newtoniana. O cami­
verte até num instrumento de combate às nho trilhado por Newton (1642-1727)
entidades metafísicas. O racionalismo não é a dedução lógica, mas a observa­
do século XVII tendia a construir siste­ ção dos fenômenos conjugada à análise
mas fec.hados, por via dedutiva: todos os matemática. Não começa estabelecendo
conhecimentos decorreríam de princí­ determinados princípios ou conceitos ge­
pios básicos e evidentes, através da pura rais para dirigir-se até o conhecimento
demonstração lógica. Os filósofos do Sé­ de cada fenômeno particular, mas proce­
culo das Luzes renunciam a essa preten­ de de maneira exatamente inversa: os
são sistemática e procuram outro con­ fenômenos constituem o dado, enquanto
ceito de verdade e de filosofia, os princípios são o inquirido. Os pontos
entendidas como construções livres e de partida do conhecimento da natureza
móveis, ao mesmo tempo concretas e são a observação e a experiência, e o que
vivas. A razão não é mais concebida se coloca como objetivo final não é o

410
MONTESQUIEU

fenômeno concreto tal como se dá


imediatamente, mas sua legalidade ma­
temática, ou seja, sua estruturação
segundo número e medida.
Aliam-se, assim, os dados prove­
nientes dos fenômenos naturais e os
princípios e leis matemáticas da razão.
As duas ordens de coisas implicam-se
mutuamente, de tal forma que legali­
dade ou razão não constitui um conjunto
de regras passíveis de serem captadas e
enunciadas antes dos fenômenos como se
fossem elementos apriorísticos, isto é,
independentes do conhecimento sensível.
Tampouco os fenômenos podem ser
apreendidos em estado puro. Conseqüen-
temente, a nova lógica procurada pelos
filósofos do século XVUI não poderia
mais ser a dos escolásticos — criticada

BETTMANN ARCHIVE. INC.


como mero jogo de palavras — nem a dos
conceitos matemáticos puros, mas sim
uma lógica dos fatos. O espírito — pen­
sam os filósofos do século XVI11 — deve
abandonar-se aos fenômenos e regular-
se incessantemente por eles, nos quais
encontraria sua própria verdade e medi­
da. Assim seria possível alcançar as
autênticas correlações entre sujeito e
objeto, intelecto e realidade, estabele­
cendo-se entre esses pólos as formas de
adequação e correspondência que são as
condições do conhecimento científico.
Herdada da física newtoniana e radi­
calmente diferente do racionalismo dos
filósofos do século anterior, essa nova
maneira de conceber a razão caracte­
rizou o pensamento do século XVI11 pela
amplitude que ganhou em todos os
domínios da reflexão, podendo aplicar-
se a outros domínios além do dos fenô­
menos naturais. A confiança na ciência
passou a alimentar a esperança de que
todos os problemas poderíam ser resol­
vidos, "'iluminados”.
Expressão característica do Ilumi-
nismo foi Montesquieu.

Da província até Paris


Charles Louis de Secondat, Senhor de
La Brède e Barão de Montesquieu, nas­
ceu no dia 18 de janeiro de 1689, no Crítico mordaz dos costumes e das
Castelo de La Brède, arredores de Bor- pessoas, o autor das Cartas Persas
deaux. A mãe chamava-se Marie Fran- recebeu o troco numa caricatura de
çoise de Pesnel e provinha de família de Leone Ghezzi. Uma gravura do século
origem inglesa e dedicada à produção de XVIII o retrata mais simpaticamente.

1 II
OS PENSADORES

vinhos. O pai, Jacques de Secondat, des­ redigiu, em 1716, uma Dissertação


cendia de família nobre não muito anti­ sobre a Política dos Romanos no Domí­
ga, que ganhou maior importância nos nio da Religião, e fez inúmeras comuni­
primeiros anos do século XVI. cações sobre assuntos vários, como o
O menino Charles Louis aprendeu as fenômeno físico do eco e a função das
primeiras letras no próprio lar e, quando glândulas renais. Além disso, projetou
completou onze anos de idade, foi envia­ escrever uma História Física da Terra
do para o Colégio de Juilly, na Diocese Antiga e Moderna.
de Meaux. A escola abrigava os filhos
das mais ricas famílias da região e era Uni crítico mordaz
dirigida pelos padres oratorianos. Isso
foi decisivo para a formação intelectual Ao lado do cientista, germinava em
de Charles Louis, pois esses sacerdotes Montesquieu o talento artístico, e, em
orientavam todo o ensino pelas coorde­ 1721, aparece sua primeira obra literá­
nadas do espírito iluminista. ria: as Cartas Persas. A obra sur­
Em 1705, com dezesseis anos, Mon­ preendeu a todos, que não esperavam
tesquieu continuou os estudos na Facul­ dele tão brilhante humor.
dade de Direito da Universidade de Bor- As Cartas Persas retratam satirica-
deaux e, três anos depois, encontrava-se mente toda a civilização francesa, atra­
em Paris adquirindo experiência prática vés da suposta correspondência de dois
na profissão de advogado. Na capital viajantes pérsias em andanças por Paris
estagiou por dois anos, até 1713, quan­ e desejosos de "instruir-se nas ciências
do foi obrigado a voltar para Bordeaux, do Ocidente”. Em Paris contemplam
em virtude da morte do pai. Passou, uma cidade onde "as casas são tão altas
então, a dirigir os negócios da família e, que se as julgaria habitadas por astrólo­
dois anos após, contraía núpcias com a gos” e tão extremamente povoadas que,
jovem Jeanne de Lartigue, que lhe daria "quando todo mundo desce para as ruas,
três filhos, duas meninas e um menino. faz-se uma bela confusão”.
Com a esposa parece ter vivido bem, O rei da França parece-lhes "o mais
muito embora não fosse um marido poderoso príncipe da Europa. Não tem
inteiramente fiel, tendo tido alguns minas de ouro como o rei da Espanha,
casos amorosos fora do casamento. seu vizinho; mas tem mais riquezas do
Admirava, contudo, a habilidade de que ele, porque as tira da vaidade dos
Jeanne nos negócios, e com isso a fortu­ súditos, inesgotável mais que as mi­
na familiar caminhava a contento. Um nas . . . Esse rei é um grande mágico:
ano após o casamento os bens do casal exerce seu império sobre o próprio espí­
foram aumentados com o falecimento de rito dos súditos, fazendo-os pensar como
um tio paterno, Jean Baptiste, do qual quer. Se não tem mais que um milhão de
Charles Louis de Secondat herdou consi­ escudos em seu tesouro e tem necessi­
deráveis propriedades, o cargo de prési- dade de dois, não precisa fazer mais do
dent à mortier do Parlamento de Bor­ que persuadi-los de que um escudo vale
deaux e o título de Barão de dois, e todo mundo acredita”.
Montesquieu (o de Senhor de La Brède À crítica da autoridade política, ca­
provinha da mãe). racterística do Século das Luzes, ajun-
Consolidada a posição financeira para ta-se a da autoridade religiosa, quando
o resto da vida, o ainda jovem Montes­ os persas encontram "um outro mágico,
quieu passou a dedicar-se, ao lado da mais forte que o rei e não menos mestre
administração da fortuna, ao estudo do de seu próprio espírito quanto do espí­
direito romano e às ciências naturais, rito dos outros. Esse mágico chama-se
especialmente biologia, geologia e físi­ Papa e faz crer aos súditos que três não
ca, na recém-fundada Academia de Bor­ é mais que um, que vinho não é vinho,
deaux. Firmava-se, assim, aquela for­ que pão não é pão, e mil outras coisas da
mação iluminista, iniciada no Colégio de mesma espécie. Para não dar descanso
Juilly, e que procurava aliar o domínio aos súditos e não deixá-los perder o há­
das ciências físicas ao das questões bito da crença, fornece a eles, de quando
humanas. Em Bordeaux, Montesquieu em quando, certos artigos de fé”.

412
MONTESQUIEU

FAB8SI
“O estudo tem-me sido remédio contra todos os dissabores da vida; não tive
nunca aborrecimento algum que uma hora de estudo não dissipasse. ”
Montesquieu gostava também dos prazeres mundanos, comuns na vida cortesã do
século XVIII, como os representados nos quadros de Antoine Watteau. (Watteau:
Festas Venezianas, Galeria Nacional da Escócia, Edimburgo.)

O sarcasmo estende-se aos costumes, sociais e políticos, fossem teorias filosó­


e Montesquieu põe na boca dos persas ficas, como a do Leviatã de Hobbes
palavras de admiração ao encontrarem (1588-1679), ou as doutrinas teológicas
mulheres muito habilidosas, que "fazem da Igreja Católica Romana.
da virgindade uma flor que perece e Ao renome literário, alcançado com
renasce todos os dias, e que se colhe na as Cartas Persas, seguiu-se o êxito so­
centésima vez mais dolorosamente do cial nos salões parisienses, e Montes­
que na primeira1’. Os caprichos da moda quieu passou a freqíientar os círculos da
entre os franceses parecem-lhes sur­ corte, nos quais foi introduzido pelo
preendentes, e "não se acreditaria em Duque de Berwick, que já conhecera
quanto custa ao marido colocar sua mu­ antes como governador militar de Bor-
lher na moda11. deaux. O salão de Mme de Lambert o
Assim vai passando pelos olhos admi­ teve como figura proeminente, e no
rados dos viajantes tudo aquilo que Clube do Entresol conheceu o Marquês
Montesquieu desejava criticar na socie­ D’Argenson e o político, notável orador e
dade de seu tempo, fossem os costumes historiador Bolingbroke (1678-1751).

413
OS PENSADORES

A Academia de Bordeaux continuava


a merecer suas atenções e, em 172 5, ali
revelou alguns fragmentos de um Trata­
do Geral dos Deveres, primeira manifes­
tação de suas intenções no sentido de
dedicar-se a trabalhos de grande fôlego.
Enquanto isso não se concretizava, redi­
giu, em 1725, um pequeno ensaio sobre
erotismo, intitulado O Templo de Gnido.
Um ano depois, desinteressou-se pelas
rotineiras tarefas no Parlamento de Bor­
deaux. Voltou, então, a Paris, a fim de
tentar o ingresso na Academia Francesa.
Apesar da oposição do Cardeal Fleury,
por causa de algumas passagens das
Cartas Persas em que a Igreja era criti­
cada, conseguiu eleger-se, e tomou posse
de sua cadeira em 24 de janeiro de
1728, sçis dias após completar. 39 anos
de idade.
Apesar de não ser mais um jovem,
Montesquieu acreditava ser necessário
completar sua formação, e passou a via­
jar com esse objetivo. A primeira etapa
foi cumprida em abril de 1728, em
Viena, acompanhado apenas por Lorde
Waldegrave. Da capital austriaca pre­
tendia partir para uma expedição às
minas da Hungria, juntamente com o
Príncipe Eugênio. Em seguida, percor­
reu as cidades italianas e tomou contato
com as obras do filósofo Giambattista
Vico (1668-1744) e do historiador Pie-
tro Giannone (1676-1748). Da Itália se­
guiu para a Alemanha e a Holanda, até
chegar à Inglaterra, onde permaneceu
até 1731, num dos mais férteis períodos
de sua vida. Ali foi admitido como mem­
bro da Academia Real e entrou em con­
tato com os escritores Walpole
(1717-1797), Swift (1667-1745) e Pope
(1688-1744). Relacionou-se ampla­
mente com os círculos políticos da capi­
tal britânica, tornou-se maçom e recebeu
todo o importante influxo do pensa­
mento inglês, característico do Ilumi-
nismo.
Completado o círculo de viagens a que
se propusera para enriquecer o conheci­
mento das coisas e dos homens, voltou
ao Castelo de La Brède, passando a se
O Cardeal Duboisproibiu as Cartas dedicar, durante dois anos, exclusiva­
Persas, quando primeiro ministro de mente às atividades literárias. Fruto
Luís XV. (Estátua funerária esculpida desse recolhimento foi um pequeno tra­
por Guillaume Coustou, que tado sobre A Monarquia Universal,
se encontra na Sainte Église de Paris.) publicado em 1734, um ensaio sobre a

414
MONTESQUIEU

Constituição inglesa, que só veio à luz


em 1748, e as Considerações sobre as
Causas da Grandeza e Decadência dos
Romanos, impressas em 1734, obra em
que atingia a maturidade intelectual.
Não foi o mesmo retumbante êxito de PERSANES,
público que as Cartas Persas, mas confe­
pAtt M. DE MONTr.SQL 11 V.
riu reputação de grande seriedade ao
autor; especialistas viram no trabalho Nü CEEELE ÉD1T10N,
uma brilhante tentativa de aplicação do
método científico ao estudo dos fatos AüGMENTÈE DE DOUZE LEITRES
históricos. Qui N2 SE TRCUVTKT POTNT DANS
O maior fruto dessa seriedade, entre­ LES PRÉCÉDEbTES,

tanto, ainda não tinha sido produzido,


mas estava em germe há muito tempo no Et d*unc Table des Matiu-rc».
espírito de Montesquieu. A constante
vivência e meditação sobre as leis e a
política pouco a pouco fizeram crescer
em sua mente o projeto de uma grande
obra. Logo depois da publicação das
Considerações, dispôs-se a realizá-la.
Para tanto, formulou extenso programa
de leituras sobre direito, história, econo­
mia, geografia e teoria política, e con­ A AMSTERDAM ET A LEIPSiCK,
tratou uma equipe de secretários (às C!;:’ A n s s t í r r r M f n v v
vezes, seis trabalhavam simultanea­
mente), como leitores e amanuenses, que
deveríam preparar parte do material.
Por volta de 1740, o plano geral estava
pronto e boa parte já redigida; em 1743
o texto estava completo, faltando ainda Cartas Persas,primeira obra
uma demorada revisão, que se estendeu publicada por Montesquieu, em 1721,
até 1746. Em novembro de 1748, final­ constitui uma sátira aos costumes da
mente, a obra foi publicada pelo editor época. (Frontispício das Cartas
suíço J. Barrillot, com um extenso títu­ Persas, Biblioteca Ambrosiana, Milão.)
lo: Do Espírito das Leis ou Das Relações
que as Leis Devem Ter com a Constitui­ Montesquieu respondeu à onda de
ção de Cada Governo, Costumes, Clima, protestos com o mais brilhante de seus
Religião, Comércio, etc. escritos, a Defesa do Espírito das Leis,
em 1750.
Um homem tranqüilo Como resultado, aumentou ainda mais
a fama e as solicitações dos círculos cul­
O êxito da obra foi tão grande ou tos de Paris, onde possuía amigos e
maior do que a extensão dos assuntos admiradores. Frequentava os concor­
tratados. O público, que não esperava ridos salões de Mme de Geoffrin, Mme
um tratado comparável à Política de du Tencin e Mme du Deffand, onde se
Aristóteles, foi tomado de surpresa. deliciava com os prazeres da sociedade e
Todavia, reações contrárias logo come­ mantinha relações no mundo das letras.
çaram a aparecer, e o autor viu-se ataca­ Os editores da Encyclopédie ou Dic-
do por todos os lados. Extenso número tionnaire Raisonné des Sciences solicita­
de panfletos e artigos na imprensa foram vam-lhe a colaboração; quando convi­
escritos, e as denúncias sucediam-se na dado por D’Alembert para escrever
Sorbonne e entre o clero francês, para sobre assuntos políticos, declinou do
culminar em Roma com a colocação da convite e propôs-lhe um artigo sobre o
obra no index dos livros proibidos, em gosto. Seria sua última obra.
1751. Os últimos anos passou em La Brède,

415
OS PENSADORES

embora viajando constantemente. Nas


terras que sempre amou com especial
carinho, vivia tranqüilamente a cuidar CONSIDERATIONS
das vinhas, cujo produto sabia vender SUR LES CAUSES
muito bem. A única coisa que o preocu­
pava era o lento enfraquecimento da DELA
visão, que aos poucos o tomaria cego.
Faleceu em Paris a 10 de fevereiro de GRANDEUR
1755, com sessenta e seis anos de idade.
Em 5 de junho do mesmo ano, Mau-
pertuis pronunciou um elogio fúnebre na
Academia Real de Ciências de Berlim,
retratando com precisão o que fora o
homem Montesquieu: "Sempre inclinado
à brandura e à humanidade, receava
*
DECADENCE-
O—— H I. tp -- •- A* Fl>
mudanças das quais os maiores gênios
nem sempre podem prever as conseqíiên-
cias. Esse espírito de moderação, com o
qual via as coisas na calma de seu gabi­
nete, aplicava-o a tudo e conservava-o
no tumulto da sociedade e no ardor das
conversações. Encontrava-se sempre o
mesmo homem com todos os tons. Pare­
cia então ainda mais maravilhoso do que
em suas obras: simples, profundo, subli­
me, encantava, instruía e nunca ofen­
dia . . . Foi muito negligente em seus há­
bitos e desprezou tudo o que estava além
do asseio. Só vestia os tecidos mais sim­
ples e nunca acrescentava ouro ou prata.
A mesma simplicidade encontrava-se em Anos de preparação foram gastos para
sua mesa e em todo o resto de sua a redação das Considerações, yue são
economia . . .” como queprolegômenos ao Espirito das
Leis. (Frontispício das Considerações
O caminho da ciência na primeira edição, feita em 1734.)

Os ataques a Montesquieu, logo após verso político que estava nascendo. Seu
a publicação do Espírito das Leis, foram objeto são "as leis, costumes e os diver­
em muito maior numero e mais contun­ sos usos de todos os povos da terra”,
dentes do que os que sofrerá ao publicar assunto evidentemente imenso, pois
as Cartas Persas. A preocupação dos abarca "todas as instituições humanas”.
adversários tinha razão de ser. Nas Car­
tas a destruição dos valores tradicio­ O mais importante, contudo, não resi­
nais, embora inteligente e espirituosa, de na extensão dos assuntos abordados,
não vai muito além da superfície das coi­ mas na maneira pela qual o autor os tra­
sas. O Espírito das Leis, ao contrário, tou. A mais significativa originalidade
procura análisar extensa e profunda­ de Montesquieu consiste na revolução
mente a estrutura e a conexão interna metodológica representada pelo Espírito
dos fatos humanos e formular um rigo­ das Leis.
roso esquema de interpretação do O método de Montesquieu comporta
mundo histórico, social e político. Isso dois aspectos inter-relacionados, mas
foi sentido como capaz de abalar os ali­ que podem ser distinguidos com sufi­
cerces do sistema social e político, de ciente clareza. O primeiro exclui da
maneira muito mais perigosa, do que a ciência social toda perspectiva religiosa
simples crítica sarcástica. Era uma ati­ ou moral; o segundo afasta o autor das
tude de ciência teórica diante do uni- teorias abstratas e dedutivas e o dirige

416
MONTESQUIEU

FABBRI
Toda a carreira literária de Montesquieu transcorreu durante o reinado de Luís
XV, neto de Luís XIV e seu sucessor imediato. Antes quefosse proclamada a sua
maioridade em 1723, a Françafoi governada pelo regente Dugue de Orleans, e
como tutorfoi nomeado o então Bispo Fleury. (Um pintor anonimofrancês do
século XVIII retratou uma aula do jovem Luís XV; Museu Camavaíet de Paris.)

para a abordagem descritiva e compara­ quência, tanto uma quanto outra perma­
tiva dos fatos sociais. neceríam para sempre na infância. O
Quanto ao primeiro, constituía um propósito de Montesquieu não é contri­
solapamento do finalismo teológico e buir para isso, fazendo-se de teólogo.
moral que ainda predominava na época, Deliberadamente dispõe-se a permane­
segundo o qual todo o desenvolvimento cer nos estritos domínios dos fenômenos
histórico do homem estaria subordinado políticos, e jamais abandona tal projeto.
ao cumprimento de desígnios divinos, tal Assim como o religioso é excluído
como Santo Agostinho (354-430) tinha como fator determinante dos fatos so­
expressado na Cidade de Deus e Bossuet ciais, da mesma forma o juízo moral
(1627-1704) repetia, em suas linhas deve ser eliminado na apreciação do
essenciais, na História Universal. Mon­ mundo histórico. Já nas primeiras pági­
tesquieu, ao contrário, reduz as institui­ nas do Espírito das Leis adverte o leitor
ções a causas puramente humanas e não contra um possível mal-entendido no que
leva em consideração a providência divi­ diz respeito à palavra "virtude”, que
na. Segundo ele, introduzir princípios emprega amiúde com significado exclu­
teológicos no domínio da história, como sivamente político e não moral.
fatores explicativos, é confundir duas Em suma, para Montesquieu, o corre­
ordens distintas de pensamento e con­ to conhecimento dos fatos humanos só
fundir duas disciplinas. Como conse­ pode ser realizado cientificamente na

417
OS PENSADORES

medida em que eles sejam visados como atingidos de maneira obrigatória, pos­
são e não como deveríam ser. Enquanto suindo, assim, estrutura de ação humana
não forem abordados como indepen­ consciente.
dentes de fins religiosos e morais, ja­ Montesquieu afasta-se radicalmente
mais poderão ser compreendidos. As de tal concepção e aproxima-se delibe-
ciências humanas deveriam libertar-se radamente dos criadores da metodologia
da visão finalista, como já haviam feito das ciências físicas. Lei, para ele, é uma
as ciências naturais, que só progrediram relação necessária que deriva da natu­
realmente quando se desvencilharam do reza das coisas, de tal forma que “cada
finalismo aristotélico-escolástico. diversidade é uniformidade, cada modi­
Hobbes e Spinoza (1632-1677) apre­ ficação é constância”. Nesse sentido,
sentam pontos comuns com Montesquieu “todos os seres têm suas leis: a divinda­
na medida em que, como ele, estabe­ de .. . o mundo material ... as inteli­
lecem como princípio preliminar à ciên­ gências superiores ao homem ... os ani­
cia política o não julgar a história mais ... os homens . . .”
segundo critérios religiosos e morais. Tendo cada domínio de seres suas pró­
Opinam que a religião e a moral, ao prias leis, elas não podem ser apreen­
contrário, devem ser inseridas no con­ didas senão a partir dos próprios fatos,
junto dos fatos humanos que podem ser pela comparação e pesquisa, pelo tateio,
tratados cientificamente. e não pela intuição de essências. Mon­
O projeto e a linguagem de Montes­ tesquieu não pretende extrair princípios
quieu, por um lado, e de Hobbes e Spi­ de preconceitos, mas da natureza mesma
noza, por outro, são idênticos. Diferem, das coisas.
contudo, na maneira de abordar o objeto O projeto de investigação das coisas
da ciência social. O autor das Cartas humanas em sua legalidade específica
Persas parte dos fatos, tais como se dão foi o caminho que levou Montesquieu a
concreta e particularmente, e tenta outra inovação, que se articula com a
extrair hipotéticas leis que os gover­ noção de lei: a categoria de totalidade.
nam; Hobbes e Spinoza procedem de Ela se encontra nos capítulos do Espírito
maneira abstrata e dedutiva. O Espírito das Leis dedicados à distinção entre
das Leis almeja ser uma obra de ciência natureza e princípio dos Estados e prefi-
positiva; o Leviatá de Hobbes e o Trata­ gura a concepção dialética da história,
do Teológico Politico de Spinoza são que só no século XIX será levada até
construções teóricas sobre a essência da suas últimas conseqiiências pelo filósofo
sociedade. Hegel (1770-1831).
Para Montesquieu, natureza de um
Lei e totalidade Estado é aquilo que ele é (república,
monarquia, despotismo), ou seja, é uma
Recusando submeter-se aos princípios certa forma. Princípio é uma disposição
religiosos e morais, e distanciando-se do dos homens no sentido de realizar uma
racionalismo abstrato do século XVII, determinada forma e não outra; é, por­
Montesquieu deu início ao estudo descri­ tanto, uma paixão específica. Na repú­
tivo e comparativo dos fatos humanos, blica essa paixão é a virtude (entendida
formulando um novo conceito de lei, que em sentido político, e não moral); na
constituía, então, uma inovação teórica e monarquia é a honra; e no governo des­
representava sua principal contribuição pótico é o temor.
para a formação da ciência social. Até Os elementos que configuram as for­
então, o significado da noção de lei esta­ mas e os princípios componentes do Es­
va impregnado de finalismo. O pensa­ tado vinculam-se entre si, não de manei­
mento antigo, tanto quanto o medieval, ra somatória, mas como totalidade viva.
ao utilizar a noção de lei, supunha seres O Estado, para Montesquieu, é uma
humanos, ou semelhantes a eles, aos totalidade real, em que todos os porme­
quais a lei se aplicaria como manda­ nores da legislação, instituições e costu­
mento. Supondo uma vontade legisla- mes são efeitos e expressões de uma uni­
dora e o respeito de súditos a ela, a lei se dade interna. Isso significa dizer que o
definiría em termos de alvos a serem desenvolvimento histórico das socieda-

418
MONTESQUIEU

A aristocracia francesa do século XVIII, à qual Montesquieu pertencia e


cujasfunções sociais eram defendidas por ele, vivia nos cenários criados pela
arquitetura barroca. Um de seus melhores exemplos é o Palácio Lambert,
projetado por um dos maiores expoentes da arte francesa do século XVII,
quefoi Louis Le Vau (1612-1670). A decoração do teto é de Le Brun e Le Suer.
des nào tem como motor este ou aquele nhoso ou plano, continental ou insular) e
fator particular, mas decorre da dinâ­ sua maior ou menor fertilidade.
mica própria ao conjunto do sistema. Tais fatores físicos, embora predomi­
Analisando a dinâmica interna desses nantes, não seriam, entretanto, elemen­
sistemas, Montesquieu chegou a algu­ tos que possam determinar completa­
mas generalizações que, do ponto de mente a natureza do Estado. Fatores
vista da ciência social dos dias de hoje, puramente sociais, como a religião, as
parecem primárias. Alguns desses fato­ leis, as tradições, os costumes, teriam o
res — segundo o autor do Espírito das poder de corrigi-los.
Leis — podem predominar sobre os Montesquieu nunca perde, assim, a
demais. A dimensão geográfica, entre visão da totalidade unitária de todos os
outros: quanto maior o território domi­ fatores como princípio científico funda­
nado por um Estado, tanto maiores as mental para o estudo das sociedades. O
possibilidades de vir a configurar um conceito de totalidade permite com­
governo despótico. Quanto menor, tanto preender um momento da existência de
mais tenderá a ser uma república. A um Estado, mostrando a vinculação
monarquia fica no meio termo. Outro interna dentro da aparente diversidade
fator físico é o clima: quanto mais vio­ de suas leis e instituições.
lento e cruel, tanto mais condicionaria o As totalidades políticas, ou unidades
surgimento de governos despóticos. Um forma-princípio, no surgimento e desen­
terceiro fator é o tipo de solo (monta­ volvimento dos Estados, são classifi-

419
OS PENSADORES

vais. Tanto umas quanto outras


caracterizam-se geograficamente pela
pequena extensão do território sob do­
mínio, não podendo estender-se para
além desses estreitos limites. Os cida­
dãos da república são todos iguais
(salvo nas transformações que dão lugar
à aristocracia), formando um conjunto
cujos elementos são da mesma natureza
e justapostos sem hierarquia. Todos cui­
dam igualmente do bem comum, e
mesmo os magistrados componentes do
corpo de direção não são superiores,
pois desempenham seu papel apenas
temporariamente. Mesmo na vida priva­
da os magistrados não são muito dife­
rentes dos demais, na medida em que é
princípio da república uma certa igual­
dade de recursos materiais entre os cida­
dãos. A igualdade política supõe igual­
dade econômica. Cada cidadão, devendo
ter a mesma felicidade, pode fruir os
mesmos prazeres e formar as mesmas
expectativas; coisa impossível de ser
alcançada, a não ser com a frugalidade
geral. A divisão de trabalho entre os
membros da república é reduzida à
expressão mínima, e o comércio, que
supõe para Montesquieu desigualdade
econômica, é pouco desenvolvido.
“Suafigura modesta e desembaraçada As monarquias seriam, historica­
assemelhava-se à sua conversa; seu mente, características da Europa e te-
porte era bem proporcionado”: elogio riam surgido quando os povos germâ­
fúnebrefeito por Maupertuis. nicos invadiram o Império Romano e
(Montesquieu, numa gravura.) partilharam seus despojos. Em termos
de extensão geográfica, encontram-se a
cadas por Montesquieu em três tipos: meio caminho entre as repúblicas e os
república, monarquia e governo despó­ governos despóticos. As funções públi­
tico. Abandona, assim, a tradicional cas tanto quanto as da vida privada são
divisão aristotélica em monarquia, aris­ nelas divididas entre os membros das
tocracia e democracia, muito embora diferentes classes sociais. Uns são agri­
restassem algumas semelhanças de cultores, outros artífices e outros comer­
forma. Nâo eram, contudo, as formas ciantes. Alguns dedicam-se a fazer leis,
políticas o que mais interessava a outros a executá-las. Ninguém pode
Montesquieu, mas os espíritos corres­ recusar-se a cumprir suas funções espe­
pondentes. Por outro lado, a classifi­ cíficas e interferir nas dos outros. Por
cação resultava de uma inspeção histó­ essa razão as monarquias podem ser
rica muito mais ampla do que a definidas como governo de um só, no
realizada, na Antiguidade, por Aristó­ sentido de que cada um é responsável
teles (384-322 a.C.). por suas tarefas e tem sobre elas todo o
O autor do Espírito das Leis dá o poder. Esse poder, contudo, estaria
nome de república .àquelas sociedades condicionado a relações fixas e constan­
encontradas no mundo grego e itálico da tes, que não podem ser mudadas pelos
Antiguidade, caracterizadas pela orga­ governantes. Isso significa dizer que
nização em cidades-Estados, e acres­ existem ordens constituídas que impõem
centa a elas as cidades italianas medie­ limites ao exercício do poder. As leis

420
MONTESQUIEU

máximo e a fortuna pessoal adquire


grande importância. Na monarquia exis­
DE LESPRIT tem graus diferentes de honras, dignida-
DES des, riquezas e poder, de tal forma que
cada membro tem diante de si uma
L O I X. ordem superior que almeja alcançar. A
diversidade das funções é responsável
pela coesão, na medida em que a vonta­
Ov do «.«rranr ejrt tf» l»t* ootrtirr xrora /• ic m Cox*-
rtrvnou xc cuey* Gocr hxem» xr> us Mocv*i> de que move as ordens e os indivíduos é
W«CuM«r> M ÍU1IC/OX, LI CoMMMCl. &C. responsável também pelo aperfeiçoa­
• fui tAmnr c a/tatí mento de cada um. Assim, todos contri­
Dc* recherchci nouveMet far ks Lòx Romaãnes touctant ks buem para o bem geral, embora acredi­
Succdfoos. fur ks Loix Fnafoifcs. &£ur ks Loix Féodaks. tem visar apenas às vantagens pessoais.
NOUVELLEEDITIOÍ O princípio animador das monarquias
levw 4c rwrijr», «wc *• ckMftMM csxGdtnHo dna& pr FAaMK é a honra, segundo Montesquieu. Desig­
na os anseios específicos dos indivíduos
e das classes. A honra não permite ao
seu possuidor aceitar diminuição em sua
categoria e pode tornar-se um defeito
quando origina o excessivo amor de si
próprio.
O governo despótico seria uma espé­
cie de monarquia, na qual todas as or­
dens teriam sido abolidas, e não subsis­
tisse a divisão do trabalho; ou então
A AMSTERDAM. uma democracia em que todos os cida­
Chrz ZaCMAAIK CXATKLAIK. dãos se tomassem iguais tão-somente na
M D C C X L I X.
servidão a um chefe de Estado. O gover­
no despótico é como um ser monstruoso
no qual subsiste com vida apenas a cabe­
“Ele exerceu ação profunda e ça, por ter usurpado para si todas as for­
perdurável no seu tempo, e contém ças das partes restantes. Seu princípio é
muitos ensinamentospara o nosso”: o temor.
A. Sorel escrevendo sobre Montesquieu. Além das formas precedentes, Mon­
(Frontispicio do Espírito das Leis.) tesquieu descreve um quarto tipo de
sociedade, encontrado entre os povos
possuem força própria. A sociedade caçadores ou de pastoreio. Caracteriza-
monárquica é, para Montesquieu, como se pelo restrito número de seus mem­
um organismo vivo, cujos elementos, bros, pela inexistência de propriedade
segundo suas naturezas, exercem fun­ de terra, pela ordenação da vida social
ções diferentes; nela a divisão orgânica através dos costumes e não das leis, e
do trabalho é levada ao máximo desen­ pela autoridade dos mais velhos. Essas
volvimento, ao contrário do que ocorre sociedades constituem uma espécie de
nas repúblicas. As classes, órgãos do democracia inferior. Montesquieu desig­
corpo social, não só limitam a autori­ na-as pela expressão ‘■‘povos selvagens^1,
dade do príncipe, como limitam-se reci­ quando seus membros estão dispersos
procamente. Cada uma delas, estando em pequenas comunidades, e “povos
impedida de crescer ao infinito, pode bárbaros”, quando se reúnem num todo.
desenvolver sua natureza particular sem
quaisquer obstáculos. A opção política
O princípio que constitui a fonte de
energia das monarquias seria diferente
do encontrado nas repúblicas. Não é o Ao pintar o quadro dos tipos de socie­
sentimento da pátria comum que ocupa dade e de organização política, Montes­
os indivíduos, mas o de classe. Cada quieu procura manter a maior fidelidade
classe social tende a desenvolver-se ao possível ao projeto que se propusera de

421
OS PENSADORES

Os salões mantidos pelas grandes damas do século XVIIIfrancês tiveram muita


influência na vida política, intelectual e artística. Entre outros, o mais
famoso foi o da célebre Madame Pompadour. Como favorita de Luís XV, empregou
todo o seu prestígio para a proteção dos intelectuais, entre os quais Voltaire
e Montesquieu. (Retratopor Maurice Quentin-La Tour, Museu do Louvre, Paris.)

422
MONTESQUIEU

fazer uma rigorosa ciência positiva, o Executivo de penetrar nas funções


limitada aos fatos humanos tais como judiciárias; dos burgueses, quando esta­
realmente aconteceram. Apesar disso, belece que os nobres não podem ser jul­
seu pensamento transita aos poucos do gados por magistrados populares.
puramente fático para o normativo, e Montesquieu sonha com o renasci­
desenha-se um projeto político no Espí­ mento daquelas monarquias primitivas
rito das Leis. Quando descreve os siste­ da Europa germânica, em que os reis
mas republicanos, monárquicos e despó­ eram eleitos entre os nobres e tinham
ticos, sente-se sua simpatia pelos seu poder limitado por eles. Esse tipo de
segundos. Mas é na famosa teoria da monarquia moderada foi transformada
separação dos poderes que vem à luz desde os fins da Idade Média, vindo a
mais claramente sua opção política. constituir as monarquias absolutistas, e
A teoria da separação dos poderes é contra estas que Montesquieu se opõe,
encontra-se no livro XI do Espírito das limitando o âmbito de ação dos monar­
Leis (concebido muito depois dos dez cas através do princípio de separação
primeiros livros), e foi inspirada pelo dos poderes.
sistema político constitucional, conhe­ Por outro lado, como autêntico aristo­
cido quando de sua viagem à Inglaterra, crata, desagradava-lhe a idéia de o povo
em 1729. Ali encontrou um regime cujo todo possuir poder. Por isso estabeleceu
objetivo principal era a liberdade. a necessidade de uma Câmara Alta no
A partir dessa experiência, Montes­ Legislativo, composta por nobres. A
quieu formulou a tese que viria a ser nobreza, além de contrabalançar o poder
integrada na Constituição americana e da burguesia, era vista por ele como
expressa no artigo 17 da Declaração capacitada, por sua superioridade natu­
Universal dos Direitos do Homem e do ral, a ensinar ao povo que as grandezas
Cidadão. Desde então, a teoria da sepa­ são respeitáveis e que a monarquia
ração dos poderes passou a ser princípio moderada é o melhor regime político.
político de todos os governos que sofre­ Montesquieu nâo foi, portanto, o
ram a influência da Revolução Francesa. arauto disfarçado da burguesia que
Essa teoria estabelece a separação deveria triunfar na Revolução Francesa,
dos poderes Legislativo, Executivo e como chegou a ser interpretado. Suas
Judiciário, cada um com seus órgãos críticas profundas ao despotismo abso-
específicos e compostos por pessoas lutista visam à restauração do espírito
diferentes. Essa separação não é, contu­ das primitivas monarquias, e a separa­
do, tão rígida como pode parecer à pri­ ção de poderes que teorizou constitui
meira vista. Montesquieu admite o expressão daquela ordem que sempre
poder de veto do monarca sobre as deci­ admirou nas monarquias medievais.
sões do Legislativo; por outro lado, o Conservador por temperamento e condi­
Legislativo invade as atribuições do ção social, esteve sempre a serviço de
Judiciário, quando o autor estabelece sua classe.
que os nobres só poderão ser julgados Paradoxalmente, foi a nostalgia do
pelos seus pares e nunca por magis­ passado que fez dele um dos instru­
trados populares. mentos para a Revolução Francesa. Cri­
Assim, a separação dos poderes é ticou a ordem vigente do despotismo em
relativa, e o mais importante dos aspec­ nome dos valores da monarquia mode­
tos da teoria é a relação de forças entre rada primitiva, e a crítica serviu como
os detentores do poder: o rei, os nobres e um dos estopins para a revolução que
os burgueses. Aqui se atinge todo o instauraria a forma republicana e bur­
significado do projeto político de Mon­ guesa, que-ele sempre desprezou.
tesquieu e sua inserção dentro do quadro O importante, contudo, foi a contri­
dos conflitos sociais por ele vividos. O buição que deixou para o estudo da his­
autor do Espírito das Leis opta clara­ tória e da sociedade, em termos científi­
mente pelos interesses da nobreza, quan­ cos, ao mostrar o caminho a ser seguido:
do põe a aristocracia a salvo tanto do rei a inspeção das relações necessárias
quanto da burguesia. Do rei, quando a entre os fatos humanos e sua compreen­
teoria da separação dos poderes impede são em termos de totalidades.

423
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1689 — Montesquieu nasce 1721 — Montesquieu publi­ derações sobre as Causas da
no Castelo de La Brède, per­ ca as Cartas Persas. Fun- Grandeza e Decadência dos
to de Bordeaux. da-se a primeira loja maçô- Roman< s.
1690 — Huyghens escreve nica na França. 1743 — É publicado o Tra­
o Tratado da Luz e Purcell 1722 — Vem à luz o Trata­ tado de Dinâmica de
compõe King Arthur. do de Harmonia de Rameau D’Alembert.
1694 — Aparece o Dicioná­ e Bach compõe O Cravo 1747 — Franklin descobre
rio da Academia Frencesa t Bem Temperado. o princípio do pára-raios.
La Fontaine escreve as Fá­ 1725 — Montesquieu publi­ 1748 — Montesquieu publi­
bulas. ca Templo de Gnido. Vico ca O Espírito das Leis. Des-
1695 — Vem à luz o Dicio­ escreve os Piincípios de Fi­ cobrem-se as ruínas de
nário Histórico e Crítico de losofia da História. Pompéia e Euler torna pú­
Bayle. 1726 — Montesquieu deixa blica a Introdução à Análise
1705 — A bula Vineam Do- o cargo que ocupava no dos Infinitos.
mini condena o jansenismo Parlamento de Bordeaux. 1750 — Montesquieu escre­
1715 — Montesquieu casa- Bernouilli publica o Tratado ve a Defesa do Espírito das
se com Jeanne de Lartigue, das Leis de Comunicação Leis.

R R A S II
moça protestante. Morte de do Movimento, Vico a Ciên­ 1751 — Surge o primeiro
Luís XIV e consequente as­ cia Nova e Jonathan Swift volume da Enciclopédia.
censão de Luís XV. /Ls Viagens de Gulliver. 1754 — Condillac publica

-
1716 — Montesquieu herda 1728 — Montesquieu é elei­ o Tratado das Sensações.

S Ã O P A I II O
o título de Barão de Montes­ to para a Academia France­ 1755— Montesquieu falece
quieu. sa e inicia um período de em Paris, no dia 10 de feve­
1719 — Daniel Defoe pu­ viagens pela Europa. reiro, com sessenta e seis
blica Robinson Crusoé. 1734 — Publica as Consi­ anos de idade.

-
IN D U S T R IA I
BIBLIOGRAFIA
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424
OS PENSADORES

Enquanto George Berkeley, no começo do século XVIII, preocupava-se com


refutar na filosofia e na ciência de sua época todas as idéias que pudessem
conduzir ao materialismo e ao ceticismo, o contemporâneo William Hogarth
(1697-1 764) retratava satiricamente os costumes populares.
(William Hogarth: “Cena de uma Tavema”, Museu Sir John Soane, Londres.)
Na página anterior: George Berkeley, bispo de Cloyne,
retrato executadoporj. Snibert. (Galeria Nacional de Retratos, Londres.)

eorge Berkeley nasceu em Kil- cos, hoje de grande importância para a

G kenny, Irlanda do Sul, em 12 de


março de 1685. Estudou na escola
compreensão de sua obra posterior.

da cidade natal, por cujos bancos tinha


Seu sistema filosófico foi concebido e
realizado quando ainda relativamente
passado, alguns anos antes, o autor das jovem. Em 1709, aos vinte e quatro anos
Viagens de Gulliver, o conhecido sati­ de idade, Berkeley publicou o Ensaio
rista Jonathan Swift (1667-1745). Os para uma. Nova Teoria da Visão. Um ano
estudos superiores foram feitos no Tri- depois, surge o Tratado sobre os Princí­
nity College de Dublin, onde Berkeley pios do Conhecimento Humano e, em
tornou-se felloiv em 1707, quando pas­ 1713, os Três Diálogos entre Hilas e
sou a lecionar hebraico, grego e teolo­ Filonous, nos quais retoma e desenvolve
gia. Nessa época, lia muito os filósofos as teses e argumentos do Tratado.
(especialmente Locke, Newton e Male- Trata-se, portanto, de uma obra intei­
branche) e anotava observações, reuni­ ramente estruturada nos começos do sé­
das sob o título de Comentários Filosófi­ culo XVIII, quando as ciências naturais

426
BERKELEY

se desenvolviam libertas do finalismo


aristotélico e escolástico e capacitadas a
explicar os fenômenos de maneira autô­
noma, sem qualquer intervenção de fato­
res sobrenaturais. A natureza era vista
como um conjunto de fatos explicáveis
por si mesmos, cabendo ao homem tão-
somente decifrar a ordem matemática
inerente a eles.
Tal maneira de ver a natureza condu­
zia a uma concepção materialista do
universo. Pelo menos foi o que aconteceu
historicamente, dada a ausência da
necessidade de conceitos como “espíri­
to” e outros análogos. Nesse sentido
foi importante a concepção dualista for­
mulada por Descartes (1596-1650), se­
gundo a qual existem duas substâncias

BEi TMANN ARCHI VE, INC.


independentes (pensante e extensa),
cada uma com seus domínios próprios.
Minava-se, assim, a visão cristã medie­
val de uma natureza criada por Deus e
subsistindo apenas em função dele. Não
bastasse isso, Descartes desenvolveu
muito mais a parte de suas obras refe­
rentes à substância extensa e criou as
coordenadas de uma física matemática, Berkeleyfoi influenciado por Locke
que se propunha a explicar os fenômenos (acima) e foi grande amigo de Swift,
físicos de maneira autônoma. autor das Viagens de Gulliver, cujo
Na Inglaterra, Newton (1642-1727) frontispício da edição de 1 726 é
caminhava no mesmo sentido e mostrava visto abaixo. (Museu Britânico.)
a verdadeira via para o conhecimento
dos fenômenos físicos: a união entre a
matemática e a experimentação. Tho- Li-muel Gui.ltvf.rs
mas Hobbes (1588-1679) formulou um
rígido sistema materialista e John Locke
(1632-1704) desenvolveu uma teoria
T RAVELS
empirista do conhecimento que — pensa­ I N TO S r V I. R A Í

va Berkeley — conduzia diretamente ao


mãterialismo e ao ceticismo. Remote Nations
Uma filosofia imaterialista 0 1 THE

Dentro desse panorama, Berkeley dis-


pôs-se a restabelecer o primado do espí­
WORLD.
rito, investigando “as principais causas Compcndioufly methodizcd, for publick Bc-
nchc; with Obíèrvations and Explanatory
do erro e das dificuldades nas ciências e Note» throughout.
os fundamentos do ceticismo, do ateísmo
e da irreligião” (subtítulo do Tratado The Mim» of thc Fkovti$fif.cí.
sobre os Princípios do Conhecimento jílwye, thc l.illiptitijn-Sifwe
riHC-uh* ftc Flitniwp, by bit \Vandt br.ir fw.ty,
Humano). Para alcançar esses objetivos,
tomou como ponto de partida a filosofia
/. 0 /V 7> (» A*
de Locke, admitindo o essencial da teo­
'\irnol m thc ¥c.i MniGxxv
ria do conhecimento empirista, mas che­
BB Rí

gando a resultados inteiramente diferen­


tes e até certo ponto paradoxais.

427
OS PENSADORES

Johrf Locke tinha desenvolvido, no En­ particular), essa idéia é apenas o resul­
saio sobre o Entendimento Humano, a tado final das inúmeras e sucessivas
concepção de que todo conhecimento se impressões de árvores particulares, que
origina da experiência sensível e não foram produzidas cada vez que esse
existem idéias no intelecto humano pro­ homem viu árvores concretamente exis­
duzidas exclusivamente pelo próprio tentes na natureza. Assim, todas as
intelecto. Não existiríam as chamadas idéias que o homem possui em sua mente
“idéias inatas”, admitidas por Descar­ seriam o resultado de um processo que
tes. As idéias matemáticas de quanti­ se inicia com uma sensação particular
dade, por exemplo, não constituem, para (pela visão, tato, olfato, paladar ou
Locke, formas impressas na mente antes audição), repetida muitas vezes.
do aparecimento das funções sensíveis Essa teoria supunha, consequente­
na criança. Quando o homem nasce, sua mente, que as coisas exteriores à mente
mente seria como um papel em branco. humana possuiríam qualidades objeti­
Sobre esse papel, os contatos fisicos, vas, capazes de provocar o aparecimento
estabelecidos pelos cinco sentidos, im­ das sensações subjetivas da mente hu­
primiríam aos poucos os caracteres que, mana e as idéias resultantes. Chegava-
depois de múltiplas experiências do se, assim, à concepção de que o mundo
mesmo tipo, formariam as idéias gerais. exterior é constituído por algumas qua­
Exemplificando, se o homem tem em sua lidades primárias, à soma das quais os
mente uma idéia geral de árvore (que filósofos da natureza deram o nome de
não deve ser confundida com a represen­ matéria, ou substância material. Essa
tação mental desta ou daquela árvore em substância material não poderia ser

“Não argumento contra a existência das coisas que podemos apreender pelos
sentidos ou pela reflexão. Em absoluto, não ponho em dúvida que as coisas que
vejo com meus olhos e toco com minhas mãos existam e existam realmente. ” Uma
das coisas que Berkeley viu e tocou foi a Casa da Velha Guarda de St. James
Park, representada por Canaletto. (Coleção Malmesbury, Basingstoke.)

428
BERKELEY

"Dado que a filosofia não é outra coisa senão o estudo do saber e da verdade,
deveria supor-se fundadamente que os que dedicaram muito tempo e esforços a
ela deveríam gozar maior calma e serenidade de pensamento . . . Na realidade,
porém, vemos, ao contrário, que a grande massa iletrada da humanidade . . . vive
em sua maioria tranqüila ...” (Berkeley, gravura de W. Skeldon, executada
sobre um quadro pintado por Vanderbank, Biblioteca Nacional de Paris.)
revelada diretamente aos sentidos, re­ dos para o conceito abstrato de subs­
sultando seu conhecimento de um pro­ tância material. Aderindo ao mais
cesso de inferência puramente intelec­ completo empirismo, afirma que essa
tual. Em outros termos, a matéria — substância material nâo pode ser conhe­
difefentemente das coisas materiais — cida em si mesma. O que conhecemos do
não pode ser vista, ouvida, cheirada, etc. mundo exterior resume-se às qualidades
Esses processos sensoriais só ocorre­ reveladas no processo de percepção e
ríam com as coisas constituídas a partir nada mais, de tal forma que é forçoso
da matéria. concluir pela afirmação de que a exis­
Berkeley concorda com as linhas ge­ tência das coisas nâo é mais do que um
rais da teoria empirista de John Locke, feixe de sensações. Em poucas palavras,
mas não admite a passagem do conheci­ "ser é ser percebido” ("esse est perci-
mento dos dados fornecidos pelos senti­ pi”). Dizendo o mesmo de maneira mais

429
OS PENSADORES

concreta, a cor dos objetos não seria (1672-1729) e Jonathan Swift, e escre­
mais do que algo visto; o som, algo ouvi­ veu alguns artigos contra os livres-pen-
do; a forma, algo visto ou sentido pelo sadores. Numa segunda estada na capi­
tato e assim por .diante. Todo o mundo tal inglesa, de 1716 a 1721, escreveu
corpóreo seria sempre o sensorial, um um pequeno ensaio em latim, Sobre o
conjunto de fatos existentes unicamente Movimento, no qual critica a filosofia da
nos sujeitos que conhecem. Nâo existiría natureza de Newton e a teoria da força
qualquer possibilidade de conhecer-se de Leibniz (1646-1716).
uma existência independente, determi­ Em 1724 tomou-se deão em Derry (Ir­
nada pela estrutura das próprias coisas, landa) e, na mesma época, projetou a
como queriam Locke e os filósofos da fundação de um colégio nas Bermudas,
natureza do século XVII. onde pretendia educar, para o ministério
Nâo se tratava, portanto, de negar a evangélico, não só os filhos dos colonos
existência das coisas materiais que americanos, mas também negros e indí­
constituem o meio ambiente do homem. genas. Procurou ajuda financeira e par­
O que Berkeley pôs em questão foi a tiu para Rhode Island, nos Estados Uni­
idéia abstrata, então corrente, de maté­ dos, onde planejava estabelecer
ria como uma substância fundamental, fazendas para prover o colégio de ali­
constitutiva de todas as coisas e radical­ mentos. Depois de algum tempo, cansa­
mente diferente da substância pensante, do de esperar pelo apoio que acabou não
segundo a terminologia cartesiana. vindo, abandonou o projeto e voltou
A teoria berkeleiana de que “ser é ser para Londres, em 1731. Nesse meio
percebido” não significa, contudo, que o tempo escreveu uma obra sob forma de
mundo se reduz à mente de cada indiví­ diálogos, Alciphron, contra os livres-
duo, pois Berkeley ajunta um comple­ pensadores e, no período de 1732 a
mento essencial para evitar todo subjeti- 1734, redigiu O Analista, no qual criti­
vismo individualista. Trata-se da cava o cálculo diferencial e integral de
postulação da existência de uma mente Newton, e Uma Defesa do Livre Pensa­
cósmica, superior à mente de cada mento em Matemática.
homem. Essa mente cósmica é Deus, Em 1734 foi escolhido para o cargo
concebido como sujeito cognoscente ab­ de bispo de Cloyne, região isolada e
soluto, no espírito do qual todas as coi­ pobre da Irlanda, onde encontrou pro­
sas seriam percebidas. O mundo é, por­ blemas que o fizeram refletir sobre os
tanto, concebido por Berkeley como um assuntos econômicos. O resultado disso
conjunto de coisas corpóreas existentes foi O Questionador, obra na qual apre­
na mente divina e tendo nela toda sua senta uma série de questões econômicas
raz'âo de ser. e sociais, como a pobreza e a ociosidade,
propondo algumas soluções, através de
Um homem idealista trabalhos públicos e educação. Preocu­
pou-se também com problemas de saúde
Berkeley tentou salvar o espírito e a pública e entusiasmou-se com os valores
religião com suas obras filosóficas. Se medicinais da água de alcatrão, na qual
alcançou o objetivo almejado, ou apenas acreditou ter encontrado uma verdadeira
substituiu a idéia abstrata de matéria panacéia universal. Escreveu então sua
por outra não meniqs abstrata, a de última obra, Siris ou Reflexões e Inves­
Deus, é assunto discutível. Não se discu­ tigações Filosóficas sobre as Virtudes da
te, contudo, que foi um homem piedoso e Agua de Alcatrão, na qual se, aproxima
idealista (no sentido moral da palavra) de doutrinas do antigo neoplatonismo e
até os últimos dias de sua vida. analisa as causas dos fenômenos fisicos,
Depois de concluído o essencial de sua achando que elas devem ser explicadas
filosofia imaterialista, em 1713, quando pela ação divina.
contava apenas 28 anos de idade, viajou Siris foi publicada em 1744 e, dessa
para Londres, onde manteve contatos data em diante, pouco se sabe sobre a
com os poetas Joseph Addison vida de George Berkeley, a não ser que
(1672-1719) e Alexander Pope em 1752 se estabeleceu em Oxford, onde
(1688-1744), o escritor Richard Steele faleceu no ano seguinte.

430
BERKELEY

“A existência da matéria ou de corpos não percebidos não só tem sido o


principal apoio de ateístas efatalistas, mas também a idolatria em suas
váriasformas aepende do mesmo princípio. Se os homens considerassem que o
Sol, a Lua, as estrelas e quaisquer objetos sensíveis não têm outra existência
senão ser percebidos, nunca adorariam as próprias idéias, mas dirigiríam a sua
homenagem ao Eterno Espírito . . (Retrato de Berkeley, Coleção Mansell.)

431
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1685 — George Berkeley de Dublin. Denis Papin Derry (Irlanda). Nasce o fi­
nasce em Kilkenny, Irlanda, constrói um barco a vapor. lósofo Emanuel Kant.
o 12 de março. Nascimento 1709 — Berkeley publica o 1728 — Berkeley casa-se e
de Bach, Hãndel e do pintor Ensaio para uma Nova Teo­ vai morar em Newport,
J. M. Nattier. ria da Visão. Rhode Island, nos Estados
1687 — Malebranche publi­ 1710 — Surge o Tratado Unidos.
ca Colóquios sobre a Meta­ sobre os Princípios do Co­ 1732 — Novamente em
física e Newton, os Princí­ nhecimento Humano de Londres, Berkeley publica
pios de Filosofia Natural. Berkeley. Leibniz publica a Alciphron.
1690 — Vem à luz o Ensaio Teodicéia. 1734 — É escolhido para o
sobre o Entendimento Hu­ 1713 — Berkeley cuida da cargo de bispo de Cloyne
mano de John Locke. publicação dos Três Diálo­ (Irlanda) e publica O Ana­
1700 — Berkeley ingressa gos entre Hilas e Filonous e lista.
no Trinity College de Du­ começa um período de via­ 1735 — Publica Uma Defe­
blin. gens, que se estende até o sa do Livre Pensamento em
1701 — Funda-se, na Ingla­ ano seguinte. Matemática e O Questiona-
terra, a Sociedade para Fo­ 1716 — Novo período de dor. Surge o Ensaio sobre o
mento do Conhecimento viagens que se prolonga até Homem de Alexander Pope.
Cristão. 1720. 1744 — Berkeley publica
1702 — Funda-se o primei­ 1721 — Publica um peque­ Siris. Nasce Lamarck.
ro diário inglês, o Daily no ensaio Sobre o Movi­ 1752 — Berkeley transfere-
Courant. mento, no qual critica New­ se para Oxford.
1707 — Berkeley torna-se ton e Leibniz. 1753 — Falece em Oxford,
professor no Trinity College 1724 — Torna-se deão de no dia 14 de janeiro.

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432
OS PENSADORES

avid Hume nasceu na Escócia, em

D Edimburgo, no dia 7 de maio de


1711. Seu pai residia na aldeia de
Chirnside, a uns 15 km do rio Tweed,
onde tinha uma pequena propriedade
rural, chamada Ninewells. Catfierine, a
mãe, era filha de Sir David Falconer,.
presidente do Supremo Tribunal da
Escócia. David passou a infância em
Ninewells, até que, ao completar doze
anos de idade-, foi estudar no college de
Edimburgo, junto com o irmão John.
Durante quatro anos fez sólidos estudos
clássicos. Isso, mais a tradição familiar
materna, fez com que os parentes o
orientassem no sentido de estudar advo­
cacia, mas a disposição do adolescente
era bem outra. Em 1726 abandonou a
universidade e voltou para Ninewells,
onde se dedicou a ler Cícero, Virgílio,
Horácio, os escritores ingleses da época
(Swift, Milton, Pope) e os filósofos Clar-
ke e Bayle.
David não era, contudo, apenas um
intelectual em germe; como um jovem
qualquer, procurava se divertir e ligou-
se a Anne Galbraith, que o acusaria de
ser pai de um terceiro filho, que ela tive­
ra fora do casamento. Mas além das
aventuras amorosas, David pretendia
viver também a aventura do mundo
desconhecido e aceitou então um empre­
go, junto a um mercador das Índias
Ocidentais. Esperava correr o mundo,
mas nada aconteceu como planejara e os
sonhos de “expansão geográfica” acaba­
ram modestamente do outro lado do
canal da Mancha: primeiro em Reims,
depois em Anjou, no território francês.
O mundo não foi desbravado, mas em
compensação o jovem David encontrou
tranquilidade e atmosfera intelectual no
famoso colégio de La Flèche, onde Des­
cartes estudara com os jesuítas. Na
França permaneceu por dois anos e reve­
lou o primeiro fruto de suas inquietações
intelectuais: as duas primeiras partes de
um Tratado da Natureza Humana, obra
que permanecería, para os especialistas,
seu principal trabalho, embora escrito
na juventude.
Retrato de David Humepor autor De volta a Londres em 1737, cuidou
desconhecido. Na página anterior: da publicação do Tratado, ao mesmo
Hume, pelo pintor escocês Allan tempo que se dedicava à composição
Ramsay (1713-1784), acervo da da terceira parte e a uma cuidadosa revi­
Galeria Nacional Escocesa de Retratos. são de todo o texto, a fim de não chocar

434
HUME

“O puro filósofo é uma personagem que o mundo em geral não acolhe muito bem,
porjulgar que ele não contribui nada para o proveito ou o prazer da
sociedade; enquanto ele, por seu lado, vive afastado do contato humano,
absorvido em princípios e idéias alheios à compreensão humana.” Não foi o caso
de Hume quando participou da vida mundana na corte de Viena, cidade acima
representada por Bellotto (1721-1 780). (Museu de História da Arte, Viena.)
os “donos” da filosofia oficial e as auto­ cepção o espera: é recusado sob a acusa­
ridades religiosas. Dois anos depois a ção de heresia, ateísmo e por ser "notó­
obra veio à luz, sem receber, contudo, a rio infiel”.
recepção triunfal que o ambicioso Hume Os planos ambiciosos do homem de
esperava. Ninguém Ibe deu maior aten­ letras e filósofo não davam certo. Parte
ção e o autor retirou-se decepcionado então para outros afazeres, que não
para Ninewells, em busca do conforto serão menos infelizes. Passa algum
dos amigos. Entre eles estava Adam tempo como tutor do Marquês de Annan-
Smitb (1723-1790), posteriormente fa­ dalfe e, logo depois, torna-se secretário
moso como principal figura da economia do General Saint-Clair numa expedição
política clássica. militar contra a França. O ataque foi
totalmente malogrado e todos voltam
Filósofo e embaixador humilhados para a Inglaterra. No ano
seguinte acompanha o mesmo general,
Apesar de aborrecido com o insucesso agora numa embaixada pacífica, até as
da primeira obra, Hume continua a cortes de Viena e Turim. Com o pomposo
escrever e publica, em 1741, os Ensaios título de marechal-de-campo, tem a
Morais e Políticos. O estilo elegante faz incumbência de auxiliar Saint-Clair no
a obra bem recebida, mas náo o sufi­ sentido de reforçar a aliança entre Ingla­
ciente para satisfazer a ambição do terra, Áustria e Piemonte contra a Fran­
autor. Hume tenta, então, outro cami­ ça. O papel não lhe cabia muito bem;
nho, apresentando-se como candidato ao segundo uma testemunha da época,
cargo de professor da cadeira de ética da parecia desajeitado e canhestro dentro
Universidade de Edimburgo. Nova de­ de suas vestimentas escarlates.

435
OS PENSADORES

Ao estudarmos com atenção a vaidade da vida humana e ao voltarmos todos os


nossos pensamentos para o vazio e o transitório das riquezas e honras, outra
coisa não fazemos, talvez, senão lisonjear a nossa indolência natural. . . ”
Quando escreveu esse pensamento, David Hume, provavelmente, tinha em mente
manifestações de indolência comuns em sua época, como a representada pelo
pintor Van Loo (1705-1765) em “Pausa na Caça (Museu do Louvre, Paris.)
Se a aparência tem alguma coisa de Terminada a viagem em 1749, Hume
ridículo, o cérebro, no entanto, conti­ retoma a Ninewells e põe-se a reescrever
nuava ativo e sério. Em 1748 publica os a terceira parte do Tratado da Natureza
Ensaios Filosóficos sobre o Entendi­ Humana, que lhe causara tanto desgos­
mento Humano, título posteriormente to. Desse trabalho de revisão resulta a
mudado para Investigação sobre o En­ Investigação sobre os Princípios da
tendimento Humano. No mesmo ano Moral, publicada em 1751. Escreve
publica uma edição aumentada dos também os Discursos Políticos e projeta
Ensaios Morais e Políticos. Além dessas uma continuação das Viagens de Gulli-
obras teóricas, escreve um Diário de ver de Swift, com a qual pretende ridicu­
Viagem, em que se revela excelente larizar os padres. O projeto não é levado
observador dos modos de vida e econo­ a cabo, mas começa a redigir os Diálo­
mia dos povos visitados, e sabe observar gos sobre a Religião Natural, só publi­
com leve humor os traços picantes da cados após sua morte, pois se o fizesse
vida na corte vienense. antes correría sérios riscos.

436
HUME

Perigo nâo corre, entretanto, a fama


há tanto desejada. A celebridade chega e
o essencial de sua'mensagem filosófica
está em letra de forma. Nârt é uma men­
sagem muito a gosto das autoridades, e
uma tentativa para ocupar a cátedra de
lógica na Universidade de Glasgow
resulta em novo fracasso, sob a acusação
de ateísmo. No entanto, tem muitos ami­
gos no partido deísta, que conseguem
colocá-lo no posto de conservador da
Biblioteca dos Advogados, em Edimbur­
go.» Cercado por trinta mil volumes e
inúmeros manuscritos de importantes
documentos, resolve dedicar-se à histó­
ria. O fruto desse trabalho ê uma Histó­
ria da Inglaterra, cujos volumes apare­
ceram entre 1754 e 1762. Além disso,
publica a Dissertação sobre as Paixões,
onde se encontra reescrita a segunda
parte do Tratado da Natureza Humana,
concluindo assim a revisão da tão infor-

FABBRI
tunada obra da juventude. DAVID Í1VA1E ESQÍ

O encontro com Rousseau


Os tempos agora são bem melhores.
James Boswell (1740-1795), biógrafo
escocês, considera-o “o maior escritor
vivo da Grã-Bretanha” e as traduções de
suas obras começam a aparecer na Fran­
ça e na Alemanha. Os inimigos, entre­
tanto, continuam à espreita e acham
demasiado graves algumas expressões
mais vivas da História da Inglaterra,
quando Hume fala de fanatismo e
superstição religiosa. Além disso, acu­
sam-no de introduzir livros licenciosos
na Biblioteca. Em conseqüência, Hume
demite-se e volta à diplomacia.
Começa então o período mundano de
sua vida. As amizades com a mais alta
intelectualidade européia são muitas e
enriquecedoras. Figuram entre elas o
escritor e naturalista Buffon
(1707-1788), o administrador Turgot
(1690-1751), o escritor Jean François
Marmontel (1723-1799), o filósofo Hel-
vetius (1715-1771) e principalmente David Hume (acima, em gravura de uma
D’Alembert (1717-1783), a quem Hume edição de suas obras)procurou rever
deixará uma herança. Une-se também a cuidadosamente o texto final do
Rousseau (1712-1778), que se encontra Tratado da Natureza Humana para não
em plena fase de delírio de perseguição chocar as autoridades; pensava,
e, apesar de abrigá-lo na Inglaterra, especialmente, no bispo Joseph Butler
Hume é maltratado e acaba por cansar- (1692-1 752) (ilustração abaixo),
se das suspeitas do amigo neurótico. cujo patrocínio pretendia obter.

437
OS PENSADORES

Publica, então, toda a correspondência O ponto de partida é uma classifi­


entre os dois e um Relato Conciso e cação de tudo aquilo que se dá a conhe­
Genuíno das Relações entre os Senhores cer como sendo de dois tipos: impres­
Hume e Rousseau, colocando um ponto sões e idéias. As impressões são os
final nas relações com “o mais sombrio e dados fornecidos pelos sentidos, sejam
horroroso vilão que existe no mundo”. internas — como a percepção de um esta­
Compensando os infortúnios da ami­ do de tristeza —, sejam externas, como a
zade com Rousseau, em Paris Hume é visão de uma paisagem ou a audição de
admirado pela extensão de seus conheci­ um ruido. As idéias são representações
mentos, profundidade de pensamento e da memória e da imaginação e resultam
elegância de estilo, além de ser conside­ das impressões como suas cópias modi­
rado um homem bondoso e alegre. As ficadas; podem ser associadas por seme­
mulheres não o deixam em paz, apesar lhança, contigüidade espacial e tempo­
de sua desgraciosa figura. Freqíienta os ral e causalidade. Em suma, trata-se de
mais famosos salões das senhoras pari­ um novo passo em relação à teoria de
sienses e liga-se principalmente a Hyp- John Locke, segundo a qual a mente é
polite de Saujon, mulher bonita e muito uma tabula rasa, uma folha de papel em
inteligente. branco, em que são impressos caracteres
Depois de algum tempo, acaba por através dos mecanismos da experiência
cansar-se e volta à tranqiiilidade de sensível. Cegos ou surdos de nascença
Edimburgo. Encontra ainda energia não possuem esses caracteres, ou seja,
para escrever uma Vida de David Hume, não têm idéias correspondentes às cores
Escrita por Ele Mesmo, toma as últimas ou aos sons, e um ser completamente
providências com relação à herança e es­ desprovido dos sentidos jamais seria
pera lúcido e tranqüilo os momentos capaz de qualquer conhecimento.
finais. Em 25 de agosto de 1776 falece e A essa concepção dá-se o nome de
no dia seguinte é enterrado na colina de empirismo psicológico, por constituir
Carlton Hill, que domina Edimburgo e o uma teoria do conhecimento baseada na
Firth of Forth. Um ano depois, a auto­ análise das funções subjetivas nele en­
biografia é publicada juntamente com volvidas. Uma conseqüência é o chama­
uma carta do amigo Adam Smith, que do empirismo lógico, desenvolvido por
afirma ter Hume se aproximado tão filósofos posteriores, mas cujas bases já
“perto da idéia do perfeito sábio e se encontram em David Hume. O empi­
homem virtuoso, quanto o permite a rismo lógico consiste na afirmação de
fragilidade da natureza humana”. que as palavras só têm significado na
medida em que se referem a fatos con­
Empirismo e ceticismo cretos. Dai decorre a eliminação de
todos os conceitos da metafísica, pois
A teoria do conhecimento de David estes pretendem referir-se a realidades
Hume encontra-se na primeira das três exteriores ao sujeito pensante, sem qual­
partes do Tratado da Natureza Humana, quer traço de experiência sensível.
escrito aos vinte e cinco anos; resumida Dizer, por exemplo, que existem duas
num Sumário do mesmo, opúsculo polê­ substâncias no universo, a matéria e o
mico publicado logo após; e na Investi­ espírito, seria enunciar juízos sem signi­
gação sobre o Entendimento Humano, ficado, pois o conceito de substância
vinda à luz dez anos depois. O primeiro nada tem a ver com a experiência sensí­
tem a preferência dos especialistas, por vel. A metafísica nâo seria, assjm, mais
ser o mais extenso e completo de todos do que um grandioso jogo de palavras.
os livros, mas o próprio autor o repu­ Os conteúdos do conhecimento são,
diou, alegando considerá-lo demasiado para Hume, matérias de fato. Mas não
juvenil e sempre recomendou a leitura se reduzem a isso. São também relações
do último. Por esta razão e pela extrema entre as idéias. Estas podem ser manti­
clareza expositiva, a Investigação deve das como puros entes de razão e suas
ser preferida para uma primeira tomada relações lógicas desdobram-se em ou­
de contato com o essencial da doutrina tras mediante inspeção racional. A idéia
de Hume. de triângulo plano, por exemplo, impli-

438
HUME

“O homem é um ser dotado de razão e, como tal, recebe da ciência o seu


alimento e nutrição própria. Mas tão estreitos são os limites do entendimento
humano que pouca satisfação se pode esperar neste particular, quer da certeza,
quer da extensão das aquisições. ” (David Hume, gravura executada a partir
do retrato pintado por Allan Ramsay, Coleção Mansell.)

439
OS PENSADORES

“Não há homem, por mais jovem e inexperiente, que não tenha formado, pela
observação, muitos preceitos gerais e justos sobre os assuntos humanos . . . mas
é preciso confessar que o homem que vem a pô-los em prática corre grandes
perigos de errar, enquanto o tempo e novas experiências não tiverem ampliado
esses preceitos . . Alguma coisa sobre os assuntos humanos Hume aprendeu em
Paris, onde certamente participou de passeios nos jardins do palácio real,
como o representado pela gravura acima, hoje no Museu do Louvre, Paris.
ca a de igualdade dos ângulos internos a ser amarelas. Os fatos concretos nâo se­
dois retos, da mesma forma como a idéia riam passíveis de conhecimento demons­
de movimento conduz às de espaço e trativo; nâo seria possível, portanto,
tempo, pouco importando saber se exis­ provar que o mundo deve ter esta ou
tem ou não as realidades concretas aquela estruturação.
correspondentes. Apenas nesse puro
nível de significados, sem relação com a Causas e efeitos
experiência sensível, é possível o conhe­
cimento demonstrativo, isto é, o domínio Nâo é até esse ponto que a teoria de
da dedução lógica. Segundo Hume, esse Hume é mais original, pois, com algu­
nível restrínge-se às idéias de quanti­ mas diferenças, ela já se encontra em
dade da matemática. Locke. A partir daí, Hume traça um
Por outro lado, os fatos concretos caminho próprio, desenvolvendo uma
revelados pela experiência sensível mos- doutrina da causalidade, especialmente
trar-se-iam ao sujeito do conhecimento importante porque os conceitos de causa
tais como são, sem quaisquer relações e efeito constituem um dos núcleos das
lógicas; deveríam ser aceitos como são metafísicas racionalistas. Esj;as conce­
dados. Que as margaridas sejam bran­ bem a relação causai como conexão
cas, o chumbo seja pesado e o fogo quei­ necessária entre os fatos, mas, analisan­
me — seriam fatos fechados em si mes­ do-se os fenômenos sensíveis, verifica-se
mos e logicamente estéreis. Poderíam a inexistência de qualquer impressão a
ser diferentes do que são e isso não ela correspondente. Se, por exemplo —
implicaria contradição alguma, ao con­ diz Hume —, toma-se o juízo causai “a
trário dos conceitos matemáticos. O pedra esquenta porque os raios de sol
triângulo plano nâo pode ser concebido incidem sobre ela”, constata-se que a
sem a idéia de soma dos ângulos igual a primeira e a última partes (“a pedra
dois retos, mas as margaridas poderíam esquenta” e “os raios de sol incidem

440
HUME

sobre ela”) têm como origem duas


inquestionáveis impressões sensíveis,
uma tátil e outra visual. O mesmo não
acontece com a vinculação expressa na
palavra ‘■‘'porque”. Qual seria, então, a
origem desta última?
Para Hume a resposta encontra-se
numa habitual associação entre o poste­
rior e o anterior. O fato de um fenômeno
ser sempre seguido por outro, no tempo,
faz com que os dois sejam relacionados
como se houvesse conexão causai entre
eles. Causa e efeito, enquanto impres­
sões sensíveis, não seriam mais que o
anterior e o posterior de uma sucessão
temporal, transformados em elos de uma
vinculação necessária. Isso ocorre subje­
tivamente e seu fundamento encontra-se
no sentimento de crença, algo muito
diferente dos processos intelectuais de
inferência lógica. Quando se vê um copo
cair, não se deduz logicamente que ele
vá quebrar; espera-se, porém, que isso
aconteça e, sobretudo, acredita-se firme­
mente que isso vá ocorrer em seguida.
Como consequência, não é possível ter
conhecimento científico da natureza, se
por essa expressão entende-se certeza e
demonstração, isto é, prova. As ciências
da natureza, para Hume, correspondem
a uma necessidade interior de colocação
de ordem nas coisas, a fim de que a
sobrevivência do homem seja garantida.
Seus fundamentos seriam, portanto, ir­
racionais, pois a crença que está na base
de todo o conhecimento natural não tem
qualquer estruturação lógica. Esta en-
contra-se apenas nos domínios da mate­
mática, cujas verdades são apodíticas,
necessárias e invariáveis.
E preciso salientar, no entanto, para
que não se perca o verdadeiro signifi­
cado da teoria do conhecimento de
Hume. que seu objetivo não era destruir
pura e simplesmente o trabalho dos cien­
tistas. A análise e a crítica que formulou
dos fundamentos do conhecimento eram
endereçadas às grandes concepções me­
tafísicas tradicionais. Elas afirmavam
uma certa ordem no mundo, determi­
nada pelo criador. A existência deste
seria provada, seja pelo argumento de Uma tempestuosa relação ligou os
que todas as coisas têm uma causa e, filósofos David Hume e Jean-Jacques
portanto, deve haver uma primeira, seja Rousseau. (Gravura representando
pela análise da idéia de perfeição. O pri­ Rousseau em Ermenonville,
meiro raciocínio supõe a lei da causali- Biblioteca Nacional de Paris.)

11 1
OS PENSADORES

David Hume não foi um filósofo limitado à penumbra das bibliotecas e à


abstração teórica; soube viver os prazeres mundanos e observar a vida das
pessoas simples, como as cpie conheceu ao viajar pela Áustria e Itália em
missão diplomática. Na Itália, esteve em Turim, cuja ponte sobre o rio Pó foi
representada por Bernardo Bellotto (1721-1780). (Pinacoteca Sabauda, Turim.)

dade como inerente ao mundo físico, o indubitável do mundo, encontra-se na


segundo está fundado, como em Descar­ análise da moralidade, feita por Hume
tes, na existência de idéias inatas, isto é, na terceira e última parte do Tratado da
originadas na própria razão. Para Natureza Humana e na Investigação
Hume, os dois tipos de argumentos são sobre os Princípios da Moral, versão
falsos, pois a causalidade não é mais do posterior da primeira obra e preferida
que uma crença baseada na ação do há­ pelo próprio autor, como sendo de todos
bito sobre a imaginação, e as idéias têm, os seus livros “incomparavelmente o
todas, origem na experiência sensível. melhor”.
Todos os outros raciocínios da metafí­ Assim como a crença na causalidade,
sica apresentariam os mesmos defeitos. os princípios da moral não teriam funda­
Tomam como expressões da realidade mento na razão, mas no sentimento.
concreta conceitos na verdade vazios, Para Hume, não existe uma faculdade
porque não referentes a impressões especial como uma razão moral, nem
sensíveis. Por outro lado, utilizam pro­ tampouco um bem supremo ao qual deva
cedimentos demonstrativos válidos ape­ se conformar o comportamento humano.
nas para as matemáticas, cujas idéias A moralidade seria apenas um conjunto
não precisam ser supostas como expres­ de qualidades aprovadas pela generali­
sões de coisas concretamente existentes. dade das pessoas. Essas qualidades se­
riam aprovadas conforme sua utilidade,
Moral e política ou o prazer que proporcionam.
A utilidade define-se como a aptidão
A mesma luta contra as pretensões da ou tendência natural para servir a um
razão no sentido de criar uma concepção fim, desde que este seja visto como bom.

442
HUME

Assim, a justiça, entendida como res­ da política. Contrário aos conservadores


peito pelo direito -de propriedade, deve­ tories, não aceitou a monarquia de direi­
ria todo seu mérito à utilidade pública, to divino. Por outro lado, não aceitava a
pois conduz ao bem-estar da sociedade. teoria liberal de Locke e a idéia de que a
Ela nâo teria qualquer necessidade lógi­ sociedade funda-se num contrato social
ca interna e seria desnecessária, se a primitivo. A seu ver, isso implicaria a
bondade do homem fosse suficiente­ possibilidade de revogação do contrato
mente grande para fazer com que todos e, portanto, a aceitação incondicional do
se sentissem bem, sem necessidade do direito de sublevação. Hume inverte os
roubo. Dois fatores condicionariam a termos do problema político tal como se
justiça: um externo, constituído pela configurava então, e não procura a legi­
distinção da propriedade, e outro inter­ timidade do governo em suas origens,
no, o apreço pelo bem público. Quando mas na utilidade que o governo possa ter
essas condições são cumpridas, a justiça no presente. As origens do governo são
surge tão naturalmente que não pode ser dificilmente conhecidas e muito frequen­
classificada como meramente convencio­ temente sua legitimação se faz através
nal. A forma institucionalizada da justi­ da viodência. Considerado o governo
ça é o direito e sua forma mais natural do ponto de vista de sua utilidade, seria
encontra-se na benevolência. A última possível, porém, modificá-lo de maneira
opera nos indivíduos em esferas mais racional.
amplas que a propriedade.
De acordo com Hume, um segundo A importância do filósofo
grupo de qualidades morais, ao lado da
justiça e da benevolência, caracteriza-se
na história
pela utilidade em relação aos próprios Em síntese, David Hume foi um filó­
possuidores; é o caso da diligência e da sofo empirista quanto ao problema da
frugalidade, por exemplo. A aprovação origem do conhecimento, cético em rela­
dada a elas não decorre do interesse pes­ ção à metafísica e utilitário altruísta em
soal, pois são também estimadas nos assuntos morais e políticos. Concebeu a
outros. Algumas virtudes, como a hones­ filosofia como ciência indutiva da natu­
tidade e a sinceridade, são apreciadas reza humana e chegou à conclusão de
tanto pela utilidade para o próximo, que o homem é muito mais um ser prá­
quanto por serem convenientes para os tico e sensitivo do que racional. Desem­
indivíduos que as possuem. Outras, penhou papel relevante dentro da histó­
como a coragem e a alegria, repousam ria do pensamento, ao levar às últimas
não na utilidade, mas no agrado ou consequências a tradição intelectual ori­
conveniência para o eu ou para os seme­ ginada e desenvolvida principalmente na
lhantes. Diferentemente das anteriores, Inglaterra, desde os nominalistas da es­
virtudes como a modéstia e as boas cola de Oxford, no século XIII, passando
maneiras têm como fundamento o agra­ por Francis Bacon (1561-1626), até sua
do proporcionado a todas as pessoas. formulação mais completa com John
A ênfase dada aos outros faz da dou­ Locke.
trina moral de Hume um utilitarismo Como conseqüência, despertou Kant
altruísta, muito próximo do eudemo- (1724-1804) de seu “sono dogmático” e
nismo, isto é, centraliza-se na idéia da o fez criar a filosofia crítica, a partir da
felicidade do eu e dos semelhantes. devastadora análise do conceito de
Assim, Hume esteve sempre preocupado causalidade. Foi fator essencial na for­
com*o homém em geral, muito ao contrá­ mulação do positivismo de Augusto
rio do que pensaram seus detratores cle­ Comte (1798-1857), no utilitarismo de
ricais, para os quais era um “monstro”, Jeremy Bentham (1748-1832) e influiu
pronto para devorá-los ou conduzi-los ainda mais profundamente no pensa­
ao inferno. O que Hume não admitia era mento de John Stuart Mill (1806-1873).
que a moral pudesse fundar-se em verda­ No século XX, os positivistas lógicos
des eternas. devem muito aos fundamentos que
A mesma visão utilitarista foi apli­ Hume lançou para o desenvolvimento de
cada por Hume aos problemas teóricos uma teoria da significação.

443
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1711 — David Hume nasce tar obter a cátedra de filoso­ go e edita os Discursos
a 7 de maio em Edimburgo, fia moral da Universidade Políticos.
Escócia. de Edimburgo. 1754 — Surge o primeiro
1723 — Hume ingressa na 1746 — Hume participa de dos quatro volumes de sua
Universidade de Edimbur­ uma fracassada missão mili­ História da Inglaterra.
go. Nasce Holbach, o siste- tar em território francês, co­ 1757 — Publica Quatro
matizador do materialismo mo secretário do General Dissertações.
francês. Saint-Clair. 1761 — Todas as obras de
1734 — Hume viaja para a 1748 — Hume acompanha Hume são colocadas no In­
França onde, nos três anos o General Saint-Clair em dex dos livros proibidos.,
seguintes, escreverá o Trata­ missão diplomática na corte 1763 — Hume passa a resi­
do sobre a Natureza Huma­ de Viena e publica Três En­ dir em Paris como secretá­
na. Voltaire publica as Car­ saios sobre Moral e Política rio da embaixada inglesa.
tas Inglesas. e Investigação sobre o En­ 1766 — Retorna a Londres
1739 — Hume publica, na tendimento Humano. Surge e protege Rousseau, do qual
Inglaterra, os dois primeiros o Espírito das Leis de Mon­ se afastará pouco depois.
volumes do Tratado da Na­ tesquieu. 1769 — Hume volta a resi­
tureza Humana, sem ne­ 1751 — Hume publica In­ dir em Edimburgo. Nascem
nhum êxito. Fréderico II, vestigação sobre os Princí­ Napoleão Bonaparte e o na­
imperador da Prússia, publi­ pios da Moral. Surge o pri­ turalista Alexandre de
ca o Anti-Maquiavel. meiro volume da Enciclopé­ Humboldt.
1741 — A publicação dos dia. 1776 — Hume redige A Vi­
Ensaios Morais c Políticos 1752 — Hume torna-se da de David Hume Escrita
traz algum renome a Hume. conservador da Biblioteca por Ele Mesmo e morre no
1744 — É recusado ao ten- dos Advogados de Edimbur- dia 25 de agosto.

BIBLIOGRAFIA
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Leroy, Andre-Louis: La Critique et la Religion chez David Hume, Paris, 1930.
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LÂird, J.: Hume ’s Philosophy of Human Nature, Londres, 1932.
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Glathe, Alfred B.: Hume’s Theory of Passions and Morais, University of Califórnia Press,
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Stewart, John B.: The Moral and Political Philosophy of David Hume, Columbia Univer­
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Sesonske e Noel Fleming, Belmont, 1965.
Modern Studies in Philosophy: Hume, editado por V. C. Chappell, Ed. Macmillan, Londres
e Melbourne, 1968.

444
OS PENSADORES

A formação de Voltaire se fez na cidade de Paris, onde sentiu as diferenças


sociais entre nobreza e burguesia, responsáveis pela eclosão da Revolução
Francesa. Para ela, Voltaire contribuiu com seu brilhante espírito polêmico.
(O porto real de Paris, no Sena, por Lespinasse, Museu Camavalet, Paris.)
Na página anterior: busto de Voltaire, executado por Houdon. (Foto Fabbri.)

Ty -j-o dia 28 de setembro de 1752,, fico Portátil e obtém um êxito extraordi­


\J encontra-se reunido um grupo de nário: é colocado debaixo das portas,
-L ^1 intelectuais na sala de refeições do pendurado nos cordões das campainhas
castelo real, na capital da Prússia. Em e freqüentemente os bancos dos passeios
suas conversações, decidem escrever um públicos estão repletos de exemplares. A
dicionário contra os preconceitos, a razão do sucesso residia, à primeira
superstição e o fanatismo. vista, no fato de que era o primeiro livro
Um dos participantes entusiasma-se de bolso da história, mas o motivo mais
mais do que os outros e, nos dias seguin­ importante era seu conteúdo, que consti­
tes, redige alguns verbetes: Abraão, tuía um sólido alimento intelectual para
alma, ateu, batismo, Juliano, Moisés . . . todos os descontentes com a ordem so­
Enquanto isso, os companheiros esque- cial então vigente. Em suma, tratava-se
cem-se do projeto e ele fica só, o que tal­ de um poderoso instrumento revolucio­
vez lhe tenha aumentado ainda mais o nário e não foi sem motivo que seu autor
estímulo para levar a cabo a tarefa, pois foi celebrado como glória nacional,
é um homem bastante exclusivista. De­ algumas décadas depois, quando o Ter­
mora alguns anos na redação do livro: ceiro Estado tomou o poder na França.
apesar de ser escritor fecundo e rápido, O autor do Dicionário chamava-se
outros afazeres ocupam seu tempo e só François Marie Arouet, mas era mais
em 1764 consegue publicar o primeiro conhecido pelo pseudônimo de Voltaire.
volume. Intitula-se Dicionário Filosó­ Tinha nascido em 1694, em Paris, e era

44 6
VOLTA IRE

filho de Marguerite Daumard, descen­


dente de urna família da pequena nobre­
za de Poitou. O pai era tabelião, paga­
dor das especiarias e recebedor das
multas na Câmara das Contas; possuía
pequena fortuna e desejava ver o filho
estudando direito para tornar-se advo­
gado do rei. Com esse objetivo coloca o
menino no colégio Louis, le Crand, onde
ele estuda com os jesuítas, revelando-se
“rapaz de talento mas patife notável”,
segundo as palavras de um relatório dos
professores.

Aventuras precoces
Na mesma época, seu padrinho, o
abade de Châteauneuf, introduziu-o nos
círculos literários de Paris e no salão dt
famosa cortesà Ninou de Lenclos. Vol-
taire é ainda um menino e já conhece os
meios desregrados, onde o modo de viver
é comandado por epicuristas volup­
tuosos e poetas galantes.
O pai não vê com bons olhos aquela
vida e providencia-lhe uma ocupação
mais séria, logo que o jovem completa o
curso no colégio. Voltaire torna-se
pajem do Marquês de Châteauneuf, em
O pintor Nicolas de Larguillière
missão diplomática na Holanda. Nessa
retratou Voltaire, quando era apenas
época, apaixona-se por Olympe Dunoyer
o brilhante poeta que encantava as
(Pimpette) e trama para que a moça vá
damas e satirizava os grandes da
morar com ele na França. Como Pim­ época. (Coleção Furstenberg.)
pette é protestante, a solução é conven­
cer o padre Toumemine e o bispo de
Evreux de que se trata de obra piedosa barba, olhos vivos e perspicazes, jeito de
fazê-la voltar ao seio da Igreja Católica, sátiro, terrivelmente malicioso, encanta­
mas para isso ela precisaria estar na dor e muito bem tratado com perfume de
França. Os padres, no entanto, não se essência de cravo.
deixam enganar pelo astuto apaixonado Torna-se amante de Susanne de Livry.
e o romance chega ao seu ponto final: freqiienta os salões mundanos, agrada à
Voltaire é mandado de volta à casa jovem Rainha Maria Leczinska, faz ver­
paterna. sos galantes para as damas e pequenos
Triste e desolado, põe-se a escrever poemas satíricos. Pretensioso ao extre­
versos. Compõe uma ode a Luís XIII, mo, quer tomar-se o grande trágico do
submete-a a concurso na Academia século, em substituição a Comeille e
Francesa, mas é vencido por um concor­ Racine. Escreve, então, uma peça.
rente. Vinga-se compondo uma sátira Edipo, em 1715, e compõe um poema
contra o rival e o resultado é uma briga épico sobre a Liga e Henrique IV, a
espalhafatosa, que o obriga a fugir de Henríada.
Paris. Em 1717, algumas anedotas contra o
Não seria a primeira briga nem a pri­ regente, Duque de Orléans, são atri­
meira fuga. Voltaire começa a tornar-se buídas a Voltaire e valem-lhe uma pri­
conhecido como turbulento e um relató­ meira passagem pela Bastilha. Na
rio policial o descreve como um moço mesma época, começa a aparecer como
magro, lábios finos e apertados, sem homem de negócios, nem sempre muito

447
OS PENSADORES

niões no salão de Walpole (1717-1759).


é recebido pelo Príncipe de Gales e rela-
ciona-se com os poetas Edward Young
( 1683-1765) e Alexander Pope
(1688-1744), o escritor Swift
(1667-1745) e os filósofos Berkeley
(1685-1753) e Clarke ( 1675-1729). En­
tusiasma-se com a tolerância religiosa e
com a relativa igualdade política entre
burgueses e nobres. Essas experiências,
vividas durante três anos, farão dele o
principal propagandista do pensamento
inglês no continente, fato de profundas
conseqüências especialmente na França.
Através de intensa correspondência, di­
funde principalmente a teoria empirista
de John Locke (1632-1704) e a nova
visão do mundo revelada pelo método
experimental-matemático de Newton
(1642-1727). Essa correspondência
seria posteriormente publicada na Fran­
ça sob o título de Cartas Filosóficas e
constituiría um acontecinjento escanda­
loso. Condenadas à fogueira, por desres­
peito às autoridades e por serem contrá­
rias à religião e aos bons costumes, as
Cartas fazem Voltaire sentir de novo a
possibilidade de ser preso na Bastilha.
Luís XV governou a França Mas ele escapa a tempo, refugiando-se
durante a maior parte da vida de no castelo de Cirey, propriedade da
Voltaire. Os dois náo se davam milito
Marquesa de Châtelet, Émilie de Bre-
bem, mas apesar disso o autor do
teuil, sua amante.
Cândido tornou-se historiógrafo real.

honesto. Com o sucesso do Édipo faz


Uma vida inconstante
investimentos financeiros, empresta di­ Antes que isso aconteça, entre 17 29 e
nheiro a nobres arruinados, torna-se for­ I 7 34, escreve e encena as peças Brutus.
necedor dos exércitos e rouba no abaste­ Eriphyle e Zaire e redige a História de
cimento. Financia todo tipo de tráfico, Carlos XII, obra de grande sucesso.
inclusive o de escravos, excelente negó­ Em Cirey, a partir de 1734, passa a
cio na época. maior parte dos quinze anos seguintes
No entanto, nâo passava de um bur­ estudando física, metafísica e história,
guês e as distâncias sociais precisavam sempre acompanhado pela Marquesa de
ser mantidas na França absolutista. Mas Châtelet. mulher culta, tradutora de
ele não as mantém e um incidente com o Newton e que deseja fazer de Voltaire
Duque de Sully, cavaleiro de Rohan. um adepto de Leibniz (1646-1710). o
resulta numa surra comandada pelo pró­ que lhe parecia detestável. Escreve Alzi-
prio duque. No dia seguinte o poeta bur­ re, Mérope, O Filho Pródigo, Maomé, e O
guês desafia o aristocrata para um Mundano. Aos poucos retoma os conta­
duelo, mas um nobre não cruzava armas tos com Paris e, protegido por Madame
com qualquer um e, além do mais, tinha Pompadour (172 1-1764). favorita de
poderes para mandar os inimigos para a Luís XV (17 10-1774), acaba por ser
Bastilha, ou desterrá-los. Voltaire prefe­ nomeado historiógrafo real e, em 1746.
re o exílio e dias depois está na é eleito para a Academia Francesa.
Inglaterra. Nesse meio tempo, as relações com a
() acontecimento é decisivo para sua Marquesa de Châtelet tornam-se difíceis
formação intelectual. Frequenta as reu­ e Voltaire acaba por atender aos insis-

448
VOLTAIRE

onde adquire uma residência chamada


“As Delicias”. Aí completa suas duas
maiores obras históricas: O Século de
Luís XIV e o Ensaio sobre os Costumes e
o Espírito das Nações. Vive em boas
relações com os pastores evangélicos da
cidade e entra em contato com os
enciclopedistas, que desejavam sua co­
laboração. Escreve alguns artigos para a
Enciclopédia e inspira o verbete Gene­
bra, redigido por D’Alembert, que suge­
re a construção de um teatro na cidade.
Isso é considerado um verdadeiro escân­
dalo e provoca certa turbulência, da
qual participa ativamente Rousseau,
contrário à sugestão. O resultado foi a
ruptura entre Rousseau e Voltaire e a
permanência deste em Genebra torna-se
impraticável.
Retira-se, então, para Ferney, onde
viveria quase até o fim da vida, cuidando
de sua propriedade rural, escrevendo
muito e combatendo incessantemente as
injustiças, como a condenação do ino­
cente Jean Calas (1762) e os casos de
Sirven (1764) e do cavaleiro de La Barre
(1766), todos vítimas do fanatismo cle­
Frederico II, da Prússia, um dos rical. Defende suas idéias liberais no
“déspotas esclarecidos” do Iluminismo, Tratado sobre a Tolerância (1763) e
foi grande amigo de Voltaire. (Os publica o Dicionário Filosófico, uma de
dois numa gravura antiga pertencente suas muitas armas para “esmagar a
à Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.) infame” (Igreja Católica). O mesmo alvo
têm as novelas satíricas Cândido (1759).
tentes convites de Frederico II, da Prús­ O Ingênuo (1767.), O Homem de Qua­
sia, a fim de que se transferisse para renta Escudos (1767) e o poema herói-
Potsdam e integrasse o círculo de inte­ co-cômico A Donzela (1755-1771).
lectuais que viviam na corte. Sua função O resultado de todas essas críticas e
principal seria dar aulas de francês ao lutas pelos ideais da razão e da liber­
monarca. dade foi a glória pública. Em 1778 é
recebido entusiasticamente ém Paris, ao
A tarefa não lhe agracia, mas o amável ser representada sua última peça teatral,
tratamento dispensado pelo rei faz com a tragédia Irene. É coroado de louros
que Voltaire continue na corte. Não pelo ator Brizard e intensamente aplau­
deixa, contudo, de realizar seus negó­ dido pela assistência. Dois meses de­
cios nem sempre impecáveis, o que desa­ pois, no dia 30 de maio, falece aos 84
grada Frederico II. A situação torna-se anos de idade.
irremediável quando o filósofo polemiza
com Maupertuis, presidente da Acade­ Crítico e defensor
mia de Berlim, e publica o panfleto Dia­
tribe do Dr. Akakia (17 52), sem conheci­ de filosofias
mento do soberano. Isso era intolerável e A rigor, Voltaire não foi propriamente
o escrito é condenado à fogueira. Vol­ um filósofo. Detestava toda especulação
taire é obrigado a deixar a Prússia. abstrata e suas obras não contêm maior
Em Paris estava proibido de entrar. originalidade como reflexão analítica;
Passa, então, mais de um ano em Col­ limitam-se à exposição e defesa do pen­
mar, até encontrar asilo em Genebra, samento de outros. Isso, no entanto, ele

449
OS PENSADORES

o faz de maneira brilhante: tem o dom de da vida futura. Para Voltaire, os Pensa­
apaixonar o leitor, fazê-lo compreender mentos de Pascal foram escritos com o
as idéias mais complexas e convertê-lo intuito de mostrar o homem sob uma luz
às suas opiniões. Desempenhou, assim, odiosa, pintando-o como um ser malva­
um papel importante dentro da história do e infeliz, para sempre condenado em
das idéias. virtude do pecado original. Voltaire
Seu desenvolvimento intelectual teve insurge-se contra isso e toma o partido
um momento decisivo quando viveu na da humanidade. “Ouso assegurar que
Inglaterra. Anteriormente, Voltaire não somos tão malvados nem tão infeli­
tinha aderido à dúvida metódica carte- zes”. Deseja apresentar um programa de
siana, ao ceticismo de Montaigne melhorias sociais para o aprimoramento
(1533-1592), ao epicurismo dos segui­ do homem e, para isso, acha necessário
dores de Gassendi (1592-1655), e ao combater as doutrinas defendidas por
espírito crítico de Pierre Bayle Pascal: pecado original, graça, predesti­
(1647-1706). Contudo, foi o contato nação,providência divina.
com a atmosfera social, política e inte­
lectual inglesa o fator determinante na A metafísica é uma quimera
articulação final de seu pensamento. As
Cartas Filosóficas ou Cartas Inglesas A partir das Cartas Filosóficas, Vol­
expressam nitidamente essa influência e, taire foi o grande divulgador de algumas
de um ponto de vista estritamente filosó­ doutrinas correntes no século XVIII
fico, as mais ricas de conteúdo são as francês, tomando-as acessíveis a um pú­
referentes a Newton, John Locke e Pas­ blico muito numeroso: o empirismo, o
cal (1 623-1662). ceticismo, o deísmo, a religião natural e
Com relação ao primeiro, os princí­ o humanismo ético.
pios metodológicos da física fundada na O empirismo voltairiano não ultra­
observação e experimentação encora­ passa os limites da teoria do conheci­
jaram Voltaire a criticar todas as teorias mento formulada por Locke, consistindo
e hipóteses puramente especulativas. apenas na crença dê que todo conheci­
Por outro lado, a lei da gravitação-uni­ mento provém da experiência.
versal inspirou seu permanente temor O ceticismo não chega a ser, em Vol­
pela grandeza dos céus, em comparação taire, uma doutrina sistemática, como a
com a pequenez da terra, e sua crença na desenvolvida pelos céticos da Antigui­
existência de um ser supremamente inte­ dade greco-latina ou, mais moderna­
ligente e criador do Universo. mente, por David Hume (17 1 1-1776). É
Mais significativas são as opiniões de antes uma atitude espiritual e refere-se,
Voltaire sobre Locke e a teoria empirista sobretudo, à impossibilidade de conhe­
do conhecimento. Louva-lhe a análise cimento em matéria de metafísica. Para­
paciente dos processos de formação do doxalmente, ele, que escreveu um Trata­
conhecimento, a negação da existência do de Metafísica, não acredita ser
de idéias inatas independentes da expe­ possível chegar.ao desvendamento dos
riência e a afirmação das limitações da segredos últimos do Universo. “Como
mente finita, ao pretender o conheci­ pensamos”, “por que os pés e as mãos
mento do universo infinito. Locke foi, obedecem aos ditados da vontade” ou “o
para Voltaire, o homem que, modesta­ que é a matéria” seriam questões insolú­
mente, escreveu a história da alma. veis. Sobre a alma, Voltaire afirma
Antes do filósofo inglês, uma “multidão numa carta a Boswell: “Você parece
de raciocinadores”, desde Anaxágoras apreensivo com relação a essa coisa cha­
até Malebranche (1638-1715), teria mada alma. Devo declarar que nada sei
feito apenas o romance da alma. dela; nem se ela existe, nem o que ela é,
Na carta sobre Pascal, delineiam-se tampouco o que virá a ser. Jovens sábios
os elementos essenciais do pensamento e padres sabem tudo isso perfeitamente;
ético e social de Voltaire. Ele critica de minha parte, não sou mais que um
Pascal por ter este encontrado valor nos camarada muito ignorante”. A metafí­
sofrimentos da existência terrena do sica, para Voltaire, é feita “de duas coi­
homem como preparação para as glórias sas: a primeira, aquilo que todas as pes-

4 50
VOLTAIRE

Frederico II, imperador da Prússia, reunia em sua corte os maiores sábios e


artistas da época. Ele mesmo escreveu o Ant i-Maquiavel e compôs dezenas de
sonatas para flauta. Admirava muito Voltaire, ao qual se referia como Lío
maior gênio de todos os séculos”. (Jantar em Sans-Souci, vendo-se Frederico,
ao centro, e Voltaire, segundo à sua direita, Museu do Estado, Berlim.)

15 1
OS PENSADORES
soas de bom senso sabem; a segunda,
aquilo que jamais saberão11. Em suma,
todo conhecimento seria quimérico, a
nâo ser o resultado do cálculo da medida
e da observação, vale dizer, o que se re­
fere ao mundo físico.
Não obstante todo o ceticismo metafí­
sico, expresso freqüentemente em suas
obras, Voltaire acredita numa certa
ordem inerente à natureza, na qual
encontram-se objetivos e desígnios; ela
não é caótica. Dessa ordem Voltaire
deduz como válidas as três provas da
existência de Deus, formuladas por
Santo Tomás de Aquino (c. 1 224- 1 274):
primeira causa, motor imóvel e inteli­
gência suprema. Voltaire é, assim, um
filósofo teísta, pois acredita na exis­
tência de um ser supremo, criador de
todas as coisas, mas não aceita os de­
mais atributos que a tradição judaico- ,
cristã confere a Deus. Para ele, o criador
de todas as coisas fez o mundo e abando­
nou-o à própria mercê.
A negação da providência divina e o
questionamento da bondade de Deus
encontram-se no Poema sobre o Desastre
de Lisboa e no Cândido. Ambos atacam a
teoria da harmonia preestabelecida e o
otimismo de Leibniz e Pope. Da mesma
forma, Voltaire não aceita o dogma do
pecado original e a doutrina cristã
segundo a qual Deus deixou o homem
livre para escolher entre o bem e o mal, a .
fim de testar sua alma. Se assim fosse,
pergunta o filósofo, como se pode expli­
car que, no terremoto de 1 755, só a ci­
dade de Lisboa tenha sido destruída? E
que inocentes tenham sido punidos jun­
tamente com culpados?
Voltaire, no entanto, não foi um pessi­
mista, como se poderia pensar à pri­
meira vista. Ele combate apenas o oti­
mismo metafísico, segundo o qual o
homem vive no melhor dos mundos pos­
síveis e dentro do qual exclui-se a exis­
tência do mal. Ao contrário, o mal esta­
ria sempre presente, mas seria possível
superá-ío através das luzes da razão e
através do trabalho.
O mal que é preciso combater e o bem
que deve ser preservado são esvaziados
Maurice Quentin de La Tour retratou pelo autor do Cândido de todo signifi­
Voltaire em 1736, dois anos após a cado metafísico e tornam-se realidades
publicação das Cartas Inglesas, obra sociais. A ética de Voltaire, como em
que causou escândalo em Paris efoi geral a de seus contemporâneos, ê uma
proibida. (Museu de Versalhes.) ética social. Seus valores são humanís-

4 52
VOLTAIRE

Em Femey, Voltaire tornou-se um fidalgo rural, que sabia cuidar, com métodos
modernos, de suas terras e tirar delas os maiores lucros. Ao lado dessas
atividades, continuou a escrever incessantemente até seus últimos dias,
polemizando contra as injustiças, o fanatismo religioso e a Igreja Católica.
(Gravura representando o castelo de Femey, Biblioteca Nacional, Paris.)

ticos e a felicidade do indivíduo dentro com a obra principal e ajudou a promo­


da sociedade, sua principal preocupa­ ver reformas judiciárias nas Américas e
ção. As virtudes teologais da fé. espe­ em vários reinos europeus.
rança e caridade são substituídas pela fé A mesma preocupação humanística
na capacidade de o homem resolver seus encontra-se nos trabalhos históricos de
problemas, pela esperança de uma socie­ Voltaire. A História de Carlos XII, além
dade melhor e pelo amor ao semelhante. de construir uma inovação do ponto de
Entretanto, o valor pelo qual Voltaire vista metodológico, procura mostrar
lutou toda a vida foi a justiça, que é para como as ambições políticas causam
ele o concomitante necessário da liber­ desastres às nações, mesmo quando se
dade intelectual. A idéia de justiça foi trata de governantes excepcionais. O Sé­
sempre a base de seus princípios éticos e culo de Luís XIV desenvolve o tema de
a paixão principal de sua vida. Batia-se que os verdadeiros benfeitores da huma­
por todas as causas que pudessem colo­ nidade não são os generais mas os filó­
cá-la em risco e odiava a intolerância, a sofos, cientistas e poetas. O Ensaio
superstição e o fanatismo. Defendeu o sobre os Costumes e o Espírito das
protestante Jean Calas, não descansou Nações inverte totalmente a concepção
enquanto não conseguiu a absolvição de da História Universal de Bossuet
Sirven e lutou pela reforma dos procedi­ (1627-1704), mostrando como o cristia­
mentos judiciais, como essencial ao pro­ nismo teria herdado dos hebreus a
gresso da civilização. Nesse sentido superstição, o fanatismo e a hipocrisia e
escreveu um comentário ao Ensaio sobre teria causado mais guerras e feito jorrar
os Delitos e as Penas de Cesare Beccaria mais sangue do que qualquer outra
(1738-1794), que é sempre publicado religião.

153
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1694 — Voltaire nasce em 1733 — Liga-se à Marque­ 1747 — É impressa, na Ho­


Paris. sa de Châtelet. landa, a primeira versão de
1702 — Guerra de Suces­ 1734 — Expede-se um man­ Zadig, de Voltaire.
são da Espanha. dado para sua captura, devi­ 1752 — Inicia o projeto do
1704 — E publicado o Tra­ do ao escândalo provocado Dicionário Filosófico.
tado de Ótica de Newton. pelas Cartas Filosóficas. 1755 — Começa a escrever
1710 — Voltaire publica 1735 — Obtém autorização o Poema sobre o Desastre
sua primeira obra, Imitação para retornar a Paris. de Lisboa.
da Ode de R. P. Lejay sobre 1738 — Concorre, junto 1756 — Tem início a Guer­
Santa Genoveva, sob o no­ com a Marquesa de Châte­ ra dos Sete Anos: a Inglater­
me de François Arouet. let, ao prêmio da Academia ra declara guerra à França.
1715 — Morte de Luís de Ciências acerca da “na­ 1758 — Voltaire escreve
XIV. tureza do fogo ”. Perdem Cândido, impresso no ano
1716 — Voltaire é exilado ambos. seguinte.
em Sully-sur-Loire. 1741 — A França toma 1760 — Recebe uma carta
1717 — É encarcerado na parte na Guerra de Sucessão insultuosa de Rousseau, que
Bastilha. da Áustria. Voltaire começa implica a ruptura entre am­
1718 ----Adota O' pseudôni­ a escrever o Ensaio sobre os bos.
mo de Voltaire. Costumes.^ 1761 — Destruição da Igre­
1726 — É novamente preso 1745 — É nomeado histo­ ja de Ferney. Voltaire é acu­
na Bastilha. Segue-se o exí­ riógrafo real. sado de sacrilégio.
lio na Inglaterra. 1746 — É eleito membro da 1778 — Voltaire morre em
1729 — Regressa à França. Academia Francesa. Paris, no dia 30 de maio.

BIBLIOGRAFIA
Voltaire: Oeuvres Complètes, Ed. Beuchot, 72 vols., Paris, 1829-1834.
Pomeau, Rene': LaReligion de Voltaire, Paris, 1956.
Cresson, Andre': Voltaire, sa Vie, son Oeuvre, sa Philosophie, Presses Universitaires de
France, Paris, 1948.
Lanson, Gustave: Voltaire, Paris, 1910, reimpresso em 1960.
Torrey, Norman|: The Spirit of Voltaire, Nova York, 1938, reimpresso em Oxford, 1962.
Carre', J. R.: Consistance de Voltaire, le Philosophe, Paris, 1938.
Wade, I. O.: Studies on Voltaire, Princeton, 1941.
Cassirer, Ernest: Filosofia de la Ilustración, Fondo de Cultura Econômica, México e Bue­
nos Aires, 1950 (original alemão: 1932).
Pappas,John N.: Voltaire and D Alembert, Blomington, 1962.
Bottiglia, W. F.: Voltaire’s “Candide”: Analysis of a Classic, Genebra, 1959.
Ljublinsku, W. S.: Voltaire-Studien in Coleção de Escritos do Grupo de Estudos de História
do Huminismo Francês e Alemão n.° 14, Academia Alemã de Ciência, Berlim, 1961.

454
CAPÍTUIO33

IDEROT
OS PENSADORES

Os salões das grandes damas do século XVIII desempenharam papelfundamental


na difusão das idéias do Iluminismo epor eles circularam os artigos da
Enciclopédia. Na tela acima, de Lemonnier, vê-se D’Alembert lendo um desses
artigos no salão da Sra. Geoffrin. (Museu de Belas Artes, Ruão.) Na página
anterior: Diderot, por Michel van Loo, Museu do Louvre. (Foto Fabbri.)
s obras de Voltaire, assim como as Dicionário Razoado das Ciências, Artes

A de Montesquieu e Rousseau, de­


sempenharam um papel de pri­
e Ofícios. Seu principal redator foi Denis
Diderot, talvez a personagem mais
meiro plano na transformação social,
revolucionária entre todos os franceses
política e intelectual do mundo europeu da época.
no século XVIII. Não menos importante Diderot nasceu na pequena cidade de
foi a obra coletiva da qual esses filó­ Langres, no dia 8 de outubro de 1713,
sofos participaram juntamente com filho de um simples cuteleiro chamado
DAlembert (1717-1783), Quesnay Didier e de Angélica, sua esposa. Desde
(1694-1774), Turgot (1727-1781), cedo é orientado para o sacerdócio, em
Marmontel (172 3-1799), Holbach virtude de possuir, do lado materno, vá­
(17 23-1789) e outros: a Enciclopédia ou rios clérigos como parentes. Assim

4 56
DIDEROT

sendo, ingressa no colégio jesuíta da ci­ derot aceita e põe-se a trabalhar, proje­
dade natal, onde se revela brilhante tando refazer a obra totalmente. Procura
aluno, sobretudo em latim e matemática. obter o apoio oficial do rei, mas conse­
Com apenas treze anos de idade recebe a gue apenas a boa vontade do censor das
tonsura, veste a sotaina e é chamado se­ publicações, desde que os artigos sobre
nhor abade. Os parentes ficam muito religião, metafísica e filosofia fossem
contentes, pensando que ele estivesse fiscalizados por um teólogo. Diderot
disposto a seguir a carreira eclesiástica, convida D’Alembert para ocupar o cargo
mas logo se desiludem. Diderot quer de co-diretor para os assuntos científicos
apenas estudar e para isso dirige-se a e reúne a intelectualidade francesa na
Paris e ingressa no Colégio Louis, le casa da Sra. Deffand, a fim de distribuir
Grand, onde Voltaire estudara anos tarefas. Rousseau encarrega-se da parte
antes. Aprofunda-se em lógica, física, de música, Dumarsais fica com a gramá­
moral, matemática e metafísica, disci­ tica, ao abade Mallet reserva-se a teolo­
plinas vestidas convenientemente, no en­ gia. O próprio Diderot incumbe-se da
sino da época, em roupagem aristotélica história da filosofia, ofícios, artes técni­
e teológica. Em 1732 torna-se “maitre cas e de tudo aquilo para o qual não
des arts” pela Universidade de Paris e achasse redator. Além disso, escreveria
mostra-se possuidor de considerável o Prospecto, ficando para D’Alembert o
erudição em grego, italiano e inglês, Discurso Preliminar.
adquirida autodidaticamente. Ao lado do trabalho da Enciclopédia,
As necessidades da vida prática, con­ cuja história seria longa e cheia de vicis-
tudo, precisavam ser satisfeitas e a famí­ situdes, Diderot dedica-se a outras tare­
lia opunha-se a sustentar um intelectual. fas, em parte porque as cem libras pagas
Diderot torna-se entáo procurador, mas pelos editores não permitiam satisfazer
a profissão lhe é tão desagradável que a os encargos com Antoinette e a Sra.
abandona depois de dois anos. Passa Puissieux, mas sobretudo porque suas
fome, pede dinheiro emprestado e não inquietações intelectuais e artísticas
paga, dá algumas au!as de matemática e exigiam outros meios de expressão.
redige sermões para sobreviver. Em Escreve e publica, em 1746, os Pensa­
1741, encontra Antoinette, atraente mu­ mentos Filosóficos, que lhe rendem cin­
lher de 31 anos de idade, filha de uma quenta luíses e provocam sua condena­
pequena comerciante de roupas feitas. ção pelo Parlamento de Paris. O autor
Casa-se, apesar dos protestos do pai, sustenta, nessa obra, os direitos da
que chega a solicitar sua prisão. Em razão e da crítica diante da fé e da reve­
1744, nasce uma filha, Angélica, e os lação, e isso parecia altamente perigoso
problemas de subsistência continuam a às autoridades. Mas Diderot está dis­
atormentá-lo. O abismo entre o casal é posto a enfrentar os inimigos. Escreve O
cada vez maior: Antoinette representa o Passeio do Cético e é perseguido pela
prosaico, a ordem, a limpeza, a ignorân­ polícia, que acaba confiscando-lhe o
cia, enquanto Diderot é boêmio, desor­ manuscrito. Não se amedronta e redige a
denado e inteligente. Suficiência da Religião Natural e /Is
Para piorar ainda mais a situação, Joias Indiscretas, obra que causa escân­
Diderot arranja uma amante, a Sra. de dalo, mas vende bem. Tantas são as crí­
Puissieux, também atormentada por ticas, que desiste de imprimir a alegoria
problemas econômicos. priápica O Pássaro Branco, Conto Azul.
Entretanto isso de nada adianta e as
Uma enciclopédia perseguições sucedem-se, culminando
abala a França pela prisão no castelo de Vincennes.
Só em agosto de 1749, cessa sua
A salvação veio sob a forma de um incomunicabilidade e Diderot passa a
convite dos livreiros Briasson, Durand e receber a esposa e os amigos. No mesmo
David para que Diderot traduzisse do ano publica a Carta sobre os Cegos para
original inglês a C.yclopédia de Uso Daqueles que Vêem, onde coloca um
Ephraim Chambers, publicada em 1 7 28. problema de especial interesse para a
Pagar-lhe-iam cem libras mensais. Di­ teoria empirista do conhecimento: pode
OS PENSADORES

um cego de nascença, que recupere a de Diderot, D’Alembert, Rousseau, Vol­


visão, perceber a tridimensionalidade do taire, Turgot, Marmontel, Montesquieu,
espaço? A Carta conclui por um ceti­ Quesnay e Holbach, sem contar mais de
cismo relativista, mas contém em germe uma centena de outros autores menos
o materialismo organicista posterior­ conhecidos.
mente desenvolvido por Diderot e que
constitui o traço distintivo e original de Filosofar é descrer
seu pensamento dentro da filosofia do
século XVIII. Apesar de tomar grande parte de seu
Enquanto isso não acontece, Diderot tempo, a atividade de Diderot não se li­
retoma a direção da Enciclopédia e redi­ mita à Enciclopédia. Da mesma época,
ge seu Prospecto, em 1750, alguns datam peças de teatro (O Filho Natural e
meses depois de ter sido solto. No ano O Pai de Família), novelas (A Religiosa
seguinte, é publicado o primeiro tomo, e O Sobrinho de Rameau) e outros escri­
contendo o Discurso Preliminar de tos como Carta sobre os Surdos-Mudos,
D’Alembert. Começa a perseguição à Pensamentos sobre a Interpretação da
obra. O segundo tomo surge em 1752 e o Natureza, Discurso sobre a Poesia Dra­
Conselho de Estado o proibe. Em 1753, mática e os Salões. Em 1769 escreve
a proibição é suspensa e publica-se o Diálogo entre DAlembert e Diderot, O
terceiro tomo, seguindo-se a programa­ Sonho de DAlembert, e a Continuação
ção normal até 1757, quando surge o do Diálogo. Na década seguinte, conti­
sexto volume. Nesse ano a tranqüilidade nua a extensa obra: Suplemento à Via­
desaparece outra vez, logo após um gem de Bougainville, Diálogo de um
atentado contra o Rei Luís XV. O gover­ Filósofo com a Marechala, Ensaios
no adota medidas rigorosas contra todas sobre os Reinados de Cláudio e Nero,
as publicações consideradas subversi­ Lamentações sobre o meu Velho Cham­
vas. Os redatores assustam-se com a bre, Colóquios de um Pai com seus
repressão e abandonam a Enciclopédia Filhos, Paradoxo sobre o Comediante;
aos poucos. Em 1759, proibe-se que ela Jacgues, o Fatalista e Elementos dê
circule, sob as acusações de “destruir a Fisiologia.
religião e inspirar a independência dos Além do trabalho na Enciclopédia e
povos”. da redação desse extenso número de
Diderot, contudo, não desiste e conse­ obras (e a lista nâo inclui tudo, tendo
gue do editor a promessa de que a obra boa parte permanecido inédita até o sé­
continuaria a ser editada no estrangeiro. culo passado), Diderot viaja bastante e
Nos anos seguintes, o trabalho estará mantém muitas relações de amizade fora
totalmente nas mãos de Diderot e os úl­ da França. Em 1772, passa pela Holan­
timos tomos serão entregues regular­ da e dirige-se para São Petersburgo,
mente aos assinantes, até 1766. Nem onde é muito bem recebido pela Impera­
tudo,' entretanto, chegaria aos leitores triz de Todas as Rússias, Catarina, a
na redação original do diretor, pois o Grande. A imperatriz compra sua biblio­
impressor-chefe, Le Breton, assustado teca (que só deveria ser entregue após
com as perseguições, alterou sub-repti- sua morte) e o encarrega de redigir um
ciamente vários artigos mais controver­ programa para a organização das uni­
tidos. Até hoje não se completou a versidades russas e uma edição abre­
recomposição dos textos originais. viada da Enciclopédia.
Com a ajuda inclusive da famosa Ma- Quando Diderot regressa, em 1774,
dame Pompadour, amante de Luís XV, encontra bem mudada a atmosfera da
os 36 volumes da Enciclopédia acaba­ França, com a ascensão de Luís XVI ao
ram de ser publicados em 1772. Apesar trono. Procura, então, viver mais tran-
de todos os problemas, tinha chegado ao qüilamente, refugiando-se no ambiente
seu fim uma das mais importantes obras campestre. Corresponde-se com a última
para a compreensão do pensamento do amante, Sophie Volland, e as cartas for­
século XVIII e das transformações que mam um conjunto extremamente interes­
culminaram com a Revolução Francesa. sante, do ponto de vista do pensamento
Nela encontram-se textos fundamentais de seu tempo.

458
DIDEROT

FAB B RI

Catarina II, a Grande (1729-1796), governou a Rússia de 1762 até sua morte.
Discípula dos enciclopedistas, continuou a ocidentalização iniciada por
Pedro, o Grande (1672-1725) e foi grande amiga de Diderot, do qual adquiriu
toda a biblioteca e encarregou de jazer uma edição especial da Enciclopédia.
(Catarina II, tela de Erichsen Vigilius, Museu de Belas-Artes, Chartres.)

459
OS PENSADORES

A morte de Sophie, em 1784, abate-o


profundamente. E, cinco meses depois,
no dia 30 de julho, morre ao sofrer um
ataque de apoplexia. Um dia antes, no
apartamento que tinha sido colocado à
sua disposição pela imperatriz Catari­
na, afirmara a um dos amigos que viera
visitá-lo: “O primeiro passo para a filo­
sofia é a incredulidade”.

O que é o mundo?
A frase de Diderot, contudo, não sig­
nifica que ele tenha sido, dentro da his­
tória da filosofia, um representante das
doutrinas céticas. Seu pensamento inse­
re-se dentro das correntes materialistas
resultantes do desenvolvimento das ciên­
cias naturais. Estas, por sua vez, têm
suas origens nos fins da Idade Média,
quando o homem europeu deixava de
organizar-se exclusivamente em torno
da idéia de Deus e voltava suas atenções
para o mundo material.
Como conseqiiência, renovou-se o in­
teresse pelas teorias dos antigos atomis-
tas gregos, Leucipo (séc. V a.C.), Demó- ENCYCLOPEDIE,
crito (c. 460-370 a.C.) e Epicuro (c. Ol
341-270 a.C.), e formularam-se as dou­ DICTIONNAIRE RAISONNE
trinas materialistas de Pierre Gassendi
(1592-1655) e de Thomas Hobbes DES SCIENCES,
(1588-1679). Na época de Diderot o DES ARTS ET DES MÉTIERS,
materialismo sistematizou-se nas obras UV£ ÍOC/£T£ DE CENS DE LETTR.Es.

de Julien Ofiroy de La Metrie M» ra <*4re & ^04» pw M. Dl DE HO T, r 4c. S,..* «U RJ»,, •


4* PrnCc, « k Pa«tíc M atmimatiua » . M D ALEMUl *!.
(1709-1751) e do Barão de Holbach ** ‘ <*» Sm, 4r vdk AtSwfe, & 4c U Sockk

(1723-1789). O primeiro publicou, em


1742, Uma História Natural da Alma e
seis anos depois, O Homem Máquina; do
segundo é o Sistema da Natureza, surgi­
do em 1770. Em todas essas obras
encontra-se reafirmada — e desenvolvida
com elementos científicos novos — a tese
encontrada nos atomistas gregos, segun­
do a qual todos os fenômenos, incluin-
do-se os espirituais, dependem e são
resultados de processos físicos. O mode­
lo científico de Holbach e La Metrie é,
assim, o encontrado na física newto-
niana. Em outros termos, eles concebem
FABBRI

toda a realidade (material e psíquica)


como um conjunto de fenômenos de
movimento puramente mecânico. O Madame Pompadour (tela de Quentin de
homem não é mais do que uma máquina. Ia Tour, Louvre) auxiliou muito a
Diderot teria colaborado na redação publicação da Enciclopédia.
do Sistema da Natureza de Holbach. (Frontispício do tomo I, editado em
Desenvolve, no entanto, uma concepção 1751, Biblioteca Nacional, Paris.)

460
DIDEROT

FAB B RI
A Enciclopédia, dirigida por Diderot, não serviu apenas aos assuntos
filosóficos, mas também para a difusão de novos conhecimentos científicos,
como as notações químicas, feitas por Lavoisier, Dalton e Priestley,
abandonando a alquimia antiga. Uma gravura da Enciclopédia representa um
laboratório e uma tabela de elementos. (Bibl. Nacional Braidense, Milão.)
materialista própria, que integra concei­ assim, visto por Diderot como obediente
tos explicativos das ciências biológicas às leis formuladas por Descartes para a
e se afasta da física. Em vários escritos matéria; é dinâmico e está em perma­
seus encontra-se essa concepção, espe­ nente transformação, em vez de estático
cialmente na Carta sobre os Cegos, e criado como um conjunto de coisas
Pensamentos sobre a Interpretação da fixas, como concebia a tradição aristoté-
Natureza e Sonho de DAlembert. lica e escolástica cristã.
A principal idéia de Diderot é a da Diferentemente de Descartes, que
existência de uma organização na natu­ supõe o movimento como algo ajuntado
reza, que a faz compor um verdadeiro à matéria (cuja essência seria a exten­
sistema, isto é, um conjunto onde tudo são), Diderot esposa a tese de John To-
está unido, constituindo uma cadeia con­ land (16707-17 22) de que o movimento
tínua, desde as formas mais primitivas constitui a própria essência da matéria.
de organização da matéria até as mais Aproveita, assim, a teoria idealista de
complexas, nos domínios do humano. Leihniz sobre as mónadas e confere-lhe
Esse "sistema da natureza” estaria um significado positivo. Os corpos não
animado por um fluxo, tal como aquele seriam movimentados por forças exte­
concebido por Heráclito de Éfeso (séc. riores, mas os próprios átomos conte-
VI-V a.C.) na Antiguidade. O Universo é, ríam forças internas, ou seja, uma espé-

461
OS PENSADORES

Os aristocratas da geração que precedeu a Revolução Francesa gostavam de


se deliciar com os prazeres da mesa farta. (Acima, J. F. Troy: “O Almoço das
Ostras”.) Os filósofos nãoficavam atrás, como mostra a água-forte de Isuber,
abaixo, onde se veem Voltaire, o padre Adam, o abade Mauri,
DAlembert, Condorcet, Diderot e La Harpe. (Biblioteca Nacional, Paris.)

FAB B RI

462
DIDEROT

cie de energia cinética ou potencial, traçar a história do Universo desde o


responsável maior pelas transformações inconsciente aié a vida espiritual.
de toda a natureza.
Todos os seres — afirma Diderot, Onde encontrar a justiça?
aproximando-se de Heráclito — carre­
gam dentro de si elementos de oposição, O matérialismo organicista de Dide­
o ser e o não-ser são partes de todos os rot fundamenta uma ética cujos princí­
conjuntos. “Em vida” — escreve Diderot pios podem ser encontrados também no
—, “eu ajo e reajo como uma massa; Sonho de iXAlembert. Nessa obra afirma
morto, eu ajo e reajo sob a forma de que vontade e livre arbítrio são concei­
moléculas. Nascimento, vida, deca­ tos sem sentido, meras abstrações que só
dência são apenas mudanças de forma.” servem para obscurecer os fatos. A von­
Dentro de tal concepção, é perfeita- tade no homem desperto, tanto quanto
mente dispensável a postulaçâo da exis­ naquele que está sonhando, nâo seria
tência de um criador ou qualquer ser mais do que o último impulso do desejo
sobrenatural para explicar os fenômenos e da aversão. Em outros termos, seria o
materiais. Todas as transformações, último resultado de tudo aquilo que o
desde o caos até a ordem, deveriam ser indivíduo experimentou desde o momen­
explicadas como interação de partículas to de seu nascimento. A vontade e o livre
materiais elementares. O que se percebe arbítrio seriam, portanto, rigorosamente
como ordem natural não seria mais que determinados pelo sistema natural de
a apreensão das leis do movimento, tal que o homem faz parte.
como aparecem representadas pelos cor­ Da mesma forma, as noções de justiça
pos materiais. e injustiça seriam relativas e a conduta
Diderot não interpreta a natureza justa ou injusta, assim como os atos da
como um sistema puramente físico vontade, teria como fundamento causas
(como os demais materialistas de sua físicas. Para Diderot “é possível encon­
época), mas como um sitema orgânico e trar em nossas necessidades naturais,
biológico, dentro do qual é fundamental em nossa vida, em nossa existência, em
a hipótese de sensibilidade da matéria. nossa organização e em nossa sensibili­
Tanto a matéria inorgânica quanto a dade, que nos expõe à dor, uma base
organizada, isto é, os seres vivos, são eterna do justo e do injusto”. Sendo de
vistas como capazes de sensibilidade. natureza física os últimos motores da
Postulando o movimento e a sensibili­ conduta humana, não existe, para Dide­
dade como inerentes a toda matéria, rot, nenhuma solução de continuidade
Diderot supunha que se poderia explicar entre os seres inferiores e as ações
toda a cadeia de fenômenos naturais, morais. Conceber a conduta moral como
tanto Tísicos quanto mentais. Tudo que a negação das necessidades naturais mais
natureza contém seria produto de maté­ profundas seria um erro.
ria em movimento, submetida a proces­
sos de fermentação produzidos pelo Segundo Diderot, o erro tem um
calor. responsável: são as convenções sociais,
Em toda essa concepção geral do Uni- que desnecessariamente restringem as
verso está implícita uma teoria da evolu­ bases biológicas da conduta humana.
ção biológica. Diderot, ao contrário de Um século antes de Freud, Diderot mos­
seus contemporâneos, soube integrar em trou os perigos da repressão sexual,
sua visão do mundo os primeiros resul­ tema desenvolvido no Sonho de
tados de estudos científicos que funda­ D’Alembert e na nove.la A Religiosa
mentariam as teorias evolucionistas do Toda filosofia que “tende a manter o
século seguinte. Entre os diversos reinos homem em uma espécie de embruteci-
da natureza, Diderot não vê abismos mento e em uma mediocridade de praze­
inexplicáveis. “Como D’Alembert distin- res e de felicidade” seria contrária à
gue-se de uma vaca” — escreve Diderot natureza e, portanto, absurda. O esplen­
— “eu não posso compreender inteira­ dor das ciências, das artes liberais e das
mente. Mas um dia a ciência explicará.” artes mecânicas, em suma, o grau de
Enquanto esse dia não chegava, tentou desenvolvimento mental de uma nação.

163
OS PENSADORES

dependeria de uma legislação que favo­ francesa do século XVIII. O caráter


recesse o desejo e a liberdade de fruir. extremamente revolucionário de seus
A civilização do país a que pertencia escritos fez com que uma grande parte
Diderot não favorecia os ideais de seu tivesse sua publicação impedida e, dessa
humanismo naturalista. Por isso ele forma, somente as gerações seguintes
construiu uma obra polêmica que mina­ começariam a tomar contato com toda a
va as bases intelectuais da sociedade dimensão de seu gênio.

CRONOLOGIA
1713 — Diderot nasce em 1748 — Publica Jóias In­ 1760 — Diderot escreve A
Langres, a 5 de outubro. discretas. Surge O Espírito Religiosa.
1726 — Diderot recebe a das Leis de Montesquieu. 1762 — Supressão da or­
tonsura. 1749 — Diderot publica dem dos jesuítas na França.
1728 —- É publicada, na In­ Carta sobre os Cegos. A 24 O Emílio de Rousseau é
glaterra, a Cyclopaedia de de julho é encarcerado. condenado.
Chambers. 1750 — O Prospecto da En­ 1769 — Diderot termina O
1732 — Diderot torna-se ciclopédia é levado ao co­ Sonho de D’Alembert.
“maítre des arts” pela Uni­ nhecimento do público. 1770 — Nascimento de

BRASIL
versidade de Paris. 1751 — Publicação do pri­ Beethoven.
1741 —Encontra Antoinet- meiro tomo da Enciclopé­ 1773 — Diderot escreve
te. Hume escreve os Ensaios dia. Jacques, o Fatalista. Viaja

-
Morais e Políticos. 1752 — Primeira condepa- para a Rússia.

SÃO PAULO
1742 — Diderot inicia sua ção da Enciclopédia. 1774 — Deixa Petersburgo
amizade com Rousseau. 1754 — Diderot publica os e retorna a Paris. Morte de
1743 — Casa-se com An- Pensamentos sobre a Inter­ Luís XV e ascensão de Luís
toinette. pretação da Natureza. Surge XVI.
1746 — Diderot é convida­ o Discurso sobre a Origem 1775 — Início da guerra de

-
E INDUSTRIAL
do a traduzir a Cyclopaedia da Desigualdade de Jean- independência americana.
de Chambers. Jacques Rousseau. 1776 -— Diderot publica o
1747 — Redige o Passeio 1756 — Nasce Mozart. Iní­ Colóquio de um Filósofo
do Cético, que será publica­ cio da Guerra dos Sete com a Marechala.
do em 1830. Anos. 1784 — Falece em Paris.

ABRIL S. A. CULTURAL
BIBLIOGRAFIA
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1875-1877.
Wilson, Arthur M.: Diderot: the Testing Years (1713-1759), Nova York, 1957.
Crocker, Lester G.: Diderot, the Embattled Philosopher, Ann Arbor, Michigan, 1954.
-
Fabre, J.: Deux Définitions du Philosophe: Voltaire et Diderot in Lumières et Romanticisme.
-COPYRIGHT MUNDIAL. 1973

Energie et Nostalgie de Rousseau à Mickiewicz, Paris, 1963.


Casini, P.: Diderot "Philosophe”, Bari, 1962.
Mauzi, R.: L 7dée du Bonheur dans la Littérature et la Pensée Française au XVIIIF Siècle,
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Niklaus, R.: Le "Méchant” selon Diderot in Saggi e Ricerche di Letteratura Francese, vol.
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Dieckmann, H.: Cinq Leçons sur Diderot, editado por J. Pommier, Genebra e Paris, 1959.
Lefèbvre, H.: Diderot, Paris, 1951.
Gordon, D. H. e Torrey, N. L.: The Censoring of Diderot’s Encyclopédie and the Re-esta-
blished Text, Nova York, 1947.
Kempf, R.: Diderot et le Roman, ou le Démon de la Présence, Paris, 1964.

464
OS PENSADORES

uma tarde do ano de 1749, um

N homem caminhava pela estrada


entre Paris e Vincennes. São treze
quilômetros de terra batida, as árvores
estão desfolhadas e distanciam-se muito
umas das outras. Quase não há sombra
alguma para suavizar o calor excessivo
do verão, e o homem cansa-se fazendo o
percurso a pé, pois não tem dinheiro
para alugar um fiacre. É relativamente
moço, com seus trinta e sete anos de
idade, e procura apressar o passo para
chegar mais cedo. Carrega consigo um
exemplar do Mercure de France para
distrair-se e lê ao acaso o que lhe cai sob
os olhos. Num desses momentos, tem a
atenção despertada por uma notícia
sobre o concurso da Academia de Dijon
para o ano seguinte. Os interessados
deveriam escrever sobre o tema: “Se o
progresso das ciências e das artes con­
tribuiu para corromper ou apurar os
costumes”.
A notícia deixa-o subitamente trans­
tornado. Toma-se de um entusiasmo
como jamais sentira e divisa um outro
universo mental. Sente a cabeça tonta
como se estivesse embriagado e o cora­
ção bate com violência, dificultando a
respiração e o andar. Arroja-se debaixo
da primeira árvore que oferece sombra e
ali fica mais de meia hora em intensa
agitação interior. Ao levantar-se, fica
surpreso com a roupa toda molhada de
lágrimas, sem ter sentido derramá-las.
Imediatamente põe-se a tomar notas
para responder à questão proposta e re­
dige uma pequena dissertação.
Nascia, assim, a primeira de uma
série de obras de pensamento em que a
mesma carga emocional estaria sempre
presente, compondo um conjunto de
idéias radicadas profundamente na vida
do autor e da qual não podem ser
desligadas.

O despertar da imaginação
Chamava-se Jean-Jacques Rousseau e
nascera em Genebra, a 28 de junho de
1712, filho de Isaac Rousseau, cujos
Allan Ramsay (1 713-1784) retratou antepassados protestantes provinham da
Rousseau em roupas de armênio. (Gal. região de Paris e da Sabóia e se refugia­
Nac. da Escócia). Napág. anterior: ram na cidade de Calvino, durante as
busto de Rousseau, por Houdon, guerras religiosas na França do século
Museu Fabre, Montpellier. (Fabbri). XVI. O primeiro desses antepassados

466
ROUSSEAU

FABBRI
“Nasci quase morto;poucas esperanças tinham de me salvar. Trazia comigo o
germe duma enfermidade que os anos pioraram e que, agora, não me dá descanso
senão para deixar-me, com maior crueldade, sofrer de outro modo. Uma irmã de
meu pai . . . cuidou tanto de mim que conseguiu salvar-me.” (Genebra, cidade
natal de Rousseau, numa gravura; Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.)

chamava-se Didier e obtivera o direito fez esperar e abandonou o harém: dez


de cidadania em Genebra no ano de meses depois, nascia fraco e doentio o
1555. Quase todos eram relojoeiros e filho Jean-Jacques e a mãe falecia do
alcançaram relativa fortuna, mas nunca parto.
chegaram a pertencer à aristocracia; Durante muito tempo, pai e filho vive­
enquadravam-se dentro dos limites da ram do culto a Suzanne e os dois "'devo­
burguesia média. raram” uma grande coleção de romances
Isaac Rousseau nâo fugia à regra, que ela deixara. Liam sem parar após a
mas era um pouco mais pobre do que os ceia e assim passavam a noite. Os
demais parentes em virtude de ter que romances esgotaram-se logo, deixando
partilhar a herança com catorze irmãos. traços marcantes no caráter do menino:
Casou-se com Suzanne Bemard, filha do imaginação exacerbada e visão profun­
pastor da localidade, e logo depois do damente dramática das relações huma­
nascimento do primeiro filho, partiu nas. Quando Jean-Jacques tinha sete
para Constantinopla a fim de tornar-se anos de idade e os livros da mãe se esgo­
relojoeiro num harém. Deixou a esposa taram, os dois passaram a ler a biblio­
sozinha em Genebra e Suzanne, mulher teca do pai de Suzanne, onde encon­
de grande beleza e encantos espirituais, traram outro tipo de obras: História da
passou a ser assediada por outros Igreja e do Império, de Le Suer; Dis­
homens. Era, contudo, uma mulher curso sobre a História Universal, de
extremamente fiel e amava Isaac desde a Bossuet; Hotnens Ilustres, de Plutarco;
meninice. Nâo suportando a separação e Metamorfoses, deOvídio; Qs Mundos, de
temendo as constantes investidas dos Fontenelíe;e algumas peças de Molière.
admiradores, implorou ao marido para O rumo dessa educação foi interrom­
que voltasse sem demora. Isaac nâo se pido por um incidente cujas conse-

467
OS PENSADORES

SNARK INTERNATIONAL
“Enfim chego: vejo a Sra. de Warens. Esta época de minha vida determinou
meu caráter . . . Estava na plenitude dos meus dezesseis anos. ” Tomando-se
protetora de Rousseau, a Sra. de Warens exerceu profunda influência sobre
ele, acompanhando-o durante sua adolescência. (Encontro de Rousseau com
a Sra. de Warens, ilustração das Confissões, Biblioteca Nacional de Paris.)

qüências tiveram influência decisiva na 1724, quando Jean-Jacques completava


vida do menino. O pai -era um homem doze anos de idade. De volta a Genebra,
instável e despreocupado e âs vezes dei­ passa dois ou três anos na casa de um
xava-se tomar por reações violentas. tio, aprendendo desenho em companhia
Numa dessas ocasiões desentendeu-se do primo. Sonha com ser ministro evan­
com um certo capitão Gauthier e este, gélico, achando bela a tarefa de pregar,
para vingar-se, acusou-o de desembai- mas os recursos econômicos deixados
nhar a espada dentro da cidade. Procu­ pela mãe não permitiam a continuação
rado para ser preso, Isaac, invocando a dos estudos nesse sentido, e o sentimento
lei, exigiu que o acusador também fosse de inferioridade social começa a se fazer
preso, até que a questão viesse a julga­ sentir como um dos fatores determi­
mento. Nâo o conseguindo e afirmando nantes de seu caráter. Enamora-se da
que assim ficavam comprometidas a Srta. de Vulson, que tem o dobro da sua
honra e a liberdade dos cidadãos, prefe­ idade. Apaixona-se também pela Srta.
riu expatriar-se pelo resto da vida, não Goton, que brincava de professora com
participando mais da vida do filho. ele. É enviado à casa do notário Masse-
Jean-Jacques ficou sob a tutela do tio ron para aprender o ofício de moço de
Bemard, que o enviou para Bossey a fim recados, mas não mostra qualquer voca­
de estudar com o ministro Lambercier. ção para esse tipo de trabalho. O tabe­
Em Bossey, viveu os prazeres de estar lião considera-o preguiçoso e idiota, e
em contato com a natureza e ligou-se acaba dispensando seus serviços. Outra
afetivamente ao primo Abraham, além tentativa profissionpl não tem melhores
de fazer amizade com a filha do ministro resultados, quando vai aprender o ofício
Lambercier. de gravador com um certo Sr. Ducom-
A estada em Bossey estendeu-se até mun. Passa a maior parte do tempo a cu­

468
ROUSSEAU

nhar medalhas para os amigos, é acusa­


do de fabricar dinheiro falso e degenera
moralmente, tomando-se medroso, dis-
simulador e ladrão, roubando de tudo,
menos dinheiro. Desanimado com a
situação na oficina, volta aos prazeres
da leitura, alugando livros de uma
senhora chamada La Tribu. Em um ano
esgota toda a sua biblioteca.
Além dos livros, Jean-Jacques encon­
tra consolo nos passeios pelo campo.
Isso, no entanto, só podia ser feito nos
domingos e fora dos muros da cidade.
Nessas ocasiões, esquecia-se completa­
mente de voltar e acabava encontrando
fechadas as portas da cidade. Num pri­
meiro atraso, foi repreendido severa­
mente pelo mestre; no segundo, os casti­
gos corporais fizeram-se acompanhar de
ameaças de que uma terceira vez não
seria tolerada. O terceiro atraso aconte­
ceu e com isso teve início outro período

FABBRI
na vida de Jean-Jacques.
Na noite de 15 de março de 1728, dor­
miu na esplanada externa das portas da Nesta casa de campo — chamada Les
cidade, jurando partir para sempre Charmettes e de propriedade da Sra.
quando raiasse o dia. Partia animado de Warens — Rousseau viveu dos vinte
pelos mais belos sonhos. Livre e senhor aos vinte e oito anos, lendo muito
de si mesmo acreditava poder fazer tudo e escrevendo alguns poemas.
o que quisesse. Entrava com a maior
segurança no mundo, onde julgava poder
encontrar festins, tesouros, aventuras, da por missionária tão encantadora não
amigos e amantes. poderia deixar de conduzir ao paraíso. A
Mas nada ocorreu como esperava e Sra. de-Warerts quis conservá-lo junto a
Jean-Jacques logo sentiu as angústias si, mas por prudência achou melhor
da fome. Procurou então o cura de Con- enviá-lo a Turim, onde havia um asilo
fignon, Senhor de Pontverre, que se destinado a catecúmenos. Chamava-se
dedicava à tarefa de reconduzir ao seio Asilo do Espírito Santo e causou a pior
da Igreja Romana os jovens calvinistas impressão no jovem Jean-Jacques. Su­
de Genebra. Jean-Jacques orienta logo a portou, contudo, os aspectos negativos e
conversa nesse sentido, pois era uma representou o papel de catecúmeno por­
maneira fácil de resolver problemas de que não via como safar-se.
subsistência, e o cura, pretendendo Foi declarado converso, fizeram-lhe
arrancar mais uma alma à heresia, suge­ uma coleta que rendeu vinte francos: es­
riu-lhe dirigir-se a Annecy: “Lá encon­ tava livre para novas aventuras.
trareis uma senhora muito caritativa”. Os vinte francos acabaram logo e
Jean-Jacques viu-se obrigado a procurar
Protestante ou católico? trabalho. Ofereceu seus conhecimentos
como gravador à Sra. Basile, com a qual
A Sra. de Warens não era uma velha ficou pouco tempo, e depois trabalhou
devota como imaginara. Tinha 28 anos como secretário da condessa de Vercel-
de idade, um belo rosto, olhos azuis ple­ lis, da qual roubou uma fita cor de rosa,
nos de doçura, cor de pele maravilhosa e pondo a culpa na camareira. Com o fale­
um pescoço encantador. Jean-Jacques cimento da condessa, três meses depois,
tornou-se imediatamente prosélito cató­ passou a ser empregado do conde de
lico, pois, para ele, uma religião prega- Gouvon. Enamorou-se da jovem nora do

469
OS PENSADORES

nhar o sustento nos meses seguintes,


quando, na ausência da Sra. de Warens,
perambulou por Lausanne e Neuchâtel e
chegou a visitar Paris, onde .permaneceu
poucos dias.
De volta à casa da Sra. de Warens,
agora instalada em Chambéry, aí viveu
vários anos, lendo muito e começando a
escrever. Em 1740, tornou-se preceptor
de dois filhos do Sr. de Mably e malo­
grou totalmente, mas nâo deixou de
aproveitar a experiência, escrevendo um
Projeto de Educação de M. de Sainte-
Marie e acumulando conhecimentos
para a futura grande obra pedagógica
que seria o Emílio.
Dois anos depois, chega a Paris dis­
posto a conquistar a cidade. Leva consi­
go um novo sistema de notação musical,
uma ópera, uma comédia e uma coleção
de poemas. Procura a fama e o sucesso,
mas os resultados não são nada anima­
dores: o sistema de notação musical é
friamente recebido pela Academia de
Ciências e por Rameau (1683-1764) e o
O rei Luís XV entusiasmou-se com a
bailado As Musas Galantes, que conse­
ópera de Rousseau O Adivinho da Aldeia gue fazer apresentar na ópera de Paris,
e quis conhecê-lo. (Luís XV, por
atrai pouquíssima atenção. Não fosse
Maurice Quentin de La Tour (1704- isso suficiente, sofre a humilhação de
1788), Museu do Louvre, Paris.) não ser correspondido no amor pela Sra.
Dupin, e um resumo que faz para uma
conde, e estudou latim com o filho do ópera composta por Rameau e Voltaire
dono da casa, que era padre e o fez ler (1694-1778) é apresentado em Versa­
obras de Virgílio. lhes sem que seu nome seja citado. Tem
Ávido de aventuras, deixou a casa do melhor sorte, entretanto, na amizade
conde de Gouvon, ao encontrar um velho com o filósofo Condillac (1715-1780) e
conhecido de Genebra, chamado Bâcle, com Denis Diderot (1713-1784), que
com o qual perambulou algum tempo até lhe encomenda artigos sobre música
resolver voltar para a companhia da Sra. para a Enciclopédia.
de Warens, como melhor forma de man­ Em 1745, liga-se a Thérèse Levas-
ter a subsistência. De novo em Annecy, seur, com a qual teria cinco filhos, todos
ajuda a protetora em trabalhos de medi­ entregues a orfanatos, porque achava
cina e alquimia e principalmente lê que não poderia cuidar deles sendo
muito: Puffendorf, Saint Evremond, a pobre e doente. O remorso por isso será
Henríada de Voltaire, Bayle, La Bruyère seu companheiro para o resto da vida;
e La Rochefoucauld. Estuda música e para livrar-se dele preocupou-se sempre
esforça-se por decifrar as cantatas de em encontrar justificativas.
Clérambault, até que a Sra. de Warens
resolve enviá-lo para um seminário, Finalmente, a glória
onde deveria melhorar os conhecimentos
de latim. Mais importante, contudo, Em 1749, Diderot publica sua Carta
foram os estudos de música na casa do sobre os Cegos, na qual expressa clara­
Sr. Le Maitre, no inverno de 1729/30, mente posições ateístas. Por esse motivo
que lhe permitiram ficar sabendo o sufi­ foi preso durante três meses em Vincen-
ciente para apresentar-se como profes­ nes, onde Jean-Jacques visita o amigo
sor de música. Com isso, conseguiu ga­ quase todos os dias. Foi numa dessas

470
ROUSSEAU

“Oh! virtude, ciência sublime das almas simples! Serão necessários, então,
tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? . . . não bastará para aprender tuas
leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das
paixões? Aí está a verdadeira filosofia ...” (Gravura representando a Rua
Saint Denis, Paris, em 1745, Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.)

tardes que entreviu o caminho a ser tri­ posta à sua disposição pela Sra.
lhado pelo seu pensamento inquieto, ao d’Epinay. Ali põe-se a escrever o roman­
responder negativamente à questão ce epistolar A Nova Heloísa, obra bem
sobre se o progresso das ciências e das típica de sua personalidade romântica. É
artes tinha contribuído para aprimorar a estória de um homem que conhece o
os costumes. amor mais pela imaginação do que na
No ano seguinte recebeu o primeiro realidade. Os cuidados exteriores de que
prêmio nesse concurso e com ele veio cerca o trabalho não são menos signifi­
também a fama, há tanto esperada, e cativos: usava o mais belo papel doura­
sobretudo a possibilidade de ser ouvido do, pó de ultramarino e de prata para
por círculos mais amplos. Dois anos secar a tinta e fita azul para costurar os
depois, um intermezzo operístico de sua cadernos. Ao mesmo tempo, apaixona-se
autoria, O Adivinho da. Aldeia, é levado pela Sra. d’Houdedot, briga com o
à cena em Fontainebleau e lhe é ofere­ amigo Diderot por achá-lo implicado em
cida uma pensão real, que orgulhosa­ intrigas com a referida senhora e apre­
mente recusa. Publica a Carta sobre a senta os primeiros sinais claros da
Música Francesa, na qual defende o esti­ mania de perseguição, que se toma cada
lo italiano; visita Genebra, onde retoma vez mais doentia nos anos seguintes.
à fé protestante que abjurara e escreve Em 1757, deixa o Ermitage e passa a
dois discursos Sobre a Origem da Desi­ viver em Montlouis, onde permanece
gualdade e Sobre a Economia Política, o durante cinco anos muito produtivos e
último por encomenda de Diderot para a felizes. Escreve a Carta sobre os Espetá­
Enciclopédia. culos, em que critica um artigo de
Em 1756, passa a morar no Ermitage, D’Alembert sobre Genebra, publicado na
uma enorme casa em Montmorency, Enciclopédia, e opõe-se ao estahelecí-

471
OS PENSADORES

mento de um teatro na cidade natal. — na verdade escrita por Horace Walpo-


Completa A Nova Heloísa e redige as le (1717-1797) —, criticava ironica­
duas obras teóricas que marcarão toda a mente sua conduta e Rousseau supôs que
história da teoria política e da pedago­ Hume tivesse alguma coisa a ver com
gia: o Emílio e o Contrato Social. ela. Com delírios de perseguição, imagi­
nava um vasto complô contra ele. A
Perseguição e loucura polêmica com Hume divertiu toda a Eu­
ropa culta e, por fim, Rousseau acabou
Os dois livros, imediatamente depois por deixar a Inglaterra.
da publicação em 1762, são conside­ De novo na França, publicou o Dicio­
rados altamente ofensivos às autori­ nário de Música, no qual trabalhava há
dades e, assim, inicia-se o período mais anos. Deixa-se dominar outra vez por
negro da vida do autor. Os problemas crises de pânico. Casa-se com Thérèse
agora não são mais com os amigos e as Levasseur e procura defender-se contra
amantes, mas com as autoridades e a os imaginários conspiradores. Tenta
opinião pública. Ordena-se sua prisão e justificar-se diante do mundo, lendo
Rousseau vê-se obrigado a deixar a extratos das Confissões nos salões pari­
França, refugiando-se em Neuchâtel, sienses e escrevendo os Diálogos e Rous­
então sob domínio de Frederico II da seau, Juiz de Jean-Jacques. A última
Prússia. Passa a usar roupas armênias obra técnica seria Considerações sobre o
para disfarçar-se e escreve a Carta a Governo da Polônia, a pedido do conde
Cristophe de Beaumont, na qual ataca o Wielhorski, que desejava conselhos para
arcebispo de Paris por ter condenado o reforma das instituições políticas de seu
Emílio. O mesmo sentido têm as Cartas país.
Escritas na Montanha, réplica a J. B. Nos últimos dois anos de vida, os sin­
Tronchin, que ordenara a queima do tomas psicóticos diminuem de intensi­
Emílio e do Contrato Social. Em 1764 dade e Rousseau pode escrever a mais
prepara um inacabado Projeto de Cons­ serena e delicada de suas obras, Deva­
tituição para a Córsega, a pedido de neios de um Caminhante Solitário, que
Matteo Buttafuoco. contém descrições da natureza e dos
Ainda em 1764, toma conhecimento sentimentos humanos feitas com admirá­
de um panfleto anônimo que circula em vel suavidade e beleza. Em 2 de julho de
Paris sob o título de O Sentimento dos 1778, falece em Ermenonville e é enter­
Cidadãos, no qual é atacado como hipó­ rado na ilha dos Choupos. Refugiava-se
crita, pai sem coração e amigo ingrato. por fim na natureza, a “mãe comum”,
O panfleto tinha sido escrito por Vol- em cujos braços buscou subtrair-se “aos
taire e feriu profundamente Rousseau. ataques de seus filhos”.
Pôs-se então a escrever as Confissões,
onde, em quase mil páginas, procura Natureza ou civilização?
explicar toda sua vida e seu pensamento.
Com isso, o livro tornou-se uma síntese O chamado à natureza e o “evitar os
completa do autor como homem, roman­ ataques de seus filhos” constituem os
cista, filósofo e educador. motivos fundamentais do pensamento de
Os infortúnios não pararam aí. Em Rousseau e a fonte de sua contribuição
1765, atacado pelos protestantes de original para a história da filosofia.
Neuchâtel, que chegam a jogar pedras Essa contribuição não compõe um con­
em sua casa, abandona Môtiers e dirige- junto sistemático e a riqueza e variedade
se para a ilha de Saint-Pierre, onde é da obra, as frequentes contradições, a
impedido de ficar. Aceita a oferta de repugnância pela sistematização concei­
refugio na Inglaterra, feita pelo filósofo tuai e a permanente vinculação entre as
David Hume (1711-1776). Chega a Lon­ idéias e os conflitos pessoais vividos
dres e vai viver em Wootton. As relações pelo autor tomam extremamente difícil
com o amigo Hume, no entanto, seriam uma exposição sintética de sua obra.
tirejudicadas por uma carta que circu- Contudo, é possível desenredar essa teia
ava em Paris. Endereçada a Rousseau e intrincada e trazer à tona alguns ele­
assinada por Frederico II (1712-1786) mentos estruturais privilegiados e certos

472
ROUSSEAU

temas dominantes: relações entre natu­


reza e sociedade, moral fundada na
liberdade, primazia do sentimento sobre
a razão, teoria da bondade natural do
homem e doutrina do contrato social.
O primeiro desses elementos estrutu­
rais — raiz de toda a filosofia rousseau-
niana — encontra-se nos discursos Sobre
as Ciências e as Artes e Sobre as Origens
da Desigualdade. Neles Rousseau desen­
volve a antítese fundamental entre a
natureza do homem e os acréscimos da
civilização. As obras posteriores levam
às últimas conseqüências esse pensa­
mento que, mais do que simples idéia
abstrata, é um sentimento radical.
Em síntese, a civilização é vista por
Rousseau como responsável pela dege-
neração das exigências morais mais pro­
fundas da natureza humana e sua substi­
tuição pela cultura intelectual. A
uniformidade artificial de comporta­
mento, imposta pela sociedade às pes­
Acima, retrato de Rousseau; abaixo, soas, leva-as a ignorar os deveres huma­
frontispício do Adivinho da Aldeia, nos e as necessidades naturais. Assim
opera de Rousseau que obteve grande como a polidez e as demais regras da
sucesso em Fontainebleau, em 1752. etiqueta podem esconder o mais vil e
(Riblioteca Pública de Genebra.) impiedoso egoísmo, as ciências e as
artes, com todo seu brilho exterior,
freqüentemente seriam somente másca­
ras da vaidade e do orgulho.
le devin A vida do homem primitivo, ao
contrário, seria feliz porque ele sabe
DU VILU, AGE viver de acordo com suas necessidades
inatas. Ele é amplamente auto-suficiente
i INTER.HÉDE j porque constrói sua existência no isola­
mento das florestas, satisfaz as necessi­
dades de alimentação e sexo sem maio­
REPRESENTE A 1'ON TAINEBI.EAU
res dificuldades, e não é atingido pela
| íZVivz/z/ /curs e ^((tieslcs | angústia diante da doença e da morte. As
Ivs ü-i.OcioIhv
necessidades impostas pelo sentimento
de auto preservação — presente em todos
171 \ P\R1< PAR | os momentos da vida primitiva e que im­
,/c lihwiie e iaz/<‘ i\‘ KtiSKpiF pele o homem selvagem a ações agressi­
I le i7 \lars (
vas — são contrabalançadas pelo inato
sentimento de piedade que o impede de
í PA R fazer mal aos outros desnecessaria­
mente. Desde suas origens, o homem
natural, segundo Rousseau, é dotado de
livre arbítrio e sentido.de perfeição, mas
o desenvolvimento pleno desses^ senti­
mentos só ocorre quando estabelecidas
as primeiras comunidades locais, basea­
das sobretudo no grupo familiar. Nesse
período da evolução, o homem vive a
idade de ouro, a meio caminho entre a

473
OS PENSADORES

tendeu não foi exaltar a animalidade do


selvagem, porém sua mais profunda
humanidade em relação ao homem civi­
lizado. A dignidade da natureza humana
frente ao animal é constantemente ex­
pressada pelo autor do Emílio: “Que ser
aqui embaixo, exceto o homem, sabe
observar os outros, medir, calcular, pre­
ver seus movimentos, seus efeitos, e
unir, por assim dizer, o sentimento da
existência comum ao de sua existência
individual? . . . Mostrem-me outro ani­
mal sobre a terra que saiba fazer uso do
fogo e admirar o Sol . . . Eu posso obser­
var, conhecer os seres e suas relações,
posso sentir o que é a ordem, a beleza, a
virtude; posso contemplar o Universo e
elevar-me até a mão que o governa;
posso amar o bem e fazê-lo; e me compa­
raria com os animais? . . . que coisa
maior podería eleger do que ser
homem?”
O homem, para Rousseau, não se
regenera pela destruição da sociedade e
“Conheço meu coração e conheço os com o retomo à vida no meio das flores­
homens. Não sou da mesma massa tas. Embora privado, no estado social,
daqueles com que lidei; ouso crer que de muitas vantagens da natureza, ele
não sou feito como os outros. ” adquire outras: capacidade de desenvol­
(Rousseau em seu quarto, na ilha de ver-se mais' rapidamente, ampliação dos
Saint-Pierre, Bibl. Nacional, Paris.) horizontes intelectuais, enobrecimento
dos sentimentos e elevação total da
alma. Se os abusos do estado social civi­
brutalidade das etapas anteriores e a
lizado não o colocassem abaixo da vida
corrupção das sociedades civilizadas.
primitiva, o homem deveria bendizer
Esta começa no momento em que surge a
sem cessar o instante feliz que o arran­
propriedade privada. cou para sempre da animalidade e fez de
A critica às sociedades civilizadas e a um ser estúpido e limitado uma criatura
idealização do homem primitivo, mani­ inteligente. O propósito visado por
festadas a todo passo nas obras de Rous­ Rousseau é combater os abusos e não
seau, foram vistas por muitos intér­ repudiar os mais altos valores humanos.
pretes como expressão de um desejo de Os abusos centralizam-se, para ele, na
retorno à animalidade. Alguns o aproxi­ perda de consciência a que é conduzido
maram dos cínicos gregos, especial­ o homem pelo culto dos refinamentos,
mente de Diógenes (c. 413-327 a.C.), das mentiras convencionais, da ostenta­
que admirava os animais e celebrava os ção da inteligência e da cultura, nas
rituais antropofágicos da mitologia. quais se busca mais a admiração do pró­
Voltaire, entre outros, fez essa aproxi­ ximo do que a satisfação da própria
mação, certamente com ironia, ao dizer consciência. Rousseau, em uma palavra,
do autor do Contrato Social que “ningué m não pretende queimar bibliotecas ou
jamais pôs tanto engenho em querer nos destruir universidades e academias; re­
converter em animais” e que ler Rous­ conhece a função útil das ciências e das
seau faz nascer “desejos de caminhar em artes, mas não quer ver os artistas e
quatro patas”. Tal interpretação é sem intelectuais submetidos aos caprichos
dúvida incorreta e deve ser entendida frívolos das modas passageiras. Pelo
apenas como expressão do sarcasmo contrário, glorifica os esforços laborio­
voltairiano. O que Rousseau sempre pre­ sos da conquista intelectual verdadeira,

474
ROUSSEAU

fabbri
“O que há de mais cruel ainda é que, todos os progressos da espécie humana
distanciando-a incessantemente de seu estado primitivo, quanto mais
acumulamos novos conhecimentos, tanto mais afastamos os meios de adquirir o
mais importante de todos, e ainda que, num certo sentido, à força de estudar
o homem, tomamo-nos incapazes de conhecê-lo. ” (Gravura do séc. XVIII mostra
Ermitage, uma das casas em que Rousseau viveu; Museu Rousseau, Montmorency.)

que se realiza na luta contra os obstá­ sentimento, essa “outra faculdade infini­
culos e na atividade criadora do espirito tamente mais sublime”, como o verda­
livre de pressões. deiro caminho para a penetração na
O retomo à pureza da consciência essência da interioridade.
natural é o dever fundamental de todo O sentimento como instrumento de
homem, segundo Rousseau. Com isso, penetração na essência da interioridade
ele retoma de certa forma, o “conhece-te é outro dos elementos estruturais do
a ti mesmo” socrático. Em Sócrates, no pensamento de Rousseau. Núcb o central
entanto, a análise da consciência tem de todo pensar filosófico, constituiría a
significado completamente diverso, inse- chave com que se pode compree nder
rindo-se em outro quadro de referências. toda a natureza e alcançar misticamente
Diante dos filósofos anteriores que se o próprio infinito. Deixar de lado as
preocupavam em descobrir a constitui­ convenções da razão civilizada e imergir
ção fundamental do mundo da matéria, no fundo da natureza através do senti­
Sócrates reivindicou como centro do mento significa elevar-se da superfície
pensar filosófico o próprio homem e os da terra até a totalidade dos “seres, ao
valores que orientam sua conduta. Mas a sistema universal das coisas, ao ser
diferença maior entre Sócrates e Rous­ incompreensível que a tudo engloba”.
seau não reside nisso mas no fato de que Perdido o espírito nessa imensidão, o
o “conhece-te a ti mesmo” socrático é ta­ indivíduo não pensa, não raciocina, não
refa intelectual a cargo da razão e Rous­ filosofa, mas sente com voluptuosidade,
seau, ao contrário, vê no intelecto uma abandona-se ao arrebatamento, perde-se
faculdade que conduz o homem para com a imaginação no espaço e lança-se
fora de si mesmo. Rousseau aponta o ao infinito. Essa imersão mística no infi-

475
OS PENSADORES

“Supõe-se que as crianças em liberdade podem colocar-se em más posições e


efetuar movimentos suscetíveis de prejudicar a boa conformação de seus
membros. Trata-se de um desses raciocínios gratuitos de nossafalsa sabedoria
e quejamais uma experiência confirmou. ” (Ilustração para o Emílio, Bibl.
Nac. de Paris e gravura de Moreau, o Jovem,para A Nova Heloísa.)

nito da natureza equivale a penetrar na ele, também fizeram da natureza o ponto


própria interioridade, alcançar a cons­ central de suas teorias. Continuando o
ciência da liberdade e atingir o senti­ movimento do método indutivo de Bacon
mento íntimo da vida, com o qual o (1561-1626), da metodologia experi-
homem teria consciência de sua unidade mental-matemática de Galileu
com os semelhantes e com a universa­ (1564-1642), da física de Newton
lidade dos seres. No relacionamento (1642-1727) e do empirismo de John
místico com a natureza, segundo Rous­ Locke (1632-1704), os enciclopedistas
seau, nâo se desfruta nada externo ao do século XVIII tomavam a natureza
próprio indivíduo e sua existência; como fonte de conhecimentos e faziam
durante o lapso de tempo em que ocorre dela critério de julgamento de idéias e
a relação, o homem basta-se a si mesmo, instituições, além de arma de luta contra
como se fosse Deus. a tradição escolástica. A natureza, no
A idéia de que o sentimento místico da entanto, é concebida por eles essencial­
natureza não pode ser separado do senti­ mente como matéria e movimento mecâ­
mento de interioridade pessoal constitui nico, inteiramente exterior ao sujeito
aquilo que se costuma chamar o espírito humano. Holbach (1723-1789) e Helve-
‘■‘■romântico” de Rousseau. Vendo a natu­ tius (1715-1771), por exemplo, objeti­
reza como fonte da felicidade humana, vam o sujeito cognoscente e reduzem o
relevando ao máximo a carga mística de espírito à natureza e a interioridade à
sua vivência e formulando a concepção exterioridade. Para Rousseau, ao con­
de que ela só pode ser compreendida trário, a natureza palpita dentro de cada
pelo sentimento e não pela razão, Rous­ ser humano, como íntimo sentimento de
seau desempenhou papel original dentro vida. Tomou partido contra os “filóso­
da filosofia do século XVIII. Os contem­ fos” e jamais quis ser chamado assim:
porâneos enciclopedistas, tanto quanto “Vi muitas pessoas que filosofavam

476
ROUSSEAU

muito mais doutamente do que eu; mas


sua filosofia parecia, por assim dizer,
estranha . . . Estudavam o universo como
teriam estudado qualquer máquina que
tivessem visto por curiosidade. Estuda­
vam a natureza humana para poder falar
sabiamente dela, não para conhecerem-
se a si mesmos”.

Defendendo a
pureza infantil
Rousseau desloca, assim, duplamente
o centro de gravidade da reflexão filosó­
fica. Em primeiro lugar, não é a razão
mas o sentimento o verdadeiro instru­
mento de conhecimento; em segundo
lugar, não é o mundo exterior o objeto a
ser visado mas o mundo humano. Ambos
os aspectos vinculam-se intimamente e
implicam a passagem da atitude teórica
para o plano da valorização moral.
Dessa forma, o traço mais significativo
do pensamento de Jean-Jacques Rous­
seau passa a residir nos caminhos práti­
cos que ele procurou apontar para o
homem alcançar a felicidade, tanto no
que se refere ao indivíduo quanto no que
se relaciona à sociedade. No primeiro
caso, formulou uma pedagogia, que se
encontra no Emílio; no segundo, teori­
zou sobre o problema político e escreveu
o Contrato Social, além de outras obras
menores.
O Emílio é um ensaio pedagógico sob
forma de romance e nele Rousseau pro­
cura traçar as linhas gerais que deve­
ríam ser seguidas com o objetivo de
faz.er da criança um adulto bom. Mais
exatamente, trata dos princípios para
evitar que a criança se tome má, já que o
pressuposto básico do autor é a crença
PLESSNER INTERNATIONAL

na bondade natural do homem. Outro


pressuposto de seu pensamento consiste
em atribuir à civilização a responsabi­
lidade pela origem do mal. Consequente­
mente, os objetivos da educação, para
Rousseau, comportam dois aspectos: o
desenvolvimento das potencialidades na­
turais da criança e seu afastamento dos
males sociais. “Se a naturezafez bem ou mal quando
A educação deve ser progressiva, de quebrou a forma em que me moldou, é o
tal forma que cada estágio do processo que poderão julgar somente depois que
pedagógico seja adaptado às necessi­ me tiverem lido. ” (Languellière:
dades individuais do desenvolvimento. A Rousseau, Gal. degli Uffizi, Florença.)

477
OS PENSADORES

livre de toda ansiedade com relação ao


n u futuro e não é atormentada pelas preocu­
pações que fazem o homem adulto civili­
CONTRACT SOCIAL; zado viver fora de si mesmo.
o u, É necessário, contudo, prepará-la
P R I Ar C I P E S para o futuro. Isso porque ela tem uma
enorme potencialidade, não aproveitada
D U imediatamente. A tarefa do educador
consiste em reter pura e intata essa ener­
DROIT POLITIQUE. gia até o momento propício. Nesse senti­
p« « J. J. R O U S S E A U,
do é particularmente importante evitar a
C / 7 O f E .V l> F. G £ .V E I' F.
excitação precoce da imaginação, por­
que esta pode tornar-se uma fonte de
------- frJerit sqias
infelicidade futura. Outros cuidados
devem ser tomados com o mesmo obje­
tivo e todos eles podem ser alcançados
ensinando-se a lição da utilidade das
coisas, ou seja, desenvolvendo-se as
faculdades da criança apenas naquilo
que possa depois ser-lhe útil.
Até aqui, o processo educativo preco­
nizado por Rousseau é negativo, limi­
i
' / // M T í. R b .! ■ .
tando-se àquilo que não deve ser feito. A
Cbez M A R C M I C II E I. R E Y.
educação positiva deve iniciar-se quan­
M D C C I. X 1 L
do a criança adquire consciência de suas
■ cc
m
relações com os semelhantes. Passa-se,
CD
assim, do terreno da pedagogia propria­
mente dita aos domínios da teoria da
sociedade e da organização política.
Quando publicado, em 1762, o Contrato
Social suscitou a ira das autoridades
e o autor passou a ser condenado A liberdade é
veementemente. (Frontispício da l.a
edição, Centro Francês de Milão.)
o supremo bem
Em todas as obras de Rousseau, os
primeira etapa deve ser inteiramente processos educativos, tanto quanto as
dedicada ao aperfeiçoamento dos órgãos relações sociais, são sempre encarados
dos sentidos, pois as necessidades ini­ do ponto de vista centralizado na noção
ciais da criança são principalmente físi­ de liberdade, entendida por ele como
cas. Incapaz de abstrações, o educando direito e dever ao mesmo tempo: “ . . .to­
deve ser orientado no sentido do conhe­ dos nascem homens e livres”; a liber­
cimento do mundo através do contato dade lhes pertence e renunciar a ela é
com as próprias coisas; os livros só renunciar à própria qualidade de
podem fazer mal, com exceção do homem. Ao reformular tal princípio e
Robinson Crusoé, que relata as expe­ dar-lhe o papel fundamental na moral e
riências de um homem livre, em contato na política, Rousseau elevou-se muito
com a natureza. acima dos contemporâneos e dos precur­
Liberta da tirania das opiniões huma­ sores. Ninguém como ele afirmou o prin­
nas, a criança, por si mesma e sem ne­ cípio da liberdade como direito inalie­
nhum esforço especial, identifica-se com nável e exigência essencial da própria
as necessidades de sua vida imediata e natureza espiritual do homem.
torna-se auto-suficiente. Vivendo fora do Com isso, levou às últimas conse-
tempo, nada precisando das coisas arti­ qiiências a linha de pensamento iniciada
ficiais e não encontrando qualquer des­ pelo humanismo renascentista e sobre­
proporção entre desejo e capacidade, tudo pela reforma protestante. Esta últi­
vontade e poder, sua existência vê-se ma, especialmente, expressava as neces-

478
ROUSSEAU

“A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a


mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é
sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de
sua alma. ” (Monumento funerário de Rousseau nas Tulherias, tela a óleo
do pintorfrancês Hubert Robert (1733-1808), Museu Camavalet, Paris.)

sidades e aspirações das coletividades mento”. O princípio da liberdade torna-


que reivindicavam o valor da intimidade se, assim, apenas uma questão de fato e
e os direitos da consciência religiosa de deixa de ter o valor humanista e a força
cada um, frente ao princípio católico da renovadora da vida social que lhe foram
autoridade. Essa corrente de idéias dados por Rousseau.
desenvolveu-se depois com as teorias do Com ele, o princípio da liberdade
direito natural do século XVII e princi­ constitui-se como norma, e nâo como
palmente com Spinoza (1632-1677) e fato; como imperativo, e não como
John Locke, que prenunciam Rousseau. comprovação. Não é apenas uma nega­
O caminho que será trilhado pelo autor ção de impedimentos, mas afirmação de
do Contrato Social é anunciado por um dever de realização das aptidões
Locke ao formular a teoria do estado da espirituais. Na consciência da liberdade
natureza como condição da liberdade e revela-se a espiritualidade da alma
da igualdade e com a afirmação da pes­ humana; por isso é a exigência ética
soa humana como sujeito de todo direito fundamental e renunciar a ela é renun­
e, portanto, fonte e norma de toda lei. ciar à própria qualidade de homem e
Contudo, Locke admite a perda da liber­ “aos direitos da humanidade”.
dade quando afirma que “o homem, por Ao fazer tal afirmação, Rousseau
ser livre por natureza, . . . não pode ser distancia-se de todo individualismo,
privado desta condição e submetido ao pois este supõe uma antítese entre cada
poder de outro sem o próprio consenti­ um e a coletividade e estabelece o valor

479
OS PENSADORES

Rousseaunão suportava o racionalismo dos ‘'filósofos”, especialmente de


Voltaire, cujo sarcasmo ferino muitas vezes teve como alvo o romântico autor
da Nova Heloísa. Apesar disso, uma gravura do século XVIII une-os no
caminho do templo da glória e da imortalidade, em louvor da participação
intelectual de ambos na Revolução Francesa. (Biblioteca Nacional de Paris.)

do indivíduo enquanto indivíduo e não contrato social seria, assim, a única


enquanto homem. Rousseau, ao contrá­ base legítima para uma comunidade que
rio, reivindica a consciência da digni­ deseja, viver de acordo com os pressu­
dade do homem em geral e ilumina o postos da liberdade humana.
vâlor universal da personalidade huma­ É necessário, contudo, resolver o pro­
na, cuja consciência moral não se traduz blema de encontrar uma forma de asso­
no sentimento particularista do amor ciação que continue a respeitar essa
próprio mas na universalidade do amor mesma liberdade que lhe dá origem.
de si. No pensamento de Rousseau, o Muito embora o homem seja natural­
amor de si, constituindo a interioridade mente bom, ele é constantemente amea­
por excelência e a força expansiva da çado por forças que não só o alienam de
alma que identifica o indivíduo com seus si mesmo como podem transformá-lo em
semelhantes, é a ponte que liga o eu tirano ou escravo. Rousseau procura
individual ao eu comum, a vontade par­ uma forma de associação na qual “cada
ticular à vontade geral. Assim é que um unindo-se a todos obedece, porém,
todos os cidadãos “poderão chegar a apenas a si mesmo e permanece livre”
identificar-se, por fim, com o Todo como antes de estabelecer o contrato.
maior, sentir-se membros da pátria, Cada um por si mesmo, dando-se para
amá-la com esse sentimento delicado todos, não se dá a ninguém. As possibili­
que todo.homem separado só tem para si dades de desigualdade e injustiça entre
mesmo”. os cidadãos são evitadas mediante a
A realização concreta do eu comum e “total alienação de cada associado, com
da vontade geral implicam necessaria­ todos os seus direitos, em benefício da
mente um contrato social, ou seja, uma comunidade”. Não sendo total essa alie­
livre associação de seres humanos inteli­ nação, o indivíduo ficará exposto à
gentes, que deliberadamente resolvem dominação pelos outros. Em caso con­
formar um certo tipo de sociedade, à trário, o cidadão não obedece a interes­
qual passam a prestar obediência. O ses de apenas um setor do conjunto

480
ROUSSEAU

SNARK INTERNATIONAL
“Se tivera de escolher o lugar de meu nascimento . . . teria procurado um país
no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos, pois quem
melhor do que eles pode saber quais as condições em que lhes convém viver
juntos numa mesma sociedade?” (Guache do pintor Moretti, representando o
moinho e os jardins de Ermenonville, onde Rousseau terminou os seus dias.)
social, mas à vontade geral, que é “uma que não é um ser isolado mas parte de
força real, superior à ação de qualquer um grande todo. Liberto dos estreitos
vontade particular”. Essa obediência ja­ limites de seu próprio ser individual,
mais suscita qualquer apreensão, pois a encontra plenitude numa verdadeira ex­
vontade geral, segundo Rousseau, é periência social de fraternidade e igual­
sempre dirigida para o bem comum. dade, junto a cidadãos que aceitam o
A alienação total ao Estado envolve mesmo ideal.
igualdade ainda noutro sentido, na me­ A concepção rousseauniana do direito
dida em que a vontade geral não é auto­ político é, portanto, essencialmente de­
ridade externa obedecida pelo indivíduo mocrática, na medida em que faz depen­
a despeito de si mesmo, mas corporifi- der toda autoridade e toda soberania de
cação objetiva de sua própria natureza sua vinculação com o povo em sua tota­
moral. Aceitando a autoridade da vonta­ lidade. Além disso, a soberania é inalie­
de geral, o cidadão não só passa a per­ nável e indivisível e, como base da pró­
tencer a um corpo moral coletivo, como pria liberdade, é algo a que o povo não
adquire liberdade obedecendo a uma lei pode renunciar ou partilhar com os
que prescreve para si mesmo. É por outros, sob pena de perda da dignidade
intermédio da lei que ele ultrapassa os humana. A soberania pode, contudo, ser
limites da vida apetitiva para seguir os delegada em suas funções executivas,
ditames da razão e da consciência. A segundo formas diversas; nascem,
submissão à vontade geral, possuidora assim, os governos monárquicos, aristo­
de “inflexibilidade que nenhuma força cráticos e republicanos, cada um deven­
humana pode superar”, conduz a uma do corresponder a circunstâncias histó­
liberdade que “resguarda o homem do ricas e geográficas específicas.
vício” e a uma moralidade que “o eleva Para Rousseau, a lei, como ato da
até a virtude”. O indivíduo é, assim, vontade geral e expressão da soberania,
investido de uma outra espécie de bon­ é de vital importância, pois determina
dade, aquela virtude genuína do homem, todo o destino do Estado. Assim os legis­

481
OS PENSADORES

ladores têm relevante papel no Contrato que formulou, nem a penetração analí­
Social, sendo investidos de qualidades tica dos problemas. Seu pensamento
quase divinas. É deles que o cidadão procede antes pela expressão de intui-
“recebe, de certa forma, sua vida e seu ções resultantes da paixão permanente
ser” e transforma-se superando a exis­ com que viveu todos os problemas da
tência independente, que usufrui no esta­ existência mais comum, como também
do natural, e penetrando na vida moral os da cultura no nível superior das
como um ser comunitário. Esse novo idéias. Mas soube como poucos expres­
modo de existência nâo lhe é imposto de sar essas intuições e defendê-las apaixo-
fora, mas resulta de uma vontade prove­ nadamente. As idéias correspondentes a
niente do fundo de seu ser interior. Os essas intuições não são conceitos abstra­
legisladores devem, assim, assemelhar- tos mas realidades vividas intensamente
se aos deuses, mas perseguindo sempre o e valores morais imersos na mais nervo­
objetivo de servir às necessidades essen­ sa sensibilidade. Opor-se aos filósofos
ciais da natureza humana. não foi para ele apenas assunto teórico,
Nos últimos capítulos do Contrato mas questão de honra pessoal.
Social, Rousseau acrescenta um con­ Toda essa carga emocional e a capaci­
junto de sanções rigorosas que acredi­ dade de expressão estética que possuía
tava serem necessárias para a manuten­ deram força incomum ao seu pensa­
ção da estabilidade política do Estado mento e fizeram dele um marco revolu­
por ele preconizado. Propõe a introdu­ cionário dentro da história da cultura.
ção de uma espécie de religião civil, ou Sua influência estendeu-se aos mais
profissão de fé cívica, a ser obedecida diversos campos. Os princípios de liber­
pelos cidadãos que, depois de aceita- dade e igualdade política, formulados
rem-na, deveriam segui-la sob pena de por ele, constituíram as coordenadas
morte. Nisso se viu algo de extrema­ teóricas dos setores mais radicais da
mente chocante, mas é preciso não Revolução Francesa (Robespierre era
esquecer que Rousseau jamais foi um seu fervoroso seguidor) e inspiraram sua
liberal no sentido político do termo. Ele segunda fase, quando forám destruídos
não acredita na possibilidade de qual­ os restos da monarquia e foi instalado o
quer rígida separação entre o indivíduo e regime republicano, colocando-se de
o Estado — como queriam os teóricos lado os ideais do liberalismo de Voltaire
liberais — e acha inconcebível o desen­ e Montesquieu (1689-1755). As teorias
volvimento da plena vida moral sem políticas do idealismo alemão do século
ativa participação do indivíduo no corpo XIX — que glorificaram o Estado como
inteiro da sociedade; por outro lado, Deus na história — também devem a
estabelece que a unidade e permanência Rousseau, quando passam de sua dou­
do Estado depende da integridade moral trina de que o Estado é legalmente oni­
e da lealdade indivisível de cada cida­ potente para a exaltação absolutista do
dão. A profissão de fé cívica formulada mesmo. Isso, apesar de Rousseau ter
por Rousseau reduz-se a alguns poucos afirmado claramente que a maioria
dogmas simples que todo ser racional e deveria ser limitada por restrições mo­
moral deveria aceitar: crença num ser rais, e insistido no direito do povo de
supremo, vida futura, felicidade dos jus­ derrubar o governo quando este deixasse
tos, punição dos culpados. A esses dog­ de ser expressão da vontade geral.
mas positivos deve-se acrescentar ape­ Por outro lado, a valorização rous-
nas um negativo: a rejeição de todas as seauniana do mundo dos sentimentos,
formas de intolerância. em detrimento da razão intelectual, e da
natureza mais profunda do homem, em
A herança de Rousseau contraposição ao artificialismo da vida
civilizada, encontra-se precisamente na
Jean-Jacques Rousseau não terá sido base do amplo movimento romântico
um filósofo no sentido mais estrito do que caracterizou a primeira metade do
termo. Seu forte não era o encadeamento século XIX e permanece vigorando até
lógico das idéias nem a fundamentação os dias de hoje, como uma das formas
rigorosamente racional dos princípios básicas de sentir e pensar o mundo.

482
ROUSSEAU

SNARK INTERNATIONAL

“O verdadeiro fundador da sociedade . . . foi o primeiro que, tendo cercado um


terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas . . . simples para
acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios . . . não pouparia ao gênero
humano aquele que . . . tivesse gritado . . .: Defendei-vos de ouvir esse impostor . . .
os frutos são de todos . . . e a terra não pertence a ninguém!” (Jeaurat
de Bertry: Alegoria em honra de Rousseau, Museu Camavalet, Paris.)

483
OS PENSADORES

CRONOLOGIA
1712 Jean-Jacques Rous 1749 — Rousseau redige o Rousseau é perseguido, re­
seau nasce em Gendbra, Discurso sobre as Ciências fugiando-se em Neuchâtel.
no dia 28 de junho. e as Artes. 1764 — Redige um Proje­
1719 — É publicado o Ro- 1752 — O “intermezzo” to de Constituição para a
binson Crusoé de Daniel operístico de Rousseau, O Córsega e as Confissões.
Defoe, que expressa um dos Adivinho da Aldeia, é ence­ 1765 — É obrigado a dei­
traços fundamentais do pen­ nado em Fontainebleau. A xar Neuchâtel e refugia-se
samento de Rousseau. Enciclopédia, dirigida por na Inglaterra, junto a David
1722 — Rousseau passa a Diderot, é condenada pela Hume; desconfia do amigo e
estudar na casa do ministro primeira vez. sente-se cada vez mais alvo
Lambercier, em Bossey. Ra­ 1754 — Rousseau visita de conspirações.
meau publica o Tratado de Genebra e volta ao protes­ 1767 — Volta à França,
Harmonia e Bach compõe o tantismo. O filósofo Condil- casa-se com Thérèse Levas­
Cravo Bem Temperado. lac publica o Tratado sobre seur e publica o Dicionário
1728 — Rousseau foge de as Sensações. de Música.
Genebra, encontra a Sra. de 1755 — Rousseau publica 1771 — Escreve as Consi­
Warens e converte-se ao ca­ os discursos Sobre a Origem derações sobre o Governo
tolicismo em Turim. da Desigualdade e Sobre a da Polônia. Para justificar-
1740 — Torna-se precep- Economia Política. se de ataques, alguns reais,
tor, mas não consegue bons 1756 — Passa a morar no outros imaginários, compõe
resultados como pedagogo. Ermitage e começa a escre­ os Diálogos — Rousseau,
Richardson publica o ro­ ver o romance A Nova Juiz de Jean-Jacques.
mance Pamela e Satã. Heloísa. 1776 — Escreve os Deva­
1742 — Rousseau chega a 1757 — Escreve o Emílio neios de um Caminhante
Paris, em busca de sucesso. e o Contrato Social. A ma­ Solitário.
D’Alembert redige o Trata­ nia de perseguição começa a 1778 — Falece em 2 de ju­
do de Dinâmica. apresentar os primeiros sin­ lho e é enterrado na ilha dos
1745 — Rousseau liga-se tomas. Choupos, em Ermenonville.
a Thérèse Levasseur, com a 1762 — O Contrato So­ Durante a Revolução Fran­
qual passará toda a vida e cial e o Emílio são condena­ cesa, seus restos mortais se­
terá cinco filhos. dos pelas autoridades, e rão colocados no Panteão.

BIBLIOGRAFIA
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Schinz, Albert: La Pensée Religieuse de J. J. Rousseau et ses Récents Interprètes, Paris,
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publicada nova edição com o subtítulo Histoire d’une Conscience.)
Derathe, Robert: Le Rationalisme de J. J. Rousseau, Presses Universitaires de France,
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Mondolfo, Rodolfo: Rousseau y la Conciencia Moderna (original italiano), Editorial
Universitária de Buenos Aires, 1962.

484
OS PENSADORES

ouquíssimos filósofos tiveram uma e indiscutíveis: a matemática e a física.

P vida tão despida dos elementos


que geralmente se encontram nas
A matemática tivera grande desenvolvi­
mento a partir do Renascimento —
biografias das grandes personalidadessobretudo devido à criação da geometria
quanto Immanuel Kant. Nascido numa analítica por Descartes (1596-1650) e
pequena cidade da Prússia, Kõnigsberg, do cálculo infínitesimal por Newton
no dia 22 de abril de 1724, Kant era (1642-1727) e Leibniz (1646-1716) -,
filho de um artesão humilde, que traba­ constituindo-se no próprio modelo do
lhava com artigos de couro. Estudou no conhecimento científico, graças a seu
Colégio Fridericianum e na Universi­ caráter absolutamente necessário e uni­
dade de Kõnigsberg; nesta última tor- versal. A física matemática, embora
nou-se professor catedrático, depois de fosse uma disciplina jovem (não tinha
alguns anos como preceptor de filhos de mais de dois séculos), triunfara de
famílias ricas. Kant não casou nem teve maneira completa com a sistematização
filhos. Faleceu a 12 de fevereiro de realizada por Newton, também se cons­
1804, sem jamais ter saído da cidade em tituindo num conjunto de proposições
que nasceu. Era um homem extrema­ necessárias e universais. Seus resultados
mente metódico, de pequena estatura e no estudo do movimento dos corpos e na
físico frágil. astronomia indicavam o caminho a ser
Outros acontecimentos relatados seguido por todos que pretendessem
sobre sua vida (a impressão causada conhecer os fenômenos naturais. Ao lado
pela leitura das obras de David Hume, da matemática e da física, persistiam
(1711-1776), a admiração incontida ainda no pensamento ocidental os gran­
pelo pensamento de Rousseau des sistemas metafísicos — na Alemanha
(1712-1778), a timidez ao proferir a de Kant, imperava o sistema leibniziano
primeira aula) são todos episódios com na versão de Christian Wolff
um único denominador comum: um cére­ (1679-1754) — que pretendiam dar res­
bro que passou a vida investigando o postas para os problemas da realidade
universo espiritual do homem, à procura última das coisas. A metafísica, contu­
de seus fundamentos últimos, necessá­ do, não era matéria pacífica, capaz de
rios e universais. oferecer soluções aceitas unanimemente,
Ponto de convergência do pensamento apesar de tentar demonstrações rigoro­
filosófico anterior, a obra de Kant cons­ sas. Kant foi “despertado do sono meta­
titui, ao mesmo tempo, fonte da qual físico” pelo pensamento de David Hume
brota a maior parte das reflexões dos sé­ cujas análises, especialmente do con­
culos XIX e XX. ceito de causalidade, demoliam as pre­
O universo espiritual, submetido por tensões do dogmatismo metafísico de
Kant ao crivo da análise crítica, compu­ afirmar verdades eternas a respeito da
nha-se de elementos variados e contradi­ essência última de todas as coisas.
tórios; apesar dessa dificuldade, esses A segunda grande questão que sinte­
elementos podem ser sintetizados em tiza o universo das idéias ao tempo de
tomo de duas grandes questões, a partir Kant é o problema da ação humana, ou
das quais se desdobram inúmeras ou­ seja, o problema moral. Tratava-se de
tras. saber não o que o homem conhece ou
A primeira dessas questões diz res­ pode conhecer a respeito do mundo e da
peito ao conhecimento, suas possibili­ realidade última, mas do que deve fazer,
dades, seus limites, suas esferas de apli­ de como agir em relação a seus seme­
cação. Com relação a esses problemas, a lhantes, de como proceder para obter a
filosofia do século XVIII defrontava-se felicidade ou alcançar o bem supremo.
com duas ciências que se apresentavam Essa área da reflexão filosófica e sua
como conjuntos de conhecimentos certos oposição à razão apenas cognitiva foi
revelada a Kant sobretudo pelas obras
de Rousseau, que formulou uma filosofia
Na página anterior: Retrato de da liberdade e defendeu a autonomia e o
Immanuel Kant; Coleção Bertarelli, primado do sentimento sobre a razão ló­
Milão. (Plessner International.) gica. Por outro lado, Kant. embora

486
KANT

ARBORIO MELLA
A Guerra dos Sete Anos (1756/1763) envolveu Prússia e Inglaterra, de um lado,
e Áustria e França, de outro. Com ela, a Prússia, sob liderança de Frederico,
o Grande, conseguiu aumentar seu poderio e consolidar sua liderança sobre a
Europa central, em detrimento da Áustria. (Festa comemorativa da paz de 1763,
no Palácio de Versalhes; Civica Raccolta Stampe Bertarelli, Milão.)

vivendo na distante Kõnigsberg, longe pretados Mediante os Sonhos da Metafí­


de Paris e dos grandes centros, sempre sica (1766), Dissertação sobre a Forma
teve plena consciência dos problemas e os Princípios do Mundo Sensível e do
sociais e políticos da época e tomou par­ Mundo Inteligível (1770), Prolegô-
tido favorável à Revolução Francesa, na menos a Qualquer Metafísica Futura gue
qual via não apenas um processo de Possa Vir a Ser Considerada como Ciên­
transformação econômica, social e polí­ cia (1783), Fundamentação da Metafí­
tica, mas sobretudo um problema moral. sica dos Costumes (1785). Mas foi
A essas duas grandes questões alia- sobretudo em três obras que todas as
ram-se no espírito de Kant os problemas questões filosóficas compareceram dian­
da apreciação estética e das formas de te de um tribunal, especialmente forma­
pensamento da biologia, cujas peculiari­ do para julgar a razão: a crítica. O pro­
dades em relação ao problema do conhe­ blema do conhecimento é examinado na
cimento e ao problema da moral articu­ Crítica da Razão Pura (1781); a Crítica
lou numa visão sistemática das funções e da Razão Prática (1788) analisa o pro­
dos produtos de razão humana. Todos blema moral; e a Crítica da Faculdade
esses problemas foram analisados por de Julgar (1790) estuda a beleza natural
Kant em inúmeras obras, redigidas e e artística e o pensamento biológico.
publicadas desde 1746 até 1798. Entre
elas destacam-se: História Geral da Que é conhecer?
Natureza e Teoria do Céu (1755), O
Único Argumento Possível para uma Analisando a faculdade de conhecer,
Demonstração da Existência de Deus na Crítica da Razão Pura, Kant distin­
(1763), Sonhos de um Visionário, Inter­ gue duas formas de conhecimento: o

487
OS PENSADORES

FABBRI

A obra de Kant. A Religiào dentro dos Limites da Simples Razáo sofreu severa
censura por parte de Frederico Guilherme II, rei da Prússia. Segundo um
decreto real, o livro desfigurava a essência do cristianismo e o autor não
deveria mais abordar questões religiosas, oralmente ou por escrito.
(Biblioteca de Frederico Guilherme II, no castelo de Charlottenburg, Berlim.)

488
KANT

empírico ou a posteriori, e o puro ou a enriquecimento do conhecimento, na me­


priori. O conhecimento empírico, como dida em que são tautológicos. Os juízos
diz a própria expressão, reduz-se aos sintéticos a posteriori também carecem
dados fornecidos pelas experiências sen­ de importância porque são todos contin­
síveis. Quando se diz, por exemplo, “a gentes e particulares, referindo-se a
porta está aberta”, expressa-se um experiências que se esgotam em si mes­
conhecimento que não pode ser desvin­ mas. Portanto, o verdadeiro núcleo da
culado de uma impressão dos sentidos. teoria do conhecimento situar-se-ia no
O conhecimento puro ou a priori, ao terreno dos juízos sintéticos a priori, os
contrário, não depende de qualquer quais, ao mesmo tempo, são universais e
experiência sensível, distinguinâo-se do necessários, enriquecendo e fazendo pro­
empírico pela universalidade e necessi­ gredir o conhecimento.
dade. Tal é o caso da proposição “a Kant vinculou essa conclusão ao fato
linha reta é a distância mais curta entre de que a matemática e a física apresen­
dois pontos”. Nessa proposição nada se tavam-se constituídas por verdades in­
afirma a respeito de determinada linha discutíveis, enquanto a metafísica pre­
reta, mas de qualqu er linha reta (univer­ tendia a mesma validez. Assim, o
salidade) ; por outro lado, não se declara {>roblema do conhecimento foi formu-
que a linha reta é a mais curta em certas ado por Kant em torno de três questões:
condições, mas em quaisquer condições “como são possíveis os juízos sintéticos
(necessidade). A experiência sensível a priori na matemática?”; “como são
por si só — mostra Kant — jamais produz Íiossíveis os juízos sintéticos a priori na
juízos necessários e universais, de tal ísica?”; “são possíveis os juízos sinté­
forma que todas as vezes que se está ticos a priori na mertafísica?”.
diante de juízos desse tipo tem-se um Kant pretendeu solucionar esses pro­
conhecimento puro ou apriori. blemas mediante uma revolução (com­
Ao lado da distinção entre aposteriori parável à de Copémico (1473-1543) na
ou empírico, e apriori ou puro, impõe-se astronomia) no modo de encarar as rela­
— secundo Kant — distinguir entre juízo ções entre o conhecimento e seu objeto.
analítico e juízo sintético. No primeiro, A revolução consistiría em, ao invés de
o predicado já está contido no sujeito, de admitir que a faculdade de conhecer se
tal forma que o juízo em questão con­ regula pelo objeto, mostrar que o objeto
siste apenas em um processo de análise, se regula pela faculdade de conhecer. A
através do qual se extrai do sujeito aqui­ filosofia deveria investigar a possível
lo que já está contido nele. Para Kant, o existência de certos princípios a priori,
juízo “os corpos são extensos” é desse que seriam responsáveis pela síntese dos
tipo, pois o predicado “extensos” está dados empíricos. Estes, por sua vez,
contido implicitamente no sujeito “cor­ deveríam ser encontrados nas duas fon­
pos”. Isso significa que não é possível tes de conhecimento, que seriam a sensi­
pensar o conceito de corporeidade sem bilidade e o entendimento.
pensar, ao mesmo tempo, o conceito de A primeira parte da Crítica da Razão
extensão. Os juízos sintéticos, ao con­ Pura investiga os princípios apriorís-
trário, unem o conceito expresso pelo ticos da sensibilidade, intitulando-a
predicado ao conceito do sujeito, consti­ “Estética Transcendental”. Pela pri­
tuindo o único tipo de juízo que enri­ meira expressão Kant entende não uma
quece o conhecimento. A esse tipo per­ teoria do belo, mas uma teoria da sensi­
tence o juízo “todos os corpos se bilidade; com o termo “transcendental”,
movimentam”. Kant denomina todo conhecimento que,
Feitas as distinções entre a priori e a em geral, se ocupa não tanto com obje­
posteriori, e entre analítico e sintético, tos, mas com o modo de conhecê-los, na
pode-se classificar os juízos em três medida em que esse conhecimento deva
tipos: analítico, sintético a posteriori e ser possível apriori. Na “Estética Trans­
sintético a priori. Os juízos analíticos cendental” encontram-se os funda­
não teriam maior interesse para a teoria mentos apriorísticos da matemática.
da ciência, pois, embora universais e Uma segunda parte da Crítica da Razão
necessários, não representam qualquer Pura, a “Analítica Transcendental”,

489
OS PENSADORES

analisa os elementos apriorísticos do


entendimento e traz à luz a estrutura do
conhecimento na física. Finalmente, a
“Dialética Transcendental” ocupa-se
com o uso que a razão pode fazer com as
categorias do entendimento, criando a
£ t i t if metafísica.

fcer Espaço e tempo

practifôen SJttnunfí Na “Estética Transcendental”, Kant


define a sensibilidade como uma facul­
dade de intuição, através da qual os
objetos são apreendidos pelo sujeito
cognoscente. É necessário distinguir na
sensibilidade — mostra Kant — dois ele­
mentos constitutivos: um, material e
3mmanuel Jtant. receptivo; outro, formal e ativo. A maté­
ria do conhecimento são as impressões
que o sujeito recebe dos objetos exterio­
res, enquanto a forma exprime a ordem
na qual essas impressões são colocadas.
São duas as formas da sensibilidade:
o espaço e o tempo. Kant analisa-as deti­
damente, procurando demonstrar como
são formas apriorísticas e, portanto,
independentes da experiência sensível.
Para Kant, não é porque o sujeito
cognoscente percebe as coisas como
exteriores a si mesmo e exteriores umas
às outras que ele forma a noção de espa­
ço; ao contrário, é porque possui o espa­
«icrte lafHgt, ço como uma estrutura inerente à sua
sensibilidade que o sujeito cognoscente
pode perceber os objetos como relacio­
nados espacialmente. Kant mostra ainda
91 i az que é possível abstrair todas as 'coisas
*«». $ríebri4
que estão no espaço, não se podendo
fazer o mesmo com o próprio espaço.
* 7 9 7» A argumentação kantiana com relação
ao tempo é fundamentalmente a mesma:
a simultaneidade das coisas e sua suces­
são não poderiam ser percebidas se a
representação do tempo não lhes ser­
visse de fundamento; acrescente-se a
isso o fato de que todas as coisas que se
enquadram dentro do tempo podem
desaparecer, mas o próprio tempo não
pode ser suprimido.
Espaço e tempo seriam, assim, duas
Kant revolucionou o estudo dos condições sem as quais é impossível
problemas morais com a publicação da conhecer, mas o conhecimento universal
Critica da Razão Prática. e necessário não se esgota neles. É preci­
(Frontispício de uma edição de 1797; so também o concurso dos elementos
Bibl. Nacional Braidense, Milão.) apriorísticos do entendimento.

490
KANT

FABBRI
Sobre sua vida pessoal, Kant quase nada deixou para os historiadores.
Com relação aos primeiros anos da vida, o filósofo afirmava que o homem que
sente nostalgia aa infância jamais saiu dela. Seus biógrafos afirmam que ele
sentia angústia e terror, quando se voltava para os anos de “escravidão
juvenil”. (Casa de Kant, segundo gravura de 1845; Museu de Kõnigsberg.)

Categorias do entendimento na-a pela expressão “dedução transcen­


dental”, usando a palavra “dedução” no
Para encontrar os elementos aprio- antigo sentido jurídico de justificação ou
rísticos do entendimento, Kant parte, na prova legal. O primeiro argumento de
“Analítica Transcendental” da Crítica Kant em favor da legitimidade das cate­
da Razão Pura, dos diferentes tipos de gorias é o de que as diversas representa­
juízo, classificados pela lógica tradicio­ ções formadoras do conhecimento neces­
nal, desde Aristóteles (384-322 a.C.). sitam ser sintetizadas, pois de outra
Essa classificação apresenta doze tipos forma não se poderia falar de propria­
de juízos, agrupados em quatro grupos mente conhecimento. Tal síntese pode
de três: quantidade (universais, particu­ ser estudada desde o ponto de vista da
lares, singulares); qualidade (afirmati­ atividade do sujeito. Sua premissa fun­
vos, negativos e indefinidos); relação damental é a consciência da diversidade
(categóricos, hipotéticos, disjuntivos); e no tempo, a qual produz, por um lado, a
modalidade (problemáticos, assertórios, consciência de um eu unificado (não
apodíticos). As categorias correspon­ metafísico ou empírico, mas transcen­
dentes seriam, respectivamente: unida­ dental) e, de outro lado, a consciência de
de, pluralidade, totalidade, realidade, algo que constitui o objeto, enquanto ob­
negação, limitação, substância, causa, jeto de conhecimento. O trânsito da
comunidade (ou ação recíproca), possi­ diversidade à unidade realizar-se-ia de
bilidade, existência e necessidade. três modos: mediante síntese da apreen­
A demonstração da legitimidade des­ são na intuição ou consciência da simul-
sas categorias constitui o núcleo da taneidade e não sucessividade de vários
“Analítica Transcendental”. Kant desig­ elementos; mediante síntese de reprodu-

491
OS PENSADORES

que não seria nada para mim”.


A apercepção transcendental, núcleo
de todas as sínteses do entendimento,
não tem caráter subjetivo; pelo contrá­
rio, é totalmente objetiva no sentido de
que representa a condição de toda possí­
vel objetividade. Assim, a dedução
transcendental, nela fundamentada,
mostra as condições a priori da expe­
riência possível em geral, como condi­
ções da possibilidade dos objetos da
experiência. A dedução transcendental
nada impõe de subjetivo à realidade,
nem é constituída por uma indução a
partir dos dados da experiência. É antes
um modo de mostrar como se constitui o
objeto como objeto de conhecimento, na
medida em que esse objeto em geral
encontra-se ligado aos objetos reais
empíricos.
A teoria transcendental das categorias
a priori do entendimento como funções
sintetizadoras do sujeito cognoscente,
tal como justificadas pela dedução
transcendental, não pareceu contudo
suficiente a Kant para dar conta do pro­
Kant considera a metafísica como blema das relações entre o entendimento
resultado do uso indevido da razão e as intuições do espaço e do tempo. Por
teórica. O sistema de Christian Woljf isso, o filósofo desenvolveu na Crítica da
(acima) é um modelo do dogmatismo Razão Pura a teoria do esquematismo
metafísico que ofilósofo critica. transcendental, cujas dificuldades ele
mesmo põe em relevo ao afirmar que “se
ção na imaginação, que possibilita nova trata de uma arte oculta nas profundi­
apresentação das representações; e, fi- dades da alma humana, cujos modos
nalmente, mediante síntese de reconheci­ reais de atividade a Natureza não nos
mento do conceito, que permite reconhe­ permite jamais descobrir”.
cer a persistência dos mesmos O problema poderia ser colocado nos
elementos. Todos esses modos teriam segumtes termos: como é possível que
suas raízes numa condição fundamental, duas coisas heterogêneas, como são as
chamada por Kant “apercepção trans­ categorias, por um lado, e os fenômenos,
cendental ou pura”, que se distingue da por outro, possam ligar-se entre si? Em
“apercepção empírica”. Esta é própria outras palavras, qual o elemento inter­
de um sujeito que possui um sentido mediário existente entre os conceitos e a
interno do fluxo das aparências. Já a realidade?
apercepção transcendental seria a pura A resposta deveria ser encontrada em
consciência original e inalterável, não algo que fosse, por um lado, sensível e,
uma realidade propriamente, mas aquilo por outro, inteligível. Esse elemento
que toma possível a realidade enquanto intermediário, que Kant chama “es­
realidade para um sujeito. Trata-se, por­ quema transcendental”, é fornecido pelo
tanto, de condição de toda percepção: tempo, o qual, por um lado, é homogê­
“O eu penso deve poder acompanhar neo ao sensívçl por ser a própria condi­
todas as minhas representações (...), ção do sensível e, por outro lado, é uni­
caso contrário, algo seria representado versal e necessário, enquanto conceito.
em mim que não poderia ser pensado, e O esquema transcendental é sempre pro­
isso equivale a dizer que a represen­ duto da imaginação, não se tratando,
tação seria impossível ou, pelo menos, porém, de imagem propriamente dita; é

492
KANT

Segundo o historiador Ernst Cassirer, as forças verdadeiramente originais


da Prússia do século XVIIIforam Kant, Winckelmann e Herder. Winckelmann
interessou-se sobretudo pela arte clássica e seus trabalhos exerceram
influência nas idéias estéticas que Kantformulou em sua obra Crítica da
Faculdade de Julgar. (A. Marcon: Winckelman; Schlossmuseum, Weimar.)

493
OS PENSADORES

FABBRI
Herder, inicialmente seguidor do filósofo, opôs-se depois radicalmente à
filosofia transcendental ae Kant. Klopstock, buscando inspiração nas fontes
nacionais, foi um dos precursores do romantismo alemão. Kant não gostava de
sua poesia, por achá-la carente de força plástica. (Retrato ae
Herder, por A. Frajf, e de Klopstock, por Jens Juel; Museu de Halberstadt.)

antes “idéia de um procedimento univer­ cias, ou seja, os objetos tais cõmo resul­
sal da imaginação” que torna possível tam das sínteses apriorísticas do próprio
uma imagem do conceito. Enquanto a ato de conhecer. A matemática e a física,
imagem é produto da faculdade empírica por se constituírem dentro dessas con­
da imaginação reprodutiva, o esquema dições, podem arrogar o título de disci­
dos conceitos sensíveis é um produto e, plinas científicas. O problema colocado
por assim dizer, um monograma da pura em seguida por Kant (na “Dialética
imaginação a priori, mediante o qual Transcendental”) foi o de saber se o
tornam-se possíveis as imagens. O es­ mesmo direito poderia ser pretendido
quema da substância, por exemplo, é a pela metafísica.
permanência do real no tempo; o esque­
ma da causalidade é a sucessão tempo­ As idéias da razão
ral da diversidade, de acordo com uma
regra. A metafísica analisada por Kant é a
Em síntese, a teoria desenvolvida por disciplina que sempre pretendeu dar res­
Kant na “Estética” e na “Analítica” postas últimas e definitivas para os vá­
transcendentais mostra que todo conhe­ rios problemas, procurando conhecer as
cimento é constituído por sínteses dos coisas em si mesmas. Nesse sentido a
dados ordenados pela intuição sensível metafísica tradicional afirma a imortali­
espaço-temporal, mediante as catego­ dade da alma humana; diz o que é o uni­
rias apriorísticas do entendimento. Por verso enquanto totalidade; procura pro­
conseguinte, não seria possível conhecer var, de maneiras diversas, a existência
o noumenon, as coisas em si mesmas, de um ser supremo. Todas essas afirma­
mas tão somente o fenômeno, as aparên­ ções, segundo Kant, não são legítimas

494
KANT

O matemático Leonard Euler contestou a teoria segundo a qual o espaço e o


tempo originam-se da experiência sensível e, ao mesmo tempo, a doutrina
leibniziana de que espaço e tempo são conceitos ideais. As teses de Euler
desempenharam importante papel na formação da teoria do conhecimento de Kant.
(Retrato de Euler, porj. F. Darbes; Museu de Arte e História, Genebra.)

495
OS PENSADORES

porque resultam de um emprego do cessa de existir num outro momento. A


entendimento humano fora dos limites antítese, contudo, tem a mesma força ló­
definidos nas partes anteriores da Crí­ gica: se o universo teve um começo no
tica da Razão Pura. A metafísica, ultra­ tempo, o que existia antes dele? Para
passando esses limites — tentando atin­ que o universo tenha vindo a existir é
gir o absoluto e tratando de objetos que necessário que tenha existido algo antes
nâo são apreendidos empiricamente —, dele, mas esse algo obviamente faz parte
não seria, portanto, uma forma de do universo, porque o universo é totali­
conhecimento. Nos domínios da metafí­ dade das coisas.
sica é possível “pensar”, mas não é pos­ A segunda antinomia da razão refere-
sível “conhecer”. se à estrutura do universo no espaço.
Tratando da psicologia racional (dis­ Sua tese diz: tudo quanto existe no uni­
ciplina metafísica que tem como objeto a verso é composto de elementos simples e
alma e sua imortalidade), Kant diz que indivisíveis; a antítese afirma que o uni­
ela repousa, desde Descartes, na propo­ verso é composto de elementos infinita­
sição “eu penso”, cuja verdade é incon­ mente divisíveis. O adepto da tese argu­
testável. Não se pode, contudo, tirar mentaria que se algo existe e é divisível,
dela a consequência de que o eu exista como realmente as coisas são, a divisão
como um objeto real. Para a apreensão desse algo deveria cessar num certo
de um objeto é necessária uma intuição e momento, sem o que se chegaria à
no caso em questão se está diante unica­ absurda conclusão de que esse algo é
mente da forma do pensamento. Pelas uma soma de nadas. Por outro lado, o
mesmas razões, não seria legítimo re­ adepto da antítese poderia argumentar,
correr ao conceito de substância e afir­ com a mesma força lógica, que as partí­
mar a alma como substância pensante, culas, supostamente finais da divisão, já
pois o conceito de substância, para se que constituem partículas espaciais,
aplicar a um objeto, também supõe uma possuem uma certa dimensão e nesse
intuição. Em outras palavras, não há caso são divisíveis.
coisa alguma no espaço e no tempo que Ao mesmo resultado contraditório
possa ser considerado alma, não haven­ chegam as afirmações sobre uma pri­
do, portanto, nenhuma percepção sensí­ meira causa do universo (terceira anti­
vel, e esta é uma das condições funda­ nomia) e sobre a existência ou não exis­
mentais do conhecimento. tência de um ser necessário, dentro ou
As mesmas dificuldades, além de fora do universo.
outras, encontram-se na cosmologia ra­ Tanto quanto a psicologia e a cosmo­
cional, parte da metafísica que se ocupa logia racionais, a teologia racional (ter­
da totalidade do universo. Nesse caso, ceira disciplina metafísica) padecería
Kant procura mostrar como a razão é dos mesmos defeitos. Kant analisa as
conduzida a afirmativas antitéticas, a provas da existência de Deus elaboradas
antinomias resultantes do fato de ela no curso da história do pensamento cris­
ultrapassar os limites da intuição sensí­ tão, agrupando-as em três argumentos
vel espaço-temporal e de sua síntese principais: o argumento ontológico, o
pelas categorias do entendimento. Quan­ cosmológico e o fisico-teológico.
do especula sobre a totalidade do uni­ O argumento ontológico, encontrado
verso, a razão tanto pode chegar à con­ em Santo Anselmo (1033-1109) e em
clusão de que o universo tem um Descartes, afirma que o homem tem
princípio no tempo e limites no espaço, idéia de um ser perfeito, que necessaria­
quanto pode afirmar exatamente o con­ mente deve existir porque se não exis­
trário: o universo é infinito no tempo e tisse não seria perfeito. Kant mostra que
no espaço. Assim pensando metafísica­ a existência é uma das categorias aprio­
mente, poder-se-ia dizer que o universo ri do entendimento e como tal nâo tem
teve necessariamente um -começo no qualquer validez (como já demonstrara
tempo porque, caso contrário, não teria na “Analítica”) a não ser quando apli­
sentido acjuilo que o homem chama cada à intuição espaço-temporal.
“acontecer”, ou seja, o fato de que tudo O argumento cosmológico para pro­
começa a existir num certo momento e var a existência de Deus consiste na

496
KANT

As obras de Kant que tratam dos problemas morais não abordam os costumes e as
ações humanas, tais como elas ocorrem de fato. Ofilósofo buscou os
princípios necessários e universais das ações humanas enquanto produtos da
razão pura em sua dimensão prática. (Tela de Daniel Chodowieck: “Reunião
Campestre no Tiergarden de Berlim”; Museu de Artes Plásticas, Leipzig.)

497
OS PENSADORES

enumeração de causas dos fenômenos também por uma dimensão prática, que
até se chegar a uma causa não causada, determina seu objeto mediante a ação.
que seria Deus. Para Kant o erro dessa Nesse sentido, a razão cria o mundo
argumentação é óbvio: não há motivo moral e é nesse domínio que podem ser
algum para se cessar a aplicação da encontrados os fundamentos da metafí­
categoria de causalidade. sica. Para dar conta do problema da
Finalmente, o argumento físico-teo- moral, Kant escreveu, depois da Crítica
lógico (todos os seres da natureza cum­ da Razão Pura, a Fundamentação da
prem algum fim, servem para alguma Metafísica dos Costumes (1885) e a Crí­
coisa, logo deve haver um fim último: tica da Razão Prática, suas obras mais
Deus) utiliza indevidamente o conceito importantes nesse terreno.
de fim. Kant mostra que se trata de um Na Fundamentação da Metafísica dos
conceito metodológico, empregado para Costumes, Kant afirma a necessidade de
descrever a realidade, mas do qual não se formular uma filosofia moral pura,
se pode extrair qualquer outra conse­ despida, portanto, de tudo que seja
quência, como fazem os teólogos. Não é empírico. Repetia, assim, no que diz res­
lícito, sem se sair dos limites da expe­ peito à ação humana, as linhas mestras
riência, tirar da adequação a finalidades do projeto que formulara ao abordar o
quaisquer conclusões referentes a um ser problema do conhecimento. Dentro
superior. dessa perspectiva, a moral é concebida
Em síntese, a metafísica ultrapassaria como independente de todos os impulsos
todas as limitações inerentes ao ato de e tendências naturais ou sensíveis; a
conhecer (tal como definido na “Estéti­ ação moralmente boa seria a que obede­
ca” e na “Analítica” transcendentais), cesse unicamente à lei moral em si
fazendo afirmações inteiramente ilegíti­ mesma. Esta somente seria estabelecida
mas. Ela aplica as categorias apriori do pela razão, o que leva a conceber a liber­
entendimento fora dos limites da intui- dade como postulado necessário da vida
.ção sensível; os juízos sintéticos com os moral. A vida moral somente é possível,
quais se apresenta são na verdade falsos, para Kant, na medida em que a razão
porque são sínteses no vazio. A metafí­ estabeleça, por si só, aquilo que se deva
sica pretende conhecer as coisas-em-si e obedecer no terreno da conduta.
essa é uma pretensão contraditória: o Na Crítica da Razão Prática, o méto­
ato de conhecer, pela sua própria natu­ do kantiano é invertido, em relação à
reza, transforma as supostas coisas-em- Fundamentação da Metafísica dos Cos­
si em fenômenos, isto é, aparências. tumes. Nesta, a vida moral aparece
A metafísica, contudo, existia há sé­ como forma através da qual se pode
culos e Kant se pergunta quais ter iam conhecer a liberdade, enquanto na Crí­
sido as razões desse fato. É perfeita- tica da Razão Prática a liberdade é
mente legítimo indagar se não haveria investigada como a razão de ser da vida
um outro fundamento que pudesse, não
moral. Na Crítica da Razão Prática,
validá-la como forma de conhecimento Kant demonstra que a lei moral provém
teórico, pois isso é impossível, mas dar da idéia de liberdade e que, portanto, a
conta de sua existência. Com essas ques­ razão pura é por si mesma prática, no
tões, transita-se para o segundo grande sentido de que a idéia racional de liber­
problema que preocupou o filósofo: o dade determina por si mesma a vida
problema moral. moral e com isso demonstra sua própria
realidade. Em suma, o incondicionado e
absoluto (inatingível pela razão no ter­
O imperativo categórico reno do conhecimento) seria alcançado
verdadeiramente na esfera da morali­
dade; a liberdade seria a coisa-em-si, o
Na parte final da Crítica da Razão noumenon, almejado pela razão. Nesse
Pura, Kant afirma que a razão não é sentido, a razão prática tem primazia
constituída apenas por uma dimensão sobre a razão pura.
teórica, que busca conhecer (e ultra­ A Crítica da Razão Prática foi divi­
passa os limites do conhecimento), mas dida por Kant. da mesma forma que a

498
KANT

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FABBRI
Os Prolegômenos a Qualquer Metafísica Futura que Possa Vir a Ser Considerada
como Ciência explicitaram, para um público mais amplo o conteúdo da Crítica da
Razào Pura. A Fundamentação <fa Metafísica dos Costumes, por outro lado,
constitui um estudo preparatório àprincipal obra de Kant sobre moral, a Crítica
da Razào Prática. (Frontispícios; Biblioteca Nacional Braidense, Milão.)

Crítica da Razão Pura, mas não se condição considerada pelo sujeito como
encontra nela uma “Estética”. Isso se válida somente para sua vontade. As leis
deve ao fato de que, enquanto as funções morais, ao contrário, seriam objetivas,
de conhecimento têm como fundamento contendo uma condição válida para a
a sensibilidade espaço-temporal, a fa­ vontade de qualquer ser racional. Feitas
culdade prática e a atividade moral essas distinções, Kant demonstra que
opõem-se a toda determinação sensível. todos os princípios práticos que pressu­
O elemento sensível no comportamento põem um objeto ou matéria do querer
moral não pode ser pressuposto, mas, ao são empíricos e não podem proporcionar
contrário, deve ser deduzido da raciona­ leis práticas. Esse objeto material do
lidade pura. Esse é o objeto da parte da querer é a felicidade e ela depende da
Crítica da Razão Prática intitulada natureza empírica de cada sujeito parti­
“Analítica”. cular. Por conseguinte, as leis práticas
A “Analítica” da Crítica da Razão só podem ser formais. Uma vontade
Prática distingue, inicialmente, as máxi­ determinada apenas pela forma da lei e,
mas morais das leis morais. As primei­ por consequência, independente de todo
ras seriam subjetivas, contendo uma estímulo empírico é livre; por isso a

199
OS PENSADORES

liberdade e a lei prática incondicionada


mantêm entre si uma correspondência
recíproca. Essa lei é chamada por Kant
“imperativo categórico”, e ele o distin­
gue dos “imperativos hipotéticos”. Estes
enunciam um mandamento subordinado
a determinadas condições (se queres
sarar, toma remédio), enquanto o impe­
rativo categórico é inteiramente desvin­
culado de qualquer condição. O impera­
tivo categórico formula-se nos seguintes
termos: “Age de tal maneira que o moti­
vo que te levou a agir possa ser conver­
tido em lei universal”. Segue-se do
imperativo categórico que, assim como
ele contém apenas a forma da razão
(universalidade sem contradição), a
razão pura nele implicada é por si
mesma prática, dando ao homem uma lei
universal de conduta, que se chama lei
moral. Em suma, o imperativo categó­
rico afirma a autonomia da vontade
como único princípio de todas as leis
morais e essa autonomia consiste na
independência em relação a toda a maté­
ria da lei e na determinação do livre
arbítrio mediante a simples forma legis­
lativa universal de que uma máxima
deve ser capaz.
A seguir, Kant, na Crítica da Razão
Prática, ocupa-se com estabelecer o con­
ceito da razão pura enquanto prática,
isto é, o objeto que seja um efeito possí­
vel da liberdade, do ponto de vista
moral. Kant encontra-o no “bem”, que
deve ser distinguido do “agradável”. O
bem deve ser determinado aprioristica-
mente, isto é, independentemente de
todo conteúdo empírico em que se reve­
le; não deve, pois, ser determinado antes
da lei moral, mas só depois dela e
mediante ela. Da liberdade, postulado
da razão prática e seu princípio puro,
deve-se deduzir toda atividade moral.
A terceira parte da “Analítica” da Crí­
tica da Razão Prática é dedicada ao es­
tudo dos motivos morais, ou seja, aos
motivos subjetivos determinantes da
vontade moral. Os motivos devem ser
empíricos, sem contudo terem origem
empírica e natural, tais como o proveito
Um dos maiores poetas alemães, pessoal e a felicidade. Assim, o motivo
Schiller dedicou-se também à fundamental da moralidade, segundo
filosofia, terreno no qualfoi Kant, só pode ser o respeito pela lei em
influenciado por Kant. (Tela de Jack si mesnia. Esse sentimento de respeito é
Friedz Wecherlin; Museu de Marbach.) produzido por um princípio intelectual e

500
KANT

é o único que se pode conhecer a priori e


cuja necessidade pode ser compreen­
dida. Poder-se-ia dizer que o respeito
pela lei não é apenas um motor da vonta­
de, mas a própria moralidade, conside­
rada subjetivamente como motivo.
A “Dialética” da Crítica da Razão
Prática estabelece que o sumo bem é o
sujeito completo e absoluto da “razão
pura prática”. O sumo bem, definido
como o acordo entre a felicidade e a vir­
tude, contém uma antinomiâ: por um
lado, o desejo de felicidade deve ser a
causa motora para a máxima da virtude,
o que é impossivel, conforme demonstra
a “Analítica” da razão prática; por
outro lado, a máxima da virtude deve
ser a causa eficiente da felicidade, o que
também é impossível porque no mundo
reina uma conexão de causas e efeitos,
que não se conforma com as intenções
morais da vontade. A solução só pode
ser encontrada admitindo-se a primazia
da razão prática, mediante a fé moral na
imortalidade da alma e a existência de
Deus, que ressurgem, assim, no sistema
kantiano, como postulados da “razão
pura prática”. A fé moral na imortali­
dade da alma é necessária para que se
conceba uma vida supra-sensível na qual
a virtude possa receber seu prêmio. A
existência de Deus, por outro lado, é
necessária enquanto afirma um ser cuja
vontade e cujo intelecto criam um
mundo no qual não há abismo algum
entre o real e o ideal, entre o que é e o
que deve ser.

O belo e as formas
A Crítica da Razão Pura e a Crítica da
Razão Prática opõem a razão teórica à
atividade moral, o mundo sensível ao
reino do inteligível, o real ao ideal.
Poder-se-ia afirmar que constituem dois
momentos antitéticos de um processo
dialético. A Crítica da Faculdade de Jul­
gar constituiría o momento de síntese,
no qual Kant investiga o sentimento de
prazer e desprazer como uma terceira
faculdade fundamental, indagando se
“Silenciemos a respeito de nós ela, como as demais, possui princípios a
mesmos. ” Kant encontrou essa máxima priori. Na Crítica da Faculdade de Jul­
latina em Bacon e adotou-a como regra gar, Kant quer ainda saber se existem
permanente de conduta. (Retrato do formas universais e necessárias de su­
filósofo; Biblioteca Nac. de Paris.) bordinação do mundo natural, dominado

501
OS PENSADORES

pela necessidade, ao mundo da liberda­ não possa ser passível de demonstração.


de, no qual domina a idéia de fim, tal A beleza pura ou livre de todo inte­
como almeja a razão prática. resse pode ser obtida, segundo Kant,
Kant distingue na faculdade de julgar somente num jogo de formas em que se
dois tipos de juízos: o juízo “determi­ realiza a harmonia do pensamento com o
nante” e o juízo “reflexionante”. Este úl­ sentimento, por si mesmo e sem nenhum
timo, à diferença do primeiro, refere-se à significado: nas flores, nos arabescoá, na
representação de um objeto, não a um natureza idílica.
conceito; refere-se às exigências e esta­ Depois de analisar o belo, Kant estu­
dos subjetivos do homem. O sentimento da o sublime, pelo qual entende um esta­
de prazer e desprazer constitui a fonte do subjetivo determinado por um objeto
do juízo reflexionante, que concilia a cuja infinidade se alcança com o pensa­
faculdade de conhecer e a de desejar, na mento, mas não se pode captar pela
medida em que subordina um conteúdo intuição sensível. Essa discrepância hu­
representativo a um fim. milha o homem enquanto ser sensível,
Para Kant, existem duas espécies de mas o sublima enquanto ser racional,
juízos reflexionant.es: os teleológicos e dando-lhe consciência do triunfo do
os estéticos. Nos teleológicos, o objeto é supra-sensível sobre o sensível. O subli­
considerado, segundo as exigências da me, tanto quanto o belo, é fonte de senti­
razão, como correspondendo a uma fina­ mento de prazer e é universal.
lidade objetiva; adaptando-se àquelas A obra de arte é concebida por Kant
exigências, suscita um sentimento de como produção consciente de objetos
prazer. Nos juízos estéticos, o objeto é que geram a impressão de terem sido
relacionado com um fim subjetivo, ou produzidos sem intenção. Sua faculdade
seja, com o sentimento de eficácia senti­ específica é o gênio que atua consciente­
do pelo homem diante desse objeto. mente, com necessidade semelhante à
Depois de estabelecidas essas distin­ das formas naturais, sempre de maneira
ções, Kant passa, na primeira parte da original e distinguindo-se da atividade
Crítica da Faculdade de Julgar, a anali­ científica.
sar os juízos estéticos. Em primeiro A segunda parte da Crítica da Facul­
lugar, distingue o belo do agradável e do dade de Julgar trata do juízo teleoló-
útil, mostrando que o sentimento rela­ gico, segunda forma de ligação do sensí­
tivo a estes últimos tem como condição vel ao inteligível, do real ao ideal, da
uma correspondência entre o objeto e um necessidade à liberdade, do teórico ao
interesse meramente individual e contin­ prático. Aqui também Kant indaga quais
gente ou puramente racional. Ao contrá­ as condições de possibilidade apriori de
rio, no sentimento do belo, não ocorre tais juízos, examinando a exigência
esse tipo de condicionamento: a finali­ racional que leva o homem a considerar
dade a que corresponde o objeto deve ser a natureza do ponto de vista da finali­
inteiramente desprovida de qualquer dade. Para Kant, entre o conhecimento a
intenção e consistir simplesmente no priori da natureza, dado pela matemá­
efeito que produz no modo de considerar tica e pela física, e o conhecimento dos
as coisas, prescindindo da realidade fenômenos particulares, dado pela expe­
empírica do objeto. O que importa no riência, existe uma correspondência fi­
sentimento do belo é apenas a forma da nalista. Contudo, conhecer de modo uni­
representação, na qual se realiza a plena versal e necessário o processo pelo qual
harmonia entre as funções cognoscitiva, se realiza tal correspondência somente
sensível e intelectual. Como essa harmo­ seria possível por uma inteligência cria­
nia é inteiramente independente do con­ dora das formas e, ao mesmo tempo, do
teúdo empírico da representação e dos conteúdo de suas representações, em vez
condicionamentos individuais, o senti­ de receber o conteúdo como um dado. A
mento do belo resultante é apriorístico e, existência de tal espírito não pode ser
como tal, fundamenta a validez univer­ demonstrada; trata-se de postulado da
sal e necessária dos juízos estéticos. Por razão prática que formula um juízo
isso também, segundo Kant, o senti­ teleológico geral, solucionando a antí­
mento do belo é comunicável, embora tese entre mundo sensível e lei moral na

502
KA\'T

FABBRI

“Nosso século éparticularmente o século da crítica ... /I religião, alegando


sua santidade, e a legislação, invocando sua majestade, querem a ela escapar;
mas então excitam contra elas próprias justas reservas e não podem pretender
merecer essa estima sincera que a razão oferece somente àquilo que pode
suportar exame livre epúblico." (Manuscrito de Kant; Biblioteca Nac. Braidense.)

503
OS PENSADORES

totalidade da natureza e subordinando o mecanicismo, existem os fenômenos bio­


primeiro à segunda. lógicos que se apresentam "como se” a
Os juízos teleológicos particulares ideia de todo, enquanto fim, determi­
(nos quais se afirma a adequação de um nasse a estrutura de cada parte do ser
fenômeno particular a determinado fim) vivo. O conhecimento científico deveria
somente são possíveis com relação a investigar até onde é possível o nexo
objetos nos quais o próprio fim seja ima- causai entre os fenômenos biológicos,
nente a eles. Isso significa que se trata mas o fato inexplicável da vida em geral
de objetos de criação humana. Contudo, imporia, segundo Kant, a passagem ao
embora na natureza-domine em geral o juízo teleológico.

CRONOLOGIA
1724 — Immanuel Kant terpretados Mediante os So­ 1785 — Kant publica os
nasce a 22 de abril em Kõ­ nhos da Metafísica, de Fundamentos da Metafísica
nigsberg, Prússia. Kant. dos Costumes.
1727 — Morre Isaac New- 1770 — Kant apresenta à 1788 — Publica a Crítica
ton. Universidade de Kõnigsberg da Razão Prática.
1738 — Publicação do Tra­ a Dissertação sobre a For­ 1789 — A 14 de julho, eclo-
tado sobre a Natureza Hu­ ma e os Princípios do Mun­ de a Revolução Francesa: o
mana, a principal obra de do Sensível e do Mundo In­ povo toma a Bastilha.
David Hume. teligível. Nasce George Wi- 1790 — Publicação da Crí­
1762 — Nasce Johann Got- Ihelm Friedrich Hegel. tica da Faculdade de Julgar,
tlieb Fichte. 1781 — Kant publica a pri­ de Kant.
1763 — Publicação de O meira edição da Crítica da 1793 — Kant publica A
Único Argumento Possível Razão Pura. Religião dentro dos Limites
para uma Demonstração da 1783 — Publica os Prolegô- da Simples Razão.
Existência de Deus, de menos a Qualquer Metafísi­ 1798 — Publica O Conflito
Kant. ca Futura que Possa Vir a das Faculdades.
1766 — Publicam-se os So­ Ser Considerada como 1804 — Morre a 12 de
nhos de um Visionário, In- Ciência. fevereiro.

BIBLIOGRAFIA

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Pascal, g.: Pour Connaitre la Pensée de Kant, Éditions Bordas, Paris, 1957.
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Daval, r.: La Métaphysique de Kant, Paris, 1951.

504
OS PENSADORES

a manhã de 14 de julho de 1789, o toda a Revelação, escrita em 1791 e

N povo francês invadiu a Bastilha e


libertou todos os prisioneiros polí­
dedicada a Kant, indignou-se e redigiu a
Reivindicação pela Liberdade de Pensar,
ticos que ali se encontravam; na noite que
do lhe valeria a reputação de jacobino.
mesmo dia, acenderam-se fogueiras por Quando já era professor famoso na
toda a cidade, para comemorar o aconte­ Universidade de Jena, em 1799, redigiu
cimento. Estourava, assim, a Revolução um artigo sobre O Fundamento de Nossa
Francesa, “primeiro triunfo prático da Crença em uma Divina Providência e foi
Filosofia”, no dizer de Friedrich von acusado de ateísmo e conspiração contra
Gentz (1764-1832). o regime; respondeu com um Apelo ao
Na Alemanha, os estudantes da Uni­ Público e foi obrigado, pelas autorida­
versidade de Gõttingen cantariam em des, a abandonai- a cidade. No inverno de
coro a Marselhesa, Friedrich Schlegel 1807-1808, quando as tropas napoleô-
(1772-1829) proclamaria ser a revolu­ nicas ocupavam Berlim, ergueu em
ção uma das “linhas mestras de nosso praça pública sua voz inflamada, pro­
tempo” e Goethe (1749-1832) saudaria, nunciando seus Discursos à Nação
nos versos de Hermann e Dorotéia, o Alemã. Denunciou Napoleão como trai­
advento do primado da justiça e da dor dos ideais de liberdade da Revolu­
liberdade. ção e como instaurador do primado da
Entre os entusiastas encontrava-se um autoridade.
moço de 27 anos, Johann Gottliebe Fich- Instituir a autoridade como critério
te, que escreveu e publicou, em 1793, as da vida moral e da verdade teórica,
Contribuições para a Retificação dos destruindo, assim, a espontaneidade do
Juízos do Público sobre a Revolução eu e a liberdade que nele se radica, cons­
Francesa, onde procurava demonstrar a titui, aos olhos de Fichte, uma imorali­
verdadeira natureza do processo revolu­ dade: equivale a negai’ a própria essên­
cionário. Para ele, a Revolução Francesa cia do homem. Animada pelo mais
constituía expressão dos vínculos indis­ radical idealismo ético, a filosofia fich-
solúveis entre o direito à liberdade e a tiana procura ser uma “demonstração
própria existência do homem, enquanto científica da liberdade”, nas palavras do
ser ativo e inteligente. historiador Éinile Bréhier.
A idéia de liberdade, como raiz mais
profunda da essência humana, há muito Kant indica o caminho
tempo vinha sendo cultivada por Fichte.
Desde muito antes ele próprio vivia a O itinerário de Fichte, no sentido de
experiência da liberdade pessoal, sofria construir um sistema filosófico da liber­
as consequências de sua incansável pro­ dade, começou com a descoberta do pen­
cura e fazia dela o cerne de sua vida e de samento de Kant. A investigação da
seu pensamento. Na adolescência, quan­ natureza do conhecimento, realizada
do aluno do colégio de Pforta, gravou por Kant nos Prolegômenos a toda
para sempre no espírito uma frase de Metafísica Futura que Queira se Apre­
Lessing (1729-1781): “Ser livre não é sentar como Ciência e na Crítica da
nada, tornar-se livre, eis o céu”. Forma­ Razão Pura, mostrara que só é válido,
do em teologia pela Universidade de enquanto conhecimento objetivo, aquele
Leipzig, aos 22 anos de idade, Fichte que resulta da aplicação das formas e
recusou-se a seguir a carreira do sacer­ categorias apriorísticas do sujeito aos
dócio e, por causa disso, perdeu a pen­ dados empíricos. Como consequência,
são que recebia de sua tutora. Passou Kant demonstrara também que a metafí­
então a viver como um pobre preceptor e sica não poderia pretender validez teóri­
chegou a passai- fome. Impedido de ca, em virtude de passai- por cima das
publicar uma obra intitulada Critica de formas da sensibilidade e aplicar as
categorias do entendimento diretamente
à coisa-em-si. Segundo a Crítica da
Na página anterior: retrato de Razão Pura, não é possível provai- teori­
Fichte, gravura de A. Schultheiss. camente a existência de Deus, a imorta­
(Archivfur Kunst und Geschichte.) lidade da alma e a liberdade. Quando

506
FICHTE

ARCHIV FÜR KUNST UNO GESCHICHTE


Depois de expulso de Jena, sob acusação de ateísmo e conspiração contra o
Estado, Eichte residiu em fíerlim de 1800 a 1806. Nesse período, publicou O
listado Fechado, obra na qual combate o mercantilismo e defende a idéia de um
Estado com economia de tipo socialista. (Universidade de fíerlim no início
do século XIX, gravura de Laurens e Dietrich, segundo um original de Calau.)

tenta fazer isso, a razão é conduzida a então explicações para a coisa-em-si:


antinomias insolúveis, sendo possível elabora interpretações da estrutura da
provar tanto essas teses quanto as suas realidade em si mesma e tenta ultra­
contraídas: o próprio mundo é eterno, a passar o mundo meramente fenomênico.
alma é tão mortal quanto o corpo, etc. Em síntese, segundo Kant, não é a
Trazendo à tona a verdadeira natu­ metafísica — uma certa concepção do
reza das elaborações teóricas da metafí­ que seja o mundo e todas as coisas que
sica, ou seja, de todas as abordagens da se encontram nele — o fundamento da
coisa-em-si e da essência última da rea­ ordem moral. Pelo contrário, são as
lidade, e mostrando a falta de solidez de exigências da razão prática que geram a
tais construções, Kant procurou, contu­ metafísica e constituem seus postulados.
do, outros fundamentos para a metafí­ Conseqüentemente, a filosofia kantiana
sica. Essa tarefa é realizada na Crítica estabelece que a razão prática, o mundo
da fíazão Prática, obra em que Kant moral por ela instituído e, sobretudo, a
procura mostrai- como toda metafísica é liberdade que está em sua essência sác,
resultado das exigências práticas, isto é, independentes da teorização produzida
morais, do homem. Diante da imensidão pela razão pura. Manifestam, além
do mundo, o homem reconhece sua pró­ disso, a própria raiz do homem.
pria incapacidade de compreender-se A idéia da autonomia moral formu­
dentro do todo, utilizando apenas os lada por Kant foi saudada por Fichte,
conhecimentos científicos. Engendra com o entusiasmo peculiar à sua perso-

507
OS PENSADORES

Johann Wolfgang Goethe foi a grande figura alemã da época de Fichte. Embora
não fosse propriamente um filósofo, tem importância na história da filosofia por
suas idéias sobre a natureza corno um grande todo, a se manifestar em um
número infinito de formas em constante evolução. (“Goethe Ditando suas
Memórias”, tela de J. ./. Schmeller, Turingsche Landes Bibliothek, Weimar.)

nalidade. Kant parecia indicar-lhe o unos”. Esse ponto, de onde se poderia


caminho a ser seguido para a fundamen­ deduzir todo o saber, seria o eu.
tação teórica de seus anseios concretos
de liberdade. Com base em Kant. pare­ Que é o eu?
cia possível construir um sistema de
idealismo ético. Para realizar tal proje­ O núcleo central designado por Eichte
to, Eichte procurou solucionar as duali­ pela palavra eu não deve ser confundido
dades que persistiram na obra de Kant: com a consciência individual do próprio
coisa-em-si e aparência, conteúdo e Eichte ou de qualquer pessoa e nem
forma, absoluto e prático, formal e mesmo com um simples "sujeito" abs­
material, inteligência e coração, razão trato. O filósofo não construiu um siste­
prática e razão pura. ma de idealismo subjetivo e afirmou
A solução dessas dualidades — pensa­ claramente: "O eu não deve ser conside­
va Eichte — não deveria ser buscada num rado como mero sujeito, como foi consi­
princípio situado em terreno prévio a derado até agora, quase sem exceção,
toda relação entre sujeito e objeto. Em mas como sujeito-objeto". A palavra eu
outras palavras, a solução não podería (ou. mais exatamente, eu puro ou egoi-
ser alcançada "a menos que se encontre dade) designa uma consciência transcen­
Um ponto no qual o objetivo e o subjetivo dental, isto é, uma estrutura universal,
não estejam separados, mas sejam independente das consciências indivi-

508
FICHTE

FABBRI
Goethe foi um dos mais destacados participantes do grupo Tempestade e ímpeto,
do qual também faziam parte Schiller, Klinger e Lenz. O movimento colocara a
vida como valor supremo e recusava todas as formas que pudessem limitar o
desenvolvimento individual; com isso iniciou o Romantismo. (Ilustração para o
Fausto de Goethe, aquarela de F. M. .4. R.ctzsch, iVIuseu Goethe, Frankfurt.)

duais e tomada como pura atividade; princípios. Esses princípios são três e
encerra em si a estrutura de todo e qual­ constituem o fundamento da ação moral
quer conhecimento teórico, ao mesmo e de todo pensamento científico.
tempo que o fundamento de toda e qual­ O primeiro princípio constitutivo do
quer ação prática do homem. Em outros eu é uma versão metafísica do princípio
termos, o eu fichtiano constitui uma uni­ da identidade lógica, segundo o qual A é
dade daquilo que Kant separou como igual a A. Aplicado por Fichte, o princí­
duas razões, a pura e a prática. Toda a pio se fórmula nos seguintes termos; "O
obra puramente filosófica de Fichte pro­ eu põe a si mesmo como sendo-”. Em ter­
cura demonstrai' essa unidade radical. mos lógicos se d iria: o A que é é idêntico
Tal tarefa foi considerada por ele como a ao A que é posto: outra forma seria a
forma através da'qual se poderia elevar seguinte: se A é posto, é.
a filosofia à condição de ciência eviden­ Assim como o primeiro princípio
te. saber do saber, conhecimento da constitutivo do eu é encontrado a partir
razão pela razào. Por isso Fichte empre­ de um princípio lógico (o da identidade),
gou a expressão "doutrina da ciência o segundo também é encontrado por
para designar sua análise do eu. Fichte pela análise do pensamento lógi­
\ doutrina da ciência aborda o eu co. Em lógica, os juízos podem ser inclu-
mediante uma intuição intelectual, que sivo (uma coisa é X) e exclusivo (aquela
apreende sua estrutura e descobre seus coisa não é X). Dessa dualidade decorre

509
OS PENSADORES

ARCHIV FÜR KUNST UND GESCHICHTE


Fichte não foi um filósofo encerrado em gabinetes e bibliotecas; participou
ativamente dos acontecimentos políticos e sociais de seu tempo e foi um dos
líderes da unificação dos alemães numa pátria comum, para conter a expansão
da ditadura napoleônica. (Fichtepronunciando os Discursos à Nação Alemã;
mural de Arthur Kamph, no Auditório Magno da Lindenuniversitãt de Berlim.)

o segundo princípio da sua doutrina da volta-se sobre si mesmo. No primeiro


ciência e da estrutura do eu: '■‘‘Ao eu, um caso, a atividade é produção; no segun­
não-eu é absolutamente oposto”. do, reflexão.
O terceiro princípio do eu é obtido A palavra oposição — empregada por
também pela análise da dualidade dos Fichte para exprimir a relação do não-
juízos inclusivo e exclusivo. Se afirma­ eu para com o eu — designa uma relação
ção e negação são facetas de uma mesma lógica, mas significa também uma rela­
experiência, sua oposição não pode ser ção dinâmica de luta entre tendências
definitiva; sendo aspectos da mesma que se enfrentam procurando suprimir-
realidade, não podem, por isso mesmo, se. Analogamente, a palavra objeto
estar em absoluta contradição. Essa designa, em primeiro lugar, algo que é
constatação leva Fichte a enunciai’ o ter­ simplesmente conhecido pelo sujeito,
ceiro princípio do eu nos seguintes ter­ mas significa também aquilo que resiste
mos: nO eu, ao eu divisível opõe-se um ao espirito e a ele se impõe. Fichte desli­
não-eu divisível. A oposição é, assim, za continuamente do sentido lógico e
interpretada por Fichte como oposição estático ao dinâmico, fazendo de toda a
no interior da consciência e não contra a sua filosofia uma história abstrata e
consciência. esquemática das lutas travadas entre
Continuando-se o raciocínio em ter­ duas forças hostis, que procuram aniqui­
mos puramente lógicos, poder-se-ia lar-se mutuamente.
dizer que, agora, se apresenta uma nova Do terceiro princípio (no eu, opõe-se
dualidade, localizada no interior da ao eu divisível um não-eu divisível)
consciência. Fichte resolve o problema decorre a síntese: “O eu põe a si mesmo
através da síntese: “O eu põe a si mesmo como determinado pelo não-eu”. Essa é
determinado pelo não-eu”. Isso significa a base da parte teórica da doutrina da
que o eu possui duas atividades que ciência. Mas do terceiro princípio decor­
constituem sua estrutura íntima: uma re também uma outra proposição oposta
centrífuga (ativa), outra centrípeta (pas­ à anterior e que constitui o núcleo da
siva). Em outras palavras, dir-se-ia: a parte prática da doutrina da ciência: “O
atividade do eu, ao exteriorizar-se, rece­ eu põe o não-eu determinado pelo eu”.
be um choque e, por conseguinte, o eu Por um lado, a primeira proposição,

510
FICHTE

decorrente do terceiro princípio, dá ao


eu um estatuto absoluto, ou infinito,
pois só se limita aquilo que é autodepen-
dente. Além do mais, o eu é absoluto na
medida em que é limitado; o afasta­
mento dos limites reafirma seu grau de
absoluto. Por outro lado, o eu, como
inteligência, depende do "choque", isto
é, de um nào-eu indeterminado e indeter-
minável; somente através desse não-eu,
e devido a ele, o eu é inteligência. Esses
dois aspectos do eu — absoluto, mas, ao
mesmo tempo, dependente do não-eu —
constituem uma contradição que conduz
à parte prática da doutrina da ciência.
Nesta encontra-se fundamentada a idéia
de liberdade, na formulação fichtiana.

A essência da liberdade
Para resolver a contradição existente
entre a determinação do não-eu pelo eu
com a posição infinita do eu, Fichte afir­
ma que o eu determina o não-eu através
de esforço permanente e constante. Se
esse esforço levasse à consecução plena
de seu objetivo, desapareceria toda a
consciência, todo o sentimento e toda a
vida. Para Fichte, o eu é infinito na me­
dida em que luta para ser infinito; por
outro lado, o eu é finito enquanto não
consegue realizai* seu ideal. Além disso,
o sentimento do limite, por parte do eu, é
um sentimento de força, pois o limite só
é sentido enquanto se pretende ultrapas­
sá-lo.
Na doutrina da ciência está implica­
da, portanto, uma filosofia prática, que
se desenvolve de maneira semelhante ã
filosofia teórica e visa a determinar as
condições da liberdade moral. Em ou­
tros termos, a análise do eu enquanto
estrutura cognitiva desvenda também
sua natureza moral.
“Meu impulso, na medida em que sou
parte da natureza, minha tendência,
enquanto espírito puro”, pergunta Fich­
te, '■'são eles impulsos diferentes?” E
responde: “Nao; sob o ponto de vista
transcendental, ambos são um e o
mesmo impulso original, que é a minb;<
Inicialmente, os alemães saudaram em natureza essencial; só que esse impulso
Napoleão o advento de uma nova era, é visto de dois lados diferentes. Em ou­
mas logo se desiludiram. (Napoleão, em tras palavras, eu sou sujeito-objeto e
detalhe da tela de Antoine Jean Gros, meu ser verdadeiro consiste na identi­
“Batalha de Eylau”; Museu Versalhes.) dade e inseparabilidade desses dois

51 1
OS PENSADORES

mais elevado deve desistir da pureza de


sua atividade e o mais baixo deve desis­
tir do prazer. O resultado da união será
atividade objetiva, cujo propósito final é
a liberdade absoluta.
Em suma, a filosofia fichtiana afirma
que o eu se manifesta na esfera prática
como uma vontade que necessita de uma
resistência para continuar existindo.
Sem essa resistência, o eu não pode afir­
mar sua independência e libertar-se; é
por sentir-se limitada que a vontade
pode aspirar continuamente à supressão
de seus limitei. A produção da resis­
tência e a síntese da tensão entre ela e a
aspiração infinita realiza-se segundo um
processo semelhante ao que se verifica
na parte teórica da doutrina da ciência.
Existe, contudo, uma diferença essencial
entre esta e a parte prática. Enquanto a
primeira se conduz conforme um pro­
cesso que exige a síntese dialética dos
contrários, na segunda, isto é, nos domí­
nios da ação prática do homem, não se
pode chegai’ ao ponto final. O dever-ser é
atuação infinita e jamais completada do
eu; por isso, toda meta atingida não é
Schiller (1759-1805) formulou uma das definitiva, mas etapa para se prosseguir
idéias básicas do Romantismo: na busca de etapas superiores. A vida
a harmonia do homem culmina na arte. moral é. superação incessante de, obstá­
(Schiller, tela de R. Simanowitz, culos, sem interrupções e desfaleci-
Museu Nacional Schiller, Marbach.) mentos; toda parada na vida do espírito
é culposa. A atividade do eu é atividade
aspectos. Se eu me considero corno obje­ heróica, processo contínuo de libertação
to, perfeitamente determinado pelas leis na procura incessante de um ideal
da percepção sensitiva e do pensamento infinito.
discursivo, então aquilo que é, na reali­ A liberdade absoluta é,-assim, o fun­
dade, meu único impulso torna-se para damento último do eu e a doutrina da
mim impulso natural. Pois desse ponto ciência, que o traz à luz, “é do começo
de vista eu próprio sou natureza. Se me ao fim uma análise do conceito de liber­
observo como sujeito, então esse impul­ dade”, no dizer do próprio Fichte.
so passa a ser, para mim, puramente O pensamento de Fichte foi exposto
espiritual”. através do magistério universitário e de
Fichte conclui, então, que todos os grande número de obras que redigiu ao
fenômenos do eu dependem exclusiva­ longo de sua existência. Nascido a 1 9 de
mente da interação entre esses dois maio de 1762, Fichte estudou nas
impulsos e a interação não seria mais do universidades de Jena, Wittenberg e
que a interação de um e mesmo impulso Leipzig. Depois de ser preceptor, tor­
consigo mesmo. Assim obtém-se, final­ nou-se professor universitário, inicial­
mente, resposta à questão de num ser mente na Universidade de Jena, onde,
absolutamente uno existir uma oposição em 1794, substituiu o kantiano KarI
tão completa quanto a que existe entre Reinhold (1758-1823).Cinco anos depois,
os dois impulsos. Ambos impulsos cons­ obrigado a deixai’ Jena, sob a acusação
tituem, diz Fichte, um e o mesmo eu e, de ateísmo, transferiu-se para Berlim,
portanto, devem ser unidos na esfera da onde passou a lecionar na faculdade de
consciência. Nessa união, o impulso filosofia; em 1810 foi nomeado decano

512
FICHTE

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ARCHIV EUR KUNST UND GESCHICHTE


A intensa atividade cultural e
política de Fichte fez dele uma
figura muito conhecida na Alemanha de
seu tempo e objeto de humor para
caricaturas, como a de Schadow-
da recém-criada universidade.
Ao falecer em 18 14, tinha escrito um
grande número de obras sobre a dou­
trina da ciência. A primeira fora com­
posta em 1704, quando iniciou seu
magistério em .Jena. Uma das mais
conhecidas traz o título A Doutrina da
ARCHIV EUR KUNST UND GESCHICHTE

Ciência, Exposição de 1804 e constitui o


mais completo e elaborado enunciado de
seu pensamento, segundo Didier Julia,
um de seus intérpretes modernos.
Com seu trabalho universistário c com
toda a obra que escreveu, centralizada
na procura e na formulação de uma teo­
ria da liberdade absoluta, Fichte deu
expressão Filosófica aos ideais român­
ticos de seu tempo. Foi por isso que
Friedrich Schlegeí, seu amigo pessoal e
líder da escola romântica alemã afir­ Frontispício da primeira edição dos
mou: “A Revolução Francesa, o Wilhelm Discursos à Nação Alemã,publicada em
Meister de Goethe e a Doutrina da Ciên­ 1808, e caricatura de Carl Friedrich
cia de Fichte constituem as linhas mes­ Zimmermann, mostrando Fichte
tras de nosso tempo'’. pronto para lutar pelos compatriotas.

513
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1762 — Fichte nasce em 1790 — Goethe publica talício, por plebiscito. Nasce
Rammenau, a 19 de maio. fragmentos do Fausto. Victor Hugo.
1766 — Nascimento de 1793 — Nasce Nicolai Iva- 1803 — Nasce Berlioz.
Thomas Robert Malthus. novich Lobachevski, pionei­ 1804 — Edita-se A Doutri­
1770 — Nasce Beethoven. ro da moderna geometria. na da Ciência, Exposição de
1772 — Nascem Friedrich 1794 — Fichte publica Os 1804, talvez a obra mais im­
Schlegel, Novalis e David Princípios Fundamentais da portante de Fichte.
Ricardo. Doutrina da Ciência em seu 1806 — Derrota de Napo­
1775 — Nascimento de conjunto e as Lições sobre a leão na Rússia. A Prússia
Schelling. Destinação do Sábio. declara guerra à França.
1776 — Declaração de In­ 1797 — Schelling edita 1807 — Fichte publica os
dependência dos Estados Idéias para uma Filosofia Discursos à Nação Alemã.
Unidos da América. Adam da Natureza. Nasce Schu- 1809 — Nascem Mendels-
Smith publica A Riqueza bert. sohn, Poe, Darwin, Proud-
das Nações. Funda-sc o pri­ 1798 — É publicado O Sis­ hon e Gogol. Metternich é o
meiro sindicato operário na tema da Ética segundo os novo chanceler da Áustria.
Inglaterra. Princípios da Doutrina da 1811 — Nasce Liszt
1781 — É publicada a Crí Ciência, de Fichte. Nasce 1812 — Nascimento de
tica da Razão Pura, de Comte. Charles Dickens. Os Esta­
Kant. 1800 — Volta inventa a pi­ dos Unidos declaram guerra
1782 — Nasce Paganini. lha elétrica. à Inglaterra.
1784 — Fichte completa 1801 — Publica-se a Expo­ 1813 — Nascem Kierke-
seus estudos de teologia. sição da Doutrina da Ciên­ gaard e Verdi. Simón Bolí­
1788 — Vem à luz a Crítica cia, de Fichte, que será co­ var retoma a Venezuela dos
da Razão Prática, de Kant. nhecida como a Doutrina da espanhóis.
1789 — A 14 de julho, o Ciência de 1801. 1814 — Fichte falece no dia
povo francês toma a Basti­ 1802 — Napoleão Bona- 29 de janeiro.
lha: inicia-se a Revolução. parte é nomeado cônsul vi-

BIBLIOGRAFIA
Leon, X. : Fichte et son Temps, 3 vols., Armand Colin, Paris, 1954-1959.
Talbot, E. B.: The Fundamental Principie of Fichte’s Philosophy, The Macmillan Company,
Nova York, 1906.
Brehier, É.: Historia de la Filosofia, 3 vols., Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 1962.
Julia, D.: Fichte, Presses Universitaires de France, Paris, 1964.
Bourgeois, B.: L Idéalisme de Fichte, Presses Universitaires de France, Paris, 1968.
Heimsoeth, H.: Fichte, Revista de Occidente, Madri, 1931.
Gurwitsch, G.: Fichtes System der Konkreten Ethik, Tübingen, 1924.
Wundt, M.: Fichte, 1927.
Faust, A.: J. G. Fichte, 1938.
Pareyson, L.: Fichte, 1950.

514
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OS PENSADORES

oentio, desordenado, desencan­ Romantismo, deixa então de ser configu­

D tado, introspectivo, imaginoso, so­


nhador, sentimental, saudosista,
rado a partir da noção de ordem e passa
a ser dominado pela noção de símbolo.
Desse modo, em lugar de tomar como
liberal, revoltado, heróico, expressio-
nista — assim se poderia caracterizar o ponto de referência o modelo ideal e abs­
temperamento romântico, juntando-se trato realizado pela matemática — como
opiniões de autores tâo diversos quanto fazia a filosofia típica do Classicismo —,
Goethe (1749-1832), William Blake o Romantismo procura “constituir um
(1757-1827), Paul Valéry (1871-1945) modelo concreto no interior mesmo do
e outros. Essas características psicoló­ campo analisado, referindo-se a seu con­
gicas encontrar-se-iam em escritores e teúdo mais que a sua ordem” (Serres).
artistas do Romantismo, mas esse movi­ Esse “modelo concreto” é o arquétipo,
mento cultural, surgido no final do sécu­ prenhe de sentido, cuja escolha é deter­
lo XVIII e que teve ampla difusão no minada por sua situação remota, como
decorrer do século XIX, produziu tam­ origem limite. Daí o motivo de a análise
bém seus filósofos. simbólica, arquetípica, recuar no tempo
Do ponto de vista filosófico, a caracte­ para buscar seus modelos densos de sen­
rização do Romantismo assume dimen­ tido na história mítica (Apoio, Dioniso,
são epistemológica (referente à consti­ Éd ipo, etc.).
tuição do eonhecimento científico) e não A Alemanha, desde o final do século
meramente psicológica e artística. Fun­ XVIII, foi um dos focos de irradiação da
damental no pensamento romântico é a arte e do pensamento romântico. E foi
generalização que ele opera na concep­ nela que nasceu aquele que é geralmente
ção clássica de “verdadeiro”, através da apontado como a mais pura expressão
admissão da noção de “sentido”. Com da filosofia do Romantismo: Friedrich
isso, os pensadores românticos intentam Wilhelm Joseph Schelling.
promover os conteúdos culturais en­
quanto tais, o que realizam por meio da Filósofos e poetas
construção de um método próprio: a
análise simbólica. Schelling nasceu a 27 de janeiro de
O horizonte metodológico do Classi- 1775, em Leonberg, pequena cidade de
cismo estivera centralizado na noção de Württemberg. O pai, Joseph Friedrich
ordem; a fidelidade a esse ideal e a Schelling, pastor protestante, orientou-
formulação da própria noção de verdade lhe a educação no sentido da carreira
exigiam um modelo no qual aquela sacerdotal. Schelling inicialmente estu­
ordem se manifestasse perfeitamente dou na escola do Mosteiro de Bebenhau-
realizada. Eis porque a ordem inerente à sen, perto de Tübingen, depois no semi­
construção da matemática e das ciências nário teológico desta última cidade,
ditas exatas constituiu o modelo princi­ onde concluiu o curso em 1792. Os estu­
pal da filosofia clássica. Outra, porém, dos teológicos foram importantes em
será a linha metodológica do Roman­ sua formação, porém maior importância
tismo, norteada pelo projeto, como afir­ tiveram as discussões sobre a filosofia
ma Michel Serres, “de compreender o de Espinosa, Kant e Fichte, que manti­
pluralismo das significações, de desco­ nha com dois colegas, posteriormente
dificar todas as linguagens que não são tão famosos quanto ele: Hegel
necessariamente as da razão pura”. Os (1770-1831), o futuro grande filósofo, e
conteúdos culturais, porque assumidos Hõlderlin (1770-1843), que se tornaria
enquanto tais, são assumidos em sua um dos maiores poetas da língua alemã.
obscuridade e não mais explicados sob a Além de discutirem no terreno das mais
luz de um modelo claro porém transcen­ altas abstrações filosóficas, os três eram
dente. O horizonte metodológico, no adeptos entusiastas da Revolução Fran­
cesa que, no entanto, não viria a ter
sobre Schelling o mesmo efeito filosófico
Pág. ant.: Schelling, gravura de A. causado sobre o pensamento de Fichte.
Schultheis, segundo tela de Stieler. Na mesma época, Schelling impressio­
(Archivfür Kunst und Geschichte.) nou-se com a filosofia de Fichte e aderiu

516
SCHELLING

Os poetas do Romantismo valorizaram amplamente a vida no campo e as formas de


pensamento religioso, encontradas no folclore e na mitologia clássica.
O sistema de Schelling começou como filosofia natural e terminou pelo estudo
dos mitos em sua obra clássica A Filosofia da Mitologia. (“Goethe no Campo
Romano”, telã de J. H. W. Tischbein, Staedelches Kunstinstitut, Frankfurt.)

ao idealismo do mestre, publicando Do Schlegel (1767-1845), também poeta e


Eu como Princípio da Filosofia (1795) e crítico, tornou-se famoso por suas tradu­
Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo ções de poetas franceses, ingleses, italia­
e o Criticismo (1796). nos, portugueses e espanhóis. Ludwig
Em 1798, Schelling foi nomeado pro­ Tieck (1773-1853), outro dos partici­
fessor da Universidade de Jena, onde pantes do movimento romântico, desper­
teve oportunidade de conhecer pessoal­ tou em Schelling o interesse pela mitolo­
mente Fichte, que nele viu inicialmente gia e pelo folclore.
um simples colaborador. Em 1803, ano em que casou com
Nos anos de 1802 e 1803, Schelling Caroline, divorciada de August Schlegel,
dirigiu, juntamente com Hegel, o Jornal Schelling transferiu-se para a Universi­
Crítico da Filosofia. Na mesma época, a dade de Würzburg. Aí permaneceu até
cidade de Jena era o centro principal da 1806, quando foi chamado a Munique a
Escola Romântica alemã, e Schelling fim de ocupai’ os cargos de secretário da
ligou-se intimamente aos seus membros. Academia de Artes e de associado à Aca­
Friedrich Schlegel, poeta, crítiôo e pro­ demia de Ciências. Esses cargos iriam
fessor, era um dos líderes mais inflama­ lhe propiciai- lazer para o estudo. Só em
dos do movimento; seu irmão, August 1820 voltaria a lecionar, dessa vez em

517
OS PENSADORES

ARBORIO MELLA
Os mitos clássicos sempre constituíram matéria de inspiração para os poetas
e artistas plásticos, como o flamengo renascentista Pieter Brueghel, cuja
tela “A Oficina de Vulcano” se vê acima em detalhe (Galeria Doria-Pamphili,
Roma). Schelling, renovando a interpretação dos mitos, tornou-os objeto
de reflexão filosófica na obra A Filosofia da Mitologia, seu último escrito.

Erlangen, onde permaneceu até 1827, (1804), Investigações Filosóficas sobre


quando retornou a Munique. Em 1841 a Essência àa Liberdade Humana
foi chamado a Berlim por Frederico Gui­ (1809), Filosofia da Arte, /l.v Idades do
lherme IV. O soberano via em Schelling Mundo, Filosofia da Mitologia e Filoso­
um recurso para contrabalançar a cres­ fia da Revelação. As quatro últimas
cente influência dos “jovens hegelianos” foram publicadas depois da sua morte.
— Karl Marx (1818-1883), Feuerbach
(1804-1872), Strauss (1808-1874) e Da natureza
outros —, que despertavam a oposição de
elementos da Igreja. A esquerda hegelia- ao transcendental
na, contudo, era muito forte e Schelling Assim como o itinerário filosófico de
acabou por deixar suas funções docentes Fichte começou com a descoberta do
em Berlim. Faleceu em Ragaz, a 20 de pensamento de Kant, o de Schelling par­
agosto de 1854. tiu de uma adesão ao sistema ficbtiano.
Alénl dos trabalhos em que esposava Expressão disso são seus escritos juve­
as mesmas idéias de Fichte, Schelling nis, dos quais os mais importantes são
deixou extenso conjunto de obras dentre Do Eu como Princípio da Filosofia e as
as quais se destacam: Idéias para uma Cartas Filosóficas sobre o Dogmatismo
Filosofia da Natureza (1797), A Alma e o Criticismo.
do Mundo (1798), Projeto de um Siste­ Relativamente cedo, contudo, liber­
ma, Exposição de Meu Sistema (1801), tou-se do mestre por achar insuficiente a
Bruno (1803), Filosofia e Religião tese fichtiana de que a natureza é ape-

518
SCHELLING

nas uma resistência oposta à atividade


infinita do eu e produzida por essa ativi­
dade. Schelling, ao contrário, passou a
insistir na idéia de que a natureza é tão
real e tão importante quanto o eu. E
afastou-se ainda mais de Fichte, quando
afirmou ser a natureza e a objetividade
aquilo que fornece à consciência o mate­
rial que esta, por sua vez, reproduz.
Originalmente, a consciência e a natu­
reza seriam uma só unidade infinita;
mas a consciência limitar-se-ia a si
mesma e aprescntar-se-ia a si mesma
como finita e diferente da natureza. A
essência do eu é espírito, a da natureza é
matéria e a da matéria é forca.
No conceito de força, Schelling identi­
fica o terreno comum entre a natureza e
o eu. Enquanto atração, a força é vista
por Schelling como objetiva, natural e
material; enquanto repulsão, é subjetiva
e espiritual: é o eu.
Com a valorização da natureza — por
oposição a Fichte —, Schelling esposa
uma espécie de naturalismo organicista
'Sit Veittn e procura resolver problemas colocados
pelas ciências físicas, não levados em
íví conta pelo sistema fichtiano. Schelling
acreditava que o objetivo fundamental
iiiiigcn S®crtfitr6. das ciências fosse a interpretação da
natureza como um todo unificado, vendo
<éri?cr Styil. no conceito de força o fator que poder ia
conduzir àquela unificação. Nesse senti­
do, tentou mostrar como todos os fenô­
menos mecânicos, químicos, elétricos, e
biológicos constituiríam manifestações
de uma mesma força, que definiu como
atividade pura. A natureza seria, assim,
uma infinita auto-atividade jamais
exaurida. Essa concepção já se encon­
trava em Fichte, mas a atividade era
nele atribuída ao eu, não à natureza.
A natureza — segundo Schelling —
seria, como o eu fichtiano, uma aspira­
ção infinita, uma tendência à dispersão,
à qual se contrapõe uma tendência opos­
ta. Todo o processo da realidade se cum­
4 ♦ * P S »' priría segundo um sistema dialético de
ok ’&n>aonbW<n ^udjbanõíung, oposições que, depois de sintetizadas,
‘774. engendrar iám novas contradições, ç
assim sucessivamente.
Litografia de G. R. Ryleypara As A partir da valorização da natureza,
Dores do Jovem Wertner, ae Goethe Schelling transitou coerentemente atra­
(Museu Goethe, Weimar), e frontispício vés da idéia de desenvolvimento dialé­
da l.a edição. (Biblioteca Central tico, até chegai’ a uma concepção mais
dos Clássicos Alemães, Weimar.) ampla, que denominou de Sistema de

519
OS PENSADORES

Uma das idéias fundamentais de toda a filosofia de Schelling consiste em sua


afirmação de que a obra de arte constitui a mais completa criação humana e a
melhor via de acesso ao absoluto. Em Ludwig van Beethoven, seu contemporâneo,
a Escola Romântica alemã encontrou a mais perfeita expressão musical.
(Beethoven em companhia de amigos, gravura da Biblioteca Nacional de Viena.)

Idealismo Transcendental. Esse era o tí­ nos primeiros, a atividade finalística


tulo de uma obra escrita em 1800 e que responsável por sua criação permanece
foi o marco inicial de uma segunda fase escondida ou inconsciente, manifestan­
de seu pensamento. Nessa obra, Schel­ do-se apenas no próprio produto; já nas
ling expõe, na parte teórica, o desdobra­ obras de arte, a atividade produtiva
mento da consciência absoluta em suas seria consciente, enquanto seria incons­
relações com a dialética da Filosofia da ciente o produto.
natureza; na parte prática apresenta A estética elaborada no Sistema de
idéias sobre o desenvolvimento da cons- Idealismo Transcendental e nas confe­
çiência no curso da história. rências Sobre as Relações entre as Artes
As idéias de Schelling sobre a obra de Plásticas e a Natureza revela um Schel­
arte possuem especial relevo dentro de ling extremamente pessoal e apaixo­
seu sistema de idealismo transcendental. nado. Ele sustenta que, na obra de arte,
Na obra de arte Schelling vê a unificação a inteligência se torna totalmente auto-
do mundo da natureza e do mundo do consciente pela primeira vez. Na filoso­
espírito, do objeto e do sujeito. E, como fia, a inteligência é abstrata e limitada
Kant, considera a obra de arte seme­ em suas tentativas de exprimir uma
lhante ao organismo vivo, na medida em potencialidade infinita. Na obra de arte,
que ambos só podem ser compreendidos ao contrário, a inteligência realiza toda
finalisticamente, ou seja, na medida em a sua potencialidade, porque está livre
que ambos seriam realidades nas quais da abstração. Dessa forma, a arte seria o
as partes só têm sentido dentro do todo e objetivo último para o qual tende toda a
este, por sua vez, tem seu fim em si inteligência. A arte seria a verdadeira
mesmo. A diferença fundamental entre filosofia, na medida em que, nela, se
os organismos e as obras de arte reside reconciliam a'natureza e a história. A
— segundo Schelling — no fato de que, inteligência teórica — diz Schelling —

520
SCHELLING

luto. A filosofia da natureza e a filosofia


do conhecimento, tomadas separada­
mente, constituem apenas a metade da
verdade e precisam ser completadas pela
outra metade, unindo-se numa indifêren-
ciada unidade. A produção da realidade
não deve permanecer na oposição entre
natureza e inteligência, sujeito e objeto,
mas na identidade do absoluto. Essa
identidade absoluta encontra-se radi­
cada na origem comum da natureza e da
inteligência: a razão.
A razão seria, assim, una e infinita,
abrangendo tanto as coisas-em-si quanto
o conhecimento. Na razão não havería
objeto ou sujeito, espaço ou tempo. Sua
lei suprema seria o princípio da identi­
dade lógica: A é igual a A. Esse princí­
pio seria independente de qualquer
consideração espacial ou temporal, o
que torna a distinção entre sujeito e ob­
jeto apenas formal e relativa: sujeito e
objeto seriam formas independentes de
qualquer essência.
Três das maiores expressões do Em sua total unidade e identidade, o
Romantismo alemão — Hõlderlin, Hegel absoluto de Schelling condiciona todas
e Schelling — foram amigos desde a as diferenças e, ao desdobrar-se como
juventude. (F. K. fletmer: Hõlderlin, série de potencialidades, permite chegar
Museu Nacional Schiller, Marbach.) ao ponto em que o objeto predomina
sobre o sujeito (natureza), ou vice-versa
contempla o mundo, a inteligência prá­ (espírito). Ao manifestar-se como natu­
tica ordena o mundo, a inteligência esté­ reza ou como espírito, o absoluto, contu­
tica cria o mundo. do, nada perde de si mesmo e o que
caracteriza cada uma de suas potenciali­
Na arte, a verdade dades é a sua direta participação na
totalidade unitária. Não há, portanto,
A abordagem dos problemas da obra uma relação de produção entre objeto e
de arte e a necessidade de harmonizai’ sujeito, natureza e espírito, ou seja, a
mais amplamente as diferentes partes de consciência não é produzida a partir da
seu sistema levaram Schelling à fase realidade objetiva externa, ou vice-
mais conhecida de sua filosofia: o siste­ versa. Sujeito e objeto, espírito e natu­
ma da identidade. Esse sistema engloba reza seriam, portanto, condicionados
a filosofia da natureza e o idealismo que têm seu fundamento último no abso­
transcendental, constituindo uma ter­ luto incondicionado, único, indiferente e
ceira fase do desenvolvimento da filoso­ idêntico. Por essa razão, nem a natureza
fia de Schelling. Segundo o sistema da nem o espuãto constituem seres peculia­
identidade, as contradições e oposições res, totaímente distintos um do outro:
que permaneciam como resíduos no sis­ são ao mesmo tempo sujeito e objeto. Na
tema do idealismo transcendental resol­ natureza existir ia um princípio vital,
vem-se no conceito de absoluto. O abso­ responsável por ela estai' continuament'
luto seria a completa indiferença entre tentando sair de sua passividade; no
sujeito e objeto, natureza e espírito; espírito, por outro lado, manifestar-se-ia
seria identidade dos contrários que, no um princípio natural, que o impede de se
fundo, não oferecem, em sua presença constituir como um ser puro, voltado
real, outra oposição a não ser a de parti­ apenas para si mesmo.
ciparem diversamente do próprio abso­ Conhecer o absoluto é a tarefa a que

52 1
OS PENSADORES

contra-se uma das características funda­


mentais do espírito do Romantismo, do
qual Schelling foi um dos maiores repre­
sentantes. Para ele, nas obras artísticas
ficam anuladas todas as oposições e
exprime-se, da maneira mais pura e
completa, a identidade dos contrários no
seio do absoluto.

A revelação do divino
A última fase do pensamento de Schel­
ling (que se estende desde 1809 até sua
morte, em 1854) caracteriza-se pela
integração do problema do pensamento
religioso dentro de uma filosofia mais
ampla do que o sistema da identidade,
embora o inclua. As obras referentes a
essa fase foram publicadas postuma­
mente: As Idades do Mundo, Introdução
à Mitologia, Filosofia da Mitologia e
Filosofia da Revelação. Nelas, Schelling
procurou construir uma filosofia posi­
tiva (segundo sua própria expressão),
fundamentada na pesquisa da evolução
do pensamento religioso através da his­
tória, especialmente o expressado nos
mitos.
Nessa fase do pensamento de Schel­
ling, assume grande importância a idéia
de que o mundo finito existe como algo
separado do absoluto, do qual se des­
prendeu, mas aspira à reincorporação no
absoluto, através da evolução da natu­
reza e do desenvolvimento histórico.
Entre 20 e 35 anos de idade, A partir dessa idéia geral, Schelling
Schelling exerceu forte influência passou a considerai' como tarefa primor­
junto ao público de sua época. As dial da filosofia a explicação do pro­
obras escritas depois disso só foram cesso de volta ao absoluto. Para isso, a
publicadas postumamente. (Franz filosofia deveria converter-se fundamen­
Kruger: Schelling aos 69 anos.) talmente numa filosofia da mitologia.
A mitologia — afirma Schelling — é
se deve propor a filosofia, mediante a um sistema simbólico de idéias, com
intuição intelectual. Assim procedendo, sua própria estrutura apriorística, da
a filosofia penetraria na unidade essen­ mesma forma como o entendimento —
cial existente entre o mundo natural e o como mostrara Kant na Crítica da
mundo do espírito, intuindo o desabro­ Razão Pura — é constituído por catego­
char e o desenvolvimento de suas poten­ rias responsáveis pelo pensamento lógico.
cialidades respectivas; cada uma das Desvendadas as estruturas apriorís­
potencialidades de um dos dois domínios ticas da mitologia, seria possível ver
corresponde — segundo Schelling — a como os mitos constituem formas de
uma potencialidade do outro. expressão da volta ao absoluto divino.
A melhor via de. acesso ao absoluto, Deus é concebido por Schelling como a
entretanto, não seria constituída pela evolução de uma oposição, na qual o
intuição intelectual dos filósofos, mas absoluto vazio do nada contrapõe-se à
pela criação artística. Nessa idéia en­ plenitude do ser, operando-se a síntese

522
SCHELLING

ling denomina “emanatistas” — que


interpretam a mitologia como alteração
ou desvirtuamento de um suposto mono-
teísmo original. Schelling rejeita esse
tipo de interpretação, que coloca causas
negativas na raiz histórica dos mitos; ao
contrário, para ele, a mitologia precede
a revelação de um Deus único. Por outro
lado, recusa as interpretações que preten­
dem atribuir origem filológica às entida­
des mitológicas; para ele, não cabe bus­
car uma origem linguística para a
mitologia, já que da mitologia é que pro­
cedería a própria língua.
Schelling dedicou agudas análises às
interpretações que conferem aos mitos
uma verdade indireta e exterior, ou seja,
àquelas que consideram os mitos como
alegorias cujo sentido, consequente­
mente, deve ser buscado noutra pauta de
linguagem, como o resultado de uma
"tradução’ ou de um “desvelamento”. A
noção de alegoria surge estreitamente
vinculada a duas idéias que desempe­
nham importante papel na última formu­
lação de seu sistema: a de profetismo e a
de ironia. O profeta, com efeito, é aquele
que tem uma antevisão do futuro ali
onde o homem comum nada percebe
além do trivial e do imediato; o profe­
tismo aparece, assim, como uma espécie
de “alegoria da duração”, a tradução,
em termos de porvir, da significação
profunda do presente. Por outro lado,
Schelling concebe um divino fundamen­
talmente irônico, que opera de forma
Schelling não teve maior participação sempre simulada — que triunfa, por
nos eventos políticos da época, como exemplo, exatamente ao morrer na cruz
o levante que levou à criação do entre ladrões — e que suscita, portanto, a
Parlamento alemão. (Tela de Menzel: necessidade de uma interpretação alegó­
funerais das vitimas da insurreição.) rica do mundo. Todavia, no caso dos
mitos, Schelling endereça à tese alego-
pela união do ser e do nada na realidade rista uma crítica decisiva, que prepara o
divina. caminho para novas perspectivas de
Com sua Filosofia da Mitologia, interpretação: essa tese não leva em
Schelling abre novas perspectivas para a conta a anterioridade do elemento divino
interpretação dos mitos. Fazendo o da mitologia. Schelling reivindica: o
inventário das diversas posições filosó­ sentido do mito deve ser buscado no pró­
ficas referentes à mitologia, situa-as em prio mito e não fora dele; o mito não é
três grupos: as que recusam qualquer uma alegoria, mas uma tautegoria.
valor de verdade aos mitos, as que lhes Escreve: “A mitologia não é alegórica:
concedem apenas uma verdade indireta e ela é tautegórica. Para ela, os deuses são
exterior e, finalmente, as que lhes atri­ seres que existem realmente, que não
buem uma verdade intrínseca e imedia­ são uma outra coisa, que não significam
ta. No primeiro caso, estariam, por outra coisa, mas que significam somente
exemplo, aquelas filosofias — que Schel­ aquilo que eles são”.

523
OS PENSADORES

CRONOLOGIA

1775 — Schelling nasce a 1799 — Nasce Balzac. estudos sobre a dilatação


27 de janeiro, em Leonberg. Morre Beaumarchais. Hum- dos gases.
Beaumarchais publica O boldt viaja pela América do 1809 — Vêm à luz as Inves­
Barbeiro de Sevilha. Sul até 1804. tigações Filosóficas sobre a
1776 — Nascimento de 1801 — Schelling publica a Essência da Liberdade Hu­
Amedeo Avogadro. Exposição de Meu Sistema. mana, de Schelling.
1782 — Morte de Johann Gauss edita as Investiga­ 1814 — Morre Fichte.
Sebastian Bach. ções Aritméticas. 1818 — Keats publica
1783 — Nascimento de 1803 — Maine de Biran pu­ Endymion. Nasce Karl
Stendhal. Sào publicados os blica o Tratado do Hábito. Kíarx.
Prolegômenos a toda Meta­ Schlegel divorcia-se de Ca- 1819 — É editado O Mun­
física Futura, de Kant. roline e esta se casa com do como Vontade e Repre­
1790 — Schelling ingressa Schelling. É publicado Bru­ sentação, de Schopenhauer.
no seminário teológico de no, de Schelling. 1820 — Nasce Engels.
Tübingen. 1804 — Morre Kant. Fichte Schelling torna-se professor
1791 — Morte de Mozart. publica A Doutrina da em Erlangen.
1797 — Schelling publica Ciência, Exposição de 1804. 1821 — Nasce Dostoiévski.
as Idéias para uma Filosofia Schelling edita Filosofia e 1826 — Mendelssohn com­
da Natureza. Religião. põe Sonho de uma Noite de
1798 — É nomeado profes­ 1805 — Morre Schiller. Verão. Schelling continua
sor da Universidade de Je- Beethoven compõe Fidélio. lecionando, em Munique.
na. Publica A Alma do 1806 — Nasce John Stuart 1854 — Falece no dia 20 de
Mundo. Schiller escreve Mill. agosto.
Wallenstein. 1807 — Gay-Lussac realiza

BIBLIOGRAFIA
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Koktanek, A. M.: Schellings Seinslehere und Kierkegaard, 1962.

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