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XVI

BLAISE PASCAL

PENSAMENTOS

Introdução e notas de CH. - M. DES GRANGES


Tradução de SÉRGIO MILLIET

1973

EDITOR: VICTOR CIVITA


Título original:
Pensées

1. ªedição - Março 1973

e - Copyright desta edição, 1973,


Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Tradução publicada sob licença de
Difusão Européia do Livro, São Paulo.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7
A VIDA DE PASCAL, escrita por Mme Périer, sua irmã . . . . . . . . . . . . . . . 13
PENSAMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . •. . . . . . 39
INTRODUÇAÕ

Pascal escreveu As Provinciais em 1655 e 1657. Mas desde 1654, época de


sua segunda conversão, meditava sobre uma Apologia _da Religião Cristã. Com
efeito, durante os dois anos precedentes, período "mundano" de sua vida,
freqiientou, com o Duque de Roannez e o Cavaleiro de Méré, uma sociedade em
que a "libertinagem de espírito" estava muito em moda. Tendo permanecido
profundamente cristão, e já conquistado pelo jansenismo, Pascal verificou com
surpresa, e em seguida com dor, que boa parte dessas ''pessoas de bem': viva-
mente interessadas em questões científicas, e junto às quais seu crédito de sábio
era ponderável, mostrava, por sectarismo e friamente, absoluta impermeabi-
lidade ao sentimento religioso. O livro, de cabeceira dessas pessoas era Montai-
gne, que se tornara,,com ou sem .razão, o patrono de todos os céticos. E o argu-
mento mais forte que opunham à fé era o de não ser ela suscetível de
"demonstração ':
Se datarmos de 1655 o Colóquio de Pascal· com o Senhor de Saci sobre
Epicteto e Montaigne, veremos que, já ao entrar para Port-Royal, antes mesmo
de ter escrito a Primeira Provincial, Pascal encarava de maneira precisa uma dis-
cussão com os "libertinos" e delimitava nitidamente o terreno em que tinha a
intenção de se confinar afim de combatê-los, por assim dizer, em campo fecha-
do. Dessa época devem datar algumas das notas concisas que deixou .sobre a
ordem, as razões do coração que a razão desconhece, o espírito de finura oposto
ao espírito de geometria e talvez sobre a aposta.
Mas foi, sem dúvida, principalmente depois de terminar As Provinciais que
se entregou inteiramente à preparação da grande obra. Infelizmente, seu estado
de saúde não lhe permitia trabalhar nisso senão de maneira intermitente e desco-
sida: todos sabem que seus últimos anos de vida foram uma lenta agonia. Nos
poucos momentos que lhe deixava o sofrimento, Pascal rabiscava algumas linhas
sobre o primeiro pedaço de papel que lhe caía nas mãos; às vezes, mesmo,
somente podia ditar.
Entretanto, numa conferência feita "na presença e a pedido de várias pes-
soas de alta posição e suas amigas': ele expusera o plano geral de sua Apologia
(cf. Pensamentos 416 e 430 precedidos de E. P.-R. - em Port-Royal). Essa
conferência/oi realizada entre 1657 e 1659.
Por isso, quando se acharam, em 1662, diante das notas deixadas pelo
defunto, não hesitaram os herdeiros de Pascal em reconhecer o material da Apo-
logia. Mandaram-no desde logo copiar por alguém de Port-Royal .habituado
. 8 INTRODUÇÃO

àquela caligrafia quase indecifrável. Depois pensaram no·partido que poderiam


tirar dos preciosos fragmentos. Em 1666 haviam solicitado um 'privilégio "para
a sua publicação; entretanto, a obra não aparecia e até 1669 eles se viram impe-
didos de levar a cabo seu intuito por motivos de toda espécie. Deveriam conten-
tar-se com mandar imprimir o conjunto, escrupulosamente, sem nada cortar nem
modificar? Ou tentariam, como sugeria Roannez, a reconstituição do plano
exposto por Pascal em sua conferência, preenchendo as lacunas de argumenta-
ção e redação? Ou, enfim, optariam por um ter.mo médio, dando ao público uni-
camente os trechosjá revistos definitivamente por Pascal, com uma seleção dis-
creta e prudentemente corrigida dos pensamentos inacabados? Confiaram a uma
comissão (compreendendo Arnauld, Nico/e, o Sr. de Tréville, o Sr. du Bois, o Sr.
Filleau de la Chaise e o Sr. de Brienne) a tare/a de pronunciar-se a respeito dos
diversos projetos, e essa comissão manifestou-se a favor da reconstituição dese-
jada por Roannez. Mas a irmã de Pascal, Gilberte Périer, opôs-se-lhe energica-
mente. Se não pôde obter que se imprimisse com exatidão todo o manuscrito, a
ela devemos seguramente a edição de 1670, a que chama, até hoje, "edição de
Port-Royal ': Seu filho Etienne escreveu o prefácio dessa edição, expondo com
muita clareza o plano da Apologia. Mas esse plano não foi observado na própria
disposição do texto que se intitulou Pensamentos do Sr. Pascal sobre a Religião
e Outros Assuntos.
Mme Périer havia preparado uma Vida de Pascal que deviafigurar na edi-
ção. Essa Vida só foi publicada em 1684, na Holanda, e juntada às ediçõesfran-
cesas a partir da quinta (1687). Era, com efeito, necessário evitar a todo preço
reacender as querelas teológicas a que a paz da Igreja pusera fim em 1668. Essa
obra de Pascal, autor de As Provinciais, não devia revelar nenhum vestígio de
"jansenismo ".A Vida, em que eram lembradas as relações entre Pascal e Por/-
Royal, podia, em 1670, comprometer o êxito dos Pensamentos. E foi também
esse o ponto de vista que perfilharam mui habilmente os primeiros editores, ate-
nuando, corrigindo, suprimindo . .. A tal ponto que nesse primeiro estado
foram os Pensamentos considerados obra de perfeita ortodoxia católica e que
Arnauld não encontrou dificuldade emfazer aprovar o livro por vários bispos e
doutores em teologia. "Os amigos de Pascal': escreve Bru'nschvicg, "acreditaram
de boa-fé trabalhar pela memória de Pascal, adaptando os Pensamentos à nova
situação de Port-Royal, fazendo de um livro escrito no ardor da luta contra o
partido dos jesuítas uma obra de edificação, inspiradora de calma e recolhi-
mento, digna de servir de profissão e como de. centro à Igreja reconciliada e
unificada."
Por outro lado, acreditaram ter, não o direito, mas o dever de dar alguns
retoques ao estilo, apagar certas luzes demasiado brilhantes, completar frases
exageradamente elípticas, etc. Não .os julguemos pelo nosso atual respeito aos
· textos originais, nem pelo nosso gosto. Eles pensaram no que podia chocar ou
desnortear seus contemporâneos; estavam persuadidos de que o próprio Pascal
não teria deixado subsistir, em redação definitiva, as ousadias de expressão ou de
sintaxe nas quais nos comprazemos hoje em descobrir o que seu gênio t~ve de
mais espontâneo.
A edição de 1670 compreende trinta e dois títulos. Começa pelo trecho con-
tra os ateus; seguem-se As Marcas da Verdadeira Religião; O Pecado Original;
A Regra da Aposta; A Corrupção do Homem; os trechos sobre Os Judeus, Moi-
INTRODUÇÃO

sés, Jesus ... Do título XXI ao Título XXVI a análise da Grandeza e da Fra-
queza do Homem; a seguir, os pensamentos sobre os milagres e, sob os títulos de
Pensamentos Cristãos, Pensamentos Morais, Pensamentos Diversos, uma parte
do que os editores não tinham podido introduzir nos títulos precedentes. Como
se vê, não se trata de um plano e sim, quando muito, de uma classificação de
pensamentos análogos, sem nenhuma linha de encadeamento lógico.

II

Essa edição, assim compreendida, foi utilizada por todos os leitores de Pas-
cal, de 1670 a 1776. Nesta última data, Condorcet publicada uma nova edição
em que, embora declarando seu respeito por Pascal, alterava o espírito dos
Pensamentos. Se Port-Royal extirpara da obra o jansenismo, ou o mascarara,
Condorcet punha em relevo os argumentos acerca da impotência da razão, da
incerteza necessária da religião, das dificuldades de interpretação das profecias e
milagres . . . Em suma, surgiu, assim, graças à habilidade dessa manobra "filosó-
fica': um Pascal "cético "que se impôs, durante cerca de cem anos, à imaginação
superexcitada dos românticos, a princíjJio, e ao racionalismo da escola positi-
vista, depois. Condorcet juntou à sua edição as Observações sobre os Pensamen-
tos, que Voltaire publicara em 1734 em apêndice às Cartas Inglesas. E esse
mesmo Voltaire fez imprimir em Genebra o Pascal de Condorcet juntamente
com novas Observações (1778).
No ano de 1779 saiu a edição do Abade Bossut. Este, preocupado sobre-
tudo em dar ao público todas as obras de Pascal, e em arrancar ao esquecimento
certos opúsculos científicos, não procurou distribuir os pensamentos em
obediência à ordem sugerida por Etienne Périer. Estabeleceu somente duas
seções: Pensamentos Relacionados com a Filosofia, a Moral e as Letras e Pensa-
mentos Imediatamente Relativos à Religião, com capítulos de Pensamentos
Diversos. Essa ordem pareceu desde então impor-se aos editores, salvo algumas
exceções (edição Frantin, Dijon, 1835).
Através dessas revisões todas e desses comentários, ninguém se voltava
para o texto propriamente dito de Pascal. . Nenhum dos editores pen~ava no
manuscrito original que cochilava na Biblioteca Real. Foi somente em 1842 que
Victor Cousin, em comunicação lida na Academia Francesa9 assinalou com
certa indignação tão culposa indiferença; e dava exemplos tão impressionantes
das alterações verificáveis no texto dos Pensamentos e da necessidade de recorrer
ao manuscrito que, dois anos mais tarde, pôde o público ler finalmente o texto
autêntico dos Pensamentos na edição de Prosper F augere. A partir dessa data
(1844), melhorias, devidas a leituras mais atentas do manuscrito e das cópias,
foram sem cessar introduzidas no texto, em particular por E. Havet (1851), Moli-
nier (1877-79) e G. Michaut (1896). Por outro lado, buscou-se dispor os Pensa-
mentos segundo o método apologético de Pascal, e a edição de Rocher (18-73) é
a tentativa mais interessante anterior à de L. Bmnschvicg.
Esse úliimo, publicando a reprodução emfototipia do manuscrito de Blaise
Pascal, e em seguida sua edição clássica de Pensamentos e Opúsculos e ainda, na
10 INTRODUÇÃO

coleção Grandes Escritores da França (Hachette), os Pensamentos em três volu-


mes - resolveu, realmente, e por muito tempo, tanto a questão do texto como a
do pÍano e a do comentário. Graças a essas obras, temos a certeza de poder ler,
segundo o desejo de Cousin, "todo Pascale somente Pascal".

III

Duas dificuldades se apresentam quando se procura reconstituir o plano


organizado por Etienne Périer no prefácio de 1670, e dessas duas dificuldades a
mais séria é a de estabelecer as etapas sucessivas da demonstração apologética.
Efetivamente, Périer e Filleau de la Chaise deixaram-nos as grandes linhas dessa
apologia. Sabemos muito .bem a que espécie de leitores se dirigia Pascal, como
formulava o problema do destino humano, com que argumentos contava para
forçar os mais indiferentes à procura e à solução do problema, . que provas
morais, históricas, teológicas desejava enumerar . .. Mas ·a verdadeira dificul-
dade começa no momento em que se quer introduzir este ou aquele fragmento
nas seções estabelecidas. Pode-se sempre temer, não sem dúvida em relação à
maior parte dos pensamentos, mas em relação a um número muito grande, nãá
adivinhar o lugar exato. De resto, no estado em que Pascal de~ou a Apologia,
saberia ele próprio que uso faria de .todas essas reflexões, algumas das quais de-
viam ser eliminadas e outras mudar de forma e de contexto? E se Pascal pudesse
ver as edições de seus Pensamentos, não se espantaria em deparar com muitos
trechos que encarava como anotações quase algébricas de uma idéia, de uma
objeção, de uma réplica, sem pensar ainda em localizá-las ou em lhes avaliar o
alcance? Não estimaria supérflua ou desastrada a publicação de certas linhas
inacabadas ou em aparência contraditórias? Não protestaria contra esse "desem-
pacotamento integral" dos menores rabiscos escapados de sua mão febril? Creio,
antes, que se sentiria infinitamente comovido com o cuidado devoto que tiveram ·
tantos críticos afim de reunir, decifrar, classificar, comentar suas notas. Se mor-
reu lamentando não ter terminado essa Apologia, meditada durante dez anos (e
em meio a que sofrimentos!), esse livro de caridade em que, como Jesus, ''pen-
sava em nós na sua agonia" e com o qual esperava induzir tantos incrédulos a
"buscar e encontrar" afé,julgaria sem dúvida que seus esforços não foram vãos,
porquanto, há mais de duzentos anos, os homens vêm cercando de respeito e
admiração esse manuscrito quase ilegível, e recomeçando sem cessar, com uma
perseverança que nada desanima, a decifrar-lhe ao mesmo tempo a cq1igrafia e o
sentido. Talvez~ mesmo, visse uma intenção da Providência no fato de a morte o
ter impedido de terminar o livro. Uma Apologia da Religião Cristã, apresentan-
do-se, sob esse título, como obra dogmática e edificante, teria atingido menor nú-
mero de leitores. Os libertinos e livres-pensadores, a quem Pascal o destinava, te-
riam hesitado em abri-lo ou tê-lo-iam sistematicamente esquecido. E, por outro
lado, o espírito jansenista acentuar-se-ia nele a poni'o de ser a Apologia conside-
rada pelos católicos um livro de polêmica, legitimamente suspeito aos ortodoxos.
Os Pensamentos, ao contrário, não podem ser suspeitos a nenhum leitor. Para
uns é um livro de fé; para outros, um livro em que uma alma humana se revela
com maior naturalidade e verdade do que alhures; para todos, uma obra-prima
sem igual na línguafrancesa.
INTRODUÇÃO 11

Sejamos, pois, reconhecidos, como o seria Pascal, a todos os que, com


resulta4os diversos, tentaram reconstituir a obra interrompida pela morte. E, em-
bora confessando que jamais possuiremos uma classificação definitiva dos
Pensamentos, digamos que nos parece ter Brunschvicg realizado a edição de há
muito esperada. E, a não ser que a encaremos com espírito partidário · ou de
contradição, será preciso decidir-nos pela adoção deste texto e dessa ordem.
Para estabelecer as càtorte seções em que conseiue distribuir todos osfrag-
mentos deixados por Pascal, Brunschvicg baseou-se nos princípios seguintes: "É
necessário considerar que a Apologia de Pascal devia compreender três momen-
tos que ele teria sem dúvida reunido e fundido: primeiramente, seguindo o méto-
do que denominava art d'agréer e que se adapta à perversão da vontade, apela
para o interesse do homem· e pretende convencê-lo de que a religião é agradável:
a seguir, volta-se para a inteligência e, confrontando as explicações parciais do
filósofo com a verdade total que só o cristianismo detém, demonstra que a reli-
gião é razoável; enfim, para penetrar o ser inteiro da verdade do cristianismo,
mostra-lhe a realidade manifestando-se desde a origem do mundo pela Lei dos
Judeus, pelas Profecias, pela Encarnação, pelos Milagres, realidade perpétua,
permamente, atual pois, e que vem atestar de novo o milagre do santo espinho, o
relâmpago, que evidencia subitamente a presença muito próxima do Deus
oculto".
No plano assim reconstituído, cada pen.sarnento encontra seu lugar lógico;
e este ou aquele fragmento que se afigurava obscuro, e mesmo enigmático,·adqui-
re um sentido relativo; é explicado por tudo o que o cerca.
E se quisermos aludir à epígrafe que os editores de Port-Royal haviam colo-
cado no volume de 1670, Pendent opera interrupta, .não será mais, como na gra-
vura que explicava a frase latina, a um caos de pedras .. . Temos agora um "edi-
fício': inacabado por certo, mas reconstituído com tanta arte quanta
verossimilhança por um "arquiteto inteligente':

CH.-M. DES GRANGES

N.B. - A ordenação dos Pensamentos de Pascal, que é seguida nesta edição e que já se tornou clássica, se
deve a Brunschvicg. Cada pensamento traz a numeração da edição dos Grands Écrivains. Os pensamentos,
cuja numeração vem precedida por um asterisco, não foram escritos i)ela mão de Pascal, porém.ditados por
ele. As palavras ou frases entre colchetes foram riscadas pelo autor, conservando-se, todavia, no texto
editado.
As notas, numeradas em rodapé, não constituem um comentário filosófico ou teológico; precisam exclusiva-
mente certos pontos de bibliografia, biografia e história, e dão a tradução das principais citações latinas.
Além das notas da edição francesa Classiques Garnier, que não são acompanhadas de indicação especial,
a presente edição inclui esclarecimentos do tradutor (N. do T.), do Prof. Vítor Ramos (N. do E.), respon-
sável pela edição anterior (Difusão Européia do Livro), e notas desta edição.
A VIDA DE PASCAL

Escrita por Mme Périer, sua irmã 1

Meu irmão nasceu em Clermont, a 19 de junho de 1623 2 • Meu pai, presi-


dente da Cour des A ides, chamava-se Etienne Pascal e minha mãe Antoine/te
Bégon. Logo que meu irmão chegou à idade em que lhe puderam falar, deu mos-
tra de um espírito extraordinário pelas suas réplicas bem oportunas, porém ainda
mais pelas perguntas que fazia sobre a natureza das coisas, surpreendendo a
todos. Esse início cheio de belas esperançasjamais se desmentiu, pois, na medida
em que crescia, aumentava a força de seu raciocínio, de modo que se mantinha
sempre muito acima de sua idade.
Entretanto, minha mãe já falecera em 1626, tendo meu irmão apenas três
anos. Ã~eu pai, vendo-se só, dedicou-se mais fortemente ao cuidado dafamz1ia e,
como não possuía outro filho, a.qualidade de filho único e as grandes marcas de
espírito, que observava na criança, inspiraram-lhe tamanha afeição pelo menino
que nunca se decidiu a encarregar alguém de sua educação e resolveu instruí-lo
ele próprio, como o fez efetivamente, não tendo conhecido meu irmão nenhum
outro mestre.
Em 1631 meu pai mudou-se para Paris, levando-nos todos. Meu irmão, que
tinha então oito anos, muito aproveitou dessa decisão de meu pai, pois este não
houvera podido cuidar dele de igual modo na província, onde o exercício de seu
cargo e os companheiros que o freqiientavam amiudadamente o teriam desviado
do propósito. Mas, como gozava em Paris de inteira liberdade, nisso se aplicou
por inteiro e alcançou todo Q êxito que pode alcançar o zelo de um pai tão inteli-
gente e afetuoso. Sua principal máxima nessa educação era manter sempre o me-

1 Esta Vida de Pascal destinava-se à edição chamada de Port-Royal (1670). Como se temesse que certos
trechos fossem de molde a provocar polêmicas sobre o jansenismo de Pascal, os primeiros editorês adiaram
a sua publicação. Foi na Holanda que ela apareceu primeiramente (1684), de acordo com uma cópia pouco
exata.
Nesse mesmo ano, Pierre Bayle, nas Nouvelles de la République des Lettres (dez., 1684) assim julgava a
biografia: "Cem volumes de sermões não valem uma vida como essa e são menos capazes de desarmar os
ímpios ... Eles (os libertinos) não nos podem mais dizer que só os pequenos espíritos têm devoção, pois
mostra-se-lhes uma das mais profundas em um dos maiores geômetras, dos mais sutis metafísicos e dos
mais penetrantes espíritos que jamais houve no mundo ... Bem andaram publicando o exemplo de tão gran-
de virtude; é-nos necessário para impedir a prescrição do espírito do mundo contra o espírito do
Evangelho ... "
O texto que aqui damos é mafs completo que o de 1684, cuja versão exata Gazier publicou na Revue
d'Histoire Littéraire de outubro de 1898. É ·aquele cuja cópia Brunschvicg encontrou na Biblioteca Mazari-
ne, entre os manuscritos legados por Faugere.
A irmã de Pascal, Gilberte, desposou Périer em 1641. Tendo nascido em 1620, morreu em 1687. Entre seus
cinco filhos, dois têm a lembrança ligada a Pascal e aos Pensamentos: Etienne, que escreveu o prefácio tão
judicioso da primeira edição, e Marguerite, a miraculada do Santo Espinho, falecida em 1733.
2 O registro de batismo de Pascal é de 27 de junho de 1623, paróquia de Saint-Pierre de Clermont-Ferrand.
14 A VIDA DE PASCAL

nino acima de sua tarefa. Foi por isso que não quis começar a ensinar-lhe o latim
antes dos doze anos, afim defazê-lo mais tarde com maior facilidade.
Durante esse intervalo não o deiXou sem fazer nada, pois o entretinha ares-
peito de tudo aquilo que julgava poder ser entendido por meu irmão. Mostrava-
lhe de um modo geral em que consistiam as línguas, como as haviam submetido
a certas regras de gramática, por que essas regras tinham exceções que se haviam
registrado e como dessa forma se encontrara maneira de tornar todas as línguas
comunicáveis de um país a outro. Essa idéia geral abria-lhe o espírito e levava-o
a perceber a razão das regras gramaticais, de maneira que quando veio a apren-
dê-las soube por que o fazia e aplicou~se mais precisamente às coisas que exi-
giam maior aplicação.
Depois desses conhecimentos, deu-lhe meu pai outros. Falava-lhe amiúde
dos efeitos extraordinários da natureza, como da pólvora e de outras coisas que
surpreendem quando as consideramos. Meu irmão comprazia-se imenso nessas
conversações, mas queria saber as razões de todas as coisas e como essas razões
não são todas conhecidas, quando meu pai não lhas dizia ou dizia as que se ale-
gam habÚualmente e que são apenas confissões de ignorância, não se satisfazia
com elas, pois teve sempre uma adm1rável nitidez de espírito no discernimento
do falso, e pode-se dizer que, sempre e em todas as coisas, a verdade/oi o único
objetivo de sua mente, posto que nada o contentava jamais senão o conheci-
mento da verdade. Assim, desde a infância, só podia render-se ao que lhe parecia
evidentemente verdadeiro; de modo que, quando não lhe forneciam uma razão
válida, buscava-a ele próprio, e quando se interessava por alguma coisa não a
· abandonava enquanto não encon'trasse uma razão capaz de satisfazê-lo.
De umafeita, tendo alguém, à mesa, batido sem pensar com umafaca num
prato de porcelana, observou que isso provocava um som forte, mas que bastava
pôr a mão em cima do prato para que o som parasse. Quis de imediato conhecer
a causa do fenômeno e, como essa experiência o impeliu a fazer muitas outras
sobre o som, tantas coisas observou que escreveu, com a idade de onze anos, um
tratado a respeito, que todos consideraram muito bem raciocinado.
Seu gênio da geometria 3 começou a aparecer quando ainda não comple-
tara doze anos, evidenciando-se num/ato extraordinário que me parece dever ser
contado pormenorizadamente.
Meu pat era um sábio em matemáticas e discutia muitas vezes em casa com
os entendidos nesta ciência que o visitavam amiúde. Mas, como desejava ensinar
línguas a meu irmão e sabia que as matemáticas enchem e satisfazem p/Pnamente
o espírito, não quis que meu irmão delas tivesse conhecimento, receoso de que se
tornasse negligente com o latim e as demais línguas em que pensava aperfeiçoá-
/o. Por esse motivo, guardava todos os livros que tratavam da matéria, abstendo-
se, em sua presença, de falar a respeito com os amigos.
Essa precaução não impediu, porém, que a curiosidade do menino se exci-
tasse, de modo que pedia sempre a meu pai que lhe ensinasse a matemática. Meu
pai recusava, prometendo fazê-lo como recompensa, logo que ele soubesse o
latim e o grego.
Meu irmão, vendo tal resistência, perguntou um dia em que consistia essa
ciência e de que tratava. Meu pai explicou-lhe de um modo geral que era um

3
Gênio com .o sentido de disposição natural.
A VIDA DE PASCAL 15

meio de fazer figuras certas e encontrar as proporções que mantinham entre si.
Ao mesmo tempo proibiu-lhe que tornasse a falar disso ou a nisso pensar. Mas
esse espírito, que não podia confinar-se dentro de quaisquer limites, ao deparar
com essa simples abertura - a de que a matemática fornecia o meio de fazer
figuras infalivelmente certas-, pôs-se a sonhar com o resto e nas suas horas de
recreação, estando sozinho em uma sala onde costumava brincar, pegava um
carvão e desenhava nos ladrilhos, buscando o jeito de fazer um círculo perfeito,
por exemplo, ou um triângulo cujos lados e ângulos fossem iguais, e outras coi-
sas semelhantes. Descobria tudo e em seguida procurava as proporções das figu-
ras entre si. Mas como não sabia sequer os nomes destas, em virtude do cuidado
que tivera meu pai, viu-se forçado a criar ele próprio definições e ao círculo cha-
mava uma argola, à linha uma barra, etc. Depois, 4as definições fez axiomas e
finalmente demonstrações perfeitas. E, como nessas coisas vai-se de uma a outra,
levou suas pesquisas tão longe que chegou à trigésima segunda proposição de
Euclides 4 •
Quando estava nesse ponto, meu pai, sem pensar em nada, entrou no quar-
to, sem que meu irmão o ouvisse, porquanto estava inteiramente concentrado em
suas pesquisas. Muito temeroso ficou o menino com a visita, por causa da proibi-
ção expressa de pensar naquelas coisas. Mas a surpresa de meu pai foi maior
ainda em vê-lo no meio daquelas figuras e em ouvi-lo dizer, ao perguntar-lhe o
que fazia, que procurava determinada coisa, que vinha a ser a trigésima segunda
proposição de Euclides. Indagou meu pai como fora levado a pensar naquilo e
ele respondeu que fora por ter achado outra coisa, e, repetindo meu pai a pergun-
ta, enunciou outra demonstração que fizera, e, enfim, retrocedendo e explicando .
sempre por argolas e barras, chegou a suas definições e seus axiomas 5 •
Meu pai ficou tão apavorado com a grandeza e aforça desse gênio que, sem
dizer palavra, saiu e foi ter com M. Le Pailleur 6 , seu amigo íntimo e grande eru-
dito também. Aí chegando,ficou imóvel como Um homem intensamente comovi-
do, e o Sr. Le Pailleur, vendo-o assim e vendo igualmente que chorava, tomou-se
de receio, pedindo-lhe que não mais ocultasse a causa de tanta tristeza. Disse-lhe
meu pai: "Não choro de aflição, mas de alegria; sabeis o cuidado que tive em evi-
tar a meu filho o conhecimento da geometria, de medo que isso o desviasse dos
outros estudos; entretanto, vede o que fez". Mostrou então o que encontrara e
pelo qual se poderia dizer, até certo ponto, que o menino inventara a matemática.
O Sr. Le Pailleur não ficou menos surpreendido do que meu pai e disse-lhe
que não achava justo deter mais tempo um tal espírito, escondendo-lhe esse
conhecimento; que era preciso deixá-lo ver os livros sem mais.o proibir.
Meu pai, concordando cont essa opinião, deu a meu irmão os livros de

4
A soma dos ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos. .
5 Brunschyicg corrige o que há de pouco verossímil nessa invenção da geom~~ri~, por uma criança de doze
anos, com esta citação tirada das Historiettes de Tallemant des Réaux (188-189): ~·o presidente Pascal teve
um filho que demonstrou desde a infância inclinação para as matemáticas~ '8eu pai proibiu-lhe dedicar-se a
essa ciência antes de ter aprendido o latim e o grego. A criança já aos doze ou treze anos lia, porém, .Eucli-
des às escondidas e fazia proposições. O pai descobriu algumas e, mandando chamar o.filho, indagou: 'Que
é isso?' Ao que respondeu o filho, todo trêmulo: 'Só me diverti com isso nos dias de folga'. 'Entendes bem
essa proposição?' 'Sim, meu pai.' 'E onde a aprendeste?' 'Em Euclides, cujos dez primeiros livros eu li.' 'E
quando os leste?' 'O primeiro numa tarde, e os demais em menos tempo, proporcionalmente.' Observe-se
que é preciso pelo menos dez meses para bem os entender".
6 Le Pailleur, adido à casa da Marechâla de Thémines, não era um sábio profissional. Mas seus contempo-

râneos citavam-no amiúde, como um amador avisado, em relações com os mais ilustres matemáticos e físi-
cos de seu temt>o, Roberval, Mersenne, Carcavi, etc. (Cf. Brunschvicg, 1, 115.)
16 A VIDA DE PASCAL

Euclides para que os lesse nos momentos de folga. Ele os leu e entendeu sozinho
sem ter jamais necessidade de explicação, e, enquanto os lia, compunha e progre-
dia tanto que freqiientava reg-úlarmente as conferências semanais, onde se reu-
niam todos os sábios de Paris para comunicar seus trabalhos ou examinar os dos
outros 7 1.

Meu irmão aí se achava à vontade, tanto na crítica como na produção, pois


era um dos que propunham mais vezes coisas novas. Aí vinham ter também
proposições enviadas da Alemanha e outros países estrangeiros e todos ouviam
sua opinião com o mesmo interesse que demonstravam pelas outras, porque ele
tinha tanta clarividência que lhe acontecia às vezes descobrir erros que os outros
não haviam percebido.
Entretanto, nâo empregava nesses estudos de geometria senão suas horas de
recreação, pois aprendia latim pelos métodos que meu pai elaborara expressa-
mente para ele. Mas como encontrava naquela ciência a verdade, que tão ardoro-
samente procurava, sentia-se tão satisfeito que nela punha todo o seu espírito, e
assim progredia tão rapidamente que com a idade de dezesseis anos escreveu um
tratado dos cones, o qual foi considerado a tal ponto excelente que afirmavam
nada ter havido igual desde Arquimedes.
Todos esses sábios eram de opinião que se imprimisse desde logo o tratado,
porque diziam que, embora se tratasse de uma obra que seria sempre admirável,
imprimindo-a no momento em que seu autor não alcançara ainda dezesseis anos,
a circunstância muito acrescentaria à sua beleza. i\1as meu irmão, que jamais
teve a paixão da celebridade, não lhes deu ouvidos e a obra nunca.foi impressa.
Entrementes, continuava a aprender o latim e o grego, e, além disso, durante
ou após a refeição, meu pai se entretinha com ele, ora sobre a lógica, ora sobre
afisica e outras partes da.filosofia e/oi tudo o que aprendeu, não tendofreqiien-
tado um colégio nem tido outro mestre, nem para isso, nem para o resto.
Meu pai sentia grande prazer, como é de imaginar, com os progressos de
meu irmão em todos os ramos do conhecimento, mas não percebia que todas
essas grandes e contínuas aplicações do· espírito em tão tenra idade pudessem
perturbar-lhe a saúde. Efetivamente, esta começou a alterar-se ao atingir ele a
idade de dezoito anos. Mas como o mal-estar que então sentia não era muito
sério, não o impedia de continuar suas ocupações habituais, de modo que foi
então, na idade de dezenove anos, que inventou a máquina aritmética, com a
qual não somente se faz toda espécie de operações sem pena nem tentos como
ainda sem qualquer regra aritmética e com segurança infalívelª.
Essa obra foi considerada coisa inédita na natureza, pois reduzia-se à má-
quina uma ciência que reside toda no espírito, e encontrava-se o meio de fazer
todas as operações com inteira segurança sem apelar para o raciocínio. Esse tra-
balho cansou-o muito, não pela idéia nem pelo mecanismo 9 , que descobriu sem
esforço, mas para fazer com que os operários compreendessem essas coisas
todas; e por isso gastou dois anos para pô-la perfeita como é hoje.
7
O Padre Mersenne reunia em sua casa Descartes, Hobbes, Roberval, Fermat, Desargues. Essas reuniões
prosseguiram mais tarde nas residências de Montmort e Thévenot.
Em 165? .Pascal ofereceu u.ma de su~s máquinas à Rainha Cristina, da Suécia. O exemplar que possui o
8

Conservatono de Artes e Ofícios de Paris parece ser apenas uma imitação da "pascalina". (Cf. Brunschvicg,
I, p. 293 e II, pp. 22-34.)
9
Mouvement no original. (N. do T.)
A VIDA DE PASCAL 17

Todavia, tal fadiga e a delicadeza de sua saúde, há alguns anos atingida,


trouxeram-lhe males que não mais o deixaram, a ponto de nos ter dito às vezes
que desde a idade de dezoito anos não passara um dia sem sofrer. Entretanto, o
mal-estar não era sempre de igual violência e, logo que descansava um pouco,
seu espírito o impelia de imediato a procurar algo novo.
Foi nesse tempo, com a idade de vinte e três anos, que, tendo visto a expe-
riência de Torricelli, inventou e. executou em seguida as demais experiências que
se denominaram '"do vácuo': que provam claramente que todos os efeitos até
então atribu_ídos ao horror ao vácuo eram causados pelo peso do ar.
Essa ocupação foi a última a que dedicou seu espírito científico; e, embora
tenha inventado depois a roleta, isso não contradiz o que afirmo, pois a desco-
briu sem nela pensar e de maneira que mostra muito bem não se ter aplicado,
como.farei ver adiante. ·
Imediatamente após essas experiências 1 0 e quando não tinha ainda vinte e
quatro anos, tendo-lhe a Providência divina dado a oportunidade de ler escritos
devotos, Deus o iluminou de tal maneira com essa leitura que ele compreendeu
perfeitamente que a religião cristã nos obriga a viver tão-somente para Deus e a
não ter outro objetivo senão Deus. E essa verdade lhe pareceu tão evidente, tão
necessária e tão útil que terminou todas as suas pesquisas, renunciando a todos
os demais conhecimentos, a fim de se dedicar somente à única coisa que Jesus
Cristo considera necessária.
Fora até então preservado, por uma proteção toda particular de Deus, de
todos os vícios da mocidade e, o que é mais estranho ainda em um espírito dessa
têmpera e desse caráter, jamais se vira tentado pela libertinagem em relação à
religião, limitando sempre sua curiosidade às coisas naturais. E disse-me várias
vezes que juntava mais essa gratidão às demais que devia a meu pai, o qual,
tendo ele próprio grande respeito pela religião, o inspirara desde criança dando-
lhe por máxima que tudo o que é objeto da fé não o pode ser da razão e nem a
esta submetido.
Essas máximas, que lhe eram amiúde repetidas por meu pai, por quem tinha
muita estima e em quem p'ércebia grande erudição acompanhada por um racio-
cínio límpido e forte, impressionaram-no tanto que nunca se comovia com os dis-
cursos dos libertinos, quaisquer quefossem. E) embora muito jovem, encarava-os
como indivíduos que obedecem ao falso princípio de que a razão humana está
acima de tudo, e que não conhecem a natureza dafé. Assim, esse grande espírito,
tão vasto e cheio de curiosidade, que buscava com tanto cuidado a razão e a
causa de tudo, conduzia-se como uma criança em matéria de religião e essa
simplicidade dominou-o durante avida inteira. De maneira que, desde o momen-
to em qué resolveu só estudar a religião, não se aplicou nunca às questões curio-
sas da teologia e sim em empregar toda aforça de sua mente no conhecimento e
na prática da perfeição da moral cristã, à qual consagrou todo o talento que
Deus lhe deu, nada mais fazendo todo o resto da sua vida do que meditar dia e
noite sobre a lei divina.
Mas, conquanto não tivesse estudado particularmente a escolástica, não
ignorava as decisões da Igreja contra as heresias inventadas pela sutileza do espí-
1 o Mme Périer parece querer dizer que a atividade científica de Pascal foi sustada com sua conversão ao

jansenismo em 1646; ora, pelo contrário, Pascal nunca se ocupou tanto de ciência como de 164 7 a 1654.
18 A VIDA DE PASCAL

rito, e contra esses .devaneios é que mais se animava. E já nessa ocasião Deus lhe
deu azo para revelar o zelo que tinha pela religião.
Estava então em Ruão, onde meu pai se empregara a serviço do rei, e aí
havia também um homem que ensinava uma nova filosofia que atraía todos os
curiosos 1 1 • Meu ir_mãd, instigado por dois rapazes seus amigos, lá foi ter,
acompanhado por eles; surpreendeu-os 6 fato de esse homem, ao explicar os
princípios dafilosofia, tirar conclusões sobre pontos defé contrários às decisões
da Igreja. . .
Provava com seus raciocínios que o corpo de Jesus Cristo não se formara
com o sangue da Santa Virgem e sim com uma matéria criada expressamente
para o caso; e assim outras coisas. Quiseram contraditá-lo mas ele sustentou
com firmeza suas convicções. Em vista do que, tendo considerado o perigo que
havia em deixar-lhe a liberdade de instruir a mocidade dentro desses erros, resol-
veram adverti-lo, ameaçando-o de denúncia caso resistisse.
Foi o que aconteceu, pois desprezou a advertência. Denunciaram-no ao Sr.
du Bellay 12 , que então desempenhava, em comissão do arcebispo,funções epis-
copais na diocese de Ruão. O Sr. du Bellay mandou chamar esse homem e, ten-
do-o interrogado, foi enganado por uma confissão de fé equívoca, escrita e assi-
nada por quem pouco caso fazia da advertência dada pelos três rapazes.
Entretanto, logo que viram essa confissão de fé, perceberam. os jovens a sua
falha, o que os levou a procurar em Gail/on o arcebispo de Ruão, o qual, exami-
nan'do as coisas, julgou-as tão importantes que deu ordem a seu conselho, e
expressamente ao Sr. du Bellay, de fazer que esse homem se retratasse quanto
àquilo de que era acusado, e de nada receber dele senão através dos que o haviam
denunciado. Assim se executou a ordem: o acusado compareceu ao conselho do
arcebispo e renegou seus sentimentos, e pode-se dizer que o fez sinceramente,
pois nunca demonstrou ressentimento contra os que haviam provocado a ques-
tão, o que induz a crer que possivelmente se tivesse enganado a si mesmo com as
falsas conclusões que tivera de falsos princípios. É certo, de resto, que não havia
nenhuma intenção de prejudicá-lo e sim, tão-somente, de esclarecê-lo e impedi-lo
de seduzir os jovens incapazes de discernir o verdadeiro do falso em questões tão
sutis. ·
Assim esse caso terminou sem maiores complicações e meu irmão conti-
nuou a procurar, cada vez mais, os meios de agradar a Deus. Esse amor à perfei-
ção cristã se inflamou de tal maneira, a partir de vinte e quatro anos, que se
expandiu pela casa toda. Até mesmo meu pai, não se envergonhando de concor-
dar com o filho, levou uma vida mais exata e a foi aperfeiçoando na prática con-
tínua das virtudes, até sua morte mui cristã. E minha irmã, que tinha talentos de
espírito extraordinários e gozava desde a infância de uma reputação a que che-
gam raramente as moças em idade bem mais avançada~ficou tão comovida com
os discursos de meu irmão que resolveu renunciar às vantagens que tanto apre-
ciara até então, afim de se consagrar inteiramente a Deus . .
Como tivesse muito espírito, quando Deus lhe iluminou o coração,
compreendeu, como meu irmão, todas as coisas que ele dizia da santidade da
religião cristã; e, não podendo suportar a imperfeição em que julgava encontrar-
1 1
Trata-se de Jacques Forton, Frei Santo Ângelo,•capuchinho. (Cf. Brurschvicg, Pensées, I, p. 350.)
_Camus, ~ispo de Belley (1582-1652). É por engano que Mme Périer escreve du Bellay. O arcebispo de
12

Ruao era entao François de Harlay.


A VIDA DE PASCAL
1
19

se, fez-se religiosa em uma casa muito austera, em Port-Royal des Champs, aí
falecendo aos trinta e seis anos apenas, após ter passado pelos cargos mais difí-
ceis e se haver consumido em pouco tempo com um mérito que outros só adqui-
rem em longos anos 1 3 • .

Meu irmão tinha vinte e quatro anos, seu males haviam aumentado, che-
gando ao ponto de não poder engolir mais líquido nenhum a não ser quente e em
gotas. Mas como, ademais, sentia dores de cabeça insuportáveis, ardores intesti-
nais e outros males, ordenaram-lhe os médicos que se purgasse, um dia sim um
não, durante três meses, de modo que foi preciso que tomasse esses remédios
como podia, isto é, aquecidos e gota a gota. Era um verdadeiro suplício, e os que
se achavam perto dele horrorizavam-se só com vê-lo. Mas meu irmão não se
queixava nunca e encarava a coisa como um beneficio. Como não conhecia qual-
quer outra ciência senão q. da virtude e sabia que se aperfeiçoava na enfermidade,
com alegria executava todas as·penitências; e, vendo nestas as vantagens do cris-
tianismo, dizia não raro que antes os seus males o desviavam dos estudos e que
ele sofria com isso, mas que um cristão se dava bem com tudo, particularmente
com o sofrimento, porque nele se reconhecia Jesus Cristo crucificado, o qual
deve ser toda a ciência do cristão e a única glória de sua vida.
Esses remédios e outros que -lhe ministraram deram-lhe algum alívio mas
não uma saúde perfeita; de sorte que os médicos pensaram que, para se restabe-
lecer inteiramente, era necessário que renunciasse a toda ocupação do espírito e
buscasse quanto pudesse ocasiões de se divertir com algo agradável: as conversa-
ções sociais em suma, pois não havia outros divertimentos que conviessem a meu
irmão. Mas como podia um homem de sua espécie conformar-se com iss.o ! Efeti-
vamente custou muito a princípio, mas tanto insistiram que ele concordou em
tratar da saúde. Persuadiram-no de que era um bem cujo cuidado agradá a Deus.
Foram os anos mais mal empregados de sua vida, pois embora pela miseri-
córdia de Deus ele se visse preservado dos vícios, tratava-se, afinal, de um ar de
sociedade bem diferente do clima do Evangelho. Deus, que exigia dele uma
maior perfeição, não quis abandoná-lo mais tempo e serviu-se de minha irmã
para retirá-lo do mundo, como antes se havia servido de meu irmão para tirar
minha irmã da sociedade.
Desde que ela entrara para o convento, seu fervor aumentara dia a dia e
todos os seus sentimentos recendiam a uma santidade absoluta; por isso não
podia suportar que aquele a quem devia as graças de Deus não as possuísse tam-
bém. E, como meu irmão a visse amiudadamente, ela lhe falava disso e o fez afi-
nal com tanto entusiasmo que o persuadiu do que ele a persuadira antes, de reti-
rar-se do mundo e das conversações sociais, as mais fnocentes das quais não

13
Jacqueline Pascal, nascida em 1625, foi uma espécie de menina-prodígio. Com oito anos fazia versos e
não raro os improvisava com felicidade e singeleza.
Em 1638, quando se soube que a rainha ia, finalmente, dar um herdeiro à casa de França, Jacqueline com-
pôs um soneto que recitou para a rainha.
Em fevereiro de 1639, com catorze anos, representou no Palais-Royal diante de Richelieu, indo após a
representação, na qual encantou a todos os espectadores, solicitar do cardeal a graça de seu pai. Nesse ano
obteve um prêmio de poesia em Ruão, com estâncias sobre a Virgem e foi o grande Corneille quem improvi-
sou um poema dirigido ao presidente do concurso para.lhe agradecer o prêmio dado a Jacqueline. Mas em
164 7 J acqueline proclamou sua decisão de se tornar religiosa. O pai não quis consentir e, depois de sua
morte, Blaise Pascal opôs-se durante muito tempo a tal resolução. Tornou-se finalmente religiosa de Port-
Royal em 1652 com o nome de Irmã Santa Eufêmia, aí morrendo a 4 de outubro de 1661. (VideJacqueline
Pascal, por Victor Cousin.)
20 A VIDA DE PASCAL

passam de contínuas inutilidades, indignas da santidade do cristianismo a que


somos todos chamados e cujo exemplo nos foi dado por Jesus Cristo.
A. questão da saúde, que o preocupara antes, pareceu-lhe tão lamentável que
se sentiu envergonhado. A luz da verdadeira sabedoria mostrou-lhe à evidência
que a salvação devia ser preferível a todas as coisas e que era um erro atentar
para um bem passageiro do corpo quando se tratava do bem eterno da alma.
Tinha trinta anos quando resolveu desistir destes novos compromissos
sociais. Começou mudando de bairro, e, para melhor romper com seus hábitos,
foi morar no campo, on.de tanto fez para abandonar o mundo que o mundo, afi-
nal, o abandonou.
Em suma, agia sempre em obediência a princípios, em todas as coisas. Fei-
tos como eram, seu espírito e seu coração não podiam ter outra conduta. Por isso
os princípios que se propôs em seu retiro foram as máximas sólidas da verda-
deira devoção: a que consiste em renunciar a todos os prazeres e a que determina
que se renuncie também a toda espécie de superfluidades.
Começou, antes de mais nada, afim de entrar na prática da primeira máxi-
ma, a dispensar, como semprefez, desde então, seus criados, na medida do possí-
vel. Fazia a cama ele próprio, jantava na cozinha, lavava a louça e só apelava
para o seu pessoal quando era absolutamente inevitável.
Não lhe sendo possível abolir os sentidos, quando era forçado, por necessi-
dade, a dar-lhes algum prazer, revelava habilidade extraordinária em desviar
deles o espírito. Jamais o ouvimos elogiar as v·iandas que lhe serviam e, se por-
ventura ocorria servirem-lhe algo mais delicado e lhe perguntavam se o achara
bom, respondia simplesmente: "Deveriam avisar-me antes, pois agora já não me
lembro e corifesso que não prestei atenção ': E quando alguém, segundo os costu-
mes da sociedade, admirava a qualidade de algum prato, ele não o suportava; e
a isso chamava ser sensual, ainda que se tratasse tão-somente das coisas mais
comuns: porque era o sinal, dizia, de que comiam por prazer, o que era um mal;
ou, pelo menos, que assim falavam uma linguagem semelhante à dos sensuais, o
que não era conveniente para um cristão que nunca deve dizer algo que não
tenha um ar de santidade. Não queria permitir que fizessem molhos ou ensopa-
dos, nem que lhe dessem laranja ou vinho, ou nada que excitasse o apetite, embo-
ra gostasse naturalmente dessas coisas. Determinara no início de seu retiro a
quantidade de alimento necessária às exigências de seu estômago e desde então,
por maior que fosse o apetite, não ultrapassava a medida; e, ainda que com
repugnância, tinha de comer o que predeterminara.
Quando lhe pergzmtavam por que motivo o fazia, dizia que era preciso satis-
fazer o estômago e não o apetite.
Mas a mortificação dos sentidos não consistia apenas em cortar tudo .o que
lhe pudesse ser agradável, alimentação ou remédios. Tomou caldos durante qua-
tro anos seguidos sem manifestar a menor repugnância. Bastava que lhe recei-
tassem alguma coisa, tomava-a sem esforço, e, quando eu me espantava ao vê-lo
engolir sem náusea certos remédios, zombava de mim e dizia que ele próprio não
conseguia compreender como se podia manifestar repugnância ao tomar um
remédio voluntariamente e depois de ser avisado de seu mau gosto. Só a violên-
cia e a surpresa,deviamprovocar tal reação. Seráfácil observar adiante o cuidado
que tinha em renunciar a toda espécie -de prazeres em que se veriflcasse alguma
satisfação do amor-próprio.
A VIDA DE PASCAL .21

Não demonstrou menos cuidado em praticar a outra máxima que se propu-


sera, a de renunciar a toda espécie de super:fluidades, a qual decorria da primeira.
Chegou aos poucos a não ter mais tapeçarias em seu quarto por não as julgar
necessárias. E em verdade não era obrigado a tê-las por conveniência porque só
o vinham ver pessoas a quem recomendava todos os sacrifícios e que, por conse-
guinte, não ficavam surpreendidas de ver que ele vivia do modo que aconselhava
aos outros. Já vimos que se privara das visitas supé1fluas e quis mesmo não rece-
ber mais ninguém.
Atlas -como procuramos sempre um tesouro, esteja onde estiver, e como
Deus não permite que fique oculta uma luz feita para íluminar, certas pessoas de
grande condição de espírito, que conhecera antes, iam procurá-lo em seu retiro e
pedir-lhe conselhos; outras, que tinham dúvidas acerca de questões de fé, e
conheciam suas luzes a respeito, a ele recorriam também, e umas e outras, algu-
mas ainda vivas hoje, saíam mui contentes e afirmam ainda~ em quaisquer
oportunidades, deverem o bem que conhecem e praticam a seus esclarecimentos
e orientação.
Embora não se entregasse à conversação a não ser por razões de caridade e
se vigiasse muito afim de nada perder do que buscava adquirir em seu retiro, não
deixou de sofrer com isso e de recear que o amor-próprio o impelisse a tirar de
tal comércio algum prazer; e sua regra consistia em não entrar em nenhum coló-
quio em que o prazer pudesse encontrar-se. Por outro lado, pensava não ter o
direito de recusar a taís pessoas o . socorro de que necessitavam. Era uma luta,
P,Ortanto. Mas o espírito de mortificação, que é o próprio espírito de caridade que
tudo acomoda, veio em seu auxz1io inspirando-lhe colocar sobre a carne um cilí-
cio cheio de pontas, sempre que o avisavam da visita dessas pessoas. Assim fez
e, quando alguma vaidade o invadia ou se sentia tomado pelo prazer da conver-
sação, dava em si próprio cotoveladas para redobrar a violência das picadas e
com isso recordar-se de seu dever. Tal prática lhe pareceu tão útil que dela usou
também para prevenir-se contra a inatividade de que se viu vítima nos últimos
anos de sua vida. Como nesse estado não podia ler nem escrever, era obrigado a
nada fazer e a passear sem pensar no que quer que fosse. Temia com razão que
essa falta de ocupação, raiz de todos os males, o desviasse de seus desígnios, e
para se manter alerta incorporara, por assim dizer, esse inimigo voluntário que,
picando-lhe o corpo, lhe excitava sem cessar o espírito ao fervor e lhe oferecia
um meio de vitória certa ...Yas tudo era tão secreto que nada sabíamos, t: só o
descobrimos depois de sua morte por alguém de grande virtude, que ele amava e
a quem fora obrigado a dizê-lo por motivos particulares.
Todo o tempo em que a caridade não o tomava dessa maneira era empre-
gado nas orações e na leitura das Sagradas Escrituras. Era como que o centro de
seu coração, onde encontrava sua alegria e o sossego de seu retiro. É verdade.que
tinha um dom especial para apreciar ao máximo essas duas ocupações tão pre-
ciosas e santas. Podia-se mesmo dizer que para ele não eram diferentes, pois
meditava sobre as Escrituras, orando. Dizia amiúde que as Sagradas Escrituras
não eram uma ciência do espírito e sim do coração e que só eram inteligíveis aos
que têm o coração reto, pois os outros não vêem nelas senão obscuridade; e que
o véu que se estende sobre as Escrituras, quanto aos judeus, também se estende
quanto aos maus cristãos; e que a caridade era não somente o objeto das Escritu-
ras mas igualmente a porta. la além, e dizia ainda que a gente só se dispunha a
22 A VIDA DE PASCAL

amar as Escrituras quando se odiava a si mesmo e amava a vida mortificada de


Jesus Cristo. Era com essa disposição que lia as Sagradas Escrituras e que as
sabia quase de cor, de modo que não podiam citá-las erroneamente, pois logo
atalhava, positivo: "Não está nas Escrituras" ou "Está nas Escrituras" e assina-
lava com precisão o lugar e, em geral, tudo o que pudesse servir a uma inteli-
gência perfeita de todas as verdades, tanto da fé como da moral.
Tinha um espírito tão admirável que embelezava tudo o que dizia e, embora
tivesse aprendido muitas coisas nos livros, quando as digeria a seu modo elas
pareciam diferentes, porque sabia enunciá-las da maneira como o deviam ser
para entrarem na compreensão do homem.
Tinha naturalmente esse espírito extraordinário, mas criara regras de
e/oqiiência particulares que aumentavam ainda seu talento. Não era o que se
denomina belos pensamentos, os quais têm apenas umfalso brilho e nada signifi-
cam; nunca empregava palavras raras nem muitas expressões metafóricas, nada
que fosse obscuro ou rude, imperativo, sutil ou supér:fluo. Mas concebia a
e/oqiiência com um modo de dizer as coisas de maneira a torná-las fácil e
agradavelmente compreensíveis a todos,le achava que essa arte consistia.em cer-
tas disposições que devem encontrar-se entre o espírito e o coração daqueles a
quem sefala,,por um lado,, e·ospensamenmos.·e'as expressões empregadas, mas que
as proporções só se ajustam bem pela forma dada. Por isso estudara muito o
coração do homem e seu espírito e conhecia-lhes perfeitamente todas as molas.
Quando pensava alguma coisa, ·punha-se no lugar dos que a deviam compreen-
der; e, examinando se as proporções estavam certas, via em seguida que forma
era preciso dar-lhes, e não se satisfazia enquanto não visse claramente que um
era feito para o outro, isto é, o que ele pensara para o espírito a que se dirigia, de
modo que na prática fosse impossível ao interlocutor não aceitar esse pensa-
mento com prazer. Não engrandecia o que era pequeno nem tornava pequeno o
que era grande. Não lhe bastava que uma coisa parecesse bela, queria que se ade-
quasse ao assunto, que nada tivesse de supér:fluo e .que nada lhe faltasse. Era,
enfim, tão senhor de seu estilo que dizia tudo o que queria e seu discurso alcan-
çava sempre o efeito desejado. E essa maneira de. escrever:'zngênua,justa, ·agradá-
vel, forte e natural a um tempo, era-lhe tão peculiar que, logo que/oram editadas
as Cartas a um Provincial, todos julgaram que eram dele, por mais que o hou-
.vesse escondido até a seus íntimos.
Foi nessa época que aprouve a Deus curar minhafilha de umafistula lacri-
mal. de que sofria há três anos e meio. Essafistula era de tão mau aspecto que os
mais hábeis cirurgiões de Paris a haviam julgado incurável. Finalmente Deus to-
mara a si o trabalho de curá-la pelo toque de um Santo Espinho existente em
Port-Royal; esse milagre foi atestado por vários cirurgiões e médicos e confir-
mado por sentença solene da Igreja.
Minha filha era afilhada de meu irmão; mas e/e ficou principalmente como-
vido com o milagre porque com ele via Deus glorificado e porque isso ocorria
numa época em que afé da maior parte das pessoas era medíocre. Sua alegria/oi
imensa; e, como seu espírito não se ocupava de nada sem muita reflexão, ocorre-
ram-lhe, por ocasião desse milagre particular, muitos pensamentos importantes
acerca dos milagres em geral, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Se há
milagres, há portanto algo acima do que denominamos natureza; a conseqiiência
está no bom senso: basta asseg_urarmq-nos da certeza e da verdade dos milagre~.
A VIDA DE PASCAL 23

Ora, há regras para isso, que se encontram também no bom senso, e essas regras
se acham nos milagres do Antigo Testamento. Logo, esses milagres são verdadei-
ros. Logo, há algo acima da natureza~
Mas esses milagres têm ainda sinais de que são de Deus; e em especial os do
Novo Testamento, porquanto quem .os operava era o Messias que os homens de-
viam esperar. Logo, como os milagres tanto do Antigo como do Novo Testa-
mento provam que há um Deus, os do Novo, em particular, provam .que Jesus
Cristo era o verdadeiro Messias.
Elucidava tudo com uma clareza admirável, e quando nós o ouvíamos falar
e ele desenvolvia todas as circunstâncias do Antigo e do Novo Testamento em
que se relatavam os milagres, tudo nos parecia claro. Não era possível negar a
verdade desses milagres, nem as conseqiiências que tirava como provas de Deus
e do Messias, sem chocar princípios mais comuns sobre os quais assentamos as
coisas que passam por indubitáveis. Recolheram-se alguns pensamentos seus a
esse respeito, mas poucos, e eu me consideraria obrigada. a estender-me mais a
esse propósito, de acordo com o que ouvi dele, se um de seus amigos não nos
houvesse dado uma dissertação sobre as obras de Moisés, em que tudo se acha
admiravelmente elucidado e de maneira nada indigna de meu irmão 1 4 •
Recomendo, pois, essa obra e acrescento somente, o que importa relatar
aqui, que as diferentes reflexões, que meu irmão fez sobre os milagres, lhe trouxe-
ram muitas luzes novas acerca da religião. Como todas as verdades são tiradas
umas das outras, bastava que se houvesse aplicado numa para que as outras vies-
sem aos magotes e se elucidassem em seu espírito de uma maneira que a ele pró-
prio enlevava, como nos disse amiúde. E foi então que se sentiu tão irritado con-
tra os ateus que, vendo nas luzes que recebera de Deus matéria para convencê-los
e confundi-los irremediavelmente, dedicou-se a essa obra. E as partes que foram
reunidas nos fazem lamentar que ele próprio não as tenha podido organizar e,
juntamente com tudo o que poderia ainda acrescentar, compor um todo de gran-
de beleza. Era certamente muito capaz de fazê-lo, mas Deus, que lhe dera o espí-
rito necessário a tão grande desígnio, não lhe deu bastante saúde para terminá-lo.
Prétendia mostrar que a religião cristã oferecia tantas marcas de certeza
quanto as coisas aceitas no mundo como indubitáveis. Não se valia para isso de
provas metafisicas; ·não porque acreditasse serem desprezíveis, quando oportu-
nas; mas dizia que se achavam demasiado afastadas do raciocínio humano habi-
tual; que nem todos as entendiam e para os que as entendiam não valiam senão
durante algum tempo: horas depois já as haviam olvidado e temiam ter-se enga-
nado. Dizia também que essas provas só nos podem conduzir a um conheci-
mento especulativo de Deus, e que conhecer Deus, assim, era não o conhecer.
Não queria tampouco servir-se dos raciocínios comuns tirados das obras da
natureza; respeitava-os entretanto, porque eram consagrados pela Escritura
Santa e razoáveis, mas pensava que não eram suficientemente adequados ao espí-
rito e à disposição de coração daqueles que desejava convencer. Observava por
experiência que, longe de vencê-los, nada era mais capaz de enfadá-los e tirar-
lhes a esperança de descobrir a verdade do que pretender convencê-los com esses
raciocínios, contra os quais já se tinham revoltado tantas vezes, que o endureci-

1 4 Trata-se do Discurso sobre as Provas dos Livros de 1\foisés, de Filleau de la Chaise, publicado em 1672.
(N. do E.)
A VIDA DE PASCAL

mento de seu coração os tornara surdos à voz da natureza; e que,finalmente, vi-


viam numa tal cegueira que dela não sairiam senão por Jesus Cristo,fora do qual
toda comunicação com Deus nos é vedada, porquanto está escrito que só o Filho
e aquele, a quem apraz ao Filho revelá-lo, conhecem o Pai.
A divindade dos cristãos não consiste apenas em um Deus simplesmente
autor das verdades geométricas e da ordem dos elementos; essa é a parte dos
pagãos. Ela não consiste em um Deus que exerce sua providência sobre a vida e
os bens do homem afim de dar-lhe uma seqüencia de anos felizes; essa é aparte
dos judeus. Mas o Deus de Abraão e de Jacó, o Deus dos cristãos é um Deus de
amor e consolação; é um Deus que enche a alma e o coração dos que o possuem.
É um Deus que lhes faz sentir interiormente sua miséria e sua infinita miseri-
córdia; que se une no fundo de sua alma; que os enche de humildade, de fé, de
confiança e amor; que os torna incapazes de um objetivo que não ele próprio. O
Deus dos cristãos é um Deus que faz sentir à alma que ele é seu único bem; que
todo repouso está nele e que pia não terá alegria senão em seu amor; e que afaz
ao mesmo tempo detestar os obstáculos que a retêm e a impedem de amar com
todas as suas forças. O amor-próprio e a concupiscência que a detêm são-lhe
insuportáveis, E Deus f az-Ihe perceber que ela tem esse fundo de amor-próprio
que só ele pode curar.
Eis o que é conhecer Deus como cristão. }Jas para conhecê-lo dessa manei-
ra é preciso conhecer ao mesmo tempo a própria miséria e a própria indignidade
e a necessidade que se tem de um mediador a fim de se aproximar de Deus para
unir-se a ele. É preciso não separar esses conhecimentos porque, estando separa-
dos, não somente são inúteis mas nocivos. O conhecimento de Deus sem o da
nossa miséria faz o orgulho. O da nossa miséria sem o de Jesus Cristo faz o
desespero; mas o conhecimento de Jesus Cristo isenta-nos do orgulho e do deses-
pero; porque nele encontramos Deus, único consolador de nossa miséria e único
meio de repará-la.
Podemos conhecer Deus sem conhecer nossa miséria, ou nossa miséria sem
conhecer Deus; ou, mesmo, Deus e nossa miséria, sem conhecer o meio de nos
libertarmos das misérias que nos acabrunham. Mas não podemos conhecer Jesus
Cristo sem conhecer ao mesmo tempo Deus e nossa miséria; porque ele não é
simplesmente Deus, mas um Deus reparador de nossas misérias.
Assim, todos os que procuram Deus sem Jesus Cristo não encontram luz
que os satisfaça, ou que lhes seja realmente úii/; pois não chegam a conhecer que
há um Deus, ou, se chegam, é inútil para eles porque se forma Um--l{!eio de comu-
nicação sem mediador com um Deus que conheceram sem mediador; àe modo
que caem no ateísmo e no deísmo, que são duas coisas quase igualmente repeli-
das pela religião.
É preciso, pois, esforçarmo-nos unicamente por conhecer Jesus Cristo, por-
que só por ele podemos pretender conhecer Deus de maneira útil. Ele é que é o
verdadeiro Deus dos homens, dos miseráveis, dos pecadores. É o centro e objeto
de tudo; e quem não o conhece nada conhece na ordem da natureza do mundo
nem em si mesmo; porque não só conhecemos Deus apenas por Jesus Cristo mas
ainda só nos conhecemos por ele.
Sem Jesus Cristo o homem permanecerá no vício e na miséria; com Jesus
Cristo estará isento de vício e de miséria. Nele está toda a nossafelicidade, toda
a nossa virtude, a nossa vida, a nossa lu.z, a nossa esperança;fora dele, só há ví-
A VIDA DE PASCAL 25

cios, misérias, desespero, e não vemos senão obscuridade e confusão na natureza


de Deus e na nossa.
Essas palavras são textuais de meu irmão, e pensei dever repeti-las aqui por-
que nos mostram admiravelmente bem o espírito de sua obra e que a maneira
pela qual desejava realizá-la era sem dúvida capaz de impressionar o coração
dos homens.
Um dos principais pontos de sua eloqiiência consistia não só em nada dizer
que não se entendesse mas ainda em dizer coisas que interessassem às pessoas
com quem falava porque assim estava certo de que então o amor-próprio mesmo
não deixaria de nos levar a nelas refletir. Demais, como a parte que tomamos nas
coisas é de duas espécies (pois ou nos afligem ou nos consolam), acreditava que
não se devia jamais afligir sem consolar. E bem combinar tudo era o segredo da
eloqiiência. Assim, nas provas que queria dar de Deus e da religião cristã, nada
queria dizer que não estivesse ao alcance de todos aqueles a quem se destinavam
e pelas quais não se interessasse o homem, ou sentindo em si mesmo as coisas
que o jàziam observar, boas ou más, ou vendo claramente que não podia tomar
melhor partido, nem mais razoável, do que crer num Deus de que podemos
gozar, e num mediador que, tendo vindo para que merecêssemos sua graça, co-
meça a tornar-nos felizes, já nesta vida, pelas virtudes que nos inspira, muito
mais do que o seríamos por tudo o que o mundo nos promete; e nos assegura de
que o seremos perfeitamente no céu se o merecermos pelos meios que nos ofere-
ceu e de que ele próprio deu o exemplo.
Mas, embora meu irmão estivesse persuadido de que tudo o que tinha assim
a dizer sobre a religião .seria muito claro e convincente, não acreditava que o
devesse ser aos indiferentes, aos que, não encontrando em si mesmos luzes que os
persuadissem, negligenciassem buscá-las alhures, principalmente na Igreja, de
onde irradiam em maior número. Pois estabelecia estas duas verdades como cer-
tas: que Deus pôs marcas sensíveis, particularmente na Igreja, para se revelar
aos que o procuram com sinceridade, e que, no entanto, as cobriu de tal maneira
que não será percebido pelos que não o procuram de todo o coração.
Por isso, quando devia conferenciar com ateus, não começava nunca pela
discussão, nem por estabelecer os princípios que tinha a propor; mas queria
antes saber se buscavam a verdade de todo o coração; e agia com eles de acordo
com isso, ou para ajudá-los a achar a luz que não tinham, se a buscavam sincera-
mente, ou para dispô-los a buscá-la e afazer disso sua ocupação primeira, antes
de os instruir, se quisessem que sua instru.ção lhes fosse útil.
Suas enfermidades impediram-no de trabalhar com mais qfinco nesse desíg-
nio. Tinha mais ou menos trinta e quatro anos quando iniciou essa tarefa. Dedi-
cou um ano inteiro à sua preparação, na medida em que as demais ocupações lho
permitiam, e isso consistia em anotar os diversos pensamentos que a propósito
lhe ocorriam e no fim do ano, isto é, aos trinta e cinco e no quinto ano de seu reti-
ro, recaiu doente de modo tão acabrunhador que nada mais pôde fazer durante
os quatro anos que viveu ainda, se é que se pode chamar viver ao langor lamen-
tável em que se manteve.
Não se pode pensar nessa obra sem uma aflição grande em ver que não se
terminou a coisa mais bela e mais útil para o século em que estamos. Não ousa-
ria dizer que não éramos dignos dela. Como quer que seja, Deus quis revelar pela
amostra, por assim dizer, aquilo de que meu irmão era capaz pela grandeza de
26 A VIDA DE PASCAL

espírito e ·os talentos que lhe dera; e, se uma tal obra pudesse ser realizada por
outro, acreditaria que Deus desejara que tão grande bem não se obtivesse senão
por meio de muitas preces novas.
Essa volta das enfermidades de meu irmão começou por uma dor de dente
que lhe tirou inteiramente O sono. Mas que meios tem um espírito como o seu
para.ficar acordado sem pensar em nada? Eis por que nas suas insônias, de resto
mui freqiientes e cansativas, vieram-lhe uma noite ao espírito alguns p~nsa­
mentos sobre a roleta 1 5 • Ao primeiro seguiu-se um segundo e a este um terceiro
e, enfim, surgiram, uns dos outros, inúmeros pensamentos, os quais l~l!· .mostra­
ram uma. demonstração da roleta com a qual ele próprio se surpreendeu. Mas
como há muito renunciara a todas essas coisas, não pensou sequer em escrever;
falou, entretanto, com uma pessoa a quem devia deferência e, tanto por respeito
a seu mérito como pela afeição com que era honrada, essa pessoa teve com essa
invenção uma idéia, toda à glória de Deus, sugerindo a meu irmão que escrevesse
tudo o quf! lhe viera ao espírito e o mandasse imprimir.
É incrível a precipitação. com que pôs isso no papel. Não fazia senão escre-
ver enquanto a mão obedecia e o tivera terminado em poucos dias; não copiava
e dava as folhas na medida em que as/azia. Imprimiam também uma outra coisa
dele, que fornecia igualmente à proporção que compunha, e assim entregava aos
impressores duas coisas diferentes ao mesmo tempo. Não era demais para seu
espírito; mas seu corpo não pôde resistir, pois foi este último abatimento que
acabou de solapar inteiramente sua saúde e o reduziu a esse estado tão aflitivo a
que já me referi e no qual não podia mais engolir.
Mas se suas enfermidades o tornaram incapaz de servir aos outros, não
foram inúteis a ele mesmo, pois as suportava com tanta paciência que há razão
de crer, e de se consolar com essa idéia, que Deus quis assimfazê-lo tal qual que-
ria que aparecesse ·diante dele. Meu irmão não pensou, efetivamente, em mais
nada e, tendo sempre diante dos olhos as duas máximas que se propusera (de
renunciar a todos os prazeres e a todas as supeifluidades), praticou-as ainda com
mais fervor como se, premido pelo peso da caridade, sentisse que se aproximava
do centro onde devia gozar o eterno repouso.
Mas não se pode conhecer melhor a disposição particular com que sofria
esses novos males dos quatro últimos anos de sua vida do que por essa oração
admirável que dele aprendemos e que compôs nessa época para pedir a Deus que
lhe desse o bom uso das doenças. Não há como duvidar que tivesse tais coisas no
coração, porquanto as tinha no espírito, e só as escreveu assim porque assim as
praticoit. Podemos mesmo assegurar que fomos testemunhas disso e que, se nin-
guém jamais escreveu melhor sobre o bom uso das doenças, ninguém jamais o
praticou melhor para maior edificação de.todos os que o viam.
Alguns anos antes, escrevera uma carta sobre a morte de meu pai, na qual
se via que achava ser dever de um cristão olhar esta vida como um sacrificio e
que os diversos acidentes que nos ocorrem só nos devem impressionar na medida
em que interrompem ou efetivam esse sacrificio. Eis por que o estado de agonia
a que se viu reduzido nos últimos anos de vida parecia-lhe o meio de cumprir
esse sacrificio a terminar com a morte. Encarava esse langor com alegria e vía-
mos diariamente que abençoava Deus com todas as forças da alma. Quando nos

1 5
Sobre.a roleta, cf. Strowsky, Pascal, III, 327. Ciclóide ou roleta, "curva gerada por um ponto fixo de
uma circunferência que rola sem escorregar, sobre uma linha reta". (Cf. Pequeno Dicionário Brasileiro da
Língua Portuguesa.) (N. do T.)
A VIDA DE PASCAL 27

falava da morte, que acreditava mais próxima do que se achava então, referia-se
ao mesmo tempo a Jesus Cristo, e dizia que a morte, horrível sem Jesus, em Cris-:-
to é amável e santa; que é a alegria do fiel e que, em verdade, sefôssemos inocen-
tes, o horror à morte seria razoável porque, sendo contra a ordem da natureza
que o inocente seja punido, seria justo odiá-la quando viesse a separar uma alma
santa de um corpo santo, mas que era justo amá-la porque separava uma alma
santa de um corpo impuro; que fora justo odiá-la se rompesse a paz da alma e do
corpo, mas não nessa hora em que acalma a dissensão irreconciliável de ambos,
em que ela tira do corpo a liberdade infeliz de pecar, em que ela põe a alma na
necessidadefeliz de só poder louvar a Deus e estar com ele em união eterna. Que
não se devia, entretanto, condenar o amor à vida que a natureza nos deu, por-
quanto o recebemos do próprio Deus, mas que se devia empregá-lo em relação à
mesma vida, para a qual Deus no-lo deu; a uma vida inocente e bem-aventurada
e não a um objeto contrário. Que Jesus amara sua vida porque ela era inocente,
que temera a morte porque esta o atingia num corpo agradável a Deus, mas que
não acontecendo o mesmo com nossa vida, que é uma vida de pecado, deve-
ríamos ser levados a odiar uma vida contrária à de Jesus Cristo, a amar e não
temer uma morte que, acabando em nós com uma vida de pecado e miséria, nos
dá a liberdade de ir a Jesus Cristo ver Deus frente a/rente, adorá-lo, abençoá-lo
e amá-lo eternamente sem reserva.
Era por esses mesmos princípios que tinha tanto amor à penitência; pois
dizia que era preciso punir um corpo de pecador, e puni-lo sem reserva, mediante
uma penitência contínua, porque sem isso ele permanecia rebelde ao espírito e
contraditando os sentimentos de salvação; mas, como não temos a coragem de
nos punir a nós mesmos, devíamos agradecer a Deus quando lhe compraziafazê-
lo. Eis por que o abençoava sem cessar pelo sofrimento que lhe enviara e que
meu irmão encarava como uma chama a queimar pouco a pouco os pecados no
sacrifício cotidiano, preparando-o assim até que agradasse a Deus mandar-lhe a
morte para consumar o sacrifício perfeito.
' Sempre demonstrara tão grande amor à pobreza que a tinha continuamente
presente: de modo que, logo que desejava empreender alguma coisa, ou que
alguém lhe pedia conselho, o primeiro pensamento que lhe subia ao espírito era
ver se nele a pobreza podia ser praticada; mas o amor a essa virtude aumentou
tanto no fim de sua vida que eu nada mais podia fazer senão entretê-lo a respeito
e ouvir o que a propósito estava sempre disposto a dizer.
Nunca recusou esmola a ninguém, embora pouco possuísse e a despesa que
lhe cabia fazer por causa de suas enfermidades excedesse sua renda. E nunca a
fez senão tirando-a do seu necessário. Mas, quando queriam lembrar-lho, em
particular quando dava uma esmola considerável, mostrava-se aborrecido e nos
dizia: "Observei que, por mais pobre que se seja, sempre se deixa alguma coisa
ao morrer': Tão longe ia nessa senda que se viu forçado a se endividar para
viver, a tomar emprestado a juros por ter dado aos pobres o que possuía e não
querer recorrer aos amigos, porquanto tinha por princípio nunca se sentir impor-
tunado com as necessidades alheias mas recear sempre importunar os outros e os
seus com as suas.
Logo que o negócio das carruagens 1 6 se decidiu, ele me disse que desejava

1
·e A respeito, ver carta de Mme Périer a Amauld de Pomponne, 21 de março de 1662 (Brunschvicg, X , p.
269).
28 A VIDA DE PASCAL

pedir mil libras adiantado, a fim de enviá-las aos pobres de fJlois e cercanias,
então grandemente necessitados; e, como eu lhe observasse que o negócio aind(l
não estava inteiramente acertado, respondeu-me que não via grande inconve-
niente nisso porque, se aqueles com quem tratava perdessem, ele lhes daria seus
próprios bens. Mas não queria esperar até o ano seguinte, porque a precisão dos
pobres era urgentíssima. Entretanto, como as coisas não se fazem do dia para a
noite, os pobres de Blois foram socorridos por outros meios e meu irmão só par-
ticipou com sua boa vontade, a qual nos comprovava o que tantas vezes dissera,
a saber, que só desejava ter meios para assistir os pobres, pois, já ao pensar que
os poderia ter, os distribuía d~ antemão e antes mesmo de vê-los confirmados.
Não há como se espantar de que, quem tão bem conhecia Jesus Cristo,
tanto amasse os pobres, e que o discípulo desse o próprio necessário, se tinha no
coração o exemplo do Mestre que se dera a si próprio. Mas a máxima que se pro-
pusera de renunciar a todas as super:fiuidades constituía nele um alicerce para o
amor à pobreza. Uma das coisas a cujo respeito mais ele se examinava, em rela-
ção a essa máxima, era acerca do exagero generalizado de querermos sempre
sobressair em tudo, e que nos impele, particularmente nas coisas do mundo, a
desejar as melhores, as mais belas, as mais cômodas. Eis por que não suportava
que se quisesse empregar os melhores operários; forçava-nos a procurar os mais
pobres e os mais honestos, a renunciar a essa excelência que não é imprescindível
e também censuravafortemente que cuidássemos de nossas comodidades, de ter-
mos tudo a nosso lado, um quarto em que nadafaltasse e outras coisas seme-
lhantes que fazemos sem escrúpulos; porquanto, apoiando-se no espírito de
pobreza que devem ter todos os cristãos, pensava que tudo o que a isso se opu-
nha, embora autorizado pelos costumes, era sempre um excesso a que devíamos
ter renunciado com o batismo. Proclamava às vezes: ºSe tivesse o cotação tão
pobre quanto o espírito, seria muito feliz; pois estou admiravelmente persuadido
do espírito de pobreza e certo de que a prática dessa virtude é um grande instru-
mento de salvação ':
Todos esses discursos faziam-nos meditar e por vezes também nos induziam
a buscar regras gerais que atendessem a todos os casos; e assim o propúnhamos,
mas ele não o achava certo, e dizia que não éramos chamados a atender ao geral
e sim ao particular; e acredita11a que a maneira mais indicada de servir os pobres
e agradar a Deus era servir os pobres pobremente, isto é, segundo suas posses,
sem se preocupar com esses grandes objetivos que comportam essa excelência
cuja procura censurava em tudo, tanto no espírito como na prática. Não porque
achasse ruim a criação de hospitais, mas dizia que essas empresas estavam reser-
vadas a certas pessoas escolhidas e quase visivelmente conduzidas por Deus; não
era a vocação comum, como o é a assistência pessoal e cotidiana aos pobres.
Bem quisera que eu me dedicasse a auxiliar habitualmente os pobres e me
impusesse essa tarefa como uma penitência. A isso me incitava cuidadosamente,
e a aconselhá-lo a meus filhos. E, quando eu lhe observava que temia com isso
desviar-me da assistência àfamz1ia, dizia-me que era apenas/alta de boa vontade
e que, como há diversos graus na prática dessa virtude, pode-se achar tempo para
praticá-la sem prejuízo das ocupações domésticas. A própria caridade nos diz
como, e basta segui-la. Afirmava ainda que não havia necessidade de sinal parti-
cular para saber se éramos chamados a praticá-la, pois era a vocação natural de
todos os cristãos, sendo suficiente saber das necessidades para nos empregarmos
A VIDA DE PASCAL 29

na sua satisfação de acordo com os nossos meios, e que, quando se via no Evan-
gelho que a simples omissão desse dever era causa de danação eterna, bastava tal
pensamento para nos levar a despojar-nos de tudo e a dar-nos cem vezes, quando
tínhamos fé. Dizia mais, que a freqiientação dos pobres era extremamente útil,
porque vendo continuamente a miséria e vendo que às vezes carecem das coisas
imprescindíveis, seria preciso sermos muito insensíveis para não nos privarmos
voluntariamente das comodidades inúteis e dos ajustamentos supérfluos.
Eis uma parte das instruções que nos dava afim de amarmos a pobreza, a·
qual tão grande lugar ocupava em seu coração. Não era menor sua pureza, pois
tinha tal respeito por essa virtude que continuamente se precavia para não vê-la
ferida, nem nele nem nos outros. É incrível como se mostrava exigente nesse·
ponto. Isso me incomodava mesmo a princípio, porque sempre tinha algo a cen-
surar nas palavras que imaginávamos mais inocentes. Se eu dizia, por exemplo,
por acaso, que vira uma bela mulher, logo me advertia de que nunca se devia
mencionar semelhantes coisas diante dos lacaios e dos jovens porque não se
sabia que pensamentos podiam excitar neles. Mas ouso dizer que não suportava
sequer os carinhos que eu recebia de meus filhos; pretendia que isso só podia
prejudicá-los e que se devia manifestar a ternura de outros modos. Custei muito
a aceitar tal opinião, mas verifiquei mais tarde que nisso, como no resto, tinha
razão, e observei, pela experiência, que fazia bem submetendo-me a tais idéias.
Tudo isso oco"ia na vida doméstica, mas, cerca de três meses antes de sua
morte, Deus quis dar-lhe uma oportunidade de fazer com que transparecesse seu
zelo pela pureza. Como voltasse de Saint-Sulpice, onde fora assistir à Santa
Missa, veio a seu encontro uma jovem de mais ou menos quinze anos e pediu-lhe
uma esmola. De imediato ele pensou no perigo a que ela se expunha. Tendo sido
informado de que era do campo, que seu pai mo"era e que nesse mesmo dia sua
mãe fora transportada para o hospital, de modo que a pobre menina sozinha não
sabia o que fazer, pensou que Deus lha houvesse enviado e no mesmo instante
conduziu-a ao seminário onde a confiou aos cuidados de um bom padre ao qual
deu dinheiro, pedindo-lhe que procurasse algum emprego em que ela se achasse
em segurança. E, para auxiliá-lo, disse-lhe que lhe mandaria no dia seguinte uma
mulher para comprar roupas para a jovem e tudo o mais que fosse necessário a
fim de empregá..:/a. Efetivamente enviou a mulher, a qual trabalhou tão dedicada-
mente com o bom padre que dentro em breve a moça se achava em condições
honestas. Esse eclesiástico não conhecia o nome de meu irmão, e não pensou de
início em perguntá-lo porque estava ocupado com a sorte da jovem; mas depois
de colocá-la refletiu sobre essa ação que considerava bela e quis s·aber quem a
praticara. Informou-se com a mulher, mas ela respondeu que lhe haviam dito
para não o divulgar. "Obtenha a permissão", disse ele, ''peço-lhe. Prometo-lhe
que nada direi durante a vida dele, mas, se Deus permitir que ele mo"a antes de
mim, terei grande consolo em proclamá-la; pois acho-a tão bela, tão digna de ser
conhecida, que não poderei suportar que se mantenha incógnita." Nada obteve,
porém, e viu assim que essa pessoa, que queria manter-se escondida, não era
menos modesta do que caridosa e que, se zelava pela pureza dos outros, não zela-
va menos pela sua humildade.
Tinha extremada ternura por seus amigos e pelos que acreditava estarem ·
com Deus; e pode-se dizer que, se ninguém se mostrou mais digno de amor, nin-
guém soube melhor_amar nem melhor o fez. Mas sua ternura não era apenas um
30 A VIDA DE PASCAL

efeito de temperamento, pois, embora seu coração sempre estivesse disposto a se


enternecer sobre as necessidades dos amigos, só se enternecia, entretanto, dentro
das regras do cristianismo que a razão e afé lhe apresentavam. Por isso, não ia
sua ternura até o apego e era isenta de particular alegria.
Não podia amar ninguém mais do que minha irmã e tinha razão; via-a
amiúde e lhe falava de tudo sem reserva; dela recebia satisfação em tudo porque
havia tal correspondência entre seus sentimentos que andavam sempre de acor-
do; e por certo seus corações eram tão-somente um e encontravam um no outro
consolações, como só as compreendem os que experimentaram tal felicidade e
sabem o que seja amar e ser amado. com confiança, sem nada que divida, sem
nenhum temor.
Entretanto, por ocasião da morte de minha irmã, que precedeu a dele de dez
meses, ao receber a notícia, limitou-se a dizer: "Deus nos permita morrer assim
cristãmente ': E depois não mais nos falou .a não ser das graças que Deus outor-
gara a minha irmã durante a vida, das circunstâncias e do momento de sua
morte; e, erguendo o coração ao céu onde acreditava que ela se achasse feliz,
dizia transportado: "Felizes os que morrem e que, assim, morrem no seio do
Senhor". E quando me via aflita (pois muito senti essa morte) ele sofria e me
dizia que não estava certo e que não convinha ter tais sentimento~ ante a morte
dos justos, mas que devíamos, ao contrário, louvar a Deus por ter recompensado
tão cedo os pequenos serviços a ele prestados.
Assim mostrava amar sem paixão e disso tivemos ainda uma prova quando
da morte de meu pai, pelo qual tinha, sem dúvida, todos os sentimentos que deve
ter um filho reconhecido por um pai afetuoso, pois vemos na carta que escreveu
a esse respeito que, se a natureza/oi atingida, a razão não demorou a se impor,
e que, considerando o acontecimento à luz da fé, sua alma se enterneceu, não
para chorar por perder o pai na terra, mas por contemplá-lo em Jesus Cristo que
o chamara ao céu.
Distinguia duas espécies de ternura, uma sensível, outra razoável, confes-
sando que a primeira era de pouca utilidade nos usos do mundo. Dizia, entre-
tanto, que não havia mérito nela e que as pessoas de bem só devem apreciar a ter-
nura razoável, a qual consistia em participar de tudo o que acontece a nossos
amigos em detrimento de nosso próprio bem, de nossa comodidade, de nossa
liberdade e até de nossa vida, em se tratando de alguém que o mereça; e que esse
alguém o merece sempre, desde que se vise a servi-lo por causa de Deus, o que
deve ser o único objetivo da ternura dos cristãos. · ·
"Um coração é duro", dizia, "quando conhece os interesses do próximo e
resiste à obrigação de participar; ao contrário, um coração é terno quando todos
os interesses do próximo nele entram facilmente, por assim dizer, por todos os
sentimentos que a razão exige que sintamos uns pelos outros em semelhantes
encontros; que se alegra quando deve alegrar-se, que se aflige quando deve qfli-
gir-se. "Mas acresçentava que a ternura só pode ser perfeita quando a razão é ilu-
minada pela/é e nos faz agir dentro das regras da caridade. Por isso não estabe-
lecia grande diferença entre a ternura e a caridade, nem entre esta e a amizade;
apenas concebia que a amizade, pressupondo uma ligação mais estreita e esta
uma aplicação mais particular, nos levava a resistir menos às necessidades dos
amigos, as quais, por serem mais conhecidas, mais facilmente. nos persuadem.
Eis de que modo concebia a ternura; era isto que ela provocava nele, sem
A VIDA DE PASCAL 31

paixão nem alegria, porque, como a caridade não podia ter outro objetivo senão
Deus, só a Deus podia ela apegar-se e em nada mais encontrava alegria; pois
sabia que não há tempo a perder e que Deus, que tudo vê e julga, pedirá contas
de tudo o que existe na nossa vida que não seja um passo a mais no único cami-
nho permitido, que é o da perfeição.
Não somente não tinha paixão por ninguém como não queria tampouco que
a tivessem por ele. Não me refiro a essas paixões criminosas ou perigosas, que
são grosseiras e a cujo respeito ninguém se ilude, mas sim às amizades mais ino-
centes e cuja alegria faz a doçura das relações humanas. Era. mesmo isso uma
das coisas que mais evitava, impedindo-lhes o desenvolvimento desde que o sen-
tisse possível. E como eu estava muito longe dessa perfeição e acreditava que ja-
mais poderia exagerar os cuidados com um ir:mão que fazia afelicidade dafamí-
lia, não deixava nunca de me . entregar a tudo o que lhe fosse útil e lhe
testemunhasse a minha amizade em tudo o que eu pensava. Reconheço, enfim,
que me apegava a ele e me alegrava com desobrigar-me de todos os cuidados, o
que considerava um dever; mas ele não o julgava de igual modo, e como, ao que
me parecia, não demonstrava bastante, exteriormente, séus próprios sentimentos,
eu não me sentia satisfeita e ia de vez em quando abrir o coração com minha
irmã e por pouco não me queixava. Minha irmã consolava-me na medida do pos-
sível, lembrando-se das oportunidades em que eu precisara de meu irmão e em
que ele se devotara com tantas demonstrações de afeto que eu não devia ter qual-
quer dúvida de que muito me amava. Mas o mistério dessa reserva para comigo
só me foi realmente explicado no dia de sua morte, quando uma pessoa das mais
respeitáveis pela grandeza de seu espírito e de sua devoção, com quem tivera
grandes diálogos acerca da virtude, me disse que meu irmão sempre apresentara
como máxima fundamental de sua fé não admitir que o amassem com apego e
que era um e"o acerca do qual não se examinava suficientemente, erro de gran-
des decorrências e tanto mais temível quanto se nos afigurava não raro sem
perigo.
Tivemos ainda depois de sua morte uma prova de que esse princípio estava
bem formado em seu coração, pois, afim de não o esquecer, escrevera-o pessoal-
mente num papelucho que encontramos com ele, e sabíamos que o lia sempre.
Eis o que dizia: "É injusto que se apeguem a .mim, ainda que o façam voluntaria-
mente e com prazer. Enganaria aqueles em que fizesse nascer tal desejo, porque
não sou nada e não tenho com que os satisfazer. Não estou próximo da morte?
Assim o objeto de seu apego morrerá também. Da mesmaforma que seria culpa-
do se fizesse acreditar em uma falsidade, dela os persuadindo docemente, e com
isso me agradando, seria culpado de me fazer amar e atrair as pessoas a mim,
pois é preciso que dediquem sua vida e seus cuidados a apegar-se a Deus ou a
procurá-lo ':
Assim é que se instruía ele próprio e tão bem praticava suas instruções;
assim é que eu me enganava julgando sua maneira de agir para comigo e atri-
buindo a uma carência de amizade o que era nele um aperfeiçoamento da
caridade. ·
Mas se não queria que as criaturas hoje existentes e que não existirão talvez
amanhã, e que são de resto muito pouco capazes de se fazerem mutuamente feli-
zes, se apegassem umas às outras, era afim de que se apegassem tão-somente a
Deus; isso é, com efeito, o justo e não o podemos julgar de outro modo se pres-
32 A VIDA DE PASCAL

tarmos seriamente atenção à coisa e se desejarmos seguir a verdadeira luz. Eis


por que não há como se espantar de que, quem era tão esclarecido e tinha o cora-
ção tão bem ordenado, se houvesse proposto tão justas regras e as praticasse
regularmente.
Não o fazia somente em relação a esse.primeiro princípio que é o funda-
mento da moral cristã; zelava tanto pela ordem divina em todas as coisas desse
princípio decorrentes que não suportava vê-la violada no que quer que fosse. É o
que o tornava tão cheio de ardor a serviço do rei, a ponto de o levar a resistir a
todos os apelos durante os motins de Paris e a considerar pretextos todas as
razões dadas para justificar a rebelião; e dizia que em uma república como Vene-
za fora grande erro contribuir para estabelecer um rei e oprimir a liberdade dos
povos a quem Deus a deu; mas que, num Estado no qual se achava estabelecido
o poder real, não se podia violar o respeito que lhe era devido sem uma espécie
de sacrilégio, porque o poder que Deus lhe 'outorgou era não apenas uma ima-
gem, mas uma participação desse poder e a ele não havia como se opor sem se
opor manifestamente à ordem de Deus; e que, ademais, sendo a guerra civil o
maior mal que se possa cometer contra a caridade do próximo, nunca se exagera-
ria demais esse erro; que os cristãos não nos haviam ensinado a revolta e sim a
paciência, quando os príncipes não cumpriam seus deveres. Dizia comumente
que tanto aborrecia esse pecado quanto assassinar ou roubar, e que, enfim, não
havia nada mais contrário à sua natureza e que menos o tentasse, o que o levou
a recusar consideráveis vantagens por não querer tomar parte nessas desordens.
São esses os sentimentos que demonstrava a serviço do rei; daí ser irrecon-
ciliável com aqueles que a tanto se opunham. E o que mostra que não era por
temperamento nem devotamento à sua própria pessoa é que ele revelava admirá-
vel doçura para com os que o ofendiam pessoalmente, de modo que nunca distin-
guiu uns de outros e esquecia por completo o que apenas a si dizia respeito, a
ponto de ser difícil lembrar-lho, fazendo-se necessário circunstanciar as coisas
para que se recordasse. E, como se admirassem disso, dizia não raro: "Não vos
espanteis; não é por virtude e sim por esquecimento real; não me lembro absolu-
tamente': Entretanto, tinha tão excelente memória que afirmavafreqiientemente
nunca ter esquecido o que desejava reter. Mas era normal que as ofensas dirigi-
das tão-somente à sua pessoa não causassem grande impressão sobre uma gran-
de alma como a sua, a qual só podia ser atingida pelas coisas atinentes à carida-
de, tudo o maisficando como que/ora dele, e não o interessando.
É verdade que nunca vi alma mais naturalmente superior a todas as
manifestações 1 7 humanas da corrupção natural; e não era somente em relação
às injú.rias que se mostrava tão insensível; era-o igualmente no concernente a
tudo o que fere os outros homens e os apaixona. Tinha seguramente uma grande
alma, mas sem ambição, não desejando nem grandeza nem poder e considerando
mesmo que tudo isso comporta mais miséria do que felicidade. Só aspirava a.os
bens para distribuí-los aos outros e seu prazer residia na razão, na ordem,.najus-
tiça, em tudo, enfim, capaz de alimentar a alma. E só muito pouco nas coisas dos
sentidos.
Ele não deixava de ter defeito; mas tínhamos inteira liberdade para adverti-
/o e ele aceitava as opiniões de seus amigos com grande humildade, quando jus-

1 7
Mouvements no original. (N. do T.)
A VIDA DE PASCAL 33

tas, e sempre com doçura, se o não eram. A extrema vivacidade de seu espírito
tornava-o tão impaciente, por vezes, que se fazia dificil satisfazê-lo. Mas, logo
que o advertiam ou que percebia ele próprio ter magoado alguém com sua impa-
ciência, reparava incontinenti afalta mediante tão honesto comportamento que
nunca perdeu a amizade de ninguém por esse motivo.
O amor-próprio dos outros não era perturbado pelo seu, e parecia mesmo
não o ter, não falando nunca de si nem de nada que consigo se relacionasse; e
sabe-se que ele queria que um homem de bem evitasse nomear-se e mesmo servir-
se do eu. O que costumava dizer a propósito era que a devoção cristã destrói o
eu humano e que a civilidade humana o esconde e o suprime; concebia isso como
regra e a praticava.
Não incomodava tampouco as pessoas a respeito dos defeitos delas; mas,
quando se dispunha a/alar das coisas,falava sempre sem dissimulação, e, assim
como não sabia o que era agradar com adulações, era incapaz de não dizer a ver-
dade quando forçado a fazê-lo. Os que não o conheciam surpreendiam-se ao
ouvi-lo nas conversações, porquanto parecia dominar os demais interlocutores,
mas a causa estava nessa mesma vivacidade de espírito, e bastava alguém demo-
rar-se em sua companhia para ver desde logo que ainda nisso havia algo amável
e para, no fim, ficar tão satisfeito com sua maneira de falar quanto com as coisas
que dizia.
Deresto, sentia horror por qualquer espécie de mentira e os menores embus-
tes eram-lhe insuportáveis, de modo que, sendo o seu espírito penetrante e justo
e seu coração reto e sério, caracterizava-se sua conduta pela sinceridade e
fidelidade.
Encontramos um bilhete de seu próprio punho em que se pinta, sem dúvida
afim de que, tendo continuamente diante dos olhos o caminho pelo qual Deus o
conduzia, nunca pudesse dele afastar-se. Eis o que dizia esse bilhete: "Amo a
pobreza porque Jesus Cristo a amou. Amo os bens porque me dão a possibili-
dade de assistir os miseráveis. Mantenho-me fiel a todos. Não faço mal a quem
me faz mal, mas desejo-lhe uma condição igual à minha, em que não se recebe
nem o bem nem o mal por parte dos homens. Tento ser sempre sincero, verda-
deiro e fiel com todos e tenho uma ternura de coração por aqueles a quem Deus
me uniu mais estreitamente; e, embora sejaforte perante os homens, estou atento,
em todas as ações, ao julgamento de Deus, a quem as dediquei todas. E_is meus
sentimentos; e abençôo todos os dias meu Redentor que os pôs em mim e que, de
um homem cheio de fraqueza, miséria, concupiscência, ambição e orgulho, fez
um homem isento de todos esses males pela força de sua grandeza, à qual toda
glória é devida e que não tem de mim senão miséria e erro ':
Poder-se-ia sem dúvida acrescentar muita coisa a esse retrato se se desejasse
acabá-lo até a perfeição; mas deixando a outros mais capazes o cuidado dós últi-
mos retoques,função que só cabe aos mestres, direi apenas que esse homem tão
grande em tudo era simples como uma criança no que concerne à devoção. Não
somente não havia afetação ou hipocrisia em sua maneira de agir, mas ainda,
assim como sabia elevar-se na penetração das mais altas virtudes, sabia baixar-se
na prática das mais comuns que edificam a devoção. Todas as coisas eram gran-
des em seu coração quando serviam para honrar a Deus, e praticava-as como
uma criança. Seu principal divertimento, particularmente nos últimos anos de
vida, quando não pôde trabalhar, era visitar igrejas onde houvesse relíquias
34 A VIDA DE PASCAL

expostas ou solenidades; e possuía um almanaque espiritual pelo qual se infor-


mava dos lugares em que se verificavam tais devoções e/azia tudo isso tão devo-
tamente e tão simplesmente que os que o viam eram tomados de surpresa. E,
entre outras, uma pessoa mui virtuosa e mui esclarecida explica-o com estas
belas palavras: a graça de Deus se revela nos grandes espíritos pelas pequenas
coisas e nos espíritos comuns pelas grandes.
Tinha predileção especial pelo oficio divino (isto é, as orações do Breviário)
e sujeitava-se a dizê-lo quando o podia, e apreciava em particular as horas meno-
res tiradas do Salmo 118, no qual tantas coisas admiráveis existem, que ele
sentia sempre o desejo de tornar a recitá-las. Quando se entretinha com seus ami-
gos a respeito da beleza do salmo, extasiava-se e contagiava a todos os seus
interlocutores. Como lhe mandassem mensalmente um bilhete 1 8 , como fazem em
muitos lugares, lia-o e o recebia com respeito; não deixando de reler todos os dias
a sentença. E assim ocorria com tudo o que se relacionasse com a devoção e
pudesse edificá-lo.
O cura de Saint-Etienne 1 9 , que o viu doente, admirava também essa simpli-
cidade e dizia repetidamente: "E uma criança, humilde e submisso como uma
criança". E, na véspera de sua morte, um eclesiástico, que era homem de muito
saber e grande virtude, tendo ido vê-lo e ficado uma hora com ele, saiu tão edifi-
cado que me disse: "Consolai-vos, se Deus o chamar, tendes motivo para louvá-
/o pelas graças que lhe outorgou. Morre na simplicidade da inocência. É uma
coisa incomparável um espírito como o dele; desejaria de todo o coração estar
em seu lugar, não há nada mais belo ".
Sua última enfermidade começou por um estranho aborrecimento dois
meses antes de morrer. Meu irmão tinha em casa um indivíduo com toda a sua
família e seus trens, que não lhe prestava nenhum serviço, mas que ele hospedava
cuidadosamente como se lhe tivesse sido enviado pela providência de Deus. Um
dos filhos dessa pessoa caiu doente com varíola, juntando-se assim dois doentes
na casa: meu irmão e a criança. Era necessário que eu.ficasse perto de meu irmão
e, como havia perigo de ser contagiada pelo mau ar da varíola, passando-a a
meus filhos, deliberou-se afastar a criança, mas a caridade de meu irmão resol-
veu outra coisa; pois fez-lhe tomar a resolução de sair ele próprio de sua casa e
vir para a minha. Já estava muito doente, mas dizia que havia menor perigo no
transporte dele do que da criança, e assim veio, efetivamente, viver em minha
casa 20 •
Esse ato de caridade fora precedido pelo perdão de uma ofensa muito sensí-
vel da parte de alguém que lhe devia grandes favores. Meu irmão fê-lo como de
costume, sem o menor ressentimento, mas com doçura, acompanhada de tudo o
que conquista uma pessoa. E foi, sem dúvida, por uma providência toda especial
de Deus que ele teve nesses últimos tempos, quando se aprontava para aparecer
diante do Senhor, a oportunidade de praticar essas duas ações misericordiosas
que são marcas de predestinação no Evangelho, afim de que, ao morrer, tivesse
nelas o testemunho de que Deus lhe perdoara as faltas e lhe daria o reino que lhe
preparara, pois lhe dera a graça de perdoar as faltas dos outros e de assisti-los,
na necessidade, de tão bom grado.

1 8
Imagem com uma máxima religiosa. (N. do T.)
19
O Padre Beurrier.
20
O casal Périer morava na Rua Fossés-Saint-Victor; Pascal, perto da Porta Saint-Michel.
A VIDA DE PASCAL

Mas veremos que Deus o preparou para uma morte de verdadeiro predesti-
nado, através de outras ações ainda não menos consoladoras. Três dias depois de
estar em casa, foi atacado de violenta cólica que lhe tirava inteiramente o sono;
mas, como tinha muita força de espírito e grande coragem, não deixava de se
levantar todos os dias e de tomar ele próprio seus remédios sem aceitar nenhuma
ajuda. Os médicos que o visitavam achavam-no gravemente enfermo, mas, como
não tinhafebre, acreditavam não hav.er perigo imediato. Meu irmão, porém, nada
querendo arriscar, no quarto dia de cólica e antes mesmo de se acamar definiti-
vamente, mandou buscar o cura de Saint-Etienne e confessou-se, não comun-
gando logo, porém. E, vindo vê-lo amiudadamente o cura, meu irmão, em
obediência à sua vigilância habitual, não perdia nenhuma oportunidade de se
confessar de novo, mas nada nos dizia com receio de nos inquietar. Sentiu-se por
vezes menos mal e aproveitou esses momentos para fazer seu testamento 2 1 , no
qual não foram esquecidos os pobres e teve que se esforçar para não lhes dar
mais do que deu. Disse-me que se o Sr. Périer estivesse em Paris, e o consentisse,
houvera deixado tudo aos pobres.
Não tinha afinal no espírito e no coração senão os pobres e dizia-me às
vezes: "De onde vem que não tenha ainda feito nada pelos pobres, embora lhes
tenha dedicado tanta afeição?" E, como lhe respondesse que era porque nunca
possuíra bastante, atalhava: "Devia então dar-lhes o meu tempo e o meu traba-
lho; nisto falhei. E se os médicos dizem a verdade e Deus permitir minha cura,
estou resolvido a não me ocupar de outra coisa, durante o resto de meus dias, que
não seja o serviço dos pobres". Foi com esses sentimentos que Deus o chamou.
Sua paciência não era menor do que sua caridade, e os que o freqüentavam
ficavam tão edificados que diziam que nunca havjam visto coisa semelhante. E
quando às vezes lhe declaravam que tinham pena dele, respondia que não lasti-
mava o estado em que se achava, que antes temia a cura, e, se lhe indagavam a
razão, dizia: "É porque conheço os perigos da saúde e as vantagens da doença".
E, como não pudéssemos deixar de nos apiedar, no auge de suas dores, observa-
va: "Não vos apiedeis, a doença é o estado natural dos cristãos, porque nela nos
achamos como deveríamos estar sempre, isto é, no sofrimento, ná dor, na priva-
ção de todos os bens e prazeres dos sentidos, isentos de todas as paixÕe$, sem
ambição, sem avareza e na espera contínua da morte. Não é assim que os cris-
tãos devem viver? E não é grandefelicidade acharmo-nos necessariamente no es-
tado em que nos devemos achar?" E via-se, com efeito, que amava este estado, o
que poucas pessoas seriam capazes de Jazer, porque não podia senão submeter-se
humilde e tranqüilamente. Eis por que só nos pedia que rezássemos para que
Deus lhe desse essa graça. É verdade que depois de ouvi-lo nada podíamos dizer-
lhe e sentíamo-nos mesmo animados de igual modo, desejosos de sofrer e
compreender que aquele era o estado em que deveriam sempre achar-se os
cristãos.
Desejava ardentemente comungar, mas os médicos não o achavam bastante
doente para receber o viático e não o queriam mandar chamar à noite para que
comungasse em jejum, sem necessidade expressa. Entretanto, a cólica conti-
nuava. Receitaram-lhe águas e um alívio sobreveio durante alguns dias; mas no
sexto dia dessas águas sentiu uma pesada tontura com forte dor de cabeça. Em-

2 1 Ler o testamento de Pascal e os documentos relativos à sua doença em Brunschvicg, X, p. 295.


36 A VIDA DE PASCAL

bora os médicos não estranhassem o acidente, que atribuíam tão-somente do


vapor das águas, ele não deixou de se confessar e pediu insistentemente que o
fizessem comungar, e que em nome de Deus achassem um meio de obviar aos
inconvenientes alegados. Tanto insistiu que uma pessoa presente lhe disse não ser
isso certo, que ele devia aceder aos sentimentos de seus amigos, que não tinha
mais quase febre, e que julgasse ele próprio se era justo mandar vir o Santo
Sacramento à sua casa quando se achava melhor, e se não era mais indicado
esperar para comungar na igreja, onde havia esperança de que pudesse ir muito
breve. Ele respondeu: "Não sentem o meu mal, enganam-se; minha dor de cabe-
ça é uma coisa fora do comum': Entretanto, vendo tão grande oposição a seu
desejo, não mais ousou/alar. Mas disse-me: "Posto que não querem conceder-me
essa graça, desejaria supri-la com um ato de càridade e, não podendo comungar
com a cabeça, comungarei com os membros; para isso pensei em ter aqui um
doente pobre a quem prestassem os mesmos serviços que prestam a mim. Porque
me entristece e me confunde ser tão bem assistido enquanto um número infinito
de pobres, bem mais doentes do que eu, carece das coisas necessárias. Que lhe
arranjem uma enfermeira e que não haja nenhuma diferença entre nós dois. Isso
diminuirá a tristeza que sinto por não carecer de nada, o que não posso suportar,
a menos de ter o consolo de saber que há aqui um pobre igualmente bem tratado.
Que o peçam, por favor, ao cura':
Comuniquei esse desejo imediatamente ao cura, o qual me respondeu que
não tinha ninguém em estado de ser transportado; mas que daria a meu irmão,
logo que sarasse, um meio de exercer a caridade, encarregando-o do sustento de
um ancião durante o resto da vida, pois não duvidava de que meu irmão recupe-
rasse a saúde.
Como visse que não podia ter um pobre em casa com ele, pediu-me para ser
levado para os Incuráveis 2 2 , pois tinha grande vontade de morrer no meio dos
pobres. Disse-lhe que os médicos não achariam conveniente transportá-lo no es-
tado em que se achava. Esta resposta afligiu-o sensivelmente e ele me fez prome-
. ter, ao menos, que se algum dia obtivesse alívio eu lhe daria esta satisfação.
Não me coube, porém, resolver o problema. Sua dor de cabeça aumentou de
tal modo que no auge do sofrimento pediu-me para tentar uma consulta, mas ao
mesmo tempo disse-me com escrúpulo: "Receio que haja demasiado requinte
neste pedido." Não deixei de fazê-lo, contudo. Os médicos receitaram-lhe caldos,
assegurando-lhe sempre que não corria perigo e que a enxaqueca era devida aos
vapores das águas. Entretanto, ele não acreditoujamais no que diziam. Solicitou-
me um eclesiástico para passar a noite com ·~le e eu mesma o achei tão mal que
dei ordens, sem nada lhe dizer, de prepararem os círios e tudo o que fosse preciso
para que comungasse no dia seguinte pela manhã.
Esses pn:;parativos não foram inúteis, e mais cedo do que pensávamos, pois
mais ou menos à meia-noite foi tomado de violenta convulsão; ao terminar, pare-
ceu-nos que estava morto. E sentíamos todos a tristeza de vê-lo morrer sem
comungar, após ter solicitado tantas vezes, e tão insistentemente, essa graça.
Mas Deus, que queria recompensar tão fervoroso e justo desejo, susteve, como
por milagre, essa convulsão e devolveu-lhe a lucidez, como se estivesse em per-
feita saúde. De maneira que, quando o padre entrou no quarto com Nosso

22
Hospital da Rua de Sevres, fundado em 1653 pelo Cardeal de La Rochefoucauld.
A VIDA DE PASCAL 37

Senhor, exclamando: "Eis Aquele que tanto desejastes", tais palavras acabaram
de acordá-lo e o padre aproximou-se para ministrar-lhe a comunhão. Fez um
esforço, ergu.eu-se um pouco, sozinho, para recebê-la com mais respeito, e tendo-
º interrogado o padre, segu.ndo o costume, acerca dos principais mistérios da fé,
a tudo respondeu devotamente: "Sim, senhor, creio nisso tudo de todo o cora-
ção': A segu.ir recebeu o Santo Viático e a Extrema-Unção tão comovidamente
que vertia lágrimas. A tudo respondeu, agradecendo ao padre, e disse, quando
este o abençou com o Santo Sacramento: "Que Deus não me abandone jamais':
últimas palavras que pronunciou, pois, após a ação de graças,foi retomado pelas
convulsões que não mais cessaram, não lhe deixando um instante de liberdade de
espírito. Essas convulsões duraram até sua morte, vinte e quatro horas depois,
isto é, a vinte' e nove de agosto de mil seiscentos e sessenta e dois, à uma hora da
madrugada, na idade de trinta e nove anos e dois meses 2 3 •

23 Pascal foi inumado na Igreja de Saint-Etienne-du-Mont.


PENSAMENTOS
ARTIGO 1
Pensamentos sobre o espírito
e sobre o estilo

*1 - Diferença entre o espí- Todos os geômetras seriam,


rito de geometria e o espírito de portanto, sutis se tivessem a vista
finura - Num os princípios são boa, pois não raciocinam mal
palpáveis, mas afastados do uso sobre princípios que conhecem; e
comum; de maneira que, por os espíritos sutis seriam geôme-
falta de hábito, custa-nos virar a tras se pudessem volver a vista
cabeça para esse lado: por para os princípios desusados de
pouco, porém, que nos viremos, geometria.
vemos em cheio os princípios; e O que faz, portanto, que certos
seria preciso ter o espírito inteira- espíritos sutis não sejam geôme-
mente falso para raciocinar mal tras é que eles não podem de todo
sobre princípios tão grandes que voltar-se para os princípios da
é quase impossível nos escapa- geometria; mas o que faz com
rem. que alguns geômetras não sejam
Mas, no espírito de finura, os sutis é que não vêem o que está
princípios são de uso comum, em frente deles, e que, estando
aos olhos de todo mundo. Basta acostumados aos princípios níti-
virar a cabeça, sem nenhum dos e grosseiros da geometria e a
esforço; trata-se somente de ter só raciocinar depois de terem
boa vista, mas que seja boa, pois visto bem e bem manejado os
os princípios são tão sutis e em seus princípios, perdem-se nas
tão grande número que é quase coisas da finura, onde os princí-
impossível não nos escaparem pios não se deixam manejar de
alguns. Ora, a omissão de um igual modo.
princípio leva ao erro; assim, é São apenas entrevistos; mais
preciso possuir a vista bem clara pressentidos do que vistos; é pre-
para ver todos os princípios e ciso um esforço infinito para tor-
também o espírito justo para não ná-los sensíveis a quem não os
raciocinar erroneamente sobre sente por si próprios: são coisas
princípios conhecidos. de tal maneira delicadas e tão
42 PASCAL

numerosas que é necessário um Mas os espíritos falsos não são


sentido muito delicado e muito nem sutis nem geômetras.
preciso para senti-las, e para jul.., Os geômetras que são apenas
gar retamente e justamente de geômetras têm o espírito reto,
conformidade com esse senti- mas desde que se lhes expliquem
mento, sem poder o mais das bem todas as coisas por defini-
vezes demonstrá-las em ordem, ções e princípios; de outra manei-
como na geometria, porque não ra, tornam-se falsos e insuportá-
lhes possuímos do mesmo modo veis, pois são retos somente em
os princípios, e tentá-lo seria um relação aos princípios bem escla-
não acabar mais. É preciso, num recidos.
instante, ver a coisa num só golpe E os · sutis, que são apenas
de vista, e não pela marcha do sutis, não podem ter a paciência
raciocínio, ao menos até certo de descer até os primeiros princí-
grau. E, assim, é raro que os geô- pios das coisas especulativas e de
metras sejam sutis e que os sutis imaginação, que nunca viram no
sejam geômetras, porque os geô- mundo e que estão completa-
metras querem tratar geometrica- mente fora de uso.
mente essas coisas sutis e tor- *2 - Diversas . espécies de
nam-se ridículos, procurando sentido reto; alguns em certa
começar pelas definições e em ordem de coisas, e não nas outras
seguida pelos princípios, o que ordens, em que extravagam.
não é a maneira de proceder Uns tiram bem as conse-
nessa espécie de r3;ciocínio. Não qüências de poucos princípios, e
quer isso dizer que o espírito não isso é uma retidão de sentido.
o faça; mas ele o faz tacitamente, Outros tiram bem as conse-
naturalmente e sem arte, pois a qüências das coisas em que há
expressão se adapta a todos os muitos princípios.
homens, e o sentimento só per- Por exemplo: uns com-
tence a poucos homens. preendem bem os efeitos da água,
Os espíritos sutis, ao contrá- no que há poucos princípios; mas
rio, acostumados a julgar com as conseqüências são tão sutis
um só golpe de vista, ficam tão que só uma extrema retidão de
espantados - quando se lhes espírito pode conduzir a elas.
apresentam propos1çoes das Talvez por isso, aqueles não
quais nada compreendem e cuja . seriam grandes geômetras, por-
penetração exige anteriormente que a geometria compreende
definições e princípios estéreis, grande número de princípios, e
que não estão acostumados a ver há espírito de uma natureza
assim pormenorizados - que se capaz de penetrar poucos princí-
afastam e se desgostam. pios até o âmago e, de maneira
PENSAMENTOS 43

nenhuma, penetrar as coisas em parte do juízo, a geometria, a do


que haja muitos princípios. espírito.
Há, pois, ·duas espécies de Zombar da filosofia.é, em ver-
espíritos: uma, que penetra viva e dade, filosofar.
profundamente as conseqüências * 5 - Os que julgam sem re-
dos princípios, e é no que con- gras uma obra estão em relação
siste o espírito de retidão; outra, aos outros como os que não têm
que compreende grande número relógios em relaçijo aos demais.
de ·princípios sem os confundir, e Um diz: "Já pa~saram duas
é no que consiste o espírito de horas", o outro: "Passaram ape-
geometria. , nas três quartos de hora". Olho o
Um é a força e a retidão de meu relógio, e digo a um: "Você
espírito. Outro é a amplitude de está se aborrecendo", e a outro:
espírito. Ora, um pode muito "O tempo anda depressa para
bem encontrar-se sem o outro, você, pois·passou hora e meia". E
podendo o espírito ser forte e ·zombo dos que dizem que o
estreito, e podendo ser também tempo custa a passar para mim, e
amplo e fraco. que julgo pela imaginação: não
3 - Os que estão acostu- sabem que julgo pelo meu reló-
mados a julgar pelo sentimento gio 1 •
nada compreendem das coisas do *6 - Assim como se estraga
raciocínio, pois querem logo che- o espírito, estraga-se também o
gar a perceber com um golpe de sentimento. Formam-se o espírito
vista e não têm o hábito de pro- e o sentimento pelas conversas.
curar os princípios. Estragam-se o espírito e o senti-
E os outros, pelo contrário, mento pelas conversas.
que estão habituados a raciocinar Assim, as boas ou más conver-
por princípios, nada com- sas formam-no ou estragam-no.
preendem das coisas do senti- O mais importante de tudo está
mento, procurando nelas princí- em escolher bem, para formá-lo e
pios e não podendo vê-las de um não estragá-lo; e não podemos
golpe. fazer essa escolha, se já não o
4 - Geometria, finura - A formamos, sem o estragar. E isso
verdadeira eloqüência zomba da constitui um círculo, e bem-aven-
eloqüência, a verdadeira moral turados os que dele se evadem.
zomba da moral; quer dizer que a
moral do juízo zomba da moral 1
Brunschvicg aponta um hábito de Pascal
do espírito, que não tem regras. que ajuda a compreender este pensamento: o
Pois é ao juízo que pertence o nosso autor "usava sempre um relógio preso
ao pulso esquerdo", o que lhe permitia ver as
sentimento, como as ciências per- horas sem que os outros percebessem. (N, do
tencem ao espírito. A finura é a E,)
44 PASCAL

*7 - Na medida em que se e as faz nascer em nosso coração.


tem mais espírito, acha-se que há Principalmente a do amor, e
mais homens originais. As pes- sobretudo quando o representam
soas comuns não encontram dife- muito casto e honesto. Pois quan-
rença _entre os homens. to mais inocente parece às almas
8 - Há quem ouça o sermão inocentes, mais suscetíveis ficam
assim como ouve as vésperas. estas de serem por ele afetadas;
*9 - Para repreender util- sua violência agrada ao nosso
mente e mostrar a alguém que amor-próprio, o qual logo conce-
está errado, precisamos observar be o desejo de provocar os mes-
de que ponto de vista encara o mos efeitos tão bem represen-
assunto, porquanto, em geral, é tados; ao mesmo tempo forma-se
verdadeiro para o observador, é uma consciência baseada na ho-
então reconhecer sua verdade, nestidade dos sentimentos obser-
mas descobrir-lhe o lado pelo vados, os quais destroem o temor
qual é falso~ Assim, satisfazemos nas almas puras, porquanto estas
à pessoa enganada, porque vê imaginam não haver crime con-
que não se equivocava mas dei- tra a pureza em amar com um
xava tão-somente de encarar a amor que se lhes afigura tão
coisa de todos os ângulos possí- honesto.
veis; ninguém se aborrece por Com isso, deixamos o teatro
não ter visto tudo, porém nin- com o coração tão cheio de todas
guém quer estar equivocado; e as belezas e doçuras do amor,
talvez isso provenha do fato de com . a alma e o espírito tão
não poder o homem ver tudo e persuadidos de sua inocência,
de, naturalmente, não poder se que estamos completamente pre-
enganar dentro do ângulo que parados para receber suas pri-
escolheu; e isto porque as percep- meiras impressões, ou melhor,
ções dos sentidos são sempre para procurar a oportunidade de
verdadeiras. suscitá-las no coração de alguém,
* 10 - O homem se conven- para acolher os mesmos prazeres
ce, em geral, melhor com os e sacrifícios que vimos tão bem
argumentos que ele mesmo en- descritos na com~dia.
contra do que com os que ocor- 12 - Scaramuccio, que só
rem ao espírito dos outros. pensa em uma coisa 2 • O Doutor,
11 - Todos os grandes di-
vertimentos são perigosos para a 2 Scaramuccio, pseudônimo do ator italiano

vida cristã; entre todos, porém, Tiberio Fiorelli, o qual deu várias representa-
ções no Petit Bourbon, de 1653 a 1659. Na
que o mundo inventou, nenhum Commedia dell'Arte, desempenhava o papel
mais temível do que a comédia. É tradicional do Doutor. Pascal deve tê-lo visto
em 1653. Verifica-se, por esta nota, que con-
uma representação tão natural e servou a lembrança de um traço característico
delicada das paixões, que as agita da personagem.
PENSAMENTOS 45.

que ainda fala uma hora depois Consiste, portanto, em uma


de haver dito tudo, tal o seu dese- correspondência que procuramos
jo de falar. estabelecer entre o espírito e o
13 - Gostamos de ver o coração daqueles a quem fala-
erro, a paixão de Cleobulina, mos, por um lado, e, por outro,
porque ela não o conhece. O erro entre os pensamentos e as expres-
nos desagradaria se ela não esti- sões de que nos servimos; o que
vesse enganada 3 • pressupõe termos estudado muito
* 14 - Quando as palavras bem o mecanismo do coração do
espontâneas de alguém pintam homem a fim de conhecer-lhe as
uma paixão ou um efeito, encon- molas e encontrar, em seguida, as
tramos em nós mesmos a verdade proporções certas do discurso
do que ouvimos, a qual não que desejamos ajustar-lhe. Cum-
sabíamos que existisse, de manei- pre colocarmo-nos no lugar dos
ra que somos levados a amar que devem ouvir-nos, e experi-
quem no-la faz sentir; porque não mentar também em nosso pró-
nos exibe o seu bem e sim o prio coração a forma dada ao
nosso; e, assim, esse benefício discurso, para ver se um se adap-
no-lo torna digno de ser amado, ta ao outro e se podemos ter a
além do que essa comunidade de certeza de que o ouvinte será for-
inteligência induz necessaria- çado a render-se. É preciso, na
mente nosso coração a amá-lo. medida do possível, confinarmo-
15 - Eloqüência que per- nos dentro da naturalidade mais
suade pela doçura e não pela singela; não fazermos grande o
autoridade, como tirana e nao que é pequeno, nem pequeno o
como monarca. que é grande. Não basta que uma
16 - A eloqüência é a arte coisa seja bela, é necessário que
de dizer as coisas de maneira: 1. 0 seja adequada ao assunto, que
que aqueles a quem falamos pos- nada tenha de mais, nem que
sam entendê-las sem dificuldade nada lhe falte.
e com prazer; 2. 0 que nelas se 17 - Os rios são caminhos
sintam interessados, a ponto de em marcha e que levam aonde
serem impelidos mais facilmente queremos ir.
pelo amor-próprio a refletir sobre * 18 - Quando não se conhe-
elas. ce a verdade de uma coisa, é útil
3 Cleobulina, rainha de Corinto, personagem
que haja um erro comum susce-
do célebre romance de Mlle de Scudéry, Arta- tível de fixar o espírito dos
mene ou /e Grand Cyrus. Experimenta uma homens, como, por exemplo, a
paixão inconsciente por um de seus súditos,
que "ama sem pensar amá-lo". Os contempo- lua, à qual se atribuem as mudan-
râneos, que consideravam o Grand Cyrus um ças das estações, o progresso das
romance de personagens identificáveis, viam enfermidades, etc.; pois a doença
em Cleobulina o retrato da Rainha Cristina da
Suécia. principal do homem é a curiosi-
46 PASCAL

dade inquieta das coisas que não guir a natureza" ou em "tratar


pode saber; e não é pior para ele seus negócios particulares sem
permanecer no erro do que nessa injustiça", como Platão? Ou
curiosidade inútil. outra coisa? - Eis, porém, tudo
* 18 bis - A maneira de es- contido numa frase, direis. -
crever de Epicteto, de Montaigne Sim, mas isso é inútil se não for
e de Salomon de Tultie 4 é a mais explicado; e, ao explicá-lo, logo
eficiente, a que melhor se insinua, que se abre esse preceito que con-
a que fica na memória, e é a mais tém os demais, estes saem na
citada, porque se compõe toda de mesma confusão que desejáveis
pensamentos surgidos das con- evitar. Assim, quando se acham
versações ordinárias da vida; todos encerrados em um só, estão
assim, quando se fala do erro escondidos e são inúteis, como
comum a todos, da lua comó em um cofre: só aparecem quan-
causa de tudo, não se deixará do em sua confusão natural. A
nunca de dizer que Salomon de natureza criou-os todos sem en-
Tultie afirmou ser útil, quando cerrá-los um no outro.
ri.ão se conhece a verdade de uma 21 - A natureza pôs todas
coisa, que haja um erro comum, as suas verdades cada uma em si
etc., o que é o pensamento do mesma; nossa arte encerra-as
outro lado. umas nas outras, mas isso não é
* 19 - A última coisa que se natural: cada qual ocupa seu
encontra ao fazer um trabalho é lugar.
saber qual devemos colocar em *22 - Não se diga que eu
primeiro lugar. nada disse de novo: a disposição
*20 - Ordem - Por que da matéria é nova; quando se
dividiria minha moral antes em joga a péla é sempre a mesma
quatro patte~ do que em seis? bola que uns e outros enviam,
Por que se estabeleceria a virtude mas uns a colocam melhor do
antes em quatro partes, do que que outros.
em duas ou em uma? Por que em Preferiria que me dissessem
abstine et sustine 5 do que em "se- ter-me eu servido de palavras
4. Sa1omon de Tultie é o anagrama de Louis
antigas. E assim como os mes-
de Montalte, pseudônimo usado por Pascal em mos pensamentos, se diferente-
As Provinciais. Admite-se que também dese- mente dispostos, constituem um
jasse usá-lo em s~a Apologia. Em 1658 publi-
cara opúsculos científicos sob o nome de corpo de discurso diferente, as
Amos Dettonville, anagrama igualmente de mesmas palavras formam pensa-
Louis de Montalte. O Pensamento 18 bis não
deve ser de Pascal; deve ser uma glosa de Mme mentos diversos, segundo o seu
Périer ao Pensamento precedente (Bédier, arranjo.
Miscelânea Lanson, 1922).
5
A bstine et sustine, divisa dos filósofos estói- 23 - Diversamente arranja-
cos: Abstém-te e suporta. das, formam as palavras um sen-
PENSAMENTOS 47

tido diverso; e os sentidos, diver- apenas em largura e não em altu-


samente arranjados, produzem ra, nem em profundidade.
efeitos diversos. *29 - Quando deparamos
*24 - Linguagem - Não se com um estilo natural, espanta-
deve deixar o espírito devanear, mo-nos e nos alegramos, porque
salvo para repousá-lo no momen- esperávamos encontrar um autor
to indicado, para repousá-lo e encontramos um homem. Ao
quando necessário e não fora de contrário, os que têm bom gosto
propósito; pois quem assim o e pensam, ao ver um livro, desco-
repousa cansa; e quem cansa fora brir um homem, surpreendem-se
de propósito repousa, porque com achar apenas um autor: Plus
tudo se abandona então. A malí- poetice quam humane locutus
cia da concupiscência compraz- es 6 • Honram bem a natureza os
se em fazer inteiramente o con- qüe lhe ensinam que ela pode
trário do que querem obter de falar de tudo, até de teologia.
nós, sem nos dar prazer, que é a 30 - Vide os discursos da
moeda em troca da qual damos Segunda, Quarta e Quinta do
tudo o que querem. Jansenista; isto é elevado e
*25 - Eloqiiência Há sério 7 •
que apelar para o agradável e o Odeio igualmente o bufão e o
real; mas é preciso que o próprio V(J,idoso: de nenhum deles faria
agradável se tire do real. um amigo.
26 - A eloqüência é uma Só consultamos o ouvido por-
pintura do pensamento; assim os que nos falta o coração: a regra é
que, depois de ter pintado, acres- a honestidade. Poeta e nao
centam mais alguma coisa, fazem homem de bem.
um quadro em lugar de um Após a minha Oitava julgava
retrato. já ter fornecido uma resposta
*27 - Miscelânea. Lingua- suficiente. Belezas de omissão, de
gem - Os que fazem antíteses julgamento.
forçando as palavras são como 31 - Todas as falsas bele-
os que fazem falsas janelas por zas, que censuramos em Cícero,
causa da simetria: sua regra não possuem admiradores, e numero-
consiste .em falar certo e sim em sos.
fazer figuras justas. *3 2 - Há certo modelo de
28 - · Simetria no que vemos satisfação e beleza que consiste
de um ponto de vista, baseada no 6 Falaste como poeta, mais do que como
fato de não haver razão de proce- . homem.
dermos de outro modo; e baseada 7 Todas as frases grifadas se referem às
Provinciais e ·algumas edições dos Pensa-
também na figura do homem; daí mentos não as transcrevem por terem sido ris-
acontecer querermos a simetria cadas por Pascal no original. (N. do E.)
48 PASCAL

em certa relação entre nossa que é o da cura; mas não sabe-


natureza, fraca ou forte, tal qual mos em que consiste o prazer,
é, e a coisa que nos agrada. Apre- objeto da poesia. Não sabemos o
ciamos tudo o que se forma de que seja esse modelo natural que
acordo com esse modelo: casa~ é preciso imitar; e, na ausência
canção, discurso, verso ou prosa, desse conhecimento, inventamos
mulher, pássaros, rios, árvores, certos termos estranhos: séculos
quartos, roupas, etc. Tudo o que de ouro, maravilha de nossos
não se faz de conformidade com dias, fatal, etc., e a esse jargão
esse modelo desagrada aos que chamamos beleza poética.
têm bom gosto. ·Mas quem imaginar uma mu-
E, assim como há uma relação lher segundo o modelo que con-
perfeita entre uma canção e uma siste em dizer ninharias com
casa, feitas com um bom modelo, belas palavras, há de topar com
porque se assemelham a esse mo- uma bela senhorita cheia de pul-
delo único, embora cada qual a seiras e de quem zombará, por-
seu modo, há também uma rela- que sabemos melhor em que con-
ção perfeita entre as coisas feitas siste o encanto de uma mulher do
com mau modelo. Não por este que o prazer de um verso. Mas os
ser único: há uma infinidade que não o soubessem a admira-
deles; mas cada mau soneto, por riam com tais atavios; e há mui-
exemplo, seja qual for o falso tas aldeias onde a tomariam pela
modelo utilizado, assemelha-se rainha. Eis por que chamamos
perfeitamente a uma mulher ves- aos sonetos assim feitos as rai-
tida em obediência ao modelo nhas da aldeia.
mau. *34 - Não se passa, na so-
Nada leva a compreender me- ciedade, por conhecedor do verso
lhor a que ponto um falso soneto se não se arvora o título de poeta,
é ridículo quanto o considerar- . de matemático, etc. Mas os indi-
lhe a natureza e o modelo, e ipia- víduos universais não querem tí-
ginar em seguida uma mulher ou tulos e não estabelecem diferença
uma casa feitas por um modelo entre o oficio de poeta e o de
do mesmo tipo. bordador.
*3.3 - Beleza poética Os indivíduos universais não
Assim como dizemos beleza poé- se cliamam poetas, nem geôme-
tica, deveríamos dizer beleza geo- tras, etc., mas eles são tudo isso,
métrica, e beleza médica; mas e juízes dos outros. Não os adivi-
não o dizemos; e a razão está.em nhamos. Falarão daquilo de que
que conhecemos bem o objeto da se falava quando entraram. Não
geometria, o qual consiste em se percebe neles uma qualidade
provar, e o objeto da medicina, mais do que outra, a não ser
PENSAMENTOS_ 49

quando a necessidade os força a todas as minhas solicitações.


usá-la; mas então esta qualidade 3 7 - [Como não se pode ser
não mais se esquece, porque par- universal e saber tudo o que é
ticipa igualmente desse caráter a possível saber de tudo, é preciso
exigência de não se dizer, deles, saber um pouco de tudo. Pois é
que falam bem quando não se muito mais belo saber alguma
trata de linguagem; e de dizê-lo, coisa de tudo do que saber tudo
quando disso se trata. de uma coisa; essa universa-
É, pois, um falso elogio que se lidade é a mais bela. Se pudés-
outorga a um homem quando se semos ter as duas coisas seria
diz dele, ao entrar, que é hábil ótimo, mas, sendo preciso esco-
versificador; e é condenável não lher, cumpre escolher aquela, e
apelar para tal homem ao julgar- assim o sente e faz a sociedade, a
se um verso. qual é, não raro, bom juiz.]
*35 - É preciso que não se 38 - Poeta e não homem de
possa l dizer] dele: "É matemáti- bem.
co", ou "predicador", ou "elo- *39 - Se o raio caísse nos
qüente"; e sim que é um "homem lugares baixos, etc., os poetas e
de bem". ·somente essa qualidade os que só sabem raciocinar sobre
universal me apraz. É mau sinal as coisas dessa natureza carece-
lembrar-se de um livro ao ver um riam de provas.
homem, seu autor. Gostaria que *40 - Os exemplos que es-
não se recordasse nenhuma ~ua- colhemos para provar outras coi-
. lidade senão pela oportunidade sas: se quiséssemos provar os
de usá-la (Ne quid nimis), de exemplos, escolheríamos as ou-
medo que uma qualidade se real- tras coisas como exemplos; pois,
ce e se torne batizante. Que não como acreditamos sempre que a
se pense que fala bem, senão dificuldade está no que queremos
quando se tratar de bem falar, provar, achamos que os exem-
mas que se pense então. plos são mais claros e que aju-
36 - O homem é cheio de dam a prová-lo.
necessidades: só gosta dos que Assim, quando queremos mos-
podem atender a todas. "É um trar uma coisa geral, cumpre dar-
bom matemático", dirão. - Mas mos a regra particular de um
não tenho o que fazer da mate. . caso; mas, se queremos mostrar
mática; ele tomar-me-ia por uma um caso particular, teremos de
proposição. - "É um bom guer- começar pela regra [geran .
reiro." - Tomar-me-ia por uma Achamos sempre obscura a coisa
praça assediada. É preciso, pois, que queremos provar, e clara a
um homem de bem, capaz de se que empregamos na prova; pois,
acomodar, de modo ger_al, . a quando nos propomos provar ai-
50 PASCAL

guma coisa, antes de tudo nos meu comentário, minha histó-


obcecamos com a idéia de que ria", etc. Isso cheira a burguês
ela é obscura mesmo, e, ao com bens de raiz e sempre com
contrário, de que a outra, que um "meu lar" nos lábios. Anda-
deve prová-la, é clara, e ·portanto riam melhor dizendo: '~Nosso
facilmente compreensível. livro, nosso comentário, nossa
*41 - Epigramas de Marcial história", visto que, em geral, há
- O homem ama a malignidade, nisso mais bens alheios do que
não contra os caolhos ou os próprios.
desgraçados e sim contra os 44 - Desejais que falem
soberbos. Enganamo-nos de bem de vós? Não o faleis vós
outro modo. Pois a concupis- mesmos.
cência é a fonte de todos os nos- *45 - As línguas são cifras
sos movimentos, e a humanida- em que as palavras são trocadas
deª, etc. por palavras e não as letras por
É preciso agradar aos que têm letras, de modo que uma língua
sentimentos humanos e ternos. desconhecida é decifrável.
O dos dois caolhos não vale9 *46 - Fazedor de frases de
nada, porque não os consola, e espírito, mau caráter.
não faz senão acrescentar um *47 - Há quem fale bem e
pouco de sol à glória do autor. não escreva bem. O lugar e a
Tudo o que se destina apenas ao assistência os incitam e arrancam
autor nada vale. Ambitiosa reci- de seu espírito mais do que eles aí
det ornamenta 1 0 • encontram sem a incitação.
*48 - Quando num discurso
42 - Príncipe apraz apli-
se encontram palavras repetidas
cado a um rei, porque lhe diminui
e que, tentando corrigi-las, nós as
a qualidade 1 1 •
achamos tão adequadas que es-
43 - Certos autores, falando tragaríamos o discurso, cumpre
de suas obras, dizem: "Meu livro, deixá-las: marcam a personali-
dade. A inveja, que é cega, não
8 Explicação de Brunschvicg: Pascal parece sabe que essa repetição não é
querer mostrar que a concupiscência e a huma-
nidade devem juntar-se: a concupiscência pro- erro nesse lugar, pois não existe
voca a malignidade e a humanidade restringe-a regra geral.
aos que são felizes e orgulhosos. (N. do E.)
9 Epigrama. (N. do E.) *49 - Mascarar a natureza
1 0 Ele eliminará os ornamentos ambiciosos. e fantasiá-la. Não haverá mais
(Horácio, Arte Poética, 447.) rei, papa, bispo - e sim augusto
1. 1 Explicação de Brunschvicg: esta frase elíp-
monarca, etc.; nada de Paris -
tica deve compreender-se assim: o título de
príncipe, atribuído a um rei, agrada ao súdito capital do reino. Há momentos
que o atrib~i, porque diminui a qualidade do em que é necessário chamar a
soberano. A malignidade do homem agrada
esta linguagem que diminui as distâncias. (N.
Paris, Paris e, em outros momen-
do E.) tos, capital do reino.
PENSAMENTOS 51

50 - Um mesmo sentido 55 - Virtude aperitiva 1 3 de


muda segundo as palavras que o uma chave; atraente 1 4 de um
exprimem . . Os sentidos recebem gancho.
sua dignidade das palavras, em 56 - Adivinhar: "Quanto
vez de dar-lhes essa dignidade. participo de vosso desgosto''. O
Procurar exemplos ... Senhor Cardeal não queria ser
51 Pirrônico por obstina- adivinhado.
do. "Tenho o espírito cheio de
52 Ninguém diz "cartesia- inquietação." "Estou cheio de
no" 1 2 , salvo os que não o são; inquietação" é melhor.
"pedante", só o pedante; "provin- 57 - Dei-me mal com estes
cial", só o provincial, e juraria cumprimentos: "Dei-vos muito
que foi o impressor quem o colo- trabalho; receio importunar-vos;
cou no título das Cartas a um receio que isso seja longo de-
Provincial. mais": ou a gente atrai ou a gente
53 - Carro tombado (versé) irrita 1 5 •
ou derrubado (renversé ), segundo 58 - Sois importuno: "Es-
a intenção. cusai-me, por favor". Sem a escu-
Derramar (répandre) ou despe- sa eu não houvera percebido a
jar (verser), segundo a intenção. injúria. "Com seu respeito" ...
(Tese de Le M[ a1tre] sobre o cor- Nada de mal, a não ser a
doeiro à força.) desculpa.
54 - Miscelânea. Maneira de 59 - "Apagar a tocha da
falar: "Eu me quisera aplicar a sedição": demasiado luxuriante.
isto". "A inquietação de seu gênio":
1 2 Algumas edições, como a de Chevalier
duas pàlavras ousadas é demais.
(Pléiade), propõem a leitura de cortesão em
vez de cartesiano. Brunschvicg justifica sua 13
Que abre. (N. do T)
1 4
interpretação lembrando que, no manuscrito Que puxa. (N. do T.)
1
de Pascal, este pensamento é seguido por uma 5 Vide fragmento 105 desta edição, que
curta reflexão sobre Descartes (Pens. 78 nesta desenvolve e completa o pensamento de Pas-
.edição). (N. do E.) cal. (N. do E.)
ARTIGO II
Miséria do homem sem Deus

60 - Primeira parte: Misé- do conhecimento de si mesmos;


ria do homem sem Deus. das divisões de Charron que
Segunda parte: Felicidade do entristecem e aborrecem; da con-
homem com Deus. fusão de Montaigne; que este
Ou em outras palavras: tinha muito justamente sentido a
Primeira parte: A natureza falta de um método [preciso] a
está corrompida (pela própria que obviara pulando de um as-
natureza 1 6 ). sunto para outro, buscando a boa
Segunda parte: Há um repara- atmosfera.
dor (pela Escritura). Tolo projeto o seu, de se pin-
61 - Ordem - De bom tar! E isso, não de passagem, e
grado teria seguido esse discurso contra seus princípios, falhando,
de ordem da seguinte maneira: como acontece
, . a todos;
,, . mas com
para mostrar a vaidade de todo suas propnas max1mas e em
gênero de condições, mostrar a obediência a um objetivo pri-
das vidas comuns e depois a das meiro e essencial. Pois dizer toli-
vidas filosóficas pirrônicas, estói- ces por acaso e fraqueza é mal
cas; mas não conservaria a vulgar; dizê-las, porém, volunta-
ordem. Sei um pouco de que se riamente é que é insuportável, e
trata e quão pouca gente a enten- dizer algumas semelhantes a es-
de. Nenhuma ciência humana ta ...
pode conservá-la. Santo Tomás *63 - Montaigne - Os de-
não a conservou. A matemática feitos de Montaigne são grandes.
conserva-a, mas a matemática é Palavras lascivas; isso não tem
inútil em sua profundidade. valor, apesar da Mlle de Gour-
*62 - Prefácio da primeira nay 1 7 • Crédulo, gente sem olhos.
parte -- Falar dos que trataram 1 7
Mlle de Gournay publicou em 1595 a edi-
ção definitiva dos Ensaios de Montaigne; e no
1 6 Isto é: a demonstrar usando a própria
prefácio justifica Montaigne, desse ponto de
natureza. (N. do E.) vista.
54

Ignorante, quadratura do círculo, *67 - Vaidade das ciências


mundo maior. Seus sentimentos - A ciência das coisas exterio-
acerca do homicídfo voluntário, res não me consolará da igno-
da morte. Inspira indiferença rância da moral, em tempo de
pela salvação, sem temor e sem aflição; mas a ciência dos costu-
arrependimento 18 • Como seu mes me consolará sempre da
livro não foi feito para induzir à ignorância das ciências exterio-
devoção, a esta não era obrigado; res.
mas somos sempre obrigados a *68 - Não se ensina os ho-
dela não desviar ninguém. Pode- mens a serem homens de bem, e
mos desculpar-lhe os sentimentos tudo o mais se lhes ensina; e de
um tanto livres e voluptuosos em nada se jactam mais que de ser
. certos momentos de sua vida;
homens de bem. Só se vanglo-
mas não podemos desculpar-lhe
riam de saber o que não aprende-
os sentimentos pagãos sobre a
morte; porque é preciso renun- ram.
·69 - Dois infinitos, meio-
ciar a toda devoção, se não se
quer, ao menos, morr~r cristã- termo - Quando se lê depressa
mente; ora, ele só pensa em mor- demais ou demasiado devagar,
rer covardemente, docemente, em não se entende nada.
todo o seu livro. 70 - A natureza não [pode
64 - Não é em Montaigne, deter-se nos extremos]. [A natu-
mas em mim mesmo que acho reza pôs-nos de tal modo no meio
tudo o que nele vejo. que, se trocamos um lado da
*65 - O que Montaigne tem balança trocamos também o
de bom só dificilmente se adqui- outro': Je fesons, zôa trékhei 1 9 •
re. O que tem de ruim, afora os Isso me leva a crer que há molas
costumes, ter-se-ia corrigido em em nossa cabeça, dispostas de tal
·um instante, se o houvessem maneira que, se se toca uma,
advertido de que fazia muita his- toca-se também a contrária.]
tória e que falava demais de si. 71 - Muito pouco vinho ou
66 - .É preciso conhecer-se vinho em demasia: não lho dêem
a si mesmo; se isso não servisse e não poderá achar a verdade;
para encontrar a verdade, servi- dêem-lho em demasia e ocorrerá
ria ao menos para regular a vida, o mesmo.
e não há nada mais justo.
1 9
Je fesons (eu fazemos). Nessa expressão
18
Vide em Montaigne, respectivamente: popular o sujeito está no singular e o verbo no
gente sem olhos (Apologia de Raymond de plural; em Ta zôa trékhei, encontra-se a apli-
Sebond); quadratura do círculo (Ensaios, II, cação de uma regra própria da sintaxe grega: o
14); mundo maior (Apologia); homicídio vo- sujeito no plural neutro com o verbo no singu-
luntário (Ensaios, II, 3); sem temor e sem lar. Pascal assinala essas duas construções
arrependimento (Ensaios, todo o capítulo II do como prova de uma ·lei de oscilação e de um
livro IV). (N. do E.) jogo de contrapesos em nosso cérebro.
PENSAMENTOS 55

*72 - Desproporção 2 0 do e as projetemos além dos espaços


homem - [Eis aonde nos condu- imagináveis, concçbemos tão-so-
zem os conhecimentos naturais. mente átomos em comparação
Se estes não são verdadeiros, não com a realidade das coisas. Esta
há . verdade no homem; e, se o é uma esfera infinita cujo centro ·
são, ele de~cobre nisso um gran- se encontra em toda parte e cuja
de motivo de humilhação; e, uma circunferência não se acha em
vez que não pode subsistir sem nenhuma. E o fato de nossa
crer neles, desejo, antes de entrar imaginação perder-se nesse pen-
em maiores indagações acerca da samento constitui, em suma, a
natureza, que ele a considere uma maior característica sensível da
vez seriamente e com vagar, que onipotência de Deus.
se observe também a si mesmo e Que o homem, voltado para si
julgue se tem alguma proporção próprio, considere o que é diante
com ela ... ] Que não se atenha, do que existe; que se encare
pois, a olhar para os objetos que como um ser extraviado neste
o cercam, simplesmente, mas canto afastado da natureza, e ·
contemple a natureza inteira na que, da pequena cela onde se
sua alta e plena majestade. Con- acha preso, isto é, do universo,
sidere essa brilhante luz colocada aprenda a avaliar em seu valor
acima dele como uma lâmpada exato a terra, os reinos, as cida-
eterna para iluminar o universo e des e ele próprio. Que é um
que a terra lhe apareça como um homem dentro do infinito?
ponto na órbita ampla desse Quero, porém, apresentar-lhe
astro, e que se maravilhe de ver outro prodígfo igualmente as-
que essa amplitude tampouco sombroso, colhido nas coisas
passa de um ponto insignificante mais delicadas que conhece. Eis
na rota dos outros astros que se uma lêndea que, na pequenez de
espalham pelo firmamento. Mas seu corpo, contém partes incom-
se nossa vista aí se detém, que paravelmente menores; pernas
nossa imaginação não pare; mais com articulações, veias nessas
rapidamente se cansará de conce- pernas, sangue nessas veias, hu-
ber que a natureza de revelar. mores nesse sangue, gotas nesses
Todo esse mundo visível é apenas humores, vapores nessas gotas;
um traço imperceptível na ampli- dividindo-se estas últimas coisas,
dão da natureza, que nem sequer esgotar-se-ão as capacidades de
nos é dado conhecer mesmo de concepção do homem, e estare-
um modo vago. Por mais que mos, portanto, ante o último ob-
ampliemos as nossas concepções jeto a que possa chegar o nosso
discurso. Talvez ele imagine,
20 Variante: incapacidade. (N. do T.) então, ser essa a menor coisa da
5.6 PASCAL

natureza. Quero mostrar-lhe, nada; um ponto intermediário


porém, dentro dela um novo abis- entre tudo e nada. Infinitamente
mo. Quero pintar-lhe não somen- incapaz de compreender os extre-
te o universo visível mas também mos, tanto o fim das coisas como
a imensidade concebível da natu- o seu princípio permanecem
reza dentro dessa parcela de ocultos num segredo impene-
átomo. Aí existe uma infinidade trável, e é-lhe igualmente impos-
de universos, cada qual com o sível ver o nada de onde saiu e o
seu firmamento, seus planetas, infinito que o envolve.
sua terra em iguais proporções às Que poderá fazer, portanto,
do mundo visível; e nessa terra senão perceber l alguma] aparên-
há animais e neles essas lêndeas, cia das coisas num eterno deses-
em que voltará a encontr~r o que pero por não poder conhecer nem
nas primeiras observou. D~para­ seu princípio nem seu fim? Todas
rá assim, por toda parte, sem ces- as coisas saíram do nada e foram
sar, infindavelmente, com a levadas para o infinito; quem
mesma coisa, e perder-se-á nes- seguirá estes caminhos assom-
sas maravilhas tão assombrosas brosos? O autor destas maravi-
na sua pequenez quanto nas ou- lhas conhece-as; e ninguém mais.
tras na sua magnitude. Pois Por não haver meditado sobre
como não admirar que nosso esses infinitos, puseram-se os ho-
corpo há pouco imperceptível no mens temerariamente a investigar
universo, imperceptível no todo, a natureza, como se tivessem ai
se torne um colosso, um mundo, guma proporção com ela. E é
ou melhor, um todo em relação estranho que tenham querido
ao nada a que não se pode compreender os princípios das
chegar? coisas, e assim chegar ao conhe-
Quem assim raciocinar há de cimento do todo, através de uma
apavorar-se de si próprio e, con- presunção tão infinita quanto o
siderando-se apoiado na massa seu objetivo. Pois não há dúvida
que a natureza lhe deu, entre de que é impossível conceber tal
esses dois abismos do infinito e desígnio sem presunção ou sem
do nada, tremerá à vista de tantas capacidade infinita, como a natu-
maravilhas; e creio que, transfor- reza.
mando sua curiosidade em admi- Quando se estuda, compreen-
ração, preferirá contemplá-las em de-se que, tendo a natureza gra-
silêncio a investigá-las com pre- vado sua imagem e a de seu autor
sunçao. em todas as coisas, todas partici-
Afinal, que é o homem dentro pam de seu duplo infinito. Assim,
da natureza? Nada em relação ao todas as ciências são infinitas na
infinito; tudo em relação ao amplitude de suas investigações,
PENSAMENTOS 57

pois quem duvidará, por exem- Acreditamos muito natural-


plo, de que a geometria tenha mente sermos mais capazes de
uma infinidade de infinidades de alcançar o centro das coisas que
teoremas a serem expostos? São de abraçar-lhes a circunferência;
infinitas também na multidão e a extensão visível do mundo
na delicadeza de seus princípios, ultrapassa-nos manifestamente;
pois quem não percebe que aque- porém, como ultrapassamos as
les que se consideram últimos coisas pequenas, acreditamo-nos
não se sustentam sozinhos, mas mais capazes de possuí-las; en-
se apóiam em outros, os quais, tretanto, não nos falta menos
tendo por sua vez outros por capacidade para chegar ao nada
apoio, nunca são os últimos? do que para chegar ao todo; para
Nós, porém, consideramos últi- um, como para outro, falta-nos
mos os que parecem últimos à uma capacidade infinita, e creio
nossa razão, tal qual fazemos que quem tivesse compreendido
com as coisas materiais, em que os princípios últimos das coisas
denominamos ponto indivisível chegaria também a conhecer o
aquele para além do qual os nos- infinito. Uma coisa depende da
sos sentidos nada mais distin- outra, e uma conduz à outra.
guem, embora continue divisível Esses extremos se tocam e se
independentemente por sua pró- unem, à força de se afastarem, e
pria natureza. se reencontrarem em Deus e
Desses dois infinitos da ciên- somente em Deus.
cia, o infinitamente grande é o Conheçamos, pois, nossas for-
mais sensível; por isso, poucas ças; somos algo e não tudo; o
pessoas tiveram a pretensão de que temos que ser priva-nos do
conhecer todas as coisas. "Vou conhecimento dos primeiros prin-
falar de tudo", dizia Demócrito. cípios que nascem do nada; e o
Porém, o infinitamente peque- pouco que temos de ser impede-
no é muito menos visível. A ele nos a visão do infinito.
pretenderam chegar os filósofos, Nossa inteligência ocupa,
entretanto; e nisso é que tropeça- entre as coisas inteligíveis, o
ram todos. Isso é que deu azo a mesmo lugar que no'sso corpo na
títulos tão freqüentes quanto magnitude da natureza.
estes: Do Princípio das Coisas, Limitados em tudo, esse termo
Do Princípio da Filosofia, e que- médio entre dois extremos encon-
jandos, tão pretensiosos efetiva- tra-se em todas as nossas forças.
mente, embora menos, aparente- Nossos sentidos não percebem os
mente, do que esse outro que extremos: um ruído demasiado
entra pelos olhos: De Omni Sci- forte ensurdece-nos, demasiada
bili. luz nos deslumbra, demasiada
58 PASCAL

distância ou demasiada proximi- lado para outro. Qualquer objeto


dade impedem-nos de ver, dema'"" a que pensemos apegar-nos e
siada longitude ou demasiada consolidar-nos abandona-nos e,
concisão do discurso o bscure- se o perseguimos, foge à perse-
cem-nos, demasiada verdade nos guição-. Escorrega-nos entre as
assombra (sei de alguém que não mãos numa eterna fuga. Nada se
pode compreender que, quem de detém por nós. É o estado que
zero tira quatro, obtém zero); os nos é natural e, no entanto, ne-
primeiros princípios têm dema- nhum será mais contrário à nossa
siada evidência para nós outros; inclinação. Ardemos no desejo de
demasiado prazer incomoda, de- encontrar uma plataforma firme
masiada consonância aborrece e uma base última e permanente
na música, e mercês em demasia para sobre ela edificar uma torre
irritam, pois queremos ter com que se erga até o infinito; porém,
que pagar a dívida: Beneficia eo os alicerces ruem e a terra se abre
usque laeta suni dum videntur até o abismo.
exsolvi posse; ubi multum ante- Não procuremos, pois, segu-
venere, pro grafia odium- reddi- rança e firmeza. Nossa razão é
tur21. Não sentimos nem o extre- sempre iludida pela inconstância
mo calor, nem o frio extremo; as das aparências e nada pode fixar
qualidades excessivas são nossas o finito entre os dois infinitos que
inimigas, não são sensíveis; não o cercam e dele se afastam.
as se-ntimos, sofremo-las. Dema- Desde que compreendamos
siada juventude ou demasiada isso, creio que nos manteremos
velhice tolhem o espírito, bem • tranqüilos, cada um no estado em
como dem~siada ou insuficiente a
que natureza o colocou. Como
instrução. Em suma, as coisas esse termo médio, que nos coube
extremas são para nós como se por destino, se situa sempre longe
não existissem, não estamos den- dos extremos, que importa que
tro de suas proporções: esca- um homem tenha um pouco mais
pam-nos ou lhes escapamos. inteligência das coisas? Se a
Eis o nosso ·estado verdadeiro, tiver, as verá de um pouco mais
que nos torna ipcapazes de saber alto. Mas não se achará sempre
com segurança e de ignorar total- infinitamente l afastado] da meta,
mente. Nadamos num meio- e a duração de nossa vida, por
termo vasto, sempre incertos e durar dez anos mais, não será
flutuantes, empurrados de um igualmente ínfima na eternidade?
'
2 1
Os benefícios são ~gradáveis enquanto Diante desses infinitos, todos
pensamos poder devolvê-los; mais além, o os finitos são iguais; e não vejo
reconhecimento se transforma em ódio. (Táci-
to, Anais, IV, 18, citado por Montaigne, razão para basear a imaginação
Ensaios, Ili, 8.) · num deles de preferência a outro.
PENSAMENTOS 59

A simples comparação entre nós natural e insensível que une as


e o infinito nos acabrunha. mais afastadas e diferentes, esti-
Se o homem se estudasse a si mo impossível conhecer as partes
mesmo antes de mais nada, per- sem conhecer o todo, bem como
ceberia logo a que ponto é inca- conhecer o todo sem entender
paz de alcançar outra coisa. particularmente as partes.
Como poderia uma parte conhe- [A eternidade das coisas, em si
·cer o todo? Mas a parte pode ter., mesma ou em Deus, deve assom-
pelo menos, a ambiçãQ. de conhe- brar a nossa ínfima duração. A
cer as partes, as quais cabem imobilidade fixa e con·stante da
dentro de suas próprias propor- natureza, em comparação com a
ções. Mas as partes do mundo transformação contínua que se
têm todas tais relações e tal enca- verifica em nós, deve causar-nos
deamento umas com as outras o mesmo efeito.]
que considero impossível com- E o que completa a nossa
preender uma sem · alcançar as incapacidade de conhecer as coi-
outras, e sem penetrar o todo. sas é o fato de serem simples em
O homem, por exemplo, está si, enquanto nós somos compos-
em relação com tudo o que tos por duas naturezas antagô-
conhece. Tem necessidade de es- nicas e de gêneros diversos, alma
paço que o contenha, de tempo e corpo. Pois é impossível que a
para durar, de movimento para parte raciocinante de nós mes-
viver, de elementos que o consti- mos não seja unicamente espiri-
tuam, de alimentos e calor que o tual; e, se pretenderem que somos
nutram, de ar para respirar; vê a tão-somente corporais, afastarão
luz, percebe os corpos, em suma, ainda mais de nós o conheci-
tudo se alia a ele próprio. Para mento das coisas, porquanto
conhecer o homem, portanto, nada é mais inconcebível do que
mister se faz saber de onde vem o dizer que a matéria se conhece a
fato de precisar de ar para subsis- si própria; n~ podemos conce-
tir; e para conhecer o ar é neces- ber de que maneira se conheceria.
sário compreender donde provém . Assim, se [somos] simplesmente
essa sua relação com a vida do materiais nada podemos conhe-
homem, etc. A chama não sub- cer; e se · somos compostos de
siste sem o ar; o conhecimento de espírito e matéria não podemos
uma coisa liga-se, pois, ao conhe- conhecer perfeitamente as coisas
cimento de outra. E como todas simples, espirituais ou corporais.
as coisas são causadoras e causa- Daí a confusão generalizada
das, auxiliadoras e auxiliadas, entre quase todos os filósofos que
mediatas e imediatas, e todas se misturam as idéias das coisas,
acham presas por um vínculo falando espiritualmente das coi-
60 PASCAL

sas corporais e corporalmente Mas, para concluir a prova de


das coisas espirituais. Dizem, nossa fraqueza, terminarei com
ousadamente, que as coisas ten- estas duas considerações ...
dem a cair, que aspiram ao cen- 73 - Mas talvez este assun-
tro, que fogem à sua destruição,to ultrapasse o alcance da razão.
que temem o vácuo, que têm Examinemos, pois, suas inven-
inclinações, simpatias, antipatias,
ções acerca das coisas de sua
qualidades todas que somente ao competência. Se algo existe em
espírito pertencem. E, referindo-
que seu próprio interesse deva
se ao espírito, consideram-no tê-la aplicado seriamente, é a
como se estivesse em determi- procura do soberano bem. Veja-
nado espaço, e lhe atribuem a mos, portanto, onde essas almas
capacidade de movimentar-se de fortes e clarividentes o coloca-
um lugar a outro, coisas que per-:
ram, e se estão de acordo a
tencem apenas aos corpos. respeito.
Em vez de recebermos a idéia Um diz que o soberano bem
pura das coisas, tingimo-la com está na virtude, outro na volúpia;
nossas qualidades e impreg- um na ciência da natureza, outro
namos de nosso ser composto na verdade: Felix qui potuit
todas as coisas simples que con-rerurh cognoscere causas 2 3 ,
templamos. ·
Quem não acreditaria, ao ver-outro na ignorância total, oucro
na indolência, outros em resistir
nos juntar as coisas do espírito e
do corpo, que tal mescla nos é às aparências, outros em nada
muito compreensível? No entan.:.admirar, nihil mirari prope res
to, é essa a coisa que menos se una quae p.ossit facere et servare
compreende. O homem é, em si beatum 2 4 , e os verdadeiros pirrô-
mesmo, o objeto mais prodigioso nicos em sua ataraxia, dúvida e
da natureza; pois não pode con- suspensão perpétua; e outros,
ceber nem o que é corpo nem, mais sábios, pensam achar coisa
menos ainda, o que é espírito e,um pouco melhor. Estamos real-
ainda menos, de que modo pode mente bem avançados!
um corpo unir-se a um espírito. Transpor para depois das leis
Essa a sua dificuldade máxima e,no título seguinte.
não obstante, a sua própria es-
Cabe ainda ver se essa bela
sência: Modus quo corporibus filosofia nada adquiriu de certo,
adhaerent sp iritus comprehendi
ab hominibus non potest, et hoc mediante tão longo trabalho, e
tamen homo est 2 2. - tão tenso. Talvez, ao menos, a
23
2 2
Feliz o que pode conhecer a_s causas das
A maneira por que se acha o espírito unido coisas. (Virgílio, Geórgicas, II, 489.)
ao corpo não pode ser compreendida pelo 2 4 Não se espantar de nada: eis, mais ou
homem e, não obstante, é o homem. (Santo menos, a única coisa que pode dar e conservar
Agostinho, A Cidade de Deus, XXI, 10, citado a felicidade. (Horácio, Epodos, I, VI, 1.)
por Montaigne.)
PENSAMENTOS 61

alma venha a conhecer-se a si da ciência humana e da.filosofia.


mesma. Ouçamos os regentes do Essa carta antes do diverti-
mundo a esse respeito. Que pen- mento.
saram de sua substância? 394 2 5 • Felix qui potuiL . . Nihil ad-
Foram mais felizes em situá-la? mirari2 8 •
395. Que descobriram acerca de Duzentas e oitenta espécies de
sua origem, sua duração, seu soberanos bens em Montaigne 2 9 •
ponto de partida? 399. 7 5 - Part. 1, 1. 2., c. 1, seção
Será, pois, a alma um assunto 4.
ainda nobre demais para tão fra- Conjetura. Não será difícil
cas luzes? Nivelemo-la à matéria, fazê-la descer mais um degrau e
vejamos se sabe de que é feito o torná-la aparentemente ridícula.
próprio corpo, que ela anima, e Pois, para começar com ela
os outros que contempla e arran- própria haverá coisa mais ab-
ja como bem entende. Que soube- surda do que dizer que os corpos
ram disso esses grandes dogmá- inanimados têm paixões, temo-
ticos que nada ignoram? H arum res, horrores? Que corpos insen-
sententiarum, 393 2 6 • síveis, sem vida e até incapazes
Isso bastaria, sem dúvida, se a de vida, têm paixões que pressu-
razão fosse razoável. Ela o é bas- põem, pelo menos, uma alma
tante para confessar que nada sensível para senti-las? Que,
encontrou ainda de firme; mas além disso, o objeto desse horror
não desespera de consegui-lo l ao é o vácuo? Que haverá no vácuo
contrário, mostra-se mais ardo- suscetível de amedrontá-los? Que
rosa do que nunca nessa pesqui- haverá mais vil e ridículo? Não é
sa, e confia em que possui as for- tudo: mesmo que tenham em si
ças necessárias a essa conquista. próprios um princípio de movi-
Cumpre, pois, acabá=-la. E, após mento para evitar o vácuo, terão
ter examinado suas forças em braços, pernas, músculos, ner-
seus efeitos, reconhecê-las em si vos?
mesmas; vejamos se tem algumas 7 6 - Escrever contra os que
forças 2 7 e algumas possibili- aprofundam demais as ciências.
dades de apreender a verdade] . Descartes.
74 - Uma carta da loucura 77 - Não posso perdoar
Descartes; bem quisera ele, em
2 5 Por meio destes números Pascal refere-se a
toda a sua filosofia, passar sem
certos passos da Apologia de Raymond de.
Sebond, de Montaigne. Deus, mas não pôde evitar de
2 6 Destas opiniões, qual a verdadeira? Só um

Deus poderia julgar. (Cícero, Tusculanas, I, 2 8


Feliz aquele que pode não se admirar de
11.) Citação completa: Harum sententiarum nada.
quae vera sit, Deus aliquis viderit. (N. do E.) 29 Montaigne refere-se a um cálculo de Var-
2 7 Brunschvicg propõe a leitura de formas. rão, segundo o qual a questão do "soberano
Os comentadores mais modernos, porém, pre- bem do homem" provocou o aparecimento de
ferem.forças. (N. do E.) duzentas e oitenta e oito seitas. (N. do E.)
62 PASCAL

fazê-lo dar um piparote para pôr nossa escolha; pois temos que
o mundo em movimento; depois preferir nossas luzes às alheias e
do que, não precisa mais de isso é difícil e ousado. Não há
Deus. nuncà semelhante contradição no
78 - Descartes: inútil e in- que concerne a um coxo.
certo. *81 - O espírito crê natural-
79 - [Descartes - Cumpre mente, e a vontade ama natural-
dizer, grosso modo: "Isso se faz mente; de modo que, na ausência
por figura e movimento", porque de objetivos verdadeiros, se ape-
isso é verdadeiro; mas dizer gam aos falsos.
quais e montar a máquina é ridí- *82 - Imaginação - É essa
culo, pois é inútil e incerto, e parte enganadora 3 0 no homem,
penoso. E ainda que fosse verda- essa senhora de erro e falsidade,
deiro, não acreditamos que toda tanto mais velhaca quanto não o
a filosofia valha uma hora de é sempre; pois seria regra infalí-
trabalho.] vel da verdade, se o fosse infalí-
*80 - Como se explica que vel da mentira. Mas, sendo o
um coxo não nos irrite e um espí- mais das vezes falsa, não dá
rito coxo nos aborreça? É que o nenhuma marca de sua qualida-
coxo reconhece que andamos de, emprestando o mesmo caráter
direito, e um espírito coxo afirma ao verdadeiro e ao falso.
que . nós é que mancamos; se Não falo dos loucos, falo dos
assim não fosse, teríamos pieda- mais sábios, e é entre eles que a
de e não raiva. imaginação tem o grande dom de
Epitecto pergunta com mais persuadir os homens. Por mais
ênfase: "Por que não nos zanga- que a razão grite, não pode valo-
mos se nos dizem que temos dor rizar as coisas.
de cabeça e nos zangamos se nos Essa soberba potência inimiga
dizem que raciocinamos mal, ou da razão, que se comp!'."az em
que escolhemos mal?" A razão controlá-la e em dominá-la para
está em que temos inteira certeza mostrar quanto pode em todas as
de não sentir dor de cabeça e de coisas, estabeleceu no homem
não sermos coxos; mas já não uma segunda natureza. Tem seus
estamos igualmente certos de ter felizes, seus infelizes, seus sãos,
escolhido bem. De modo que, seus doentes, seus ricos, seus
não estando ·seguros senão acerca pobres; faz crer, duvidar, negar a
do que vemos corri nossa vista, razão; suspende os sentidos, fá-
quando outro vê com vista con- los sentir; tem seus loucos e seus
trária, suspendemos nosso juízo e
30
nos espantamos, e mais ainda Brunschvicg, seguindo Tourneur, prefere a
leitura dominante à décevante (enganadora).
quando mil outros zombam de (N. do E.)
PENSAMENTOS 63

sábios: e nada nos despeita mais ardor da caridade. Ei-lo pronto a


do que ver que enche seus hóspe- ouvir' com respeitá exemplar.
des de uma satisfação bem mais Que o pregador apareça: se a
plena e completa do que a razão. natureza lhe deu uma voz rou-
Os hábeis por imaginação com- quenha e uma fisionomia esquisi-
prazem-se muito mais em si mes- ta, se o barbeiro o barbeou mal,
mos do que os prudentes o conse- se, por acaso, ainda por cima, o
guem razoavelmente. Observam lambuzou, por maiores que sejam
as pessoas com autoridade; dis- as verdades que anuncia, aposto
putam com ousadia e confiança; na perda da gravidade do nosso
os outros, com medo e descon- senador.
fiança: essa alegria visível dá- O maior filósofo do mundo,
lhes muitas vezes vantagem na sobre uma tábua, por mais larga
opinião dos ouvintes, de tal ma- que seja, se houver embaixo um
neira os sábios imagmanos precipício, embora a razão o con-
gozam de favor junto aos juízes vença de sua segurança, a imagi-
de idêntica natureza! Não pode nação prevalecerá. Muitos não
tornar sábios os loucos; mas os poderiam pensar sequer nisso
torna felizes, ao contrário '. da sem empalidecer e suar.
razão, que só pode tornar seus Não pretendo relatar todos os
amigos miseráveis; uma cobrin- seus efeitos.
do-os de glória, a outra de vergo- Quem não sabe que a visão
nha. dos gatos, dos ratos, o esmaga-
Quem dispensa a reputação? mento de um carvão, etc., põem a
Quem dá o respeito e a veneração razão fora dos eixos? O tom de
às pessoas, às obras, às leis, aos voz impressiona os mais sábios e
grandes, se não essa faculdade modifica um discurso e um
imaginativa? Como todas as ri- poema.
quezas da terra [são] insufi- A afeição ou o ódio mudam a
cientes sem o seu consentimento ! face da justiça: e quanto um
Não diríeis que esse magis- advogado, bem pago adiantada-
trado, cuja veihice venerável mente, acha mais justa a causa
impõe respeito a .todo um povo, que defende! Quanto o seu gesto
se governa por uma razao pura e ou.sado a faz parecer melhor aos
sublime e que julga as coisas na juízes enganados por esta aparên-
sua natureza, sem se deter nessas cia! Razão divertida que um
vãs circunstâncias que só ferem a vento move em todos os senti-
imaginação dos fracos? Vêde-o dos!
entrar, para assistir ao sermão Eu relacionaria quase todas as
com um zelo todo devoto, refor- ações dos homens que quase só
çando a solidez da r-azão pelo se abalam com suas sacudidelas.
64 PASCAL
1

Pois a razão foi obrigada a ceder, nerável · por s1 própria. Como,


e a mais sábia toma como seus porém, possuem apenas ciências
princípios os que a imaginação ·imaginárias, precisam tomar
dos homens temerariamente in- esses instrumentos vãos que im-
troduziu em cada lugar. pressionam as imaginações com
[Quem quisesse seguir apenas que lidam; e destarte, com efeito,
a razão seria louco perante o atraem o respeito. Só os homens
juízo do homem comum. É preci- de guerra não estão disfarçados
so julgar de acordo com o julga- assim, porque na realidade a sua
mento da maior parte do mundo. parte é mais essencial: estabek-
É preciso, pois isso lhe apraz, cem-se pela força, ao passo que
trabalhar o dia todo para alcan- os outros o fazem pela aparência.
çar bens reconhecidos como ima- Eis por que os nossos reis nãó
ginários, e, quando o sono repara buscaram tais disfarces. Não se
as fadigas de nossa razão, cum- mascararam com hábitos ex-
pre-nos levantar incontinenti, traordinários para se apresen-
para correr atrás de fumaças e tarem como tais; mas estão
experimentar as impressões dessa acompanhados de guardas e de
senhora do mundo. Eis um dos q.labardas: essas carrancas arma-
princípios do erro, embora não o das que só têm mãos e força para
único.] eles, as trombetas e os tambores
Os nossos magistrados conhe- que marcham à sua frente, e
ceram bem esse mistério. As suas essas legiões que os cercam,
togas vermelhas, os arminhos fazem tremer os mais firmes.
com que se enfaixam como gatos Não têm o hábito somente, têm a
peludos, os palácios em que jul- força. Seria preciso possuir uma
gam, as flores-de-lis, todo esse razão bem depurada para obser-
aparato augusto era muito neces- var como um homem qualquer o·
sário: e, se os médicos não tives- grão-senhor rodeado, em seu so-
sem sotainas e galochas, e os berbo serralha, por quarenta mil
doutores não usassem borla e ca- janízaros.
pelo e túnicas muito amplas de Não podemos mesmo ver um
quatro partes, nunca teriam enga- advogado de sotaina e borla sem
nado o mundo, que não pôde uma opinião favorável de sua
resistir a essa vitrina tão autên- suficiência.
tica. Se possuíssem a verdadeira A imaginação dispõe de tudo;
justiça e se os médicos fossem faz a beleza, a justiça e a felici-
senhores da verdadeira arte de dade, que é tudo no mundo. Eu
curar, não teriam o tjue fazer da desejaria de bom grado ler o livro
borla e do capelo; a majestade italiano, do qual só conheço o tí-
destas ciências seria bastante ve- tulo, que vale sozinho muitos
PENSAMENTOS 65

livros, Della Opinione, Regina Temos outro princípio de erro:


del Mondo. Subscrevo-o sem o as enfermidades. Elas nos pertur-
conhecer, salvo o mal, se nele bam o julgamento e os sentidos.
existe algum. E, se as grandes os alteram sensi-
Eis, aproximadamente, os efei- velmente, é de crer que as peque-
tos dessa faculdade é'.nganosa que nas também os impressionem
parece nos ser dada de propósito proporcionalmente.
para induzir-nos a um erro neces- Nosso interesse é ainda um
sário. Temos muitos outros prin- instrumento maravilhoso para
cípios sobre este assunto. · nos vazar os olhos agradavel-
Não são as impressões antigas mente. Não é permitido ao
as únicas capazes de nos iludir; homem mais eqüitativo julgar em
os encantos da novidade têm causa própria. Conheço alguns
igual poder. D aí provêm todas as que, para não sucumbir a esse
disputas dos homens, que tanto amor-próprio, foram os mais in-
se censuram por seguir as falsas justos do mundo em sentido
impressões de sua infância Õu contrário: o meio mais seguro de
por correr temerariamente atrás perder uma causa justa consistia
das novas. Quem se atém a um em fazer-lha recomendar por
justo equilíbrio? Que apareça e seus parentes mais próximos,
prove. Não há princípio, por A justiça e a verdade são duas
natural que seja, mesmo desde a pontas tão sutis que nossos ins-
infância, que não se faça passar trumentos se revelam demasiado
.por falsa impressão, ou da educa- grosseiros para as tocar exata-
ção ou dos sentidos. mente. Se porventura o conse-
"Porque acreditastes desde a guem, desaguçam-nas, e
infância que um cofre se achava apóiam-se em torno, mais sobre o
vazio, por nele não verdes nada", falso do que sobre o verdadeiro.
dizem-nos, "acreditais ser possí- [O homem é pois fabricado
vel o vácuo. É uma ilusão de vos- com tanta felicidade que não tem
sos sentidos, fortalecida pelo há- nenhum [princ(Pio] justo do que
bito e que a ciência · precisa é verdadeiro e muitos excelentes
corrigir." E dizem outros: "Por- do que é falso. Vejamos agora
que vos disseram na escola que o quantos. . . Mas a causa mais
vácuo não existe, corromperam forte desses erros é a guerra que
vosso bom senso que o com- existe entre os sentidos e a
preendia tão nitidamente, antes razão.]
dessa má impressão, que cabe 83 - Cumpre começar por
corrigir recorrendo à vossa pri- aí o capítulo das forças engana-
meira natureza". Quem enga- dorasº O homem não passa de
nou? O sentido ou a instrução? um sujeito cheio de erro, natural
66 PASCAL

e indelével s.em a graça. Nada lhe licius sit homine cui suafigmenta
mostra a verdade. Tudo o ilude. dominantur (Plín.) 3 1 •
Os dois princípios das verdades, 88 - As crianças, que se
a razão e os sentidos, além de amedrontam com a careta que
carecerem de sinceridade, ilu- desenham, são crianças; mas
dem-se mutuamente. Os sentidos, como conseguir que o que é
com suas falsas aparências, enga- assim tão fraco, em criança, se
nam a razão; e essa mesma frau- torne forte, mais tarde? Muda-se
de que oferecem à razão rece- apenas de fantasia. Tudo o que se
bem-na dela~ por sua ·vez. Ela aperfeiçoa pelo progresso tam-
revida. As paixõ~s da alma per- bém perece com ele. Tudo o que
turbam os sentidos e provocam- foi fraco nunca será inteiramente
lhes falsas impressões. Eles men- forte. Por mais que se diga: cres-
tem e se enganam à porfia. ceu, mudou; a verdade é que tam-
Mas, além desses erros que bém continua sendo o mesmo.
ocorrem por acidente e falta de 89 - O hábito é nossa natu-
inteligência, entre estas faculda- reza. Quem se habitua à fé crê, e
des heterogêneas ... não pode deixar de temer o infer-
*84 - A imaginação amplia no; e não crê em outra coisa.
os pequenos objetos até encher- Quem se habitua a crer que o rei
nos a alma com eles, em uma é terrível, etc. . . Quem duvida,
avaliação fantasista; e numa in- pois, de que nossa alma, estando
solência temerária diminui os habituada a ver número, espaço,
grandes e os reduz à sua medida, movimento, creia nisso e somente
como ao falar de Deus. nisso?
90 - Quod crebro videt non
*85 -- As coisas que mais miratur, etiamsi cur fiat nescit;
prezamos, como esconder a quod ante non viderit, id si evene-
nossa pequena fortuna, não são, rit, ostentum esse censet (Cic.)3 2.
amiúde, quase nada. São um Nae iste magno conatu magnas
vazio que nossa imaginação am- nugas dixerif3 3.
plia. Outro passe da imaginação 91 - Spongia solis 3 4 •
no-lo faz descobrir sem dificul- Quando vemos um efeito repetir-
dade.
86 Minha fantasia impe- 3 1
Como se houvesse algo mais desgraçado
le-me a odiar um indivíduo que do que um homem dominado pela imaginação
(Plínio, II, 7).
grasna ou que come ofegando. A 32
Um sucesso freqüente não nos surpreende,
fantasia pesa muito. Que pro- mesmo quando lhe ignoramos a causa· um
a~o.ntecim~nto que nunca vimos passa po; pro-
veito tiraremos disso? Seguir esse d1g1oso (C1cero, De Divinatione, II, 49).
peso por ser natural? Não. Mas 33
Ei-lo que vai dizer com grande esforço
grandes tolices. . . (Terêncio, Heautontimoru-
resistir ... menos, IV, 8).
87 - Quasi quidquam infe- 3 4
Manchas do sol.
PENSAMENTOS 67

se seguidamente, concluímos tra- mentos, pois a razão torna os


tar-se de uma necessidade natu- sentimentos naturais e os senti-
ral: amanhã será dia, etc. Mas mentos naturais se extinguem
não raro a natureza nos desmente pela razão.
e não se submete a suas próprias 96 - Quando se está acostu-
leis. mado a valer-se de más razões
*92 - Que são nossos prin- para provar os efeitos da nature-
cípios naturais, senão princípios za, não se quer mais acolher as
de hábitos? E nas crianças, os boas- quando descobertas. O
que receberam com os hábitos exemplo foi dado a respeito da
dos pais, como a caça entre os circulação do sangue, para expli-
animais? car de maneira racional por que a
Hábitos diferentes dão-nos veia incha sob a atadura.
princípios naturais diversos, é o *97 - A coisa mais impor-
que nos prova a experiência e, se tante na vida é a escolha de uma
existem princípios que o hábito profissão. É o acaso que dispõe.
não pode fazer desaparecer, há- O costume faz os pedreiros, sol-
os também do costume contra a dados, empalhadores. "É um ex-
natureza, inapagáveis por esta, celente empalhador", diz-se; e,
ou por um segundo costume. falando dos soldados: "São
Tudo depende da disposição. muito loucos"; mas outros, ao
*93 - Temem os pais que o contrário: "Não há nada de gran-
amor natural de seus filhos se de fora da guerra; os demais ho-
extinga. Que espécie de natureza mens são velhacos." À força de
será essa então, suscetível de ouvir louvar na infância esses ofí-
extinção? O hábito é uma segun- cios e desprezar todos os outros,
da natureza que destrói a primei- escolhe-se; ama-se naturalmente
ra. Mas que é a natureza? Por a virtude e odeia-se a loucura.
que não é o hábito natural? Re- Essas palavras nos comovem; se
ceio muito que essa natureza não pecamos, é na aplicação; tão
seja ela própria senão um pri- grande é a força do costume que,
meiro hábito, assim como o hábi- daqueles que a natureza fez ape-
to uma segunda natureza. nas homens, se fazem todas as
94 - A natureza do homem condições dos homens; com efei-
é toda natureza, omne animal. to, em certas regiões todos são
Não há nada no mundo que pedreiros, e noutras, todos solda-
não se torne natural. Não há dos, etc. Sem dúvida, a natureza
natural que não se perca. não é tão uniforme. É, pois, o
9 5 - A memória, a alegria costume que faz isso, constran-
são sentimentos; e até as proposi- gendo a natureza; e, às vezes,
ções geométricas fazem-se senti- também, a natureza o vence e
68 PASCAL

retém o homem no seu instinto, e não considerar senão a si. A


malgrado o costume, bom ou que pode levar? Não poderá
mau. impedir que esse objeto que ama
98 - A prevenção induzindo esteja cheio de defeitos e misé-
em erro - É lamentável ver rias: quer ser grande e acha-se
todos os homens deliberarem pequeno; quer ser feliz e acha-se
apenas sobre os meios e não miserável; quer ser perfeito e
sobre os fins. Cada qual pensa acha-se cheio de imperfeições;
em como desempenhar a sua con- quer ser o objeto do amor e da es-
dição; mas a escolha da condição tima dos homens, e vê que seus
e da pátria é função da sorte. É defeitos só merecem deles aver-
lamentável ver tantos turcos, he- são e desprezo. Esse embaraço
réticos, infiéis, seguirem o cami- em que se acha produz nele a
nho de seus pais, pela única mais injusta e criminosa paixão
razão de terem sido induzidos na que se possa imaginar; pois con-
prevenção de que este era o cebe um ódio mortal contra essa
melhor. Eis o que determina a verdade que o repreende e o con-
condição de cada um, serra- vence de seus defeitos. Desejaria
lheiro, soldado, etc. aniquilar essa verdade e, não
Por isso é que os selvagens não podendo destruí-la em si mesmo,
sabem que fazer da Provença. a destrói quanto pode em seu
*99 - Há diferença essencial conhecimento e no dos outros;
e universal entre as ações da von- isto é, põe todo o seu cuidado em
tade e todas as outras. encobrir os próprios defeitos a si
A vontade é um dos principais mesmo e aos outros, e não supor-
órgãos da crença, não porque ta que o façam vê-los, nem que os
forme a crença, mas porque as vejam.
coisas são verdadeiras ou falsas É, sem dúvida, um mal ter tan-
segundo o ângulo pelo qual as tos defeitos; mas é ainda um mal
encaramos. A vontade, que se maior estar cheio deles e não
apraz mais em um do que em querer reconhecê-los, pois é ajun-
outro, desvia o espírito da consi- tar-lhes ainda o de uma ilusão
deração das qualidades que não voluntária. Não queremos que os
quer ver; assim, o espírito, mar- outros nos enganem; não acha-
chando de comum acordo com a mos justo que queiram ser esti-
vontade, detém-se á olhar do ân- mados por nós mais do que mere-
gulo que esta aprecia. Julga-se cem; não é, portanto, justo
desse modo pelo que se vê. - também que os enganemos e
100 - Amor-próprio - A queiramos que nos estimem mais
natureza do amor-próprio e desse do que merecemos.
eu humano é não amar senão a si Assim, quando os outros só
PENSAMENTOS 69

descobrem em nós imperfeições e Será possível imaginar algo


vícios, que na realidade temos, é mais caritativo e mais suave? E,
claro que não nos prejudicam, contudo, é tal a corrupção do
pois não são eles os causadores homem que acha ainda dureza
dessas imperfeições, e que nos nessa lei; e foi uma das principais
fazem um benefício, pois nos aju- razões que levaram grande parte
dam a livrar-nos desse mal que é da Europa a revoltar-se contra a
a ignorância das imperfeições. Igreja. Tão injusto e desarra-
Não devemos zangar-nos pelo zoado é o coração do homem que
fato de eles as conhecerem e nos lhe parece um mal ser obrigado a
desprezarem, pois é justo que nos fazer, em relação a um só
conheçam pelo que somos, e que homem, o que seria justo, de
nos desprezem se somos despre- certa maneira, que fizesse em
zíveis. Tais seriam os senti- relação a todos os homens! Pois
mentos naturais de um coração será justo que os enganemos?
cheio de eqüidade e justiça. Que Há diferentes graus nessa aver-
devemos dizer do nosso, vendo são à verdade; mas pode-se dizer
nele uma disposição tão contrá- que até certo ponto ela existe em
ria? Pois não é que odiamos a todos, porque é inseparável do
verdade e os que no-la dizem? amor-próprio. Assim, essa falsa
Que desejamos que se enganem, delicadeza é que obriga os que
com vantagem para nós, e que têm necessidade de repreender os
nos tomem por outros, diferentes outros a escolher tantos rodeios e
do que somos na realidade? manejos para não feri-los. Preci-
Eis uma prova que me causa sam diminuir os nossos defeitos,
horror. A religião católica não fingir desculpá-los, misturar lou-
nos obriga a revelar nossos peca- vores e testemunhos de afeição e
dos indiferentemente a todo estima. E, mesmo assim, esse
mundo: permite que os oculte- remédio não deixa de ser amargo
mos de todos os outros homens; ao amor-próprio. Tomamos dele
mas excetua um único, ao qual o menos que podemos, e sempre
ordena que abramos o fundo do com repugnância, e muitas vezes
coração, e que nos mostremos tal com um secreto despeito contra
qual somos. os que no-lo apresentam. Por isso
Somente a esse único homem, acontece que, quando alguém
no mundo, ela nos ordena confes- tem interesse em ser amado por
sar, mas obriga-o a um segredo nós, foge de prestar-nos um servi-
inviolável, o que faz que o seu ço que sabe ser-nos desagra-
conhecimento de nossos pecados dável; trata-nos como desejamos
permaneça nele como se não ser tratados: odiamos a verdade,
existisse. a verdade nos é ocultada; deseja-
70 PASCAL

mos ser adulados, adula-nos; O homem não passa, portanto,


gostamos de ser enganados, en- de disfarce, mentira e hipocrisia,
gana-nos. Por isso, cada degrau tanto em face de si próprio como
na escada da fortuna, que nos em relação aos outros. Não quer
eleva no mundo, afasta-nos mais que lhe digam verdades e evita
da verdade, pois teme-se mais dizê-las aos outros; e todos esses
ferir aqueles cuja afeição é mais propósitos, tão alheios à justiça e
útil e cuja aversão mais perigosa. à razão, têm em seu coração raí-
Um príncipe pode tornar-se o zes naturais.
divertimento de toda a Europa, e 101 - Digo em verdade que,
ser o único a ignorá-lo. Não me se todos os homens soubessem o
admira: a verdade é útil àquele a que dizem uns dos / outros, não
quem é dita, mas desvantajosa haveria quatro amigos no
para os que a dizem, porque se mundo. Isso se vê pelas querelas
tornam odiosos. Ora, os que que provocam as indiscrições
vivem com os príncipes preferem ocasionais. l Digo mais, que
os seus interesses aos do príncipe todos os homens seriam ... J
que servem; por isso,. - se
nao * 102 - Há vícios que se ape-
preocupam em proporcionar-lhe gam a nós através de outros e
uma vantagem, prejudicando-se a que, retirado o tronco, caem
si mesmos. Essa infelicidade é, como galhos.
sem dúvida, maior e mais comum * 103 - O exemplo da casti-
nas fortunas mais avantajadas; dade de Alexandre não fez tantos
mas as menores não lhe escapam, continentes como o da sua em-
porque há sempre algum inte- briaguez fez intemperantes 3 5 .
resse em se tornar amável. Não é vergonhoso não ser tão
Assim, a vida humana nada mais virtuoso quanto ele.
é que uma perpétua ilusão; não Julgamos não ter todos os ví-
fazemos outra coisa senão nos cios do homem comum quando
enganarmós e adularmos mutua- temos os vícios desses grandes
mente. N•nguém fala de nós em homens e, todavia, não percebe-
nossa presença · como fala em mos que eles nisso se identificam
nossa ausência. A união existente ao comum dos homens. Apega-
entre os homens assenta apenas mo-nos a eles por onde se ape-
nesse mútuo engano; e poucas gam ':lº povo, pois, por mais alto
amizades subsistiriam se todos que estejam, unem-se aos que se
soubessem o que deles dizem os
amigos quando não estão presen- 3 5
Alexandre mostrou-se generoso.e cavalhei-
tes, mesmo quando falam com resco com a família de Dario, após a vitória;
mas, por outro lado, em um momento de
sinceridade e sem paixões. embriaguez, matou seu amigo Clito.
PENSAMENTOS 71

encontram mais baixo por um nada, a não ser que esse silêncio
ponto qualquer. Não estão sus- produza também seu efeito, se-
pensos no ar, inteiramente abs- gundo a interpretação que o jul-
traídos da nossa sociedade. Não, gador fizer, ou segundo o que
não. Se são maiores do que nós, é conjeturar dos movimentos e as-
que têm a cabeça mais elevada; pecto do rosto e do tom de voz,
mas têm os pés tão baixo quanto na medida em que for fisiono-
os nossos. Estão todos no mesmo mista, tão difícil é manter um
nível e se apóiam na mesma juízo no seu natural, ou melhor_,
terra; e, por essa extremidade, tão poucos existem firmes e está-
encontram-se tão baixo quanto veis.
nós, quanto os menores, quanto * 106 - Conhecendo a paixão
as crianças, quanto os animais. dominante de cada um, temos a
104 - Se nossa paixão nos certeza de agradar-lhe; e, no
impele a fazer alguma coisa, entanto, cada qual tem suas fan-
esquecemos nosso dever: como tasias, contrárias a seu próprio
apreciamos um livro, lemo-lo bem, na própria idéia que tem do
quando deveríamos fazer outra bem; e trata-se de uma singulari-
coisa. Mas, para nos lembrar- dade que desafina.
mos, é preciso que nos propo- * 107 - Lustravit lampade ter-
nhamos .a fazer algo que odia- ras - O meu humor não depen-
mos; então, escusamo-nos por de do tempo. Tenho os meus
termos outra coisa a fazer e nevoeiros e o meu bom tempo
lembramo-nos assim de nosso dentro de mim; o bem e o mal
dever. dos meus próprios negocios
* 105 - Como é difícil propor pouco influem nesse particular.
uma coisa ao julgamento alheio, Esforço-me, às vezes, por mim
sem corromper o juízo do julga- mesmo, contra a fortuna; a glória
dor, pela maneira de apresentá- de domá-la faz com que eu a
la ! Se dizemos: "Acho-o belo, dome alegremente, ao passo que
acho-o obscuro", ou coisa seme- às vezes torço o nariz à boa
lhante, atraímos a imaginação fortuna.
para esse julgamento, ou a irrita- * 108 - Embora as pessoas
mos, ao contrário. O melhor é não manifestem interesse no que
nada dizer; e então ele julga dizem, não devemos concluir daí
segundo o que é! Ou seja, o que é que não mentem: pois há pessoas
no momento e segundo o que lhe que mentem simplesmente por
sugiram as demais ciréunstâncias mentir.
de que não somos causa. Ao * 109 - Quando nos sentimos
menos nao teremos insinuado bem dispostos, mal sabemos
72 PASCAL

como faríamos se estivéssemos [cujos tubos não se seguem por


doentes; quando ficamos doentes, graus conjuntos]. Os que só
tomamos o remédio de bom sabem tocar os ordinários não
grado: o mal nos convence a produziriam acordes nestes. É
fazê-lo. Não temos mais paixões, preciso saber onde se acham as
nem desejos de divertimentos e [teclas].
passeios, que a saúde nos dava e * 112 - Inconstância - As
que são incompatíveis com as coisas têm diversas qualidades e
necessidades da doença. A natu- a alma diversas inclinações; pois
reza proporciona então paixões e nada do que se oferece à alma é
desejos de conformidade com o simples, e a alma nunca se ofere-
estado presente. Só nos pertur- ce simples a nenhum assunto. Eis
bam os receios que buscamos em por que, às vezes, choramos e
nós mesmos e não na natureza ' rimos com uma mesma coisa.
113 - Inconstância e extrava-
porque eles juntam, ao estado em
gância - Viver somente de seu
que nos encontramos, as paixões
trabalho e reinar sobre o mais
do estado em que não estamos.
poderoso Estado do mundo são
109 bis - Tornando-nos a
coisas muito opostas. Encon-
natureza sempre infelizes em
tram-se unidas na pessoa do
todos os estados, nossos desejos
grão-senhor dos turcos.
fantasiam um estado feliz, por- 114 - A diversidade é tão
que juntam ao estado em que ampla que todos os tons de voz,
estamos os prazeres do estado em todos os andares, tossires, assoa-
que não estamos; mas, se alcan- res, espirrares. . . Distinguimos
çássemos esses prazeres, ainda as uvas entre as frutas e entre as
assim não seríamos felizes, por- uvas as moscatéis, e depois Con-
quanto teríamos outros desejos drieu, e depois Desargues e de-
de acordo com o nosso no~o pois este enxerto 3 6 • Será tudo?
estado. Terá ele produzido algum dia
Particularizar esta proposição
dois cachos iguais? E um cacho
geral. terá dois bagos iguais?, etc ...
* 11 O - O sentimento da falsi- Não poderia julgar uma
dade dos prazeres presentes e a mesma coisa exatamente da
ignorância da vaidade dos praze- mesma maneira. Não posso jul-
res ausentes causam a incons- gar minha obra fazendo-a. Preci-
tância. so, como os pintores, afastar-me·
111 - Inconstância - Cre- - demais. Quanto? Adivi-'
mas nao
mos tocar órgãos ordinários
nhai.
quando tocamos o homem: são
órgãos, na verdade, mas estra- 3 6 O geômetra Desargues tinha uma proprie-

nhos, cambiantes, variáveis dade em Condrieu (Rhône).


PENSAMENTOS 73

115 - Diversidade - Ateo- 118 - O talento principal re-


logia é uma ciência, mas, ao gula os demais.
mesmo tempo, quantas ciências 119 - A natureza se imita.
há? Um homem é uma substân- Uma semente lançada em boa
cia; mas, se o anatomizarmos, terra produz. Um princípio lan-
será ele a cabeça, o coração, as çado num bom espírito produz. ·
veias, o estômago, cada veia, Os números imitam o espaço,
cada porção de veia, o sangue, e são de natureza tão diferente.
cada humor do sangue? Tudo é feito e conduzido por
Uma cidade, um campo, de um mesmo senhor: a raiz, os
longe, são uma cidade e um ramos, os frutos, os princípios, as
campo; mas, à medida que nos conseqüências.
aproximamos, são casas, árvores, 120 - A natureza diversifica
telhados, folhas, plantas, formi- e imita, a arte imita e diversifica.
gas, pernas de formigas, até o 121 - A natureza recomeça
infinito. Tudo isso se inclui na sempre as mesmas coisas, os
palavra campo. anos, os dias, as horas; os espa-
116 - Pensamentos - Tudo ços também, e os números se-
é um, tudo é diverso. Quantas guem-se uns aos outros. Assim,
naturezas na do homem! Quan- faz-se uma espécie de infinito
tos ofícios! E por que acaso cada eterno. Não é que nada disso seja
qual se entrega normalmente ao infinito e eterno; mas esses seres
que ouvm louvar! Salto bem terminados se multiplicam infini-
feito ... 3 7 tamente. Assim, parece-me, só o
11 7 - Salto de sapato -
número que os multiplica é infini-
"Como está bem feito ! Que hábil
to.
artesão! Que soldado corajoso!" *122 - O tempo cura as
Eis a fonte de nossas inclinações dores e as querelas, porque mu-
e da escolha das condições. damos e não somos mais a
"Como aquele bebe bem, como
mesma pessoa. Nem o ofensor
este bebe pouco!" Eis o que nem o ofendido são mais eles
torna os homens sóbrios ou bêba- próprios. É como um povo que
dos, soldados, poltrões, etc.
irritássemos e tornássemos a ver
3 1 Não é sem dúvida, por acaso que Pascal duas gerações depois: são ainda
dá esse ex~mplo. Sabe-se que certos solitários os franceses, mas não os mes-
de Port-Royal se obrigavam a tarefas manuais:
fabricavam sapatos para religiosas. Sainte- mos.
Beuve refere-nos a resposta do Cônego Boi- 123 - Ele já não ama a pes-
leau, irmão do satírico, a um jesuíta que afir-
mava ter Pascal feito sapatos: "Não sei se fez
soa que amava há dez anos.
sapatos, mas convenha, reverendo, em que lhe Acredito: ela não é mais a
deu boas estocadas (bottes) ·: * mesma, nem ele. Ele era moço,
* Bottes, estocadas para trocadilhar com
botas. (N. do T.) ela também; ela está inteiramente
74 PASCAL

diferente. Talvez ele a amasse za, a pena, o despeito, o desespe-


ainda se não houvesse mudado. ro.
124 - Não somente olhamos *132 - César era muito
as coisas por outros lados mas velho, parece-me, para ir diver-
ainda com outros olhos; não tir-se em conquistar o mundo.
temos maneira de achá-las iguais. Esse divertimento ficava bem em
125 - Contrariedades - O Augusto, ou em Alexandre: eram
homem é naturalmente crédulo, rapazes difíceis de conter; mas
incrédulo, tímido, temerário. César devia ser mais maduro.
126 - Descrição do homem: 13 3 - Dois rostos semelhan-
dependência, desejo de indepen- tes, que separados não fazem rir;
dência, necessidade. juntos o fazem por causa de . sua
127 - Condição do homem: semelhança.
inconstância, tédio, inquietação. 134 - Que coisa vã a pintura,
128 - O aborrecimento que que provoca a admiração pela
nos causa abandonar as ocupa- semelhança com coisas cujos ori-
ções a que nos apegamos. Um ginais não admiramos!
homem vive com prazer em seu * 135 - Nada nos agrada
lar: que encontre uma mulher tanto como ver um combate, mas
atraente, que jogue cinco ou seis não a vitória. Gostamos de ver os
dias com alegria, ei-lo miserável combates dos animais, não o ven-
ao" tornar à sua ocupação primei- cedor encarniçado sobre o venci-
ra. Nada é mais comum. do. Que queríamos ver, se não o
129 - Nossa natureza está no fim da vitória? E, desde que esta
movimento; o inteiro repouso é a se verifica, enfastiamo-nos.
morte. Assim no jogo, assim na pesquisa
130 - Agitação - Quando da verdade. Gostamos de ver, nas
um soldado se queixa das penas polêmicas, o combate das opi-
que teve, ou um lavrador, etc ... niões; mas não gostamos, em
obriguem-nos a ficar sem fazer absoluto, de contemplar a verda-
nada. de encontrada. Para fazê-la ob-
131 - Tédio - Nada é mais servar com prazer, é preciso mos-
insuportável ao homem do que trá-la nascendo da polêmica.
um repouso total, sem paixões, Assim também, nas paixões, há
sem negócios, sem distrações, prazer em ver dois contrários se
sem atividade. Sente então seu chocarem; mas, quando um do-
nada, seu abandono, sua insufi- mina, há apenas brutalidade.
ciência, sua dependência, sua Nunca procuramos as coisas,
impotência, seu vazio. Inconti- mas a pesquisa das coisas. Des-
nenti subirá do fundo de sua tarte, na comédia, as cenas ale-
alma o tédio, o negrume, a triste- gres sem o medo não valem nada,
PENSAMENTOS 75

nem as extremas misérias, sem a pois de haver encontrado a causa


esperança, nem os amores bru- de todas as nossas infelicidades,
tais, nem as severidades ásperas. quis descobrir-lhes a razão, achei
* 136 - Pouca coisa nos con- que há uma muito efetiva, que
sola porque pouca coisa nos consiste na infelicidade natural
aflige. de nossa condição fraca e mortal,
13 7 - Sem examinar todas as e tão miserável, que nada nos
ocupações particulares, basta in- pode consolar, quando nela pen-
cluí-las nos divertimentos. samos de perto.
138 - Homens na~uralmente Seja qual for a condição que
empalhadores 3 8 e de todos os imaginemos, pela reunião de
ofícios, menos em seu quarto. todos os bens que podem perten-
* 139 - Divertimentos cer-nos, vemos que a realeza é o
Quando, às vezes, me pus a con- mais belo posto do mundo. Ima-
siderar as diversas agitações dos ginemos, entretanto, um rei
homens, e os perigos e os casti- acompanhado de todas as satisfa-
gos a que eles se expõem, na ções que dela decorrem, mas sem
corte e na guerra, originando tan- divertimentos; que considere e
tas contendas, tantas paixões, reflita sobre o que é, e essa felici-
tantos cometimentos audazes, e dade enlanguescente não se sus-
muitas vezes funestos, descobri tentará mais. Acabará forçosa-
que toda a felicidade dos homens mente percebendo as coisas que o
vem de uma só coisa, que é não ameaçam, as revoltas que podem
saberem ficar quietos dentro de surgir, e, enfim, a morte e as
um quarto. O homem que tem moléstias inevitáveis. De maneira
suficientes bens para viver, se que, se ficar sem aquilo que se
soubesse ficar em casa com pra- chama divertimento, ei-lo infeliz,
zer, não sairia dela para ir ao [mais] infeliz que o mais ínfimo
mar ou ao cerco de uma praça. de seus súditos, que goza e se
Não se pagaria tão caro um diverte.
posto no exército, se não se Daí vem que o jogo e a con-
achasse insuportável não sair da versa das mulheres, as guerras,
cidade; e só se procuram as con- os grandes empregos sejam tão
versas e os passatempos dos procurados. Não que haja efeti-
jogos porque não se sabe ficar em vamente felicidade nisso, nem
casa com prazer. que se imagine que a verdadeira
Mas quando pensei · mais de beatitude consista em se ter o
perto no assunto, e quando, de- dinheiro que se pode ganhar no
3 8 Este pensamento, à primeira vista enigmá-
jogo, ou na lebre que se persegue:
tico, explica-se pelo de número 97, que convém nada disso nos interessaria se nos
reler, e pelo seguinte, de número 139. fosse oferecido. Não é essa vida
76 PASCAL

mole e tranqüila, que nos deixa gas, apresentava grandes dificul-


tempo para pensar na nossa infe- dades.
liz condição, que procuramos; Dizer a um homem que viva
como não são os perigos da guer- em repouso é o mesmo que lhe
ra, nem os aborrecimentos dos dizer viva feliz; é o mesmo que
empregos; é o ruído, que nos des- lhe aconselhar uma condição to-
via de pensar na nossa condição talmente feliz e gue possa ser
e nos diverte. examinada à vontade, sem que se
Daí amarem tanto os homens encontre nela motivo de aflição;
o ruído e a agitação; daí ser a pri- é aconselhar-lhe. . . Não é, por-
são um suplício tão horrível; daí tanto, compreender a natureza.
o prazer da solidão se tornar uma Por isso, os homens que per-
coisa incompreensível. E daí, por cebem naturalmente a sua condi-
fim, ser o maior objeto de felici- ção evitam por todos os modos o
dade da condição dos reis essa repouso e tudo fazem para procu-
preocupação constante dos ou- rar o tumulto. Não que não te-
tros em diverti-los e em propor- nham um instinto que os leve a
cionar-lhes toda espécie de praze- conhecer a verdadeira beatitu-
res. de. . . A vaidade, o prazer de
O rei está rodeado de pessoas mostrá-lo aos outros.
que só pensam em diverti-lo e em Assim, erramos ao criticá-los;
impedi-lo de pensar em si o erro deles não seria de procurar
mesmo. Porque, se pensa em si o tumulto, se só o procurassem
mesmo, é infeliz, por mais rei que como um divertimento; o mal é
seja. que o procuram como se a posse
Eis aí tudo quanto os homens das coisas que buscam devesse
puderam inventar para se torna- torná-los perfeitamente felizes, e
rem felizes. E a atitude dos filó- nisso sim, há razão para qualifi-
sofos, que crêem que o mundo é car esta pretensão como vã; de
muito pouco razoável por passar maneira que em tudo isso, tanto
o dia todo a correr atrás de uma os que criticam como os que são
lebre que ninguém desejaria com- criticados não entendem a verda-
prar, demonstra que nada conhe- deira natureza do homem.
cem da nossa natureza~ Essa E, assim, quando os adverti-
lebre não nos livra da visão da mos de que o que procuram com
morte e das misérias, mas a caça tanto ardor não pode satisfazê-
- que nos desvia dela - dela los, se respondessem, como deve-
nos livra. riam se raciocinassem bem, que
O conselho que davam a Pirro, procuram nisso apenas uma ocu-
de entregar-se ao repouso que pação violenta e impetuosa que
procurava através de tantas fadi- os desvie de pensar em si mes-
PENSAMENTOS 77

mos, e que é por isso que se pro- Assim se escoa a vida toda.
põem um objeto atraente que os Procuramos o repouso comba-
encante e os atraia com ardor, tendo alguns obstáculos; e quan-
deixariam os adversários sem do estes são superados o repouso
resposta. Mas não respondem torna-se insuportável. Pois ou
assim, pois não se conhecem a si pensamos nas misérias presentes
mesmos. Não sabem que é a caça ou naquelas que nos ameaçam. E
e nao a presa que procuram. mesmo que nos sentíssemos bem
(A dança: é preciso pensar protegidos por todos os lados, o
onde _se vai pôr os pés. - O tédio, por sua autoridade priva-
fidalgo crê sinceramente que a da, não deixaria de sair do fundo
caça é um grande e régio prazer; do coração, onde tem raízes
mas o monteiro não é da mesma naturais, e de nos encher o espí-
opinião.) rito com o seu veneno.
Imaginam que, se tivessem ob- Assim, o homem é tão infeliz
tido esse cargo, repousariam em que se aborreceria mesmo sem
seguida com prazer, e não sentem nenhum motivo de aborreci-
a natureza insaciável de sua mento, pelo próprio estado de
concupiscência. Acreditam bus- sua compleição; e é tão vão que,
car sinceramente o repouso, e, na estando cheio de mil causas es-
verdade, só buscam a agitação. senciais de tédio, a menor coisa,
Têm um instinto secreto, que os como um taco e uma bola que
leva a procurar divertimentos e empurra, basta para diverti-lo.
ocupações exteriores, nascido do - Mas, direis, que objetivo
ressentimento de suas contínuas procura ele em tudo isso? - O
misérias; e têm outro instinto de se gabar amanhã entre os ami-
secreto, resto da grandeza de gos de haver jogado melhor do
nossa primeira natureza, que os que o outro. Por isso, também,
faz conhecer que a felicidade só outros suam em seus gabinetes
está, de fato, no repouso, e não para mostrar aos sábios que
no tumulto; e, desses dois instin- resolveram um problema de álge-
tos contrários, forma-se neles um bra que ainda ninguém resolvera;
intento confuso, que se oculta da e muitos outros se expõem a peri-
vista no fundo da alma, e os leva gos extremos para se gabarem em
a procurar o repouso pela agita- seguida de uma praça que toma-
ção, e a imaginar sempre que a ram, estupidamente em minha
satisfação que não têm acabará opinião; e, enfim, outros se
chegando, se, superando algumas matam para notar essas coisas,
dificuldades que antevêem, con- não para se tornarem ·avisados,
seguirem abrir por ali uma porta mas somente para mostrar que as
ao repouso. sabem; e esses são os mais tolos
78 PASCAL

do bando, pois o são com conhe- javali que os cães perseguem com
cimento, enquanto se pode pen- tanto ardor há seis horas. Não
sar dos outros que deixariam de precisa de nada mais.
sê-lo se tivessem esse conheci- Por mais cheio de tristeza que
mento. um homem se encontre, se por-
Tal homem passa a vida sem ventura conseguirmos que entre
tédio, jogando um pouco de di- num divertimento, será feliz du-
nheiro todos os dias. Dai-lhe rante esse tempo; e o homem
todas as manhãs o dinheiro que mais feliz, se não se estiver diver-
ele poderia ganhar cada dia, sob tindo e ocupando com alguma
condição de não jogar, torná-lo- paixão mi com alguma distração
eis infeliz. que impeça o tédio de se espa-
Dir-se-á, talvez, que é porque lhar, ficará logo triste e infeliz.
procura o divertimento do jogo, e Sem divertimento não há ale-
não o ganho. Fazei-o então jogar gria, com divertimento não há
por nada, não se entusiasmará e tristeza. E o que forma a felici-
se aborrecerá. dade das pessoas de grande con-
Não é, portanto, só o diverti- dição é que têm uma porção de
mento que ele procura: um diver- gente para diverti-las, e o poder
timento mole e sem paixão o de se manterem nesse estado.
aborrecerá. É preciso que se Reparai nisto. Que representa
entusiasme e se iluda a si mesmo, o fato de ser superintendente,
imaginando que seria feliz ga- chanceler, primeiro presidente,
nhando o que não desejaria que senão o de se encontrar alguém
lhe dessem a fim de não jogar, a numa condição na qual desde
fim de formar para si próprio um cedo grande número de pessoas
motivo de paixão e excitar com vêm de todos os lados para não
isso seu desejo, sua cólera, seu deixar-lhe uma só hora no dia em
temor ante o objeto que ele que possa pensar em si próprio?
mesmo criou, como as crianças E quando o senhor que cai em
que se assustam diante do rosto · desagrado é enviado para qual-
que elas próprias lambuzam de quer retiro campestre, onde não
tinta. lhe faltam nem riquezas, nem
Como se explica que esse criados para assisti-lo em suas
homem, que p.erdeu há poucos necessidades, não deixa de sen-
meses o filho único, e que, ator- tir-se miserável e abandonado,
mentado por processos e brigas, porque ninguém o impede de pen-
estava hoje cedo tão perturbado, sar em si mesmo.
já não pense nisso agora? Não 140 - [Esse homem tão
vos admireis: ele está todo ocu- abatido com a morte de sua mu-
pado em ver por onde passará o lher e de seu único filho e sujeito
PENSAMENTOS 79

ao tormento de tão grande dOr, comuns? Bem sei que desviar


por que não está triste neste alguém de suas misérias domésti-
momento, e o vemos tão isento cas, enchendo.-lhe todos os pensa-
destes pensamentos penosos e mentos com a preocupação de
inquietantes? Não há motivo dançar bem, é torná-lo feliz. Mas
para estranharmos: acabam de· o mesmo não se dará com o rei, e
entregar-lhe uma bola e cabe-lhe será ele mais feliz prendendo-se a
atirá-la a seu companheiro, e ei- esses vãos divertimentos em
lo a pegá-la de modo a marcar lugar de contemplar sua própria
um ponto. Como quereis que grandeza? Que objeto mais satis-
pense em seus tormentos, se tão fatório se poderia dar a seu espí-
grande assunto o preocupa? Tra- rito? Não perturbaríamos a sua
ta-se de uma ação, em verdade, alegria, ocupando-lhe a alma
digna de encher sua grande alma com a idéia de ajustar os passos
e de expulsar qualquer outro pen- à cadência de uma ária, ou de
samento de seu esp~rito. Tal colocar bem uma [bola], em
outro, nascido para conhecer o lugar de deixá-lo gozar, no re-
universo, para julgar as coisas e pouso, a contemplação da glória
dirigir um Estado, acha-se intei- majestosa que o cerca? Faça-se a
ramente ocupado, entretanto, em experiê.ricia: deixe-se um rei sozi-
correr uma lebre! Aliás, se não nho pensar sossegadamerite em si
descer a isso, se quiser permane- próprio sem nenhuma satisfação
cer noutro nível, será ainda mais dos sentidos, sem nenhum cuida-
tonto, porquanto terá procurado do no espírito, sem companhia, e
elevar-se acima da humanidade, ver-se-á que um rei sem diverti-
sem passar de um homem, afinal, mento é um homem cheio de
isto é, de alguém capaz de pouco
miséria. Por isso, tal coisa é
e de muito, de tudo e de nada.
Nem anjo nem animal: homem cuidadosamente evitada, e nunca
apenas.] falta junto dos reis grande núme-
141 - Ocupam-se os ho- ro de indivíduos velando para
mens com uma bola ou uma que os divertimentos sucedam
lebre; esse é o prazer, para os reis aos negócios, -observando-os du-
inclusive. rante todo o seu descanso a fim
* 142 - Divertimento de proporcionar-lhes prazeres e
Não será a dignidade real sufi-
ciente em si mesma para tornar jogos, de maneira que não haja
feliz quem a possui na simples um vazio; são cercados de pes-
contemplação do que é? Será soas que têm um cuidado maravi-
necessário desviar o rei desse lhoso em evitar que o rei fique só
pensamento, tal como as pessoas e em situação de pensar em si,
80 PASCAL

pois sabem que ele será miserá- Como é oco e cheio de baixeza
vel, apesar de rei, se tal coisa o coração do homem !
acontecer. * 144 - Passei longo tempo
Em tudo isto não falo dos reis no estudo das ciências abstratas,
cristãos como cristãos, mas ape- e a pouca comunicação que se
nas como reis. pode ter delas desgostou-me.
143 - Divertimento - So- Quando · comecei o estudo do
brecarregamos os homens, desde homem, vi que essas ciências
a infância, com o cuidado de sua abstratas não lhe são próprias, e
honra, de sua riqueza, de seus que me desviava mais da minha
amigos, e ainda com o cuidado condição penetrando-as, do que a
da riqueza e da honra desses ami- outros ignorando-as; perdoei aos
gos. Fatigamos os homens com outros o conhecê-las pouco. Mas
negócios, com o estudo de lín- julguei que encontraria, ao
guas e exercícios, e fazemos-lhes menos, muitos companheiros no
sentir que não poderão ser felizes estudo do homem, que é o verda-
sem que a sua saúde, honra e for- deiro estudo que lhe é próprio.
tuna, e as de seus amigos estejam Enganei-me. Os que o estudam
em ordem, e que basta faltar-lhes são ainda menos numerosos do
uma destas coisas para se torna- que os que se dedicam à geome-
rem infelizes. E damos-lhes en- tria.
cargos e negócios que os ator- Procurar o resto mostra ape-
mentam desde que desponta o nas que não se sabe estudar. Não
dia. - Eis aí, direis, uma estra- será isso, porém, porque não é
nha maneira de fazê-los felizes! essa ainda a ciência que o
Que se poderia fazer de melhor homem deve ter e porque lhe é
para torná-los infelizes? preferível ignorar-se para ser
Como ! Que se poderia fazer? feliz?
Bastaria tirar-lhes todas essas 145 - Um só pensamento
ocupações; então se veriam a si nos ocupa; não podemos pensar
mesmos, pensariam no que são, em duas coisas ao mesmo tempo,
donde vêm e para onde vão. felizmente em relação ao mundo,
Nunca será demais, portanto, mas não a Deus.
ocupá-los, nem jamais os distrai- *146 - O homem é visivel-
remos demasiado. E é por isso mente feito para pensar; é toda a
que, depois de carregá-los de sua dignidade e todo o seu méri-
negócios, se lhes sobra tempo to; e todo o seu dever consiste em
para descanso, nós os aconse- pensar corretamente. Ora, a
lhamos a empregá-lo em diverti- ordem do pensamento é de come-
mentos e no jogo, e a andarem çar por si, e pelo seu autor e sua
sempre inteiramente ocupados. finalidade.
PENSAMENTOS 81

Ora, em que pensa o mundo? damos com ser estimados nas


Apenas em dançar, em tocar cidades por onde passamos, mas
alaúde, em cantar, em fazer ver- sim quando nelas devemos ficar
sos, em jogar argolinhas, etc ... algum tempo. Quanto tempo?
em bater-se, em tornar-se rei, sem Um tempo proporcionado à
pensar o que é. ser rei, e o que é nossa duração vã e mesquinha.
ser homem. * 150 - A vaidade está de tal
*147 - Não nos conten- forma arraigada no coração do
tamos com a vida que temos em homem que um soldado, um cria-
nós e no nosso próprio ser: que- do, um· cozinheiro, um malandro,
remos viver na idéia dos outros se gaba e pode ter seus admirado-
uma vida imaginária, e, para res; e os próprios filósofos pre-
isso, esforçamo-nos por fingir. tendem o mesmo. E os que escre-
Trabalhamos incessantemente vem contra isso querem a glória
para embelezar e conservar nosso de escrever bem, e os que os lêem
ser imaginário e negligenciamos querem ter a glória de os ter lido;
o verdadeiro. E se temos tranqüi- e eu, que escrevo isto, talvez
lidade, ou generosidade, ou fideli- tenha essa vontade, e talvez os
dade, apressamo-nos em fazê-lo que me lerem ...
saber, a fim de ligar essas virtu- 151 - A glória - A admi-
des a esse nosso outro ser; e de ração estraga tudo desde a infân-
bom grado as destacaríamos de cia: "que graça, como é desemba-
nós para juntá-las a ele; e sería- raçado, como é bonzinho", etc.
mos prazerosamente poltrões As crianças de Port-Royal3 9 ,
para adquirir a reputação de às quais não se dá esse incentivo
corajosos. Grande marca do da inveja e da glória, caem na
vazio do nosso próprio ser, não indiferença.
estar satisfeito com um sem o 152 - Orgulho - Curiosi-
outro, e renunciar muitas vezes a dade não é senão vaidade. O
um pelo outro ! Pois quem não mais das vezes, não se quer
morresse para conservar sua aprender senão para falar do que
honra seria infame. se sabe. Não viajaríamos por
mar, só pelo prazer de ver, se não
* 148 - Somos tão presun- quiséssemos dizer algo a respeito
çosos que desejaríamos ser co-
e não esperássemos comunicar
nhecidos por toda a terra, e até
pelas pessoas que vierem quando nossas impressões.
nela não estivermos mais, e 3 9 Alusão aos alunos das Peiites-Écoles de

somos tão vãos que a estima de Port-Royal, instituídas pelo Abade de Saint-
Cyran. Houve-as em Paris nas Granges de
cinco ou seis pessoas que nos cer- Port-Royal, em Chesnay, perto de Versalhes,
cam nos diverte e nos contenta. em Saint-Jean-des-Trous, entre 1636 e 1661.
(Cf. Racine, Histoire de Port-Roya/, ed.
*149 - Não nos incarno- Gazier, 1908.)
82 PASCAL

* 153 - Do desejo de ser es- da glória é tão grande que, qual-


timado por aqueles com quem se quer que seja o objeto a que a
vive - O orgulho contrabalança ligamos, inclusive a morte, nós a
naturalmente todas as nossas mi- amamos.
sérias, todos os nossos erros, etc. * 159 - As belas ações ocul-
Perdemos mesmo a vida com ale- tas são as mais estimáveis. Quan-
gria, desde que se fale disso. do vejo algumas na história
Vaidade: jogo, caça, visitas, (como na p. 184 4 1 ), elas me
comédias, falsa perpetuidade do agradam muito. Mas, enfim, não
nome. estavam completamente ocultas,
154 - lNão tenho amigos] pois se tornaram conhecidas; e,
l vantagem vossa.] · embora se tenha feito tudo para
155 - Um amigo verda- ocultá-las, esse pouco pelo qual
deiro é coisa tão vantajosa, apareceram estraga tudo, porque
mesmo para os grandes senhores, o que nelas há de mais belo é a
a fim de falar bem deles e defen- vontade de ocultá-las.
dê-los em sua ausência, que tudo 160 - O espirro 42 absorve
devem fazer para tê-lo. Mas esco- todas as funções da alma, tanto
lham bem; pois, se se empenha- quanto o trabalho, mas não se
rem por um tolo, isso lhes será tiram dele idênticas ilações em
inútil, por mais que o tolo diga relação à grandeza do homem,
bem deles. Nem é certo que o por ser contra a sua vontade.
diga, se se encontrar em situação Embora se provoque o espirro, é
de inferioridade, pois carece de contra a vontade que este ocorre;
autoridade, e por isso falará mal não é provocado por si mesmo,
para fazer coro com a compa- mas com objetivo diferente; e,
nhia. assim, não há prova de fraqueza
* 156 - Ferox gens, nullam e servidão do homem nessa ação.
esse vitam sine armis rati 4 0 • Pre- Não é vergonhoso para o
ferem a morte à paz; outros, a homem sucumbir à dor e é-lhe
morte à guerra. Toda opinião vergonhoso sucumbir ao prazer.
pode ser preferível à vida, o amor E isso não decorre do fato de
pefa qual parece tão forte e vir-nos a dor de alhures, en-
natural. quanto buscamos o prazer, pois
157 - Contradição: des- podemos procurar a dor e sucum'""
prezo qe nosso ser, morrer por bir a ela sem essa baixeza. De
qada, ódio de nosso ser. onde vem, então, que seja glo-
* 158 - Ofícios - A doçura rioso para a razão sucumbir sob
40
Nação intrépida, que pensava que uma 41
Referência à p. 184 da edição dos Ensaios
vida sem as armas não era vida. (Tito Lívio, de Montaigne.
XXXVI, 17, ap. Montaigne, 1, 14.) 42
Provocado pelo uso do rapé. (N. do T.)
PENSAMENTOS 83

o esforço da dor e vergonhoso mento e no pensamento do futu-


sucumbir sob o esforço do pra- ro? Mas tirai o seu divertimento
zer? É porque não é a dor que e os vereis consumir-se de des-
nos tenta e atrai; nós mesmos é gosto; sentem então o seu nada,
que a buscamos voluntariamente sem conhecê-lo; com efeito, é
e queremos que nos domine; de mesmo ser infeliz ficar numa tris-
modo que somos senhores da teza insuportável logo que se está
coisa; nisso é o homem que reduzido a uma auto-análise, sem
sucumbe ante si próprio; no ter diversão para seus males.
outro caso, é ante o pr·azer que o *165 - Pensamentos - ln
homem sucumbe. Ora, só o do- omnibus requiem quaesivi 43 • Se
mínio e o império dão a glória, e a nossa condição fosse verdadei-
a servidão dá a vergonha. ramente feliz, não precisaríamos
161 - Vaidade - Que uma deixar de pensar para nos tornar-
coisa tão visível como é a vaida- mos felizes.
de do mundo seja tão pouco *166 - Divertimento - É
conhecida, que seja estranho e mais fácil suportar a morte,
surpreendente dizer que é uma to- quando não se pensa nela, do que
lice procurar as grandezas, eis o pensar na morte sem perigo.
que é admirável. 167 - As misérias da vida
162 - Quem quiser conhe- humana criaram tudo isso: como
cer por completo a vaidade do eles viram isso, escolheram o
homem não tem senão que consi- divertimento.
derar as causas e os efeitos do *168 - Divertimento .
amor. A causa é um não sei quê Não tendo conseguido curar a
(Corneille) e os efeitos são espan- morte, a miséria, a ignorância, os
tosos. Esse não sei quê, tão homens lembraram-se, para ser
pouca coisa que não se pode felizes, de não pensar nisso tudo.
reconhecê-lo, revolve toda a 169 - . . . Não obstante
terra, os príncipes, os exércitos, o essas misérias, o homem quer ser
mundo inteiro. feliz, e somente quer ser feliz , e
Se o nariz de Cleópatra tivesse não pode deixar de querer sê-lo.
sido mais curto, toda a face da Como fará então? Fora preciso,
terra teria mudado. para tanto, tornar-se imortal; não
163 - Vaidade - A causa e o podendo, lembrou-se de não
os efeitos do amor: Cleópatra. pensar no caso.
a
164 - Queni n,ão vê vaida- * 170 - Divertimento - Se
de do mundo é bem vão em si o homem fosse feliz, ele o seria
mesmo. Mas, também, quem não tanto mais quanto menos se
a vê, exceto os jovens que estão 4 3 Procurei o repouso por toda parte (E elo

todos no barulho, no diverti- 24, 11).


84 PASCAL

divertisse, como os santos e que não estão ao nosso alcance


Deus. - Sim; mas não é ser feliz para um tempo que não temos
ser reconfortado pelo diverti- nenhuma certeza de akançar.
mento? - Não, porque ele vem Que cada qual examine os seus
de longe e de fora, e assim é pensamentos, e os achará sempre
dependente e, port3:nto, sujeito a ocupados com o passado e com o
ser perturbado por mil acidentes, futuro. Quase não pensamos no
que tornam as aflições inevitá- presente; e, quando pensamos, é
veis. apenas para tomar-lhe a luz a fim
171 - Miséria - A única de iluminar o futuro. O presente
coisa que nos .consola das nossas não é nunca o nosso fim; o passa-
misérias é o divertimento e, no
do e o presente são os nossos
entanto, essa é a maior das nos- meios; só o futuro é o nosso fim.
sas misérias. Com efeito, é isso Assim, nunca vivemos, mas espe-
que nos impede principalmente ramos viver, e, dispondo-nos
de pensar em nós e que nos perde sempre a ser felizes, é inevitável
insensivelmente. Sem isso, fica- que nunca o sejamos.
ríamos desgostosos, e esse des-
gosto nos levaria a procurar um 173 - Dizem eles que os
meio mais sólido de sair dele. eclipses pressagiam desgraças,
Mas o divertimento alegra-nos e porque as desgraças são comuns;
leva-nos insensivelmente à morte. de sorte que acontece tão fre-
*172 - Não ficamos nunca qüentemente o mal que muitas
no tempo presente. Antecipamos vezes eles o adivinham; ao passo
o futuro, por chegar demasiado que, se dissesem que pressagiam
lentamente, como para apressar- a felicidade, mentiriam freqüente-
lhe o curso; recordamos o passa- mente. Atribuem a felicidade
do, para detê-lo, por demasiado apenas a raros acidentes do céu;
rápido: tão imprudentes que erra- assim, deixam pouco freqüente-
mos nos tempos que não são nos- mente de acertar.
sos e só não pensamos no único
que nos pertence; e tão vãos que * 174 - Miséria - Salomão
sonhamos com os que já não e Jó conheceram melhor e fala-
ram melhor da miséria do
existem e evitamos sem reflexão
homem: um, o mais fel iz; o
o único que subsiste. É que o pre-
outro, o mais infeliz; um, conhe-
sente de ordinário nos fere. Ocul-
tamo-lo à vista, porque nos afli- cendo a vaidade dos prazeres por
ge; e, se nos é agradável, experiência; o outro, a realidade
lamentamos vê-lo escapar. Trata- dos males.
mos de sustentá-lo pelo futuro e 17 5 - Conhecemo-nos tão
pensamos em dispor das coisas pouco que muitos pensam morrer
PENSAMENTOS 85

quando estão passando bem, e que seu filho. Macróbio, livro II,
muitos julgam passar bem quan- Saturnais, capítulo IV 4 6 •
do estão próximos da morte, não * 180 - Os grandes e os
sentindo a febre próxima ou o pequenos têm os mesmos aciden-
abscesso prestes a formar-se. tes, os mesmos aborrecimentos e
* 176 - Cromwell teria des- as mesmas paixões; mas um está
truído toda a cristandade, a famí- no alto da roda, e o outro perto
lia real ter-se-ia perdido e a sua do centro, e, assim, menos agita-
tornar-se-ia mais poderosa do do pelo mesmo movimento.
que nunca, não fora um pequeno * 181 - Somos tão infelizes
grão de areia que se introduziu que só podemos achar prazer
em sua uretra. E até Roma teria numa coisa sob a condição de
tremido sob o seu domínio, se nos desgostarmos se sai mal, o
essa areiazinha, introduzindo-se que mil coisas podem fazer e
ali, não o tivesse matado, derru- fazem a toda hora. [Quem]
bando sua família e restabele- achasse o segredo de se regozijar
cendo o rei 4 4 • com o bem, sem se desgostar
com o mal contrário, teria resol-
*177 lTrês hóspedesJ vido a dificuldade; é o movi-
Quem tivesse a amizade do rei da mento perpétuo.
Inglaterra, do rei da Polônia e da 182 - Os que, nos maus
rainha da Suécia teria julgado momentos, conservam sempre es-
que lhe faltaria retiro e asilo perança e se regozijam com aven-
neste mundo? 4 5 turas felizes, se não se afligem
178 - Macróbio: os inocen- igualmente com as desgraças, são
tes trucidados por Herodes. suspeitos de se sentirem conten-
179 Quando Augusto tes com a perda do negócio; e
soube que entre as crianças de encantam-se com esse pretexto de
menos de dois anos, que Herodes esperança para mostrar que se
matara, figurara o próprio filho interessam pelo negócio, cobrin-
do governador, disse que era me- do, com a alegria que fingem
lhor ser o porco de Herodes do conceber, a alegria que têm por
ver tudo perdido.
4 4
Cromwell morreu em 1658; seu filho *183 - Corremos sem nos
Ricardo sucedeu-lhe como Protetor. Em 1660, preocupar para o precipício,
o filho de Carlos 1, Carlos II, foi chamado por
Monk ao trono da Inglaterra. quando colocamos algo frente a
4 5 Mesmo um amigo desses três soberanos nós, que nos impeça de vê-lo.
não poderia contar com eles, pois Carlos 1 foi
decapitado em 1649, o rei da Polônia, João 4 6 Macróbio (século V) viveu na corte de

Casimiro, foi destronado em 1656 e Cristina Teodósio, a respeito do qual conta uma série
da Suécia abdicou em 1654. enorme de anedotas nas Saturnais.
ARTIGO III
Da necessidade da aposta

184 - Carta para induzir à venerável; torná-la respeitável e,


procura de Deus 4 7 • em seguida, amável para que os
E também fazê-lo procurar bons desejem que seja verda-
entre os filósofos, pirrônicos e deira; e depois mostrar que é
dogmáticos, que agitam o espí- verdadeira.
rito de quem os busca. Venerável, porque conheceu
185 - A conduta de Deus, bem o homem; amável, porque
que tudo dispõe com doçura, lhe promete o verdadeiro bem.
consiste em pôr a religião no 188 - É preciso que em todo
espírito pela razão, e no coração diálogo e discurso se possa dizer
pela graça. Mas querer pô-la no a quem se sinta ofendido: "De
espírito e no coração pela força e que vos queixais?"
pelas ameaças não é mais pôr a 189 - Começar por apie-
religião e sim o terror, terrorem dar-se dos incrédulos; são bas-
potius quam religionem. tante infelizes pela sua condição.
186 - Ne si terrerentur et non
Só se deveria injuriá-los se isso
docerentur, improba quasi domi-
lhes pudesse ser útil: mas isso
natio videretur 4 8 (Ag., Ep. 48 ou
lhes é nocivo.
49 - T. IV: Contra Mendacium
ad Consentium). 190 - Apiedar-se dos ateus
*187 - Ordem - Os homens que buscam, pois não são em ver-
desprezam a religião; odeiam-na dade infelizes? Invectivar os que
e temem que seja · verdadeira. se vangloriam disso.
Para curar isso, é preciso come- 191 - E aquele zombará do
çar por mostrar que a religião outro? Quem deve zombar'? E,
não é contrária à razão, que é no entanto, este não zomba do
outro, mas tem pena.
4 7 Esta indicação (carta), que se encontra em
192 - Censurar Miton por
muitos outros fragmentos, prova que Pascal
pensava incluir em sua obra trechos redigidos nao se mexer, quando Deus se
sob forma de cartas. É permitido crer que o aproximar 4 9 •
êxito de As Provinciais convidava Pascal a
usar, em sua Apologia, um processo que explo-
4 9 Brunschvicg preferia a leitura quand Dieu
rara com tanta felicidade e no qual se sentia à
vontade. le reprochera (quando Deus o censurar). Nesta
4 8 De modo que, se são levados pelo terror edição brasileira seguiu-se leitura qe Jacques
sem serem instruídos, pareça tirânico o domí- Chevalier: quand Dieu se rapprochera. (N. do
nio (Santo Agostinho). · E.)
88 PASCAL

193 -Quid fiet hominibus afetar a outra, e firmar sua dou-


qui minima contemnunt, majora trina em vez de arruiná-la?
non credunt? 5 0 Seria necessário, para comba-
* 194
- . . . Que pelo menos ter a religião, que proclamassem
procurem conhecer a religião que ter feito, sem nenhuma satisfa-
combatem, antes de combatê-la. ção, todos os esforços para pro-
Se essa religião se gabasse de ter curá-la por toda parte, até
uma visão clara de Deus, e de mesmo naquilo que a lgrej a pro-
possuí-la a descoberto e sem põe para seu conhecimento. Se
véus, seria combatê-la dizer que ·assim falassem, combateriam na
nada se vê no mundo que a revele verdade uma das suas pretensões.
à evidência. Mas como, pelo Mas espero mostrar aqui que não
contrário, ela diz que os homens haverá ninguém capaz de racio-
vivem nas trevas e afastados de cínio que possa falar desse modo,
Deus; que Deus se ocultou ao e atrevo-me mesmo a dizer que
conhecimento deles, a ponto de nunca ninguém falou assim.
nomear-se a si próprio, nas Escri- É bem conhecida a maneira de
turas, Deus absconditus 5 1 e proceder dos que se encontram
como enfim a religião procura em tal estado de espírito. J Qlgam
ter feito grandes esforços para se
igualmente demonstrar duas coi-
instruir, quando empregaram al-
sas: que Deus estabeleceu na
gumas horas na leitura de um
Igreja sinais sensíveis para se
livro da Escritura e interrogaram
fazer reconhecer pelos que since-
qualquer eclesiástico acerca das
ramente o procuram; e que, en-
verdades da fé. E gabam-se então
tretanto, cobriu de tal maneira
de ter procurado sem êxito nos li-
esses sinais que só serão vistos
por aqueles que o procuram de vros e nos homens. Mas, em ver-
dade, eu lhes diria o que muitas
todo o coração; que vantagem
vezes já tenho dito: que essa
poderão tirar os ignorantes quan-
negligência não é suportável.
do, na displicência com que
Não se trata aqui do interesse
fazem profissão de estar à procu-
desprezível de uma pessoa estra-
ra da verdade, clamam que nada nha, que nos Jeve a proceder
lhes mostra essa verdade, se a assim, mas de nós mesmos, e de
obscuridade em que se acham, e nosso todo.
que atribuem à Igreja, nada mais A imortalidade da alma é uma
faz do que estabelecer uma das coisa que nos interessa tanto, que
coisas que a Igreja sÜstenta, sem nos toca tão profundamente, que
5 0 Que fazer dos homens que desprezam as
seria preciso ter perdido todo
menores coisas, que não crêem nas maiores? sentimento para deixar-se ficar
51
Isaías, 45, 15. indiferente, sem saber o que há a
PENSAMENTOS 89

respeito. Todas as nossas ações e ri ta mais do que me comove; ela


pensamentos seguem caminhos me espanta e horroriza, é um
tão diferentes, conforme haja ou monstro para mim. Não digo isso
não bens eternos a esperar, que é pelo zelo piedoso de uma devo-
impossível tentar alguma coisa ção espiritual. Entendo, pelo con-
com sentido e juízo, sem regulá- trário, que se deve ter esse senti-
la pela mira desse ponto, que mento por um princípio de
deve ser o nosso último objetivo. interesse humano e por um inte-
Assim, nosso primeiro interes- resse de amor-próprio: basta,
se, e nosso primeiro dever, estão para isso, ver o que vêem as pes-
em esclarecer esse assunto, do soas menos esclarecidas.
qual depende toda a nossa con- Não é preciso ter uma alma
duta. E é por isso que, entre os muito instruída para com-
não persuadidos, distingo gran- preender que não há neste mundo
demente os que lutam com todas verdadeira e sólida satisfação,
as forças para se instruir dos que que todos os nossos prazeres são
vivem sem se dar a esse trabalho puras vaidades, que nossos males
e sem nele pensar. são infinitos, e que, enfim, a
Só posso ter compaixão por morte, que nos ameaça a cada
aqueles que gemem sinceramente instante, deve infalivelmente nos
nessa dúvida, que a vêem como a levar em poucos anos à horrível
última das desgraças, e que, nada necessidade de sermos eterna-
poupando para dela escapar, mente aniquilados ou eterna-
fazem dessa procura suas princi- mente infelizes.
pais e mais sérias ocupações. Mas não há nada mais real do
Mas os que passam a vida sem que isso, nem nada mais terrível.
pensar nesse fim último da vida, Aparentemos a coragem que qui-
e que, pela única razão de não sermos: eis o fim que espera a
encontrar neles mesmos as luzes mais bela vida do mundo. Que se
que os convençam, descuidam de medite nisso, e que se diga,
procurá-las alhures, e de exami- depois, se não é indubitável que
nar a fundo se essa opinião é das não há outro bem nesta vida
que o povo recebe por simplici- senão o da esperança em outra
dade crédula ou das que, apesar vida; que não somos felizes senão
de obscuras em si, têm entretanto na medida em que nos vamos
um fundamento muito sólido e aproximando dessa outra vida, e
inabalável, esses, eu os considero que, assim como não haverá mais
de um modo muito diferente. desgraça para os que tinham
Tal negligência em assunto inteira garantia da eternidade,
que diz respeito a eles próprios, à não haverá também felicidade
sua eternidade, a seu todo, me ir- para os que carecem de toda luz.
90 PASCAL

É um grande mal, portanto, dado para viver me ficou reser-


ficar na dúvida, mas é pelo vado neste instante preciso, e não
menos um dever indispensável em outro, de toda a eternidade
procurar a verdade quando se que me precedeu e de toda a que
está nessa dúvida; e, assim, quem se seguirá. Só vejo p9r toda parte
duvida e não procura é ao mesmo infinidades, que tne encerram
-tempo bem infeliz e bem injusto; como um átomo e como uma
e se, além disso, está tranqüilo e sombra, que só dura um instante,
satisfeito, se disso se vangloria, e sem retorno. Tudo o que sei é que
disso tira vaidade, e se nessy esta- devo morrer logo, e contudo o
do encontra motivo para alegria, que mais ignoro é essa morte que
não tenho palavras para q~alifi­ não poderei evitar. Assim como
car tão extravagante criatura. não sei de onde venho, não sei
Aonde se podem ir buscar tais para onde vou: e só sei que, sàin-
sentimentos? Que motivo de ale- do deste mundo, cairei para sem-
gria se pode encontrar em não pre no nada, ou nas mãos de um
esperar senão misérias sem remé- Deus irritado, ignorando a qual
dio? Que motivo de vaidade exis- dessas duas condições serei dado
te em se. ver na obscuridade eternamente em quinhão. Eis o
impenetrável, e como pode acon- meu estado, cheio de fraqueza e
tecer que esse raciocínio passe de incerteza. E de tudo isso con-
pela cabeça de um homem razoá- cluo qde devo passar todos os
vel? dias de minha vida sem pensar
- "Não sei quem me Pôs no em investigar o que me deverá
mundo; nem o que é ô mundo, acontecer. Talvez pudesse encon-
nem o que sou eu mesmo; vivo trar algum esclarecimento para
numa terrível ignorância acerca minhas dúvidas; mas nâo quero
de todas as coisas; nâô sei o que dar-me ao trabalho de fazer tal
é. meu corpo, o que são meus sen- esforço, nem dar um passo para
tidos, a minha alma e essa parte procurá-lo. Tratarei com des-
mesma de mim que pensa o que prez<? os que se esgotam nesse
digo, que medita sobre tudo e cuidado, pois quero, sem previ-
sobre ela própria, e não se conhe- dência e sem receio, tentar esse
ce mais do que o resto. grande acontecimento, e quero
"Vejo esses medonhos espaços deixar-me conduzir molemente à
do universo que me cercam, e mort~, na incerteza da eternidade
encontro-me amarrado a um de minha futura condição."
canto dessa vastidão, sem que - Quem desejar ia ter por
saiba por que estou colocado amigo um homem que discorre
neste lugar e riãó noutro, nem por dessa maneira? Quem o escolhe-
que esse pouco tempo que me foi ria entre os demais para lhe
PENSAMENTOS 91

comunicar seus interesses? Quem tempo, essa sensibilidade pelas


recorreria a ele em suas aflições? menores coisas e essa estranha
E, enfim, a que uso da vida pode- insensibilidade pelas maiores. É
ríamos destiná-lo? um encantamento 5 2 incompreen-
Na verdade, é glorioso para a sível, uma apatia sobrenatural,
religião ter por inimigos homens sinal de uma força todo-poderosa
tão desarrazoados; e a oposição que o causa.
deles é tão pouco perigosa que
serve, ao contrário, para funda- É preciso que haja uma estra-
mentar suas verdades. Pois a fé nha transposição na natureza do
cristã quase que se contenta em homem para que ele possa van-
estabelecer estas duas coisas: a gloriar-se de se encontrar nesse
corrupção da natureza e a reden- estado, no qual parece incrível
ção de Jesus Cristo. Ora, sus- que alguém se possa achar. En-
tento que, se esses homens não tretanto, a experiência leva-me a
servem para demonstrar a verda- conhecer tantos que isto seria
de da redenção pela santidade de surpreendente, se não soubés-
seus costumes, servem admira- semos que a maior parte dos que
velmente, pelo menos, para de- se lhes misturam mascaram-se e
monstrar por sentimentos tão não são assim na realidade; são
desnaturados a corrupção da na- pessoas que ouviram di.zer que as
tureza. boas maneiras consistem em agir
Nada é tão importante para o de modo impetuoso. É o que cha-
homem como o seu estado; nada mam ter sacudido o jugo, e o que
lhe é tão temível como a eterni- procuram imitar. Mas não seria
dade; não é natural, portanto, difícil fazê-los compreender
que haja homens indiferentés à quanto se enganam procurando a
perda de seu ser e ao risco de estima por esse modo. Não é esse
uma eternidade de misérias. Eles o meio de adquiri-la, nem mesmo
são bem diferentes a respeito de entre as pessoas da sociedade que
todas as outras coisas: temem até julgam sensatamente as coisas e
as mais leves, prevêem-nas, sen- que sabem que a única maneira
tem-nas; e esse mesmo homem de vencer é parecer honesto, fiel,
que passa tantos dias e noites rai- judicioso e capaz de servir util-
voso e desesperado pela perda de mente o amigo, porque os ho-
um cargo, ou por qualquer imagi- mens só apreciam naturalmente
nária ofensa à sua honra, esse aquilo que lhes pode ser útil. Ora,
niesmo homem sabe que vai per- que vantagem há para nós em
der tudo com a morte, e se man- ouvir um homem dizer que sacu-
tém tranqüilo e sem emoçãd. É 52
Encantamento no sentido etimológico.
uma coisa monstruosa ver rium Pascal quer dizer encantam'ento mágico, impe-
mesmo coraçao, e ao mesmo dindo de ver a verdade.
92 PASCAL

diu o jugo, que não acredita na quem não ficaria horrorizado de


existência de um Deus que vele ter por companheiro nos mesmos
pelas suas ações, que se consi- sentimentos pessoas tão desprezí-
dera único senhor de seu compor- veis?
tamento, e que não pensa em dar Assim, pois, os que vivem fin-
satisfações senão a si próprio? gindo tais sentimentos não preci-
Acreditará levar-tios com isso a sariam dar-se ao trabalho de
termos bastante confiança nele, e constranger sua índole para se
a esperarmos dele consolos, con- tornarem os homens mais imper-
selhos e auxílios em todas as tinentes do mundo. Se no fundo
necessidades da vida? Pretenderá do coração estão magoados por
alegrar-nos muito, dizendo-nos não terem mais luzes, que não o
que, na sua opinião, a nossa alma dissimulem; essa declaração não
é apenas um pouco de vento e será vergonhosa; só é vergonhoso
fumaça, e a,inda por cima dizê-lo não ter vergonha. Nada revela
com um tom de voz orgulhoso e melhor uma extrema fraqueza do
satisfeito? Será coisa que se deva espírito do que ignorar qual a
dizer com alegria? Ou será coisa desgraça de um homem sem
para se dizer, pelo contrário, tris- Deus; nada indica tanto uma
temente, como a mais triste do disposição má do coração como
mundo? não esperar a verdade das pro-
Se pensassem seriamente, ve- messas eternas; nada é mais
riam que isso é tão mal achado, covarde do que fazer-se de valen-
tão contrário ao bom senso, tão te contra Deus. Que deixem, pois,
oposto ao decoro, e tão distante essas impiedades aos suficiente-
por todos os modos daquilo que mente malnascidos para serem
procuram, que seriam talvez realmente capazes delas; que
mais capazes de corrigir do que pelo menos sejam pessoas de bem
de corromper os que sentissem se não puderem ser cristãos, e
alguma inclinação para segui-los. que, enfim, reconheçam que só
E, com efeito, obrigai-os a pres- há duas espécies de pessoas a que
tar contas de seus sentimentos e podemos chamar razoáveis; as
das razões que têm para duvidar que, conhecendo Deus, o servem
da religião; eles vos responder~o de todo o coração, ou as que o
com coisas tão fáceis e tão baixas procuram de todo o coração por-
que vos persuadirão do contrário. que não o conhecem.
Era o que lhes dizia, certa vez, Mas as que vivem sem conhe-
muito a propósito, uma pessoa: cê-lo e sem procurá-lo julgam-se
"Se continuardes a discorrer a si próprias tão pouco dignas de
dessa maneira, na verdade me cuidados que não são dignas dos
convertereis". E tinha razão, pois cuidados dos outros; e é preciso
PENSAMENTOS 93

ter toda a caridade da religião verdade de uma coisa que lhes é


que desprezam para não despre- tão importante, que os toca tão
zá-las a ponto de deixá-las aban- de perto.
donadas à própria loucura. De todos os desvios, é sem dú-
Mas visto que essa religião nos vida esse o que mais os convence
obriga a considerá-las sempre, de que são loucos e cegos, e com
enquanto estiverem nesta vida, o qual mais fácil se torna confun-
como capazes da graça que pode- di-los pelos primeiros vislumbres
rá iluminá-las, e como nos obriga do bom senso e pelos sentimentos
ainda a crer que, em pouco da natureza. Pois é indiscutível
tempo, essas pessoas poderão que a duração desta vida é efême-
estar mais cheias de fé do que ra, que o estado de morte, qual-
nós, e que nós, pelo contrário, quer que seja, é eterno, e que,
poderemos cair na cegueira em assim, todas as nossas ações e
que se encontram, é preciso fazer pensamentos devem tomar cami-
por elas o que desejaríamos que nhos bem diferentes conforme o
fizessem por nós se estivéssemos estado dessa eternidade, de ma-
no seu lugar, exortá-las a apieda- neira que se torna impossível ten-
rem-se de si mesmas e a darem tar alguma coisa com sentido e
pelo menos alguns passos na pro- juízo senão regulando-a em vista
cura da luz. Que dediquem a essa desse ponto que deve ser o nosso
leitura algumas dessas horas tão último objetivo.
inutilmente empregadas em ou- Nada se evidencia tão clara-
tras coisas: mesmo que sintam mente; portanto, segundo os prin-
certa aversão, talvez acabem por cípios da razão, o comporta-
encontrar alguma coisa, e pelo mento dos homens mostra-se
menos não perderão muito. totalmente insensato quando se-
Quanto às que se dispuserem a guem outro caminho. Que se jul-
esse estudo com uma sinceridade guem, pois, segundo este critério,
perfeita e um verdadeiro desejo aqueles que vivem sem pensar
de encontrar a verdade, espero nesse último objetivo da vida,
que ficarão satisfeitas e conven- que se deixam arrastar pelas
cidas com as provas de uma reli- inclinações e pelos prazeres, sem
gião tão divina, que aqui reuni, e reflexão nem inquietude, e que,
nas quais segui mais ou menos como se pudessem aniquilar a
esta ordem ... eternidade desviando-a do pensa-
* 195 - Antes de entrar nas mento, só durante esse instante
provas da religião cristã, julgo pensam em se tornar felizes.
necessário dar uma idéia da Entretanto, essa eternidade
injustiça dos homens, vivendo na subsiste, e a morte, que deve
indiferença ante a procura da inaugurá-la e que os ameaça a
94 PASCAL

todo momento, deve colocá-los nam os homens, quando preferem


infalivelmente dentro em pouco viver nessa ignorância do que
na horrível necessidade de serem sao, sem procurar esclareci-
eternamente aniquilados ou infe- mento. "Não sei", dizem eles . . .
lizes, sem que saibam qual das 196 - Essas pessoas care-
duas eternidades lhes está reser- cem de coração; não faríamos
vada. Eis uma dúvida de terrível delas nossos amigos.
conseqüência. Correm o risco de 197 - Ser insensível até des-
uma eternidade de misérias; e, prezar as coisas interessantes e
apesar disso, como se a coisa não tornar-se insensível em relação
valesse a pena, descuidam de ao que mais nos interessa.
examinar se se trata de opiniões 198 - A sensibilidade do
que o povo recebe com uma faci- homem às pequenas coisas e sua
lidade por demais crédula, ou de insensibilidade às grandes reve-
opiniões que, sendo por si mes- lam uma estranha inversão.
mas obscuras, têm contudo um * 199 - Imagine-se certo nú-
fundamento muito sólido, ainda mero de homens presos e todos
que escondido. Assim, não condenados à morte, sendo uns
sabem se a coisa é verdadeira ou degolados diariamente diante dos
falsa, nem se as provas são fortes outros e os que sobram vendo
ou fracas. Têm-nas em frente aos sua própria condição na de seus
olhos: mas recusam olhá-las, e semelhantes e se contemplando
nessa ignorância preferem tudo uns aos outros com tristeza e sem
fazer para cair na desgraça, caso esperança, à espera de sua vez.
ela exista, a esperar a morte para Eis a imagem da condição dos
tirar a prova. E, apesar de tudo, homens.
mostram-se satisfeitos nesse esta- *200 - Imagine-se um
do, fazem dele profissão e dele se homem na prisão, não sabendo se
gabam. Será possível pensar se- sua sentença foi pronunciada e
riamente na importância dessa tendo apenas uma hora para
questão sem horrorizar-se diante sabê-lo, e bastando essa hora, se
de um comportamento tão extra- soubesse que foi sentenciado,
vagante? para obter a revogação da pena.
Tal repouso nessa jgnorância é Seria contra a natureza que em-
coisa monstruosa, cuja extrava- pregasse essa hora em jogar car-
gância e estupidez se devem tas em lugar de tentar informar-
apontar àqueles que assim vivem, se acerca da sentença. Assim, é
representando-as de modo a con- sobrenatural que o homem,
fundi-los pela visão da própria etc ... É um castigo da mão de
loucura. Pois eis como racioci- Deus.
PENSAMENTOS 95

Assim, não somente o zelo dos este momento? Memoria hospitis


que o procuram prova Deus mas unius diei praetereuntis 5 4 •
também a cegueira dos que não o 206 - O silêncio eterno des-
buscam. ses espaços infinitos me apavora.
201 - Todas as objeções de 207 - Quantos reinos nos
uns e de outros vão contra eles ignoram!
próprios e não contra a religião. 208 - Por que é limitado
Tudo o que dizem os ímpios ... meu conhecimento? Meu porte?
Minha duração, antes a cem do
202 - [Os que têm o des- que a mil anos? Que razão teve a
gosto de se ver sem fé, percebe-se natureza para dar-ma assim, por
que Deus não os ilumina; mas os que esse número de preferência a
outros, vê-se que um Deus os outro, porquanto na sua infini-
cega.] dade não há motivo para esco-
203 - Fascinatio nugaci- lher e um não tenta mais do que
tatis - A fim de que a paixão
5 3
outro?
não nos seja nociva, façamos de 209 - Serás menos escravo
conta que temos apenas oito dias por seres amado e acarinhado
de vida. por teu senhor? Possuis muitos
204 - Se devemos dar oito bens, escravo. Teu amo te afaga,
dias de nossa vida, devemos dar não demorará em bater-.te.
cem anos. *21 O - O último ato é san-
*205 - Quando penso na grento, por bela que seja a comé-
pequena duração da minha vida, dia no restante: joga-se afinal
terra sobre a cabeça, e para
absorvida na eternidade anterior
sempre.
e na eternidade posterior, no
*211 - Bem tolos somos em
pequeno espaço que ocupo, e
descansar na companhia dos nos-
mesmo que vejo, fundido na
sos semelhantes: miseráveis
imensidade dos espaços que igno-
como nós, fracos como nós, não
ro e que me ignoram, aterro-me.e
assombro-me de ver-me aqui e nos ajudarão; morreremos sós. É
preciso, pois, proceder como se
não alhures, pois não há razão
estivéssemos sós; e, então, cons-
alguma para que esteja aqui e
truiríamos edifícios soberbos,
não alhures, agora e não em
etc.? Procuraríamos a verdade
outro momento qualquer. Quem
sem hesitar; recusando-o, prova-
me colocou nestas condições?
Por ordem e obra de quem me 5 4 A esperança do ímpio é como a penagem

foram designados este lugar e que flutua no ar, como a espuma batida pela
tempestade, como a fumaça dispersada pelo
vento, e como a lembrança do hóspede de um
53 Fascinação da bagatela (Sabedoria, 4, 12). dia que passa (Sabedoria, 5, 15).
96 PASCAL

mos apreciar mais a estima dos *221 - Os ateus devem


homens que a busca da verdade. dizer coisas perfeitamente claras;
*212 - Escoamento - É ora, não é perfeitamente claro
horrível sentir escoar tudo o que que a alma seja material.
se possui. 222 - Ateus - Que razões
*213 -- Entre nós e o infer- têm eles para dizer que não se
no, ou o céu, há apenas a vida, a pode ressuscitar? Que será mais
coisa mais frágil do mundo. difícil: nascer ou ressuscitar, o
214 -- Injustiça - Que a que jamais foi seja o que for ou o
presunção se junte à miséria, eis que já foi ainda? Será mais difícil
a extrema injustiça. chegar a ser ou a voltar a ser? O
215 - Temer a morte fora hábito torna uma coisa fácil,
do perigo e não no perigo; poi~ é enquanto a ausência de hábito
preciso ser homem. faz a outra impossível: vulgar
216 - A morte súbita é a maneira de raciocinar!
única temível, eis por que os Por que uma virgem não pode
confessores habitam com os parir? Não põe a galinha ovos
grandes. sem galo? Quem os distingue dos
*217 - Um herdeiro encon- outros, exteriormente? E quem
tra seus títulos de propriedade. nos garante que a galinha não
Dirá que talvez sejam falsos e possa formar esse germe, tal qual
deixará de mandá-los examinar? o galo?
*218 --- Calabouço - Acho *223 - Que têm eles a dizer
justo que não se aprofunde o pen- contra a ressurreição e o parto da
samento de Copérnico: mas is- Virgem? O que é mais difícil:
to ... ! O que importa a todos é produzir um homem ou um ani-
saber se a alma é mortal ou ma], ou reproduzi-lo? E, se nunca
imortal. tivessem visto determinada espé-
*219 - É indubitável que o cie de animais, poderiam adivi-
fato de a alma ser mortal ou nhar se se produzem sem a com-
imortal deve acarretar uma dife- panhia uns dos outros?
rença imensa na mora]. E no 224 - Como detesto essas
entanto os filósofos conduziram tolices de não acreditar na Euca-
sua moral sem atentar para isso: ristia, etc. . . Se o Evangelho
deliberam passar uma hora. está certo, se Jesus Cristo é Deus,
Platão, para preparar o cristia- qual a dificuldade?
nismo. 225 - O ateísmo é sinal de
220 - Falsidade dos filóso- força de espírito, mas até certo
fos que não discutiam a imortali- grau somente.
dade da alma. Falsidade do dile- *226 - Os ímpios que fazem
ma deles em Montaigne. profissão de seguir a razao
PENSAMENTOS 97

devem ser estranhamente fortes jeto de dúvida e de inquietação.


no capítulo da razão. Que dizem Se eu não visse nada que assina-
eles, pois? "'Não vemos", pergun- lasse uma Divindade, optaria
tam, " morrer e viver os animais pela negativa; se em toda parte
como os homens, e os turcos percebesse um sinal da presença
como os cristãos? Eles têm suas de um Criador, descansaria em
cerimônias, seus profetas, seus paz na fé. Mas vendo demais
doutores, seus santos, seus reli- para negá-lo, e de menos para
giosos, como nós, etc." (É isso afirmar com segurança, sinto-me
contrário à Escritura? Não diz num estado lamentável no qual
ela tudo isso?) desejei cem vezes que, se um
Se não vo s importais em saber Deus sustenta essa natureza, ela
a verdade, eis o bastante para o apontasse sem equívoco; e que,
ficardes em repouso. Mas, se se as marcas que dele nos dá são
desejais de todo coração conhe- enganosas, que as suprimisse por
cê-la, isso não é o bastante;
completo; que dissesse tudo ou
observai pormenoriz ad amen te.
nada, a fim de que eu visse o par-
Seria o bastante, para uma ques-
tido a ser tomado. Ao passo que,
tão de filosofia: mas, aqui, onde
no estado em que estou, igno-
há de tudo . . . E, no entanto,
após uma ligeira reflexão dessa rando o que sou e o que devo
espécie, vão se divertir, etc. Que fazer, não conheço nem minha
se informem acerca dessa reli- condição nem meu dever. Meu
gião, ainda que ela não explique coração tende inteiro a perceber
tal obscuridad-e; talvez no-la ensi- onde se encontra o verdadeiro
ne. bem, para segui-lo; nada me seria
227 - Ordem por diálogos demasiado caro ante a eterni-
- "Que devo fazer? Não vejo dade.
por toda parte senão obscurida- Invejo os que vivem negligen-
des. Acreditarei que não sou temente em sua fé, e empregam
nada? Acreditarei que sou Deus? tão mal um dom de que eu faria,
Todas as coisas mudam e se creio, uso bem diferente.
sucedem." Vós vos enganais, 230 - É igualmente incom-
há .. . preensível que Deus exista e que
228 - Objeção dos ateus: não exista; que a alma exista com
"Mas não temos nenhuma luz". o corpo e que não tenhamos
*229 - Eis o que vejo e o alma; que o mundo tenha sido
que me perturba. Olho para criado e que o não tenha, etc ...
todos os lados e por toda parte só que haja ou não pecado original.
vejo obscuridade. A natureza não 231 - Acreditais impossível
me oferece nada que não seja ob- que Deus seja infinito, sem par-
98 PASCAL

tes? - Sim. - Quero então A justiça de Deus deve ser


mostrar-vos uma coisa infinita e enorme como a sua misericórdia.
indivisível. É um ponto moven- Ora, a justiça para com os répro-
do-se por toda parte em veloci- bos é menos enorme e deve
dade infinita, pois está em todos espantar menos do que a miseri-
os lugares e por inteiro em cada córdia para com os eleitos.
lugar. Sabemos que há um infinito, e
Que esse efeito da natureza, ignoramos a sua natureza. Como
antes aparentemente impossível a sabemos que é falso que os núme-
vossos olhos, vos faça reconhecer ros sejam finitos, logo é verdade
a existência de outros que não que há um infinito em número.
conheceis ainda. Não tireis de Mas não sabemos o que ele é: é
vosso aprendizado a conclusão falso que seja par, é falso que seja
de que sabeis tudo mas, sim, a de ímpar, pois acrescentando-lhe a
que vos resta infinitamente a unidade ele não muda de nature-
saber. za; entretanto, é um número, e
232 - O movimento infini- todo número é par ou ímpar (é
to, o ponto que tudo enche, o verdade que isso se refere a todo
momento de repouso: infinito número finito). Pode-se, pois,
sem quantidade, indivisível e infi- reconhecer que há um Deus sem
nito. se saber o que é.
233 - Infinito. Nada Não haverá uma verdade subs-
Nossa alma é lançada no corpo, tancial, ante tantas coisas verda-
onde encontra número, tempo, deiras que não são a verdade
dimensões. Raciocina sobre isso mesma?
e a isso chama natureza, necessi- Conhecemos a existência e a
dade, e não pode crer em outra natureza do finito porque somos
coisa. finitos e extensos como ele. Co-
A unidade acrescentada ao nhecemos a existência do infinito
infinito em nada o aumenta, e ignoramos a sua natureza, por-
como não aumenta uma medida que tem extensão, como nós, mas
infinita um pé que a ela se acres- não limite como nós. Não conhe-
cente. O finito se aniquila na pre- cemos nem a existência nem a
sença do infinito e torna-se um natureza de Deus, porque não
puro nada. Assim, nosso espírito tem extensão nem limites. Mas
em face de Deus; assim, nossa pela fé conhecemos sua exis-
justiça em face da justiça divina. tência e pela glória conheceremos
Não há uma desproporção tão a sua natureza. Ora, já demons-
grande entre a nossa justiça e a trei que se pode conhecer muito
de Deus, como entre a· unidade e bem a existência de uma coisa
o infinito. sem lhe conhecer a natureza.
PENSAMENTOS 99

Falemos, agora, segundo as escolha, já que nada sabeis.


luzes naturais. "Não; acusá-los-ei, porém, de
Se há um Deus, ele é infinita- terem feito, não essa escolha,
mente incompreensível, pois, não mas uma escolha; porque, embo-
tendo partes nem limites, não tem ra o que toma a cruz e o outro
nenhuma relação conosco. cometam igual erro, ambos estão
Somos, portanto, incapazes de em erro; o certo é não apostar."
conhecer não só o que ele é como - Sim: mas é preciso apos-
também se existe. Assim sendo, tar. Não é coisa que dependa da
quem ousará resolver a questão? vontade, já estamos metidos
Não seremos nós, que não temos nisso. Qual escolhereis então?
nenhuma relação com ele. Vejamos. Já que é preciso esco-
Quem, pois, censurará os cris- lher, vejamos o que menos vos
tãos por não poderem apresentar interessa. Tendes duas coisas a
as razões de sua crença, eles que perder: a verdade e o bem; e duas
professam uma religião de que coisas a empenhar: vossa razão e
não podem dar as razões? Eles vossa vontade, vosso conheci-
declaram, quando a expõem ao mento e vossa beatitude; e vossa
mundo, que é uma tolice, stulti- natureza tem que fugir de duas
tiam; e vós ainda vos queixais de coisas: o erro e a miséria. Vossa
que eles não a provam! Se a pro- razão não se sentirá mais atin-
vassem, não manteriam a pala- gida por terdes escolhido uma
vra: é carecendo de provas que coisa de preferência a outra, já
não carecem de senso. - "Mas que é preciso necessariamente
embora isso desculpe aqueles que escolher. Eis um ponto liquidado.
assim a oferecem, e os salve da Mas, vossa beatitude? Pesemos o
pecha de expô-la sem raciocínio, ganho e a perda escolhendo a
isso não desculpa os que a rece- cruz, que é Deus. Consideremos
bem." - Examinemos, pois, esse esses dois casos: se ganhardes,
ponto, e digamos: "Deus existe ganhareis tudo; se perderdes, não
ou não existe". Para que lado nos perdereis nada. Apostai, pois,
inclinaremos? A razão não o que ele existe, sem hesitar. -·-
pode determinar: há um caos "Isso é admirável. Sim, é preciso
infinito que nos separa. Na extre- apostar; mas talvez eu aposte
midade dessa distância infinita, demais." - Vejamos. Já que o
joga-se cara ou coroa. Em que acaso entra por igual no ganho e
apostareis? Pela razão, não pode- na perda, se tivésseis apenas a
reis atingir nem uma ,nem outra; ganhar duas vidas por uma, po-
pela razão, não podereis defender deríeis ainda apostar; mas se
uma ou outra. Não acuseis, pois, houvesse três a ganhar, seria pre-
de falsidade os que fizeram uma ciso jogar (já que sois obrigado a
100 PASCAL
jogar), e seneis imprudente, que certamente se expõe, ao infi-
quando forçado a jogar, se não nito, que é incerto. Não; todo
arriscásseis vossa vida para ga- jogador arrisca com certeza para
nhar três, num jogo em que o ganhar com incerteza, e contudo
acaso entra por igual no ganho e arrisca certamente o finito, para
na perda. Mas há uma eternidade ganhar incertamente o finito, sem
de vida e de felicidade. E, sendo pecar contra a razão. Não há
assim, mesmo que houvesse uma infinidade de distância entre essa
infinidade de probabilidades, das certeza do que se joga e a incer-
quais uma somente a vosso favor, teza do que se ganha; isso é falso.
teríeis ainda motivo para apostar Há, na verdade, infinidade entre
um para ter dois; e procederíeis a certeza de ganhar e a certeza de
sem tino se, obrigado a jogar, e perder. Mas a incerteza de ga-
havendo uma infinidade de vida nhar é proporcional à certeza do
infinitamente feliz a ganhar, recu- que se arrisca, segundo a propor-
sásseis jogar uma vida contra ção das probabilidades de ganho
três num jogo em que, numa infi- e de perda. De onde se deduz que,
nidade de acasos, há um a vosso se há tantas probabilidades de
favor. Ora, há aqui uma infini- um lado como do outro, a partida
dade de vida infinitamente feliz a deve ser jogada em paradas
ganhar e uma probabilidade de iguais; e então a certeza daquilo
ganho contra o número finito de que se arrisca é igual à incerteza
probabilidades de perda, e o que do ganho, pouco se nos dando
jogais é finito. Isso exclui qual- que esteja infinitamente distante.
quer escolha: sempre que temos o E assim a nossa proposição tem
infinito, e que não há uma infini- uma força infinita, quando há o
dade de probabilidades de perda finito a arriscar num jogo onde
contra a de ganho, não há que há iguais probabilidades de
hesitar, é preciso dar tudo. E ganho e de perda, e o infinito a
assim, quando se é forçado a ganhar. Isso é demonstrável; e se
jogar, é preciso renunciar à razão os homens são capazes de algu-
para guardar a vida, em vez de ma verdade, essa é uma verdade.
arriscá-la pelo ganho infinito tão - "Concordo. Mas não haverá
prestes a sobrevir quanto a perda ainda um meio de ver o que está
do nada. atrás do jogo?" - Sim, a Escri-
Não adianta, pois, dizer que é tura, e o resto, etc.
incerto ganhar e que é certo que - "Está bem, mas tenho as
se arrisca, e que a distância infi- mãos amarradas e a boca fecha-
nita que há entre a certeza do que da; obrigam-me a apostar, e não
se aventura, e a incerteza do que estou livre; não me soltam. E sou
se ganhará iguala o bem finito, feito de tal maneira que não
PENSAMENTOS 101

posso crer. Que quereis, pois, que Fim deste diálogo - Ora, que
eu faça?" mal vos poderá acontecer toman-
- É verdade. Mas aprendei do esse partido? Sereis fiel, ho-
pelo menos vossa impotência nesto, humilde, reconhecido,
para crer, já que a razão a isso bom, amigo sincero, verdadeiro.
vos conduz e que todavia não o Em verdade, não ficareis com os
podeis. Esforçai-vos, pois, não prazeres empestados, com a gló-
para vos convencerdes pelo au- ria, com as delícias; ma~ não te-
mento das provas de Deus, mas reis outras coisas? Digo que com
pela diminuição das vossas pai- isso ganhareis nesta vida, e que,
xões. Quereis chegar à fé e não em cada passo que derdes nesse
sabeis o caminho, quereis curar- caminho, vereis tanta certeza no
vos da infidelidade e pedis o ganho, e tanta nulidade naquilo
remédio: aprendei com os que que arriscaríeis, que reconhece-
estiveram atados como vós e que reis, po'r fim, que apostastes
apostam agora todos os seus numa coisa certa, infinita, pela
bens; são pessoas que conhecem qual nada destes.
esse caminho que desejaríeis se- - "Oh, esse raciocínio me
guir e que estão curadas do mal transporta, me encanta, etc."
de que desejais curar-vos. Segui a - Se esse raciocínio vos
maneira pela qual começaram: agrada e vos parece forte, sabei
fazendo tudo como se tivessem que é feito por um homem que se
fé, tomando água benta, man- pôs de joelhos antes e depois,
dando dizer missas, etc ... Natu- para suplicar a esse ser infinito e
ralmente isso vos fará crer e vos sem partes, ao qual submete tudo
bestificará 5 5 • - "Mas é isso o o que é seu, que submeta também
que eu temo." - E por quê? que o que é vosso, para vosso próprio
tendes a perder? ... bem e para sua glória, e que
E vou mostrar-vos como essas assim a força se concilie com
coisas vos levam a diminuir as essa baixeza.
paixões, que são vossos grandes *234 - · Se somente se deves-
obstáculos. se fazer alguma coisa com certe-
5 5 Eis como Brunschvicg explica esta expres-
za, nada se deveria fazer pela
são, que tanto chocou Victor Cousin: "Bestifi- religião, pois ela não oferece cer- ·
car-se (s 'abêtir) é renunciar às crenças às quais teza. Mas quantas coisas se
a 'instrução' e os hábitos deram a força da
necessidade natural, porém que o próprio fazem na incerteza: viagens marí-
raciocínio demonstra serem impotentes e vãs. timas, batalhas! Digo, portanto,
Bestificar-se é retornar à infância para atingir
as verdades superiores, inacessíveis à curta qu.e não se deveria -fazer absolu-
sabedoria dos semi-sábios. 'Nada é mais con- tamente nada, porque nada é
forme à razão do que esta retratação da
razão': a palavra de Pascal é a palavra de um certo; e que há mais certeza na
crente, não de um cético". (N. desta edição.) religião do que em vermos o dia
102 PASCAL

de amanhã; pois não é certo que morreis sem adorar o verdadeiro


vejamos o amanhã, mas é certa- princípio, estais perdido. "Mas",
mente possível que não o veja- dizeis, "se ele tivesse querido que
mos. Não se pode dizer o mesmo eu o adorasse, ter-me-ia deixado
da religião. Não é certo que exis- sinais de sua vontade." - Em
ta; mas quem ousará dizer que é verdade, ele o fez; mas vós os
certamente possível que não exis- negligenciais. Procurai-os, por-
ta? Ora, quando se trabalha para tanto; bem o merecem.
o amanhã, e o incerto, age-se *237 - Partidos - Deve-se
com razão; porque devemos tra- viver diferentemente no mundo
balhar para o incerto, pela regra segundo estas diversas hipóteses:
dos partidos que se demonstra. primeira, a de aí permanecer
Santo Agostinho viu que se sempre; segunda, a da certeza de
trabalha pelo incerto no mar, na que aí não ficaremos muito
batalha, etc.; não viu a regra dos tempo, a da incerteza de aí ficar-
partidos que demonstra que se mos uma hora sequer. Esta últi-
deve fazê-lo. Montaigne viu que ma hipótese é a nossa.
nos ofendemos com um espírito 238 - Que me prometeis fi-
claudicante e que o costume pode nalmente (pois dez anos é o parti-
tudo; mas não viu a razão desse do) senão dez anos de amor-pró-
efeito. Todas essas pessoas viram prio, a tentar agradar sem o
os efeitos, mas não viram as cau- conseguir, além das penas cer-
sas. São, em relação aos que tas?
descobriram as causas, como os *239 - Objeção - Os que
que só têm olhos em relação aos esperam a salvação são felizes,
que têm o espírito. Pois os efeitos mas têm como contrapeso o
são como que sensíveis, e as cau- medo do inferno.
sas são visíveis somente ao espí- Resposta· - Quem tem mais
rito. E, embora esses efeitos se razões para temer o inferno?
vejam pelo espírito, esse espírito Quem ignora a existência de um
está, em relação ao espírito que inferno e tem a certeza da dana-
vê as causas, como os sentidos ção caso ele exista, ou quem está
corporais em relação ao espírito. mais ou menos persuadido da
235 - Rem viderunt, cau- existência de um inferno e tem a
sam non v iderunt 5 6 • esperança de ser salvo?
*236 - Pelos partidos, de- *240 - "Não demoraria em
veis dar-vos ao trabalho de pes- abandonar os prazeres", dizem,
quisar a verdade. Com efeito, se "se tivesse fé." E eu vos digo:
5 6
"Não demoraríeis em ter fé, se
Viram a coisa, não viram a causa. Segundo
Brunschvicg, a frase latina é provavelmente do houvésseis abandonado os praze-
próprio Pascal. res". Ora, cabe-vos começar. Se
PENSAMENTOS 103

pudesse, eu vos daria a fé; não o *241 - Ordem Teria


posso fazer nem, portanto, sentir muito mais medo de me enganar,
a verdade do que dizeis. Mas vós e vir a achar que a religião cristã
podeis abandonar os prazeres e é verdadeira, do que de me enga-
sentir se o que digo é verdadeiro. nar por julgá-la verdadeira.
ARTIGO IV
Dos meios de crer

*242 - Prefácio da segunda a prova com um tal discurso, e


parte: Falar dos que trataram dar-lhes motivo de crer que as
desta matéria. provas da nossa religião são bem
Admiro a ousadia com que fracas; e eu vejo pela razão e pela
essas pessoas empreendem falar experiência que nada é mais
de Deus. Dirigindo os seus dis- capaz de inspirar-lhes desprezo
cursos aos ímpios, o seu primeiro por ela.
capítulo é provar a divindade Não é bem dessa maneira que
pelas obras da natureza. Eu não a Escritura, que conhece melhor
me admiraria de sua empresa se as coisas que são de Deus, fala de
dirigissem seus discursos aos tal assunto. Ela diz, ao contrário,
fiéis; pois é certo [que os] que que Deus é um Deus oculto; e
têm a fé viva no coração vêem que, desde a corrupção da natu-
incontinenti que tudo quanto reza, ele os deixou (os homens)
existe nada mais é do que a obra numa cegueira de que só podem
do Deus que adoram. Mas, para sair por Jesus Cristo, fora do
aqueles em que essa luz se extin- qual toda comunicação com
guiu, e nos quais se pretende Deus está afastada: Nemo novit
fazê-la reviver, para essas pes- Patrem nisi Filius, et cui voluerit
soas destituídas de fé e de graça, Filius revelare 5 7 •
as quais, procurando com toda a É o que a Escritura nos assina-
sua luz tudo o que vêem na natu- la, quando diz, em tantos lugares,
reza capaz de as conduzir a esse que os que procuram Deus o
conhecimento, só acham obscuri- acham. Não é dessa luz que se
dade e trevas, dizer-lhes que lhes fala, "~orno da claridade em
basta ver a menor das coisas que pleno meio-dia": não se diz que
as cercam, para nela verem Deus os que procuram a luz em pleno
a descoberto, e dar-lhes, por toda meio-dia ou a água no mar as
prova desse grande e importante 5 7 Ninguém conheceu o Pai, senão o Filho e
assunto, o curso da lua ou dos aquele a quem o Filho o quis revelar (São
planetas, e pretender ter acabado Mateus, 11, 27).
106 PASCAL

encontrarão; e assim é, na verda- inspirações, que são as umcas


de, preciso que a evidência de que podem produzir o verdadeiro
Deus não seja dessa ordem na e salutar efeito: Ne evacuetur
natureza. Por isso ela nos diz em crux Christi 5 9 •
outra parte: Vere tu es Deus 246 - Ordem - Depois da
absconditus 5 8 • carta "que se deve procurar
243 - É uma coisa admirá- Deus", fazer a carta "de afastar
vel que nunca um autor canônico os obstáculos", que é o discurso
se tenha servido da natureza para da "máquina", de preparar a
provar Deus. Todos tendem a máquina 6 0 , de procurar com a
fazer crer nele: Davi, Salomão, razão.
etc., nunca disseram: "Não há
vazio, portanto há um Deus". 247 - Ordem - Uma carta
Era preciso que fossem mais há- de exortação a um amigo para
beis do que as mais hábeis pes- levá-lo a procurar. - E ele
soas que vieram depois, as quais responderá: "Mas de que me ser-
todas se serviram desse argumen- virá procurar? Nada encontro".
to. Isso é muito considerável. E responder-lhe: "Não desespe-
244 - "Como ! Pois não di- reis". E ele responderia que seria
zeis vós mesmos que o céu e os feliz se encontrasse alguma luz,
passarinhos provam Deus?" - mas que, segundo essa religião
Não. - "E não o diz vossa reli- mesma, se assim acreditasse, de
gião?" - Não. Porque, embora nada lhe serviria, e portanto pre-
seja verdade em certo sentido fere não procurar.· E a isso
para algumas almas a que Deus responder-lhe: a máquina.
deu essa luz, isso é falso no que
concerne à maioria. 248- Carta que assinala a
*245 - Há três meios de utilidade das provas pela má-
crer: a razão, o costume, a inspi- quina - A fé é diferente da
prova: uma é humana, a outra
ração. A religião cristã, que é a
um dom de Deus. Justus ex fide
única que tem razão, não admite
como verdadeiros filhos os que
vivit: dessa fé que o próprio Deus
põe no coração, cuja prova é
crêem sem inspiração: não que
amiúde o instrumento, fides ex
exclua a razão e o costume, ao
contrário; mas é preciso abrir o auditu, mas essa fé está no cora-
espírito às provas, assegurar-se 5 9 • • . a fim de que a cruz de Cristo não se
destas pelo costume, porém ofe- torne vã (São Paulo, 1 Cor 1, 17).
recer-se pelas humilhações às 60 Ligar esse pensamento ao anterior: venci-
das as paixões pela disciplina mecânica do
costume, os obstáculos estão afastados, prepa-
58
És realmente Deus oculto (São Mateus, 45, rando-se o caminho, pelo sentimento, às inspi-
15). rações e à razão. (N. do E.)
PENSAMENTOS 107

ção e faz que se diga credo e não daí vem que o instrumento pelo
seio 61 • qual a persuasão se faz não seja a
*249 - É ser supersticioso única demonstração. Quão pou-
ter esperança nas formalidades; cas são as coisas demonstradas!
mas é ser soberbo não querer As provas só convencem o espíri-
submeter-se-lhes. to. O costume torna as nossas
250 - É preciso que o exte- provas mais fortes e mais críveis;
rior se junte ao interior para inclina o autômato, o qual arras-
obter 62 de Deus; isto é, que nos ta o espírito sem que este o perce-
ponhamos de joelhos, oremos ba. Quem demonstrou que ama-
movendo os lábios, etc., a fim de nhã será dia, e que morreremos?
que o homem orgulhoso, que não E haverá algo em que mais se
quis submeter-se a Deus, seja acredite? É, pois, o costume qµe
agora submetido à criatura. Es- nos persuade disso; ele é que faz
perar socorro desse exterior é ser tantos cristãos, ele é que faz os
supersticioso, não querer alcan- turcos, os pagãos, os artesãos, os
çá-lo no interior é ser soberbo. soldados, etc. (Os cristãos têm a
*25 1 - As outras religiões, mais, em relação aos turcos, a fé
como as pagãs, são mais popula- recebida com o batismo.) Enfim,
res porque se exteriorizam: não o é preciso recorrer a ele quando o
são, porém, para as pessoas há- espírito viu uma vez onde se acha
beis. Uma religião puramente a verdade para nos desseden-
intelectual seria mais adequada tarmos e nos tingirmos com essa
aos hábeis, mas não serviria ao crença, que nos escapa a toda
povo. Só a religião cristã é ade- hora; pois ter sempre provas à
quada a todos, sendo composta mão é demasiado penoso. É pre-
de exterior e de interior. Ela eleva ciso adquirir uma crença mais
o povo no interior e baixa os fácil, a do hábito, a qual, sem
soberbos no exterior, não sendo violência, sem artificio, sem ar-
perfeita sem os dois, pois é preci- gumento, leva-nos a crer nas coi-
so que o povo entenda o espírito sas, e inclina todas as nossas for-
da letra e que os hábeis subme- ças a essa crença, de modo que
tam o seu espírito à letra. nossa alma nela caia natural-
*25 2 - ... Pois não deve- mente. Quando só se crê pela
mos conhecer-nos mal: somos força da convicção e quando o
autômato tanto quanto espírito; autômato se acha inclinado a
crer o contrário, isso não basta.
6 1 O justo vive da fé. A fé vem de haver ouvi- É necessário, portanto, levar as
do (São Paulo, Rom l, 17; 10, 17). duas peças a crerem: o espírito
62 Obter no sentido absoluto, como no pensa-

mento 514. (N. do E.) pelas razões, que é suficiente ter


108 PASCAL

visto uma vez na vida, e o autô- mas por libertinagem: poucos se


mato pelo costume, sem lhe per- situam entre uns e outros.
mitir inclinar-se para o contrário. Não incluo nisso os que se
Inclina cor meum, Deus 6 3 encontram dentro da verdadeira
A razão age lentamente e com piedade de costumes e os que
tantas vistas, sobre tantos princí- crêem por sentimento de coração.
pios, os quais devem estar pre- *25 7 - Há apenas três espé-
sentes, que a cada instante ela cies de pessoas: umas servem a
cochila ou se perde, deixa de ter Deus, tendo-o encontrado; outras
todos os seus princípios presen- aplicam-se em buscá-lo, não o
tes. O sentimento não age assim: tendo achado; outras, enfim,
age um instante e está sempre vivem sem o procurar e sem o ter
pronto para agir. É preciso, pois, encontrado. As primeiras são
pôr a nossa fé no sentimento; de sensatas e felizes, as últimas, lou-
outra maneira, vacilará sempre. cas e desgraçadas, as do meio
*253 - Dois excessos: ex- infelizes e sensatas.
cluir a razão, só admitir a razão. 258 - Unusquisque sibi
254 - Não é raro que se Deum fingit 6 4 •
deva admoestar as pessoas por O nojo.
demasiada docilidade. Trata-se 259 - As pessoas comuns
de um vício natural como a incre- têm o poder de não pensar naqui-
dulidade e igualmente pernicioso: lo em que não querem pensar.
a superstição. "Não penses nas referências ao
255 - A devoção é diferente Messias" 6 5 , dizia o judeu ao
da superstição. Defender a devo- filho. Assim fazem os outros não
ção até a superstição é destruí-la. raro. Assim se conservam as fal-
É fazer o que nos censuram os sas religiões, e mesmo a verda-
heréticos: uma submissão supers- deira, para muita gente.
ticiosa ... Mas há os que não podem dei-
Irreligiosidade de não crer na xar, assim, de pensar e pensar
Eucaristia porque não a vemos. tanto mais quanto lho proíbem.
Superstição de crer em proposi- Esses desfazem-se das falsas reli-
ções. Fé, etc. giões, e até da verdadeira, se não
256 - Há poucos cristãos encontram razões sólidas.
verdadeiros, e digo-o mesmo no 260 - Eles se escondem na
que concerne à fé. l-Iá muitos ho-
mens que crêem, mas por supers- 6 4
Cada qual fabrica um Deus para si (Sabe-
doria, 15, 8).
tição: há outros que não crêem, 6 5
"Não te preocupes com as passagens onde
se prediz a vinda do Messias." Ignora-se de
63
Inclina meu coração, ó Deus (Salmo 118, que obra teria sido extraída esta referência. (N.
36). do E.)
PENSAMENTOS 109

pressa e pedem socorro ao núme- concupiscência. Escrúpulos


ro.· Tumulto. desejos maus. Temor mau:
A autoridade - O fato de Temor, não aquele que vem de
ouvir dizer uma coisa está tão acreditarmos em Deus, mas o
longe de ser a regra da vossa que vem de duvidarmos se ele
crença que não deveis acreditar existe ou não. O bom temor vem
em nada sem vos encontrardes na da fé - o falso temor vem da dú-
posição de quem nunca ouviu vida. O bom temor, unido à espe-
falar disso. rança, porque nasce da fé, e por-
O que vos deve levar a crer é que depositamos esperança no
vosso consentimento a vós mes- Deus em que acreditamos; - o
mos, é a voz constante de vossa mau unido ao desespero, porque
razão e não a dos outros. tememos o Deus no qual não
Crer é tão importante! Cem temos qualquer fé. Uns temem
contradições seriam verdadeiras. perdê-lo - outros temem encon-
Se a antiguidade fosse regra trá-lo.
para a crença, não teriam os anti- *263 - "Um milagre", diz-
gos regra. Se fosse o consenti- se, "consolidaria minha crença."
mento geral, e os homens tives- Diz-se isso quando não se vê. As
sem morrido? razões que, sendo vistas de longe,
Falsa humildade, orgulho. parecem limitar nossa vista, não
Levantai a cortina. Por mais a limitam mais quando se che-
que o façais, deveis crer ou negar gou; começa-se a ver ainda além.
ou duvidar. Não teremos regra, Nada detém a volubilidade do
então? Achamos que os animais nosso espírito. Não há, diz-se,
fazem bem o que fazem. Não regra que não tenha alguma exce-
haverá regra para julgar os ho- ção, nem verdade tão geral que
mens? não tenha alguma face por onde
Negar, crer, duvidar bastante, falhe. Basta que não seja absolu-
estão para o homem como o ga- tamente universal para nos dar
lope para o cavalo. motivo de aplicar a exceção ao
Punição dos que pecam, erro. assunto presente, e dizer: "Isto
261 - Os que não amam a nem sempre é verdadeiro; portan-
verdade tomam como pretexto a to, há casos em que não o é".
contestação, a multidão dos que Não resta mais senão mostrar
a negam. Seu erro, portanto, vem que aquilo o é; e é nisto que nos
somente do fato de não amarem a mostramos bem desajeitados ou
verdade ou a caridade; e não têm bem desgraçados se não achamos
desculpa, portanto. alguma luz.
*262 - Superstição e 264 - Não nos aborrecemos
110 PASCAL
de comer e dormir todos os dias, Pois, se as coisas naturais a
porque a fome renasce, e o sono .ultrapassam, que dizer das sobre-
também; sem o que nos aborrece- naturais?
ríamos. Da mesma forma, sem *268 - Submissão - É pre-
fome de coisas espirituais, abor- ciso saber duvidar quando neces-
recemo-nos. Fome de justiça: oi- sário, afirmar quando necessário,
tava beatitude. submeter-se quando necessário.
*265 - A fé diz bem o que Quem assim não faz não entende
não dizem os sentidos, mas não o a força da razão. Há os que
contrário do que estes vêem. Está pecam contra esses três princí-
. ...... . ,.,.,
acima e nao em opos1çao. pios, ou afirmando tudo como
266 - Quantos astros as lu- demonstrativo, por falta de co-
netas nos descobriram, que não nhecimentos em demonstrações;
existiam para os filósofos de ou duvidando de tudo, por não
· outrora! Atacava-se maldosa- saberem quando é preciso subme-
mente a Sagrada Escritura por ter-se; ou submetendo-se a tudo,
causa do grande número de estre- por ignorarem quando é preciso
las, dizendo: "Existem somente julgar.
mil e vinte e duas; nós o sabe- 269 - · Submissão e uso da
mos" 6 6 • razão, eis em que consiste o
Há ervas na terra? Nós as cristianismo.
vemos. - Da lua não as vería- *270 - Santo Agostinho 6 7 :
mos. - E nessas ervas há pêlos a razão nunca se submeteria, se
e, nesses pêlos, animaizinhos; não julgasse que há ocasiões em
depois, porém, mais nada. - Ó que deve submeter-se. É, pois,
presunçoso ! - Os mistos são justo que se submeta quando
compostos de elementos e estes julga que deve submeter-se.
não. - Ó presunçoso, eis uma 271 - A sabedoria envia-
coisa delicada. - Não se deve nos à infância: Nisi efficiamini
dizer que existe o que não se vê. sicut parvuli 6 8 •
- Deve-se então dizer como os *272 - Não há nada tão
outros, mas nao pensar como conforme à razão como a retrata-
eles. . ção da razão.
*267 - A última tentativa *273 - Se se submete tudo à
da razão é reconhecer que há razão, a nossa religião nada terá
uma infinidade de coisas que a de misterioso nem de sobrenatu-
ultrapassam. Revelar-se-á fraca
6 7
Refere-se à carta de Santo Agostinho a
se não chegar a percebê-lo. Consêncio (Ep., CXX, 3) sobre a precedência
da fé ou da razão. (N. do E.)
6 6
O livro de Ptolomeu, guia da ciência astro- 68
Se não vos converterdes e não vos tornar-
nômica da Antiguidade, mencionava apenas des crianças, não entrareis no reino dos céus.
mil e vinte e duas estrelas. (N. do E.) (São Mateus, 18, 3.)
PENSAMENTOS 111

ral. Se se contrariam os princí- à razão que vos amais a vós


pios da razão, a nossa religião próprios?
será absurda e ridícula. *278 - É o coraçao que
*274 - Todo o nosso racio- sente Deus, e não a razão. Eis o
cínio reduz-se a ceder ao senti- que é a fé: Deus sensível ao cora-
mento. Mas a fantasia é seme- ção, não à razão.
lhante e contrária ao sentimento, 279 - A fé é um dom de
de maneira que não se pode dis- Deus; não imagineis que a consi-
tinguir entre esses contrários. Um deramos um dom do raciocínio.
diz que meu sentimento é fanta- As outras religiões não dizem
sia, outro que sua fantasia é isso de sua fé: só davam o racio-
sentimento. Fora preciso uma cínio para atingi-la, o qual, entre-
regra. A razão se oferece, mas é tanto, não a alcança.
flexível em todos os sentidos. 280 - Que distância entre o
Não há regra, pois. conhecimento de Deus e o amor
*275 - Os homens tomam de Deus!
muitas vezes sua imaginação por 281 - Coração, instinto e
seu coração; e imaginam estar princípios.
convertidos, mal pensam em se *282 - Conhecemos a ver-
converter. dade não só pela razão mas tam-
276 - O Sr. de Roannez bém pelo coração; é desta última
dizia: "As razões vêm-me depois: maneira que conhecemos os prin-
antes, a coisa me agrada ou me cípios, e é em vão que o raciocí-
choca sem que eu saiba a razão, nio, que deles não participa, tenta
e, no entanto, choca-me por essa combatê-los. Os pirrônicos, que
razão que descubro a seguir". só têm isso como objetivo, traba-
Não creio que a coisa choque lham inutilmente. Sabemos que
pelas razões que se descobrem não sonhamos; por maior que
depois e sim que só se encontram seja a nossa impotência em pro-
essas razoes porque a coisa vá-lo pela razão, essa impotência
choca. mostra-nos apenas a fraqueza da
*277 - O coração tem suas nossa razão, mas não a certeza
razões, que a razão não conhece: de todos os nossos conheci-
percebe-se isso em mil coisas. mentos, como pretendem. Pois o
Digo que o coração ama o ser conhecimento dos princ1p1os,
universal naturalmente e a si como o da existência de espaço,
mesmo naturalmente, conforme tempo, movimentos, números, é
aquilo a que se aplique; e ele se tão firme como nenhum dos que
endurece contra um ou outro, à nos proporcionam os nossos ra-
sua escolha. Rejeitastes um e ciocínios. E sobre esses conheci-
conservastes o outro: será devido mentos do coração e do instinto é
112 PASCAL

que a razão deve apoiar-se e ba- raciocínio, à espera de que Deus


sear todo o seu discurso~ (O cora- lha dê pelo sentimento do cora-
ção sente que há três dimensões ção, sem o que a fé é apenas hu-
no espaço e que os números são mana e inútil para a salvação.
infinitos; e a razão demonstra, *283 - A ordem. Contra a
em seguida, que não há dois nú- objeção de que a Escritura não
meros quadrados dos quais um tem ordem - O coração tem sua
seja o dobro do outro. Os princí- ordem; o espírito tem a sua, atra-
pios se sentem, as proposições se vés de princípios e demonstra-
concluem; e tudo com certeza, ções; o coração tem outra. Não
embora por vias diferentes.) E é se prova que se deve ser amado
tão inútil e ridículo que a razão expondo por ordem as causas do
peça ao coração provas dos seus amor: seria ridículo.
princípios primeiros, para con- Jesus Cristo e São Paulo têm a
cordar com eles, quanto seria ordem da caridade e não a do
ridículo que o coração pedisse à espírito; pois queriam inflamar,
razão um sentimento de todas as não instruir. Santo Agostinho
proposições que ela demonstra, também. Essa ordem consiste
para recebê-los. principalmente na digressão
Essa impotência deve, pois, sobre cada ponto que se rela-
servir apenas para humilhar a ciona com o fim, para mostrá-lo
razão que quisesse julgar tudo; sempre.
mas não para combater a nossa *284 - Não vos admireis de
certeza, como se apenas a razão ver pessoas simples crerem sem
fosse capaz de nos instruir. Prou- raciocínio. Deus lhes dá o amor a
vesse a Deus que, ao contrário, éle e o ódio a si mesmas. Inclina-
nunca tivéssemos necessidade lhes o coração a crer. Nunca se
dela e conhecêssemos todas as crerá com uma crença útil e de fé,
coisas por instinto e por senti- se Deus a tanto não inclina o
mento ! Mas a natureza recusou- coração; crer-se-á desde que ele o
nos esse bem e só nos deu, ao incline. É o que bem sabia Davi
contrário, muito poucos conheci- quando dizia: Inclina cor meum,
mentos dessa espécie; todos os Deus, in [ testimonia tua] 6 9 •
outros só podem ser adquiridos *285 - A religião é propor-
pelo raciocínio. cionada a toda espécie de espíri-
Eis por que aqueles a quem tos. Detêm-se os primeiros no seu
.Deus deu a religião pelo senti- simples estabelecimento 7 0 , e essa
mento do coração são bem felizes
e se encontram legitimamente 69
Inclina meu coração, ó Deus, para teus
testemunhos. (Salmo 118, 36.)
persuadidos. Mas aos que não a 70
O estabelecimento: a constituição da Igre-
têm, só l lhaj podemos dar pelo ja cristã. (N. do E.)
PENSAMENTOS 113

religião é de tal ordem que o sim- tãos, que crêem sem provas, não
ples estabelecimento basta para terá, talvez, com que convencer
provar a sua verdade. Os outros um infiel que lhe alegue tal coisa.
vão até os apóstolos. Os mais Mas os que conhecem as provas
i_n struídos vão até o começo do da religião provarão sem dificul-
mundo. Os anjos vêem ainda me- dade que esse fiel é verdadeira-
lhor e mais longe. mente inspirado por Deus, embo-
*286 - Os que crêem, sem ra nao possa prová-lo ele
ter lido os Testamentos, fazem- próprio.
no porque têm uma disposição Pois Deus tendo dito em suas
interior tão santa que o que profecias (que são indubitavel-
ouvem dizer da nossa religião se mente profecias) que no reinado
conforma com esta disposição. de Jesus Cristo ele expandiria seu
Sentem que um Deus os fez. Só espírito sobre os povos; e que os
querem amar a Deus. Só querem filhos e as filhas da Igreja profeti-
odiar a si mesmos. Sentem que zariam, é fora de dúvida que o
não têm por si mesmos força espírito de Deus se deteve nesses
para isso, que são incapazes de ir e não nos outros.
a Deus e que, se Deus não vem a *288 - Em lugar de vos
eles, não podem ter nenhuma queixardes por Deus se ter ocul-
comunicação com ele. E ouvem tado, rendei graças pelo fato de
dizer, em nossa _religião, que é se haver descoberto tanto; e
preciso amar somente a Deus e ainda lhe rendereis graças por
odiar somente a si mesmos; mas, não se ter descoberto aos sábios
sendo todos corrompidos e inca-
soberbos, indignos de conhecer
pazes de Deus,· Deus se fez
um Deus tão santo.
homem para unir-se a nós. Não é
preciso mais para persuadir ho- Duas espécies de pessoas o
mens que têm essa disposição no conhecem: as que têm o coração
coração e que têm esse conheci- humilhado e que amam a humil-
mento do seu dever e de sua dade qualquer que seja seu grau
incapacidade. de espírito, elevado ou rasteiro;
*287 - Os que vemos serem ou as que têm espírito bastante
cristãos, sem o conhecimento das para ver a verdade, seja qual for
profecias e das provas, não dei- a oposição que encontrem.
xam de julgá-las tão bem quanto 289 - Provas - Primeira: a
os outros as julgam pelo espírito. religião cristã, por seu estabeleci-
É o próprio Deus que os inclina a mento, por si mesma estabelecida
crer; e assim estão eles · muito tão fortemente, tão docemente,
eficazmente persuadido s. sendo tão contrária à natureza ;
Confesso que um desses cris- - segunda: a santidade, a eleva-
114 PASCAL

ção e a humildade de uma alma décima segunda: pela conduta do


cristã; - terceira: as maravilhas mundo.
da Sagrada Escritura; - quarta:: Considerando o que é a vida e
Jesus Cristo em particular; - essa religião, é indubitável que
quinta: os apóstolos em partiCu- depois disso não devemos recu-
lar; - sexta: Moisés e os profe- sar a inclinação para segui-la, se
tas em particular; - sétima: o essa inclinação nos vem pelo
povo judeu; - oitava: as profe- coração; e é certo que não há
cias; - nona: a perpetuidade: razão para zombar dos que a
nenhuma religião tem perpetui- seguem.
dade; - décima: a doutrina que 290 - Provas da Religião
tudo esclarece; - décima pri- - Moral, Doutrina, Milagres,
meira: a santidade dessa lei; - Profecias, Figuras.
ARTIGO V
A justiça e a razão dos efeitos

291 - Na carta Da Injustiça os legisladores não teriam toma-


pode-se incluir a história dos do por modelo, em lugar dessa
primogênitos que tudo têm. "Meu justiça constante, as fantasias e
amigo, nascestes deste lado da os caprichos dos persas e ale-
montanha; é, pois, justo que mães. Vê-la-íamos plantada por
vosso irmão mais velho tenha todos os Estados do mundo e em
tudo." todos os tempos, ao passo que
"Por que me matais?" quase nada se vê de justo ou de
292 - Ele reside na outra injusto que não mude de quali-
margem. dade mudando de clima. Três
293 - "Por que me matais? graus de elevação do pólo derru-
- Como! Não habitais do outro bam a jurisprudência. Um meri-
lado da água? Meu amigo, se diano decide a verdade; em pou-
morásseis deste lado, eu seria um cos anos de posse, as leis
assassino, seria injusto matar-vos fundamentais mudam; o direito
desta maneira; mas, desde que tem suas épocas. A entrada de
residis do outro lado, sou um Saturno no Leão marca-nos a
bravo, e isso é justo." origem de um crime. Divertida
*294 - ... Sobre que funda- justiça que um rio limita! Verda-
rá o homem a economia do de aquém dos Pireneus, erro
mundo que quer governar? Sobre além.
o capricho de cada particular? Confessam que a justiça não
Que confusão! Sobre a justiça? está nesses costumes, mas que re-
Ele ignora-a. side nas leis naturais conhecidas
Certamente, se a conhecesse, em todos os países. Decerto a
não teria estabelecido esta máxi- sustentariam obstinadamente, se
ma, a mais geral de todas as que a temeridade do acaso, que se-
existem entre os homens: siga meou as leis humanas, tivesse
cada um os costumes do seu país. encontrado nelas ao menos uma
O brilho da verdadeira eqüidade que fosse universal; mas em ver-
teria sujeitado todos os povos~ e dade o capricho dos homens
116 PASCAL

tanto · se diversificou que não há dece, porque são justas, obedece


nenhuma. O latrocínio; o incesto, à justiça que imagina, mas não à
o morticínio das crianças e dos essência da lei, que está enc.er-
pais, tudo se incluiu entre as rada em si: é lei, e nada mais.
ações virtuosas. Haverá algo Quem quiser examinar o motivo
mais divertido do que um homem disso achá-lo-á tão fraco e tão
ter direito de me matar porque leviano que, se não estiver acos-
mora do outro lado das águas, e tumado a contemplar os prodí-
porque o seu príncipe tem uma gios da imaginação humana, ad-
questão com o meu, embora eu mirará que um século lhe tenha
nada tenha contra ele? Há, sem dado tanta pompa e reverência.
dúvida, leis naturais; mas essa A arte de agredir e subverter os
bela razão corrompida corrom- Estados consiste em abalar os
peu tudo: Nihil amplius nostrum costumes estabelecidos, sondan-
est; quod nostrum dicimus, artis do-os até em sua fonte, para
est. Ex senatus consultis et ple- apontar a sua carência de justiça.
biscitis crimina exercentur. Ut ·"É preciso", diz-se, "recorrer às
olim vitiis, sic nunc legibus labo- leis fundamentais e primitivas do
ramus 71 • Estado que um costume injusto
Dessa confusão resulta que um aboliu." É um jogo certo para
diz que a essência da justiça é a tudo perder; nada será justo
nessa balança. No entanto, o
autoridade do legislador; outro, a
povo presta facilmente ouvidos a
comodidade do soberano; outro,
tais discursos. Sacodem o jugo
o costume presente, e é o mais logo que o reconhecem; e os
certo: nada, segundo a sua razão, grandes disso se aproveitam para
é justo em si; tudo se abala com o sua ruína e para a desses curiosos
tempo. O costume. faz toda a examinadores dos costumes ad-
eqüidade, unicamente por ser ad- mitidos. Mas, por um defeito
mitido; é o fundamento místico contrário, os homens acreditam,
de sua autoridade. Quem a reduz às vezes, que podem fazer com
ao seu princípio esmaga-a. Nada justiça tudo o que não é sem
é tão falível como essas leis que exemplo. Eis por que o mais
reparam as faltas: quem lhes obe- sábio dos legisladores dizia que,
para o bem dos homens, é preci-
71
Há aqui três citações, , a primeira e a ter- so, · muitas vezes, enganá-los, e
ceira incorretamente reproduzidas por Mon-
taigne e transcritas por Pascal: a primeira de um outro, bom político: · Cum
Cícero (De Finibus, V, 21): "Nada mais existe veritatem qua liberetur ignoret,
de nosso; aquilo a que chamo nosso é obra de
convenção". A segunda, de Sêneca (Cartas, expedit quod f allatur 7 2 • Não é
95): "É em virtude dos senatus-consultos e dos
plebiscitos que se cometem crimes". A tercei- 72
Como ignora a liberdade que liberta, é-lhe
ra, de Tácito (Anais, Ili, 25): "Outrora, sofría- útil ser enganado (Santo Agostinho, A Cidade
mos com nossos vícios; hoje, com nossas leis". de Deus, IV, 27).
PENSAMENTOS 117

preciso que ele sinta a verdade da nica. A justiça sem a força será
usurpação: esta foi introduzida, contestada, porque há sempre
outrora, sem razão; tornou-se maus; a força sem a justiça será
razoável; é preciso fazê-la obser- acusada. É preciso, pois, reunir a
var como autêntica, eterna, e justiça e a força; e, dessa forma,
ocultar o seu começo, se se quiser fazer com que o que é justo seja
que não se acabe logo. forte, e o que é forte seja justo.
*295 - Meu, teu - "Este A justiça é sujeita a disputas: a
cão é meu", diziam as pobres força é muito reconhecível, e sem
crianças; "é esse meu lugar ao disputa. Assim, não se pôde dar a
sol.~' Eis o começo e a imagem da força à justiça, porque a força
usurpação de toda a terra 7 3 • contradisse a justiça, dizendo que
296 - Quando se trata de esta era injusta, e que ela é que
julgar se devemos fazer a guerra, era justa; e, assim, não podendo
matar tanta gente, condenar tan- fazer com que o que é justo fosse
tos espanhóis à morte, um só forte, fez-se com que o que é forte
fosse justo.
homem decide e ainda por cima
interessado; deveria ser um ter- 299 - As únicas regras uni-
ceiro, indiferente. versais são as leis do país nas
297 - Verijuris 7 4 - Não o coisas ordinárias; e a pluralidade
temos mais: se o tivéssemos, não nas outras. De onde vem isso?
tomaríamos como regras de justi- Da força que existe nelas. Eis por
ça seguir os costumes do próprio que os reis, que têm a força, aliás,
país. não seguem a pluralidade dos
Foi por não poder encontrar o seus ministros.
justo que se achou o forte, etc. Sem dúvida, a igualdade dos
298 - Justiça, força - É bens é justa mas, não se poden-
justo que o que é justo seja segui- do fazer que seja forçoso obede-
do. É necessário que o que é mais cer à justiça, fez-se que seja justo
forte seja seguido. obedecer à força; não se podendo
A justiça sem a força é impo- fortificar a justiça, justificou-se a
tente; a força sem a justiça é tirâ- força, a fim de que o justo e o
forte existissem juntos, e que a
73
A aparente incoerência deste fragmento paz existisse, que é o soberano
levou alguns comentadores a pensar que Pas-
cal teria querido escrever: "Este canto é meu·: bem.
etc. Entretanto, segundo os paleógrafos mais 300 - ~'Quando o forte ar-
autorizados, o manuscrito não permite aceitar
tal interpretação. (N. do E.) mado possui seu bem, aquilo que
7 4 Pascal toma de empréstimo estas palavras
possui não corre risco" 7 5 •
do início de uma citação de Montaigne (III, l).
A frase é de Cícero (De Officiis III, 17) e signi-
fica: "Do verdadeiro direito e da pura justiça 75 São Lucas, 11, 21: Cumfortis armatus cus-
não tiramos modelos sólidos e positivos : tira- todis atrium suum in pace sunt ea quae possi-
mos ·apenas uma sombra e imagens ... " det. (N. do E.)
118 PASCAL

301 - Por que se segue a Imaginemos, portanto, que os


pluralidade? Será porque tem vemos começando a se forma-
mais razão? Não, porque tem rem. ~ fora de dúvida que lutarão
mais força. Por que são seguidas até que a parte mais forte oprima
as antigas leis e as antigas opi- a mais fraca e que haja, enfim,
niões? Será porque são mais sãs? um partido dominante. Determi-
Não, seguimo-las porque são úni- nado isso, os senhores, que não
cas e nos tiram a raiz da diversi- desejam a continuação da guerra,
dade. ordenam que a sucessão da força
*302 - ... É o efeito da que têm nas mãos se processe
força, não do costume; pois os como lhes convém; uns a entre-
que são capazes de inventar são gam à eleição do povo, outros ao
raros; a maioria mais forte quer direito de nascença, etc.
apenas acompanhar, e recusa a E aí é que a imaginação princi-
glória a esses inventores que a pia a desempenhar seu papel. Até
procuram com suas invenções; e então, o poder força o fato;
se se obstinarem em querer obtê- agora, é a força que se estabelece,
la, e desprezarem os que nao pela imaginação, em certo parti-
inventam, estes dar-lhes-ão do, na França dos fidalgos, na
nomes ridículos e pancadas Suíça dos plebeus, etc.
igualmente. Que não se jactem, Essas cordas, que ligam pois o
portanto, dessa sutileza ou que se respeito a tal ou qual, em particu-
contentem interiormente. lar, são cordas de imaginação.
303 - A força é a rainha do 305 - Ofendem-se os suíços
mundo, não a opinião. - Mas a em ser chamados de fidalgos e
opinião é que usa a força. - A provam seu plebeísmo racial
força é que faz a opinião. A fra- para serem julgados dignos de
queza é bela, segundo pensamos. grandes empregos.
Por quê? Porque quem quiser 306 - Como os ducados, os
andar na corda bamba estará reinos e as magistraturas são
sozinho; e eu arranjarei uma reais e necessários porque a força
"claque" mais forte com gente tudo regula, há-os por toda parte
que dirá que isso não é decente. e sempre. Mas como é apenas
304 - As cordas que ligam uma fantasia que faz que este ou
o respeito de uns para com os ou- aquele o seja, isso não é constan-
tros são em geral cordas de te, está sujeito a variações, etc.
necessidade; pois é preciso que 307 - O chanceler mostra-
haja diferentes graus, porquanto se grave e revestido de ornatos
todos os homens querem domi- porque seu cargo é falso. O do rei
nar e todos não podem fazê-lo: não: tem a força e não sabe que
alguns, contudo, podem-no. fazer da imaginação. Os juízes,
PENSAMENTOS 119

os médicos, etc., só têm imagina- rência, quando um simples solda-


ção. do pega o barrete de um primeiro
308 - O costume de ver o presidente e o joga pela jane-
rei acompanhado de guardas, de la ... 7 7
tambores, de oficiais e de todas 3 11 - O império fundado
as coisas que levam o mundo ao sobre a opinião e a imaginação
respeito e ao terror faz que o seureina algum tempo, e esse impé-
rosto, quando ele está às vezes rio é doce e voluntário: o da
sozinho e sem esses acompanha- força reina sempre. Assim, a opi-
mentos, imprima em seus súditos mao é como que a rainha do
o respeito e o terror, porque não mundo, mas a força é o seu
se separa no pensamento a sua tirano.
312 - A justiça é o que está
pessoa do séquito que se vê de estabelecido; e, assim, todas as
ordinário juntamente com ele. E
nossas leis estabelecidas serão
o mundo, que não s:ibe que esse
necessariamente tidas como jus-
efeito tem sua origem em tal ou tas sem ser examinadas, uma vez
qual costume, acredita que isso que estão estabelecidas.
provenha de uma força natural; 313 - Opiniões sadias do
daí estas palavras: "O caráter da povo - O maior dos males são
Divindade está impresso no seu as guerras civis. Elas são certas
rosto, etc." se se quer recompensar o mérito,
309 - Justiça Assim pois todos dirão que merecem. O
como a moda faz a graça, assim mal que se há de temer de um
faz também a justiça. tolo, que sucede por direito de
310 - Rei e tirano - Tam- nascimento, não é tão grande
bém sobre isto eu terei cá minhasnem tão certo.
idéias. 3 14 - Deus tudo criou para
Tomarei cuidado em cada via- si; deu força de pena e de bem
gem. para si.
Grandeza de estabelecimento, Podeis aplicá-la a Deus ou a
respeito de estabelecimento 7 6 • vós mesmos. Se a Deus, o Evan-
O prazer dos grandes consiste gelho é a regra; se a vós mesmos,
em poder fazer pessoas felizes. tomareis o lugar de Deus. Como
É próprio da riqueza ser dada Deus se acha cercado de indiví-
liberalmente. duos cheios de caridade que lhe
O particular a cada coisa pre- pedem os bens da caridade em
cisa ser procurado. A proteção é
própria do poder. Na Satyre Ménippée, M. de Rieux, depu-
7 7

Quando a força ataca a apa- tado da nobreza, assim se exprime: "Não há


barrete nem capelo que eu não faça voar ... " .
É uma ameaça da força bruta contra os repre-
7 6
Isto é, das convenções. (N. do T.) sentantes da justiça.
120 PASCAL

seu poder, assim. . . Conhecei- vão em aparência, isto é muito


vos, pois, e cientificai-vos de que justo, quer dizer: "Eu me inco-
não sois senão um rei de concu- modaria se tivésseis necessidade,
piscência, e segui os caminhos da pois o faço sem que isso vos
. " .
concup1scencia. sirva". Além disso, o respeito
315 - Razão dos efeitos - consiste em distinguir os grandes.
Esta é boa: não querem que eu Ora, se o respeito consistisse em
honre um homem vestido de bro- estar numa poltrona, respeita-
cado e acompanhado de sete ou ríamos toda gente, e, assim, não
oito lacaios! Como ! Se o não distinguiríamos; mas, sendo inco-
saudasse, mandava bater-me. modados, distinguimos muito
Esse hábito é uma força ; não bem.
acontece o mesmo com um cava- 318 - Ele tem quatro ia-
lo bem arreado em relação a caios.
outro? *319 - Como se faz bem em
É engraçado que Montaigne distinguir os homens pelo exte-
não veja que diferença existe, rior, e não pelas qualidades inte-
admirando-se de que se ache al- riores! Qual de nós dois passará
guma e perguntando a razão. primeiro? Quem cederá o lugar
"Na verdade" , diz ele, "de onde ao outro? O menos hábil? Mas
vem~ etc." eu sou tão hábil quanto ele. Será
316 - Opiniões sadias do preciso nos batermos por isso.
povo - Ser elegante 7 8 não é Ele tem quatro lacaios e eu só
muito vão: pois é mostrar que um tenho um. Isso é visível: basta
grande número de pessoas traba- contar; cabe-me ceder e sou um
lha para si; é mostrar, pelos cabe- tolo se o contesto. Eis-nos em
los, que se tem um criado grave, paz por esse meio; o que é o
um perfumista, etc.; pelo ornato, maior dos bens.
o fio, os passamanes, etc. Ora, 320 - As coisas mais desar-
não é simples aparato, nem sim- razoadas do mundo tornam-se as
ples arnês, ter vários braços. mais razoáveis por causa do
Quanto mais braços se tem, mais de sregramento dos homens. Que
forte se é. Ser elegante é mostrar há de menos razoável do que
a própria força. escolher para governar um Esta-
3 17 - O respeito significa do o primeiro filho de uma rai-
isto: "Incomodai-vo.s". Embora nha? Não se escolhe, para gover-
nar um barco, aquele, dentre os
78
Brave (no original) significa aqui bem ves-
tido, elegante, como na última linha do pará- viajantes, que é mais nobre: seria
grafo, onde o sentido verdadeiro tem mais uma lei ridícula e injusta. Mas,
importância. Cf. Moliere: "Terás ciúmes de al.:
guma das tuas companheiras que achas mais porque são e serão sempre esco-
brave do que tu?"(Am. Méd., I, 2) lhidos assim, ela se torna razoá-
PENSAMENTOS 121

vel; pois quem se escolherá? O o que faz o eu, de vez que são
mais virtuoso e o mais hábil? perecíveis? Com efeito, amaría-
Eis-nos incontinenti embaraça- mos a substância da alma de uma
dos: cada um pretende ser o mais pessoa abstratamente, e algumas
virtuoso e o mais hábil. Ligue- qualidades que nela existissem?
mos, pois, essa qualidade a algo Isso não é possível, e seria injus-
incontestável. É o filho mais to. Portanto, não amamos nunca
velho do rei. Isso é claro, a razão a pessoa, mas somente as quali-
não pode fazer melhor, pois a dades.
guerra civil é o maior dos males. Que não se zombe mais, pois,
321 - As crianças espanta- dos que se fazem homenagear
das vêem seus colegas respeita- por seus cargos e funções, por-
dos. quanto só se ama alguém por
*322 - A nobreza é uma qualidades de empréstimo.
grande vantagem, pois já aos *324 - O povo tem opiniões
dezoito anos põe em evidência, muito sadias: por exemplo:
conhecido e respeitado, um 1) escolher o divertimento e a
homem que de outro modo pode- caça em lugar da poesia. Os
ria merecer esse destaque aos semi-sábios zombam e triunfam;
cinqüenta. São trinta anos ga- mostrando com isso a loucura do
nhos sem esforço. mundo; mas, por uma razão que
*323 - Que é o eu? Um não penetram, o povo tem razão;
homem que se põe à janela para 2) distinguir os homens por
ver os passantes, se eu estiver fora, pela nobreza ou pela fortu-
passando, posso dizer que se pôs na: o mundo triunfa, ainda, mos-
à janela para ver-me? Não, pois trando o quanto isso é desarra-
não pensa em mim em particular. zoado; mas é bem razoável (os
Quem gosta de uma pessoa por canibais riem-se de um rei-crian-
causa de sua beleza, gostará ça 1 s);
dela? Não, pois a varíola, que 3) ofender-se por ter recebido
tirará a beleza sem matar a pes- uma bofetada. Ou desejar tanto a
soa, fará que não goste mais; e, glória: isso, porém, é muito acon-
quando se gosta de mim por meu selhável, por causa dos outros
juízo, ou por minha memória, bens essenciais que lhe são ine-
gosta-se de mim? Não; pois rentes; e um homem que recebe
posso perder essas qualidades uma bofetada sem se magoar é
sem me perder. Onde está, pois,
esse eu, se não se encontra no 79 Alusão à reação de alguns selvagens que
corpo nem na alma? E como visitaram a Europa e se admiraram, em Ruão,
de ver os imponente~ guardas suíços obede-
amar o corpo ou a alma, senão cendo ao Rei Carlos IX, então criança. (N. do
por essas qualidades, que não são E.)
122 PASCAL

acabrunhado por injúrias e ne- 263 - Injustiça - É arris-


cessidades. cado dizer ao povo que as leis
4) Trabalhar pelo incerto; via- não são justas; pois ele só lhes
jar por mar; passar sobre uma obedece porque as julga justas.
tábua. Eis por que é preciso dizer-lhe,
*325 - Montaigne não tem ao mesmo tempo, que é preciso
razão: o costume só deve ser obedecer porque são leis, do
seguido porque é costume, e não mesmo modo que é preciso obe-
porque seja razoável ou justo. decer aos superiores, não porque
Mas o povo segue-o pela única sejam justos, mas porque são
razão de julgá-lo justo; do con- superiores. E, assim, eis qualquer
trário, não o seguiria mais, embo- sedição prevenida, desde que se
ra fosse costume, pois só quere- possa fazer entender isso; e é
mos estar sujeitos à razão ou à propriamente essa a definição da
justiça. O costume, sem isso, pas- justiça.
saria por tirania; mas o império *273 - O mundo julga mui-
da razão e da justiça não é tão tas coisas, porque vive na igno-
tirânico quanto o da deleitação. rância natural, que é o verdadeiro
São os princípios naturais ao assento do homem. As ciências
homem. têm duas extremidades que se
Portanto, seria bom que obe- tocam. A primeira é a pura igno-
decessem às leis e aos costumes, rância natural em que se acham
porque sao leis; que soubessem todos os homens ao nascer. A
que não há nenhuma verdadeira e outra é a extremidade a que che-
justa a introduzir; que não sabe- gam as grandes almas, as quais,
mos nada e que, assim, cabe tendo percorrido tudo o que os
somente seguirmos as recebidas: homens podem saber, verificam
por esse meio, não as abandona- que não sabem nada e se desco-
ríamos nunca. Mas o povo não é brem nessa mesma ignorância de
suscetível dessa doutrina e, que partiram; mas é uma igno-
assim, como julga que a verdade rância sábia, que se conhece.
se pode encontrar e que está nas Aqueles que ficam entre as duas
leis e costumes, nelas acredita e e que, saindo da ignorância natu-
toma a sua antiguidade como ral, não puderam alcançar a
uma prova de verdade (e não de outra, têm alguma noção dessa
simples autoridade sem verdade). ciência suficiente e fazem-se de
Assim, obedece-lhes, mas está entendidos. Esses perturbam o
sujeito a se revoltar desde que lhe mundo e tudo julgam mal. O
mostrem que não valem nada; o povo e os hábeis compõem o
que se pode fazer com todas, trem do mundo; os outros despre-
observando-as de certo lado. zam-no e são desprezados. Jul-
PENSAMENTOS 123

gam mal todas as coisas e o seia-se na razão e na loucura do


mundo os julga acertadamente. povo, e bem mais na loucura. A
328 - Razão dos efeitos - maior e mais importante coisa do
Passagem contínua do pró ao mundo tem por fundamento a
contra. fraqueza: e esse fundamento é
Mostramos que o homem é admiravelmente positivo; pois
vão pela estima que dedica às não há nada mais seguro do que
coisas que não são essenciais. E isso: o povo é fraco. O que assen-
todas essas opiniões são destruí- ta na sã razão é bem mal funda-
das. Mostramos, em seguida, que do, como a estima da sabedoria.
todas essas opiniões são muito *331 - Em geral, só imagi-
sadias e que, destarte, sendo namos Platão e Aristóteles com
todas as vaidades muito bem fun- grandes túnicas de pedantes.
dadas, o povo não é tão vão Eram pessoas honestas e, como
quanto se diz. E, assim, des- as outras, rindo com os seus ami-
truímos a opinião que destruía a gos; e, quando se divertiram em
do povo. fazer as suas Leis e a sua Políti-
Mas é preciso destruir, agora, ca, fizeram-nas brincando. Era a
esta última proposição, e mostrar parte menos filosófica e menos
que continua sendo verdadeiro séria de sua vida. A mais filosó-
que o povo é vão, embora suas fica consistia em viver simples e
opiniões sejam sadias, porque tranqüilamente.
não sente a verdade delas, onde Se escreveram sobre política
esta verdade existe e porque, pon- foi como para pôr em ordem um
do-a onde não existe, as suas opi- hospício; e, se fizeram menção de
niões são sempre muito falsas e falar dela como de uma grande
muito malsãs. coisa, é que sabiam que os loucos
329 - Razão dos efeitos - a quem falavam julgavam ser reis
A fraqueza do homem é a causa e imperadores; entravam nos
de tantas belezas que estabelece- seus princípios para moderar a
mos 8 0 , como a de saber tocar loucura deles na medida do pos-
bem alaúde. sível.
Isso já é um mal por causa de *332 - A tirania consiste no
nossa fraqueza 8 1 • desejo de dominação, universal e
330 - O poder dos reis ba- fora de sua ordem.
Diversas assembléias de fortes,
ªº Para o sentido de estabelecer, cf. frag- de belos, de bons, de piedosos
mento 310. (N. do E.)
8 1
Esta segunda frase só se explica mediante espíritos, cada qual reinando em
o conhecimento da primitiva redação de Pas- sua casa, não fora, e às vezes,
cal, que escrevera, na primeira frase:
" ... como a de não saber tocar bem alaúde".
quando se encontram, batendo-se
(N. do E.) tolamente, o forte e o belo, para
124 PASCAL

decidir quem será senhor um do É verdadeiro, portanto, dizer que


outro, pois sua senhoria é de gê- toda gente vive na ilusão: pois
neros diversos. Não se entendem, que, embora as opiniões do povo
consistindo seu erro em querer sejam sadias, não o são em sua
reinar por toda parte. Ora, nada cabeça, porque ele pensa que a
o pode, nem mesmo a força: esta verdade existe onde não existe. A
não faz nada no reino dos sábios; verdade está nas suas opiniões,
só é senhora das ações exteriores. mas não no ponto em que imagi-
Tirania - ... Esses discursos na. lAssimj é certo que se deve
são falsos e tirânicos: "Sou belo, honrar os fidalgos, mas não por-
logo devem temer-me; sou forte, que o berço seja uma vantagem .
portanto devem amar-me. efetiva, etc.
Sou ... ". A tirania consiste em 336 - Razão dos efeitos -
querer ter por uma via o que só É preciso ter um pensamento
se pode ter por outra. Dão-se oculto e tudo julgar por ele,
diferentes deveres aos diferentes falando entretanto como o povo.
méritos: dever de amor à graça; *337 - Razão dos efeitos -
dever de medo à força; dever de Graduação. O povo honra as
crença à ciência. Tais deveres pessoas de grande nascimento.
devem ser cumpridos; é injusto Os semi-hábeis as desprezam,
recusá-los e injusto reclamar ou- dizendo que o nascimento não é
tros. E é também ser falso e tirâ- uma vantagem da pessoa, mas do
nico dizer: "Ele não é forte, logo acaso. Os hábeis as honram, não
não o estimarei; ele não é hábil, pelo pensamento do povo, mas
logo não o temerei". pelo pensamento oculto. Os de-
*333 - Nunca vistes pes- votos, que têm mais zelo do que
soas que, para se queixar da ciência, as desprezam, malgrado
pouca atenção que lhes dais, vos essa consideração que as faz hon-
exibem o exemplo da gente de rar pelos hábeis, porque julgam
bem que as estima? Eu lhes isso por uma nova luz que a pie-
responderia assim: "Mostrai-me dade lhes dá. Mas os cristãos per-
os méritos pelos quais haveis feitos as honram por outra luz
encantado essas pessoas e eu superior. Assim, vão-se suce-
também vos estimarei". dendo as opiniões do pró ao con-
*334 - Razão dos efeitos - tra, segundo a luz que se tem.
A concupiscência e a força são 338 - Os verdadeiros cris-
as fontes de todas as nossas tãos obedecem, entretanto, às
ações: a concupiscência faz as loucuras; não porque respeitem
voluntárias; a força, as involun~ as loucuras, mas sim a ordem de
tárias. Deus, a qual, para a punição dos
*335 - Razão dos efeitos - homens, escravizou-os a essas
PENSAMENTOS 125

loucuras: Omnis creatura sub- Assim Santo Tomás explica o


jecta est vanitati. Liberabiturª 2 trecho de São Tiago sobre a
preferência dos ricos, os quais, se
82
Toda criatura está escravizada à vaidade
(Eclesiastes, 3. 19). Ela será libertada (São não o fazem à vista de Deus,
Paulo, Romanos, 8, 20.21). saem da ordem da religião.
ARTIGO VI
Os filósofos

*339 - Posso conceber um fala por instinto, para a caça ou


homem sem mãos, pés, cabeça para avisar seus camaradas de
(pois só a experiência nos ensina que a presa se encontrou ou se
que a cabeça é mais necessária perdeu, falaria igualmente para
do que os pés); mas não posso dizer coisas em que entrasse mais
conceber o homem sem pensa- afeição, como, por exemplo:
mento: seria uma pedra ou um "Roa essa corda que me fere e
animal. que eu não posso alcançar".
340 - A máquina aritmética 343 - O bico do papagaio,
produz efeitos que se aproximam que ele limpa embora esteja
mais do pensamento do que tudo limpo.
o que fazem os animais; mas não 344 - Instinto e razão, mar-
faz nada que possa levar-nos a cas de duas naturezas.
dizer que tem vontade como os 345 - A razão manda em
animais. nós muito mais imperativamente
341 - A história da solha e do que um amo, pois desobede-
da rã de Liancourt 83 ; eles o cendo a um somos infelizes e, à
fazem sempre e nunca de outro outra, somos tolos.
modo, nem outra coisa de espíri- 346 - O pensamento faz a
to. grandeza do homem.
342 - Se um animal fizesse *347 - O homem não passa
por espírito o que faz por instin- de um caniço, o mais fraco da
to, se falasse por espírito o que natureza, mas é um caniço pen-
sante. Não é preciso que o uni-
8 3 O Duque de Liancourt era amigo fervo-
verso inteiro se arme para esma-
roso de Port-Royal. Suas desavenças com a
autoridade eclesiástica deram azo às primeiras gá-lo: um vapor, uma gota de
Provinciais. Não se sabe o que seja esse conto água, bastam para matá-lo. Mas,
da solha e da rã a que Pascal alude. Brunsch-
vicg supõe que se destinasse a defender "o mesmo que o universo o esma-
espírito dos animais" contra os partidários do gasse, o homem seria ainda mais
automatismo; aliás, Pascal é, nesse ponto, da
mesma opinião que Descartes (cf. Discurso do
nobre do que quem o mata, por-
Método, parte V). que sabe que morre e a vantagem
128 PASCAL

que o universo tem sobre ele; o trono, para sempre, mas por um
universo desconhece tudo isso. instante apenasª 5 •
Toda a nossa dignidade con- *352 - O que pode a virtude
siste, pois, no pensamento. Daí é de um homem não se deve medir
que é preciso nos elevarmos, e por seus esforços, mas pelos atos
não do espaço e da duração, que comunsª 6 •
não poderíamos preencher. Tra- *353 - Não admiro o exces-
balhemos, pois, para bem pensar; so de uma virtude, como o valor,
eis o princípio da moral. se não vejo ao mesmo tempo o
348 - Caniço pensante - excesso da virtude oposta, como
Não é no espaço que devo buscar em Epaminondas, que tinha o
minha dignidade, mas na ordena- extremo valor e a extrema benig-
ção de meu pensamento. Não nidade; porque de outro modo
terei mais, possuindo terras; pelo não é subir, é cair. Não mostra-
espaço, o universo me abarca e mos nossa grandeza ficando
numa extremidade, mas tocando
traga como um ponto; pelo pen-
as duas ao mesmo tempo e
samento, eu o abarco.
enchendo todo o intervalo. Mas
349 - Imaterialidade da talvez seja apenas um súbito
alma - Os filósofos que domi- movimento da alma de um a
naram suas paixões: que matéria outro desses extremos, e talvez
pôde fazê-lo? ela não esteja nunca senão num
*350 - Estóicos Con- ponto, como o tição de fogo. -
cluem que podemos sempre o que Bem. Mas, ao menos, isso marca-
podemos às vezes, e que, como o rá a agilidade da alma, se não
desejo da glória leva os que do- marcar a sua extensão.
mina a bem fazer alguma coisa, 354 - A natureza do
os outros o poderão igualmente. homem não é ir sempre em fren-
São movimentos febris que a te; comporta idas e vindas.
saúde não pode imitar. Epicteto A febre tem calafrios e ardo-
conclui, do fato de haver cristãos res, e o frio mostra-lhe a intensi-
constantes, que todos o podem dade tanto quanto o próprio
ser 8 4 • calor.
*351 - Esses grandes esfor- O mesmo ocorre com as inven-
ços de espírito, que a alma às ções dos homens através dos sé-
vezes atinge, são coisas em que 8 5 Este fragmento e o seguinte resumem o

ela não permanece. Atinge-os princípio do Ensaio de Montaigne, Da Virtude.


somente, não como se atinge um (N. do E.)
8 6
Par l 'ordinaire, isto é, o quotidiano, o nor-
mal. Assim, nesse sentido empregou também
8 4
Epicteto, Dissertações, IV, VII. (N. do E.) Montaigne a expressão. (N. do T.)
PENSAMENTOS 129

culos. E também com a bondade tam do lado do grande infinitoª 9 ,


e a malícia do mundo em geral: de modo que a gente se perde nos
Plerumque gratae principibus vícios e não vê mais a virtude.
vices 8 7 • Cai-se na armadilha da própria
*355 - A eloqüência contí- perfeição.
nua aborrece. *358 - O homem não é anjo
Os príncipes e os reis brincam nem animal; e, por infelicidade,
às vezes. Não estão sempre em quem quer ser anjo é animal.
seus tronos; aí se entediam: é pre- 359 - Não nos sustentamos
ciso abandonar a grandeza para na virtude pela nossa própria
a sentirmos. A continuidade força, mas pelo contrapeso de
aborrece em tudo: o frio é agra- dois vícios opostos, como fica-
dável para nos aquecermos. mos de pé entre dois ventos
A natureza age por progresso, contrários; tirai um desses vícios
itus et reditus. Passa e volta, vai e cairemos no outro.
depois mais longe, e depois duas *360 - O que os estóicos
vezes menos, e em seguida mais propõem é tão difícil e vão!
Os estóicos afirmam: todos os
do que nunca, etc.
que se acham em um alto nível de
Assim 88 , o fluxo do mar e
sabedoria são igualmente loucos
assim, ao que parece, a marcha
e viciados, como os que se encon-
do sol.
356 - A alimentação do tram a dois dedos dentro da
água.
corpo faz-se pouco a pouco. Ple- 361 - O soberano bem.
nitude de alimentos, pouca subs- Disputa do soberano bem - Ut
tância. sis contentus temetipso, et ex te
35 7 - Quando se quer levar nascentibus bonis 9 0 • Há contra-
a virtude até seus extremos, de dição; pois eles aconselham,
um lado e de outro, surgem vícios enfim, a se matar. Oh ! que vida
que nela se insinuam insensivel- feliz essa da qual a gente se
mente, em suas rotas insensíveis, desembaraça como da peste ! 9 1
do lado do pequeno infinito; e 362 - Ex senatus con-
multidões de vícios se apresen- sultis et plebiscitis . ..
8 7 As mudanças agradam quase sempre aos 89 Variam as interpretações sobre esta noção

grandes (Horácio, Odes, Ili, 29, 13). Em lugar de pequeno infinito e grande infinito. Brunsch-
de principibus, encontra-se divitibus no texto vicg apresenta a seguinte explicação: procurar
de Horácio. Pascal tira o mais das vezes suÇts a virtude de um lado e de outro, isto é, na dire-
citações latinas profanas de Montaigne e este ção dos dois infinitos, significa tentar alcan-
cita não raro inexatamente, de memória, ou çá-la nos mais ínfimos pormenores e na sua
segundo textos falhos. mais vasta extensão. (N. do E.)
8 8 Depois da palavra assim, no manuscrito de 90 Para que estejas satisfeito contigo mesmo e

Pascal, vem uma linha quebrada com os zigue- os bens que vêm de ti. (Sêneca, Cartas a Lucí-
zagues em posição ascendente. (N. do E.) lio, XX, 8).
130 PASCAL

Pedir trechos análogos. non est non turpe quum id a


363 - Ex senatus consultis multitudine laudetur.
et plebiscitis scelera exercentur. Mihi sic usus est, tibi ut opus
Sêneca, 588. esjacto,fac. Terêncio.
Nihil tam absurde dici potest 364 - Rarum est enim ut
quod non dicatur ab aliquo philo- satis se quisque vereatur.
sophorum. Divin. Tot circa unum caput tumul-
Quibusdam destinatis senten- tuantes deos.
tiis consecrati quae non probant Nihil turpius quam cognitioni
coguntur defendere. Cícero. assertionem praecurrere. Cícero.
Ut omnium rerum sic littera- Nec me pudet ut istos fateri
rum quoque intemperantia labo- nescire quid nesciam.
ramus. Sêneca. M elius non incip iet 9 3 •
!d maxime quemque decet, *365 - Pensamento
quod est cujusque suum maxime. Toda a dignidade do homem está
Sêneca, 588. no pensamento.
Hos natura modos primum O pensamento é, pois, uma
dedit. Geórgicas 9 2 • coisa admirável e incomparável
Paucis opus est litteris ad por natureza. Fora preciso que
banam mentem. tivesse estranhos defeitos para
Si quando turpe non sit, tamen ser desprezível. Mas tem tais que
nada é mais ridículo.
91
Este pensamento glosa uma frase de Jansê-
nio: O vitam scilicet beatíssima, qua utfruatur
Como é grande por sua nature-
mortis quaerit auxilium. (Ô vida verdadeira-
mente feliz, l que] para gozá-la se procura o
93
auxílio da morte.) (J ansênio, De Statu Purae Tradução das citações:
Naturae, II, VIII.) (N. do E.) "A sabedoria não exige muita instrução"
92
Tradução das citações: (Sêneca, Cartas, 106).
"É em virtude dos senatus-consultos e "O que não é vergonhoso começa a sê-lo
plebiscitos que os crimes se perpetuam" (Sêne- quando aprovado pela maioria" (Cícero, De
ca, Cartas a Lucílio, XV). Finibus, II, 15).
"Por absurdo que seja, nada existe que não "Eis como o faço, tu, faze como quiseres"
tenha sido dito por algum filósofo" (Cícero, (Terêncio, Heautontimorumenos, I, 1, 2 1).
De Divinatione, II, 58). Todas essas citações parecem referir-se à
"Presos a certas opiniões determinadas, são variedade e às contradições das opiniões
forçados a defender o que não aprovam" (Cí- humanas.
~ero, Tusculanas, II, 2). Esta citação, colhida "Raramente nos respeitamos suficiente-
em Montaigne, é inexata. (N. do E.) mente" (Quintiliano, X, 7).
"Sofremos de excesso de literatura como de "Tantos deuses se agitando em volta de uma
excesso de todas as coisas" (Sêneca, Cartas, só cabeça" (Sêneca Retor, Suasorias, 1, IV).
106). "Nada é mais vergonhoso do que afirmar
"O que melhor assenta a alguém é o que lhe antes de saber" (Cícero, Acadêmicas, I, 45).
é mais natural" (Cícero, De Officiis, 1, 31). "E não tenho vergonha, como eles, de con-
Pascal atribui erradamente esta citação a Sê- fessar que não sei o que não sei" (Cícero,
neca. (N. do E.) Tusculanas, 1, 25).
"Dá-lhes a natureza primeiramente esses "É mais fácil não começar [do que parar] "
limites" (Virgílio, Geórgicas, II, 20). (Sêneca, Cartas, 72).
PENSAMENTOS 131

za ! Como é baixo por seus lado dos espíritos 9 5 ? Concebe-


defeitos! mos dele uma idéia tão diferente,
Mas que é esse pensamento? e esses sentimentos nos parecem
Como é tolo! tão distantes dos outros, que
*366 - O espírito desse so- dizemos serem os mesmos que
berano juiz do mundo não é tão aqueles aos quais os compara-
independente que não esteja su- mos! O sentimento do fogo, esse
jeito a ser perturbado pelo pri- calor, que nos afeta de maneira
meiro barulho que se faça em completamente diversa do tato,
volta dele. Não é preciso o ruído da recepção do som e da luz,
de um canhão para impedir-lhe tudo isso nos parece misterioso e,
os pensamentos: basta o ruído de no entanto, é grosseiro como
um catavento ou de uma roldana. uma pedrada. É verdade que a
Não vos espanteis se não racio- pequenez dos espíritos, que en-
tram nos poros, toca outros ner-
cina bem agora; uma mosca
vos; mas são sempre nervos.
zumbe aos seus ouvidos: é o bas-
3 69 - A memória é neces-
tante para torná-lo incapaz de sária para todas as operações da
conselho. Se quereis que possa razao.
achar a verdade, expulsai esse 3 70 - [O acaso dá os pensa-
animal que põe sua razão em mentos; o acaso os tira; não há
xeque e perturba essa poderosa arte para conservá-los ou adqui-
inteligência que governa as cida- ri-los. Pensamento que escapou:
des e os reinos. Que deus diverti- gostaria de escrevê-lo e em vez
do ! O ridicolosissimo eroe ! disso escrevo que ele me fu-
367 - Poder das moscas: giu ... J
ganham batalhas, impedem nossa 3 71 - l Quando eu era pe-
alma de agir, comem-nos o queno, guardava o livro; e como
corpo. me acontecia às vezes ... 9 6 pen-
3 68 - Quando se diz que o sando tê-lo guardado, descon-
calor é apenas o movimento de fiava ... ]
alguns glóbulos e a luz o conatus *372 - Ao escrever o meti
recedendi 9 4 que sentimos, isso pensamento, ele às vezes me
nos assombra. Como ! O prazer escapa; mas isso me faz lembrar
não seria outra coisa senão o bai- da minha fraqueza, que a todo
9 4 O se designa Descartes. O conatus rece- 9 5
Espíritos no sentido de emanações, eflú-
dendi é a força centrífuga "de que são anima- vios. (N. do T.)
9 6
dos todos os corpos que giram para se afastar Faugere propôs a palavra enganar-me para
dos corpos em torno dos quais se movem" preencher esta lacuna do manuscrito. (N. do
(Descartes, Princíp., III, 54). E.)
132 PASCAL

instante esqueço; isso me instrui Nada fortalece mais o pirro-


tanto quanto o meu pensamento nismo do que o fato de haver
esquecido, pois minha tendência quem não seja pirrônico. Se
consiste apenas em conhecer o todos o fossem, não teriam razão.
meu nada. *375 - lPassei longo tempo
*373 - Pirronismo - Es- de minha vida julgando que hou-
creverei aqui meus pensamentos vesse uma justiça, e nisso não me
sem ordem, não talvez em uma enganava; porque há uma, na
confusão sem objetivo: esta é a ~ medida em que Deus no-la quis
verdadeira ordem, que marcará revelar. Mas eu não o julgava
sempre meu fim pela P,rópria assim, e era nisso que me engana-
desordem. Daria excessiva im- va, porque acreditava que a
portância a meu assunto se o tra- nossa justiça fosse essencial-
tasse com ordem, porquanto mente justa e que eu tivesse
quero mostrar que é incapaz de possibilidade de conhecê-la e jul-
ordem. gá-la. Mas achei-me tantas vezes
*374 - O que me assombra em erro de julgamento certo que,
mais é ver que nem todos se por fim, acabei desconfiando de
admiram de sua fraqueza. Age-se mim e, depois, dos outros. Vi
seriamente e cada um segue sua todos os países e homens muda-
condição, não porque seja bom, rem; e assim, depois de muitas
de fato, segui-la, uma vez que a mudanças de julgamento em rela-
moda é fazê-lo, mas como se ção à verdadeira justiça, verifi-
cada um soubesse com certeza quei que a nossa natureza não
onde estão a razão e a justiça. passava de uma contínua mudan-
Decepcionamo-nos a cada ins- ça, e não mudei mais desde
tante e, por uma humildade di- então; e, se mudasse, confirmaria
ve~tida, acreditamos que seja sua
a minha opinião.
culpa (da condição), e não da O pirrônico Arcesilau 9 7 , que
arte, que nos gabamos sempre de volta a ser dogmático.]
possuir. Mas é bom que haja 3 76 - Essa seita se forta-
tanta gente assim no mundo, que lece por seus inimigos mais do
não -seja pirrônica pela glória do que por seus amigos, porque a
pirronismo, a fim de mostrar que fraqueza do homem se mostra
o homem é bem capaz das mais muito mais nos que não a conhe-
extravagantes opiniões, pois é cem do que nos que a conhecem.
capaz de crer que não está nesta 9 7
Fundador da nova Academia (século III
fraqueza natural e inevitável, e a.C.). Segundo Cícero, Arcesilau, q~e introdu-
zira o pirronismo na doutrina de Platão minis-
que está, ao contrário, na sabedo- trava aos discípulos de sua escola um' ensino
ria natural. dogmático.
PENSAMENTOS 133

*377 - Os discursos de hu- *380 Todas as boas máxi-


mildade são matéria de orgulho mas estão no mundo; só nos falta
para as pessoas gloriosas, e de aplicá-las. Por exemplo, não du-
humildade para os humildes. vidamos que seja preciso expor a
Assim, os do pirronismo são própria vida para defender o bem
matéria de afirmação para os público, e muitos o fazem; mas,
afirmativos. Poucos falam de hu- para a religião, não. É necessário
mildade, humildemente; poucos que haja desigualdade entre os
da castidade, castamente; poucos homens, é verdade. Mas, admitin-
do pirronismo, duvidando. do-o, eis a porta aberta, não
Somos apenas mentira, duplici- somente à mais alta dominação
dade, contrariedade, esconden- mas à mais alta tirania. É neces-
do-nos e disfarçando-nos de nós sário relaxar um pouco o espíri-
mesmos. to; mas isso abre a porta aos
*378 - Pirronismo - O ex- maiores abusos. Marquem-se os
tremo espírito é acusado de lou- limites; não há limites nas coisas:
cura, tal qual a extrema falha. as leis querem criá-los, mas o
Nada é bom, senão a mediocri- espírito não pode suportá-los.
dade. A pluralidade é que assim 381 - Se somos jovens de-
o estabeleceu e quem morde mais, não julgamos bem; velhos
alguém escapa por um ponto ou demais, tampouco.
outro. Não me obstinarei, con- Se não meditamos bastante, se
sinto em que me ponham nisso, meditamos demais, teimamos e
mas me recuso a ficar na ponta encasquetamos 9 9 •
de baixo, não por ser baixa, mas Se considerarmos a nossa obra
por ser ponta 98 , pois recusaria imediatamente depois de a ter-
igualmente se me pusessem na de mos executado, ainda estamos
cima. É sair da humanidade dei- prevenidos; se muito depois, não
xar o meio. A grandeza da alma a entendemos mais.
humana consiste em saber man- 99
Este fragmento aparentemente contradi-
. ter-se aí; a grandeza está tão tório levou Havet a julgar que se tratava de
longe de consistir em sair dessa uma lacuna de Pascal, pois, na sua opinião,
"quem não pensa bastante num assunto não
condição que, pelo contrário, se pode teimar e encasquetar-se". Brunschvicg,
encontra no fato de não a aban- recomendando, para perfeita compreensão do
donar, de modo algum. pensamento de Pascal, a observância rigorosa
da pontuação do manuscrito (o que se fez na
3 79 - Não é bom ser livre edição brasileira), apresenta a seguinte explica-
ção: "Certas naturezas levianas e ardentes
demais, nem ter todas as necessi- entusiasmam-se facilmente e teimam nesse
dades. entusiasmo, exatamente porque não examinam
bastante o objeto de seu interesse e não refle-
tem bastante nas suas imperfeições". (N. do
ge Bout = ponta, fim. (N. do T.) E.)
134 PASCAL
Assim acontece com os qua- cial não é assim: é toda pura e
dros vistos de muito longe e de toda verdadeira. Essa mistura
muito perto; só há um ponto desonra-a e anula-a. Nada é
indivisível, que é o verdadeiro puramente verdadeiro, e assim
lugar: os outros estão perto de- nada é verdadeiro, entendendo-o
mais, longe demais, alto demais como puro verdadeiro. Dir-se-á
ou baixo demais. A perspectiva que é verdadeiro que o homicídio
assinala este fato, na arte da pin- é mau: sim, pois conhecemos
tura; mas, na verdade e na moral, bem o mal e a falsidade. Mas,
quem o assinalará? que será o bem, na nossa opi-
*382 - Quando tudo se re- nião? A castidade? Eu digo que
solve igualmente, nada se resolve não; pois o mundo acabaria. O
na aparência, como acontece casamento? Não: a continência é
num barco. Quando todos ten- melhor. Não matar? Não, pois as
dem para o desregramento, nin- desordens seriam hqrríveis e os
guém parece tender. Quem pára maus matariam os bons. Matar?
torna observável o arrebata- Não, pois isso destrói a natureza.
mento .dos outros, como um Só em parte temos o bem e a ver-
ponto fixo. dade, e misturado com o mal e a
*383 - Os que vivem no falsidade.
desregramento dizem aos que *386 - Se sonhássemos
vivem na ordem que são estes todas as noites com a mesma
que se afastam da natureza, e jul- coisa, ela nos afetaria tanto
gam segui-la: como os que estão quanto os objetos que vemos
num barco julgam que os que todos os dias; e, se um artesão
estão na margem fogem. A lin- estivesse certo de sonhar, todas
guagem é semelhante em toda as noites, durante doze horas,
parte. É preciso ter um ponto fixo que é rei, creio que seria quase
para julgar. O porto julga os que tão feliz quanto um rei que
estão no barco; mas onde conse- sonhasse todas as noites, durante
guir um porto na moral? doze horas, que era artesão. Se
*384 - A contradição é um sonhássemos todas· as noites que
mau sinal de verdade: muitas coi- somos perseguidos por inimigos e
sas certas são contraditas; muitas agitados por fantasmas penosos,
coisas falsas ficam sem contradi- e se passássemos todos os dias
ção. Nem a contradição é sinal em diversas ocupações, como
de mentira, nem a não contradi- quando se faz uma viagem, sofre-
ção é sinal de verdade. ríamos quase tanto como se isso
385 - Pirronismo - Cada fosse verdadeiro, e teríamos re-
coisa é aqui verdadeira em parte, ceio de dormir como se tem de
falsa em parte. A verdade essen- despertar quando se teme entrar
PENSAMENTOS 135

efetivamente em tais desgraças. não pode saber, nem desejar não


E, efetivamente, esses sonhos saber. Não pode sequer duvidar.
causariam quase os mesmos 390 - Meu Deus, que dis-
males que a realidade. Mas como cursos tolos! "Deus teria criado
os sonhos são todos diferentes e o mundo para daná-lo? Exigiria
se diversificam, o que se vê neles tanto de gente tão fraca? etc." O
afeta-nos bem menos do que o pirronismo é o remédio para esse
que se vê em vigília, por causa da mal e abaterá essa vaidade.
continuidade, que não é, contudo, 391 - Conversação
tão contínua e igual que não Grandes palavras: a religião, eu a
mude também, mas menos brus- nego.
camente, se não raramente, como Conversação - O pirronismo
quando se vigia; e então se diz: serve à religião.
"Parece-me que sonho", pois a *392 - Contra o pirronismo
vida é um sonho um pouco - [É, pois, estranho que não
menos inconstante. possamos definir essas coisas
387 - [Pode ser que haja sem obscurecê-las, dizemo-lo
verdadeiras demonstrações; mas com segurança.] Supomos que
não é certo Assim, isso mostra todos os homens concebem e sen-
apenas que não é certo que tudo tem da mesma maneira: mas nós
seja incerto, para glória do pir- o supomos bem gratuitamente,
ronismo.J pois não temos nenhuma prova.
388 - O bom senso - Eles Bem vejo que se aplicam as mes-
são constrangidos a dizer: "Não mas palavras nas mesmas oca-
agis de boa-fé; não dormimos, siões e que, todas as vezes que
etc." Como gosto de ver essa dois homens vêem um corpo
soberba razão humilhada e supli- mudar de lugar, exprimem ambos
cante! Com efeito, não é essa a a visão desse mesmo objeto pelas
linguagem de um homem a quem mesmas palavras, dizendo cada
se disputa o seu direito e que o qual que ele se moveu; e dessa
defende com as armas e a força conformidade de aplicação se
na mão. Ele não se diverte em tira uma poderosa conjectura de
dizer que não se age de boa-fé; uma conformidade de idéias, mas
mas pune essa má-fé pela força. isso não é absolutamente convin-
389 - O Eclesiastes mostra cente, da última convicção, em-
que o homem sem Deus está na bora seja bem o caso de apostar
ignorância de tudo e numa des- pela afirmativa, visto sabermos
graça inevitável, pois é uma infe- que tiramos muitas vezes as mes-
licidade querer e não poder. Ora, mas conseqüências de suposições
ele quer ser feliz e ter certeza de diferentes.
alguma verdade; e, no entanto, Isso é o bastante para baralhar
136 PASCAL

a matéria: nao porque apague *397 - A grandeza do


totalmente a claridade natural homem é grande na medida em
que nos garante tais coisas; te- que ele se conhece miserável.
riam apostado os acadêmicos. Uma árvore não sabe que é mise-
Mas isso a perturba e perturba os rável. É, pois, ser miserável co-
dogmáticos, para gáudio da ca- nhecer-se miserável; mas é ser
bala pirrônica, que consiste nessa grande saber que se é miserável.
ambigüidade ambígua e em certa *398 - Todas essas misérias
obscuridade duvidosa, cuja clari- provam sua grandeza. São misé-
dade nossas dúvidas não podem rias de grande senhor, misérias
apagar por completo, como nos- de rei destronado.
sas luzes naturais não podem *399 - Não se é miserável
afugentar-lhe todas as trevas. sem sentimento. Uma casa em
*393 - É divertido conside- ruínas não o é. Só o homem é
rar que há pessoas no mundo miserável. Ego vir videns 1 º 0 •
que, tendo renunciado a todas as *400 - Grandeza do homem
leis de Deus e da natureza~ fize- - Temos uma idéia tão grande
ram as suas próprias a que obe- da alma do homem que não
decem exatamente, como, por podemos tolerar que sejamos des-
exemplo, os soldados de Maomé, prezados e não estimados por
os ladrões, os heréticos, etc. E uma alma, e toda a felicidade dos
também os logicistas. Dir-se-ia homens consiste nessa estima.
que sua licença não deve ter limi- *401 - Glória - Os ani-
tes nem barreiras, porquanto mais não se admiram. Um cavalo
transpuseram tantos, tão justos e aão admira o companheiro. Não
santos. é que não haja entre eles emula-
394 - Todos os princípios ção na corrida, mas é sem conse-
dos pirrônicos, dos estóicos, dos qüência; pois, estando no estábu-
ateus, etc ... , são verdadeiros. lo, o mais pesado e mais mal
Mas suas conclusões são falsas talhado não cede sua aveia ao
porque os princípios opostos são outro, como os homens querem
também verdadeirqs. que se lhes faça. Sua virtude se
*395 - Instinto. Razão - satisfaz por si mesma.
Temos uma incapacidade de pro- 402 - Grandeza do homem
var, que nenhum dogmatismo que, mesmo de sua concupis-
pode vencer. Temos.uma idéia da cência, soube tirar um regula-
verdade, que nenhum pirronismo mento admirável e fazer um qua-
pode suplantar. dro da caridade.
396 - Duas coisas instruem
o homem acerca de sua natureza: 100
"Eu, homem, vejo [minha pobreza]" (Je-
o instinto e a experiência. remias; Lamentações, 3, \).
PENSAMENTOS 137

403 - Grandeza - As ra- rias. Eis um ·monstro estranho e


zões dos efeitos marcam a gran- um desvario bem visível. Ei-lo
deza do homem de ter tirado da que cai de seu lugar e o procura
concupiscência tão bela ordem. inquieto. É o que fazem todos os
*404 - A maior baixeza do homens. Vejamos quem o terá
homem é a procura da glória, encontrado.
mas nisso mesmo está a maior *407 - Quando a maligni-
marca de sua excelência; porque, dade tem a razão de seu lado, tor-
por mais posses que tenha sobre na-se orgulhosa e ostenta a razão
a terra, por maior saúde e como- em todo o seu brilho. Quando a
didade essencial que possua, não austeridade, ou seja, a opção pela
se sente satisfeito se não está na severidade, não consegue alcan-
estima dos homens. Ele considera çar o verdadeiro bem, e é preciso
tão grande a razão do homem voltar a seguir a natureza, ela tor-
que, por maior vantagem que na-se orgulhosa devido a esse
tenha sobre a terra, se não estiver retorno.
situado vantajosamente taµibém 408 - O mal é fácil e há
na razão do homem, não se sente uma infinidade de males; o bem é
contente. É o mais belo lugar do quase único. Mas certo tipo de
mundo; nada pode desviar o mal é tão difícil de encontrar
homem desse desejo e é essa a quanto aquilo a que se chama
qualidade mais indelével de seu bem. E muitas vezes faz-se pas-
coração. E os que desprezam ~ar por bem esse mal particular.
mais os homens, e que os igua- E mesmo necessária uma gran-
lam aos animais, ainda querem deza extraordinária para alcan-
ser por isso admirados e acredita- çá-lo tanto quanto o bem.
dos, e se contradizem a si mes- *409 - A grandeza do
mos por seu próprio sentimento: homem A grandeza do
a sua natureza, que é mais forte homem é tão visível que se tira
que tudo, convence-os da gran- mesmo de sua miséria. Porque,
deza do homem mais fortemente ao que é natureza nos animais
que a razão os convence de sua nós chamamos miséria no
baixeza. homem; por onde reconhecemos
que, como a natureza é hoje
*405 - Contradição - Or-
semelhante à dos animais, ele
gulho, contrabalançando todas
caiu de uma natureza melhor,
as misérias. Ou esconde suas
que lhe era própria outrora.
misérias ou, se as descobre, van-
gloria-se de conhecê-las. Pois quem se acha infeliz por
406 - O orgulho contraba- não ser rei senão um rei destro-
lança e arrebata todas as misé- nado? Haveria quem achasse
138 PASCAL

Paulo Emílio infeliz por não ser sempre dividido e contrário a si


mais cônsul? Não, pelo contrá- mesmo.
rio, toda gente achava que ele era *413 - Essa guerra interior
feliz por tê-lo sido, porque sua da razão contra as paixões fez
condição não era a de sê-lo sem- que os que quiseram ter a paz se
pre. Mas havia quem achasse dividissem em duas seitas: uns
Perseu tão infeliz por não ser rei, quiseram renunciar às paixões e
dado que sua condição era a de o tornar-se deuses; outros quiseram
ser sempre, que achavam estra- renunciar à razão e tornar-se bru-
nho que ele suportasse a vida 1 0 1 • tos. (Des Barreaux 1 0 2 .) Nem uns
Quem se acha infeliz por só ter nem outros, porém, o consegui-
uma boca? E quem não se achará ram; e a razão subsiste e acusa a
infeliz por só ter um olho? Nunca baixeza e a injustiça das paixões
talvez se tenha alguém lembrado e perturba o repouso dos que a
de afligir-se por não ter três elas se abandonam; e as paixões
olhos; mas ninguém se consola estão sempre vivas nos que que-
com não ter nenhum. rem renunciar a elas.
41 O - Perseu, rei da Mace- 414 - Os homens são tão
dônia, Paulo Emílio - Censura- necessariamente loucos que seria
vam a Perseu o fato de não se ser louco (outro tipo de loucura)
matar. não ser louco.
*411 - Malgrado a visão de 415 - A natureza do
todas as misérias que nos tocam, homem considera-se de duas ma-
que nos pegam pela garganta, neiras: uma segundo seu fim, e,
temos um instinto que não pode- então, ele é grande e incompa-
mos reprimir, que nos eleva. rável; outra segundo a multidão,
*412 - Guerra intestina do como se julga a natureza do ca-
homem entre a razão e as pai- valo e do cão, ao ver sua corrida
xões. Se só tivesse a razão sem as
paixões. . . Se só tivesse as pai- 102
Des Barreaux (1602-1673) foi o epicu-
rista mais famoso do século XVII. Debochado
xões sem a razão ... Mas, tendo e ateu, voltava à religião quando se sentia
ambas, não pode ficar sem guer- enfermo. Atribui-se-lhe um dos mais belos
sonetos religiosos da literatura francesa, o qual
ra, não podendo estar em paz começa assim: "Grand Dieu, tes jugements
com uma, senão entrando em sont remplis d'équité" ... e termina com estes
guerra com a outra; assim está versos:
Mais dessus quel endroit tombera ta colere,
Qui ne soit tout couvert du sang de
10 1
Perseu, rei da Macedônia, foi vencido por Jésus-Christ?
Paulo Emílio em 166 a.C. Abandonado por Voltaire contesta-lhe a paternidade desse
seus soldados e seus próprios filhos, rendeu-se soneto, que atribui ao Abade de Lavau. Ler em
a Otávio, foi levado para Roma, onde figurou uma carta de Mme Geoffrin, de 7 de junho de
no triunfo de Paulo Emílio, e morreu na pri- 1767, a história da "omelette au lard" de Des
são, de sede ou de privação de sono. Barreaux.
PENSAMENTOS 139

e seu an imum arcendi 1 0 3 ; e, séria no homem. Numa palavra,


então, o homem é abjeto e vil. Eis o homem sabe que é miserável.
as duas vias que levam a julgar Ele é, pois, miserável, de vez que
este assunto diversamente, e que o é; mas é bem "~ grande, de vez
fazem os filósofos discutirem que o sabe.
tanto ! E isto porque um nega a *417 - Essa duplicidade do
suposição do outro; um diz: "Ele homem é tão visível que houve
não nasceu para esse fim, pois quem pensasse que tínhamos
todas as suas ações lhe são duas almas. Um indivíduo sim-
contrárias"; o outro diz: "Ele se ples parecia-lhes incapaz de tais e
afasta do seu fim quando pratica tão súbitas variações, de uma
essas ações baixas". presunção desmedida a um horrí-
*416 - Em P.-R. 1 0 4 Gran- vel abatimento do coração.
deza e miséria - Como a misé- *418 - É perigoso fazer ver
ria se infere da grandeza, e a demais ao homem quanto ele é
grandeza da miséria, uns con- igual aos animais, sem lhe mos-
cluíram pela miséria, tanto mais trar a sua grandeza. É ainda peri-
quanto por prova tomaram a goso fazer-lhe ver demais a sua
grandeza e como outros con- grandeza sem a sua baixeza. É
cluíram pela grandeza, com tanto ainda mais perigoso deixá-lo ig-
mais força quanto concluíram da norar uma e outra. Mas é muito
própria miséria, tudo o que os vantajoso representar-lhe ambas.
primeiros puderam dizer para Não é preciso que o homem
mostrar a grandeza só serviu de creia que é igual aos animais,
argumento aos segundos para nem aos anjos, nem que ignore
concluir pela miséria, pois somos ambos, mas que os conheça.
tanto mais miseráveis quanto de 419 - Não suportarei que
mais alto caímos; e outros, ao repouse num ou noutro, a fim de
contrário. Foram levados uns que estando sem assento e sem
contra os outros por um círculo repouso ...
sem fim: sendo certo que, à medi- *420 - Se ele se gaba, rebai-
da que os homens se esclarecem, xo-o; se ele se rebaixa, gabo-o;
tanto acham grandeza como mi- contradigo-o sempre até que
103 Animum arcendi: instinto de afastar, o
compreenda que é um monstro
instinto do cão de guarda, explica Brunsch- incompreensível.
vicg. 421 - Censuro, igualmente,
10 4 Esta indicação, Em P.-R., designa um
fragmento que, como o de n. 430, fazia parte
0 não só os que tomam o partido
das notas preparadas por Pascal para a confe- de louvar o homem como tam-
rência que pronunciou em Port-Royal, em bém os que decidem censurá-lo e
1658, e na qual expôs o plano de sua
Apologia. os que resolvem divertir-se; e só
140 PASCAL

posso aprovar os que procuram a tem a verdade, constante ou


verdade, gemendo. satisfatória.
422 - É bom sentir-se desa- Desejaria, pois, levar o homem
nimado e cansado na busca inútil a querer encontrá-la, a estar
do verdadeiro bem, a fim de pronto e liberto de paixões, para
estender os braços ao Libertador. segui-la onde a encontrar, saben-
*423 - Contrariedade de- do quanto seu conhecimento se
pois de ter mostrado a baixeza e obscureceu pelas paixões; deseja-
a grandeza do homem - Que o
ria que odiasse em si a concupis-
homem, agora, avalie o seu
cência que o determina por si
preço. Que se ame, pois tem em
si uma natureza capaz do bem; mesma, a fim de que esta não o
mas que não ame por isso as bai- cegue ao fazer sua escolha e não
xezas que nela existem. Que se o detenha quando houver escolhi-
despreze, porque essa capacidade do.
é vazia; mas que não despreze *424 - Todas essas contra-
por isso essa capacidade natural. riedades, que pareciam afastar-
Que se odeie, que se ame: tem em me do conhecimento da religião,
si a capacidade de conhecer a foram o que mais depressa me
verdade· e de ser feliz; mas não conduziu à verdadeira religião.
ARTIGO VII
A moral e a doutrina

*425 - Segunda Parte. De dade de alcançar o bem por 11os-


l orno o homem sem fé não pode sos esforços; mas o exemplo
conhecer o verdadeiro bem, nem pouco instrui. Nunca é tão perfei-
a justiça - Todos os homens tamente semelhante que não haja
procuram ser felizes; não há uma delicada diferença; e é por
exceção. Por diferentes que sejam isso que esperamos que a nossa
os meios que empregam, tendem expectativa não seja frustrada
todos a esse fim. O que leva uns a nessa ocasião como na outra. E,
irem para a guerra e outros a não assim como o presente nunca nos
irem é esse mesmo desejo que satisfaz, a experiência 1 0 5 nos en-
está em todos, acompanhado de gana e, de infelicidade em infeli-
diferentes pontos de vista. A von- cidade, conduz-nos até a morte,
tade nunca efetua a menor dili- que é o seu teto eterno.
gência, senão com esse objetivo. Que nos gritam, pois, essa avi-
dez e essa impotência se não que
Esse é o motivo de todas as ações
houve, outrora, no homem, uma
de todos os homens, até mesmo
verdadeira felicidade, da qual só
dos que vão enforcar-se. E, no
lhe restam, agora, a marca e o
entanto, depois de tão grande nú-
traço vazio, que ele tenta inutil-
mero de anos, nunca ninguém~ mente encher de tudo o que o
sem a fé~ chegou a esse ponto a rodeia, procurando nas coisas
que todos visam continuamente. ausentes o socorro que não
Todos se lamentam: príncipes, obtém das presentes, embora
súditos, nobres, plebeus; velhos, aquelas sejam incapazes de so-
jovens; fortes, fracos; sábios, ig- corrê-lo, porque esse abismo infi-
norantes; sãos, doentes; de todos nito só pode ser preenchido por
os países, de todos os te_m pos, de um objeto infinito e imutável, isto
todas as idades e de todas as - é, pelo próprio Deus?
condições.
Uma prova tão longa, tão con- 10 5 Na edição Port-Royal lê-se esperanças
em lugar de experiência. Entretanto, todas as
tínua e tão uniforme deveria boas edições modernas, de Brunschvicg a Che-
convencer-nos de nossa incapaci- valier, preferem experiência. (N. do E.)
142 PASCAL

Somente Deus é o verdadeiro pode não tê-lo, concluem ... 1 º 6


bem, e, desde que o homem o 426 - Perdida a natureza
abandona, é estranho que nada verdadeira, tudo se torna sua
exista na natureza capaz de lhe natureza; assim, perdido o verda-
tomar o 1ugar :· astros, céu, terra, deiro bem, tudo se torna seu ver-
elementos, plantas, couves, alhos, dadeiro bem.
animais, insetos, bezerros, ser- *427 - O homem não sabe
pentes, febre, peste, guerra, penú- em que lugar se , colocar. Está
ria, vícios, adultério, incesto. E visivelmente perdido e caiu de
quando perde o verdadeiro bem, seu lugar sem conseguir reencon-
tudo pode parecer-lhe esse bem, trá-lo. Busca-o por toda parte
indiferentemente, até a autodes- com inquietação e sem êxito, em
truição, embora tão contrária a meio a trevas impenetráveis.
Deus, à razão e à natureza 428 - Se é sinal de fraqueza
inteira. provar :Qeus pela natureza, não
Uns o procuram na autori- desprezeis as Escrituras; se é
dade, outros na curiosidade e nas sinal de força ter conhecido essas
ciências, outros nas volúpias. contrariedades, estimai as Escri-
Outros que, na realidade, mais se turas.
aproximaram dele, consideram 429 - Baixeza do homem,
necessário que o bem universal, submeter-se até aos próprios ani-
desejado por todos os homens, mais, chegar a adorá-los.
não se encontre em nenhuma das *430 - Em P.-R. (Começo,
coisas particulares que só podem depois de ter explicado a incom-
ser possuídas por um só e que, preensibilidade) - As grandezas
sendo repartidas, afligem mais o e misérias do homem são de tal
seu possuidor pela falta da parte modo visíveis que é preciso,
necessariamente, que a verda-
que não tem do que o contentam
deira religião nos ensine que há
pelo gozo da que lhe cabe. Com-
no homem um grande princípio
preenderam que o verdadeiro de grandeza e um grande princí-
bem devia ser de tal forma que pio de miséria. É preciso, pois,
todos pudessem possuí-lo ao que ela nos explique essas espan-
mesmo tempo, sem diminuição e tosas contrariedades.
sem inveja, e que ninguém pudes- 10 6
Brunschvicg (ed. Hachette) sugere a se-
se perdê-lo contra a vontade. E guinte continuação do pensamento de Pascal,
incompleto no manuscrito: " . . . que esta
sua razão está em que esse dese- universalidade (critério de toda a moral racio-
jo, sendo natural no homem, por- nal) é uma forma vazia; o bem universal não
pode consistir num simples princípio da razão ,
quanto se encontra necessaria- é preciso que seja substancial, é preciso que
mente em todos, e que não se seja um ser". (N. do E.)
PENSAMENTOS 143

É preciso que, para tornar o ensinará o nosso bem, os nossos


homem feliz, ela lhe mostre que deveres, as fraquezas que nos
há um Deus; que somos obriga- desviam, a causa dessas fraque-
dos a amá-lo; que a nossa verda- zas, os remédios que podem
deira felicidade é estar nele, e o curá-las e o meio de obter esses
nosso único mal estar separado remédios?
dele; que reconheça que estamos Não o conseguiram as demais
cheios de trevas que nos impe- religiões. Vejamos o que fará a
dem de conhecê-lo e de amá-lo~ e Sabedoria de Deus.
que, a~sim como os nossos deve- "Não espereis", diz ela, "nem
res nos obrigam a amar a Deus, e a verdade nem a consolação dos
as nossas concupiscências nos homens. Eu sou aquela que vos
desviam dele, estamos cheios de formou e a única que pode ensi-
injustiça. É preciso que nos dê nar-vos o que sois. Mas não
satisfação dessas nossas oposi- estais, agora, no estado em que
ções, em relação a Deus e ao vos formei. Criei o homem santo,
nosso próprio bem; é preciso que inocente, perfeito; enchi-o de luz
nos ensine os remédios para essas e de inteligência; comuniquei-lhe
impotências e os meios de obter minha glória e minhas maravi-
esses remédios. Examinem-se, a lhas. Os olhos do homem viam,
esse respeito, todas as religiões então, a majestade de Deus. Não
do mundo e veja-se se há alguma se achava nas trevas que o
que satisfaça a todos esses requi- cegam, nem na mortalidade e nas
sitos, como a cristã. misérias que o afligem. Mas não
Serão os filósofos, que nos pôde manter tanta glória sem cair
propõem, como todo bem, os na presunção. Quis tornar-se o
bens que estão em nós? Será esse centro de si mesmo, independente
o verdadeiro bem? Descobriram do meu socorro. Subtraiu-se ao
eles o remédio para os nossos meu domínio; igualando-se a
males? Será curar a presunção mim pelo desejo de encontrar a
do homem igualá-lo a Deus? Os sua felicidade em si mesmo,
que nos igualaram aos animais, e abandonei-o; revoltando as cria-
os maometanos, que nos deram turas que lhe estavam submeti-
como todo bem os prazeres da das, tornei-as suas inimigas: de
terra, até mesmo na eternidade, maneira que, hoje, o homem tor-
trouxeram remédio para as nos- nou-se semelhante aos animais, e
sas concupiscências? Que reli- num tal afastamento de mim que
gião nos ensinará, portanto, a apenas lhe resta uma luz confusa
curar o orgulho e a concupis- do seu autor, de tal forma se
cência? Que religião, enfim, nos extinguiram ou perturbaram
144 PASCAL

todos os seus conhecimentos! Os qual é o vosso verdadeiro bem,


sentidos, independentes da razão ou qual o vosso verdadeiro esta-
e muitas vezes senhores da razão, do. Como poderiam dar remédio
levaram-no à procura dos praze- aos vossos males, se nem ao
res. Todas as criaturas o afligem menos os conheceram? Vossas
ou o tentam; e dominam-no, ou enfermidades principais são o
submetendo-o pela força, ou en- orgulho., que vos subtrai de Deus,
cantando-o com suas doçuras: o a concupiscência, que vos liga à
que é um domínio mais terrível e terra, e eles não fizeram outra
mais imperioso. coisa além de entreter ao menos
"Eis o estado em que os ho- uma dessas enfermidades. Se vos
mens se acham hoje. Resta-lhes deram Deus por objeto, foi ape-
algum instinto impotente de feli- nas para exercer vossa soberba.
cidade de sua primeira natureza, Fizeram-vos pensar que lhe sois
e estão mergulhados nas misérias semelhantes e conformes por
de sua cegueira e de sua concu- vossa natureza. E os que viram a
piscência, a qual se tornou sua vaidade dessa pretensão vos lan-
segunda natureza. çaram no outro precipício, levan-
"Por esse princípio que vos do-vos a pensar que vossa natu-
revelo, podeis reconhecer a causa reza é semelhante à dos animais,
de tantas contrariedades que as- e vos fizeram procurar o vosso
sombraram todos os homens e bem nas concupiscências, que
que os dividiram em sentimentos são próprias dos animais. Não é
tão diversos. Observai, agora, esse o meio de vos curar de vos-
todos os movimentos de gran- sas injustiças, que esses sábios
deza e glória que a experiência de não conheceram. Só eu posso
tantas misérias não pode refrear, dizer-vos quem sois, etc ... "
e vêde se não é preciso que a Adão, Jesus Cristo.
causa disso esteja em outra natu- Se vos unem a Deus, é em vir-
reza." tude da graça, não da natureza.
Em P.-R., para amanhã (Pro- Se vos rebaixam, é por penitên-
sopopéia) - "É em vão, ó cia, não por natureza.
homens, que procurais em vós Assim, essa dupla capacida-
mesmos o remédio para as vossas de ...
misérias. Todas as vossas luzes Não vos encontrais no estado
só podem chegar a conhecer que de vossa criação.
não é em vós mesmos que desco- Como esses dois estados se
brireis a verdade e o bem. Os filó- acham abertos, é impossível que
sofos prometeram-no, mas não não os reconheçais. Segui vossos
puderam fazê-lo. Não sabem movimentos, observai-vos a vós
PENSAMENTOS 145

mesmos, e vêde se não encontrais coisa nas trevas em que se encon-


aí os caracteres vivos dessas duas tra, e se acha algum motivo de
naturezas. Tantas contradições amor entre as coisas da terra, por
se achariam em assunto simples? que, se Deus lhe dá alguns raios
- Incompreensível? - Nem de sua essência, não será capaz
tudo o que é incompreensíve1 de o conhecer e de o amar sob a
deixa de existir. O número infini- forma que lhe aprouver comuni-
to. Um espaço infinito igual ao car-se conosco? Há, pois, sem
finito. dúvida, uma presunção insupor-
- É incrível que Deus se nos tável nessas espécies de raciocí-
una? - Essa consideração só nios, embora pareçam fundados
decorre da visão da nossa baixe- numa humildade aparente, que
za. Mas, se a tendes bem sincera, não é sincera, nem razoável se
segui-a tão Jonge quanto eu, e não nos faz confessar que, não
reconhecei que somos, de fato, sabendo por nós mesmos o que
tão baixos que somos por nós somos, só podemos aprendê-lo
próprios incapazes de conhecer por Deus.
se a sua misericórdia pode tor- "Não quero que me submetais
nar-nos dignos dele. Com efeito, vossa crença sem razão e não
eu bem desejaria saber por que pretendo assujeitar-vos com tira-
esse animal, que se reconhece tão nia. Não pretendo tampouco
fraco, tem o direito de medir a tudo justificar-vos. E, para acor-
misericórdia de Deus e de pôr-lhe dar essas contrariedades, entendo
os limites que a fantasia lhe suge- mostrar-vos claramente, com
re. Ele sabe tão pouco o que é provas convincentes, marcas di-
Deus que não sabe o que ele pró- vinas em mim, marcas que vos
prio é: e, todo perturbado pela convençam do que sou e me con-
visão do seu próprio estado, ousa firam autoridade mediante mara~
dizer que Deus não pode torná-lo vilhas e provas que não possais
capaz de sua comunicação ! Mas recusar; e que, em seguida, acre-
desejaria perguntar-lhe se Deus diteis sem [hesitarj nas coisas
lhe pede outra coisa além de que que vos ensino, quando não en-
o ame e o conheça, e por que contrardes outra razão de recu-
razão julga que Deus não se lhe sá-las, exceto que não podeis
pode tornar cognoscíve1 e amá- saber por vós mesmos se existem
vel, uma vez que é naturalmente ou não.
capaz de amor e conhecimento? "Deus quis redimir os homens
Sem dúvida, conhece ao menos e abrir a salvação aos que o
que existe e que ama alguma procurassem. Mas os homens se
coisa. Portanto, se vê alguma tornam tão indignos disso que é
146 PASCAL

justo que Deus recuse a uns, por ridade para os que têm uma
causa do seu endurecimento, o disposição contrária."
que concede a outros por uma *431 - Ninguém mais en-
misericórdia que não lhes é devi- tendeu que o homem é a mais
da. Se ele pretendesse vencer a excelente criatura. Uns, que co-
obstinação dos mais endurecidos, nheceram bem a realidade de sua
tê-lo-ia feito, descobrindo-se-lhes excelência, tomaram por covar-
tão manifestadamente que eles dia e ingratidão os sentimentos
não poderiam duvidar da verdade baixos que os homens têm natu-
de sua essência, como surgirá no ralmente em si; e os outros, que
último dia, com um tal brilho de conheceram bem a que ponto
relâmpagos e uma tal revolução essa baixeza é efetiva, trataram
da natureza que os mortos res- com ridícula soberba esses senti-
suscitados e os mais cegos o mentos de grandeza igualmente
verão. naturais no homem.
"Não foi assim que ele quis Levantai vossos olhos para
surgir em seu advento de doçura, Deus, dizem uns; vêde aquele ao
porque, tornando-se tantos ho- qual vos assemelhais e que vos
mens indignos de sua clemência, fez para adorá-lo; podeis tornar-
quis privá-los do bem que não vos semelhante a ele; a sabedoria
pretendiam. Não era, pois, justo vos igualará a ele, se quiserdes
que aparecesse de maneira mani- segui-lo. "Levantai a cabeça, ho-
festamente divina e absoluta- mens livres", disse Epicteto.
mente capaz de convencer todos Dizem outros: "Baixai os olhos
os homens; mas não era justo para a terra, mísero verme que
também que viesse de maneira sois, e olhai os bichos de que sois
tão oculta que não pudesse ser companheiro".
reconhecido pelos que o procu- Que se tornará, pois, o
rassem sinceramente. Quis tor- homem? Será ele igual a Deus ou
nar-se perfeitamente cognoscível aos animais? Que espantosa dis-
a estes; e assim, querendo apare- tância! Que seremos, pois?
cer a descoberto aos que o procu- Quem não vê, por tudo isso, que
ram de todo coração e oculto aos o homem está extraviado, que
que o evitam de todo coração, caiu do seu lugar, que o procura
temperou seu conhecimento, de com inquietude, que não pode
sorte que deu marcas de si visí- mais tornar a encontrá-lo? E
veis aos que o procuram e não quem, então, o conduzirá para
aos que não o procuram. aí? Os maiores homens não o
"Há bastante luz para os que conseguiram.
só desejam ver, e bastante obscu- 432 - O pirronismo é o ver-
PENSAMENTOS 147

<ladeiro; pois, afinal de contas, os guém tem certeza, fora da fé, se


homens, antes de Jesus Cristo, vela ou se dorme, visto que,
não sabiam onde estavam, nem durante o sono, julgamos velar
se eram grandes ou pequenos. E tão firmemente como fazemos;
os que falavam de uma ou outra julgamos ver os espaços, as figu-
maneira não sabiam nada disso, ras e os movimentos; sentimos
e adivinhavam sem razão e por correr o tempo, medimo-lo, e,
acaso; e mesmo erravam sempre, enfim, agimos como despertos.
excluindo uma ou outra maneira. De sorte que - passando a me-
Quod ergo ignorantes quaeri- tade da vida no sono, por nossa
tis, religio annuntiat vobis 1 0 7 • própria confissão, onde, por mais
*433 - Depois de haver en- que nos pareça, não temos ne-
tendido toda a natureza do nhuma idéia da verdade, todos os
homem - É preciso, para que nossos sentimentos sendo, então,
uma religião seja verdadeira, que ilusões - quem sabe se essa
tenha conhecido a nossa nature- outra metade da vida em que
za. Deve ter conhecido a gran- pensamos velar não é outro sono
deza e a pequenez, e a razão de um pouco diferente do primeiro
ambas. Qual a conheceu, além da do qual despertamos quando pen-
cristã? samos dormir?
*434 - As principais forças
l E quem duvida de que, se
sonhássemos acompanhados e,
dos pirrônicos (deixo as menores)
por acaso, os sonhos concordas-
são: que não temos qualquer cer-
sem, o que é bastante comum, e
teza da verdade desses princípios,
se velássemos sozinhos, não jul-
fora da fé e da revelação, senão
garíamos as coisas invertidas?
no fato de os sentirmos natural-
Finalmente, como muitas vezes
mente em nós. Ora, esse senti- SElnhamos que estamos sonhan-
mento natural não é uma prova do, acumulando um sonho sobre
convincente de sua verdade, uma outro, não poderá acontecer que
vez que, não tendo certeza, fora esta metade da vida em que pen-
da fé, se o homem foi criado por samos velar seja ela mesma um
um Deus bom, por um demônio sonho, no qual os outros se inse-
mau, ou por acaso, ele está em
riam, de que acordamos como
dúvida se esses princípios nos mortos e durante o qual possuí-
são dados como verdadeiros, ou mos tão pouco os princípios da
falsos, ou incertos, segundo a verdade e do bem quanto durante
nossa origem. Além disso, nin- o sono natural? Estes diferentes
10 7
O que buscais sem conhecer, a religião
pensamentos que no momento
vo-lo anuncia. (Atos dos Apóstolos, 17, 23.) nos agitam não serão talvez ape-
148 PASCAL

nas ilusões, semelhantes ao es- contra eles é excelentemente por


coamento do tempo e aos fantas- eles no que nos surge a sua van-
mas vãos de nossos sonhos? tagem . Não são nem por si mes-
Eis as principais forças de um mos: são neutros, indiferentes,
e de outro lado. superiores a tudo, sem excetuar-
Deixo as menores, como os se a si mesmos.
discursos que fazem os pirrô- Que fará, pois, o homem nesse
nicos contra as impressões do há- estado? Duvidará de tudo? Duvi-
bito, da educação, dos costumes dará que desperta, que o belis-
do país e outras coisas semelhan- cam, que o queimam? Duvidará
tes, que, embora arrastem a que duvida? Duvidará que exis-
maioria dos homens comuns que te? Não podemos chegar a este
só dogmatizam sobre esses vãos ponto; e tenho, como um fato,
fundamentos, são derrubadas ao que nunca houve pirronismo efe-
menor sopro dos pirromcos. tivo perfeito. A natureza sustenta
Basta ver seus livros, se não esti- a razão impotente e impede que
vermos bem persuadidos disso: extravague até esse ponto.
bem depressa o ficaremos e tal- Dirá, então, ao contrário, que
vez demais. possui certamente a verdade
Detenho-me no único ponto aquele que, por pouco que o inci-
forte dos dogmáticos, ou seja, temos, não pode apresentar ne-
que, falando de boa fé e sincera- nhum título desta verdade, e é
mente, não podemos duvidar dos forçado a desistir?
princípios naturais. Que quimera é, então, · o
É contra isso que os pirrônicos homem? Que novidade, que
opõem, numa palavra, a incer- monstro, que caos, que motivo de
teza da nossa origem, que encer- contradição, que prodígio ! Juiz
ra a da nossa natureza; é a isso de todas as coisas, imbecil verme
que os dogmáticos ainda não da terra, depositário da verdade,
conseguiram encontrar resposta cloaca de incerteza e erro, glória
desde que o mundo é mundo. e escória do universo.
Eis aberta entre os homens a Quem desfará essa confusão?
guerra em que todos devem A natureza confunde os pirrôni-
tomar partido, enfileirando-se, cos, e a razão confunde os dog-
necessariamente, ou no dogma- máticos. Que vos tornareis, pois,-
tismo ou no pirronismo; pois ó homens, que procurais a vossa
quem pensar em permanecer neu- verdade-ira condição por vossa
tro será pirrônico por excelência. razão natural? Não podeis evitar
Essa neutralidade é a essência da uma dessas seitas, nem subsistir
cabala lpirrônicaJ : quem não é em nenhuma.
PENSAMENTOS 149

Conhecei, pois, soberbo, que incapazes de participar dela.


paradoxo sois em vós mesmo. Essa emanação não nos parece
Humilhai-vos, razão impotente; somente impossível, parece-nos
calai-vos, natureza imbecil; até muito injusta. Com efeito,
aprendei que o homem ultrapassa que há de mais contrário às re-
infinitamente o homem, e ouvi do gras da nossa miserável justiça
vosso senhor a vossa condição do que danar eternamente uma
verdadeira, que ignorais. Escutai criança. incapaz de von ta.de, por
a Deus. um pecado em que parece ter
Pois, enfim, se o homem nunca participado . tão pouco, pecado
tivesse sido corrompido, gozaria cometido seis mil anos antes de
com segurança, em sua inocência, sua existência? Por certo, nada
tanto da verdade como da feli- nos choca mais rudemente do
cidade. E se o homem só tivesse que tal doutrina; no entanto, sem
sido corrompido, não teria qual- esse mistério, o mais incompreen-
quer idéia da verdade, ou da bea- sível de todos, somos incom-
titude. Mas, infelizes que somos, preensíveis a nós mesmos. O nó
e mais do que se não houvesse da nossa condição forma suas
grandeza em nossa condição, não dobras e voltas nesse abismo. De
temos uma idéia da felicidade, e sorte que o homem é mais incon-
não podemos alcançá-la; senti- cebível sem esse mistério do que
mos uma imagem da verdade e só esse mistério é inconcebível ao
possuímos a mentira: somos in- homem. Daí parecer que Deus,
capazes de ignorar em absoluto e querendo tornar a dificuldade de
de saber com certeza, de tal nosso ser ininteligível a nós mes-
maneira é manifesto que estive- mos, escondeu-lhe tão alto o nó,
mos num grau de perfeição de ou melhor, tão baixo que fomos
que infelizmente caímos! incapazes de alcançá-lo; de modo
Coisa assombrosa, no entanto, que não é pelas soberbas agita-
que o mistério mais distanciado ções da nossa razão, mas pela
do nosso conhecimento, que é o simples submissão da razão, que
da transmissão do pecado, seja podemos realmente conhecer-
uma coisa sem a qual não pode- nos.
mos ter qualquer conhecimento Estes fundamentos, solida-
de nós próprios! Sem dúvida, mente estabelecidos na autori-
não há nada que choque mais a dade inviolável da religião, mos-
nossa razão do que dizer que o tram-nos que há duas verdades
pecado do primeiro homem tor- de fé igualmente constantes:
nou culpados os que, estando tão uma, que o homem, no estado da
afastados dessa fonte, parecem criação ou no da graça, é alcan-
150 PASCAL

çado acima de toda a natureza, no sentimento interior que lhes


tornado como que semelhante a resta de sua grandeza passada,
Deus e participante de sua divin- ou abater-se em vista de sua fra-
dade; outra, que no estado de queza presente? Com efeito, não
corrupção e de pecado, decai vendo a verdade inteira, não
deste estado e torna-se seme- puderam chegar a uma perfeita
lhante aos animais. virtude. Uns considerando a na-
[Essas duas proposições são tureza como incorrupta, outros
igualmente firmes e certas. As como irreparável, não conse-
Escrituras no-lo declaram mani- guiram evitar o orgulho nem a
festamente, quando afirmam em preguiça, que são as duas fontes
certas passagens: Deliciae meae de todos os v1c1os, pois só
esse cum filiis hominum. Effun- [podem] abandonar-se a isso por
dam sp iritum meum super covardia ou furtar-se-lhe por or-
omnem carnem. Dii estis, etc., e gulho. De fato, se conhecessem a
ainda noutras: Omnis caro foe- excelência do homem, ignora-
num. Homo assimilatus est ju- riam sua corrupção; de modo que
mentis insipientibus, et similis evitariam a preguiça, mas per-
factus est illis. Dixi in corde meo der-se-iam na soberba. E, se reco-
defi/iis hominum. Ecl., 3 108 • nhecessem a enfermidade da na-
[Por onde se vê claramente tureza, ignorariam a sua
que o homem se torna seme- dignidade, de sorte que poderiam
lhante a Deus pela graça e parti- evitar a vaidade, mas precipitan-
cipa de sua divindade. E sem a do-se no desespero.
graça como que se aproxima das Daí procedem as diversas sei-
bestas selvagens.] tas dos estóicos e dos epicuristas,
*435 - Sem estes divinos dos dogmáticos e dos acadêmi-
conhecimentos, que puderam cos, etc. Só a religião cristã pôde
fazer os homens se não elevar-se curar esses dois vícios, não ex-
pulsando um pelo outro, pela
108 Tradução das citações: Minhas delícias sabedoria da Terra, mas expul-
consistem em estar com os filhos dos homens sando ambos, pela simplicidade
(Provérbios, 8, 31 ).
Espalharei meu espírito sobre toda a carne do Evangelho. Com efeito, ela
Joel, 2, 28; Isaías, 44,3). ensina aos justos, que eleva até a
Sois deuses . . . (Salmo 81 , 6). Toda a carne
é erva putrefata (Isaías, 6).' participação da própria Divinda-
O homem comparou-se aos animais sem de, que, nesse sublime estado,
pensamento e tornou-se seu semelhante (Salmo
48, 13. 21). trazem eles ainda a fonte de toda
Disse em meu coração a propósito dos fi- corrupção, que os torna, durante
lhos dos homens l que Deus os experimentava e
lhes mostrava que eram semelhantes aos ani-
toda a vida, sujeitos ao erro, à
mais] (Eclesiastes, 3, 18). miséria, à morte e ao pecado; e
PENSAMENTOS 151

grita aos mais ímpios que eles ciência: a moléstia no-la tira.
são capazes da graça do seu Somos incapazes da verdade e do
Redentor. Assim, fazendo tremer bem.
os que justifica e consolando os *43 7 - Aspiramos à verda-
que condena, tempera com tanta de e só encontramos incertezas.
justeza o medo com a esperança, Buscamos a felicidade e só
por essa dupla capacidade achamos miséria e morte.
comum a todos, da graça como Somos incapazes de não dese-
do pecado, que abaixa infinita- jar a verdade e a felicidade e
mente mais do que a razão por si somos incapazes da certeza ou
só pode fazer, mas sem desespe- da felicidade. Deixam-nos este
ro; e eleva infinitamente mais do desejo tanto para nos punir como
que o orgulho da natureza, mas para nos fazer sentir de onde
sem desvanecimento: fazendo ver caímos.
bem, por isso, que, sendo a única *438 - Se o homem não é
isenta de erro e vício, só a ela feito para Deus, por que só se
compete instruir e corrigir os sente feliz em Deus? Se o homem
homens. é feito para Deus, por que é tão
Quem pode, pois, recusar-se a contrário a Deus?
crer e adorar essas celestes luzes? 439 - Natureza corrupta -
Com efeito, não será mais claro O homem não age pela razão, a
que o dia, que sentimos em nós qual faz o seu ser.
mesmos caracteres indeléveis de 440 - A corrupção da razão
excelência? E não será igual- aparece em numerosos costumes
mente verdadeiro que experimen- diferentes e extravagantes. Foi
tamos a todo momento os efeitos preciso que a verdade viesse para
da nossa deplorável condição? que o homem não vivesse mais
Que nos gritam, pois, esse caos e em si mesmo.
·essa confusão monstruosa, se não *441 - Para mim, confesso
a verdade desses dois estados, que logo que a religião cristã des-
com uma voz tão poderosa que é cobre este princípio, que a natu-
impossível resistir? reza dos homens está corrompida
*436 - Fraqueza - Todas e decaída de Deus, isso abre-me
as ocupações dos homens consis- os olhos para ver por toda parte
tem em obter o bem; não pode- o caráter dessa verdade; com
riam ter título para mostrar que o efeito, a natureza é tal que assi-
possuem por justiça, pois têm nala por toda parte um Deus per-
apenas a fantasia dos homens e dido, quer no homem, quer fora
não a força para possuí-lo com do homem, e uma natureza cor-
certeza. O mesmo sucede com a rompida.
152 PASCAL

*442 - A verdadeira natu- 446 - Do pecado original.


reza .do homem, seu verdadeiro Tradição ampla do pecado origi-
bem, e a verdadeira virtude, e a nal segundo osjudeus 10 9.
verdadeira religião, são coisas Sobre a palavra do Gênese, 8.
cujo conhecimento é inseparável. A composição do coração do
443 - Grandeza, miséria - homem é má desde a infância.
A medida que temos mais luz, R. Moisés Hadarschan
mais grandeza e baixeza desco- Esse mau fermento é posto no
brimos no homem. homem logo que ele se forma.
O comum dos homens - M assechet Sucá: Esse mau lê-
aqueles que são mais elevados: vedo tem sete nomes na Escritu-
os filósofos, assombram o ra: mal, prepúcio, imundo, inimi-
comum dos homens; - os cris- go, escândalo, coração de pedra,
tãos, assombram os filósofos. aqui/ão; tudo isso significa a
Quem se assombrará, pois, ao maldade que se esconde e impri-
ver que a religião se limita a me no coração do homem.
conhecer a fundo o que reconhe- Misdrach -Tilim diz a mesma
cemos tanto mais facilmente coisa, e que Deus libertará a boa
quanto temos mais luz? natureza do homem da má.
444 - O que os homens, Essa malignidade renova-se
pelos seus maiores luminares, diariamente contra o homem,
conseguiram saber, essa religião como escreve o Salmo 3 7: "O
ensinava-o a seus filhos. ímpio observa o justo e procura
*445 - O pecado original é levá-lo à morte, mas Deus não o
uma loucura diante dos homens; abandonará" Essa malignidade
mas é dado como tal. Não deveis, tenta o coração do homem nesta
pois, censurar de falta de razão vida e o acusará na outra. Tudo
essa doutrina, uma vez que a dou isso se encontra no Talmude.
como não tendo razão. Mas essa Misdrach Tilim no Salmo 4:
loucura é mais sábia que toda a "Tremei e não pecareis"~ tremei e
sabedoria dos homens: sapientius espantai vossa concupiscência e
est hominibus. Com efeito, sem ela não vos induzirá a pecar. E
isso, que se dirá que é o homem? sobre o Salmo 36: "O ímpio disse
Todo o seu estado depende desse
ponto imperceptível. E como se ~
1 9
!odas estas citações, afirma Brunschvicg,
sao tlíadas de uma obra da Idade Média intitu-
apercebeu disso pela razão, de lada: Pugio christianorum ad impiorum peifi-
vez que é uma coisa contra a diam jugulandam et maxime judaeorum. (Pu-
nhal dos cristãos para degolar a peJ:fídia dos
razão, e que sua razão, em vez de ímpios e em particular dos judeus.) Citam-na
inventá-la por seus caminhos, em geral como Pugio Fidei. O autor é um
dominicano catalão do século XIII, Raimundo
afasta-se quando se lhe apresen- Martin. A primeira edição data de Paris, 1651,
ta? publicada por Bosquet, Bispo de Lodeve.
PENSAMENTOS 153

em seu coração: que o temor de A1isdrach el Kohelet, sobre


Deus não se ponha à minha fren- Ecl., 9: "Um grande rei assediou
te", isto é, que a malignidade uma pequena cidade". Esse gran-
natural ao homem insinuou isso de rei é o mau lêvedo, as máqui-
ao ímpio. nas do cerco são as tentações, e
Misdrach el Kohelet: "Mais encontrou um homem sábio e
vale a criança pobre e boa do que pobre que libertou a cidade, isto
o rei velho e maluco que não sabe é, a virtude.
prever o futuro". A criança é a E sobre o Salmo 41: "Bem-
virtude e o rei a malignidade do aventurado quem atende ao
homem. Chama-se rei, porque pobre".
todos os membros lhe· obedecem, E sobre o Salmo 78: "O espí-
e velho, porque está no coração rito parte e não mais volta", em
do homem desde a infância até a que alguns se apoiaram para
velhice; e louco, porque conduz o errar contra a imortalidade da
homem ao caminho da perdi- alma; o sentido porém, é este:
5

ção] que ele não prevê. esse espírito é o mau lêvedo que
O mesmo está dito no M is- vai com o homem até a morte; e
drach Tilim. não voltará no dia da ressurrei-
Bereschit Raba, sobre o Salmo çao.
35: "Senhor, todos os meus ossos E sobre o Salmo 103 o 5

te abençoarão porque libertas o mesmo.


pobre do tirano", e haverá pior ti- E sobre o Salmo 16.
rano do que esse mau lêvedo? - Princípios dos Rabinos: dois
E sobre o Provérbio 25: "Se teu Messias.
inimigo tem fome, dá-lhe de 44 7 - Dir-se-á que, por ter
comer"; isto é, se o mau lêvedo dito que a justiça desapareceu da
tem fome, dá-lhe o pão da sabe- terra, os homens conheceram o
doria, de que se fala no Provérbio pecado original? - Nemo ante
9; e se tem sêde, dá-lhe a água a obitum beatus est 1 1 1 isto é, que
que se refere Isaías, 55. souberam que ao morrer começa
Misdrach Tilim diz o mesmo; a beatitude eterna e essencial?
e que a Escritura, nesse trecho, 448 - [MitonJ bem vê que a
ao falar de nosso inimigo, alude natureza é corrupta e que os ho-
ao mau lêvedo; e que lhe [dando] mens são contrários à honesti- ·
esse pão e essa água, juntar-lhe- dade; mas não sabe por que eles
emos brasa sobre a cabe- não podem voar mais alto.
ça ... , , o 449 - · Ordem - Dizer de-
1 10 Expressão tirada da Bíblia e significando 111 Ninguém éfe/iz antes da morte. Recorda -
"dirigir a cólera divina sobre a sua cabe.ç a". ção de um verso de Ovidio .Metamorfoses, IV.
(N. do T.) 135), citado por Montaigne (1, 18).
154 PASCAL

pois da "corrupção": "É justo fundo vil do homem, esse figmen-


que todos os que se encontram tum ma/um apenas se mascara;
nesse estado o conheçam, tanto não desaparece.
os que nele se comprazem como 454 - Injustiça - Não en-
os que nele se desgostam, mas contraram outro meio de satisfa-
não é justo que todos vejam a zer à concupiscência sem prejudi-
redenção". car os demais.
*450 - Se o homem não *455 - O eu é odioso: vós,
sabe que vive cheio de soberba Miton, vós o cobris, não o tirais
ambição, de concupiscência, fra- por risso: continuais, portanto,
queza, miséria e injustiça, é bem sendo odioso 1 1 2 • - Não, porque
cego. E se, sabendo-o, não deseja agindo como fazemos, cortes-
libertar-se, que se dirá de um mente com todos, não há motivo
homem ... ? para que nos odeiem. - Isso
Poder-se-á ter então outra seria verdadeiro se apenas se
coisa que não estima por uma odiasse no eu o desprazer que
religião que tão bem conhece os nos causa. Mas, se eu o odeio
defeitos do homem, outra aspira- porque é injusto que se torne o
ção que não à verdade de uma centro de tudo, odiá-lo-ei sempre.
religião que promete remédios Numa palavra, o eu tem duas
tão desejáveis? qualidades: é injusto em si, fazen-
451 - Todos os homens se do-se centro de tudo; é incômodo
odeiam naturalmente entre si. aos outros, querendo sujeitá-los:
Utilizamos como podemos a con- pois cada eu é o inimigo e deseja-
cupiscência para fazê-la servir ao ria ser o tirano de todos os
bem público. Mas é só fingi- outros. Tirais dele a incomodi-
mento, e uma falsa imagem da dade, mas não a injustiça; e,
caridade; pois, no fundo, é só assim, não o tornais amável aos
ódio. que odeiam a sua injustiça: vós o
*452 - Apiedar-se dos des- tornais amável apenas aos injus-
graçados não é contra a concu- tos, que nele não descobrem mais
piscência. Ao contrário, bem sa- o seu inimigo; e assim continuais
tisfeitos ficamos com render esse injusto e só podeis agradar aos
preito de amizade e angariar uma injustos.
reputação de ternura sem nada 45 6 - Que desregramento
dar em troca. 1 12
Méré e Miton, recorda Brunschvicg, con-
453 - Basearam-=se e extraí- sideravam um preceito do homem de bem não
ram-se da concupiscência regras dizer eu mas sim on (se impessoal). Pascal, 1,
insurgindo-se contra o eu, acentua, contudo, a
admiráveis de polícia, moral e inutilidade da solução proposta por Méré e
justiça; mas no fundo, neste Miton. (N. do E.)
PENSAMENTOS 155

do juízo, esse pelo qual não há 459 - Os rios de Babilônia


quem não se coloque acima do correm, e caem, arrastam. Ó
resto do mundo e não ame mais Santa Sion, onde tudo é estável, e
seu próprio bem, e a duração de onde nada cai! É preciso sentar-
sua felicidade, e de sua vida, que se sobre os rios, não debaixo ou
os do resto do mundo! dentro, mas em cima, e não de
457 - Cada indivíduo é pé, mas sentado: para ser humil-
tudo para si mesmo, pois, ao de, estando sentado, e em segu-
morrer, tudo morre para ele. Daí rança, estando em cima. Mas
o fato de cada um pensar ser tudo estaremos de pé nos pórticos de
para todos. Cumpre não julgar a Jerusalém.
natureza por nós, mas por ela. Que se observe se esse prazer é
*458 - "Tudo o que há no estável ou passageiro: se passa-
mundo é concupiscência da geiro, é um rio de Babilônia.
carne, ou concupiscência dos 460 - Concupiscência da
olhos, ou orgulho da vida: libido carne, concupiscência dos olhos,
sentiendi, libido sciendi, libido do orgulho, etc. - Há três or-
dominandi." Desgraçada a terra dens de coisas: a carne, o espíri-
de maldição que esses três rios de to, a vontade. Os carnais são os
fogo abrasam em lugar de rega- ricos, os reis: têm por objeto o
rem ! Felizes aqueles que, estan- corpo. Os curiosos e ilustrados
do sobre esses rios, não submer- têm por objeto o espírito. Os sá-
sos, não arrastados, mas imóveis, bios têm por objeto a justiça.
mas firmes, não de pé, mas senta- Deus deve reinar sobre tudo, e
dos num lugar baixo e seguro, de tudo deve relacionar-se com ele.
onde não se levantam antes da Nas coisas da carne, reina pro-
luz, mas depois de terem repou- priamente a concupiscência; nas
sado em paz, estendem a mão espirituais, a curiosidade propria-
àquele que deve elevá-los, para mente; na sabedoria, o orgulho
mantê-los de pé e firmes nos pór- propriamente. Não quer dizer
ticos da santa Jerusalém, onde o que não se possa ter glória de
orgulho não mais poderá comba- riquezas e de conhecimentos,
tê-los e abatê-los; e que contudo mas não há que ter orgulho
choram, não por verem o escoa- disso; pois, embora reconhe-
mento de todas as coisas perecí- cendo que um homem é ilustrado,
veis que as torrentes arrastam, não deveremos deixar de conven-
mas à lembrança da pátria queri- cê-lo de que faz mal em ser
da, da Jerusalém celeste, da qual soberbo. O lugar próprio da
se recordam sempre na longura soberba é a sabedoria, já que não
do exílio! podemos aceitar que um homem
156 PASCAL

se encha de sabedoria e que este- é horrível. Como ! Conheceram


ja errado considerando-se glorio- Deus e não desejaram unica-
so; pois isso é justo. Destarte, só mente que os homens o amassem,
Deus dá a sabedoria e por isso: mas que os homens se detivessem
Qui gloriatur, in Domino glorie- neles! Quiseram somente ser o
tur, 1 3 • objeto da felicidade voluntária
461 - Das três concuQis- dos homens!
cências saíram três seitas e os 464 - Filósofos - Somos
filósofos não fizeram outra coisa cheios de coisas que nos empur-
senão seguir uma das três concu- ram para fora.
piscências. Nosso instinto faz-nos sentir
462 - Procura do verda- que é preciso procurar nossa feli-
deiro bem - O comum dos ho- cidade fora de nós. Nossas pai-
mens põe o bem na fortuna e nos xões impelem-nos para fora,
bens exteriores, ou, pelo menos, ainda que os objetos não se ofere-
no divertimento. Os filósofos çam para excitá-las: os objetos
mostraram a vaidade de tudo isso de fora tentam-nos por si pró-
e puseram-no onde puderam. prios e chamam-nos, embora não
*463 - Contra os filósofos pensemos neles. Podem, pois, os
que possuem Deus sem Jesus filósofos, dizer: "Concentrai-vos
Cristo. em ms mesmos e aí encontrareis
Filósofos - Eles acreditam vosso bem", que não acreditamos
que Deus é o único digno de ser neles e os que acreditam são os
amado e admirado, e desejaram mais vazios e tolos.
ser amados e admirados pelos 465 - Dizem os estóicos:
homens; e não conhecem sua "Concentrai-vos em vós mesmos,
corrupção. Se se sentem cheios aí encontrareis o repouso". E isso
de sentimentos para amá-lo e não é verdade.
adorá-lo, e se acham nisso a sua Os outros dizem: "Saí; buscai
alegria principal, estimem-se a felicidade divertindo-vos". E
bons enquanto é tempo. Mas, se isso não é verdade. Chegam as
se acham repugnantes, se a sua doenças.
única tendência é estabelecer-se A felicidade não está em nós
na estima dos homens, e se, por nem fora de nós; está em Deus, e
toda perfeição, conseguem ape- fora e dentro de nós.
nas que, sem forçar os homens,
os façam achar _a felicidade em 466 - Mesmo que Epicteto
amá-los direi que essa perfeição tenha visto muito bem o cami-
nho, diz aos homens: "Estais
1 1
J Quem se glorifica, que se glorifique em seguindo o errado"; mostra que o
Deus (São Paulo, 1 Coríntios, 1,31). certo é outro, mas não nos con-
PENSAMENTOS 157

duz a ele. É o de querer o que *4 70 - "Se eu tivesse visto


Deus quer; e só Jesus nos conduz um milagre", dizem eles, "con-
a esse: Via, veritas 1 1 4 • verter-me-ia". Como afirmam
Os vícios do próprio Zenão. que fariam o que ignoram? Su-
467 - Razão dos efeitos - põem que essa conversão con-
Epicteto. Os que dizem: "Tendes sista numa adoração que se faz
dor de cabeça", não é a mesma de Deus como um comércio e
coisa. Tem-se certeza da . saúde, uma conversação tal qual a ima-
não da justiça; e, efetivamente, a ginam. A conversão verdadeira
dele era uma tolice. consiste em aniquilar-se diante
Entretanto, acreditava-a de- desse ser universal que tantas
monstrativa, dizendo: "Ou em vezes tem sido irritado e que
nosso poder ou não". Mas não pode perder-vos legitimamente a
percebia que não está em nosso todo momento; em reconhecer
poder regular o coração e errava que não se pode nada sem ele, e
por tirar esta conclusão do fato que nada se mereceu dele, senão
de haver cristãos. a perda de sua graça. Consiste
*468 - Nenhuma outra reli- em conhecer que há uma oposi-
gião propôs que nos odiemos a ção· invencível entre Deus e nós, e
nós mesmos. Nenhuma outra re- que, sem um mediador, não pode
ligião pode, pois, agradar aos que haver comércio.
se odeiam a si mesmos e que pro-
curam um ser verdadeiramente *4 71 - É injusto que se li-
amável. E esses, se nunca tives- guem a mim, embora o façam
sem ouvido falar da religião de com prazer e voluntariamente.
um Deus humilhado, abraçá-la- Enganaria aqueles em quem fi-
iam incontinenti. zesse nascer esse desejo, pois não
469 - Sinto que posso não ter sou o fim de coisa alguma e não
existido; pois o eu consiste no tenho com que satisfazê-los. Não
meu pensamento: portanto, eu, estarei prestes a morrer? Conse-
que penso, não teria existido se guintemente, o objeto de seu
minha mãe tivesse morrido antes afeto morrerá. Por isso, assim
de eu ter sido animado: portanto, como seria culpado se fizesse
não sou um ser necessário. Não acreditar numa falsidade, embora
sou também eterno, nem infinito; a ela induzindo suavemente e
mas vej'o bem que há na natureza sendo crido com prazer, e dan-
úm ser necessário, eterno e infini- do-me prazer a mim próprio da
to. mesma forma, sou culpado de me ·
fazer amar. E, se levo alguém a
11 4 [Eu sou] o caminho, a verdade [a vida.
devot~r-se a mim, devo advertir
Ninguém vem ao Pai senão por mim] . Pala-
vras de Jesus a Tomé (João, 14,6). os que estiverem dispostos a con-
158 PASCAL

sentir na mentira que não deve- Se o pé tivesse sempre igno-


rão acreditar, seja qual for a van- rado que pertence ao corpo e se
tagem que me advenha; e, ainda, houvesse um corpo de que ele
que não devem apegar-se a mim; dependesse, se só tivesse tido o
pois é necessário que passem a conhecimento e o amor de si e
vida e gastem seus desvelos na viesse a conhecer que pertence a
adoração de Deus, ou na sµa um corpo do qual depende, que
,procura. desgosto, que confusão na sua
*472 - A vontade própria vida passada, por ter sido inútil
não se satisfará nunca, mesmo ao corpo qu_e lhe insuflou a vida,
que tenha poder sobre tudo o que que o teria aniquilado se o tivesse
deseja, mas ficamos satisfeitos no rejeitado e separado de si, como
instante em que renunciamos a ele se separava dele! Que súpli-
ela. Sem ela, não podemos estar cas para que nesse corpo fosse
descontentes; com ela, não pode- conservado! E com que submis-
mos estar contentes. são se deixaria governar pela
473 - Imaginemos um corpo vontade que rege o corpo até con-
todo de membros pensantes 1 1 5 • sentir em ser amputado se preci-
*474 - Membros. Começar so ! Ou perderia sua qualidade de
por aí - Para regular o amor membro, pois é necessário que
que devemos a nós mesmos, pre- todo membro consinta em pere-
cisamos imaginar um corpo todo cer pelo corpo, que é o único
de membros pensantes, porque para o qual tudo existe.
somos membros do todo, e ver *4 77 - É falso que sejamos
como cada membro deveria dignos de que os outros nos
amar-se, etc. amem: é injusto que o queiramos.
*475 - Se os pés e as mãos Se nascêssemos razoáveis, indife-
tivessem uma vontade particular, rentes e conhecendo-nos a nós e
nunca estariam na sua ordem .aos outros, não , daríamos essa
senão submetendo essa vontade a i~clinação à nossa vontade. Nas-
uma vontade primeira que gover- cemos, no entanto, com ela: nas-
nasse o corpo inteiro. Fora disso, cemos, portanto, injustos, pois
estariam em desordem e desgra- tudo tende para si mesmo. Isso é
çados; mas, querendo somente o contra toda ordem: é preciso ten-
bem do corpo, alcançam seu pró- der para o geral; e a tendência
prio bem. para si é o começo de toda desor-
4 76 - É preciso amar só a dem, na polícia, na economia, no
Deus e só odiar a si mesmo. corpo particular do homem. A
1 1 5 Comparação tomada por Pascal a São
vontade está, pois~ depravada.
Paulo ( l Coríntios, 12,12). (N. do E.) Se os membros das comuni-
PENSAMENTOS 159

dades naturais e CIVIS tendem *481 - Os exemplos das mor-


para o bem do corpo, as próprias tes generosas dos iacedemônios e
comunidades devem tender para outras rtão nos comovem; pois,
outro corpo, mais geral, de que que nos traz isso? Mas ·o exemplo
são membros. da morte dos mártires nos como-
Devemos, pois, tender para o . ve; pois são "membros" nossos.
geral. Nascemos, portanto, injus- Temos uma ligação comum com
tos e depravados. eles: a sua resolução pode formar
*478 - Quando queremos a nossa, não só pelo exemplo,
pensar em Deus, não haverá algo mas também porque mereceu tal-
que nos desvie e nos tente a pen- vez a nossa. Não há nada disso
sar em outra coisa? Tudo isso é nos exemplos dos pagãos; não
mau e nasceu conosco. temos ligação com eles, assim
*4 79 - Se há um Deus, é pre- como não ficamos ricos por ver-
ciso amar somente a ele e não às mos um estrangeito rico, mas por
criaturas passageiras. O racio- termos um pai ou um marido que
cínio dos ímpios, na Sabedoria, o seja.
baseia-se apenas em não haver *482 - Moral - Tendo feito
Deus. "Dito isso, desfrutemos o céu e a terra que não sentem a
portanto das criaturas." É a pior felicidade de seu ser, quis Deus
solução. Porém, se houvesse um fazer seres que o conhecessem e
Deus a amar, não teriam con- que compusessem um corpo de
cluído isso, mas justamente o membros pensantes, pois nossos
contrário. E eis a conclusão dos membros não sentem a felicidade
sábios: "Há um Deus; não des- de sua união, de sua admirável
frutemos, pois, das criaturas". inteligência, do cuidado que a
Portanto, tudo o que nos incita a natureza tem de neles influir os
nos ligar às criaturas é mau, pois espíritos e fazê-los cresc~r e dura-
nos impede, ou de servir a Deus, rem. Como seriam felizes se o
se o conhecemos, ou de procurá- sentissem, se o vissem ! Mas seria
lo, se o ignoramos. Ora, estamos preciso, para isso, que tivessem
cheios de concupiscência: por- inteligência para conhecê-lo e
tanto cheios de mal; logo, deve- boa vontade para consentir na
mos odiar-nos a nós mesmos, e a vontade da alma universal. Por-
tudo que nos excite a outro liame que se, tendo recebido inteli-
que não seja Deus somente. gência, dela se servissem para
480 - Para fazer que os reter em si mesmos o alimento,
membros sejam felizes é preciso sem deixá-lo passar a outros
que tenham uma vontade e que a membros, seriam não só injustos
sujeitem ao corpo. mas ainda miseráveis e se odia-
160 . PASCAL

riam em lugar de se amarem; A mão é amada pelo corpo; se


consistindo a sua beatitude, tivesse uma vontade, deveria
assim como o seu dever, em con- amar-se da mesma maneira como
sentir na conduta da alma inteira a alma a ama: todo amor que vai
a que pertencem e que os ama além é injusto.
mais do que eles se amam a si
Adhaerens Deo unus spiritus
próprios.
est. A gente se ama porque é
*483 - Ser membro é só ter
membro de Jesus Cristo. Ama-
vida, ser e movimento pelo espí-
mos Jesus Cristo porque é o
rito do corpo e para o corpo. O
corpo de que somos membro.
membro separado, não vendo
Tudo é um. Um está no outro,
mais o corpo a que pertence, tem
como as três pessoas.
apenas um ser perecível e mori-
*484 - Duas leis bastam
bundo.
No entanto, acredita ser um para regulamentar toda a Repú-
todo; e, não vendo mais o corpo blica Cristã, melhor do que todas
do q~al depende, crê não depen- as leis políticas.
der senão de si e quer tornar-se *485 - A verdadeira e única
ele próprio centro e corpo. Mas, virtude consiste, pois, em odiar a
não tendo em si princípio de si mesmo (porquanto somos
vida, não faz senão extraviar-se e odiosos pela concupiscência) e
se assombra na incerteza do seu em buscar um ser realmente amá-
ser, sentindo bem que não é vel para amá-lo. Mas, como não
corpo e não vendo, contudo, que podemos amar o que está fora de
seja membro de um corpo. nós, cumpre-nos amar um ser que
Enfim, quando vem a conhecer- esteja em nós, e que não seja nós,
se, é como se tivesse voltado a si, e isso é certo para todos. Ora,
e ama-se apenas para o corpo; somente o ser universal assim é.
lamenta os seus desvios passa- O reino de Deus está em nós: o
dos. bem universal está em nós,
Ele não poderia por sua natu- somos nós mesmos e não somos
reza amar outra coisa senão por nós.
si mesmo e para sujeitá-la a si, *486 - A dignidade do
pois cada coisa se ama acima de homem consistia, em sua inocên-
tudo. Mas, amando o corpo, cia, em usar e dominar as criatu-
ama-se a si próprio, porque só ras, mas, hoje, consiste em sepa-
tem ser nele, por ele e para ele: rar-se delas e a elas sujeitar-se.
qui adhaeret Deo unus spiritus *487 - É falsa toda religião
est, 1 6
que, em sua fé, não adore um
1 1 6
Quem adere a Deus forma um só espírito Deus como princípio de todas as
com ele (São Paulo, 1 Coríntios, 6, 17). coisas e que, em sua moral, não
PENSAMENTOS 161

ame um só Deus como fim de Ela deve ainda ter conhecido a


todas as coisas. concupiscência e a impotência; a
488 - . . . Mas é impossível nossa fê-lo. Deve indicar os re-
que Deus seja o fim, se não é o médios para tanto, um dos quais
princípio. Voltamos a vista para é a prece. Nenhuma religião
cima, mas apoiamo-nos na areia; pediu a Deus que o amasse e o
e a terra fundir-se-á e cairemos seguisse.
olhando o céu. *492 - Quem não odeia em
*489 - Se há um só princí- si o seu amor-próprio, e esse ins-
pio de tudo, um só fim de tudo, tinto que o leva a fazer-se Deus, é
tudo por ele, tudo para ele. É pre- bem cego. Quem não vê que nada
ciso, pois, que a verdadeira reli- é tão oposto à justiça e à verda-
gião nos ensine a adorar só a ele de? Porque é falso que mereça-
e a amar só a ele. Mas, como mos isso; e é injusto e impossível
somos incapazes de adorar o que chegar a isso, uma vez que todos
não conhecemos e de amar outra pedem a mesma coisa. É, pois,
coisa além de nós, é necessário em uma manifesta injustiça que
que a religião, que nos adverte nascemos, da qual não podemos
dos deveres, também nos advirta desfazer-nos e da qual devemos
das incapacidades e que nos ensi- desfazer-nos.
ne os remédios. Ela nos mostra No entanto, nenhuma religião
que por um homem tudo se per- notou que isso fosse um pecado,
deu, rompendo-se a ligação entre nem que nele tenhamos nascido,
Deus e nós, e que por um homem nem que fôssemos obrigados a ·
essa ligação se refez. resistir-lhe; nem pensou em dar-
Nascemos tão hostis a esse nos os remédios contra ele.
amor a Deus, e esse amor é tão 493 - A verdadeira religião
imprescindível, que devemos ter ensina nossos deveres, nossas
nascido culpados, ou Deus seria impotências (orgulho e concupis-
injusto. cência); e os remédios (humil-
490 - Não tendo os homens dade, mortificação).
se habituado a formar o mérito, 494 - Fora preciso que a
mas tão-somente a recompensá- verdadeira religião ensinasse a
lo .onde já o encontram formado, grandeza, a miséria, impelisse à
julgam Deus por si mesmos. estima e ao desprezo de si
*491 -- A verdadeira reli- mesmo, ao amor e ao ódio.
gião deve ter por marca obrigar a *495 -- Se é cegueira sobre-
amar a seu Deus. Isso é bem natural viver sem procurar o que
justo. No entanto, nenhuma somos, cegueira terrível é viver
outra o ordenou; a nossa fê-lo. mal, crendo em Deus.
162 PASCAL

496 A experiência eviden-. vem da piedade que começa a


eia-nos uma diferença enorme existir em nós, e sim da impie-
entre a devoção e a bondade. dade que em nós ainda existe. Se
*497 - Contra aqueles que, os nossos sentidos não se [opu-
confiando na misericórdia de ·sessem] à penitência e se a nossa
Deus, permanecem indiferentes, corrupção não se opusesse à pu-
sem praticar boas obras - reza de Deus, não haveria nisso
Como as duas fontes dos nossos nada de penoso para nós. Só
pecados são o orgulho e a pregui- sofremos à proporção que o
ça, Deus nos descobriu duas qua- vício, que nos é natural, resiste à
lidades suas para curá-las: a graça sobrenatural. O nosso co-
misericórdia e a justiça. A pro- ração sente-se dilacerado entre
priedade da justiça é abater o esses esforços contrários. Mas
orgulho, por santas que sejam as seria bem injusto imputar
obras, et non intres in judicium, essa violência a Deus, que nos
etc. 1 1 7 , e a propriedade da mise- atrai, em lugar de atribuí-la ao
ricórdia é combater a preguiça mundo, que nos retém. É como
convidando às boas obras, segun- uma criança cuja mãe a arranca
do este trecho: "A misericórdia dos braços dos ladrões e que deve
de Deus convida à penitência"; e amar, na dor que sofre, a violên-
este outro dos Ninivitas: "Faça- cia amorosa e legítima de quem
mos penitên~ia, para ver. se por- procura a sua liberdade, e só
ventura ele tem piedade de nós". detestar ·a violência e a tirania
E, assim, a misericórdia está tão dos que a retêm injustamente. A
longe de autorizar o afrouxa- guerra mais cruel que Deus pode
mento que é, ao contrário, a qua- fazer aos homens, nesta vida, é
lidade que o combate formal- deixá-los sem essa guerra que nos
mente, de sorte que, em vez de deu. "Eu . vim trazer a guerra",
dizer: "Se não houvesse em Deus disse ele; e, para instruir quanto a
misericórdia, seria ·preciso fazer essa guerra: "Eu vim trazer o
toda sorte de esforços para a vir- ferro e o fogo". Antes dele o
tude"; é preciso dizer, pelo con- . mundo ·vivia numa falsa paz.
trário, que é por haver em Deus
misericórdia que é preciso fazer 499 - Obras exteriores -
toda sorte de esforços. Nada há tão perigoso como o
498 - É verdade que é preci- que agrada a Deus e aos homens;
so penar para participar da pie- pois os estados que agradam a
dade. Mas essa dificuldade não Deus e aos homens têm uma
coisa que agrada a Deus e outra
11 7
E não te submeterás a julgamento l coin que agrada aos homens. Assim a
teu escravo] (Salmo 142,2). grandeza de Santa Teresa: o que
PENSAMENTOS 163

agrada a Deus é sua profunda tuus 1 1 8 • As paixões assim domi-


humildade nas revelações; o que nadas são virtudes; a avareza, a
agrada aos homens são suas inveja, a cólera, o próprio Deus
luzes. E por isso matamo-nos a as atribui a si; e são tanto virtu-
imitar seus discursos pensando des como a clemência, a piedade
imitar seu estado, e não amando e a constância, que são também
o que Deus ama nem nos pondo paixões. É preciso servirmo-nos
no estado que Deus ama. delas como de escravos, e, dei-
xando-lhes seu alimento, impedir
É preferível não jejuar e sofrer
a humilhação disso, a jejuar e que a alma delas se nutra; pois,
comprazer-se com isso. Fariseu, quando as paixões são as senho-
.publicano. ras são vícios, e então dão à alma
De que me serviria recordá-lo,seu alimento, e a alma com elas .
se isso pode igualmente me preju- se nutre e se envenena.
dicar ou me servir, e que tudo 503 - Os filósofos consa-
depende da bênção de Deus, que gram os vícios, pondo-os no pró-
prio Deus; os cristãos consa-
ele só dá às coisas feitas para ele,
graram as virtudes.
e segundo suas regras e pelos
504 - l . . . Privação do es-
seus caminhos, a maneira sendo pírito de Deus; e suas ações nos
tão importante quanto a coisa, e enganam por causa do parêntese
talvez mais, posto que Deus pode ou interrupção nele do espírito de
tirar o bem do mal, e que, sem Deus; e ele se arrepende, na sua
Deus, tiramos o mal do bem? aflição 1 1 9 .J
500 - A inteligência das pa- O ju_sto, nas menores coisas,
lavras bem e mal. age com fé: quando repreende
501 - Primeiro grau: ser seus servidores, deseja sua con-
censurado por praticar o mal e versão pelo espírito de Deus e
louvado por fazer o bem; segun- roga a Deus que os corrija e espe-
do grau: não ser censurado nem ra tanto de Deus quanto de suas
louvado. repreensões, e pede a Deus que
abençoe suas ·correções. E assim
502 - Abraão . não tomou · nas outras ações ...
nada para si, mas somente para 505 - Tudo nos pode ser
os seus servidores; assim, o justo
não toma nada para si do mundo Sob ti estarão teus desejos (Gênese, 4, 7).
1 1 8

e dos aplausos do mundo, mas 1 1 9


Texto deste parágrafo, nas edições
Brunschvicg (Hachette) e Jacques Chevalier
somente para as suas paixões, (Pléiade): "Falta de caridade, causa da priva-
das quais se serve como senhor, ção do espírito de Deus; e suas ações más por
causa do parêntese ou interrupção nele do
dizendo a uma: Vai, e la outraJ espírito de Deus; e ele arrepende-se, afligindo-·
Volta. Sub te erit appetitus se". (N. do E.)
164 PASCAL

mortal, mesmo as coisas feitas mas não é indigno de Deus tirá-lo


para nos servirem; como na natu- da miséria.
reza, as muralhas podem matar- 511 - Se queremos dizer
nos e os degraus também, se não que o homem é pequeno demais
procedermos com acerto. para merecer comunicar-se com
O menor movimento reflete-se Deus, é necessário ser muito
em toda a natureza; o mar inteiro grande para julgá-lo.
muda por uma pedra. Assim, na 512 - Ela é toda o corpo de
graça, a menor ação repercute Jesus Cristo, em sua linguagem,
em tudo por suas conseqüências. mas ele não pode dizer que ela é
Logo, tudo é importante. todo o corpo de Jesus Cristo. A
Em cada ação, cumpre olhar, união de duas coisas sem mudan-
além da ação, nosso estado pre- ça não permite dizer que uma se
sente, passado, futuro e o dos ou- transforma na outra: assim a
tros a quem ela interessa, e ver a alma está unida ao corpo, o fogo
ligação entre todas as coisas. E à lenha, sem mudança. É preciso
então estaremos bem contidos. uma mudança que permita que a
506 - Não nos impute Deus forma de uma se torne a forma
nossos pecados, isto é, todas as da outra: tal como a união do
conseqüências e desenvolvi- Verbo ao homem.
mentos de nossos pecados, que Porque meu corpo sem minha
são apavorantes, dos _menores alma não constituiria o corpo de
erros, se encarados sem miseri- um homem, e minha alma unida
córdia. a uma matéria qualquer faria
507 - Os movimentos da meu corpo. Ele não distingue a
graça, a dureza do coração; as condição necessária da condição
circunstâncias exteriores. suficiente: a união é necessária,
508 - Para fazer de um mas nao suficiente. O braço
homem um santo é preciso a esquerdo não é o direito. A
graça, e quem duvida não sabe o impenetrabilidade é uma proprie-
que é santo e homem. dade dos corpos.
509 - Filosofia - Que ab- Identidade de numero em rela-
surdo dizer a um homem que não ção ao mesmo tempo exige a
se conhece que vá sozinho a identidade da matéria. Assim, se
Deus! E que absurdo dizê-lo a Deus unisse minha alma a um
quem se conhece! corpo na China, o mesmo corpo,
5 1O -- O homem não é digno idem numero, estaria na China.
de Deus, mas não é incapaz de se O mesmo rio que corre aqui é
tornar digno. É indigno de Deus idem numero o que corre ao
juntar-se ao homem miserável, mesmo tempo na China.
PENSAMENTOS 165

5 13 - Por que Deus estabe- gar justiça às preces, jamais pro-


leceu a prece: meteu a prece senão aos filhos da
1. 0 - para comunicar a suas promessa.
criaturas a dignidade da causali- Santo Agostinho disse formal-
dade; mente que as forças seriam tira-
2. 0 - para ensinar-nos de das ao justo. Mas foi por acaso
quem recebemos a virtude; que o disse; pois podia acontecer
3. 0 - para fazer-nos merecer que a oportunidade de dizê-lo
as outras virtudes pelo trabalho. não se oferecesse. Porém seus
Mas, a fim de conservar para princípios mostram que, havendo
si a preeminência, dá a prece a oportunidade, era impossível que
quem lhe agrada. o não dissesse ou que dissesse o
Objeção: mas vão pensar que contrário. Assim, importa mais
se recebe a prece de si mesmo. ser forçado a dizê-lo, dada a
Isso é absurdo; pois, se tendo a oportunidade, do que tê-lo dito,
fé não temos as virtudes, como apresentando-se a oportunidade:
teríamos a fé? Não haverá maior uma coisa é necessária e a outra
distância entre a infidelidade e a casual. Mas ambas são tudo o
fé do que entre a fé e a virtude? que se pode pedir.
514 - "Efetuai vossa salva-
Mérito, a palavra é ambígua. ção com temor."
Meruil habere Redemptorem. Provas da prece: Petenti dabi-
Meruit tam sacra membra tan- tur 1 21 •
gere. Logo, pedir está em nosso
poder. Ao contrário do .. . 12 2
Digno tam sacra membra tan-
gere. Aí não está, porquanto a obten-
ção que o solicitaria aí não se
Non sum dignus. encontra. Pois, como a salvação
Qui manducat indignus. aí não está, e a obtenção está, a
Dignus est accipere. prece não está.
Dignare me 120 • O justo não deveria, pois, .espe-
Deus deve apenas segundo rar ainda em Deus, porque ·não
suas promessas. Prometeu outor- 121 Será dada a quem pede. (São Mateus, 7,

7.) Na Vulgata: Petite et dabitur (Pedi e ser-


12 0
Pascal reúne aqui certo número de textos vos-á dado). (N. do E.)
para comentar a palavra mérito e cujo sentido 1 22 Na edição Brunschvicg (Hachette) vem:

é facilmente apreensível: "Mereceu ter um Ao contrário, portanto, ele não está aí, etc.
Redentor" - "Mereceu tocar seus membros Jacques Chevalier prefere: Acontece o contrá-
tão sagrados" - "Sou digno de tocar seus rio com Deus. Ele não está aí, etc. O texto
membros tão sagrados" - "Não sou digno" francês permite estas interpretações, em portu-
- "Aquele que come sem ser digno dele (o guês tão díspares, devido à semelhança das
corpo de Cristo)"-"É digno de recebê-lo" - palavras du (nosso texto), donc (Brunschvicg)
"Torna-me digno". e Dieu (Chevalier). (N. do E.)
166 PASCAL

deve esperar, mas esforçar-se por temer, pela Escritura. A maior


obter o que pede. pena do Purgatório é a incerteza
Concluamos, portanto, que, do julgamento. . . Deus abscon-
sendo o homem incapaz agora de ditus.
usar este poder próximo 1 2 3 , e 5 19 - João, 8: Multi credi-
não querendo Deus que seja por derunt in eum. Dicebat ergo
isso que ele se afaste dele, é ape- Jesu s: "Si manseritis. . . VERE
nas por um poder eficaz que ele mei discipuli eritis, et VERIT AS
não se afasta. LIBERABIT vos". Responderunt:
Logo, os que se afastam não "Semen A brahae sumus, et nemi-
têm esse poder, sem o qual nin- ni servimus unquam '"1 2 · 5 •
guém se afasta de Deus, e os que Há muita diferença entre os
não se afastam têm esse poder. discípulos e os verdadeiros discí-
Por conseguinte, os que, perseve- pulos. Reconhecemo-los dizendo
rando por ·algum tempo na graça, que a verdade os tornará livres;
deixam de orar, carecem deste porque, se respondem que são li-
poder eficaz. vres e que existe neles a possibili-
Em seguida, Deus abandona o dade de se livrarem da escravi-
poder neste sentido. dão do diabo, são discípulos mas
*515 - Os eleitos ignorarão não verdadeiros discípulos.
suas virtudes e os réprobos a 520 - A lei não destruiu a
grandeza de seus crimes: "Se- natureza, mas a instruiu: a graça
nhor, quando te vimos ter fome e não destruiu a lei, mas a pôs em
sede?" 1 2 4 prática. A fé recebida no batismo
516 - Rom., 3, 27. Glória é a fonte de toda a vida dos cris-
excluída: Por que lei? Pelas tãos e conversos.
obras? Não, mas pela fé. Logo, a
*521 - A graça estará sem-
fé não está no nosso poder como
pre no mundo - e assim tam-
as obras da lei e é-nos dada de
bém a natureza - , de sorte que
outra maneira.
ela é, até certo ponto, natural. E
5 17 - Consolai-vos! Não é
assim haverá sempre pelagia-
de vós que deveis esperá-la. Mas,
nos 1 2 6 , e sempre católicos, e
ao contrário, nada esperando de
vós é que deveis esperá-la. 12 5
Muitos acreditaram nele. Jesus dizia, por-
518 - Qualquer condição e tanto: "Se ficais [na minha palavra], sereis
mesmo os mártires têm o que meus verdadeiros discípulos e a verdade vos
libertará". Eles responderam-lhe: "Somos .os
filhos de Abraão e nunca fomos escravos de
12 3
Interpretação moderna, depois das leitu- ninguém".
ras de Tourneur e Lafuma. Nas edições ante- 12 6
Adeptos de Pelágio, iniciados de uma
riores lia-se: ... sendo o homem incapaz heresia, no século V, segundo a qual o homem
agora após o primeiro pecado etc. (N. do E.) pode fazer o bem por suas próprias forças. (N.
12 4
São Mateus, 25, 37. do E.)
PENSAMENTOS 167

sempre combate; porque o pri- ria pela grandeza do remédio de


meiro nascimento faz uns e a que necessita.
graça do segundo nascimento faz *527 - O conhecimento de
outros. Deus sem o da própria miséria
522 - A lei obrigava ao que faz o orgulho. O conhecimento
não concedia. A graça concede da própria miséria sem o de Deus
aquilo a que obriga. faz o desespero. O conhecimento
523 - Toda a fé consiste em de Jesus Cristo encontra-se no
Jesus Cristo e em Adão; e toda a meio, porque nele encontramos
moral na concupiscência e na Deus e nossa miséria.
graça. *528 - Jesus Cristo é um
Deus do qual nos aproximamos
*524 - Não há doutrina sem orgulho e diante do qual nos
mais adequada ao homem do que abaixamos sem desespero.
essa que o instrui sobre a sua *529 - ... Não há rebaixa-
dupla capacidade de receber e mento que nos torne incapazes
perder a graça, pelo duplo perigo do bem, nem santidade isenta do
a que está sempre exposto, deses- mal.
pero ou orgulho. *530 - Uma pessoa me
*525 - Os filósofos não disse, um dia, que sentia grande
prescreviam sentimentos propor- alegria e confiança ao sair da
cionais aos dois estados. confissão; outra me disse que fi-
Inspiravam movimentos de cava com medo. Pensei, então,
grandeza pura e não é esse o esta- que das duas pessoas se faria
do do homem. uma boa, faltando em cada uma
Inspiravam movimentos de o sentimento da outra. Acontece,
baixeza pura e esse não é o esta- o mesmo amiúde noutras coisas.
do do homem. 5 31 - Quem conhece a von-
São necessários movimentos tade de seu senhor será batido
de baixeza, mas não naturais e com maior número_.de pancadas,
sim de penitência; não para ficar devido ao poder que tem pelo
. neles, mas para alcançar a gran- conhecimento. Qui justus est,
deza. São necessários movimen- justificetur adhuc 1 2 7 , por causa
tos de grandeza, não de mérito, do poder que tem pela justiça. De
mas de graça, e após passar pela quem mais recebeu mais será exi-
baixeza. gido, por causa do poder que tem
*526 - A miséria induz ao pelo socorro.
desespero; o orgulho inspira a 532 - A Escritura possui
presunção.
A encarnação mostra ao Quem é justo seja ainda mais ju stificado
12 1

homem a grandeza de sua misé- (Apocalipse, 22, 11 ).


168 PASCAL

trechos para consolar todas as Com efeito, o homem tem sozi-


condições e intimidar todas as nho uma conversação interior,
condições. que importa regular bem: Cor-
A natureza parece ter feito a rumpunt mores bonos colloquia
mesma coisa pelos seus dois infi- prava 1 2 9 • É preciso ficar em
nitos, naturais e morais: pois silêncio na medida do possível, e
sempre teremos o de cima e o de só falar de Deus, que sabemos ser
baixo, os mais hábeis e os menos a verdade; assim a gente se per-
hábeis, os mais elevados e os suade a si mesmo.
mais miseráveis, para rebaixar *537 - O cristianismo é es-
nosso orgulho e soerguer nossa tranho: ordena ao homem que
abjeção. reconheça que é vil e até abomi-
533 - Comminutum cor nável; e ordena-lhe que queira ser
(São Paulo), eis o caráter cristão. semelhante a Deus. Sem esse
Alba vos nomeou, eu não vos contrapeso, tal elevação o torna-
conheço mais (Corneille), eis o ria horrivelmente vão, ou esse
caráter inumano. O caráter hu- rebaixamento o tornaria terrivel-
mano é o contrário 128 • mente abjeto.
5 34 - Há somente duas es- *538 - Com quão pouco or-
pécies de homens: os justos que gulho um cristão se julga unido a
se imaginam pecadores e os peca- Deus! Com quão pouca abjeção
dores que se imaginam justos. se iguala aos vermes da terra!
535 - Muita obrigação de- Bela maneira de receber a vida
vemos aos que nos advertem de e a morte, os bens e os males!
nossos defeitos, porque nos mor- *539 - Qual é a diferença
tificam; mostram-nos que fomos entre um soldado e um cartuxo
desprezados; não impedem que o quanto à obediência? Pois são
sejamos no futuro, pois temos igualmente obedientes e depen-
muitos outros defeitos para sê-lo. dentes e em exercícios igualmente
Preparam o exercício da corre- penosos. Mas o soldado espera
ção e a isenção de um defeito. sempre tornar-se senhor e nunca
*536 - O homem é feito de se torna, pois até os capitães e os
tal maneira que, à força de lhe príncipes são sempre escravos e
dizerem que é tolo, ele acredita; dependentes; contudo, aguarda
e, à força de dizê-lo a si próprio, sempre e trabalha sempre para
é também levado a acreditar. chegar a isso; ao passo que o car-
tuxo faz voto de ser sempre
128
Pascal opõe ao caráter inumano do jovem dependente. Assim, não diferem
Horácio (que pronuncia esse verso no segundo
ato , cena três) o caráter humano de Curiácio.
129
Mas põe acima deste o caráter cristão (commi- As más conversações corrompem os bons
nutum cor, "orgulho diminuído", humildade). costumes (São Paulo, 1 Coríntios., 15,33).
PENSAMENTOS 169

na servidão perpétua que ambos Cristo, e que é o de comunicar-se


sempre possuem, mas na espe- sem mediador com o Deus que se
rança que um tem sempre e o conheceu sem mediador .Ao passo
outro nunca. que os que conheceram Deus
540 - A esperança que têm pelo mediador conhecem a pró-
os cristãos de possuir um bem pria miséria.
infinito mescla-se de gozo efetivo *544 - O Deus dos cristãos
tanto quanto de temor; pois não é é um Deus que faz a alma sentir
como a daqueles que, sendo súdi- que ele é o seu único bem; que
tos, esperam um reino do qual, todo o seu repouso está nele, que
no fim de contas, nada teriam; os só haverá alegria em amá-lo; e
cristãos esperam a santidade, a que a faz abominar ao mesmo
isenção de injustiça, e disso pos- tempo os obstáculos que a retêm
suem alguma coisa. e a impedem de amar Deus com
*541 - Ninguém é feliz todas as suas forças. O amor-
como um verdadeiro cristão, nem próprio e a concupiscência, que a
razoável, nem virtuoso, nem .detêm, lhe são insuportáveis.
amável. Esse Deus lhe faz sentir que ela
542 - Somente a religião tem esse fundo de amor-próprio
cristã torna o homem amável e que a perde e que só ele pode
feliz a um tempo. Na honesti- curar.
dade, não se pode ser amável e *545 - Jesus Cristo não fez
feliz concomitantemente. outra coisa senão comunicar aos
homens que eles amavam a si
*543 - Prefácio - As pro- mesmos, que eram escravos,
vas metafísicas de Deus acham- cegos, doentes, infelizes e peca-
se tão afastadas do raciocínio dores; que era preciso que ele os
dos homens e tão embrulhadas libertasse, esclarecesse, beatifi-
que pesam pouco; e, mesmo que casse e curasse; que para 1ssq
isso servisse para alguns, serviria eles deveriam odiar-se a si mes-
apenas durante o instante em que mos e segui-lo na miséria e na
vissem essa demonstração; mas, morte na cruz.
uma hora depois, receariam ter- *546 - Sem Jesus Cristo, o
se enganado. homem tem de permanecer no
Quod curiositate cognoverunt vício e na miséria; com Jesus
superbia amiserunt 1 3 o. Cristo, o homem está isento do
É o que produz o conheci- vício e da miséria. Nele está toda
mento de Deus obtido sem Jesus a nossa virtude e toda a nossa
felicidade. Fora dele só há vício,
13 o O que acharam por sua curiosidade,
perderam-no por seu orgulho (Santo Agosti-
miséria, erros, trevas, morte e
nho, Sermão 141). desespero.
170 PASCAL

547 Deus por Jesus Cristo non cognovit per sapientiam . ..


- Só conhecemos Deus por placuit Deo per stultitiam praedi-
Jesus Cristo. Sem esse mediador, cationis salvosfacere 1 31 •
fica suprimida toda a comunica- *548 - Não só conhece-
ção com Deus; por Jesus Cristo, mos Deus apenas por Jesus Cris-
conhecemos Deus. Todos os que to, mas ainda conhecemo-nos a
pretenderam conhecer Deus e nós mesmos apenas por Jesus
prová-lo sem Jesus Cristo só pos- Cristo. Só conhecemos a vida e a
suíam provas inoperantes. Mas, morte por Jesus Cristo. Fora de
para provar Jesus Cristo, temos Jesus Cristo não sabemos o que é
as profecias, que são provas sóli- nossa vida, nem nossa morte,
das e palpáveis. E essas profecias nem Deus, nem nós mesmos.
se realizaram e se revelaram Assim, sem a Escritura, que
verdadeiras pelos aconteci- tem Jesus Cristo por objeto, nada
mentos, assinalando a certeza conhecemos e só vemos obscuri-
dessas verdades e, portanto, tra- dade e confusão na natureza de
zendo a prova da divindade de Deus e na própria natureza.
Jesus Cristo. Nele, e por ele, pois, 549 - É não somente impos-
conhecemos Deus. Fora daí e sível, mas também inútil, conhe-
sem a Escritura, sem o pecado cer Deus sem Jesus Cristo. Eles
original, sem o mediador neces- não se afastaram dele, mas se
sário, prometido e chegado, não aproximaram, eles não se rebai-
se pode absolutamente provar xaram, mas ...
Deus, nem ensinar a boa dou- Quo quisquam optimus est,
trina e a boa moral. Mas, por pessimus, si hoc ipsum, quod
Jesus Cristo e em Jesus Cristo, optimus est, adscribat sibi 132 •
prova-se Deus e ensina-:-se a 550 - [Amo todos os ho-
moral e a doutrina. Jesus Cristo mens como irmãos porque todos
é, portanto, o verdadeiro Deus foram resgatados.] Amo a pobre-
dos homens. za porque ele a amou. Amq os
Mas, ao mesmo tempo, conhe- bens porque permitem assistir os
cemos a nossa miséria, pois esse miseráveis. Conservo-me fiel a
Deus nada mais é que o repara- todos; não pago com o mal àque-
. dor de nossa miséria. Assim, não les que me fazem mal; desejo-lhes
podemos conhecer bem Deus
senão conhecendo. n·ossas iniqüi- 13 1
Porque o homem, não o tendo conhecido
pela sabedoria, dignou-se Deus salvá-lo pela
dades. Por isso, os que conhece- loucura da prédica(São1>aulo, 1 Coríntios,I,21).
ram Deus, sem conhecer sua pró- 132
Por melhores que · sejamos, tornamo-nos
piores, se atribuirmos a nós próprios aquilo
pria miséria, não o glorificaram, pelo qual somos bons (São Bernardo, ln Canti-
mas se vangloriaram. Quia . .. ca Se'rmones, LXXXIV).
PENSAMENTOS 171

uma condição semelhante à Na terra, Jesus Cristo só pôde


minha, na qual não se recebe dos descansar no sepulcro.
homens nem bem nem mal. Pro- Seus inimigos só cessaram de
curo ser justo, verdadeiro, since- atormentá-lo no sepulcro.
ro e fiel com todos os homens e 553 Ü MISTÉRIO DE
tenho ternura para com aqueles a JEsus 1 3 4 - Jesus sofre em sua
quem Deus me uniu mais intima- paixão os tormentos que os ho-
mente. E, sozinho ou em compa- mens lhe infligem; mas na agonia
nhia dos homens, em todos os sofre os tormentos que a ele
meus atos atento para Deus, que mesmo se impõe: turbare seme-
os há de julgar e a quem são tipsum. É um suplício de mão
todos consagrados. não humana, mas onipotente, e é
Tais são os meus sentimentos e preciso ser onipotente para su-
abençôo todos os dias de minha portá-lo.
vida o meu redentor que mos deu,
e que, de um homem cheio de fra- *
Jesus procura algum consolo,
quezas, misérias, concupiscência, ao menos em seus três mais que-
orgulho e ambição, fez um ridos amigos, e estes dormem;
homem . isento de todos esses pede que suportem um pouco
males pela força de sua graça, a com ele, e estes o abandonam
quem cabe toda a glória, pois em com uma negligência total, e com
mim próprio só existem miséria e tão pouca compaixão que não
erro. podia sequer impedi-los de dor-
55 1 - Dignior plagis quam mir um momento. E assim Jesus
osculis non timeo qµ,ia amo 133 • foi abandonado sozinho à cólera
552 - Sepulcro de Jesus de Deus.
Cristo - Jesus Cristo estava
morto mas visível na cruz. Está *
morto e escondido no sepulcro. , J 4 Este trecho foi publicado pela primeira
vez por Faugere; e desde então costuma-se
Jesus Cristo não foi enterrado incluí-lo entre os Pensamentos. Mas deve-se
senão por santos. Jesus Cristo ver nele menos um fragmento da Apologia do
que uma espécie de meditação mística cujo
não fez nenhum milagre no sepul- tom lembra por vezes o êxtase do Memorial.
cro. Só os santos aí entram. "O Mistério de Jesus", diz Brunschvicg, "dis-
pensa qualquer comentário. Em nenhum outro
Aí é · que Jesus Cristo inicia lugar, talvez, aparece de m:ineir,a ?Iais ~rofun­
uma nova vida, não na cruz. damente comovente o carater umco e mcom-
É o último mistério da Paixão parável do cristianismo: a conc~ntração er:n
torno de uma pessoa real dos sentimentos mais
e da Redenção. elevados e mais universais que se encontram
no coração do homem, o espírito de renúncia e
, 3 3 Mais digno de pancadas que de beijos, o espírito de caridade." Foi de O Mistério de
não temo porque amo (São Bernardo, ln Can- Jesus que Verlaine tirou os mais belos versos
tica Sermones, LXXXIV). da Sagesse.
172 .PASCAL

Jesus está só na terra, não só fim do mundo: é preciso não dor-


para sentir e compartilhar a sua mir durante esse tempo.
pena mas para ter conhecimento
dela: o céu e ele são os únicos *
que têm esse conhecimento.
Jesus no meio desse abandono
* universal e de seus amigos esco-
lhidos para velar com ele, encon-
Jesus está em um jardim, não trando-os dormindo, zanga-se
de delícias como o primeiro por causa do perigo ao qual
Adão, onde este se perdeu e com expõem, não a ele, mas a si pró-
ele todo o gênero humano, mas prios, e os adverte acerca da pró-
num jardim de suplícios, de onde pria salvação e do seu bem com
se salvou e com ele todo o gênero uma ternura cordial apesar da
humano. ingratidão deles, e os adverte de
que o espírito é vivo e a carne é
* fraca.

Sofre essa pena e esse aban- *


dono no horror da noite.
Jesus, enco~trando-os ainda
dormindo, sem que a considera-
* ção por ele ou por eles próprios
Creio que Jesus só se lamentou os tivesse impedido, tem a bonda-
essa vez; mas lamentou-se então de de não acordá-los e deixa-os
como se não pudesse mais conter em repouso.
a sua dor excessiva: "Minha
alma está triste até a morte". *

Jesus ora na incerteza da von-


* tade do Pai e teme a morte; mas,
tendo conhecido essa vontade,
Jesus procura a companhia e o adianta-se em oferecer-se-lhe:
alívio da parte dos homens. É um Eamus. Processit (João).
caso único em sua vida, parece-
me. Mas nada recebe, pois seus *
discípulos dormem.
Jesus rogou aos homens e não
* foi atendido.
Jesus estará em agonia até o *
PENSAMENTOS 173

Jesus, enquanto os seus discí- Jesus estando na agonia e no s


pulos dormiam, operou a salva- maiores sofrimentos, oremo s
ção deles. Deu-a aos justos en- mais longamente.
quanto dormiam: no nada, antes
de nascerem, e nos pecados, de- *
pois do seu nascimento.
Imploramos a misericórdia de
* Deus, não com o objetivo de que
nos deixe em paz com os n~ssos
vícios, mas para que nos livre
Roga uma só vez que o cálice deles.
passe, e ainda assim com submis-
são; e duas vezes que ele venha, *
se preciso.
Se Deus nos desse mestres de
* sua escolha, oh!, como precisa-
ríamos obedecer-lhes de boa von-
Jesus ho tédio. tade! A necessidade e os aconte-
cimentos o são infalivelmente.
*
*
Jesus, vendo todos os seus
amigos adormecidos e todos os "Consola-te, não me pro-
seus inimigos vigilantes, entrega- curarias se já não me houvesses
se inteiramente a seu Pai. achado." 1 3 5

* *

Jesus não vê em Judas a inimi- "Pensava em ti na minha ago-


zade, mas a ordem de Deus que nia, por ti derramei certas gotas
ele ama, e tanto não a vê que o de sangue."
chama de amigo.
*
*
"E tentar-me mais do que
Jesus separa-se dos discípulos expenmen Lar-Le, pensar se rn r a-
• L .L ' {'

para entrar na agonia: devemos rias bem esta ou aquela coisa


separar-nos dos mais próximos e 1
dos mais íntimos para imitá-lo. 1
3 5 V. Giraud na sua edição dos Pensa-
mentos (Cres, 1921) assinala aqui àuas aproxi-
mações com as Confissões de Santo Agostinho
* (Liv. X , capítulos 18 e 20).
174 . PASCAL

ausente: eu a farei em ti se ela eu quem cura e torna o corpo


ocorrer." imortal."

* *
"Deixa-te conduzir pelas mi- "Sofre as cadeias e a servidão
nhas ·regras; vê· como conduzi corporais; eu só te livro agora da
bem a Virgem e os Santos que me espiritual."
deixaram agir neles."

* *
"Sou mais teu amigo do que
"O Pai ama tudo o que eu este ou aquele; pois fiz por ti
faço." mais do que eles; e eles não sofre-
riam o que por ti sofri e não mor-
* reriam por ti durante as tuas infi-
delidades e crueldades, como eu
"Queres que mi'nha humani- fiz, e como estou pronto a fazer e
dade sangre sempre, sem que tu faço, nos meus eleitos e no Santo
vertas lágrimas?" Sacramento."

*
"A tua conversao é coisa "Se conhecesses teus pecados,
minha, não temas, e roga com perderias a coragem.
confiança como por mim." " - Eu a perderei, então, Se-
nhor, pois creio na malícia dos
* pecados, conforme vossa afirma-
çao.
"Eu te sou presente pela minha " - Não, pois eu, de quem
palavra na Escritura, pelo meu vens a saber isso, posso curar-te,
espírito na Igreja e pelas inspira- e só por to dizer já mostro que te
ções, pelo meu poder nos sacer- quero curar. À medida que os
dotes, pela minha oração nos expiares, tu os conhecerás e ser-
fiéis." te-á dito: 'Eis os pecados que te
são perdoados'.
* "Faze, pois, penitência pelos
teus pecados ocultos e pela malí-
"Os médicos não te curarão, cia oculta daqueles que conhe-
pois por fim morrerás. Mas sou ces."
PENSAMENTOS 175

É preciso juntar minhas cha-


*
gas às dele, e juntar-me a ele, e
ele me salvará salvando-se. Mas
"Senhor, eu vos dou tudo." não devo acrescentar outras no
futuro.
*
Eritis sicut dii scientes bonum
et malum 1 3 7 • Todo mundo faz o
- "Eu te amo mais ardente- papel de Deus julgando: ''Isso é
mente do que jamais amaste as bom ou mau" e afligindo-se ou
tuas imundícies, ut immundus alegrando-se demais com os
pro luto." 1 3 6 acontecimentos.
Fazer as pequenas coisas
* como as grandes, por causa da
majestade de Jesus Cristo que as
"Que a glória me pertença a faz em nós, e que vive a nossa
mim e não a ti, verme e terra." vida; e as grandes como se fos-
sem pequenas e fáceis, por causa
*
de sua onipotência.
A falsa justiça de Pilatos serve
"Interroga teu diretor, quando apenas para fazer sofrer Jesus
as minhas próprias palavras te Cristo; pois Pilatos manda-o fla~
forem ocasião de mal, e de vaida- gelar pela sua. falsa justiça e de-
de ou curiosidade." pois mata-o. Melhor fora matá-lo
desde logo. Assim os falsos jus-
* tos: dedicam-se a boas e más
obras para agradar a todos e
Vejo o meu abismo de orgulho, mostrar que não estão inteir_a-
de curiosidade, de concupis- mente com Jesus Cristo, porque
cência. Não há nenhuma ligação se envergonham disso. E final-
entre mim e Deus, nem entre mim mente, nas grandes tentações e
e Jesus Cristo justo. Mas ele se oportunidades, matam-no.
fez pecado por mim e todos os 554 - Parece-me que Jesus
vossos flagelos recaíram nele. Ele Cristo só deixa tocar em suas
é mais abominável do que eu, e, chagas após a ressurreição: No li
longe de desprezar-me, sente-se me tangeré 138 • Só devemos
honrado de que eu vá ·a ele e o unir-nos aos seus sofrimentos.
socorra. Ele entregou-se à comunhão
Mas ele se curou a si mesmo e
com maior razão há de curar-me. 1J 1 Sereis como deuses, conhecendo o bem e
o mal (Gênese, 3,5).
13 s Como o homem imundo lama] a lama(?). 1 3 a Não me toques (São João, 20, 17).

razão de toda a natureza do A religião cristã ensina, por-


176 PASCAL

como mortal na Ceia, como eu, então, comparas-me comigo


ressuscitado aos discípulos de mesmo. Ora, eu sou Deus em
Emaús, como subido ao Céu a tudo.
toda a Igreja. "Falo-te e aconselho-te muitas
555 - "Não te compares vezes, porque teu diretor não te
aos outros, mas a mim. Se não
pode falar: e não quero que te
me encontras naqueles a quem te
falte diretor.
comparas, tu te comparas a um
abominável. Se me encontras "E talvez eu faça isso pelas
neles, tu te comparas a mim. Mas suas orações, e assim ele te dirige
o que hás de comparar? Tu? Ou sem que o v~jas. Não me procu-
eu em ti? Se é a ti que comparas, rarias se não me possuísses.
comparas um abominável. Se sou "Não te inquietes, pois."
ARTIGO VIII
Os fundamentos da religião cristã

*556 - ... Blasfemam con- homem, em particular, e de toda


tra o que ignoram. A religião a marcha do mundo, em geral.
cristã consiste em dois pontos; E, com esse fundamento, en-
importa igualmente aos homens contram ocasião para blasfemar
conhecê-los, e é igualmente peri- contra a religião cristã, porque a
goso ignorá-los; e é também obra conhecem mal. Imaginam que
da misericórdia de Deus haver consiste simplesmente na adora-
dado sinais de ambos. Entre- ção de um Deus considerado
tanto, arranjam um meio de con- grande, poderoso e eterno: o que
cluir que um desses pontos não é propriamente o deísmo, quase
existe, aquele que deveria levá-los tão afastado da religião cristã
à conclusão do outro. Os sábios quanto o ateísmo, que lhe é total-
que disseram que existe um só mente contrário. E daí concluem
Deus foram perseguidos, os ju- que essa religião não é verda-
deus odiados, e os cristãos ainda deira, porque não vêem que todas
mais. Viram pela luz natural que, as coisas concorrem para o esta-
se há sobre a terra uma religião belecimento desse ponto, que
verdadeira, a marcha de todas as Deus não se manifesta aos ho-
coisas deve conduzir a ela como mens com toda a evidência com
a seu centro: toda a marcha das que poderia fazê-lo.
coisas deve visar ao estabeleci- Mas que concluam o que qui-
mento e à grandeza da religião; serem contra o deísmo, nada
os homens devem possuir, em si concluirão contra a religião cris-
próprios, sentimentos de confor- tã, que consiste propriamente no
midade com o que ela nos ensina; mistério do redentor, o qual,
e, enfim, a religião deve de tal unindo nele as duas naturezas, a
maneira ser o objeto e o centro divina e a humana, tirou os ho-
para onde todas as coisas ten- mens da corrupção do pecado
dem, que quem conhecer os seus para reconciliá-los com Deus em
princ1p1os poderá explicar a sua pessoa divina.
razão de toda a natureza do A religião cristã ensina, por-
178 PASCAL .

tanto, aos homens estas duas ver- conhecer Jesus Cristo sem conhe-
dades a um tempo: que há um cer, ao mesmo tempo, Deus e a
Deus que os homens são capazes própria miséria.
de atingir e que há uma corrup- E, por isso, não procurarei
ção na natureza que os torna provar aqui por meio de razões
indignos. Importa igualmente aos naturais, ou a existência de Deus,
homens conhecer ambos os pon- ou a Trindade, ou a imortalidade
tos; e é igualmente perigoso aos da alma, nem qualquer coisa
homens conhecer Deus sem co- dessa natureza; não só porque
nhecer a própria miséria, e co- não me sentiria bastante forte
nhecer a própria miséria sem para encontrar na natureza com
conhecer -o redentor que pode que convencer ateus empederni-
curá-la. Um só desses conheci- dos, mas ainda porque esse co-
mentos causa, ou a soberba dos nhecimento, sem Jesus Cristo, é
filósofos que conheceram Deus e inútil e estéril.. Mesmo se um
não a sua própria miséria, ou o homem estivesse persuadido de
desespero dos ateus, que conhe- que as proporções dos números
cem a própria miséria sem re- são vérdades imateriais, eternas e
dentor. dependentes de uma primeira ver-
E assim como também é neces- dade em que subsistem, e que se
sário ao homem conhecer esses chama Deus, eu · não o julgaria
dois pontos, pertence igualmente ainda muito ·adiantado em sua
à misericórdia de Deus no-los ter salvação. O Deus dos cristãos
feito conhecer. A religião cristã o não consiste num Deus simples-
faz e nisso consiste. mente autor de verdades geomé-
Se examinarmos a ordem do tricas e da ordem dos elementos;
mundo sob esse aspecto, veremos essa é a porção dos pagãos e dos
se todas as coisas não tendem ao epicuristas.
estabelecimento dos dois princí- Não consiste somente num ·
pios dessa religião: Jesus Cristo é Deus que exerce a sua provi-
o objeto de tudo e o centro para dência sobre a vida e os bens dos
onde tudo converge. Quem o homens, para dar uma seqüência
conhece, conhece a razão de de anos felizes aos que o adoram:
todas as coisas. essa é a porção dos judeus. Mas
Os que se extraviam, só o o Deus de Abraão, o Deus de
fazem por deixarem de ver uma Isaac, o Deus de J acó, o Deus
dessas duas coisas. Podemos, dos cristãos, é um Deus de amor
pois, conhecer bem Deus sem a e consolação; é um Deus que
própria miséria e a própria misé- enche a alma e o coração daque~
ria sem Deus; mas não podemos les que o possuem; é um Deus
PENSAMENTOS 179

que lhes faz sentir interiormente reza só a conhecerá para ser


a própria miséria e a sua infinita miserável? O único que a conhe-
misericórdia; que se une ao fundo ce será o único infeliz?
de suas almas; que as enche de Não é preciso que ele não veja
humildade, alegria,. confiança e absolutamente nada; não é preci-
amor; que os torna incapazes de so, tampouco, que veja o sufi-
outra finalidade exceto ele ciente para crer que o possui;
mesmo. mas, que veja o bastante para
Todos os que procuram Deus perceber que o perdeu: pois, para
fora de Jesus Cristo, e que se saber que se perdeu, é preciso ver
detêm na natureza, ou não encon- e não ver; e é precisamente neste
tram luzes que os iluminem, ou estado que_.se encontra a nature-
acabam por encontrar um meio za.
de conhecer Deus e de servi-lo Qualquer partido que tome
sem mediador, e por aí caem no não o deixarei sossegado ...
ateísmo ou no deísmo, que são *557 - É, pois, verdadeiro
duas coisas que a religião cristã que tudo instrui o homem sobre a
abomina quase igualmente. Sem sua condição; mas é preciso
Jesus Cristo o mundo não subsis- entendê-lo bem: pois não é verda-
tiria; pois precisaria ser destruído de que' tudo descubra Deus e não
ou ser como urp inferno. é verdade que tudo oculte Deus.
Se o mundo subsistisse para Mas é verdade, ao mesmo tempo, ·
instruir os homens sobre Deus, a que ele se oculta aos que o ten-
sua divindade reluziria nele, em tam e se desdobre aos que o pro-
todas as partes, de uma maneira curam; porque os homens são, ao
incontestável; mas, como só sub- mesmo tempo, indignos de Deu~
siste por Jesus Cristo e para e capazes de Deus: ii:idignos por
Jesus Cristo, e para ·instruir os sua corrupçao, capazes por- sua
homens tanto sobre a sua corrup- primeira natureza.
ção como sobre a sua redenção, 55 8 - Que concluiremos de
tudo brilha nele com as provas todas as nossas obscuridad~s,
dessas duas verdades. se não a nossa indignidade?
O que nele aparece não assi- *559 - Se nunca aparecesse
nala uma exclusão . total, uma algo proveniente de Deus, essa.
presença manifesta da divindade, privação eterna seria equívoca, e
mas a presença de um Deus que tanto poderia decorrer da ausên-
se esconde. cia de toda divindade como da
Tudo revela essa caracterís- indignidade em que se achariam
tica. os homens para conhecê-la; mas
O único que conhece a natu- Ç> que aparece por vezes, e não
mo PASCAL

sempre, desfaz o equívoco. Se 562 - Não há nada sobre a


aoarece uma vez, existe sempre, e terra que não mostre ou a miséria
d~ só podemos concluir que há do homem, ou a misericórdia de
um Deus e que os homens são Deus; ou a impotência do
indigno s dele. homem sem Deus, ou o poder do
::!560 - Não conhecemos homem com Deus.
nem o estado glorioso de Adão, *563 - Será esta uma das
nem a natureza do seu pecado, confusões dos danados: ver que
nem a tran smissão que dele se fez serão condenados pela sua pró-
em nós. São coisas que se passa- pria razão com a qual preten-
rar.n no estado de uma natureza deram condenar a religião cristã.
toda diferente da nossa e que vão
além da nossa capacidade pre-
*5 64 - As profecias, os pró-
prios milagres e as provas da
sente.
Tudo isso nos é inútil saber nossa religião não são de tal
para sair disso; e tudo o que nos natureza que possamos dizer que
importa conhecer é que somos sejam absolutamente convincen-
miseráveis, corruptos, separados tes. Mas são de tal natureza que
de Deus, mas resgatados por não podemos dizer que não te-
Jesus Cristo; e é disso que temos nhamos razão de acreditar neles.
provas admiráveis sobre a·terra. Assim, há evidência e obscuri-
Assim, as duas provas da cor- dade, para esclarecer uns e obs-
rupção e da redenção são extraí- curecer outros. Mas a evidência é
das àos ímpios, que vivem na tal que ultrapassa ou iguala, pelo
indiferença da religião, e dos menos, a evidência do contrário:
judeus, inimigos irreconciliáveis de maneira que não é a razão que
dela.
pode determinar a não segui-la;
5 61 - Há duas maneiras de
assim, só podem ser a concupis-
induzir 2.s verdades da nossa reli-
gião: uma pela força da razão, cência e a malícia do coração. E,
outra pe1a autoriàade de quem por esse meio, há suficiente evi-
fala. I~Tão no s servimos da última, dência para condenar, e insufi-
nrns da primeira. Não dizemos: ciente para convencer; a fim de
·''É preciso crer nisso; pois a parecer· que, naqueles que a se-
~ .. "'. , ..... . '' guem, é a graça, e não a razão,
~s~nmrn que o cüz e dtvma ;
mas dizemos: é preciso crer por que os leva a seguir; e que,
esta ou aquela razão; fracos naqueles que lhe fogem, é a
argumentos, EJ01s
. a razao ... e, fl ,
l e~a- concupiscência e não a razão que
vel a tudo. os leva a fugir.
PENSAMENTOS 181

Vere discipuli, vere Israelita, Denis tem a caridade: estava


vere liberi, vere cibus 1 3 9 • no local.]
*565 - Reconhecei, pois, a Credes que as profecias cita-
verdade da religião na própria das no Evangelho vos são conta-
obscuridade da religião, no das para que acrediteis? Não, é
pouco de luz que dela recebemos, para afastar-vos da crença.
na indiferença que temos de 569 - Canônicos - No iní-
conhecê-la. cio da Igreja, os heréticos servem
*566 - Nada se entenderá para provar os canônicos.
da obra de Deus se não tomar- 570 - É preciso pôr no capí-
mos como princípio que ele dese- tulo dos Fundamentos 1 41 o que
jou cegar uns e iluminar ou-
se acha no dos Figurativos em
tros 1 40 •
relação às figuras: daí por que
567 - As duas razões con- Jesus Cristo profetizou em seu
trárias. É preciso começar por aí, primeiro advento; daí por que
sem o que nada se entende e tudo profetizou obscuramente quanto
é herético; e, mesmo, ao fim de ao modo.
cada verdade cumpre acrescentar
*571 - Razão das figuras
que a gente se lembra da verdade
- [Tinham de manter um povo
oposta~
carnal e torná-lo depositário do
568 - Objeção - Visivel- testamento espiritual] ; era preci-
mente a Escritura está cheia de so que, para insuflar fé no Mes-
coisas não ditadas pelo Espírito sias, houvesse profecias prece-
Santo. - Resposta. Não prejudi- dentes, que fossem trazidas por
cam a fé. - Objeção. Mas a pessoas insuspeitas, de diligên-
Igreja decidiu que tudo vem do cia, fidelidade e zelo extraordi-
Espírito Santo. Resposta. nários, e conhecidas de toda a
Respondo duas coisas: [uma] terra.
que a Igreja jamais decidiu isso; Para ter êxito em tudo isso,
[outra] que se o houvesse decidi- Deus escolheu esse povo 1 4 2 car-
do, poderia defender-se. nal, a cuja guarda confiou as pro-
[Há muitos espíritos falsos.
1 41
Pascal quer dizer, segundo Brunschvicg,
13 s Na frase latina, Pascal reúne quatro tre- que sua interpretação do cristianismo lhe per-
chos de São João, cuja tradução é a seguinte: mite passar dos fundamentos psicológicos da
"Sereis meus verdadeiros discípulos ... verda- religião aos seusfundamentos históricos.
1 4 2 O texto é obscuro pela constante substi-
deiros israelitas, realmente livres ... ". Mas a
última parte só se torna inteligível quando tuição do sujeito povo pelo plural "judeus",
completada. Jesus disse: "(minha carne é) real- subentendido. Manteve-se também a repetição
mente um alimento (e meu sangue uma insistente do advérbio claramente. Às repeti-
bebida)". ções refere-se de resto Pascal, explicando-as e
1 4 o Este pensamento mostra o lugar que justificando-as, quando fala do estilo. (N. do
devia ocupar o jansenismo na Apologia. T.)
182 PASCAL

fecias que predizem o Messias zelo para a conservação dos seus


como libertador e dispensador livros e das suas cerimônias. E,
dos bens carnais que esse povo se [tivessem] amado essas pro-
amava; e assim teve um ardor messas espirituais, e as tivessem
extraordinário por seus profetas e conservado incorruptas até o
trouxe à vista de toda gente esses Messias, o seu testemunho não
livros que predizem o Messias, teria tido força, uma vez que te-
afirmando a todas as nações que riam sido seus amigos. Eis por
ele devia chegar da maneira pre- que era bom que o sentido espiri-
dita nos seus livros, que eles ti- tual fosse oculto. Mas, por outro
nham aberto a toda gente. E lado, se esse sentido espiritual
assim esse povo, decepcio~ado tivesse sido de tal forma oculto
pelo advento ignomm1oso e que de modo algum aparecesse,
pobre do Messias, foi o seu mais não poderia servir de prova ao
cruel inimigo. De sorte que eis o Messias. Que se fez, portanto?
povo do mundo menos suspeito Esse sentido foi oculto sob o tem-
de nos favorecer, e o mais exato e poral na multidão dos trechos, e
mais zeloso que se possa afirmar foi descoberto tão claramente em
em relação à sua lei e aos seus alguns; além do tempo e do
profetas, que os mantêm incor- mundo terem sido preditos tão
ruptos. De forma que os que claramente, que é mais claro do
rejeitaram e crucificaram Jesus que o sol; e esse sentido espiritual
Cristo, que foi um escândalo é tão claramente explicado em al-
para eles, são os que carregam os guns lugares, que era preciso
livros que o testemunham e que uma cegueira semelhante àquela
dizem que ele será rejeitado e em que a carne lança no espírito
escândalo. Assim, provaram que quando lhe é submetido, para
era ele, recusando-o; e foi igual- não reconhecê-lo.
mente provado, quer pelos judeus Eis, pois, qual foi a conduta de
justos que o receberam, quer Deus. Esse sentido espiritual é
pelos injustos que o rejeitaram, oculto por um outro numa infini-
ambos tendo sido preditos. dade de lugares, e descoberto em
É por isso que as profecias têm alguns, raramente, mas de tal
um sentido oculto, o espiritual, sorte, todavia, que os lugares em
do qual esse povo era inimigo, que é oculto são equívocos e
sob o carnal, do qual era amig.o. podem convir aos dois; ao passo
Se o sentido espiritual tivesse que os lugares em que é desco-
sido descoberto, eles não seriam berto são unívocos e só podem
capazes de amá-lo; e, não poden- convir ao sentido espiritual.
do carregá-lo, não teriam tido De forma que isso não podia
PENSAMENTOS 183

induzir em erro, e somente um Jesus Cristo será pedra de escân-


povo tão carnal podia enganar-se dalo. Mas, "Bem-aventurados os
a respeito. . que não se escandalizaram com
Com efeito, quando os bens ele". Oséias também o diz perfei-
são prometidos em abundância, tamente: "Onde está o sábio? E
que os impedia de entender os ele ouvirá o que digo, os justos o
verdadeiros bens, senão a sua ouvirão, porque as vias de· Deus
cobiça, que dava esse sentido aos são retas, mas os maus tropeça-
bens da terra? Mas os que só rão nelas".
possuíam bens em Deus relacio- 572 - Hipótese dos apóstolos
navam-nos unicamente com impostores. - O tempo clara-
Deus. Pois há dois princípios que mente, a maneira obscuramente.
dividem as vontades dos homens: Cinco provas de Figurativos.
a cobiça e a caridade. Isso não
significa que a cobiça não possa 2000
existir com a fé em Deus e que a
1 600 Profetas
caridade não exista com os
bens da terra. Mas a cobiça ser- 400 Esparsos
ve-se de Deus e goza do mundo,
ao passo que a caridade, ao 573 - Cegueira da Escritura
contrário. · - "A Escritura", observavam os
Ora, o último fim é o que dá o judeus, "diz que se não saberá de
nome às coisas. Tudo o que nos onde virá o Cristo (São João 7,
impede de alcançá-lo é chamado 27 e 12, 34). A Escritura diz que
inimigo. Assim, as criaturas, em- Cri.s to ficará eternamente, e _este
bora boas, são inimigas dos jus- diz que morrerá."
tos quando os desviam de Deus; Assim, diz São João, eles não
e o próprio Deus é inimigo acreditavam, embora ele tivesse ·
daqueles cuja cobiça ele pertur- feito tantos milagres a fim de que
ba. as palavras. de Isaías se cumpris-
Assim, como a palavra inimi- sem: Ele cegou-os, etc.
go dependia do último fim, os 574 - Grandeza - A reli- ·
justos entendiàm por ela as suas
gião é uma coisa tão grande que
paixões, e os carnais entendiam
é justo que os que não desejavam
os babilônios: e assim esses ter-
dar-se ao trabalho de procurá-la,
mos só eram obscuros para os
por ser ela obscura, fossem priva-
injustos. É o que diz Isaías: Signa dos dela. De que, pois, nos lasti-
legem in electis meis 1 4 3 , e que mamos, se ela é de tal forma que
1 4 3 Põe o selo da lei em meus discípulos
podemos encontrá-la, procuran-
(Isaías, 8, ·16). do-a?
184 PASCAL

*575 - Tudo redunda em no Antigo Testamento está mis-


bem para os eleitos, até nas turada com tantas outras inúteis
obscuridades da Escritura; por- que não pode ser discernida. Se
que eles as honram, por causa Moisés só tivesse registrado os
das claridades divinas, e tudo antepassados de Jesus Cristo,
redunda em mal para os ·outros, isso seria por demais visível; se
até nas claridades; porque eles as não tivesse marcado a de Jesus
blasfemam, por causa das obscu- Cristo, isso não seria bastante
ridades que não entendem. visível. Mas, afinal de contas,
576 - Conduta geral do quem olha de perto vê a de Jesus
mundo para com a Igreja. Deus Cristo bem discernida por
querendo cegar e iluminar - Tamar, Rute, etc.
Como o sucesso provou a divin- Os que ordenavam esses sacri-
dade das profecias, devemos crer fícios conheciam-lhe a inutili-
no resto. E com isso vemos a dade, os que denunciaram a sua
ordem do mundo assim estabele- inutilidade não deixaram de pra-
cida: esquecendo-se os milagres ticá-los.
da criação e do dilúvio, Deus Se Deus só houvesse permitido
envia a lei e os milagres de Moi- uma religião, ela seria demasiado
sés, os profetas que profetizaram reconhecível; mas olhe-se de
coisas particulares; e, para pre- perto e se discernirá facilmente a
parar um milagre subsistente,- ele verdade nessa confusão.
prepara profecias e sua realiza- Princípio: Moisés era um
ção. Mas, como as profecias homem instruído: por conse-
podem ser suspeitas, ele pretende guinte, se se governasse por seu
torná-las insuspeitas, etc. espírito, não diria nitidamente
577 - Deus fez que a ce- nada que fosse diretamente con-
gueira deste povo servisse aos tra o espírito.
eleitos. Assim, todas as fraquezas
*5 78 - Há bastante claridade muito aparentes são forças.
para esclarecer os eleitos e bas- Exemplo: as duas genealogias de
tante obscuridade para humilhá- São Mateus e de São Lucas.
los. Há bastante obscuridade Como pode ser mais claro que
para cegar os réprobos e bastante isso não foi combinado?
claridade para condená-los e tor- 579 - Deus (e os apóstolos),
ná-los indesculpáveis. Santo prevendo que as sementes do
Agostinho [apudj Montaigne, orgulho fariam nascer heresias, e
Apologia de Raymond de Se- não querendo dar-lhes a oportu-
bond. nidade de nascerem em termos
A genealogia de Jesus Cristo próprios, pôs na Escritura e nas
PENSAMENTOS 185

orações da Igreja palavras e sen- nele estivessem saindo das mãos


tenças contrárias, a fim de produ- de Deus, mas como inimigos de
zirem seus frutos com o tempo. Deus, aos quais ele dá por graça
Assim também dá na moral a bastante luz para voltar, se eles
caridade, que produz frutos con- querem procurá-lo e segui-lo,
tra a concupiscência. mas também para puni-los, se
5 80 - A natureza tem perfei- recusam procurá-lo ou segui-lo.
ções para mostrar que é a ima- *585 - Deus quis esconder-se
gem de Deus, e defeitos para - Se só houvesse uma religião,
mostrar que é apenas a imagem. Deus estaria nela bem manifesto.
*581 - Deus quer dispor Se só houvesse mártires na nossa
mais da vontade que do espírito. religião, também.
A clareza perfeita seria útil ao Estando Deus oculto, toda re-
espírito, mas nociva à vontade. ligião que não diz que Deus está
Abaixar a soberba. oculto não é verdadeira; e toda
582 ·_ Faz-se um ídolo da religião que a isso não faz refe-
prqpria verdade; pois a verdade, rência não é instrutiva. A nossa
fora da caridade, não é Deus: é a faz tudo isso: Vere tu es Deus
sua imagem e um ídolo que não absconditus 1 4 4.
se deve amar nem adorar ; e ainda *586 - Se não houvesse obs-
menos se deve amar e adorar o curidade, o homem não sentiria
seu contrário, que é a mentira. sua corrupção. Se não houvesse
Eu posso amar a obscuridade luz, o homem não esperaria re-
total, mas se Deus me obriga a médio. É, pois, não somente
um estado de meia obscuridade, justo, mas também útil a nós que
esse pouco de obscuridade me Deus esteja em parte escondido e
desagrada e, como não vejo nisso em parte descoberto, desde que é
mérito de uma inteira obscuri- igualmente perigoso para o
dade, isso não me agrada. É um homem conhecer Deus sem co-
defeito e um sinal de que faço da nhecer a própria miséria e conhe-
obscuridade um ídolo, fora da cer essa miséria sem conhecer
ordem de Deus. Ora, só devemos Deus.
adorar a sua ordem. 587 - Essa religião tão gran-
583 - Os fracos conhecem a de em milagres, em santos, puros
verdade, mas só a sustentam na e irreprocháveis; em sábios e
medida de seu interesse; fora grandes testemunhas; mártires;
disso, abandonam-na. reis estabelecidos (Davi); Isaías,
5 84 - O mundo subsiste para princípe de sangue; tão grande
exercer a misericórdia e julga- 1 4 4
Tu és realmente um Deus escondido
mento: não como se os homens (Isaías, 14, 15).
186 .PASCAL

em ciência; essa religião, após ter sábia e louca; sábia, porque é a


exibido os seus milagres e toda a mais sábia e a mais fundada em
sua sabedoria, reprova tudo e diz milagres, profecias, · etc.; louca,
que não tem nem sabedoria nem porque não é tudo isso que nos
- sinais e sim a cruz e a loucura. faz o que somos; o que faz é con-
Pois aqueles que por esses si- denar os que não o são, mas não
nais e essa sabedoria mereceram crer nos que o são. O que os faz
vossa crença, e vos provaram seu crer é a cruz, ne evacuata sit
caráter, declaram que nada disso crux. E, assim, São Paulo, que
nos pode mudar e tornar capazes veio em sabedoria e em sinais,
de cohecer e amar a Deus e sim disse que não veio nem em sabe-
tão somente a virtude da loucura doria nem em sinais, porque
da cruz, sem sabedoria nem si- vinha para converter. Mas os que
nais. E não os sinais sem uma tal só vêm para convencer podem
virtude. Portanto, nossa religião dizer que vêm em sabedoria e em
é louca· quanto à causa efetiva e sma1s.
sábia pela sabedoria que a ela 588 bis - Contradições. Sa-
prepara. bedoria infinita e loucura da
588 - A nossa religião é religião.
ARTIGO IX
A perpetuidade

589 - De não ser a religião [Qual o mais digno de crédito:


cristã a única - Não há nisso, Moisés ou a China?]
nem de longe, uma razão que Não se trata de vê-lo grosso
faça crer não ser ela a verda- modo. Digo-vos que há aí com
deira; ao contrário, é o que mos- que cegar e iluminar~
tra que ela o é. Com esta única palavra des-
5 90 - Com as religiões é pre- truo vossos argumentos. "Mas a
ciso ser sincero: verdadeiros ju- China obscurece", dizeis vós; e
deus, verdadeiros cristãos. eu respondo: "A China obscure-
591-J.C. ce, mas há luz por descobrir;
Pagãos Maomé buscai-a".
As~im, tudo o que dizeis é a
favor de um objetivo e não contra
o outro. Serve, portanto, e nao
Ignorância de Deus. perturba.
592 - Falsidade das outras É preciso, pois, ver isso por-
religiões - Eles não têm teste- menorizadamente, é preciso pôr
munhas. Estes têm. Deus desafia as cartas na mesa.
as demais religiões para que exi- 594 - Contra a história da
bam tais marcas: Isaías, 43, 9; China. Os historiadores do Méxi-
44, 8. co, dos· cinco sóis, sendo que o
*593 - História da China 1 4 5 último há apenas oitocentos
- Só acredito em histórias cujas anos 1 4 .s.
testemunhas se fariam degolar. 1 4 6
Os mexicanos (Pascal encontrou essa
informação em Montaigne, Ensaios, III, 6)
1 4 5
Pascal leu certamente a História da acreditavam que o mundo tivera cinco épocas
China publicada em latim por um jesuíta, o iluminadas por cinco sóis sucessivos: o quinto
Padre Martini, em 1658. O autor assinalava aparecera há oitocentos anos. Como se vê por
nela - e tentava resolvê-las - as dificuldades esse fragmento, Pascal pensava destruir a vera-
criadas pela comparação entre a cronologia cidade dos livros chineses invocando os absur-
chinesa e a Bíblia. dos das tradições mexicanas.
188 PASCAL

Diferença entre um livro rece- ridades por mistérios, visto que


bido de um povo e o que forma suas clarezas são ridículas.
um povo. Não se dá o mesmo com a
*595 - Maomé, sem autori- Escritura. Concedo que haja obs-
dade. Fora preciso, portanto, que curidades tão estranhas quanto
suas razões fossem fortes, não as de Maomé, mas há clarezas
tendo senão sua própria força. admiráveis e profecias manifestas
Que diz, pois? Que é preciso e realizadas. A partida não é,
acreditar nele. pois, igual. É preciso não confun-
5 96 - Os salmos cantados dir e igualar ás coisas que só se
em toda a terra. Quem nos dá o assemelham pela obscuridade, e
testemunho de Maomé? Ele pró- não pela clareza, a qual merece
prio. Jesus Cristo quer que seu que se respeitem as obscuridades.
testemunho não conte. *5 99 - Diferença entre Jesus
A qualidade dos testemunhos Cristo e Maomé - Maomé, não
torna necessário que existam profetizado; Jesus Cristo, profeti-
sempre e em toda parte, e, mise- zado.
rável, ele está só. Maomé, matando; Jesus Cris-
*597 - Contra Maomé - O to, fazendo matar os seus.
Alcorão é tão pouco de Maomé Maomé, proibindo ler; os
quanto o Evangelho de São Ma- apóstolos ordenando ler.
teus, pois é citado como de vários Finalmente, isso é tão contrá-
autores através dos séculos; seus rio que, se Maomé seguiu o cami-
próprios inimigos, Celso e l?orfí- nho de vencer humanamente,
rio, nunca desmentiram a pater- Jesus Cristo tomou o de morrer
nidade. humanamente; e em lugar de
O Alcorão diz que São Mateus concluir que, se Maomé venceu,
era homem de bem. Portanto, Jesus Cristo bem pudera vencer,
Maomé era falso profeta, ou cha- cumpre dizer que, se Maomé ven-
mando maus a homens de bem, ceu, Jesus Cristo devia morrer.
ou não acreditando neles pelo *600 - Todos podem fazer
.que disseram de Jesus Cristo. o que fez Maomé, pois não fez
*598 - Não é pelo que há de milagres e não foi profetizado;
obscuro em Maomé, a que se ninguérp. pode fazer o que fez
pode emprestar um sentido miste- Jesus Cristo.
rioso, que eu quero que o jul- *601 - Fundamento da
guem, mas pelo que contém de nossa fé - A religião pagã está
claro, pelo seu paraíso e pelo sem fundamento l hoje. Dizem
resto. É nisso que é ridículo. E eis que outrora ela o teve pelos orá-
por que não é justo tomar obscu- culos que falaram. Mas que li-
PENSAMENTOS 189

vros no-lo asseguram? Serão tão 602 - Ordem - Ver o que


dignos de fé pela virtude de seus há de claro e incontestável no es-
autores? Terão sido conservados tado dos judeus.
com suficiente cuidado para que 603 - 1 4 7.
tenhamos certeza de que não
foram adulterados ?J 604 - A única ciência contrá-
A religião maometana tem por ria ao senso comum e à natureza
fundamento o Alcorão e Maomé. dos homens é a única que sempre
Mas esse profeta, que devia ser a subsistiu entre os homens.
última esperança do mundo, foi *605 - A umca religião
predito? E que marca apresenta contrária à natureza, ao senso
que não apresente também qual- comum e aos nossos prazeres é a
quer homem que queira dizer-se única que sempre existiu.
profeta? Que milagre disse ele *606 - Nenhuma r~ligião,
próprio ter feito? Que mistérios salvo a nossa, ensinou que o
ensinou, segundo a sua própria homem nasce em estado pecami-
tradição? Que moral e que felici- noso, nenhuma seita filosófica o
dade? disse; nenhuma, pois, falou a
A religião judaica deve ser verdade.
considerada diferentemente na Nenhuma seita ou religião, a
tradição dos Livros Santos e na não ser a religião cristã, existiu
tradição do povo. A moral e a sempre na terra.
felicidade dela são ridículas na *607 - Quem julgar a reli-
tradição do povo; ela é, porém, gião dos judeus pelos grosseiros,
incomparável na dos Livros conhecê-la-á mal. Ela é visível
Santos (e acontece o mesmo com nos Santos Livros e na tradição
todas as religiões: pois a cristã é dos profetas, que declararam bas-
muito diferente nos Livros San- tantes vezes que não entendiam a
tos e nos casuístas). O seu funda- lei ao -pé da letra. Assim, a nossa
mento é admirável. É o mais anti- religião é divina no Evangelho,
go livro do mundo e o mais nos apóstolos e na tradição; mas
autêntico; e, ao contrário de é ridícula nos que a tratam mal.
Maomé, que, para fazer subsistir O Messias, segundo os judeus
o seu, proibiu a sua leitura, Moi- carnais, deve ser um grande prín-
sés, para fazer subsistir o seu, cipe temporal. Jesus Cristo, se-
ordenou a todos que o lessem. 1 4 7 O pensamento 603 figurava na edição in-
Nossa religião é tão divina que 16 de Brunschvicg. Foi suprimido na edição
uma outra religião divina não in-8 porque se verificou que não era um pensa-
mento original de Pascal. Tratava-se de trecho,
foi para ela senão o funda- destacado por Port-Royal, do pensamento
mento. 737.
190 PASCAL

gundo os cristãos carnais, veio Messias, que os tez amar a Deus.


dispensar-nos de amar a Deus e 61 O - Para mostrar que os
dar-nos sacramentos que operam verdadeiros judeus e os verda-
mesmo sem nós. Nem um nem deiros cristãos têm a mesma reli-
outro é a religião cristã ou a gião - A religião dos judeus
judaica. Os verdadeiros judeus e parecia consistir essencialmente
os verdadeiros cristãos espera- na paternidade de Abraão, na
ram sempre um Messias que os circuncisão, nos sacrifícios, nas
faria amar a Deus e, por esse cerimônias, na arca, no templo,
amor, triunfar dos seus inimigos. em Jerusalém, e Moisés.
*608 - Os judeus carnais si- Eu digo:
tuam-se entre os cristãos e os Que ela não consistia em ne-
pagãos. Os pagãos não conhecem nhuma dessas coisas, mas so-
Deus e só amam a terra. Os ju- mente no amor · a Deus, e que
deus conhecem o verdadeiro Deus reprovava todas as outras
Deus e só ·amam a terra. Os cris- coisas.
tãos conhecem o verdadeiro Que Deus não aceitava a pos-
Deus e não amam a terra. Os ju- teridade de Abraão.
deus e os pagãos amam os mes- Que os judeus serão punidos
mos bens. Os judeus e os cristãos por Deus como os estrangeiros,
conhecem o mesmo Deus. se o ofenderem: "Se esqueceis
Os judeus eram de duas espé- Deus e seguis deuses estrangei-
cies: uns possuíam afeições ros, eu vos predigo que perecereis
pagãs e outros possuíam afeições da mesma maneira que as nações
cristãs. que Deus exterminou antes de
*609 - Duas espécies de ho- vós" (Deuteronômio, 8, 19).
mens em todas as religiões: entre Que os estrangeiros serão rece-
os pagãos os adoradores de ani- bidos por Deus, como os judeus,
mais, e os outros, adoradores de se o amarem. Que o estrangeiro
um só Deus na religião natural; não diga: "O Senhor não me
entre os judeus, os carnais, e os receberá". Os estrangeiros que se
espirituais, que eram os cristãos ligam a Deus serão para servi-lo
da antiga lei. Entre os cristãos, os e amá-lo, e eu os conduzirei à
grosseiros, que são os judeus da minha santa montanha e recebe-
nova lei. Os judeus carnais espe- rei deles sacrifícios, pois minha
ravam um Messias carnal; os casa é a casa de oração (Isaías,
cristãos grosseiros acreditam que 56,3).
o Messias os eximiu de amar a Que os verdadeiros judeus não
Deus; os verdadeiros judeus e os consideravam o seu mérito senão
verdadeiros cristãos adoram um de Deus e não de Abraão: "Vós
PENSAMENTOS 191

sois verdadeiramente nosso Pai, e 26. Pois Deus julgará os povos


Abraão não nos conheceu, e Is- incircuncisos e todo o povo de
rael não teve conhecimento de Israel, porque ele é "incircunciso
nós, mas vós é que sois nosso Pai de coração".
e nosso Redentor" (Isaías, 63, Que o exterior não serve de
16). nada sem o interior. Joel, 2, 13:
O próprio Moisés lhes disse Scindite corda vestra, etc.1 4 s.
que Deus não aceitaria as pes- Isaías, 58, 34, etc. O amor a
soas: "Deus", disse ele, "não Deus é recomendado em todo o
aceita as pessoas, nem os sacrifí- Deuteronômio. Deuteronômio,
cios." Deuteronômio, 1O, 17. - 30, 19: "Eu tomo como testemu-
O sabá era apenas um sinal, nho o céu e a terra de que pus
Êxodo, 3 1, 13; e para recordar a diante de vós a morte e a vida, a
saída do Egito, Deuteronômio, 5, fim de que escolhêsseis a vida,
15; logo, não é mais necessário, amásseis a Deus e lhe obedecês-
posto que cumpre esquecer o seis, pois Deus é que é a vossa
Egito. - A circuncisão era ape- vida".
nas um sinal, Gênese, 17, 11. Daí Que os judeus, sem esse amor,
por que, estando no deserto, eles seriam reprovados por seus cri-
não foram circuncisos, pois não mes, e os pagãos eleitos em seu
podiam confundir-se com outros lugar. Oséias 1, 10; Deutero-
povos; e, depois da vinda de nômio, 3 2, 30. "Eu me ocultarei
Jesus Cristo, ela não é mais deles em vista dos seus últimos
necessária. crimes; pois é uma nação má e
in.fiel. Eles provocaram minha
Que a circuncisão do coração
cólera pelas coisas que não são
é ordenada. Deuteronômio, 1O,
dos deuses; e eu os provocarei ao
16; Jeremias, 4, 4: "Sede circun-
ciúme por um povo que não é o
cisos de coração, tirai de vosso
meu povo, e por uma nação sem
coração as coisas supérfluas e
ciência e sem inteligência."
não vos endureçais; pois vosso (Jsaías, 65, 1)
Deus é um Deus grande, pode- Que os bens temporais são fal-
roso e terrível, que não aceita as sos e que o verdadeiro bem é
pessoas". estar unido a Deus. Salmo 143,
Que Deus disse que o faria um 15.
dia. Deuteronômio, 30, 6: "Deus Que as suas festas desagra-
te circuncidará o coração e o dos davam a Deus. Amós, 5, 21.
teus filhos, a fim de que tu o Que os sacrifícios dos judeus
ames de todo o coração". desagradam a Deus. Isaías, 66,
Que os incircuncisos de cora-
ção serão julgados. Jeremias, 9, 1 4 8 Rasgai vossos corações, etc.
192 PASCAL

1-3; 1, ll;Jeremias, 6, 20; Davi, melhor que o dos judeus e eterno.


Miserere. - Mesmo da parte dos Isaías, 62, 5. Que os judeus de-
bons, Expectavi. Salmo 49, viam ficar sem profetas (A mós),
8-9-10-11-12-13-14. Que só os sem rei, sem príncipes, sem sacri-
estabeleceu por sua dureza. Mi- fícios, sem ídolos.
quéias, admiravelmente, 6, 6-8; 1 Que os judeus subsistiriam
Reis, 15, 22; Oséias, 6, 6. sempre, contudo, como povo.
Que os sacrifícios dos pagãos Jeremias, 31, 36.
serão recebidos por Deus e que 611 - República - A Re-
Deus retirará a sua vontade dos pública cristã e mesmo a judaica
sacrifícios dos judeus. Mala- só teve, Deus por senhor, como
quias, 1, 11. observa Filon, o judeu, em Da
Que Deus fará uma nova Monarquia.
aliança pelo Messias e que a anti- Quando combatiam era .so-
ga será rejeitada. Jeremias, 31, mente por Deus; só esperavam de
31: .Mandata non hona; Ezequiel, Deus; só consideravam suas ci-
20, 25. dades como sendo de Deus e as
Que as · antigas coisas serão conservavam para Deus. ( 1 Para-
esquecidas. !saias, 43, 18.-19; 65, lipômenos, 19, 13.), 49
17-18. 612 - Gênese, 17, Statuam
Que ninguém se lembrará mais pactum meum inter me et te foe-
da arca. Jeremias, 3, 15- 16. dere sempiterno. . . ut sim Deus
Que o tempo será rejeitado. tuus ...
Jeremias, 7, 12-13-14. Et tu ergo custodies pactum
Que os sacrifícios seriam rejei- meum 1 50 •
tados e outros sacrifícios puros *613 - Perpetuidade
estabelecidos. Malaquias, 1, 11. Essa religião, que consiste em
Que a ordem da sacrificatura crer que o homem caiu de um es-
de Aarão seria reprovada e a de tado de glória e comunicação
Melquisedec introduzida pelo com Deus a um estado de triste-
Messias. Salmo. Dixit Dominus. za, penitência e afastamento de
Que essa sacrificatura seria Deus, mas que, depois desta vida,
eterna. Ibid. seremos restabelecidos por um
Que Jerusalém seria reprovada Messias que deve vir, sempre
e Roma admitida. Salmo. Dixit 1 4 9
Nas traduções modernas da Bíblia os
Dominus. Para/ipômenos aparecem com o título de 1
Livro das Crônicas e II Livro das Crônicas.
Que o nome judeus seria re- (N. desta edição.)
provado e um novo nome dado. 1 50
Estabelecerei entre mim e ti, por uma
Isaías, 65, 15. aliança eterna, o pacto segundo o qual serei
teu Deus.
Que esse último nome seria E conservarás meu pacto.
PENSAMENTOS 193

existiu sobre a terra. Todas as cem teologias diversas; os filóso-


coisas passaram, subsistindo fos separaram-se em mil seitas
aquela pela qual todas as coisas diferentes: no entanto, havia sem-
existem. pre, e no coração da Judéia, ho-
Os homens, na primeira idade mens escolhidos que prediziam a
do mundo, foram arrastados a vinda de um Messias só por eles
toda sorte de desordens, embora conhecido.
houvesse santos como Enoc, Ele veio, enfim, na consuma-
Lamec e outros, que esperavam ção dos tempos; e, desde então,
pacientemente o Cristo prome- nasceram tantos cismas e here-
tido desde o começo do mundo. sias, tantos desmoronamentos de
Noé mediu a malícia dos homens Estados, tantas mudanças em
no mais alto grau e mereceu sal- todas as coisas; e essa Igreja, que
var o mundo em sua pessoa pela adora aquele que sempre foi ado-
esperança do Messias, do qual foi rado, subsistiu sem interrupção.
a imagem. Abraão estava cerca- E o que é admirável, incompa-
do de idólatras, quando Deus lhe rável e inteiramente divino, é que
deu a conhecer o mistério do essa religião que sempre durou
Messias, que ele saudou de longe. foi sempre combatida. Mil vezes
No tempo de Isaac e de J acó, a esteve na iminência de uma des-
abominação estava espalhada truição universal; e, todas as
sobre a terra: mas esses santos vezes que se achou nesse estado,
viviam na fé; e Jacó, morrendo e Deus tornou a levantá-la com
abençoando seus filhos, exclama golpes extraordinários de seu po-
num transporte que o obrigou a derio. É assombroso que assim
interromper seu discurso: "Eu seja e que ela se mantenha sem
espero, meu Deus, o Salvador dobrar-se e curvar-se sob a von-
que prometestes": Salutare tuum tade dos tiranos. Porque não é
exspectabo, Domine. Os egípcios estranho que um Estado subsista
estavam infectados de idolatria e quando obrigam suas leis a ceder
magia; o próprio povo de Deus ante a necessidade, mas que ...
era influenciado por seus exem- (Vide o círculo em Montaig-
plos. No entanto, Moisés e outros ne), s1.
acreditavam naquele que não *614 - Os Estados perece-
viam e o adoravam, olhando para riam se as leis não fossem obriga-
os dons eternos que ele lhes das a dobrar-se freqüentemente
preparava. 1 51 O círculo em Montaigne: a palavra indi-
Os gregos e os latinos, em ca, como no número 626, uma chamada em
forma de círculo posta por Pascal em seu
seguida, fizeram reinar as falsas exemplar de Montaigne e que, segundo Havet,
divindades; os poetas criaram se refere ao Ensaio I, 22. (N.do E.)
194 PASCAL

às necessidades. A religião, *617 - · Considere-se que,


porém, nunca sofreu isso, nunca desde o começo do mundo, a es-
usou isso. São necessários ou pera ou a adoração do Messias
esses acomodamentos ou mila- subsiste sem interrupção; que
gres. Não é de estranhar que eles houve homens dizendo que Deus
se conservem, submetendo-se; lhes revelara que devia nascer um
isso não é propriamente manter- .redentor para· salvar seu povo;
se; e ainda perecem ao fim intei- que Abraão veio em seguida
ramente; não há um que tenha dizer que recebera a revelação de
durado mil e quinhentos anos. que o Messias nasceria dele por
Mas que essa religião se mante- um filho que teria; que J acó
nha sempre, e inflexível, isso é declarou que, dos seus doze fi-
divino. lhos, ele nasceria de Judá; que
615 - Diga-se o que se qui- Moisés e os profetas vieram de-
ser. Cumpre confessar que a reli- pois declarar o tempo e a manei-
gião cri~tã tem algo de espanto- ra de sua vinda; que disseram
so. - "Porque nela nascestes", que a lei que tinham era apenas
dirão. - Longe disso: eu me re- enquanto esperavam a do Mes-
teso contra isso e por esse motivo sias; que até então ela seria per-
mesmo, com receio de que essa pétua, mas que a outra duraria
prevenção me suborne; mas, em- eternamente; que assim, sua lei
bora nela tenha nascido, não ou a do Messias, da qual era a
deixo de ter essa opinião. promessa, existiram sempre na
*616 -- Perpetuidade terra; que, de fato, ela sempre
Sempre se acreditou no Messias. durou; que, enfim, Jesus Cristo
A tradição de Adão era ainda veio em todas as circunstâncias
nova em Noé e em Moisés. Os preditas. Isso é admirável.
profetas o predisseram depois, 618 - Isto é certo. Enquanto
predizendo sempre outras coisas todos os filósofos se dividem em
cuja realização, que ocorria pe- diferentes seitas, ocorre em um
riodicamente entre os homens, canto do mundo haver gente, a
assinalava a verdade de sua mis- mais antiga do mundo, decla-
são e, por conseguinte, a de suas rando que todos vivem no erro,
promessas em relação ao Mes- que Deus lhe revelou a verdade e
sias. Jesus Cristo fez milagres, que ela subsistirá sempre na
assim como os apóstolos que terra. Com efeito, as outras seitas
converteram todos os pagãos; e, desaparecem, essa dura sempre e
assim, realizando-se todas as há quatro mil anos.
profecias, o Messias está provado Declara essa gente que sabe
para sempre. por seus antepassados que o
PENSAMENTOS 195

homem foi despojado da comuni- possa agradar-me, nem as provas


cação com Deus, em um inteiro que possam prender-me. E,
afastamento de Deus, mas que assim, teria eu recusado igual-
ele prometeu resgatá-los; que mente a religião de Maomé, a da
essa doutrina sempre existirá na China, a dos antigos romanos, a
terra; que sua lei tem duplo senti-' dos egípcios, pela única razão de
do; que durante mil e seiscentos que, não tendo uma mais sinais
anos houve indivíduos que se jul- de verdade do que a outra, nem
garam profetas, que predisseram nada que obrigasse necessaria-
o tempo e o modo; que quatro- mente a uma decisão, a razão
centos anos mais tarde foram dis- não pode pender mais para uma
persos por toda parte, porquanto do que para outra.
Jesus Cristo deveria ser anun- Mas considerando assim essa
ciado por toda parte; que Jesus inconstante e estranha variedade
Cristo veio no modo e no tempo de costumes e de crenças nos
preditos; que desde então os ju- diversos tempos, encontro num
deus vivem dispersos por toda canto do mundo um povo parti-
parte, em maldição e, contudo, cular, separado de todos os ou-
subsistindo. tros povos da terra, o mais antigo
*619 - Vejo a religião cristã de todos, e cujas histórias prece-
baseada numa religião prece- dem de vários séculos as mais
dente, e eis o que acho de real. antigas que possuímos. Encontro,
Não falo aqui dos milagres de pois, esse povo grande e numero-
Moisés, de Jesus Cristo e dos so, saído de urrí só homem, que
apóstolos, porque não parecem adora um só Deus e que se con-
de início convincentes e não duz por uma lei que eles dizem
quero pôr aqui em evidência ter recebido de sua mão. Susten-
senao todos os fundamentos tam que são os únicos do mundo
dessa religião cristã que sejam aos quais Deus revelou os seus
indubitáveis e nao possam ser mistérios; que todos os homens
colocados em dúvida por nin- estão corrompidos e no desfavor
guém. É certo que vemos em de Deus; que estão todos abando-
numerosos lugares do mundo um nados aos seus sentidos e ao seu
povo partic~ular, separado dos ou- próprio espírito e que daí provêm
tros povos do mundo, que se os estranhos desvios e mudanças
eh ama povo judeu. contíhuas que se verificam entre
Vejo, portanto, abundância de eles, tanto de religiões como de
religiões em vários lugares do costumes - ao passo que conti-
mundo e em todos os tempos. nuam inabaláveis em sua condu-
Mas elas não têm a moral que ta - , mas que Deus não deixará
196 PASCAL

eternamente os outros povos nes- Vejo, primeiro, que é um povo


sas trevas; que virá um libertador todo composto de irmãos; e, ao
para todos; que estão no mundo contrário de todos os outros, que
para anunciá-lo aos homens; que são formados da reunião de uma
foram formados de propósito infinidade de famílias, aquele,
para serem os precursores e arau- embora tão estranhamente abun-
tos desse grande acontecimento e dante, saiu todo de um só
para chamar todos os povos a se homem; e, sendo assim todos
lhes unirem na espera desse liber- uma mesma carne e membros
tador. . uns dos outros, compõem um
O encontro desse povo me poderoso Estado de uma só famí-
assombra e me parece digno de lia. Isso é único.
atenção. Reflito sobre esta lei, Essa família ou esse povo é o
que se orgulham de vir de Deus, e mais antigo que existe no conhe-
a considero admirável. É a pri- cimento dos homens: o que me
·meira de todas as leis e a tal parece dever atrair para ele uma
ponto que, antes mesmo que a veneração particular, principal-
palavra lei fosse adotada pelos mente na pesquisa que fazemos,
gregos, há quase mil anos eles a de vez que, se Deus se comuni-
tinham recebido e observado sem cou sempre aos homens, a eles é
interrupção. Assim, acho estra- que devemos recorrer para saber
nho que a primeira lei do mundo qual é a sua tradição.
seja também a mais perfeita, de
modo que os maiores legisladores Esse povo não é somente con-
dei a tiraram as suas, como se siderável por sua antiguidade,
deduz da lei das Doze Tábuas de mas é ainda singular em sua
Atenas 1 5 2 , a seguir aceita pelos duração, que sempre continuou
romanos, e como seria fácil mos- desde a origem até agora; com
trar se Josefo e outros já não efeito, ao contrário dos povos da
tivessem tratado suficientemente Grécia e da Itália, da Lacedemô-
da matéria. nia, de Atenas, de Roma e dos
*620 - Vantagens do povo outros que vieram tanto tempo
judaico - Nessa procura, o depois e acabaram há tanto
povo judaico fere desde logo tempo, eles subsistem sempre; e,
minha atenção pela quantidade malgrado as empresas de tantos
de coisas admiráyeis e singulares reis poderosos, que cem vezes
que nele aparecem. experimentaram fazê-los perecer,
como o testemunham seus histo-
1 52
Brunschvicg assinala que não há lei das riadores e como é fácil julgar
Doze Tábuas de Atenas e que Pascal de.ve ter
cometido um lapso, baseando-se num texto de
pela ordem natural das coisas,
Grotius. (N. do E.) durante um tão longo espaço de
PENSAMENTOS .97

anos, eles sempre foram conser- particulares e penosas, sob pena


vados (conservação que foi predi- de perder a vida. De sorte que é
ta); e, estendendo-se desde os pr.i- uma coisa assombrosa que ela
meiros tempos aos últimos, a seja sempre conservada durante
história deles encerra em sua tantos séculos por um povo rebel-
duração a de todas as nossas his- de e impaciente como esse, en-
tórias (que ela precede de muito). quanto todos os outros Estados
A lei pela qual esse povo se · mudaram de tempos a tempos as
governa é a um tempo a mais an- suas leis, embora fossem, ao
tiga do mundo, a mais perfeita, a contrário, bastante fáceis.
única que foi conservada sem
interrupção, num Estado. É o que O livro que contém essa lei, a
J osefo mostra admiravelmente primeira entre todas, é também o
contra Apion 1 5 3 , e Filon, o mais antigo do mundo, apare-
judeu, em diversos lugares, em cendo os de Homero, Hesíodo e
que demonstram ser ela tão anti- outros somente seiscentos ou se-
ga que o próprio nome da lei só tecentos anos depois.
foi conhecido dos mais antigos, 621 - Passada a criacão e o
mais de mil anos depois. De dilúvio e não devendo D;us des-
modo que Homero, que escreveu truir mais o mundo, nem tornar a
a história de tantos Estados, criá-lo, nem dar quaisquer desses
nunca se valeu dela. E é fácil jul- grandes sinais de si, começou a
gar de sua perfeição pela simples estabelecer um povo sobre a
leitura, pela qual se vê que aten- terra, formado propositadamente
deu a tudo com tanta sabedoria, e que devia durar até o povo que
eqüidade, inteligência, que os o Messias formaria por seu espí-
mais antigos legisladores gregos rito.
e romanos, ao ter conhecimento *622 - Começando a criação
dela, lhe tomaram de empréstimo do mundo a distanciar-se, Deus
os principais dispositivos. O que forneceu um único historiador
se percebe pela lei a que chama- contemporâneo e cometet. a todo
ram das Doze Tábuas e pelas de- um povo a guarda desse livro, a
mais provas que nos dá Josefo. fim de que essa história fosse a
mais autêntica do mundo e que
Mas essa lei é ao mesmo
todos os homens pudessem
tempo a mais severa e a mais
aprender uma coisa tão neces-
rigorosa de todas, obrigando esse
sária de saber e que só se pudesse
povo, para mantê-lo obediente ao
saber por esse meio.
seu dever, a mil observações
623 - (J afet inicia a genealo-
1 53 Resposta a Apion, II, 39. gia.)
198 .PASCAL.

José cruza os braços e prefere que as teriam eles entretido,


o jejum 1 5 4 • senão com a história de seus
*624 - Por que torna Moisés antepassados, pois toda ela se
a vida dos homens tão longa e reduzia a esta e eles não tinham
tão poucas as gerações? Com estudos, nem ciências, nem artes
efeito, não é a ext~nsão dos anos, que ocupam grande parte dos dis-
mas a multidão das gerações que cursos da vida? Vê-se, igual-
torna as coisas obscuras. mente, que naquela época os
A verdade não se altera senão povos dispensavam particular
pela mudança dos homens. No cuidado à conservação de suas
entanto, ele põe as duas coisas genealogias.
mais memoráveis que já se imagi- 627 - Creio que Josué é o
naram, a saber, a criação e o primeiro a ostentar esse nome do
dilúvio, tão próximas que se povo de Deus, como Jesus Cristo
podem tocar. tem o último do povo de Deus.
*625 - Sem, que viu Lamec, *628 - Antiguidade dos ju-
que viu Adão, viu também J acó, deus - Que diferença entre um
que viu os que viram Moisés. livro e o outro! Não me admira
Portanto, o dilúvio e a criação que os gregos tenham feito a Ilía-
são verdadeiros. Isso é conclu- da, nem os egípcios e os chineses
dente para pessoas que o enten- as suas histórias. Basta ver como
dam bem. isso nasceu. Esses historiadores
*626 - Outro círculo - A fabulosos não são contempo-
extensão da vida dos patriarcas, râneos das coisas a cujo respeito
em lugar de fazer que as histórias escrevem. Homero faz um ro-
passadas se perdessem, servia, ao mance que ele dá como tal e
contrário, para conservá-las. assim é aceito, pois ninguém
Com efeito, o que nos impede duvidava de que a existência de
que sejamos, às vezes, bastante Tróia e Agamenon fosse como o
instruídos na história dos nossos pomo de ouro. Nem ele pensou
antepassados, é que nunca vive- em fazer uma história, mas ape-
mos com eles, pois muitas vezes nas um divertimento. O seu livro
morreram antes de termos atin~ é o único do seu tempo; a beJeza
gido a idade da razão. Mas, da obra faz durar a coisa: todos a
quando os homens viviam tanto conhecem e falam dela: é preciso
tempo, as crianças viviam muito conhecê-la; todos a sabem de cor.
tempo com seus pais. Ora, com Quatrocentos anos depois, os
testemunhos das coisas não estão
1 5 4 Para compreender o n.º 623 é preciso ler

o n. 0 711, segundo parágrafo, e no 623 corrigir


mais vivos, ninguém sabe mais,
(conforme a segunda cópia) José para J acó. por seu conhecimento, se é uma
PENSAMENTOS 199

fábula ou uma história: visto que Estava cansado do povo.


foi aprendida dos antepassados, *630 ·- A sinceridade dos
pode passar por verdadeira. judeus - Depois que não tive-
Toda história que não é con- ram mais profetas, Macabeus;
temporânea é suspeita. Assim os depois de Jesus Cristo, Mas-
livros Sibilinos e de Trismegis- sor1 5 a.
to 1 5 5 , e outros tantos em que o
"Este livro vos servirá de teste-
mundo acredita, são falsos e se munho."
revelam falsos com o tempo. Não
As letras defeituosas e finais.
ocorre o mesmo com os autores
contemporâneos. Há muita dife- Sinceros contra sua honra e
rença entre um livro que faz um por isso morrendo. Isso não tem
particular e é oferecido ao povo, exemplo no mundo, nem raiz na
e um livro que faz ele próprio um natureza.
povo. Não há como duvidar seja *631 - Sinceridade dos ju-
este livro tão antigo quanto o deus - Eles carregam com amor
povo! e fidelidade o livro em que Moi-
629 - Josefo 1 5 6 esconde a sés declara que sempre foram
v.ergonha de sua nação. ingratos para com Deus e que
Moisés não esconde a sua pró- sabe que o serão ainda mais de-
pria vergonha, nem ... pois de sua morte; mas que invo-
Quis mihi det ut omnes pro- ca o céu e a terra como testemu-
phetent1 5 7 • nho contra eles, e que ele lhes
ensinou bastante; que, enfim,
1 5 5
Os Livros Sibilinos, coleções de oráculos, Deus, irritando-se contra eles, os
foram queimados no incêndio do ano 670 a.e.
em Roma. Reconstituídos por ordem de dispersará entre todos os povos
Augusto, foram novamente queimados por da terra; que, como o irritaram
ordem de Teodósio em 389 d.e. Na Idade
Média invocava-se a autoridade de Sibila com adorando deuses que não eram o
a de Davi (teste David cum Sibylla). Trisme- seu Deus, assim também ele os
gisto, três vezes grande, é o nome que os gre-
gos davam a Hermes ou Mercúrio. Atri- provocará, chamando um povo
buíam-lhe quarenta e dois livros sagrados, que nao era o seu povo; e que
sendo que catorze capítulos deles, escritos em
grego, nos foram legados. Esses capítulos, que todas as suas palavras · serão
julgavam fossem muito antigos e cujos teste- conservadas eternamente e que
munhos os primeiros apologistas cristãos cita- seu livro será colocado na Arca
vam, eram na realidade do primeiro século de
nossa era. O Renascimento acreditava também
na autenticidade dos livros herméticos. 1 5 8
Designava-se pelo nome de Massor ou
1 5 6
O historiador Flávio Josefo, a quem se Massora "uma coletânea de comentários feitos
deve a História da Guerra dos Judeus contra pelos doutores judeus, acerca dos versículos,
os Romanos, em sete livros, e as Antiguidades das palavras, das letras, das vogais, dos pontos
Judaicas, em vinte. Nasceu em Jerusalém em e dos acentos do texto hebreu do Antigo Testa-
J7 a.e. e morreu em fins do primeiro século. mento, a fim de fixar esse texto e preservá-lo
1 5 7
Que daria a todo o povo o poder de profe- de toda alteração voluntária ou acidental"
tizar. (Números, 11, 29.) (Brunschvicg).
200 PASCAL

da Aliança para servir definitiva- tos profetas, teriam deixado quei-


mente de testemunha contra eles. má-los?
Isaías diz o mesmo (30, 8). Josefo zomba dos gregos que
632 - Sobre Esdras 1 59 - não sofreriam ...
Fábula: os livros foram queima- Tertuliano: Perinde potuit abo-
dos com o templo. Falso para os lefactam eam violentia ca-
Macabeus: "Jeremias insuflou- taclysmi in spiritu rursus refor-
lhes a fé". mare, quemadmodum et
Fábula: que recitou toda de Hierosolymis Babylonia expug-
cor. Josefo e Esdras sublinham natione deletis, omne instru-
que ele leu o livro. Barônio, mentum judaicae litteraturae per
Anais, p. 180: Nullus penitus Esdram constat restauratum.
Hebraeorum reperitur qui tradi- Ele diz que assim como Noé
derit libras perisse et per Esdram pôde restabelecer em espírito o
esse restitutos, nisi in IV Esdrae. livro de Enoc, perdido no dilúvio,
Fábula: que ele mudou a letra. Esdras pôde restabelecer as Es-
Filo, in Vila Moysis: Ilia lin- crituras perdidas durante o Cati-
gua ac character quo antiquitus veiro .
. scripta est !ex sic permansit
usque ad LXX. (0€0Ç) ev Tfj €rrl Naf3ov1wo óvoaop aixµa-
Josefo diz que a lei estava em Àwaia TOV À~ov, oiar.p(Jap€LOWV íWV "(pa-
hebraico quando foi traduzida <j?WV.:. evérrveva€ ''Eaopa TW Í€pâ EK Tijç
'PfJÀijç Mvi Tovç TWV rrp~"f€"f~vÓTwv rrp<>.pr1-
pelos Setenta.
Twv rrávmç ewaTá~aaOai ÀÓ"(ovç, Kai àrro-
No tempo de Antíoco e Vespa- KamaTT,aai. TW Àaw T1.,v oi.a Mwvaewç
siano, quando se pretendeu abolir VO~l00€aÚW 160• '
os livros e quando não havia pro-
feta, não o puderam fazer e, nos Alega-o para provar não ser
dos babilônios, quando nao incrível que os Setenta tenham
houve perseguição e houve mm- explicado a Sagrada Escritura
1 5 9
com essa uniformidade que neles
Esdras, morto em 587 a.C., teria deixado
quatro livros, dos quais somente os dois pri- se. admira. E tirou isso de 'Santo
meiros são reconhecidos como canônicos pela Irineu.
Igreja; as traduções modernas da Bíblia tra-
zem o primeiro com o nome de Esdras e o Santo Hilário, no prefácio dos
segundo de Neemias. A fábula aludida por Salmos, diz que Esdras os orde-
Pascal é a narrativa feita por Esdras no seu nou.
suposto livro IV: a Sagrada Escritura teria
sido queimada durante um dos cativeiros do
1 6 0
povo judeu e Esdras a teria reconstituído No cat1ve1ro do povo, no tempo de
mediante ditado do próprio Deus. Barônio Nabucodonosor, por estarem perdidas (lS Es-
escreve: "Não se sabe de nenhum hebreu anti- crituras, Deus inspirou Esdras, sacerdóte da
go que haja contado que os Livros (Santos) tribo de Levi, no sentido de recontar todas as
desapareceram e foram reconstituídos por palavras dos profetas anteriores e de restabe-
Esdras. Este é o único que o diz, no seu livro lecer para o povo a legislação dada por Moi-
IV". (N. do E.) sés. (Trad. desta edição.)
PENSAMENTOS 201

A origem dessa tradição vem 634 - Se se deve acreditar na


do capítulo 14 do quarto Livro fábula de Esdras, deve-se crer
de Esdras: Deus glorificatus est, que a Escritura é a Sagrada
et Scripturae vere divinae credi- Escritura, pois essa fábula só é
tae sunt, omnibus eamdem et eis- baseada na autoridade dos que
dem verbis et eisdem nominibus falam da dos Setenta, que mostra
recitantibus ab initio usque ad que a Escritura é sagrada.
finem, uti et praesentes gentes Logo, se esse conto é verda-
cognoscerent quoniam per inspi- deiro, basta-nos; se não o é,
rationem Dei interpretatae sunt temos outro. E, assim, os que
Scripturae, et non esset mirabile gostariam de arruinar a verdade
Deum hoc ln eis operatum: quan- de nossa religião, fundada em
do in ea captivitate populi quae Moisés, estabelecem-na pela
facta est a Nabuchodonosor, cor- mesma autoridade com que a
ruptis Scripturis et post septua- atacam. Assim como essa provi-
ginta annos Judaeis descenden- dência, ela continua subsistindo.
tibus ln regionem suam, et post 635 - Cronologia do rabi-
deinde temporibus Artaxercis nismo - As citações das pági-
Persarum regis, inspiravit Esdrae nas são do livro Pugio. P. 2 7,
sacerdoti tribus Levi praeteri- Rabi Hacadoch (ano 200), autor
torum prophetarum omnes reme- da Michná ou lei oral, ou segun-
morare sermones, et restituere da lei 1 6 3 •
populo eam legem quae data est Comentários à Michná (ano
per Moysen 1 61 • 340): um Sifra:
633 - Contra a fábula de Barajetot.
Esdras, 2 Mac 2; Josefo, Ant., II, Ta/mude e Jerusalém.
I. Ciro valeu-se da profecia de Tosiptot.
Isaías para libertar o povo. Os ju- Berechit Rabá, por Rabi Osaia
deus tinham propriedades tran- Rabá, comentário de Michná.
qüilas no reinado de Ciro em Berechit Rabá, Bar Nachmoni,
Babilônia, logo podiam ter a lei. são discursos sutis, agradáveis,
Josefo, em toda a história de históricos e teológicos. Esse
Esdras, não diz palavra desse mesmo autor fez os livros intitu-
restabelecimento. IV Reis 17, lados Rabot.
271 6 2.
Cem anos depois (440) do Ta/-
1 6 1
Este texto latino é o desenvolvimento do
mude Jerusalém, foi feito o Tal-
texto grego acima citado. O sentido percebe-se
pelo fragmento de Pascal. (N. do E.) 1 63
O Ta/mude (ensino) é um conjunto de
1 6 2 Modernamente, os dois primeiros livros comentários sobre a Bíblia, cuja redação defi-
dos Reis vêm sob a denominação de 1 Samuel nitiva é do século V d.C. Divide-se em duas
e II Samuel, e os dois. últimos 9(3 e 4)como 1 partes: Michná (segunda lei) e Guemara (defi-
Reis e II Reis. (N. desta edição.) nição). (N. do E.)
202 PASCAL

mude Babilônico, por Rabi Ase, nosor levou o povo com receio de
por consenso universal de todos que acreditassem que o cetro foi
os judeus, os quais são necessa- tirado de Judá, foi-lhe dito antes
riamente obrigados a observar que duraria pouco tempo e seria
tudo o que nele se contém. restabelecido. O povo foi sempre
O acréscimo de Rabi Ase inti- consolado pelos profetas e seus
tula-se Guemara, isto é, "comen- reis continuaram. Mas a segünda
tário" à Michná. destruição é sem promessa de
E o Ta/mude compreende a restabelecimento, sem profetas,
Michná e a Guemara. sem reis, sem consolo, sem espe-
636 - Se não significa indi- rança, porque o cetro foi tirado
ferença: Malaquias, Isaías. para sempre.
Isaías, Si volumus, etc. ' *640 - É espantoso e digno
ln quacumque die. de atenção ver esse povo judeu
*637 - Profecias - O cetro subsistir após tantos anos, e sem-
não foi ·interrompido pelo cati- pre miserável; sendo necessário,
veiro na Babilônia, porque a para a prova de Jesus Cristo, que
volta estava prometida e predita. subsista para prová.-lo e que seja
*638 - Provas de Jesus miserável, posto que o crucifi-
Cristo - Não é ser escravo tê-lo cou; e, embora seja contrário
sido na certeza de uma libertação subsistir e ser miserável, subsiste,
dentro de setenta anos. Mas entretanto, apesar da miséria.
agora o são sem nenhuma espe- *641 - É visivelmente um
rança. povo feito de propósito para ser-
Deus prometeu ainda que os vir de testemunho ao Messias
dispersaria pelos quatro cantos (Isaías, 43, 9; 44, 8). Carrega os
do mundo, mas que, se se manti- livros, e ama-os, e não os enten-
vessem obedientes à lei, ele os de. E tudo isso foi predito: por-
reuniria de novo. Eles são obe- que se disse que os julgamentos
dientes e continuam oprimidos. de Deus lhe foram confiados,
*639 - Quando Nabucodo- mas como um livro selado.
ARTIGO X
Os figurativos

*642 - Prova dos dois Testa- dos rabirws: que há dois sentidos,
mentos ao mesmo tempo - Para que há dois eventos, glorioso ou
provar de uma vez os dois Testa- abjeto, do Messias, segundo o seu
mentos, basta ver se as predições mérito, que os profetas só profeti-
de um se realizam no outro. Para zaram o Messias - a lei não é
examinar as profecias, é preciso eterna, deve mudar com o Mes-
entendê-las; de fato, se se crê que sias - , que, então, não se lem-
elas têm somente um sentido, é brará mais o mar Vermelho; que
certo que o Messias não virá, judeus e gentios serão mistura-
mas, se têm dois sentidos, é certo dos;
que virá em Jesus Cristo. Toda a 6. ª [Prova pela chave que
questão consiste, pois, em saber Jesus Cristo e os apóstolos nos
se têm dois sentidos. dão.]
De que a Escritura tem dois *643 - Isaías, 51. O mar
sentidos, dados por Jesus Cristo Vermelho, imagem da Redenção.
e os apóstolos, eis as provas: Ut sciatis quod filius hominis
1. a prova pela própria habet potestatem remittendi pec-
Escritura; cata, tibi dica: Surge 1 6 5 • Deus,
2. a - prova pelos rabinos: querendo fazer parecer que podia
Moisés ben Maimon disse que ela formar um povo santo de uma
tem duas faces e que os profetas santidade invisível, e enchê-lo de
só profetizaram Jesus Cristo; uma glória eterna, fez coisas visí-
3. ª - prova pela Cabala 1 6 4 ; veis; como a natureza é uma ima-
4. a - prova pela interpretação gem da graça, fez nos bens da
mística que os próprios rabinos natureza o que devia fazer nos da
deram à Escritura; · graça, a fim de que se julgasse
5.ª - prova pelos princípios que ele podia fazer o invisível,
uma vez que fazia bem o visível.
1 6 4 Cabala, do hebreu Kabala (tradição),
doutrina secreta que certos doutores judeus 1 6 5
A fim de que saibas que o Filho do
pretendiam ter recebido do próprio ·Moisés, e homem tem o poder de absolver os pecados, eu
que foi redigida e fixada no século II d.C. te digo: ergue-te (São Marcos, 2, 10).
204 .. PASCAL

Salvou, pois, esse povo do dilú- Salvador que deveria nascer da


vio; fê-lo nascer de Abraão, liber- mulher quando os homens ainda
tou-o dos seus inimigos e deu-lhe se encontravam tão perto da cria-
repouso. ção que não podiam tê-la esque-
O objetivo de Deus não era cido, nem a queda. Quando os
salvar do dilúvio e fazer nascer que tinham visto Adão não
de Abraão todo um povo, para foram mais deste mundo, Deus
não o introduzir senão numa enviou-lhes Noé, e salvou-o, e
terra fértil. afogou toda a terra, mediante um
E mesmo a graça é apenas a fi- milagre que testemunhava sufi-
.gura da glória, pois não é o fim cientemente seu poder de salvar o
último. Ela foi figurada pela lei e mundo e a vontade que tinha de
figura ela própria a glória; mas é fazê-lo, e de fazer que nascesse
a figura, o princípio ou a causa. da semente da mulher aquele que
A vida comum dos homens é ele prometera. Esse milagre bas-
semelhante à dos santos. Todos tava para fortalecer a esperança
buscam sua satisfação e só diver- dos homens .
gem quanto ao objeto em que a Como a lembrança do dilúvio
colocam; aos que os impedem de estava ainda fresca na memória
alcançá-la chamam seus inimi- dos homens quando Noé era
gos, etc. Deus mostrou, pois, o vivo, Deus fez suas promessas a
poder que tem de outorgar bens Abraão e, ainda na época de
invisíveis pelo que mostrara ter Sem, Deus mandou Moisés,
sobre os visíveis. etc., 6 6
*644 - Figuras - Deus, que- *645 - Figuras - Deus, que-
rendo criar um povo santo, que rendo privar os seus dos bens
separaria de todas as outras perecíveis para mostrar que isso
nações, que libertaria de seus ini- não era por impotência, fez o
migos, que situaria em lugar de povo judeu.
repouso, prometeu fazê-lo, e pre- *646 - A sinagoga não pere-
disse pelos profetas o tempo e a cia, porque era a figura (da igre-
maneira àe sua ocorrência. En- ja); mas, porque era apenas a
trementes, para fo rtalecer a espe- figura, caiu na servidão. A figura
rança de seus eleitos, mostrou- subsistiu até a verdade, a fim de
lhes a imagem disso em todos os que a Igreja fosse sempre visível,
tempos, sem os deixar jamais ou na pintura que a prometia, ou
sem provas de sua potência e de no efeito.
sua vontade quanto à salvação
deles. Porque, na criação do 1 6
s A passagem do singular (povo) para o
plural (subentendidos judeus) é do autor, o que
homem, Adão era a testemunha e de resto se verifica mais de uma vez em vários
o depositário da promessa do trechos. (N. do T .)
PENSAMENTOS 205

64 7 - Que a lei era figura- Quem quiser basear opinioes


tiva. extravagantes na Escritura pode-
648 - Dois erros: 1. 0 tudo rá fazê-lo, por exemplo, nisto:
tomar ao pé da letra; 2. 0 tudo está dito que "esta geração não
tomar espiritualmente. passará antes que tudo ocorra".
649 - Falar contra os figura- A isso responderei que após esta
tivos grandes demais. geração outra virá e assim suces-
*650 - Há figuras claras e sivamente.
demonstrativos; mas há outras Fala-se nos 2 Paralipôme-
que parecem um pouco menos nos1 6 8 de Salomão e de rei como
naturais e que só provam aos que se fossem duas pessoas diferen-
já estão persuadidos. Asseme- tes. Direi que eram duas.
lham-se estas às apocalípticas. 65 2 - Figuras particulares
Mas a diferença que há é que não - Dupla lei, duplas tábuas da
as têm como indubitáveis, de tal lei, duplo templo, duplo cativeiro.
modo que não há nada tão injus- 653 - Figuras - Os profe-
to como quando pretendem que tas profetizavam com figuras de
as suas sejam tão bem fundadas cinta, barba e cabelos queima-
como algumas das nossas; com dos, etc.
efeito, não as possuem demons- 654 - Diferença entre o jan-
trativas como algumas das nos- tar e a ceia.
sas. A partida não é, pois, igual. Em Deus a palavra não difere
É preciso não igualar e não con- da intenção, porque ele é verda-
fundir essas coisas, porque pare- deiro; nem a palavra do efeito,
cem ser semelhantes por uma porque é poderoso; nem os meios
extremidade, sendo tão diferentes do efeito, porque é sábio. Bem.,
pela outra; são as clarezas que ult. sermo in Missus 1 6 9 •
merecem, quando são divinas,
Agostinho, De Civ. Dei, 5, 10.
que se acatem as obscuridades.
Essa regra é geral: Deus pode
(É como aqueles entre os quais
tudo, com exceção das coisas
há certa linguagem obscura: os
que, se pudesse, não seria todo-
que não a entendessem só veriam
poderoso, como morrer, ser enga-
nisso um sentido tolo.)
nado e mentir, etc.
65 1 Extravagância dos
Muitos evangelistas para a
apocalípticos pré-adamitas, mile-
confirmação da verdade: sua des-
nários, etc. 1 6 7
semelhança útil.
1 s 1 Os apocalípticos são os que baseiam
1 68
suas predições no Apocalipse; os pré-ada- Ou 2 Crônicas. (N. desta edição.)
mitas, os que pretendem tenha havido homens 1 6 9O texto correto é Missus e não Missam,
antes de Adão; os milenários, os que se pois não se trata de um sermão de São Ber-
baseiam em um trecho do Gênese para dizer nardo sobre a missa e sim de um trecho de São
que o fim do mundo acontecerá mil anos de- Lucas em que o termo Missus (enviado) se
pois do nascimento de Jesus Cristo. aplica ao anjo Gabriel (São Lucas, 1,26).
206 . PASCAL

Eucaristia depois da Ceia: ver- 658 - As figuras do Evan-


dade depois da figura. gelho são corpos doentes para o
Ruína de Jerusalém: figura da estado da alma doente; mas, não
ruína do mundo, quarenta anos podendo um corpo ser bastante
depois da morte de Jesus Cristo. doente para bem exprimi-lo,
"Não sei" como homem, ou foram necessários muitos. Assim
como legado. São Marcos, 13, é que há o surdo, o mudo, o cego,
32. o paralítico, Lázaro morto, o
Jesus condenado pelos judeus possesso. Tudo isso junto se
e gentios. encontra na alma doente.
Os judeus e os gentios figura- *659 - Figuras Para
dos pelos filhos. Agost., De Civ. mostrar que o Velho Testamento
Dei, 20, 29. é apenas figurativo e que pelos
655 - As seis idades, os seis bens temporais os profetas enten-
pais das seis idades, as seis mara- diam outros bens, note-se:
vilhas à entrada das seis idades, Em primeiro lugar, que isso
os seis orientes, à entrada das seria indigno de Deus.
seis idades. Em segundo lugar, que os seus
656 - Adão forma futu- discursos exprimem muito clara-
ri1 70 • Os seis dias para formar mente a promessa dos bens tem-
um, as seis idades para formar a porais; e que eles dizem, todavia,
outra; os seis dias que Moisés que os seus discursos são obscu-
apresenta para a formação de ros e que o seu sentido não será
Adão são apenas as seis idades entendido, de onde parece que
para formar Jesus Cristo e a Igre- esse sentido não era o que eles
ja. Se Adão não tivesse pecado e exprimiam a descoberto e que,
Jesus Cristo não tivesse vindo, só por conseguinte, entendiam falar
teria havido uma aliança, uma só de outros sacrifícios, de outro
idade dos homens, e a criação libertador, etc. Dizem eles _que
teria sido representada como isso só será entendido no fim dos
feita em um só momento. tempos (Jeremias, 30, últ.).
A terceira prova é que os seus
657 - Figuras - Os povos
judeu e egípcio visivelmente pre- discursos são contrários e se des-
troem, de maneira que, se se
ditos por estes dojs casos que
pensa que não entenderam pelas
Moisés encontrou: o egípcio ba-
palavras lei e sacrifício outra
tendo o judeu, Moisés vingando
coisa além das de Moisés, há
este e matando o egípcio, e o
judeu sendo ingrato. contradição manifesta e grossei-
ra: portanto, entendiam outra
1 7
° Figura daquele que deve vir (São Paulo, coisa, contradizendo-se às vezes
Romanos. 5, 14) num mesmo capítulo.
PENSAMENTOS 207

Ora, para entender o sentido semelhantes aos cristãos, e muito


de um autor ... contrários. E por esse meio ti-
660 - A concupiscência tor- nham as duas qualidades que era
nou-se-nos natural;. e constituiu preciso que tivessem, de ser
nossa segunda natureza. Há, muito semelhantes ao Messias,
pois, duas naturezas em nós: uma para figurá-lo, e muito contrá-
boa, outra má. Onde está Deus? rios, para não serem testem.unhas
Onde não estais, e o reino de suspeitas ..
Deus está em vós. Rabinos. 664 - Figurativo - Deus
661 - Somente a penitência, serviu-se da concupiscência dos
entre todos os mistérios, foi ma- judeus para obrigá-los a servir a
nifestamente declarada aos ju- Jesus Cristo (que trazia o remé-
deus, por São João, precursor; e dio para a concupiscência).
depois os outros mistérios - *665 - A caridade não é um
para frisar que em cada homem preceito figurativo. Dizer que
como no mundo inteiro essa Jesus Cristo, que veio tirar as
ordem deve ser observada. figuras para pôr a verdade, só
*662 - Os judeus carnais teria vindo para pôr a figura da
não entendiam nem a grandeza caridade e tirar a realidade que
nem o rebaixamento do Messias existia antes, é horrível.
predito em suas profecias. Desco- "Se a luz são trevas, que serão
nheceram-no em sua grandeza, as trevas?"
como quando ele disse que o *666 - Fascínio. Somnum
Messias será senhor de Davi, em- suum. Figura hujus mundi. A
bora seu filho; que ele existe Eucaristia. Comedes panem
antes de Abraão e que este o viu. tuum. Panem nostrum.
Não o julgavam tão grande que Inimici Dei terram lingent, os
fosse eterno, e o desconheceram pecadores lambem a terra, isto é,
tanto no seu rebaixamento como amam os prazeres terrestres.
em sua morte. "O Messias", di- O Antigo Testamento continha
ziam eles, "permanece eterna- as figuras da alegria futura e o
mente, e este diz que morrerá." Novo contém os meios de alcan-
Não o julgavam, pois, nem mor- çá-la.
tal, nem eterno: só procuravam As figuras eram de alegria; os
nele uma grandeza carnal. meios de penitência; e no entanto
663 - Figurativo - Nada é o cordeiro pascal era comido
tão parecido com a caridade com alfaces selvagens, cum ama-
quanto a cupidez, e nada tão ritudinibus.
contrário. Assim os judeus, Singularis sum ego donec tran-
cheios dos bens que lhes acari- seam, Jesus Cristo antes de sua
ciavam a cupidez, eram muito morte era quase o único mártir.
208 PASCAL

667 - Figurativos Os Deus é que não tenhamos uma


termos espada, escudo. Potentis- nem outra. Há esta única dife-
sime 1 7 1 • rença entre essas duas coisas: é
668 - Só nos afastamos cer~o que Deus nunca quererá o
afastando-nos da caridade. Nos- pecado, ao passo que não é certo
sas preces e nossas virtudes são que não queira nunca a outra.
abomináveis diante de Deus, se Mas, enquanto Deus não a quer,
não são as preces e virtudes de devemos encará-la como pecado;
Jesus Cristo. E nossos pecados ao passo que a ausência da von-
não serão jamais objeto da lmi- tade de Deus, que é, só por si,
sericórdia] mas da justiça de toda a bondade e toda a justiça,
Deus, se não forem losj de Jesus torna-a injusta e má.
Cristo. Ele adotou nossos peca- 669 - Mudar de figura, por
dos e l aceitou-nos] como aliados, causa de nossa fraqueza.
porque as virtudes lhe são l pró- *670 - Os judeus tinham
prias e osj pecados estranhos, e envelhecido nesses pensamentos
nossos pe-cados nos são próprios. terrestres de que Deus amava o
Mudemos a regra que admiti- seu pai Abraão, a sua carne e o
mos até l aquij para julgar o que que dela saísse: que por isso os
é bom. Tínhamos por regra nossa multiplicara e distinguira de
vontade, tomemos agora a vonta- todos os outros povos, sem p_er-
de de lDeusj: tudo o que ele quer mitir que eles se misturassem
nos é bom e justo, tudo o que não com estes últimos; que, quando
quer lmau]. . languesciam no Egito, de lá os
Tudo o que Deus não quer é retirou com todos estes grandes
proibido. Os pecados são proibi- sinais em seu favor; que os nutriu
dos pela declaração geral que com o maná no deserto; que os
Deus fez de que não os queria. conduziu a uma terra bastante
As outras coisas que deixou sem fértil, que lhes deu reis e um tem-
proibição geral, e a que chama- plo bem construído para nele ofe-
mos por isso permitidas, não são, recerem animais, e que, por meio
entretanto, sempre permitidas. da efusão do seu sangue, seriam
Pois quando Deus afasta algu- purificados; e que lhes devia,
mas de nós, e que pelo mesmo enfim, enviar o Messias, para tor-
acontecimento que é manifesta- ná-los senhores de todo o mundo.
ção da vontade de Deus parece E predisse o tempo de sua vinda.
que Deus não quer que a tenha- Tendo o mundo envelhecido
mos, ela nos é proibida então nesses erros carnais, Jesus Cristo
como pecado, pois a vontade de veio no tempo predito, mas não
1 7 1
A explicação deste trecho decorre . clara- com o brilho esperado; e, assim,
mente do n. 0 7 60. eles não pensaram que fosse ele.
PENSAMENTOS 209

Depois de sua morte, São Paulo ao nosso único necessário. Com


veio ensinar aos homens que efeito, uma só coisa é necessária,
todas essas coisas tinham vindo e amamos a diversidade; e Deus
em figuras; que o reino de Deus satisfaz a uma e a outra por essas
não consistia na carne, mas no diversidades que levam ao único
espírito; que os inimigos dos ho- necessário.
mens não eram os babilônios, Os judeus amaram tanto as
mas as suas paixões; que Deus coisas figurantes e as esperaram
não se achava bem nos templos tanto que desconheceram a reali-
feitos pela mão do homem, mas dade quando ela veio no tempo e
no coração puro e humilhado; da maneira preditos.
que a circuncisão do corpo era Os rabinos tomam como figu-
inútil, mas que era ne·c essária a ras as mamas da esposa, e tudo o
do coração; que Moisés não lhes que não exprime o único objetivo
dera o pão do céu, etc. que têm, dos bens corporais. E os
Mas Deus, não querendo reve- cristãos tomam igualmente a Eu-
lar essas coisas a esse povo indig- caristia como figura da glória
no delas, querendo, todavia, pre- para a qual tendem.
dizê-las, a fim de que fossem *671 - Os judeus, que
cridas, predisse claramente o seu foram chamados a dominar as
tempo e algumas vezes as expri- nações e os reis, foram escravos
miu clara, mas abundantemente, do pecado; e os cristãos, cuja
em figuras, a fim de que os que vocação foi servir e submeter-se,
amavam as coisas figurantes são os filhos livres.
nelas se detivessem, e os que *672 - Para os formalistas
amavam as figuradas nelas as - Quando São Pedro e os após-
vissem. tolos deliberam abolir a circunci-
Tudo o que não convém à cari- são, em que se tratava de àgir
dade é figura. contra a lei de Deus, eles não
O único objetivo da Escritura consultam os profetas, mas sim-
é a caridade. Tudo o que não plesmente a recepção do Espírito
convém ao único fim é a figura Santo na pessoa dos incircun-
do fim. De fato, havendo apenas cisos. Julgam mais certo que
um fim, tudo o que não vai nessa Deus aprove os que impregna
direção em palavras próprias é com seu espírito do que seja
figurado. necessário observar a lei; sabiam
Deus diversifica assim esse que o fim da lei não era senão o
único preceito de caridade para Espírito Santo, e que assim, uma
satisfazer à nos~a curiosidade vez que o tinham sem circunci-
que procura a diversidade, por são, esta não era necessária.
essa diversidade que nós conduz *673 - Fac secundum exern-
210 PASCAL

piar quod tibi ostensum est in Porque a natureza é uma ima-


monte 1 12 • gem da graça e os milagres visí-
A religião dos judeus foi for- veis são imagens dos invisíveis.
mada sobre a aparência da ver- Ut sciatis. . . tibi dico: Surge.
dade do Messias, e a verdade do Isaías diz que a Redenção será
Messias foi reconhecida pela reli- como a travessia do mar Verme-
gião dos judeus, que era a sua lho.
figura. Deus mostrou, portanto, na
Entre os judeus, a verdade era saída do Egito, no mar, na derro-
apenas figurada. No céu, é desco- ta dos reis, no maná, em toda a
berta. Na lgrej a, é coberta e reco- genealogia de Abraão, que era
nhecida em relação à figura. A fi- capaz de salvar, de fazer cair o
gura foi feita sobre a verdade, e a pão do céu; de sorte que o povo
verdade foi reconhecida sobre a inimigo é a figura e a represen-
figura. tação do Messias que ignoram,
O próprio São Paulo diz que etc. '
algumas pessoas defenderão os Ensinou-nos, portanto, que
casamentos, ele mesmo fala aos todas as coisas eram apenas figu-
Coríntios de um modo que é uma ras e o que significa "realmente
ratoeira. Pois se um profeta hou- livre", "verdadeiro israelita",
vesse dito uma coisa e São Paulo, "verdadeira circuncisão", "ver-
em seguida, outra, tê-lo-iam acu- dadeiro pão do céu", etc.
sado. Nessas promessas, cada qual
674 - "Faze todas as coisas acha o que tem no fundo do cora-
segundo o padrão que te mostra- ção: os bens temporais ou os
ram na montanha." A respeito bens espirituais; Deus ou as cria-
disso, São Paulo diz que os ju- turas; mas, com a diferença de
deus pintaram as coisas celestes. que aqueles que nelas procuram
*675 - ... E todavia, esse
as criaturas as encontram, mas
Testamento, feito de tal forma
com várias contradições, com a
que, esclarecendo uns, cega ou-
proibição de amá-las, com ordem
tros, marcava, naqueles mesmos de só adorar um Deus e amar
que cegava, a verdade que devia somente a ele, o que é apenas a
ser conhecida pelos outros: por- mesma coisa; e que, enfim, não
que os bens visíveis, que rece- houve Messias para eles. Ao
biam de Deus, eram tão grandes contrário, os que procuram Deus
e tão divinos que bem parecia ter o encontram, sem nenhuma con-
ele o poder de lhes dar os invisí- tradição e com recomendação de
veis e um Messias. amar somente a ele, e veio um
1 72
Trabalha segundo o padrão que te foi Messias no tempo predito para
dado na montanha (Sinai) (Exodo, 25, 40). dar-lhes os bens que queriam.
PENSAMENTOS 211

Os judeus tinham milagres, ela foi a pintura; de fato, num


profecias, que viam realizar-se; e retrato, vê-se a coisa figurada.
a doutrina de sua lei era adorar e Para isso, basta que se examine o
amar apenas a um Deus; era que eles dizem a respeito.
igualmente perpétua. Assim ti- Quando dizem que será eterna,
nham todas as marcas da verda- pretendem eles falar da aliança,
deira religião; esta também o era. da qual dizem que será mudada?
Mas é preciso distinguir a dou- E assim também dos sacrifícios?
trina dos judeus da doutrina da etc.
lei dos judeus. Ora, a doutrina A ·cifra tem dois sentidos.
dos judeus não era verdadeira, Quando se surpreende -uma letra
embora tivesse milagres, profe- importante, na qual se acha um
cias e a perpetuidade, porque não sentido claro e na qual se diz,
possuía esse outro ponto de ado- contudo, que o sentido é velado
rar e amar somente a Deus. ou obscuro, que está oculto de
*676 - O véu que, para os maneira que se verá essa letra
judeus, existe sobre os livros da sem vê-la e que se entenderá sem
Escritura existe também para os entendê-la - que se deve, pois,
maus cristãos e para todos os que pensar, senão que é uma cifra de
não se odeiam a si mesmos. Mas duplo sentido, tanto mais quanto
como estamos bem dispostos a se descobrem nela contradições
entendê-los e a conhecer Jesus manifestas no sentido literal? Os
Cristo, quando odiamos verda- profetas disseram claramente que
deiramente a nós próprios! Israel seria sempre amado por
677 - Figura comporta au- Deus e que a sua lei seria eterna e
sência e presença, prazer e des- disseram que não se entenderia o
prazer. cifra tem duplo sentido: seu sentido e que este estava vela-
um claro e onde se diz que o sen- do. Quanto se deve, pois, estimar
tido se acha escondido. aqueles que nos descobrem a
*678 - Figuras - Um re- cifra e nos ensinam a conhecer o
trato traz ausência e presença, sentido oculto e, principalmente,
prazer e desprazer. A realidade quando os princípios que tomam
exclui a ausência e o desprazer. dela são inteiramente naturais e
Para saber se a lei e os sacrifí- claros! Foi o que fizeram Jesus
cios são realidade ou figura, é Cristo e os apóstolos. Tiraram o
preciso ver se os profetas, falan- selo, rasgaram o véu e desco-
do dessas coisas, nelas detinham briram o espírito. Ensinaram-
a sua vista e o seu pensamento, nos, assim, que os inimigos do
de maneira que só vissem nelas homem são as paixões; que o
essa antiga aliança, ou se viam Redentor seria espiritual e o seu
nelas alguma outra coisa de que reino espiritual; que haveria dois
212 PASCAL

adventos: um da miséria, para 681 - Figurativos - Chaves


rebaixar o homem soberbo, e da cifra: Veri adoratores. Ecce
outro da glória, para elevar o agnus Dei qui tollit peccata
homem humilhado; e que Jesus mundi 1 73 •
Cristo seria Deus e homem. 682 - Isaías, 1, 21. Transfor-
679 - Figuras Jesus mação do bem em mal e vin-
Cristo abriu-lhes o espírito para gança de Deus, 10, 1; 26, 20; 28,
que entendessem as Escrituras. 1. - Milagres: Isaías, 33, 9.19;
Duas grandes aberturas essas: 40, 17;41, 26;43, 13;/saías,44,
1. ª - todas as coisas lhes chega- 20-24; 54, 8; 63, 12-17; 61, 17.
vam em figuras: vere lsraelitae, Jeremias 2, 35; 4, 22-24; 5,
vere liberi, verdadeiro pão do 4.29-31; 6, 16.
céu; 2.ª - um Deus humilhado Jeremias, 11, 21; 15, 12; 17, 9:
até a cruz; foi preciso que Cristo Pravum est cor omnium et in-
sofresse para entrar na sua gló- crustabile, quis cognoscet illud?
ria: "que venceria a morte com a Isto é, quem lhe perceberia toda a
sua morte". Dois aconteci- malícia? Porque já se sabe que é
mentos. mau. Ego Dominus, etc. - 17,
*680 - Figuras - Uma vez 1-7: Faciam domui huic, etc. -
que se desvendou esse segredo, é Confiança nos sacramentos exte-
impossível não vê-lo. Leia-se o riores. - 22: Quia non sum
Velho Testamento nesse sentido e locutus, etc. O essencial não é o
veja-se se os sacrifícios eram sacrifício exterior. - 11, 13: Se-
verdadeiros, se o parentesco de cundum numerum, etc. Multidão
Abraão era a verdadeira causa de doutrinas. - 23, 15-17.
da amizade de Deus, se a terra *683 - Figuras - A letra
prometida era o verdadeiro lugar
mata; tudo vinha em figuras. Eis
de repouso. Não. Portanto, eram
a cifra que nos dá São Paulo. Era
figuras. Vejam-se, também, todas
preciso que Cristo sofresse. Um
as cerimônias ordenadas e todos
os mandamentos que não são Deus humilhado. Circuncisão do
pela caridade e ver-se-á que são coração, jejum verdadeiro, verda-
figuras. deiro sacrifício, verdadeiro tem-
Todos esses sacrifícios e ceri- plo. Os profetas indicaram que
mônias eram, portanto, figuras tudo isso devia ser espiritual.
ou tolices. Ora, há coisas claras e Não a carne que perece, mas a
elevadas demais para que se con- que não perece. "Vós sereis real-
siderem tolices. me livres." Logo, a outra
Saber se os profetas se ati- liberdade não passa de uma figu-
nham ao Antigo Testamento, ou 1
13 Eis o cordeiro de Deus que extingue os
viam nele outras coisas. pecados do mundo (João, 1, 29).
PENSAMENTOS 213

ra da liberdade. "Eu sou o verda- ras. Não poderíamos mesmo


deiro pão do céu." concordar as passagens de um
*684 - Contradição - Só mesmo autor, nem de um mesmo
podemos mostrar uma boa cara livro, nem às vezes de um capítu-
quando resolvemos todas as nos- lo. O que marca bem qual era o
sas contradições e não basta se- sentido do autor; como quando
guir uma seqüência de qualidades Ezequiel, capítulo 20, diz que se
acordes sem conciliar os contrá- viverá dentro dos mandamentos
rios; para entender o sentido de de Deus, e que não se viverá.
um autor, é preciso conciliar *685 - Figuras - Se a lei e
todas as passagens contrárias. os sacrifícios são a verdade, é
Assim, para .entender a Escri- preciso que ela agrade a Deus e
tura é preciso ter um sentido com não o aborreça em absoluto. Se
o qual todas as passagens contrá- são figuras, cumpre que agradem
rias se acordem. Não basta ter e aborreçam.
um que convenha a várias passa- Ora, em toda a Escritura agra-
gens acordes, mas é preciso ter dam e aborrecem. Está dito que a
um que concilie até as contrárias. lei será mudada, que o sacrifício
Todo autor tem um sentido no será mudado; que ficarão sem lei,
qual todas as passagens contrá- sem príncipe e sem sacrifício; que
rias se acordam, ou não tem sen- nova aliança será realizada; que
tido algum. Não se pode dizer a lei será renovada; que os pre-
isso da Escritura e dos profetas. ceitos recebidos não são bons;
Possuíam, certamente, muito que seus sacrifícios são abominá-
bom senso. É preciso, pois, pro- veis; que Deus não os pediu.
curar um sentido que ponha de Está dito, ao contrário, que a
acordo todas as contradições. lei durará eternamente, que essa
O verdadeiro sentido não é, aliança será eterna; que o sacri-
pois, o dos judeus; mas é em fício será eterno; que o cetro será
Jesus Cristo que todas as contra- sempre deles, pois não deve sair
dições são resolvidas. de seu seio enquanto não chegar
Os judeus não saberiam con- o Rei eterno.
cordar a cessação da realeza e do Todos esses trechos serão visi-
principado, predita por Oséias, velmente realidade? Não. Assi-
com a profecia de J acó. nalam também que sejam figu-
Se tomamos a lei, os sacrifí- ras? Não: é que serão realidade
cios e o reino pela realidade, não ou figura. Mas os primeiros,
podemos concordar todas as pas- excluída a realidade, mostram
sagens. É preciso, pois, por ne- que são apenas figuras.
cessidade, que sejam apenas figu- Todos esses trechos em con-
214 PASCAL

junto não podem ser realidade: mesma intenção por vós, porque
todos podem ser figura; logo, não tivestes para com ele a mesma
se apresentam como realidade, intenção que um homem tem
mas como figura. para com aquele a quem dá
Agnus occisus est ab origine perfumes.
· mundi 1 7 4 • Assim, iratus est, "Deus ciu-
686 - Contradições O mento", etc. Pois, como as coisas
cetro até o Messias - sem rei de Deus são inexprimíveis, não
nem príncipe. podem ser ditas de outro modo, e
Lei eterna - mudada. a Igreja ainda as usa hoje: Quia
Aliança eterna - nova alian- confortavit seras1 7 6 , etc.
ça. Não é permissível atribuir à
Leis boas - preceitos maus. Escritura o sentido que ela não
Ezequiel, 20. nos revelou possuir. Assim, dizer
*687 - Figuras - Quando que o mem 1 7 7 fechado de Isaías
a palavra de Deus, que é verda- significa seiscentos, não foi reve-
deira, é literalmente falsa, ela é lado. Ele teria podido dizer que
verdadeira espiritualmente. Sede os tsade finais e os he deficientes
a dextris meis 1 7 5 • Isso é falso significariam mistérios. Não é,
literalmente; logo, é verdadeiro pois, permitido dizê-lo e menos
espiritualmente. Nessas. expres- ainda que é a pedra filosofal.
sões, ele falou de Deus à maneira Mas nós dizemos que o sentido
dos homens; e isso significa ape- literal não é o verdadeiro, porque
nas que Deus terá a mesma inten- os próprios profetas o disseram.
ção que os homens, ao fazê-lo 688 - Não digo que o mem
sentar-se à sua direita. É, -pois, seja misterioso.
uma marca da intenção de Deus, 689 - Moisés (Deutero-
não da sua maneira de executá- nômio, 30) promete que Deus
la. circuncidará o coração deles,
Assim, quando diz: "Deus re- para torná-los capazes de amá-lo.
cebeu o odor dos vossos perfu- *690 - Uma frase de Davi,
mes e vos dará em recompensa ou de Moisés, como "que Deus
uma terra.fértil"; isto é, a mesma circuncidará os corações", faz
intenção que teria um homem 1 7 6
[Louva o Senhor, ó Jerusalém] porque fez
que, aceitando os vossos perfu- tuas portas instransponíveis (Salmo 147, 13).
mes, vos desse em recompensa 1 7 7 "Alusão a certas particularidades do alfa-

beto judeu, ou antes, da escrita: há letras que


uma terra fértil. Deus terá a se escrevem de duas maneiras, fechada ou
aberta, como o mem; ora, os manuscritos do
1 7 4
O cordeiro foi morto já no começo do livro de Isaías apresentam um mem fechado
mundo (Apocalipse, 13, 8). em vez de aberto, o que muda seu valor numé-
1 7 5
Senta-te à minha direita (Salmo 119). rico." (Brunschvicg.)
PENSAMENTOS 215

julgar do seu espírito. Que todos de Deus, e não uma terra fértil.
os outros discursos sejam equívo- Os que crêem que o bem do
cos e duvidosos de serem filóso- homem está na carne e o mal no
fos ou cristãos 1 7 8 , uma frase, que o desvia do prazer dos senti-
enfim, dessa natureza determina dos, fartem-se e morram disso.
todas as outras, como uma frase Mas os que procuram Deus de
de Epicteto determina todo o todo o coração, que só têm des-
resto, no sentido contrário. Até aí prazer em ser privado de sua
dura a ambigüidade, e não de- vista, que só sentem desejo para
pois. o possuir e só têm ·como inimigos
*691 - De duas pessoas que os que dele os desviam, que se
contam histórias tolas, uma com ·afligem por se verem cercados e
duplo sentido entendido na C a- dominados por tais inimigos -
bala, outra com um sentido ape- consolem-se, pois lhes anuncio
nas: se alguém, não sendo do uma nova feliz; há um libertador
segredo, ouvir discorrer as duas para eles; eu o mostrarei, eu lhes
dessa maneira, fará a respeito o revelarei que há um Deus para
mesmo julgamento, mas se, em eles; não o farei ver aos outros;
seguida, no resto do discurso, farei ver que foi prometido um
uma diz coisas angélicas e a Messias que livraria dos inimi-
outra coisas insossas e comuns, gos, e que veio um para livrar das
julgar-se-á que uma falava com iniqüidades, mas não dos inimi-
mistério e não a outra; uma, gos.
tendo mostrado bastante que é Quando Davi prediz que o
incapaz de tais tolices e capaz de Messias libertará o seu povo dos
ser misteriosa; e a outra, que é seus inimigos, podemos crer car-
incapaz de mistério e capaz de nalmente que se trata dos egíp-
tolices. O Velho Testamento é cios; e, então, eu não poderia
uma cifra. mostrar que a profecia se reali-
*692 - Há os que sabem zou. Mas podemos crer também
muito bem que não há outro ini- que se trata das iniqüidades; por-
migo do homem além da concu- que, na verdade, os egípcios não
piscência que o desvia de Deus, e são inimigos, mas as iniqüidades
não Deus; nem outro bem além o são. Essa palavra inimigos é,
pois, equívoca.
1 7 e Isto é: "que nos façam duvidar se são filó-
Mas, se ele diz, em outro lugar,
sofos ou cristãos". A palavra "filósofo" (ex-
plica Brunschvicg) refere-se menos a Davi' e a como o faz, que livrará o seu
Moisés do que a Epicteto. A alternativa, para povo dos seus pecados, tal como
Moisés, é entre a cupidez e a caridade; para Isaías e os outros, o equívoco
Epicteto, entre a religião natural e a revelação.
(N. do E.) desaparece e o sentido duplo de
216 PASCAL

inimigos reduz-se ao sentido sim- lava de inimigos, não era o


ples de iniqüidades: com efeito, mesmo que [o de] Moisés falan-
se ele tivesse no espírito os peca- do dos inimigos? Daniel, capí-
dos, bem podia designá-los por tulo 9, reza pela libertação do
inimigos, mas, se pensava nos povo do cativeiro dos seus inimi-
gos: mas pensava nos pecados e,
inimigos, não podia designá-los para mostrá-lo, diz que Gabriel
por iniqüidades. lhe comunicara que fora atendido
Ora, tanto Moisés como Davi e que só esperaria setenta sema-
e Isaías usavam os mesmos ter- nas, depois do que o povo seria
mos. Quem dirá, pois, que não ti- libertado da iniqüidade, o pecado
nham o mesmo sentido e que o teria fim e o libertador, o Santo
sentido de Davi, que é manifesta- dos santos, traria a justiça eterna,
mente de iniqüidades quando fa- não a legal, mas a eterna.
ARTIGO XI
As profecias

*693 - Vendo a cegueira e a esse Deus não teria deixado


miséria do homem, observando algum sinal de si.
todo o universo mudo, e o Vejo várias religiões contrá-
homem sem luz, abandonado a si rias, mas todas falsas, exceto
mesmo, e como que perdido neste uma. Cada qual quer ser acredi-
recanto do universo, sem saber tada por sua própria autoridade e
quem o pôs aqui, o que veio aqui ameaça os incrédulos. Não creio
fazer, o que se tornará ao morrer nelas; todos podem dizer isso,
e incapaz de qualquer conheci- todos podem dizer-se profetas.
mento, eu principio a ter medo Vejo, porém, a religião cristã, na
como um homem que tivesse sido qual encontro profecias; e é o que
levado dormindo para uma ilha nem todas podem fazer.
deserta e medonha e fosse desper- *694 - ... e o que coroa
tado sem saber onde se acha e tudo isso é a predição, para que
não se diga que foi feita por
sem meios de escapar. E, sobre
acaso.
isso, admiro como não se deses-
Todo aquele que, tendo apenas
pera por tão miserável estado.
oito dias de vida, não achar que a
Vejo outras pessoas perto de mim
solução é acreditar que tudo isso
com semelhante natureza: per- não se deve a um golpe do aca-
gunto-lhes se são mais instruídas so ... Ora, se as paixões não nos
do que eu e dizem-me que não: e, dominassem, oito dias e cem
sobre isso, esses miseráveis perdi- anos seriam a mesma coisa.
dos, tendo olhado ao redor e 695 - Profecias - O grande
visto alguns objetos agradáveis, a P ã morreu 1 7 9 •
eles se entregaram e se ligaram.
1 7 9 Plutarco, no seu tratado de Cessação dos
Quanto a mim, não pude entre-
Oráculos, relata que um certo Tamus, que
gar-me nem ligar-me, e, conside- viveu no tempo de Tibério, teria ouvido gritar:
rando quanta aparência há de "O grande Pã morreu!" Pã, em virtude de uma
etimologia errônea, simbolizava o Grande
que existe outra coisa além do Todo; era, pois, a morte do paganismo que a
que vejo, tratei de descobrir se voz anunciava.
218 .PASCAL

696 - Susceperunt verbum duque extraído da coxa e a quar-


cum omni aviditate, scrutantes ta monarquia. Como se é feliz
Scripturas, si ita se haberent 180 • por ter essa luz em tal obscuri-
697 - Prodita lege. - lmple- dade!
ta cerne. - lmplenda collige 1 81 • Como é belo ver, com os olhos
698 - Só entendemos as pro- da fé, Dario e Ciro, Alexandre,
fecias quando vemos aconte~ os romanos, Pompeu e Herodes,
cerem as coisas; assim, as provas todos agindo, sem o saber, em
do retiro e da discrição, do silên- prol da glória do Evangelho 1 83 •
cio, etc ... só se provam àqueles 702 - Zelo do povo judeu
que as sabem e nelas crêem. pela sua lei, principalmente de-
José tão interior numa lei tão pois que não houve mais profe-
exterior. tas.
As penitências exteriores pre- 703 - Enquanto os profetas
param para as interiores, como a mantiveram a lei, o povo foi
humilhação dispõe para a humil- negligente; mas, depois que não
dade. Assim as ... tiveram mais profetas, tom a-
699 - A Sinagoga precedeu a ram-se zelosos.
Igreja; o~ judeus precederam os 704 - O diabo perturbou o
cristãos; os profetas predisseram zelo dos judeus antes de Jesus
os cristãos, São João, Jesus Cris- Cristo, porque ele lhes seria salu-
to. ta:r, mas não depois.
700 - É belo ver, com os O povo judeu, zombado pelo
olhos da fé, a história de Hero- gentio; os cristãos perseguidos.
des, de César. 705 - Prova - Profecias
*701 - O zelo dos judeus com sua realização; o que prece-
pelo rei e pelo templo (Josefa e deu Jesus Cristo e o que se lhe
Filon judeu, ad Caium). Que seguiu.
outro povo teve igual zelo? Era *706 - A maior das provas
preciso que o tivessem ... 1 8 2 de Jesus Cristo são as profecias.
Jesus Cristo predito quanto ao É também aquela para a qual
tempo e ao estado do mundo: o Deus mais atentou. Com efeito, o
acontecimento que as cumpriu é
18 0
Examinaram a palavra com toda a avi- um milagre subsistente desde o
dez, escrutando as Escrituras para verificar se
era assim (A tos dos Apóstolos, 17, 11 ).
181 Lê o que foi anunciado. - Vê o que foi 1 8 3 Esta reflexão constitui, até certo ponto, o

cumprido. - Recolhe o que está por se tema desenvolvido por Bossuet na terceira
cumprir. parte do Discurso sobre a História Universal.
1 ª 2 Filon, o judeu, filósofo; 30 a.e. a 40 d.C., Mas se cabe elogiar o movimento e a energia
deixou numerosos tratados em que mistura as da frase, é exagerado dizer que Bossuet se ins-
doutrinas da Escritura Santa com as da filoso- pirou em Pascal: a idéia, bem anterior a um e
fia grega e oriental. outro, está na tradição cristã. ·
PENSAMENTOS 219

nascimento da Igreja até o fim. antes que o Segundo Templo


Deus suscitou profecias durante fosse destruído.
mil e seiscentos anos; e, durante *710 - Profecias - Ainda
quatrocentos anos depois, disper- que um só homem tivesse feito
sou todas essas profecias, com um livro das predições de Jesus
todos os judeus que as carrega- Cristo, pelo tempo e pela manei-
vam, em todos os lugares do ra, e Jesus Cristo viesse de acor-
mundo. Eis qual foi a preparação do com essas profecias, já seria
do nascimento de Jesus Cristo: isso uma força infinita. Mas há
como o seu Evangelho devia ser bem mais. É uma série de ho-
acreditado por toda gente, foi mens, durante quatro mil anos,
preciso não só que houvesse pro- que, constantemente, e sem varia-
fecias para que nele acreditassem ção, vêm, um após outro, predi-
mas, ainda, que as profecias se zer esse mesmo acontecimento. É
espalhassem pelo mundo para um povo inteiro que o anuncia e
que todo o mundo o abraçasse. que subsiste durante quatro mil
707 - Mas não bastava que anos, para dar de corpo presente
houvesse as profecias; era preci- testemunho das afirmações que
so que se distribuíssem por toda têm dele, e do qual não podem
parte e se conservassem tempos ser desviados por algumas amea-
afora. E, para que não se enca- ças e perseguições que se lhes
rasse isso como efeito do acaso, façam. Isso é muito mais consi-
precisava ter sido predito. derável.
Há maior glória para o Mes- 711 - Predição ·das coisas
sias em que eles sejam os espec- particulares - Eles eram estran-
tadores e mesmo os instrumentos geiros no Egito, sem nenhuma
da sua glória, além do que Deus propriedade própria, nem nesse
os reservou. país nem alhures. l Não havia a
708 - Profecias - O tempo, menor aparência nem da realeza,
predito pelo estado do povo que aí houve tanto tempo depois,
judeu, pelo estado do povo nem desse conselho soberano dos
pagão, pelo estado do templo, setenta juízes a que chamavam
pelo número dos anos. sinedrim e que, tendo sido insti-
*709 - É preciso ser ousado tuído por Moisés, durou até a
para predizer uma mesma coisa época de Jesus Cristo: todas
de tantas maneiras. Era preciso essas coisas estavam tão longe do
que as quatro monarquias idóla- seu estado presente quanto o po-
tras ou pagãs, o fim do reino de diam estar] quando J acó, agoni-
Judá e as setenta semanas ocor- zante e abençoando seus doze
ressem ao mesmo tempo, tudo filhos, lhes declara que serão
220 PASCAL

donos de uma grande terra, e pre- levem seus ossos com eles quan-
diz, particularmente à família de do partirem para aquela terra
Judá, que os reis que os governa- onde só chegaram duzentos anos
riam um dia sairiam de sua raça depois.
e que todos os seus irmãos se- Moisés, que escreveu essas coi-
riam súditos e que o próprio sas muito antes que ocorressem,
Messias esperado pelas nações divide ele próprio a terra entre as
nasceria dele e que a realeza não diversas famílias antes de nela
seria tirada de Judá, nem o entrar, como se fosse dono e
governador e o legislador de seus declara enfim que Deus deverá
descendentes, até que o Messias suscitar de sua nação e de sua
esperado chegasse à sua família] . raça um profeta, de que foi a
Esse mesmo J acó, dispondo imagem, e lhes prediz exatamente
dessa terra futura como se fosse tudo o que devia acontecer na
senhor dela, deu uma parte maior terra onde iam entrar depois de
a José: "Dou-vos uma parte a sua morte, as vitórias que Deus
mais do que a vossos irmãos". E lhes daria, sua ingratidão, os cas-
abençoando os dois· filhos, tigos que receberiam e suas de-
Efraim e Manassés, que José lhe mais aventuras . Dá-lhes os árbi-
apresentara, o mais velho, Ma- tros que farão a divisão,
nassés, à direita, e o jovem prescreve-lhes a forma de gover-
Efraim à esquerda, pôs os braços no político a que obedecerão, as
em cruz e, pousando a mão direi- cidades-refúgio que construirão
ta sobre a cabeça de Efraim e a e ...
esquerda sobre a de Manassés, 712 - Profecias misturadas
assim os abençoou; e ao dizer-lhe com coisas particulares, e as do
José que prefere o mais jovem, Messias, a fim de que as profe-
responde-lhe com admirável se- cias do Messias não ficassem
gur~nça: "Bem o sei, meu filho, sem provas e as particulares sem
mas Efraim crescerá de outro fruto.
modo que Manassés". (O que foi, 713 - Cativeiro dos judeus
com efeito, tão verdadeiro, que sem retorno. Jeremias, 11, 11:
sendo, sozinho, quase tão abun- "Farei que caiam sobre Judá
dante quanto as duas linhagens males de que nunca se livrarão".
inteiras que constituíam todo um Figuras - Isaías, 5: "O Se-
reino, foram estas comumente nhor teve uma vinha de que espe-
designadas pelo nome de rava uvas e ela só produziu agra-
Efraim.) ço. · Dissipá-la-ei, pois, e a
Esse mesmo José, ao morrer, destruirei; somente espinhos dará
recomenda a seus filhos qu~ a terra e eu proibirei ao céu que
PENSAMENTOS . 221

nela [chova]. A vinha do Senhor sábio e que possa ler dirá: ·Não o
é a casa de Israel e os homens seu posso ler porque está selado; e os
· germe · deleitável. Esperei que co- que não sabem ler dirão: Não
metessem ações justas, mas só conheço as letras.
perpetram iniqüidades". "E o Senhor disse-me: Porque
Isaías, 8: "Santificai o Senhor, esse povo me honra com os lá-
com Tespeito e temor; não temais bios mas com o coração longe de
senão a ele e ele será para vós mim (eis a razão e a causa, pois
motivo de santificação; mas ele se adorassem com o coração
será pedra de escândalo e de tro- entenderiam as profecias) e só me
peço para as duas casas de Israel, serviu por vias humanas; por
de armadilha e ruína para o povo essa razão acrescentarei ao resto
de Jerusalém; e muitos hão de se uma coisa maravilhosa e um
chocar contra essa pedra e cai- grande e terrível prodígio; e pere-
rão, e serão quebrantados, e pre- cerá a sabedoria de seus sábios e
sos a essa armadilha virão a fale- sua inteligência ficará obscure-
cer. Ponde um véu em minhas cida."
palavras, cobri a lei para meus Profecias. Provas de divindade
. discípulos. Esperarei, pois, com - Isaías, 41: "Se sois deuses,
paciência o Senhor que se vela e aproximai-vos, anunciai as coi-
se esconde na casa de J acó". sas futuras e pôr-nos-emos a
Isaías, 29: "Pasmai e admirai- escutá-las de todo coração. Ensi-
vos, povo de Israel, flutuai e vaci- nai-nos as coisas que foram no
lai; embriagai-vos, mas não de princípio e _profetizai-nos as que
vinho; cambaleai, mas não de devem vir. Assim saberemos que
embriaguez, porque Deus vos sois deuses. Fazei-o bem ou mal,
preparou um espírito de adorme- se puderdes. Vejamos, pois, e
cimento; ele vos vendará os .o lhos raciocinemos juntamente. Mas
e obscurecerá vossos príncipes e vós não sois nada, sois apenas
profetas que têm visões. (Da- abominações", etc. Quem dentre
niel, 12: "Os maus não o enten- vós nos instrui (por autores con-
derão, mas os que estiverem temporâneos) · das coisas feitas
· instruídos entendê-lo-ão". desde o princípio e a origem? A
Oséias, último capítulo, último fim de que lhe digamos: Sois o
versículo, após muitas bençãos justo. Não existe quem nos ensi-
temporais, diz: "Onde está o ne, ou nos prediga o futuro.
sábio? E ele entenderá essas coi- Isaías, 42: "Eu, que sou o
sas", etc.) E as visões de todos os Senhor, não comunico minha
profetas serão para vós como um glória a outros. Fui eu que man-
livro selado, do qual o homem dei predizer as coisas ocorridas e
222 PASCAL

que predisse ainda as que virão. cerei vossos crimes: pois, para
Cantai-as em um novo cântico a vós, rememorai vossas ingrati-
Deus pela terra toda. dões e vede se tendes com que
"Trazei-me aqui esse povo que vos justificar. Vosso primeiro pai
tem olhos e não vê, que tem ouvi- pecou e vossos doutores foram
dos e é surdo. Que as nações se todos prevaricadores".
juntem todas. Qual delas - e Isaías, 44: "Eu sou o primeiro e
seus deuses - vos instituirá o último, disse o Senhor, quem se
acerca das coisas passadas e igualará ·a mim? Que conte a
futuras? Que apresentem suas ordem das coisas desde que eu
testemunhas para sua justifica- formei os primeiros povos e
ção; ou que me escutem e confes- anuncie o que deve acontecer.
sem que a verdade está aqui. Sois Não temais nada; não vos fiz
minhas testemunhas, disse o Se- entender todas essas coisas? Vós
nhor, vós e o servo que escolhi, a sois minhas testemunhas".
fim de que me conheçais e que Predição de Ciro - Isaías 45,
acrediteis que sou o que sou. 4: "Por causa de J acó que esco-
"Predisse, salvei e fiz sozinho lhi, chamei-te pelo teu nome".
essas maravilhas que vedes; sois Isaías, 45, 21: "Vinde e discu-
as minhas testemunhas da minha tamos. Quem fez ouvir isto desde
divindade, disse o Senhor. Fui eu o princípio? Quem o predisse?
quem, por amor a vós, quebrou Não sou eu o Senhor?"
as forças dos babilônios; fui Isaías, 46:· "Lembrai-vos dos
quem vos santificou e vos criou; primeiros séculos; nada existe
fui eu quem vos fez passar atra- semelhante a mim. Eu sou o que
vés das águas e do mar e das tor- anuncia desde o começo as coi-
rentes, e quem submergiu e des- sas que devem chegar no fim,
truiu para sempre os inimigos dizendo a origem do mundo.
poderosos que vos resistiram. Meus decretos subsistirão e todas
Mas esquecei essa proteção e não as minhas vontades serão cum-
deiteis mais os olhos sobre as pridas".
coisas do passado. Isaías, 42: "As primeiras coi-
"Eis que preparo novas coisas sas cumpriram-se como tinham
que em breve hão de aparecer; sido preditas e eis que agora pre-
vós as vereis: tornarei os desertos digo outras e vo-las anuncio
habitáveis e deliciosos. Eu formei antes que ocorram".
esse povo, estabeleci-o para que Isaías, 48, 3: "Fiz predizerem
cantasse em meu louvor", etc. as primeiras e as cumpri em
"Mas é para mim mesmo que seguida; e elas aconteceram da
apagarei vossos pecados e esque- maneira que eu disse, pois sei que
PENSAMENTOS 223

sois duros, que vosso espírito é vossas iniqüidades e as de vossos


rebelde e vossa fronte impudente; pais e vos retribuirei segundo as
eis por que quis anunciá-las antes vossas obras.
do acontecimento, a fim de que "O Senhor disse assim: por
não possais dizer que foi obra de amor de meus servos, não des-
vossos deuses e efeito da vontade truirei todo Israel; preservarei al-
deles. guns assim como se guarda um
"Vêde ocorrer o que foi predi- bago de um cacho, dizendo: não
to. Não o contareis? Agora anun- o arranquei porque é bênção [e
cio-vos coisas novas que con- promessa de frutoJ . Assim os
servo em meu poder e que não escolherei de J acó e Judá para
vistes ainda; só agora as preparo possuírem minhas montanhas,
e não de há muito; eu vo-las que meus eleitos e servos recebe-
escondi com receio de que vos ram de herança, e meus campos
vangloriásseis de tê-las previsto férteis e admiravelmente abun-
vós mesmos. Pois não tendes ne- dantes; mas exterminarei todos
nhum conhecimento disso, e nin- os outros, porque esquecestes
guém vos falou disso, e vossos vosso Deus para servir a deuses
ouvidos nada ouviram. Eu vos estrangeiros. Chamei-vos e não
conheço; sei que sois cheios de me respondestes; falei e não
prevaricação, que vos dei o nome ouvistes e escolhestes o que eu
de prevaricadores desde os pri- proibira.
meiros tempos de vossa origem". "É por isso que o Senhor diz
Reprovação dos judeus e con- estas coisas. Eis: meus servos
servação dos gentios - Isaías, comerão e vós tereis fome; meus
65: "Buscaram-me os que antes servos exultarão de alegria e vós
não perguntavam por mim; acha- ficareis na confusão; meus servos
ram-me os que não me busca- cantarão cânticos de louvores
.vam. E eu disse: eis-me aqui, eis- pela alegria de seu coração e vós
me aqui para o povo que não dareis gritos ·de dor pela aflição
invocava o meu nome. Estendi de vosso espírito.
minhas mãos um dia inteiro a um "E deixareis vosso nome em
povo incrédulo, que segue seus abominação a meus eleitos. O Se-
desejos e anda por mau caminho, nhor vos exterminará e nomeará
um povo que me provoca sem seus servos por outro nome no
cessar com os crimes que comete qual quem for abençoado sobre a
em minha presença, que imola ví- terra o será em Deus, etc., porque
tima aos ídolos, etc. Esse será as primeiras dores terão sido
dissipado em fumaça no dia de esquecidas. Crio novos céus e
minha cólera, etc. Juntarei as uma nova terra e as coisas passa-
224 PASCAL

das não serão mais lembradas e dade; andamos como cegos apal-
não virão mais à mente. pando as paredes; tropeçamos
"Mas exultareis para sempre em pleno meio-dia como na noite
nas coisas novas que eu crio, pois e como mortos em lugares tene-
crio Jerusalém que não é senão brosos.
alegria, e seu povo, exultação. E "Rugiremos todos como ursos,
hei de comprazer-me em Jerusa- gemeremos como pombas.
lém e em meu povo e não se ouvi- Aguardamos a justiça e ela não
rão mais aí gritos de dor. vem; esperamos a salvação e ela
"E eu os escutarei antes que se afasta de nós".
bradem; eu os ouvirei, mal tive- Isaías, 66, 18: "Mas virei reco-
rem começado. O lobo e o cor- lher as obras· deles e seus. pensa-
deiro apascentarão juntos, o leão mentos quando os juntar com
e o boi comerão a mesma palha, todas as nações e povos e eles
a serpente só comerá pó e não verão minha glória. E eu lhes
haverá homicídio ou violência imporei um sinal, e dos que se
em todo o meu santo monte". salvarem ·m andarei alguns às na-
Isaías, 56, 3: "Eis aqui, disse o ções da África, da Lí.dia e da Itá-
Senhor·: guardai o direito e fazei lia, da Grécia e aos povos que
justiça, porque perto está a não ouviram falar de mim e que
minha salvação e minha justiça não viram minha glória. E eles
vai ser revelada. Bem-aventurado trarão vossos irmãos".
quem assim faz, observa o meu Jeremias, 7: Reprovação do
sábado e guarda as mão·s para templo: "Ide ao meu lugar em
não obrar mal nenhum. Silo, onde habitou o meu nome
"E que os estrangeiros que a desde o princípio, e vede o que aí
mim se unam não digam: Deus fiz por causa dos pecados do meu
me separará de seu povo, pois o povo. E agora, diz o Senhor, por-
Senhor diz isto: a quem quer que que cometestes os mesmos cri-
guarde o sábado e eleja o que eu mes, farei ~este templo em que
quis e abrace minha aliança, meu nome é invocado, e no qual
darei lugar em minha casa e um confiais e que eu mesmo dei a
nome melhor do que o que dei a vossos sacerdotes, a mesma coisa
meus filhos: será um nome eter- que fiz em Silo (pois eu o rejeitei
no, que não perecerá". e fiz templo alhures). E eu vos
Isaías, 159, 9: "Foi por causa lançarei longe de minha face,
de nossos crimes que a justiça se como lancei a vossos irmãos, fi-
afastou de nós. Esperamos a luz e lhos de Efraim (sem retorno).
só achamos trevas; esperamos a Não oreis por esse povo".
claridade e andamos na obscuri- Jeremias 7, 22: "Para que jun-
PENSAMENTOS 225

tar sacrificio ao sacrificio? No mas como? Louvando-lhes a


dia em que tirei vossos pais do concupiscência e dando-lhes a
Egito, não lhes falei de sacrificios esperança de realizá-la.
nem de holocaustos; não lhes dei 715 - Profecias - Amós e
ordem nenhuma e o preceito que Zacarias: Venderam o justo e por
lhes propus foi desta ordem: sede isso nunca mais serão chamados ..
obedientes e fiéis aos meus man- Jesus Cristo traído.
damentos, e eu serei vosso Deus e Não se recordará mais o
vós sereis o meu povo". (Foi Egito; vide Isaías, 43, ·
somente depois que sacrificaram 16-17-18-19; Jeremias, 23, 6-7.
ao bezerro de ouro que me ofere- Profecias - Os judeus serão
ci sacrificios, para fazer de um espalhados por toda parte.'Jsaías,
mau costume um bem.) 27, 6. - Nova lei. Jeremias, 31,
Jeremias, 7, 4: "Não ponhais 32.
vossa confiança nas palavras de
Malaquias, Grotius - O se-
mentira dos que vos dizem: o
gundo templo glorioso. Jesus
templo do Senhor, o templo do
Cristo virá. Ageu, 2 7-8-9~ 10.
Senhor, este templo é do Se-
Vocação dos gentios. Joel, 2,
nhor".
28. Oséias, 2, 24. Deuteronômio,
714 - Judeus testemunhas 32, 21. Malaquias, 1, 11.
de Deus. Isaías, 43, 9; 44, 8. Pro-
fecias cumpridas. 2 Reis, 13, 2. 716 - Oséias, 3. - Isaías,
4 Reis, 23, 16. - Josué, 6, 42; 48; 54; 60; 61 e último: "Eu
26. - 3 Reis, 16, 34. Deutero- o predisse há muito tempo a fim
nômio, 23 - Malaquias, 1, 11. de que saibam quem sou eu".
O sacrificio dos judeus repro- J addus a Alexandre.
vado e o sacrificio dos pagãos 717 - lProfecias - Jura-
(mesmo fora de Jerusalém) e em mento que Davi terá sempre
todos os lugares. sucessores, Jeremias.j
Moisés prediz a vocação dos 718 - O reinado eterno da
gentios antes de morrer, Deutero- raça de Davi, 2 Crônicas, por
nômio, 32, 21, e a reprovaçao todas as profecias e com jura-
dos judeus. mento. E não é cumprido tempo-
Moisés prediz o que deve ralmente: Jeremias, 23, 20.
acontecer a cada tribo. 719 - Poder-se-ia talvez
Profecias - "Vosso nome pensar que, quando os profetas
será execrado pelos meus eleitos predisseram que o cetro não sai-
e eu lhes darei outro nome." ria de Judá até o rei eterno, te-
"Endurece-lhes o coração", riam falado para adular o povo e
226 _PASCAL_

que sua profecia se acharia des- quando uma pedra foi arrancada
mentida com Herodes. Mas para de um monte sem intervirem
mostrar que não é esse o sentido mãos de homem, a qual feriu a
delas (profecias), e que bem sa- estátua nos seus pés de ferro e
biam ao contrário que esse reino barro e os fez em pedaços.
temporal devia cessar, dizem que "E, então, desfizeram-se em pó
eles (os judeus) ficariam sem rei e o ferro, a terra, o bronze, a prata
sem príncipe, e durante longo e o ouro, e dissiparam-se no ar;
tempo (Oséias, 3, 4). mas esta pedra, que atingiu a
*720 - Non habemus regem estátua, transformou-se numa
nisi Caesarem. Logo, Jesus Cris- grande montanha e encheu toda a
to era o Messias, posto que só ti- terra; eis qual foi o vosso sonho,
nham um rei estrangeiro e não e agora vos darei a interpretação.
queriam outro. "Vós, que sois o maior dos reis
721 - Não temos outro rei e a quem Deus deu um poder tão
senão César. extenso que sois temido de todos
722 - Daniel, 2: "Todos os os povos, vós sois representado
vossós adivinhos e sábios não pela cabeça de ouro que vistes.
podem descobrir o mistério do Mas outro império sucederá ao
que perguntais. Mas há um Deus vosso e não será tão poderoso; e
no céu, que o pode e vos revelou outro virá a seguir, de cobre, que
em vosso sonho as coisas que se estenderá pelo mundo inteiro.
devem acontecer ultimamente. "Mas o quarto será forte como
(Era preciso que esse sonho · o o ferro, e, assim como o ferro
interessasse de verdade.) quebra e traspassa todas as coi-
"Não foi por minha própria sas, esse império tudo quebrará e
ciência que tive conhecimento esmagará. E o fato, que vistes, de
desse segredo, mas pela revela- serem os pés e as extremidades
ção desse mesmo Deus, que ma dos pés formados de ferro e
descobriu a fim de torná-la mani- barro, significa que esse império
festa ~m vossa presença. será dividido e participará em
"Eis, pois, vosso sonho. Vistes parte da fortaleza do ferro e em
uma grande estátua, alta e terrí- parte da fragilidade do barro.
vel, de pé diante de vós: a cabeça Mas como o ferro não pode
era de ouro, o busto e os braços aliar-se solidamente ao barro,
de prata, o ventre e as coxas de assim os que são representados
cobre. As pernas eram de ferro pelo ferro e pelo barro não pode-
- mas os pés feitos de uma mis- rão ter aliança duradoura embo-
tura de ferro e barro (argila). Vós ra unidos por matrimônios.
a contempláveis atentamente "Ora, será nos dias desses
PENSAMENTOS 227

monarcas que Deus suscitará um saírem desse corno partido qua-


reino que nunca será destruído, tro outros significa que quatro
nem passará a outro povo. Antes ·reis desta nação lhe sucederão,
dissipará e consumirá todos os mas não de igual poder. Ora, no
outros reinos e ele mesmo subsis- declínio desses reinados, quando
tirá para sempre, como se revela as iniqüidades tiverem crescido,
por essa pedra que, não tocada surgirá um rei, insolente e forte,
por mão de homem,- rolou da mas de força exterior a ele, e que
montanha e quebrou o ferro, o fará o que quiser; espalhará a
barro, a prata e o ouro. Eis o que desolação no meio do povo santo
Deus vos revelou das coisas por e,tendo êxito em seus empreendi-
acontecerem nos tempos futuros. mentos, graças a um espírito
Esse sonho é verdadeiro e fiel é dúbio e enganador, matará mui-
sua interpretação. tos e se erguerá afinal contra o
"Então N abucodonosor pros- príncipe dos príncipes, e morrerá
trou o rosto em terra", etc. desgraçado sem a intervenção, no
Daniel, 8, 8: "Daniel tendo entanto, de mão violenta' ".
visto o combate do carneiro e do Daniel, 9, 20: "Como orasse
bode que o venceu, e dominou a de todo coração e, tendo confes-
terra, e tendo caído seu grande sado meu pecado e o do meu
corno, quatro outros dele saíram povo, me prosternasse diante de
voltados para os quatro ventos Deus, eis que Gabriel, que eu vira
do céu; e de um desses cornos em visão desde o início, veio a
saiu ·outro pequenino corno que mim, tocou-me na hora do sacri-
cresceu em direção ao sul, ao fício das vésperas e, dando-me
oriente e às terras de Israel, e se inteligência, disse-me: 'Daniel, eu
ergueu contra o exército do céu, vim para tornar-vos acessível o
derrubou as estrelas e as pisou conhecimento das coisas. Desde
aos pés, abateu o Príncipe e fez o início de vossas preces eu vim
cessar o sacrifício perpétuo e dei- para descobrir-vos o que desejais,
xou desolado o Santuário. porque sois o homem dos dese-
"Eis o que viu Daniel. Buscava jos. Ouvi, pois, a palavra e entrai
a explicação quando uma voz se na inteligência da visão. Setenta
elevou: 'Gabriel, faze-lhe enten- semanas são prescritas e determi-
der essa visão'. E Gabriel disse: nadas a vosso povo e a vossa ci-
'O carneiro que vistes é o rei dos dade santa para expiarem o
medos e dos persas; o bode, o rei crime, porem fim aos pecados,
dos gregos, e o grande corno que abolirem a iniqüidade, introdu-
trazia entre os olhos, o primeiro zirem a justiça eterna, realizarem
rei desta monarquia. E o fato de as visões e as profecias e ungirem
228 PASCAL

o Santo dos santos. (Depois do naçao, a qual se espalhará e


que esse povo não será mais o durará sobre esses mesmos que
vosso povo, nem essa a cidade se espantarão até a consuma-
santa. O tempo da ira terá passa- ção' ".
do, os anos de graça virão para Daniel, 11: "O anjo disse a
sempre.) Daniel: Haverá, ainda (depois de
'Ouvi, pois, e entendei. Desde Ciro, sob o qual isto ainda se
o momento em que for proferida passa), três reis da Pérsia (Cam-
a palavra para restabelecer e ree- bises, Smerdis, Dario) e o quarto,
dificar Jerusalém, até o príncipe que virá em seguida (Xerxes),
Messias, decorrerão sete semanas será mais poderoso em riquezas e
e sessenta e duas semanas. (Os forças e erguerá todos os seus
hebreus estavam acostumados a povos contra os gregos.
dividir os números e a apresentar "Mas surgirá um poderoso rei
o pequeno em primeiro lugar; (Alexandre) cujo império terá
esses sete e sessenta e dois fazem, enorme extensão e que terá êxito
portanto, sessenta e nove; das em todos os seus empreendi-
setenta resta, pois, a septuagé- mentos. Mas, quando a monar-
sima, isto é, os sete últimos anos quia estiver estabelecida, perece-
de que falará a seguir.) rá e será dividida em quatro
'Depois que a praça e os partes voltadas par~ os quatro
muros forem edificados em um ventos do céu (como fora dito
tempo de perturbações e aflições antes, 6, 6; 8, 8), não porém com
e depois dessas sessenta e duas gente de sua raça; e seus sucesso-
semanas (que terão seguido as res não o igualarão em poder,
sete primeiras. Cristo será morto, porque esse mesmo reino será
pois, após as sessenta e nove dispersado e entregue a outros
semanas, isto é, na última sema- que não esses (os quatro princi-
na), Cristo será morto e um povo pais).
virá, com seu príncipe, que des- "E o sucessor que reinar no sul
truirá a cidade e o santuário, e (Egito, Ptolomeu, filho de Lagos)
inundará tudo; e o fim dessa será poderoso; mas outro o domi-
guerra consumará a desolação. nará e seu Estado será um grande
'Ora, uma semana (que é a Estado (Seleuco, rei da Síria.
septuagésima restante) estabele- Apiano diz-nos que é o mais
cerá a aliança com muitos, e poderoso dos sucessores de Ale-
mesmo a metade da semana (os xandre).
últimos três anos e meio) abolirá "E com o correr dos anos
o sacrifício e a hóstia, tornará aliar-se-ão; e a filha do rei do sul
espantosa a extensão da abomi- (Berenice, filha de Ptolomeu Fila-
PENSAMENTOS 229

delfo, filho do outro Ptolomeu) milhares de homens, mas a vitó-


virá ao rei do Aquilão (Antíoco ria não será decisiva, porque o rei
II, rei da Síria e da Ásia, sobri- do Aquilão (Antíoco Magno)
nho de Seleuco Lagidas) para voltará com forças, maiores
estabelecer a paz entre os prínci- ainda que da primeira vez, e
pes. então grande número de inimigos
"Mas nem ela nem seus des- se erguerá contra o rei do sul (o
cendentes terão autoridade dura- jovem Ptolomeu Epifânio) e até
doura; porque ela, e os que a ti- os apóstatas e os violentos de teu
nham enviado, e seus filhos e povo se sublevarão para que as
seus amigos serão mortos (Bere- visões sejam cumpridas, e morre-
nice e seu filho foram assassi- rão (os que haviam abandonado
nados por Seleuco Calinico). sua religião para agradar a Evér-
"Mas nascerá uma vergôntea gete quando enviou tropas a
dessas raízes (Ptolomeu Evérge- Escapas, pois Antíoco retomará
te, filho do mesmo pai que Bere- Escapas e os vencerá). E o rei do
nice), a qual virá com poderoso Aquilão destruirá as fortificações
exército às terras do rei do Aqui- e tomará as cidades mais bem
lão onde terá tudo sob seu domí- defendidas e toda a força do sul
nio e de onde levará para o Egito não poderá resistir-lhe, e tudo
seus deuses, seus príncipes, seu cederá diante de sua vontade; ele
ouro e sua prata e seus mais pre- se deterá em terras de Israel e
ciosos bens (se não tivesse sido este cederá. E assim ele pensará
chamado ao Egito por motivos em se tornar senhor de todo o
de ordem doméstica, teria inteira- império do Egito (desprezando ·a
mente despojado Seleuco, diz juventude de Epifânio, diz J usti-
Justino); e passarão anos e anos no ). E, nesse intuito, fará aliança
sem que o rei do Aquilão possa com ele e lhe dará sua filha
alguma coisa contra ele. (Cleópatra, para que traísse o
"E assim ele voltará a seu marido; a respeito disso, diz
reino; mas os filhos do outro, Apiano que, não confiando em
irritados, reunirão grandes forças poder dominar o Egito pela
(Seleuco, Cerauno, Antíoco força, quis atingi-lo pela finura).
Magno). E seus exércitos chega- Tentará corrompê-la, mas ela
rão e tudo devastarão. E o rei do não lhe obedecerá; e ele se entre-
sul, irritado com isso, formará gará a outros desígnios e pensará
igualmente um grande exército e .tornar-se senhor de algumas ilhas
lhes dará combate (Ptolomeu Fi- (isto é, lugares marítimos) e to-
lópator contra Antíoco Magno mará várias (como diz A piano).
em Rafia) e vencerá; vencerá "Mas um grande chefe opor-
230 PASCAL

se-á a essas conquistas (Cipião, o *724 -. Predições - Que, na


Africano, que sustará os progres- quarta monarquia, antes da des-
sos de Antíoco Magno porque truição do Segundo Templo,
ofendia os romanos na pessoa de antes que a dominação dos ju-
seus aliados), evitando a vergo- deus fosse abolida, na septuagé-
nha que lhe caberia. Voltará, sima semana de Daniel, durante
pois, a seu reino e aí perecerá (foi a duração do Segundo Templo,
assassinado pelos seus) e não os pagãos fossem instruídos e
mais existirá. conduzidos ao conhecimento do
"E quem lhe suceder (Seleuco Deus adorado pelos judeus; que
Filópator ou Sotero, filho de os que o amam fossem livr~dos
Antíoco Magno) será um tinµ10 dos seus inimigos e cumulados
que sobrecarregará de impostos a com o seu temor e com o seu
glória do reino (o povo); mas amor.
dentro em pouco morrerá, e não E acontece que, na quarta
por sedição ou guerra. E suce- monarquia, antes da destruição
der-lhe-á um homem desprezível do Segundo Templo, etc., os
e indjgno .das honras da realeza, pagãos em multidão adoram
o qual a tanto se elevará por sua Deus e levam uma vida angélica;
habilidade e lisonja. Todos os as raparigas consagram a Deus a
exércitos fraquejarão diante dele sua virgindade e a sua vida, os
e ele os vencerá, inclusive o prín- homens renunciam 'a todos os
cipe com o qual se aliara; por- prazeres. Aquilo que Platão não
que, tendo renovado a aliança, o pôde incutir no espírito de uns
enganará, e, chegando com redu- poucos homens escolhidos e ins-
zida tropa às suas calmas e deste- truídos, uma força secreta conse-
merosas províncias, tomará as gue-o, no espírito de milhares de
melhores terras e fará o que seus homens ignorantes, pela virtude
pais nunca tip.ham feito, e, devas- de poucas palavras.
tando por toda parte, conceberá Os ricos abandonam seus
grandes desígnios em seu bens, os filhos abandonam a casa
tempo". confortável de seus pais pela
*723 - Profecias - As se- austeridade de um deserto. (Vide
tenta semanas de Daniel são Filon, o judeu.) Que significa
equívocas quanto ao termo do tudo isso? O que foi predito
começo, por causa dos termos da muito tempo antes. Há dois mil
profecia; e quanto ao termo do anos que nenhum pagão adorava
fim, por causa da diversidade dos o Deus dos judeus; e no tempo
cronologistas. Mas toda essa di- predito a multidão dos pagãos
ferença não vai além de duzentos adora esse Deus único. Os tem-
anos. plos sao destruídos, os reis
PENSAMENTOS .231

mesmo submetem-se à cruz. Que Senhor, que me formou ele pró-


significa tudo isso? Que o espí- prio desde o ventre de minha mãe
rito de Deus se expandiu pelo para que lhe pertencesse inteira-
mundo. mente, a fim de trazer de volta
Nenhum pagão, de Moisés a J acó e Israel, disse: Serás glo-
Jesus Cristo, segundo os próprios rioso em minha presença e eu
rabinos. A multidão dos pagãos, próprio serei tua força; é pouco
depois de Jesus Cristo, acredita converteres as tribos de J acó; eu
· nos livros de Moisés e observa- te suscitei para seres a luz dos
lhes a essência e o espírito, rejei- gentios e minha salvação até os
tando tão-somente o inútil. confins da terra. São as coisas
725 - Profecias - A conver- que o Senhor disse a quem humi-
são dos egípcios (Isaías, 19, 19); lhou sua alma, que foi despre-
um altar no Egito para o Deus zada e abominada pelos gentios e
verdadeiro. se submeteu aos poderosos da
726 - Profecias - [No terra. Os príncipes e os reis_ te ·
Egito, o Pugio Fidei], p. 659, adorarão, porque o Senhor que te
Ta/mude: "Estabelece nossa tra- elegeu é fiel.
dição que, quando chegar o Mes- "O Senhor disse ainda: Eu te
sia·s, a casa de Deus, destinada à atendi nos dias da salvação e
divulgação de sua palavra, estará misericórdia e te estabeleci para
cheia de lixo e impurezas e que a seres a aliança do povo e te colo-
sabedoria dos escribas será cor- cares na posse das nações mais
rupta e podre. Os que temerem abandonadas, a fim de dizeres
pecar serão reprovados pelo povo aos que estão acorrentados: Ide,
e tratados de loucos e insensa- em liberdade. E aos que estão nas
tos". trevas: Vinde à luz e possuí as
Isaías, 49: "Escutai, povos terras abundantes e férteis. Não
longínquos, e vós, habitantes das serão mais atormentados pela
ilhas do mar: o Senhor chamou- fome e a sede e o ardor do sol,
me por meu nome desde o ventre porque aquele que teve compai-
de minha mãe, ele me protege sob xão deles será seu condutor; ele
a sombra de sua mão, ele fez de os conduzirá às nascentes vivas
minhas palavras um gládio afia- das águas e aplainará as monta-
do e disse-me: Tu és meu servo; e nhas diante deles. E os povos
através de ti farei brilhar minha virão de toda parte, do oriente,
glória. E eu disse: Senhor, terei do ocidente, do aquilão e do sul.
trabalhado em vão? Terei inutil- Que o céu renda glórias a Deus;
mente consumido toda a minha que a terra se alegre, porque
força? Julgai-o, Senhor, meu tra- agradou ao Senhor consolar seu
balho está diante de vós. Então o povo e porque, enfim, ele terá ·
232 PASCAL

piedade dos pobres que esperam prostrado por terra e rbeijarão o


nele. pó de teus pés; e tu saberás que
"E, no entanto, Sião ousou sou o Senhor e que os que espe-
dizer: O Senhor abandonou-me e ram em mim nunca serão confun-
não mais me guarda em sua didos; pois, quem pode arrancar
memória. Pode a mãe esquecer o a presa a quem é forte e podero-
filho, e perder a ternura por aque- so? Mas, mesmo que alguém o
le a quem teve no seio? Mas, pudesse, nada me impediria de
ainda que o pudesse, eu não te salvar teus filhos, nem de destruir
esquecerei nunca, Sião; carrego- teus inimigos e todo mundo reco-
te sempre nas mãos e teus muros nhecerá que eu sou o Senhor teu
estão diante de meus olhos. Os salvador e o poderoso red~ntor
que devem restabelecer-te acor- de Jacó.
rem e teus destruidores serão "O Senhor disse estas coisas:
afastados. Ergue os olhos e con- Que é esse libelo de divórcio pelo
sidera toda essa multidão que se qual repudiei a sinagoga? E por
reúne para vir a ti. Juro que todos que a entreguei nas mãos de nos-
esses povos te serão dados como sos inimigos? Não foi por sua
ornamento de que te vestirás para impiedade e seus crimes que a
sempre; teus desertos e tuas soli- repudiei?
dões, e todas as tuas terras, ora "Porque eu cheguei e ninguém
desoladas, serão estreitas demais me recebeu; chamei e ninguém
para o número grande de habi- ouviu. Terá meu braço encurtado
tantes, e os filhos que nascerem e não terei o poder de salvar?
nos anos de esterilidade dirão: O "É por isso qüe farei aparece-
lugar é pequeno, alarga as fron- rem as marcas de minha ira;
teiras para que possamos viver. cobrirei os céus de trevas e os
Então dirás em ti mesmo: Quem esconderei sob véus.
me deu essa abundância de fi- "O Senhor deu-me uma língua
lhos, eu que não · os concebia bem instruída, a fim de que eu
mais, que era estéril e cativa? E saiba consolar com minha pala-
·quem mos nutriu, pois eu estava vra quem está na tristeza. Ele tor-
abandonada e seni ajuda? De nou-me atento a seus discursos e
onde vieram todos estes? E o Se- eu o ouvi como a um mestre.
nhor dirá: Revelei meu poder aos "O Senhor revelou-me suas
gentios e ergui meu estandarte vontades e eu não me mostrei
sobre todos os povos e eles te tra- rebelde.
rão crianças nos braços e nos "Ofereci meu corpo aos golpes
seios; os reis e as rainhas te nutri- e meu rosto aos insultos; expus
rão e te adotarão com o rosto minhas faces às ignomínias e aos
PENSAMENTOS 233

escarros; mas o Senhor me am- o Senhor, eu farei o sol deitar-se


parou e por isso não me confun- ao meio-dia e cobrirei a terra de
di. trevas no dia de luzes, transfor-
"Quem me justifica está comi- marei vossas festas solenes em lá-
go; quem ousará acusai-me de grimas e vossos cãnticos em
pecado, sendo Deus ele próprio lamentos.
meu protetor? "Estareis todos na tristeza e no
"Todos os homens passarão e sofrimento e eu porei essa nação
serão consumidos pelo tempo; numa desolação semelhante à da
que os que temem a Deus escu- morte de um filho único; e esses
tem, pois, as palavras de seu últimos tempos serão tempos de
servo; que os que enlanguescem amargura. Eis que se aproximam
nas trevas ponham sua confiança os dias em que enviarei à terra a
no Senhor. Mas vós, vós não fa- fome, não fome de pão e sede de
zeis senão incendiar a cólera de água, mas a fome e a sede de
Deus sobre vós, marchais sobre palavras do Senhor. Errarão de
fogueiras entre as chamas que um mar a outro e do aquilão ao
vós mesmos acendeis. Foi minha oriente; e ficarão a girar por toda
mão que vos impôs esses males; parte à procura de quem anuncie
perecereis na dor. a palavra do Senhor, mas não
"Escutai, vós que seguis a jus- encontrarão ninguém.
tiça e buscais o Senhor. Olhai a "E suas virgens e seus jovens
pedra de onde fostes talhado e a perecerão nessa sede, eles que
cisterna de onde fostes tirado. seguiram os ídolos de Samaria,
Olhai Abraão· vosso pai e Sara juraram pelo Deus adorado em
que vos concebeu. Sabei que esta- Dan, dedicaram-se ao culto de
va só e sem filhos quando o cha- Bersabé; e eles cairão e não mais
mei e lhe dei tão abundante se levantarão".
posteridade; vede quantas bên- Amós, 3, 2: "De todas as
çãos expandi sobre Sião e como a nações .da terra, só a vossa esco-
cumulei de graças e consolações. lhi para ser meu povo".
"Considerai todas essas coi- Daniel, 12, 7, descrevendo a
sas, meu povo, e atentai para mi- extensão do reino do Messias,
nhas palavras porque uma lei diz: "Todas essas coisas se cum-
sairá de mim, e um julgamento prirão quando a dispersão do
que será a luz dos gentios". povo de Israel tiver ocorrido".
Amós, 8: "Tendo o profeta Ageu, 2, 4: "Vós que, compa-
enumerado os pecados de Israel, rando esta segunda casa à glória
disse que Deus jurara vingança. da primeira, a desprezais, tende
"Disse assim: Nesse dia, disse coragem, disse o Senhor, a vós
234 PASCAL

Zorobabel, e a vós Jesus sumo- vras, ele lhes dirá as coisas que
sacerdote, e a vós todo o povo da eu lhe ordenar; e acontecerá que
terra, e não deixeis de trabalhar quem não obedecer às palavras
para isso. Porque eu estou con- ditas em meu nome será por mim
vosco, disse o Senhor dos Exérci- julgado":
tos; subsiste a promessa que fiz, Gênese, 49: "Vós, Judá, vós
quando vos retirei do Egito: Meu sereis louvado por vossos ir-
espírito está convosco. Não per- mãos; os filhos de vosso pai vos
cais a esperança, porque o Se- adorarão. Judá, filhote de leão,
nhor dos Exércitos assin falou: andastes à presa, meu filho, e vos
Mais algum tempo ainda e eu deitastes como um leão, ou uma
abalarei o céu e a terra, e o mar e leoa; quem ousará açordar-
a terra firme (maneira de dizer vos?, 8 4
para assinalar uma transfor- "O cetro não será tirado de
mação grande ·e extraordinária); Judá, nem o legislador de seus
e abalarei todas as nações. Então pés, até que chegue Silo; e as
virá aquele que é desejado por nações se juntarão a ele para
todos os gentios e eu encherei obedecer-lhe".
esta casa de glória, disse o *727 - Durante o tempo do
Senhor. Messias - Aenigmatis. Eze-
"A prata e o ouro estão em quiel, 18.
mim, disse o Senhor (isto é, não é Ele terá seu precursor. Mala-
por isso que quero ser adorado, quias, 3.
como está dito alhures: tódos os Ele nascerá criança. Isaías, 9.
animais do campo são meus; de Ele nascerá na cidade de
que serve mos oferecerem como Belém. Miquéias, 5. Sairá da
sacrifício?). A glória deste novo família de Judá e de Davi, apare-
templo será bem maior que a do cerá principalmente em Jerusa-
primeiro, disse o Senhor dos lém.
Exércitos; e edificarei minha casa
Ele deve cegar os sábios e os
aqui ne~te lugar, disse o Senhor.
"No Horeb, quando aí estáveis doutos, Isaías, 6; 8; 29, etc., e
reunidos, e que dissestes: Que o anunciar aos pobres e aos peque-
Senhor não fale mais ele próprio nos, Isaías, 29, abrir os olhos dos
- .
e que nao vejamos mais esse
. cegos e dar saúde aos enfermos; e
fogo, de medo de morrermos. E o levar à luz os que languescem nas
trevas. Isaías, 61.
Senhor me disse: Seu pedido é
justo; eu suscitarei um profeta Deve ensinar a via perfeita e
como vós, entre seus irmãos, e 18 4
Como a redação é confusa, aproveitou-se
em sua boca porei minhas pala- o próprio trecho original da Bíblia. (N. do T.)
PENSAMENTOS .235

ser o preceptor dos gentios. Que ressuscitaria, Salmo 15,


Isaías, 55; 42, 1-7. no terceiro dia. Oséias, 6, 3.
As profecias devem ser ininte- Que subiria ao céu, para sen-
ligíveis aos ímpios. Daniel, 12; tar-se à direita (de Deus), Salmo
Oséias, 14, 9, mas inteligíveis aos 1 10.
bem instruídos. Que os reis se armariam con-
As profecia_s que o apresentam tra ele. Salmo 2.
pobre representam-no senhor das Que, estando .à direita do Pai,
nações. Isaías, 52, 14; 53, etc. seria vitorioso dos seus inimigos.
Zacarias, 9, 9. Que os reis da terra e todos os
As profecias que predizem o povos o adorariam. Isaías, 60.
tempo só o predizem senhor dos Que os judeus subsistirão
gentios e sofrendo, não nas nu- como nação. Jeremias.
vens, nem juiz. E as que o repre- Que serão errantes, sem rei,
sentam glorioso e julgando não etc. Oséias, 3, sem profetas,
predizem o tempo. Amós, esperando a salvação e
Deve ser a vítima pelos peca- não a encontrando. Isaías.
dos do mundo. Isaías, 39; 53, etc. Vocação dos gentios por inter-
Deve ser a pedra fundamental médio de Jesus Cristo. !saias, 52,
e preciosa. Isaías, 28, 16. 15; 55, 5; 60, etc. - Salmo 81.
Deve ser a pedra de toque e de Oséias, 1, 9: "Não sereis mais
escândalo. Isaías, 8. Jerusalém o meu povo e eu não serei mais
dev~ chocar-se contra essa pedra. vosso Deus depois que fordes
Os edificantes devem reprovar multiplicados pela dispersão. Lá
essa pedra. Salmos, 117, 22. onde não vos chamam meu povo,
Deus deve fazer dessa pedra a eu vos chamarei meu povo".
pedra angular. *728 - Não era permitido
E essa pedra deve crescer sacrificar fora de Jerusalém, que
numa montanha imensa e encher era o lugar que o Senhor escolhe-
toda a terra. Daniel, 2. ra, nem mesmo comer alhures as
Que assim deve ser repelido, décimas. Deuteronômio, 12, 5,
desconhecido, traído, Salmos, etc. Deuteronômio, 14, 23, etc.;
108:- 8, vendido, Zacarias, 11, 12, 15, 20; 16, 2-7-11-15.
cuspido, esbofeteado, escarne- Oséias predisse que eles fica-
cido, afligido de uma infinidade riam sem rei, sem príncipe, sem
de maneiras, dessedentado com sacrifícios e sem ídolo; o que se
fel, Salmo 68, traspassado, os pés acha cumprido hoje, não sendo
e as mãos transpassados, Zaca- possível sacrificar fora de Jerusa-
rias, 12, que seria morto e suas lém.
vestes jogadas aos dados. *729 - Predições Foi
236 PASCAL

predito que, no tempo do Mes- se ensinará mais o prox1mo di-


sias, ele viria estabelecer uma zendo: Eis o Senhor, pois Deus
nova aliança que faria esquecer a se fará sentir a todos." - "Vos-
saída do Egito, Jeremias, 23, 6; sos filhos profetizarão."
Isaías, 43, 16; que poria sua lei "Porei
. . meu espírito,,.,, e ,, temor a
não no exterior mas nos cora- mim em vosso coraçao.
ções; que Jesus Cristo poria seu Tudo isso é a mesma coisa.
temor, que fora apenas aparente, Profetizar é falar de Deus, não
no meio do coração. Quem não com provas de fora, mas com
vê a lei cristã nisso? sentimento interior e imediato.
*730 - ... Que então a ido- *733 - Que ensinada aos
latria seria derrubada; que o homens o caminho perfeito.
Messias abateria todos os ídolos E nunca veio, nem antes, nem
e faria com que os homens vol- depois, nenhum homem que
tassem ao culto do verdadeiro tenha ensinado nada de divino
Deus. aproximando-se disso.
Que os templos dos ídolos se- 734 - ... Que Jesus Cristo
riam abatidos e que, entre todas seria pequenc no começo e cres-
as nações e em todos os lugares ceria em seguida. A pedrinha de
do mundo, ser-lhe-ia oferecida Daniel.
uma hóstia pura, e não animais. Se nunca tivesse ouvido falar
Que ele seria o rei dos judeus e do Messias, após as predições tão
dos gentios. E eis esse rei dos ju- admiráveis da ordem do mundo
deus e dos gentios, oprimido por que vejo realizadas, perceberia
uns e outros .que conspiram para que isso é divino. E se eu sou-
a sua morte, dominando uns e besse que esses mesmos livros
outros, e destruindo não só o predizem um Messias, eu teria a
culto de Moisés em Jerusalém, certeza de que ele chegou. E,
que era o seu centro e onde teve vendo que apontam seu tempo
sua primeira Igreja, mas também antes da destruição do Segundo
o culto dos ídolos em Roma, que ·Templo, diria que chegou.
era o seu centro e onde teve a sua *735 - Profecias - Que os
principal Igreja. judeus reprovariam Jesus Cristo
731 - Profecias Que e por isso seriam reprovados por
Jesus Cristo estará à direita, Deus. Que a vinha eleita só daria
enquanto Deus lhe submeterá agraço. Que o povo escolhido
seus inimigos. ·seria infiel, ingrato e incrédulo,
Logo, não os submeterá ele populum non credentem et con-
próprio. tradicentem. Que Deus os puniria
732 - " ... Que então não com a cegueira e como cegos eles
PENSAMENTOS 237

andariam às apalpadelas em seria eterno; que Cristo seria glo-


pleno dia. Que um · precursor rioso, poderoso, forte e, no entan-
viria antes dele. to, tão miserável que não seria
*736 - Transfixerunt, Zaca- reconhecido; que não o tomariam
rias, 12, 1O. pelo que é; que o rejeitariam e o
Que um libertador viria para matariam; que seu povo, rene-
esmagar a cabeça do demônio e gando-o, não mais seria seu
povo; que os idólatras o recebe-
livrar seu povo de seus pecados, riam e recorreriam a ele; que ele
ex omnibus iniquitatibus; que abandonaria Sião para reinar no
haveria um Novo Testamento, centro da idolatria; que, entre-
que seria eterno; que devia haver tanto, os judeus subsistiriam
outro sacerdócio, segundo a sempre; que ele seria de Judá,
ordem de Melquisedec; que este quando aí não houvesse mais rei.
ARTIGO XII
As provas de Jesus Cristo

*73 7 - ... Daí eu recusar · nem rei, e essa sinagoga que foi
as demais religiões. Por aí acho predita e esses miseráveis que a
resposta a todas as objeções. É seguem e que, · sendo nossos ini-
justo que um Deus tão puro só se migos, são admiráveis testemu-
revele a quem tenha o coração nhos da verdade dessas profecias
purificado. Assim, pois, essa reli- em que a sua miséria e até a sua
gião me é amável e acho-a dota- cegueira foram preditas.
da de bastante autoridade pela Descubro esse encadeamento,
sua divina moral; nela, porém, essa religião tão divina em sua
encontro mais. autoridade, em · sua duração, em
Eis um povo mais antigo do sua perpetuidade, em sua moral,
que os outros e que subsiste em sua conduta, em sua doutrina,
desde sempre; é constantemente em seus efeitos, e as trevas dos
anunciado aos homens que ele se judeus, medonhas e preditas: Eris
acha em um estado de corrupção palpans in meridie. Dabitur liber
universal, mas que virá um Repa- scienti litteras et dicet: "Non pos-
rador: um povo inteiro o prediz sum legere " 1 8 5 • O cetro estando
antes de sua vinda, um povo . ainda nas mãos do primeiro usur-
inteiro o adora depois de sua pador estrangeiro, o rumor da
vinda. Não é um homem que o vinda de Jesus Cristo.
diz, mas uma infinidade de ho- Estendo, assim, os braços ao
mens e um povo inteiro profeti- meu Libertador, que, tendo sido
zando, e feito de propósito duran- predito durante quatro mil anos,
te quatro mil anos ... Seus livros veio sofrer e morrer por mim
dispersados durante quatrocentos sobre a terra, no tempo e em
anos. todas as circunstâncias que
Quanto mais os examino,
tanto mais descubro verdades 18 5
Andarás . às apalpadelas em pleno dia'
(Deuteronômio, 28,29). Um livro será dado a
neles; e o que precedeu e o que alguém que sabe ler e ele dirá: Não posso ler.
seguiu; enfim, eles, sem ídolos (Isaías, 29, 12.)
240 PASCAL

foram preditas, e, por sua graça, de Deus-e as suas profecias. E Jó:


espero a morte em paz, na espe- Quis mihi det ut, etc. Seio enim
rança de lhe ser eternamente quod redemptor meus vivit 1 8 6 ,
unido; e vivo com alegria, quer etc.
nos bens que lhe apraz conceder- *742 - O Evangelho só fala
me, quer nos males que me envia da virgindade da Virgem até o
para o meu bem, e que me ensi- nascimento de Jesus Cristo. Tudo
nou a sofrer com seu exemplo. em relação a Jesus.
738 - Tendo as profecias 743 - Provas de Jesus Cris-
dado diversos sinais que deve- to.
riam ocorrer à chegada do Mes- Por que se conservou o livro
sias, era preciso que todos esses de Rute?
sinais se verificassem ao mesmo Por que a história de Tamar?
tempo. Assim, era necessário que *744 - "Orai, de medo de
a quarta monarquia surgisse cairdes em tentação." É perigoso
quando as setenta semanas de ser tentado; e os que o são, são-
Daniel houvessem terminado e no porque não oram.
que o cetro tivesse saído de Judá, Et tu conversus confirma fra-
e tudo aconteceu sem dificuldade. tres tuos. Mas antes, conversus
E então chegou o Messias, e tudo Jesus respexit Petrum 1 a 7 •
isso não comporta dificuldade e São Pedro pede permissão
marca bem a verdade das profe- para golpear Marcos e o golpeia
çias. antes de ouvir a resposta, e Jesus
*739 - Os profetas predisse- Cristo ~esponde a seguir.
ram, e não foram preditos. Os A palavra Galileu, que a mul-
santos, a seguir, preditos mas não tidão dos judeus pronunciou
predizentes. Jesus Cristo, predito como por acaso, acusando Jesus
e predizente. Cristo perante Pilatos, deu moti-
*740 - Jesus Cristo, objeto vo a Pilatos para enviar Jesus
central dos dois Testamentos, no Cristo a Herodes; graças a isto
Antigo como esperança, no Novo foi realizado o mistério, segundo
como modelo, nos dois como o qual ele deveria ser julgado
centro. pelos judeus e pelos gentios. O
741 - Os dois livros mais acaso em aparência foi a causa
antigos do mundo são os de Moi- da realização do mistério.
sés e Jó, um ·judeu, outro ímpio, 18 6
Quem me dará (a possibilidade de fixar
ambos encarando Jesus Cristo em um livro minhas palavras?) Sei, quanto a
como centro e objeto comum. mim, que existe um Redentor. (Jó, 19, 23-25.)
18 7
Tendo-te voltado para mim, anima teus
Moisés, ao relacionar com irmãos. Mas antes: tendo-se voltado para
Abraão, J acó, etc., as promessas Pedro, Jesus o fixara. (São Lucas, 22, 32-61.)
PENSAMENTOS 241

*745 - Os que acham difícil mente predito aos judeus, por que
crer buscam a razão disso no fato não acreditariam? Ou como não
de os judeus não crerem .."Se isso foram exterminados por terem
fosse claro", diz-se, "por que eles resistido a uma coisa tão eviden-
não creriam?" E desejariam te?"
quase que eles ~ressem, a fim de - Respondo: antes de mais
não serem detidos pelo exemplo nada, foi predito que eles não
de sua recusa. Mas é justamente acreditariam em coisa tão clara e
a sua recusa o fundamento da que não seriam exterminados. E
nossa crença. Nós estaríamos nada mais glorioso para o Mes-
menos dispostos a isso, se eles sias; pois não bastava que hou-
fossem dos nossos. Teríamos, vesse profetas: era preciso que se
então, um pretexto mais amplo. É conservassem insuspeitos. Ora,
admirável que isso tenha tornado etc.
os judeus grandes amadores das *7 50 - Se os judeus tives-
coisas preditas e grandes inimi- . sem sido todos convertidos por
gos do seu cumprimento. Jesus Cristo, só teríamos teste-
*7 46 - Os judeus estavam munhas suspeitas. E, se tivessem
habituados aos grandes e estron- sido todos exterminados, não .te-
dosos milagres e, tendo tido os ríamos testemunhas.
grandes golpes do mar Vermelho *7 51 - Que dizem os profe-
e da terra de Canaã como um re- . tas de Jesus Cristo? Que ele será
sumo dos grandes feitos do Mes- evidentemente Deus? Não: mas
sias, deste esperavam mistérios que ele é um Deus verdadeira-
mais fulgurantes ainda. Os de mente oculto; que será desconhe- ·
Moisés seriam apenas amostras. cido, que não se pensará que seja
74 7 - Os judeus carnais e ele; que será uma pedra de escân-
os pagãos têm misérias, e os cris- dalo contra a qual muitos se cho-
tãos também. Não há Redentor carão, etc. Que não nos censurem
para os pagãos, nem mesmo eles mais, portanto, a falta de clareza,
o esperam. Não há Redentor pois fazemos profissão dela.
para os judeus, eles o esperam em - Mas, dizem, há obscurida-
vão. Só há Redentor para os cris- des. - E sem isso não se teriam
tãos. (Vide perpetuidade.) chocado contra Jesus Cristo e
*748 - No tempo do Mes- trata-se de um desígnio formal
sias, o povo divide-se. Os espiri- dos profetas: Excaeca . .. 1 8 a
tuais· seguiram o Messias; os 75 2 - Moisés ensina pri-
grosseiros ficaram para servir de
testemunhas. 18 8
Endurece o coração do poyo e tapa-lhe os
*749 - "Se isso está clara- ouvidos, e veda-lhe os olhos. (Isaías, 6, 10.)
242 PASCAL

meiramente a trindade, o pecado 755 - A discordância apa-


original, o Messias. rente dos Evangelhos.
Davi, grande testemunho: rei, 756 - Que se pode ter,
bom, perdoando; bela alma, bom senão veneração, por um homem
espírito, poderoso; profetiza e seu que prediz claramente coisas que
milagre se realiza; isso é infinito .. acontecem e que declara sua
Bastara-lhe dizer que era o intenção de cegar e iluminar, e
Messias, se tivesse tido vaidade: mistura obscuridade às coisas
pois as profecias são mais claras claras que ocorrem?
em relação a ele do que a Jesus. *757 - O tempo do primeiro
E São João também. advento foi predito; o tempo do
*753 - -Herodes acreditou
segundo não o foi, porque o pri-
no Messias. Ele tirara 9 cetro de
meiro devia ser oculto; o -segundo
Judá~ mas não era de .1 udá. Isso
-f ormou uma setta considerável. E devia ser brilhante e ele tal modo
Barcosba e um outro aceito pelos manifesto que os seus próprios
judeus. E o que por toda parte se inimigos o devessem reconhecer.
dizia então. Suetônio. Tácito. Mas, como só devesse vir obscu-
Josefa. ramente, para ser reconhecido
Maldição dos gregos contra os apenas pelos que sondassem as
que contam três períodos dos Escrituras ...
tempos. *758 - Deus, para tornar o
Como devia ser o Messias, se Messias cognoscível aos bons e
com ele o cetro devia continuar incognoscível aos maus, fê-lo
eternamente em Judá e com su~ predizer dessa maneira. Se a
chegada o cetro seria tirado de maneira do Messias fosse predita
Judá? claramente, não teria havido obs-
Para que, vendo, não vissem e,
ouvindo, · não ouvissem, nada curidade, mesmo para os maus.
podia ser mais bem feito. Se o tempo tivesse sido predito
754 - Homo existens te obscuramente, teria havido obs-
Deumfacit. curidade, mesmo para os bons;
Scriptúm est "Dii estis "et non pois a l bondade do seu coração]
potest solvi Scriptura. não lhes teria feito entender que,
H aec infirmitas non est ad por exemplo, o men fechado sig-
v itam et est ad mortem. nifica seiscentos anos. Mas o
"Lazarus dormit ': et deinde tempo foi predito claramente, e a
dixit: Lazarus mortuus est 1 8 9 • maneira, em figuras.
18 9
Por esse meio, os maus, to-
O homem que existe te faz Deus. - Está
escrito: "Sois deuses" e a Escritura não pode mando os bens prometidos por
ser aniquilada. - Esta enfermidade não é para materiais, se desviam, apesar do
a vida, é para a morte. - "Lázaro dorme", e
em seguida ele diz: "Lázaro está morto". (São tempo predito claramente; e os
João, 11, 11,14.) bons não se desviam: porque a
PENSAMENTOS .243

inteligência dos bens prometidos não o aceitar como Messias, os


depende do coração, que chama judeus deram-lhe a última marca
"bem" àquilo que ama; mas a de Messias. Continuando a des-
inteligência do tempo prometido conhecê-lo, tornaram-se testemu-
não depende do coração; e, nhas incen~uráveis; matando-o e
assim, a predição clara do tempo, continuando a renegá-lo, cumpri-
e obscura dos bens, só ilude os ram as profecias. Isaías, 60,
maus. Salmo 70. · ·
759 - É preciso que ou os *762 - Que podiam fazer os
judeus ou os cristãos sejam judeus, seu inimigos? Aceitan-
maus. do-o, provam-no com sua recep-
*7 60 - Os judeus o recu- ção, pois os depositários da espe-
sam, mas não todos. Os santos o ra do Messias o recebem;
recebem, e não os carnais. E negando-o, provam-no pela sua
tanto isso não é contra a sua gló- renúncia.
ria, que é o último traço que a 7 63 -' Os judeus, querendo
arremata. A razão que apresen- verificar se ele era Deus, mostra-
tam, e a única que se acha nos ram que ele era homem.
seus escritos, no Ta/mude e nos *764 - A Igreja . teve tanta
rabinos, consiste apenas em que dificuldade em mostrar que Jesus
Jesus Cristo não dominou as · Cristo era homem aos que o
nações a mão armada, gladium negavam quanto em mostrar que
tuum, potentissime. l Só têm isso era Deus; e as aparências eram
a dizer? Jesus Cristo foi morto, igualmente grandes.
dizem eles; sucumbiu; não domi- *765 - Fontes das contradi-
nou os pagãos pela força; não ções - Um Deus humilhado até
nos deu seus despojos; não dá a morte na cruz, um Messias
riquezas. Só isso terão a dizer? É triunfando da morte por sua
nisso que ele me é amável. Eu morte. Duas naturezas em Jesus
não desejaria o que eles imagi- Cristo, duas manifestações, dois
nam]~ É visível que somente sua estados da natureza do homem.
vida os impediu de recebê-lo; e, *766 - Figuras - Salva-
com essa recusa, são testemu- dor, pai, sacrificador, hóstia, ali-
nhas insuspeitas e, o que é mais, mento, rei, sábio, legislador, afli-
com ela cumprem as profecias. to, pobre, devendo criar um povo
l Por não o ter aceito esse que lhe caberia guiar e alimentar,
povo, aconteceu a seguinte mara- e introduzir na sua terra ...
vilha: as profecias são os únicos Jesus Cristo. Ofícios - Só o
milagres subsistentes, mas estão Messias devia produzir um gran-
sujeitas a ser contraditas.] de povo, eleito santo e escolhido;
*761 - Matando-o, para conduzi-lo, nutri-lo, introduzi-lo
244 PASCAL

no lugar de repouso e de santida- Na prisão, José inocente entre


de, torná-lo santo em Deus, fazer dois criminosos: Jesus Cristo na
dele o templo de Deus, livrá-lo da cruz entre dois ladrões; José pre-
servidão do pecado, que reina disse a salyação de um e a morte
visivelmente no homem; dar leis de outro, sobre as mesm3;s apa-
a esse povo, gravar essas leis no rências: Jesus Cristo salva os
seu coração, oferecer-se a Deus eleitos e dana os réprobos pelos
por eles; sacrificar-se por eles, ser mesmos crimes. José apenas pre-
uma hóstia sem mancha, e ele diz: Jeus Cristo· faz. José pede ao
próprio sacrificador; devendo que será salvo que se lembre dele
oferecer ele próprio seu corpo e quando chegar à sua glória; e
seu sangue, e, entretanto, oferecer aquele que Jesus Cristo salva
pão e vinho a Deus ... pede-lhe que se lembre dele quan-
lngrediens mundum. do em seu reino.
"Pedra sobre pedra" 1 9 0 *7 69 - A conversão dos pa-
O que precedeu e o que se gãos· estava reservada exclusiva-
seguiu. Todos os judeus subsis- mente à graça do Messias. Os ju-
tentes e vagabundos. deus levaram tanto tempo a
767 - De tudo o que existe combatê-los sem êxito; tudo o
na terra, ele só toma parte nos que a respeito disseram Salomão
desprazeres, não nos prazeres. e os profotas foi inútil. Os sábios,
Ama seus próximos, mas sua como Platão e Sócrates, não
caridade não se encerra dentro puderam persuadi-lo.
desses marcos e se expande sobre
seus inimigos e sobre os de Deus. *770 - Depois . de muita
*768 -- Jesus · Cristo, figu- gente ter vindo, chegou, enfim,
rado por José, bem-amado de seu Jesus Cristo e disse: "Eis-me, eis
pai, enviado pelo pai para ver o tempo. O que os profetas disse-
seus irmãos, etc., inocente, vendi- .ram que deveria ser no decurso
do por seus irmãos por vinte do tempo, eu vos digo que meus
dinheiros, e com isso feito seu apóstolos vão .fazê-lo. Os judeus
senhor, seu salvador e salvador serão renegados, Jerusalém será
dos estrangeiros, e salvador do em breve destruída; e os pagãos
mundo, o que não teria sido sem vão entrar no conhecimento de
o desígnio de o perder, sem a Deus. Meus apóstolos vão fazê-lo
venda e a reprovação que o depois que tiverdes matado o her-
condenou. deiro da vinha".
E d~pois os apóstolos disseram
1 90
Jesus disse a um de seus discípulos que aos judeus: "Sereis àmaldiçoa-
lhe apontava o templo: "Vês todas estas gran-
des cons.truções? Não ficará pedra sobre dos" (Celso zombou disso); e aos
pedra!" (São Marcos, 13, 2). pagãos: "Entrareis no conheci-
PENSAMENTOS 245

menta de Deus". E isso acontece sua semente". Parum est ut, etc.
então. Lumen ad revelationem gen-
*771 -- Jesus Cristo veio tium1 93 •
cegar os que viam claro e dar Non fecit taliter omni nationi,
vista aos cegos; curar os doentes dizia Davi falando da lei. Mas
e deixar morrer os sãos; chamar falando de Jesus Cristo é preciso
à penitência e justificar os peca~ dizer: Fecit taliter omni natio-
dores, e deixar os justos em seus ni1 9 4 • Parum est ut 19 5 , etc.,
pecados; encher os indigentes e Isaías. Por isso cabe a Jesus Cris-
deixar os ricos vazios. to ser universal. A própria lgrej a
*772 - Santidade - Effun- só oferece o sacrifício aos fiéis:
dam spiritum meum 1 9 1 • Todos Jesus ofereceu o da cruz a todos.
os povos viviam na infidelidade e 775 - Há heresia ao expli-
na concupiscência e toda a terra car sempre· omnes por todos, e há
se fez ardente de caridade, os heresia em assim não o explicar
príncipes, abandonando suas às vezes. Bibite ex hoc omnes 19 6 :
grandezas, e as mulheres, so- os huguenotes, os heréticos, ex-
frendo martírios. De onde vem plicando por todos. ln quo omnes
uma · tal força? É que o Messias peccaverunt 19 7 ; os huguenotes,
chegou; eis o efeito e sinais de heréticos, à exceção dos filhos
sua chegada. dos fiéis. Cumpre, pois, seguir os
773 - Ruíria dos judeus e padres da Igreja e a tradição para
dos pagãos por Jesus Cristo: -saber quando, posto que há here-
omnes gentes venient et adora- sia a tem~r de ambos os lados.
bunt eum. Parum est ut, etc. Pos- 776 - Ne timeas pusillus
198 . Timore et tremore 199 .
tula a me. Adorabunt eum omnes grex
reges. Testes iniqui. Dabit maxil- Quid ergo? Ne timeas,
lam percutienti. Dederunt fel in l modoj timeas: se temeis, não
escam 1 92 • temais; mas se não temeis, temei.
*774 - Jesus Cristo por 1 93
todos. Moisés por um povo. Os 2, 32).Luz para iluminar os gentios (São Lucas,
judeus abençoados em Abraão: Não procedeu assim para toda a nação
19 4

"Abençoarei todos os que te (Salmo 147, 20). Procedeu assim para toda a
abençoarem". Mas, falando de nação. 1 9 5 Isaías, 49, 6: É pouco que [me sirvas para
Jesus Cristo, é preciso dizer: levantar as tribos de J acó e purificar a lama de
"Todas as nações abençoadas em Israel].
19 6
São Mateus, 26, 27: Bebam-no todos.
19 7
1 9 1
Joel, 2, 28. São Paulo, Romanos, 5, 12: No que todos
1 9 2 Indicação dos textos cujos títulos indicam pecaram.
a matéria de que tratam: Salmo 21, 28; Isaías, 198
São Lucas, 12, 32: Não receeis, tragil
49, 6; Salmo 2, 8; Salmo 11, 11; Lamentações, rebanho.
1 99
3, 30; Salmo 68, 22. . Com temor e tremor.
246 PASCAL

Qui me recipit, non me recipit, sol a tudo ilumina, só assinalam


sed eum qui me misit 20 0 • uma totalidade; mas las figurasj
Nemo scit, neque Fi/ius 20 1 • das exclusões, assim como .os ju-
Nubes lucida obumbravit 20 2 • deus eleitos com exclusão dos
São João devia converter os gentios, assinalam a exclusão.
corações dos pais aos filhos e "Jesus Cristo, redentor de
Jesus Cristo dividi-los. Sem con- todos." Sim, porque ele ofereceu,
tradição. como um homem que resgatou
777 - Os efeitos, in commu- todos os que queriam ir a ele. Os
ni e in particulari. Os semipela- que morrerem no caminho terão
gianos erram dizendo in commu- sido infelizes; mas ele lhes ofere-
ni, o que só é verdadeiro in ce a redenção. Isso está certo
particulari; e os calvinistas, di- neste exemplo, onde o que resga-
zendo in particulari o que 'é ver- ta e o que impede de morrer são
dadeiro in communi (parece-me). dois, mas não em Jesus Cristo,
778 - Omnis Judaea regio, que faz uma e outra coisa. -
et Jerosolomytae universi, et bap- Não porque Jesus Cristo, na qua-
tizabantur2 °3 • Pór causa de lidade de redentor, não seja tal-
todas as condições de homem vez senhor de tudo; mas, na me-
que aí vinham. dida em que o é, torna-se
Pedras podem ser filhos de redentor de todos.
Abraão. Quando dizeis que Jesus Cris-
779 - Se nos conhecês- to não morreu por todos, abusais
semos, Deus curaria e perdoaria. do vício dos homens que aplicam
Ne convertantur et sanem eos, et
a si próprios essa exceção, o que
dimittantur eis peccata 20 4 •
significa favorecer o desespero;
780 - Jesus Cristo não con-
denou nunca sem ouvir. A Judas: em lugar de obviar a questão, a
Amice, ad quid venisti? E igual- fim de favorecer a esperança.
mente ao que não tinha a vesti- Porque nós nos acostumamos
menta nupcial. assim às virtudes interiores por
781 - As figuras da totali- meio desses hábitos exteriores.
dade da redenção, assim como o 782 - A vitória sobre a
morte. Que adianta ao homem
ioo São Mateus, 9, 48: O que me recebe, não
recebe a mim, mas ao que me enviou.
tudo ganhar, se perde a alma?
2 0 1
2 02
Ninguém o sabe a não ser o Filho. Quem quiser guardar a alma,
Uma ·nuvem cobriu a luz de sombra.
º São Marcos, 1, 5: Toda a região da
2 3 perdê-la-á.
Judéia e todos osjerosolimitas eram batizados.
20 4
"Não vim destruir a lei, mas
São Marcos, 4, 12; Isaías, 6, 10: Para que
não sejam convertidos, para que eu não os
cumpri-la."
cure e lhes canceda a remissão dos pecados. "Os cordeiros não tiravam os
PENSAMENTOS 247

pecados do mundo, mas eu sou o *784 - Jesus Cristo não


cordeiro que os tira." quis o testemunho dos demônios,
"Moisés não vos deu o pão do nem dos que não tinham voca-
céu. Moisés não vos tirou do cati- ção; mas de Deus e João Batista.
veiro e não vos tornou inteira- 785 - Considero Jesus Cris-
mente livres." to em todas as pessoas e em nós
*783 - ... Então Jesus mesmos: Jesus como pai em seu
Cristo vem dizer aos homens que Pai, Jesus como irmão em seus
eles não têm outros inimigos irmãos, Jesus como pobre nos
senão eles mesmos; que são suas pobres, Jesus como rico nos
paixões que os separam de Deus; ricos, Jesus como doutor e sacer-
que ele vem para destruí-las e dote nos sacerdotes, Jesus como
para dar-lhes sua graça, a fim de soberano nos príncipes, etc: Por-
fazer com todos eles uma Igreja que, pela sua glória, ele é tudo o
santa; que vem reconduzir a essa que há de grande, sendo Deus, e
Igreja os pagãos e os judeus; que pela sua vida mortal, tudo o que
vem destruir os ídolos de uns e a existe de frágil e miserável. Por
superstição de outros. A isso se isso assumiu essa infeliz - condi~
opõem todos os homens, e não ção, para poder estar em todas as
apenas pela oposição natural da pessoas, ser modelo de todas as
concupiscência; mas, acima de condições. ·
todos, os reis da terra se unem *786 - Jesus Cristo em uma
para abolir essa religião nascen- tal obscuridade (segundo o que o
te, como fora predito (Prof.: mundo chama obscuridade) que
Quare fremerunt gentes.. . . reges os historiadores, escrevendo
terrae. . . adversus Chris- sobre as coisas importantes do
tum)2 º 5 Estado, mal o perceberam.
Tudo o que há de grande sobre·
a terra se une, os eruditos, os sá- 787 - De que nem Josefa,
bios, os reis. Uns escrevem, ou- nem Tácito, nem os demais histo-
tros condenam, outros matam. E, riadores falaram de Jesus Cristo
não obstante todas as oposições, - Não significa isso um argu-
essa gente simples e sem força mento contra, e sim, ao contrá-
resiste a todas as potências, sub- rio, a favor. Pois é certo que
mete mesmo esses reis eruditos e Jesus Cristo existiu e sua religião
sábios e arranca a idolatria do teve grande repercussão, e essa
mundo terrestre. E tudo isso se gente não o ignorava, e é visível
faz pela força que o predis·sera. que só calou intencionalmente;
ou falou, e o que disse foi supri-
2 0 s Salmo 2, 1.2: Por isso as nações treme-
mido ou alterado.
ram ... os reis da terra ... contra Cristo. 788 - "Reservei-me sete
248 PASCAL

mil." Gosto dos adoradores des- dotes e os principais (de sua


conhecidos do mundo e dos pró- nação) o rejeitam; os seus amigos
prios profetas. e os seus mais próximos despre-
*789 - Assim como Jesus zam-no. Enfim, morre, traído por
Cristo permaneceu· ignorado um dos seus, renegado por outro
entre os homens, sua verdade e abandonado por todos. Que
apresenta-se sem diferença exte- parte tem ele, pois, nesse esplen-
rior entre as opiniões comuns. dor? Nunca homen:i algum teve
Da mesma forma a Eucaristia tanto esplendor; nunca homem
entre o pão comum. algum teve tanta ignomm1a.
790 - Jesus Cristo não quis Todo esse esplendor só serviu
ser morto sem as formalidades da para nós, para no..:lo forn~r reco-
justiça, porque é ~ais ignomi- nhecível; e não houve nada para
nioso ser morto pela justiça do ele.
que por sedição injusta. *793 - A distância infinita
791 - A falsa justiça de Pi- dos corpos aos espíritos figura a
latos serve somente para fazer distância infinitamente mais infi-
Jesus Cristo sofrer; ele o manda nita dos espíritos à caridade, pois
vergastar por sua falsa justiça e ela é sobrenatural.
mata-o em seguida. Melhor fora Todo o brilho das grandezas
tê-lo matado antes. Assim os fal- não tem lustro para as pessoas
sos justos: praticam boas e más que se entregam às pesquisas do
obras para agradar ao mundo e espírito. A grandeza das pessoas
mostrar que não são completa.:. de espírito é invisível aos reis,
mente de Jesus, pois se envergo- aos ricos, aos capitães, á todos
nham disso. E, finalmente, nas ess-es .grandes da carne. A gran-
grandes tentações e ocasiões, ma- deza da sabedoria, que não existe
tam-no. em nenhuma parte a não ser em
*792 - Que homem teve al- Deus, é invisível aos carnais e às
guma vez maior brilho? O povo pessoas de espírito. São três or-
judeu inteiro o predisse antes de dens diferentes em gêneros.
sua vinda. O povo gentio o adora Os grandes gênios possuem o
depois· de sua vinda. Os dois seu império, o seu brilho, a sua
povos, gentio e judeu, o obser- grandeza, a -sua vitória e o seu
vam como seu centro. No entan- lustro, e não precisam das gran-
to, que homem jamais gozou dezas carnais com as quais não
menos de todo esse brilho? De têm relações. São vistos não
trinta e três anos, ele viveu trinta pelos olhos, mas pelos espíritos;
sem aparecer. Em três anos, e é o bastante. Os santos pos-
passa por um impostor; os sacer- suem o seu império, o seu brilho,
PENSAMENTOS 249

as suas vitórias, o seu lustro, e re-se essa grandeza, em sua vida,


não precisam das grandezas car- em sua pai~ão-, em sua obscuri-
nais ou espirituais com as quais dade, em sua morte, na eleição
não têm qualquer relação, pois dos seus, no abandono, em sua
não lhes acrescentam nem reti- secreta ressurreição, e no resto; e
ram nada. São vistos por Deus e vê-la-emos tão grandiosa que não
pelos ~jos, e não pelos corpos haverá razão para nos escandali-
nem pelos espíritos curioso~: zarmos com uma baixeza que
Deus lhes basta. não existe.
Arquimedes, sem brilho, teria Mas há os que só podem admi-
a mesma veneração. Ele não deu rar as grandezas carnais, como se
batalhas para os olhos, mas for- não existissem as espirituais; e
neceu a todos os espíritos as suas outros que só admiram as espiri-
invenções. Oh ! Como brilhou tuais como se não existissem infi-
aos espíritos! nitamente mais altas na. sabedo-
Jesus Cristo, sem bens e sem ria.
qualquer produção fora da ciên- Todos os corpos, o firma-
cia, está na sua ordem de santida- mento, as estrelas, a terra e os
de. Não fez invenção, não reinou; seus reinos, não valem o menor
mas foi humilde, paciente, santo, dos espíritos; de fato, ele conhece
santo em Deus, terrível para os tudo isso e a si; e os corpos,
demônios, sem nenhum pecado. nada. Todos os corpos juntos, e
Oh ! Como chegou em grande todos os espíritos juntos, e todas
pompa e numa prodigiosa magni- as suas produções, não valem o
ficência aos olhos do coração, menor movimento de caridade;
que vêem a sabedoria. de fato, ela é de uma ordem infi-
Teria sido inútil a Arquimedes nitamente mais elevada.
apresentar-se como príncipe nos De todos os corposjuntos não
seus livros de geometria, embora poderíamos extrair um pequeno
o fosse. pensamento; isso é impossível, e
Teria sido inútil a Nosso Se- de outra ordem. De todos os cor-
nhor Jesus Cristo, para brilhar pos e espíritos não poderíamos
no seu reino de santidade, vir tirar um movimento de verda-
como rei: mas chegou realmente deira caridade; isso é impossível,
com o brilho de sua ordem ! e de outra ordem, sobrenatural.
É muito ridículo escandalizar- 794 - Por que Jesus Cristo
se da baixeza de Jesus Cristo, não veio de uma maneira visível,
como se essa baixeza fosse da em lugar de tirar suas provas das
mesma ordem que a grandeza profecias precedentes? Por que se
que ele vinha suscitar. Conside- fez predizer por (iguras?
250 PASCAL

*795 Se Jesus Cristo vies- de um tão belo caráter, e se afe-


se apenas para santificar, toda a tassem apenas para fazê-1.a notar,
Escritura e todas as coisas a isso se eles próprios não ousassem
tenderiam, e seria muito fácil observá-la, não deixariam de an-
convencer os infiéis. Se Jesus gariar amigos que a teriam obser-
Cristo viesse apenas para cegar, vado em seu proveito. Mas, como
toda a sua conduta seria confusa, agiram dessa forma sem afeta-
e não teríamos qualquer meio de ção, e por um movimento todo
convencer os infiéis. Mas como desinteressado, não o fizeram
ele veio in sanctificationem et in notar a ninguém; e creio que vá-
scandalum, como diz Isaías, não rias dessas coisas não foram
podemos convencer os infiéis, e notadas até aqui, e é o que teste-
eles não podem convencer-nos; munha a frieza com que a coisa
mas, por isso mesmo, convence- tem sido feita.
mo-los, porque dizemos que não 799 - Um artesão fala de
há convicção em toda a sua con- riquezas, um procurador fala de
duta, de parte a parte. guerra, de realeza, etc.; mas o
*796 ._ Jesus Cristo não rico fala bem das riquezas, o rei
disse que não é de Nazaré, para fala fríamente de um grande
deixar os maus na cegueira, nem donativo que acaba de fazer, e
que não é filho de José. Deus fala de Deus com conheci-
*797 - Provas de Jesus mento.
Cristo - Jesus Cristo disse as *800 - Quem ensinou aos
coisas grandes tão simplesmente evangelistas as qualidades de
que parece que não as pensou; e, uma alma perfeitamente heróica,
contudo, tão nitidamente, que se para pintá-la tão perfeitamente
vê bem o que pensava delas. Essa em Jesus Cristo? Por que o mos-
claridade, junta a essa ingenui- tram fraco em sua agonia? Não
dade, é admirável. sabem pintar uma morte corajo-
*798 - O estilo do Evange- sa2 ° 6 ? Sim, pois o próprio São
lho é admirável de muitas manei- Lucas pinta a de Santo Estêvão
ras e, entre outras, por nunca mais forte do que a de Jesus Cris-
invectivar os carrascos e inimi- to. Mostram-no , pois, capaz de
gos de Jesus Cristo. Com efeito, medo antes de chegar a necessi-
não há qualquer invectiva dos dade de morrer, e em seguida tão
historiadores contra Judas, Pila- forte. Mas, quando o mostram
tos, ou algum dos judeus. tão· perturbado, é quando ele pró-
Se essa modéstia dos historia-
20 6
dores evangélicos fosse afetada, No· original: constante, .no sentido arcaico
de serenamente firme, forte, sem falha. (N. do
assim como tantos outros traços T.)
PENSAMENTOS 251

prio se perturba; e, quando os ho- deles se desmentisse ante tantas


mens o perturbam, ele se mostra seduções e, demais, pela prisão,
bastante forte. pelas torturas e pela morte, todos
*801 - Prova de Jesus Cris- estariam perdidos. Examine-se
to - A hipótese dos apóstolos isso de perto.
impostores é assaz absurda. Si-
*802 - Os apóstolos foram
gam-na cuidadosamente; imagi-
nem esses doze homens reunidos enganados ou enganadores. É
após a morte de · Jesus Cristo, difícil admitir uma ou outra hipó-
combinando. dizer que ele ressus- tese, pois não é possível pegar ~m
cifou. Atacam, assim, todas as homem para ser ressuscitado ...
potências. O coração do homem Enquanto Jesus Cristo estava
tende estranhamente para a le- com eles, podia apoiá-los; mas
viandade, a mudança, as promes- depois, se não apareceu diante
sas, os bens. Por pouco que um deles, quem os fez agir?
ARTIGO XIII
Os milagres

*803 - Começo - Os mila- por invocação do diabo não


gres discernem a doutrina e a fazem um milagre, pois isso não
doutrina discerne os milagres. excede a força natural do diabo.
Há os falsos e os verdadeiros. Mas ...
É preciso uma marca para conhe- 805 - Dois fundamentos,
cê-los; do contrário, seriam inú- um interior, outro exterior: a
teis. Ora, não são inúteis, e são, graça, os milagres; ambos sobre-
ao contrário, fundamentos. É naturais.
preciso que a regra, que nos é 806 - Os milagres e a ver-
daQa, seja tal que destrua a prova dade são necessários porque é
que os verdadeiros milagres dão preciso convencer o homem intei-
da verdade, que é o fim principal ro, corpo e alma.
dos milagres. 807 - Ou os homens fala-
Moisés deu duas regras: que a ram do Deus verdadeiro ou o ver-
predição não acontece, Deutero- dadeiro Deus falou aos homens.
nômio, 18, e que não levam à *808 - Jesus Cristo verifi-
idolatria, Deuteronômio, 13. E cou que era Messias, não por
Jesus Cristo deu uma. verificar sua doutrina pela Escri-
Se a doutrina regula os mila- tura e as profecias, mas sempre
gres, estes são inúteis à doutrina. pefos seus milagres.
Se os milagres regulam ... Prova que redime os pecados
Objeção à regra - O discerni- por um milagre.
mento dos tempos. Outra regra Não vos regozijeis com vossos
com Moisés, outra regra presen- milagres, diz Jesus, mas com o
temertte. fato de vossos nomes estarem
804 - }Jilagre - O milagre escritos nos céus.
é um efeito que excede a força Se não acreditam em Moisés,
natural dos meios, que nele se não acreditarão num ressusci-
emprega, e o não-milagre é um tado.
efeito que não excede a força Nicodemo reconhece por seus
natocal dos meios, que nele se milagres que sua doutrina é de
emprega. Assim, os que curam Deus: Scimus quia venisti a Deo
254 PASCAL

magister; nemo enim potest haec pode pressupor o primeiro; mas o


signa facere quae tu facis nisi primeiro não leva a supor o
Deus fuerit cum eo 2 0 7 • Ele não segundo.
julga os milagres pela doutrina, 811 - Sem os milagres não
mas a doutrina pelos milagres. se poderia pecar por não crer em
Os judeus tinham uma dou- Jesus Cristo.
trina de Deus, como nós temos 812 - Sem os milagres eu
uma de Jesus Cristo, confirmada não seria cristão, diz Santo
por milagres e que proíbe que se Agoºstinho.
creia em todo fazedor de mila- 8-13 - Milagres - Abomi-
gres, assim como ordena que se no os que dizem duvidar dos
recorra aos grandes sacerdotes e milagres! Montaigne se expressa
que se fique com eles. E, assim, a propósito com acerto, em dois
todas as razões que temos para trechos. Em um deles, vê-se como
recusar crédito aos fazedores de é prudente; no entanto crê, no
milagres, eles as tinham em rela- outro, e zomba dos incrédulos.
ção aos seus profetas. Como quer que seja, a Igreja
No entanto, eles eram bem cul""' estaria sem provas, se eles tives-
pados quando recusavam os pro- sem razão.
fetas, por causa dos seus mila- 814 - Montaigne contra os
gres, e Jesus Cristo; e não teriam milagres.
sido culpados se não tivessem Montaigne pelos milagrés.
visto os milagres: Nisi fecis- 815 - Não é possível ser
sem. . . peccatum non haberent. razoavelmente contra os mila-
Logo, toda crença está nos mila- gres.
gres. 816 - Incrédulos, os mais
A profecia não é chamada crédulos. Acreditam nos milagres
milagre. São João fala do pri- de Vespasiano para não acreditar
meiro milagre em Caná, e depois nos de Moisés.
do que Jesus Cristo disse à sama- *817 - Título: De onde vem
ritana que descobre toda a sua que acreditemos em tantos menti-
vida ignorada, e em seguida cura rosos que dizem ter visto mila-
o filho de um funcionário, e a gres e não acreditemos em ne-
isso São João chama "o segundo nhum dos que dizem que
sinal". possuem o segredo de tornar os
809 - As combinações de homens imortais ou rejuvenescê-
milagres. /os. - Tendo considerado que se
8 1O - O segundo milagre dá tanta fé a tantos impostores
20 7
que dizem que têm remédios, a
Sabemos que vieste de Deus, Mestre; pois
ninguém pode fazer os milagres que fazes sem ponto de muitas vezes pôr a vida
Deus a seu lado (São João, 3, 2). entre suas mãos, pareceu-me que
PENSAMENTOS 255

a verdadeira causa é que os há Pois se, nisso tudo, nada jamais


verdadeiros; pois não seria possí- tivesse havido de verdadeiro, j a-
vel que houvesse tantos falsos e mais teríamos acreditado em
que -se lhes prestasse tanta fé, se nada. E assim, em lugar de con-
não os houvesse verdadeiros. Se cluir que não há verdadeiros
nunca houvesse remédio a ne- milagres porque os há falsos,
nhum mal, e se todos os males cumpre dizer, ao contrário, que
fossem incuráveis, seria impos- há certamente verdadeiros mila-
sível que os homens imaginassem gres, porquanto os há falsos, e
que poderiam dar-lhes crédito; e que só os há falsos porque os há
ainda mais que tantos outros verdadeiros. É preciso raciocinar
tivessem dado crédito aos que se de igual modo com a religião,
gabavam de os ter feito; assim pois não seria possível que os ho-
como, se um homem se gabasse mens imaginassem tantas falsas
de impedir a morte, ninguém religiões se não houvesse uma
acreditaria nele, porque não há verdadeira. A objeção é que os
nenhum exemplo disso. Mas, selvagens têm uma religião, mas
como há uma porção de remé- a .isso se responde que dela 2 0 8
dios que se acharam verdadeiros ouviram falar, como se deduz
·pelo conhecimento mesmo dos pelo dilúvio, a circuncisão, a cruz
maiores homens, a crença dos de Santo André, etc.
homens se dobrou com isso, e, 818 - · Tendo considerado
sendo isso · conhecido como pos- como se explica que haja tantos
sível. concluiu-se daí que o era. falsos milagres, falsas revelações,
De fato, o povo raciocina ordina- sortilégios, pareceu-me que a ver-
riamente assim: "Uma coisa é dadeira causa é que há verda-
possível, logo existe"; como a deiros milagres; pois não seria
coisa não pode ser negada em possível que houvesse tantos fal-
geral, por haver efeitos particu- sos milagres se não os houvesse
lares que são verdadeiros, o verdadeiros, nem tantas falsas
povo, que não pode discernir religiões se não houvesse uma
quais, dentre esses efeitos parti- verdadeira. Pois, se nunca tivesse
culares, são os verdadeiros, acre- havido tudo isso, é quase impos-
dita em todos eles. Assim tam- sível que os homens o tivessem
bém, o que faz que se creia em imaginado, e ainda mais impos-
tantos falsos efeitos da lua é que sível que tantos outros lhe tives-
os há verdadeiros, como o fluxo sem dado crédito. Mas como
do mar. houve grandíssimas coisas verda-
Assim ocorre com as profe- deiras, e que assim foram julga
cias, os milagres, as adivinhações
pelos sonhos, os sortilégios, etc. 2os Da verdadeira. (N. do T.)
256 PASCAL

das por grandes homens, essa 820 - Se o diabo favore-


impressão levou quase todos a cesse a doutrina que o destrói,
tornarem-se capazes de crer tam- seria dividido, como dizia Jesus
bém nas falsas. E assim, em lugar Cristo. Se Deus favorecesse a
de concluir que não há verda- doutrina que destrói a lgrej a,
deiros milagres, uma vez que há seria dividido: Omne regnum di-
tantos falsos, é preciso dizer, ao visum. Porque Jesus Cristo agia
contrário, que há verdadeiros contra o diabo e destruía seu
milagres, uma vez que há tantos império sobre os corações, cujo
falsos; e que os há falsos, por isso exorcismo é a figuração, a fim de
que os há verdadeiros; e que não estabelecer o reino de Deus. E ele
há mesmo falsas religiões senão acrescenta: ln digito Dei . .. reg-
porque há uma verdadeira. Obje- num Dei ad vos.
ção a este fato: que os selvagens *821 - Há muita diferença
têm uma religião. Mas é que entre tentar e induzir em erro.
ouviram falar da verdadeira, Deus tenta, mas não induz em
como se vê pela cruz de Santo erro. Tentar é proporcionar as
André, o dilúvio, a circuncis.ão, ocasiões que não impõem neces-
etc. Provém isso do fato de que o sidade; se não se ama a Deus,
espírito do homem, achando-se far-se-á certa coisa. Induzir em
erro é colocar o homem na neces-
dobrado desse lado pela verdade,
sidade de concluir e seguir uma
se torna por isso suscetível a
falsidade.
todas as falsidades desta ... 822 - Abraão, Gedeão: (si-
819 - Jeremias, 23,32, os nais) acima da revelação. Cega-
milagres dos falsos profetas. Em vam-se os judeus julgando os
hebraico e em Vatable, há as milagres pela Escritura. Deus
leviandades. nunca abandonou seus verda-
Milagre nem sempre significa
deiros adoradores.
milagre. 1 Reis, 15 209 , milagre Prefiro seguir Jesus Cristo a
significa temor, e é assim em seguir qualquer outro porque ele
hebraico. Do mesmo modo, em tem o milagre, as profecias, a
Jó manifestamente, 38, 7. E tam- doutrina, a perpetuidade, etc.
bém Isaías, 21, 4; Jeremias, 44, Donatistas: nada de milagre,
12. Portentum significa simula- que obriga a dizer que é o diabo.
crum, Jeremias, 50, 38; do Quanto mais se particulariza,
mesmo modo em hebraico e em Deus, Jesus Cristo, a Igreja ...
Vatable, Isaías, 8, 18: Jesus Cris- *823 - Se não houvesse fal-
to diz que ele e os seus serão sos milagres, haveria certeza. Se
milagres. não houvesse regras para discer.,.
2 º 9 Nas edições modernas, veja-se 1 Samuel. ni-los, os milagres seriam inúteis,
(N. desta edição.) e não haveria razão para crer.
PENSAMENTOS 257

Ora, não há humanamente cer- O que faz crer nos falsos é a falta
teza huma.na, mas razão. de caridade. 1 Tessalonicenses.· 2.
*824 - Ou Deus confundiu Fundamento da religião: os
os falsos milagres, ou os predis- milagres. Por quê? Deus falará
se; de ·um modo ou de outro, contra os milagres, contra os
ergueu-se acima do que é sobre- fundamentos da fé que temos
natural a nosso respeito e er- nele?
gueu-nos com ele. Se há um Deus, era preciso
825 - Os milagres não ser- que a fé em Deus existisse sobre
vem para converter, mas para a terra. Os milagres de Jesus
condenar (Q. 113, A. 10, Ad. 2). Cristo não são preditos pelo
826 - Razões por que não Anticristo, mas os milagres do
se crê. Anticristo são preditos por Jesus
João, 12, 3 7. Cum autem tanta Cristo. E assim, se Jesus Cristo
signa fecisset, non credebant in não fosse o Messias, teria indu-
eum, ut sermo Isaiae impleretur. zido ao erro; mas o Anticristo
Excaecavit, etc. não pode induzir ao erro.
Haec dixit /saias, quando vidit Quando Jesus Cristo predisse
gloriam ejus et locutus est de eo. os milagres do Anticristo, julgou
"Judaei signa petunt et Graeci destruir a fé nos seus próprios
sap ientiam quaerunt, nos autem milagres?
Jesum crucifixum. "Sede plenum Moisés predisse Jesus Cristo e
signis, sed plenum sapientia; vos ordenou que o seguissem; Jesus
autem Christum non crucifixum Cristo predisse o Anticristo e
et religionem sine miraculis et proibiu segui-lo.
sine sapientia 2 1 0 • Era impossível que, ao tempo
O que faz que não se creia nos de Moisés,· as pessoas reser-
verdadeiros milagres é a falta de vassem a crença ao Anticristo,
caridade. João: Sed vos non cre- que lhes era desconhecido; mas é
ditis, quia non estis ex ovibus 2 1 1 bem fácil, no tempo do Anti-
2 1
o Depois que fez todos esses milagres, eles
cristo, acreditar em Jesus Cristo
não acreditaram nele, a fim de que se cúm- já conhecido.
prisse a palavra de Isaías: (Deus) cegou (São Não há razões para crer no
João 12, 37). Dizendo essas coisas, Isaías viu
sua glória e falou dele (São João, 12, 41). "Os Anticristo que não sejam para
judeus pedem sinais, e os gregos buscam a crer em Jesus Cristo, mas as há
sabedoria, nós, Jesus crucificado.'' Mas cheio
de sinais e de sabedoria; vós o que desejais é em Jesus Cristo que não existem
um Cristo não crucificado, uma religião sem . no outro.
milagres, sem sabedoria. A primeira parte
desta última citação é de São Paulo ( 1 Corín- *827 - Juízes, 13, 23: "Se o
tios, l, 22); a. segunda é do próprio Pascal e Senhor houvesse querido nos
parece dirigida aos jesuítas. fazer morrer, não nos teria mos-
2 1 1
Mas vós não acreditais, porque não per-
tenceis ao rebanho. trado todas essas coisas".
258 PASCAL

Ezequias. Senaquerib. sem escusa. Portanto, era preciso


Jeremias. Ananias, falso profe- que tivessem uma demonstração
ta, morre no sétimo mês. à qual resistissem. Ora, não ti-
2 Macabeus, 3: O templo pres- nham a nossa, mas só os mila-
tes a ser pilhado, socorrido mila- gres; pórtanto, bastam estes
grosamente. 2 Macabeus, 15. quando a doutrina cristã não é
3 Reis, 17 2 1 2 : A viúva disse a contrária, e se deve crer neles.
Elias, que ressuscitara a criança: São João, 7, 40. Contestação
"Por isto vejo que tuas palavras entre os judeus, como entre os
são verdadeiras". cristãos de hoje. Uns acredi-
3 Reis, 18: Elias com os profe- tavam em Jesus Cristo, outros
tas de Baal. não acreditavam, por causa das
Jamais, na contenção do ver- profecias que diziam que ele
dadeiro Deus, da verdade da reli- devia nascer em Belém. Deviam
gião, aconteceu milagre do lado tomar mais cuidado para ver se
do erro e não da verdade. não era ele; pois como os seus
*828 - Contestação milagres eram convincentes, de-
Abel, Caim; Moisés, mágicos; viam certificar-se dessas preten-
Elias, falsos profetas; Jeremias, sas contradições de sua doutrina
Ananias, Miquéias, falsos profe- com as Escrituras, e essa obscuri-
tas; Jesus Cristo, fariseus; São dade não os escusava, mas os
Paulo, Barjesu; apóstolos, exor- cegava. Assim, os que hoje recu-
cistas; os cristãos e os infiéis; os sam acreditar nos· milagres, em
católicos e os heréticos; Elias, virtude de uma pretensa contradi-
Enoc; Anticristo. ção quimérica, não são .desculpá-
Sempre o verdadeiro prevalece veis.
nos milagres. As duas cruzes. O povo acreditava nele por
*829 - Jesus Cristo diz que causa dos milagres. Os fariseus
as Escrituras são seus testemu- diziam-lhe: "Este povo é maldito,
nhos, mas não diz em quê. As não conhece a lei; mas haverá
profecias não podiam provar um príncipe ou um fariseu que
Jesus Cristo durante sua vida, e tenha acreditado nele? Sabemos
assim não se teria tido culpa de que nenhum profeta sai da Gali-
não crer nele antes de sua morte, léia". Nicodemo respondeu;
se os milagres não tivessem bas- "Julga a nossa lei um homem
tado sem a doutrina. Ora, os que antes de o ter ouvido [e em parti-
não criam nele ainda vivo eram cular um homem que faz tais
pecadores 'como ele próprio diz, e milagres]?"
830 - As profecias eram
2 12
Veja-se 1 Reis, nas edições modernas da equívocas: não o são mais.
Bíblia. (N. desta edição.) 831 - As cinco proposições
PENSAMENTOS 259

eram equívocas; nao o sao gres que ele produz; mas, os que,
mais 213 • fazendo profissão de o seguir por
832 - Os milagres não são seus milagres, só o seguem efeti-
mais necessários, por isso que já vamente porque ele os consola e
os temos. Mas, quando já não os sacia dos bens do mundo,
escutamos a tradição, quando só desonram seus milagres quando
propomos o Papa, quando o são contrários às suas comodida-
surpreendemos, e quando, tendo des.
excluído a verdadeira fonte da São João, 9, 16: Non est hic
verdade, que é a tradição, e tendo homo a Deo, qui sabbatum nom
prevenido o Papa, que é o seu custodit. A lii: Quomodo potest
depositário, a verdade já não tem homo peccator haec signa face-
liberdade de aparecer, então, re ?21 s
como os homens já não falam da Qual o mais claro?
verdade, é a própria verdade que Esta casa não é de Deus; pois
deve falar aos homens. Foi o que nela não crêem que as cinco
aconteceu no tempo de Ario. proposições estejam em J ansênio.
(Milagres sob Diocleciano e - Os outros: esta casa é de
Ario.) Deus, porque nela ele faz estra-
*833 - Milagre - O povo nhos milagres.
tira sozinho essa conclusão; mas Qual o mais claro?
se for necessário dar-vos a . ra- Tu quid dicis? Dico quia pro-
zao ... pheta est. Nisi esset hic a Deo,
É lamentável figurar na exce- nom poteratfacere quidquam 21 6 •
ção à regra. É preciso mesmo ser *835 - No Velho Testa-
severo e contrário à exceção. mento, quando vos desviarem de
Entretanto, como é certo que há Deus. No Novo, quando vos des-
exceções à regra; cumpre julgá- viarem de Jesus Cristo. Eis, assi-
las com severidade e justiça. naladas, as oportunidades de ex-
834 - São João, 6, 26: Non clusão da fé nos milagres. É
quia vidistis signa, sed quia satu- preciso não oferecer outras exclu-
rati estis 2 1 4 • soes.
Os que seguem Jesus Cristo Deduzir-se-á disto que eles te-
por causa dos seus milagres hon- riam o direito de excluir todos os
ram seu poder em todos os mila- profetas que conheceram? Não.
Teriam pecado não excluindo os
2 1 3 Trata-se das cinco proposições extraídas 2 1 5 Este homem não é de Deus, pois não
do Augustinus de Jansênio e condenadas pela observa o sábado. Outros: como pode esse
Sorbonne. Toda esta parte de Pascal é mais pecador fazer milagres?
polêmica do que apologética. 2 1 6 Tu, que dizes? Digo que ele é profeta. Se

2 1 4 Não porque vistes milagres, mas porque não fosse de Deus, nada poderia fazer fSão
estais fartos. João, 9, 17, 33).
260 PASCAL

que negavam Deus e teriam peca- pois as profecias realizadas são


do excluindo os que não nega- um milagre subsistente.
vam Deus. 839 - "Se não acrçditais em
Desde que se vê um milagre, é mim, acreditai ao menos . nos
preciso, pois~ ou submeter-se ou milagres (São João, 10, 38). Ele
ter estranhos sinais do contrário. os manda ao mais forte.
É preciso ver se negamos um Fora dito aos judeus, assim
Deus, Jesus Cristo ou a Igreja. como aos cristãos, que nem sem-
*836 - Há muita diferença pre acreditassem nos profetas.
entre não ser por Jesus Cristo e o No entanto, os fariseus e os escri-
dizer, ou não ser por Jesus Cristo bas referem-se aos milagres de
e fingir que se é. Uns podem fazer Jesus Cristo tentando mostrar
milagres, não os outros; pois é que eles são falsos ou feitos pelo
claro que uns são contra a verda- diabo: porque estariam necessa-
de, não os outros; e assim os riamente convencidos, se reco-
milagres são mais claros. nhecessem que são de Deus.
837 - É tão visível que cum-
Não nos damos, hoje, ao tra-
pre amar a um só Deus que não
balho de fazer esse discerni-
há necessidade de milagres para
mento; contudo, é bem fácil
prová-lo.
fazê-lo. Os que não negam Deus
*838 -- Jesus Cristo fez mi-
ou Jesus Cristo não fazem mila-
lagres e os apóstolos em seguida,
gres que não sejam seguros.
e os primeiros santos em grande
Nemo facit virtutem in nomine
número; porque, como as profe-
meo, et cito possit de me ma/e
cias não estavam ainda realiza-
loqui 21 7 •
das, realizando-se por eles, nada
Mas nós não precisamos fazer
testemunhava senão milagres.
esse discernimento. Eis uma relí-
Estava predito que o Messias
quia sagrada. Eis um espinho da
converteria as nações. Como se
coroa do Salvador do mundo,
teria realizado essa profecia sem
sobre o qual o príncipe deste
a conversão das nações? E como
mundo não tem poder, que faz
as nações se teriam convertido ao
milagres pelo próprio poder desse
Messias se não vissem este últi- sangue espalhado por nós. Deus
mo efeito das profecias que o escolheu, ele próprio, essa casa
provam? Antes, pois, de ter sido para nela fazer brilhar o seu
morto, ressuscitado, e de ter con- poder.
vertido as nações, nem tudo esta-
Não são homens que fazem
va realizado; e, assim, foram esses milagres, por uma virtude
necessanos milagres durante
todo - esse tempo. Agora já não 21 7
Ninguém poderia fazer milagres em meu
são necessários contra os judeus; nome e falar mal de mim (São Marcos, 9, 38).
PENSAMENTOS 261

desconhecida e duvidosa que nos Mas aos heréticos os milagres


obriga a um difícil discerni- seriam inúteis, pois a lgrej a,
mento. É o próprio Deus; é o autorizada pelos milagres que já
instrumento da Paixão do seu ocupavam a crença, nos diz que
Filho único que, estando em vá- eles não têm a verdadeira fé. Não
rios lugares, escolheu esse, e há dúvida de que eles não a têm,
mandou vir os homens de todos desde que os primeiros milagres
os lados para nele receberem da Igreja excluem a fé dos seus.
esses alívios milagrosos em seus Há, assim, milagres contra mila-
langores. gres, e primeiros e maiores do
840 - A lgrej a tem três espé- lado da Igreja.
cies de inimigos: os judeus, que Essas jovens 2 1 8 admiradas de
nunca foram do seu corpo; os · que se diga que elas estão no
heréticos, que dele se retiraram; e caminho da perdição, de que os
os maus cristãos, que a dilaceram seus confessores as ponham em
por dentro. Genebra, de que eles lhes inspi-
Essas três espécies de diferen- rem que Jesus Cristo não está na
tes adversários a combatem, de Eucaristia, nem à direita do Pai:
ordinário, diversamente; mas sabem elas que tudo isso é falso;
aqui a combatem da mesma oferecem-se, pois, a Deus nesse
maneira. Como são todos sem estado: Vide si via iniquitatis in
milagres, e como a Igreja teve me est. Que acontece então? Esse
sempre milagres contra eles, tive- lugar, que se diz ser o templo do
ram todos o mesmo interesse em diabo, Deus faz dele seu templo.
omiti-los e se serviram todos Diz-se que é preciso tirar dele as
desta desculpa: que é preciso não crianças: Deus as cura nele.
julgar a doutrina pelos milagres, Diz-se que é o arsenal do inferno:
mas os milagres pela doutrina. Deus faz dele o santuário de suas
Havia dois partidos entre os que graças. Enfim, ameaçam-nas de
escutavam Jesus Cristo: uns que todos os furores e de todas as
seguiam sua doutrina por seus vinganças do céu, e Deus as cu-
milagres; outros · que diziam. : . mula com seus favores. Seria pre-
Havia dois partidos ao tempo de ciso ter perdido o senso para con-
Calvino ... Há agora os jesuítas, cluir que elas se acham no
etc. caminho da perdição.
*841 - Os milagres discer- (Temos sem dúvida os mesmos
nem nas coisas duvidosas: entre sinais que Santo Atanásio.)
os povos judeu e pagão, judeu e 842 - Si tu es Christus, dic
cristão; católico e herético; calu- no bis.
niados e caluniadores; entre as 21 8
As religiosas de Port-Royal, acusadas de
duas cruzes. calvinismo. (N. do E.)
262 PASCAL

Opera quae ego facio in nomi- mittet illis Deus optationes erro-
ne patris mei, haec testimonium ris ut credant mendacio.
perhibent de me. Sed vos non cre- Como no trecho de Moisés:
ditis quia non estis ex ovibus tenta! enim vos Deus, utrum dili-
meis. Oves meae vocem meam gatis eum.
audiunt. Ecce praedixi vobis: vos ergo
São João, 6, 30: Quod ergo tu videte 21 9 •
facis signum ut videamus et cre- *843 - Não é este o país da
damus tibi? - Non dicunt: verdade: esta terra, desconhe-
Quam doctrinam praedicas? cida, entre os homens. Deus
Nemo potest f acere signa quae cobriu-a de um véu que a man-
tufacis nisi Deusfuerit cum eo. 2 tém desconhecida dos que não
Macabeus, 14, 15. Deus qui sig- lhe ouvem a voz. O lugar fica
nis evidentibus suam portionem aberto às blasfêmias, e mesmo a
protegi. verdades ao menos bem aparen-
Volumus signum videre de tes. Se se publicam as verdades
coelo, tentantes eum. São Lucas, do Evangelho, publicam-se con-
11, 16. trárias, e se obscurecem as ques-
Generatio prava signum quae- tões, de forma que o povo não
rit; et non dabitur. possa discernir. E pergunta-se:
Et ingemiscens ait: Quid gene- 2 1 s Diz-nos se és o Cristo (São Lucas, 22,

ratio ista signum quaerit? (São 66); As obras que faço em nome do meu pai
Marcos, 8, 12.) Pedia sinal com dão testemunho de mim (São João, 5, 36); Mas
vós não acreditais, porque não pertenceis às
má intenção. minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a
Et non poterat facere. E, no minha voz (São João, 10, 26, 27); Que mila-
gres fazes, para que o vejamos e acreditemos
entanto, promete-lhes o sinal de em ti? Eles não dizem: que doutrina pregas?
Jonas, de sua ressureição, o gran- (comentário .de Pascal); Ninguém pode fazer
os milagres que fazes se Deus não estiver com
de e o incomparável. ele (São João, 3, 2); Deus, que protege a parte
Nisi viderits signa, non credi- que lhe é reservada por meio de milagres evi-
dentes; Queremos um sinal do Céu (diziam
tis. Não os censura por não acre- eles) para o tentar; Esta geração má procura
ditarem em milagres; mas sem um ·milagre; e ele não será feito (São Mateus,
que eles sejam eles próprios es- 12, 39); E ele disse, gemendo: Por que razão
esta geração pede um milagre? E ele não podia
pectadores. fazê-lo (São Marcos, 6, 3); Se não vistes mila-
O Anticristo in signis menda- gres, não acreditais (São João, 4, 48); Segundo
a operação de Satanás, para seduzir os qµe
cibus, diz São Paulo, 2 Tessalo- morrem, porque estes não receberam para a
nicenses, 2. sua salvação o amor da caridade,· Deus
enviar-lhes-á as tentações do erro para que eles
Secundum operationem Sata- acreditem nas mentiras (São Paulo, 2 Tessalo-
nae, in seductione iis qui pereunt micenses, 2, 29); Deus vos tenta para ver se o
amais (Penteromônio, 13, 3); Eis o que eu pre-
eo quod charitatem veritatis non disse: vêde, pois, vós próprios (São Mateus,
receperunt ut salvi .fierent, ideo 24, 25-26).
PENSAMENTOS 263

"Que tendes para vos fazerdes diabo abrir os olhos dos cegos?"
crer mais do que os outros? Que As provas que Jesus Cristo e
prodígio fazeis? Tendes apenas os apóstolos tiram das Escrituras
palavras, e nós também. Se tivés- não são demonstrativas: dizem
seis milagres, bem". Da verdade somente que Moisés disse que um
de que a doutrina deve ser susten- profeta viria, mas não provam
tada pelos milagres se abusa para desse modo que seja aquele, e
blasfemar a doutrina. E, se os toda a · questão estava nisso.
milagres ocorrem, diz-se que os Esses trechos servem, pois, tão-
milagres não bastam sem a dou- somente para mostrar que não se
trina, o que é outra verdade para é contrário às Escrituras, e que
blasfemar os milagres. nestas não aparece algo que
Jesus Cristo curou o cego de repugne; não mostram que existe
nascença e fez uma porção de acordo. Ora, isso basta, exclusão
milagres no dia do sabá, pelos de repugnância, com milagres.
quais cegava os fariseus. que di- Há um dever recíproco entre .
ziam que era preciso julgar os Deus e os homens, para fazer e
milagres pela doutrina. para dar. Venite. Quid debui? 2 2 0
"Temos Moisés," mas não sabe- "Acusai-me", diz Deus, em
mos de onde é." É o que é admi- Isaías.
rável, que não saibas de onde é; Deus deve cumprir suas pro-
entretanto, faz tais milagres. messas, etc.
Jesus Cristo não falava contra Os homens devem receber de
Deus nem contra Moisés. O Deus a religião que ele lhes
Anticristo e os falsos profetas, envia. Deus deve não induzir os
preditos por um e outro Testa- homens ao erro. Ora, seriam
mento, falarão abertamente con- induzidos ao erro se os fazedores
tra Deus· e contra Jesus Cristo. de milagres anunciassem uma
Que não está escondido ... doutrina que não parecesse visi-
Quem fosse m1m1go coberto, velmente falsa à luz do senso
Deus não permitiria que fizesse comum, e se um maior fazedor de
milagres abertamente. Jamais em milagres já não tivesse advertido
uma discussão pública, em que que não acreditassem.
as duas partes se dizem de Deus, Assim, se houvesse divisão na
de Jesus Cristo, da Igreja, os Igreja e se os arianos, por exem-
milagres se encontram do lado plo, que se diziam baseados nas
dos falsos cristãos, sem milagres
2 2 ° Citação completa: Quid est quod debui
do outro lado~
ultra facere vinae meae et non feci ei? O que
"Há o diabo." São João, 10, devia ter feito à minha vinha que não fiz?
21. E os outros diziam: "Pode o (Isaías, 5, 4).
264 PASCAL

Escrituras como os católicos, Regra: é preciso julgar a dou-


tivessem feito milagres e não os trina pelos milagres e julgar os
católicos, seríamos induzidos ao milagres pela doutrina. Túdo isso
erro. Pois, assim como um é verdadeiro, não se contradiz,
homem que nos anuncia os segre- porque é preciso distinguir os
dos de Deus não é digno de ser tempos.
crido pela sua autoridade priva- Como vos alegrais com saber-
da, e é por isso que os ímpios des as regras gerais pensando
dele duvidam, um homem que, com isso perturbar e tudo tornar
como sinal da comunicação que inútil! Não vo-lo permitirão, meu
tem com Deus, ressuscita os mor-
Pai: a verdade é uma e certa.
tos, prediz o futuro, transporta os
mares e cura os enfermos, não há É impossível, pelo dever de
ímpio que não se lhe renda e a Deus, que um homem, escon-
incredulidade do faraó e dos fari- dendo sua má doutrina, e só dei-
seus resulta de um endurecimento xando aparecer uma boa, e dizen-
so bren atur al. do-se obediente a Deus e à Igreja,
Quando vemos os milagres e a faça milagres a fim de introduzir
doutrina não suspeita reunidos de insensivelmente uma doutrina
um mesmo lado, não há dificul- falsa e sutil. Isso não é possível.
dade. Mas, quando vemos os E menos ainda que Deus, que
milagres e a doutrina [suspeita] conhece os corações, faça mila-
do mesmo lado, então cumpre gres em beneficio de um indiví-
verificar o que é mais claro. Jesus duo desses.
Cristo era suspeito. 844 - As três marcas da
Barjesu cego. A força de Deus religião: a perpetuidade, a vida
domina a de seus inimigos. edificante, os milagres. Eles des-
Os exorcistas judeus vencidos troem a perpetuidade, pela pro-
pelo diabo dizendo~· "Conheço babilidade; a vida edificante, pela
Jesus e Paulo, mas quem sois sua moral; os milagres, des-
vós?" truindo sua verdade ou sua con-
Os milagres existem para a seqüência.
doutrina e não a doutrina para os Se neles acreditarms, a Igreja
milagres. não saberá que fazer da perpetui-
Se os milagres são verdadei- dade, da santidade, dos milagres.
ros, poder-se-á dar crédito a Os heréticos os negam, ou lhes
qualquer doutrina? Não, porque negam as conseqüências; eles
isso não acontecerá. Si ange- também. Mas fora preciso não
lus . .. 2 21
ter sinceridade para negá-los, ou
2 2 1 Se existir um anjo [que vos pregue outro
perder o senso para lhes negar a
Evangelho diferente do nosso, que seja anáte- conseqüência.
ma] (São Paulo, Gálatas. 1,8). Nunca ninguém se deixou
PENSAMENTOS 265

martirizar por milagres que vel. Mas o cisma é mais marcado


dizem ter sido vistos, pois [por] pelo erro que o milagre pela ver-
aqueles em que os turcos acredi- dade: logo, o milagre não pode
tam por tradição, a loucura dos induzir a erro.
homens vai talvez até o martírio, Mas, fora do cisma, o erro não
mas não por aqueles que foram é tão visível quanto o milagre;
vistos. logo, o milagre induziria em erro.
845 - Os heréticos sempre Ubi est Deus tuus? Mostram-
combateram essas três marcas no os milagres e são um relâm-
que eles não têm. pago.
846 - Primeira objeção: 847 - Uma das antífonas
"Anjo do céu. Não se deve julgar das vésperas de Natal: Exortum
a verdade pelos milagres, mas os est in tenebris lumen rectis
milagres pela verdade. Logo, os corde 222 .
milagres são inúteis". *848 - Se a misericórdia de
Ora, eles são úteis, e não se Deus é tão grande que ele nos
deve ir contra a verdade. O padre instrui salutarmente mesmo
Lingendes disse que "Deus não quando se esconde, que luz não
permitirá que um milagre possa poderemos esperar quando se
induzir em erro" ... descobre?
Quando houver contestação na 849 - Est et non est será
mesma Igreja, o milagre decidirá. aceito na fé assim como os mila-
Segunda objeção: "Mas o An- gres? E se é inseparável nos
ticristo fará sinais". outros ...
Os mágicos do faraó não indu- Quando São Xavier faz mila-
ziam em erro. Assim não se gres. - [Santo Hilário - Mise-
poderá dizer a Jesus Cristo, acer- ráveis que nos forçais a falar dos
ca do Anticristo: "Vós me indu- milagres.]
zistes em erro~'. Porque o Anti- Juíze~ injustos, não improvi-
cristo os fará contra Jesus e eles seis leis, julgai pelas que estão
não podem induzir em erro. Ou estabelecidas e por vós mesmos:
Deus não permitirá falsos mila- Vae qui conditis leges ini-
gres ou fará outros maiores. quas223.
[Desde o princípio do mundo, Milagres contínuos, falsos.
Jesus Cristo subsiste: isso é mais A fim de enfraquecer vossos
importante do que todos os mila- adversários, vós desarmais toda a
gres do Anticristo.] Igreja.
Se na mesma Igreja ocorresse
um milagre do lado dos errados, 222 Uma luz surgiu nas trevas para os que

têm puro o coração (Salmo III, 4).


seríamos induzidos em erro. O 223
Desgraçado sejais vós que criais leis
cisma é visível, o milagre é visí- injustas (Isaías, 10, I).
266 PASCAL

Se dizem que nossa. salvação nascença. Que diz São Paulo?


depende de Deus, são "heréti- Relata as profecias de todas as
cos". Se dizem que se submetem horas? Não, mas seu milagre.
ao Papa, são "hipócritas". Se Que diz Jesus Cristo? As profe-
estão resolvidos a assinar todas cias? Não: sua morte não as
as constituições, isso não basta. havia cumprido; mas ele diz: si
Se dizem que não se deve matar nonfecissem. Crede nas obras.
por uma maçã, "combatem a Dois fundamentos sobrenatu-
moral católica". Se ocorrem mi- rais da nossa religião toda sobre-
lagres entre eles, não é sinal de natural: um visível, outro invisí-
santidade e sim de possível here- vel. Milagre~ com a graça e mila-
sia. gres sem a graça.
Se a Igreja subsistiu, foi por- A sinagogá; que foi tratada
que a verdade não se viu contes.:. com amor como figura de Igreja,
tada, e, se o foi, houve o Papa, e com ódio, porque era apenas a
se não, a Igreja. figura, foi reerguida, estando no
*850 - As cinco proposi- ponto de sucumbir quando estava
ções condenadas. Nada de mila- bem com Deus e por isso era
gre, porque a verdade não era figura.
atacada. Mas a Sorbonne ... Os milagres provam o poder
mas a bula ... que Deus tem sobre os corações
É impossível que os que amam pelo que exerce sobre os corpos.
a Deus de todo o coração desco- Nunca a Igreja aprovou um
nheçam a lgrej a, tão evidente é milagre entre os heréticos.
ela. - É impossível que os que Milagres, apoio da religião:
não amam a Deus acreditem na discerniam os judeus, discer-
Igreja. niram os cristãos, os santos, os
Os milagres têm tal força que inocentes, os verdadeiros crentes.
Deus . precisou advertir que não
Um milagre entre os cismá-
pensassem neles contra ele, con-
ticos não é de temer tanto, por-
quanto seja claro que há um
Deus. Sem o que eles teriam sido que o cisma, que é mais visível
capazes de exercer perturbações. que o milagre, assinala visivel-
Assim esses trechos (Deutero- mente o erro. Mas, quando não
nômio, 13) estão longe de ser há cisma e que o erro está em
contra a autoridade dos milagres; discussão, o milagre discerne.
nada mostra melhor sua força. Si non fecissem quae alius non
Da mesma forma quanto ao fecit 2 2 4 • Esses infelizes que nos
Anticristo: "Até a sedução dos obrigaram a falar dos milagres.
eleitos, se possível". 2 4
2 Se eu não tivesse feito o que outro não fez
851 - A história do cego de (São João, 15, 24).
PENSAMENTOS 267

Abraão, Gideão confirmam a milagres", porque o último é


fé pelos milagres. natural e não o primeiro. Um
Judite. Enfim, Deus fala nas precisa de preceito, o outro não.
últimas opressões. Ezequiel - Diz-se: eis o povo
Se a tibieza da caridade deixa de Deus que fala assim. -
a Igreja quase sem verdadeiros Ezequias.
adoradores, os milagres os exci- A sinagoga não perecia porque .
tam. É um dos últimos efeitos da era a figura [da Igreja]; mas, por-
graça. que era apenas a figura, caiu na
Se ocorresse um milagre com servidão. Era uma figura que
os jesuítas! continha a verdade e, assim, sub-
Quando o milagre desilude a sistiu até que não mais contivesse
expectativa daqueles em cuja pre- a verdade.
sença acontece, e que há despro- Meu Reverendo Pai, tudo isso
porção entre o estado de sua fé e acontecia em imagens. As outras
o instrumento do milagre, ele religiões perecem: essa, não.
deve induzi-los a mudar. Mas a Os milagres são mais impor-
vós, não. Teríamos idênticas ra- tantes do que julgais: serviram à ·
zões para dizer que, se a Eucaris- fundação e servirão à continua-
tia ressuscitasse um morto, seria ção da Igreja até o Anticristo, até
preferível tornar-se calvinista a o fim.
permanecer católico. Mas quan- As duas testemunhas.
do satisfaz a espera, e que os que No Antigo Testamento e no
esperavam que Deus abençoaria Novo, os milagres se fazem pela
os remédios se vêem curados sem ligação das figuras. Salvação, ou
remédios ... coisa inútil, senão para mostrar
Ímpios - Nunca houve sinais que é preciso submeter-se às
do diabo sem um sinal mais forte Escrituras 2 2 5 : figura dos sacra-
de Deus, ou pelo menos sem que mentos.
ele predissesse que isso acontece- 853 - [Cabe julgar com so-
ria. briedade as ordenações divinas,
*85 2 - Injustos persegui- meu Pai São Paulo na ilha de
dores dos que Deus protege visi- Malta.]
velmente: se vos censuram vos- 854 - A dureza dos jesuítas
sos excessos, "falam como os ultrapassa, pois, a dos judeus,
heréticos"; se dizem que a graça uma vez que estes só recusavam
de Jesus nos discerne, ''são heré- crer em Jesus Cristo inocente
ticos"; se há milagres, "trata-se porque duvidavam que os seus
da marca de sua heresia". milagres eram de Deus. Ao passo
Está dito: "Crede na Igreja", 2 2 5 A edição Jacques Chevalier prefere cria-

mas não está dito: "Crede nos turas. (N. <lo E.)
268 PASCAL

que os jesuítas, não podendo 856 - Sobre o milagre -


duvidar que os milagres de Port- Assim como Deus - não tornou
Royal sejam de Deus, não dei- nenhuma família mais feliz, faça
xam de duvidar, ainda, da ino- que não se encontre outra mais
cência desta casa. reconhecida 2 2 6 •
855 - Suponho que se acre- 2 2 6 · Trata-se do milagre do Santo Espinho. A

dite em milagres. Corrompeis a cura de Marguerite Périer no convento de


Port-Royal de Paris é considerada por Pascal
religião a favor de vossos amigos como um sinal de Deus em favor de sua famí-
lia e da causa jansenista. Talvez até seja esse
ou contra vossos inimigos. Dela milagre que decidiu Pascal a empreender sua
dispondes a vosso talante. Apologia.
ARTIGO XIV
Fragmentos polêmicos 2 2 7

857 - Clareza, obscuridade mas talvez nunca ao mesmo


- Haveria obscuridade demais tempo, como hoje. E, se ela sofre
se a verdade não tivesse marcas mais por causa da multiplicidade
visíveis. É admirável a de se ter dos erros, tem a vantagem de que
conservado sempre numa Igreja e tais erros se destroem mutua-
numa assembléia l de homensj mente.
visível. Haveria claridade demais Ela se queixa dos dois, porém
se só houvesse um sentimento mais dos calvinistas, por causa
nessa Igreja; mas, para reconhe- do cisma.
cer o que é verdadeiro, basta ver É certo que muitos desses dois
o que sempre existiu: com efeito, contrários estão enganados; é
é certo que o verdadeiro sempre preciso esclarecê-los.
existiu e que nenhuma falsidade A fé abarca muitas verdades
existiu sempre. que parecem contradizer-se.
*858 - A história da Igreja Tempo de rir, de chorar, etc. Res-
deve propriamente chamar-se a ponde. Ne respondeas, etc.
história da verdade.
A sua fonte é a união das duas
*859 - Há prazer em estar
naturezas em Jesus Cristo; e tam-
num barco batido pela tempes-
bém os dois mundos (a criação
tade, quando estamos certos de
que ele não perecerá. As perse- de um novo céu e de uma nova
terra; nova vida, nova morte;
guições à Igreja são dessa nature-
tudo coisas duplas, guardando os
za.
mesmos nomes); e finalmente os
860 - Depois de tantas mar-
dois homens que estão nos justos
cas de devoção, eles têm ainda a
(porque são os dois mundos e um
perseguição, a melhor das mar-
membro e imagem de Jesus Cris-
cas de devoção.
861 - Belo estado da Igreja, 2 2 Neste artigo, Brunschvicg reuniu os frag-
7

quando somente Deus a sustenta. mentos que, segundo parece, foram escritos
por Pascal no momento em que compunha As
*862 - A Igreja sempre foi Provinciais e não se incluem na preparação da
combatida oor erros contrários, Apologia.
270 PASCAL

to). Assim todos os nomes lhes A outra é que esse Sacramento é


convêm: justos, pecadores; vivo, também uma das figuras da cruz
morto, morto-vivo; eleito, repro- e da glória e uma comemoração
vado, etc. de ambas.
Há um grande número de ver- Eis a fé católica, que com-
dades, de fé como de moral, que preende essas duas verdades que
parecem repugnantes e que sub- parecem opostas.
sistem todas numa ordem admi- A heresia de hoje, não conce-
rável. A fonte de todas as here- bendo que esse Sacramento con-
sias é a exclusão de algumas tenha ao mesmo tempo a pre-
dessas verdades; e a fonte de sença de Jesus Cristo e a sua
todas as objeções, que nos fazem figura, que seja sacrifício e come-
os heréticos, é a ignorância de moração do sacrifício, acredita
algumas de nossas verdades. E, que não se pode admitir uma des-
normalmente, acontece que, não sas verdades sem excluir a outra.
podendo conceber a relação de Apega-se, por isso, a um único
duas verdades opostas, e crendo ponto: de que esse Sacramento é
que a confissão de uma resulta na figurado; e nisso não são heréti-
exclusão da outra, eles se apegam cos. Pensam que excluímos essa
a uma e excluem a outra, pen- verdade, e eis por que nos fazem
sando que tomamos posição con- tantas objeções sobre os textos
trária. Ora, a exclusão é a causa dos padres que o dizem. Enfim,
da heresia deles; e a ignorância negam a presença; e nisso são
de que sustentamos a outra ver- heréticos.
dade causa suas· objeções. 3. 0 exemplo: As indulgências.
1. 0 exemplo: Jesus Cristo é Eis por que o mais curto meio
Deus e homem. Os arianos, não para impedir as heresias é ins-
podendo aliar essas coisas que truir de todas as verdades, e o
crêem incompatíveis, dizem que mais seguro meio de refutá-las é
ele é homem: nisso são católicos. declará-las todas. Que dirão os
Mas negam que seja Deus: nisso heréticos?
são heréticos. Pretendem que ne- Para saber se um sentimento é
gamos sua humanidade: nisso de um padre ... 22 8
são ignorantes. *863 - Todos erram tanto
2. º exemplo: A propósito do mais perigosamente quanto cada
Santíssimo Sacramento. Cremos qual busca uma verdade. Seu
que, sendo a substância do pão erro não consiste em seguir uma
transformada consubstancial- falsidade, mas em não seguir
mente na do corpo de Nosso outra verdade.
Senhor, Jesus Cristo está real..,. 228
• • • é preciso achar o sentido que concilia
mente presente. Eis uma verdade. todas as passagens contrárias.
PENSAMENTOS 271

864 - A verdade está tão glória e julgados antes de nós


obscurecida nesta época e a men- como deuses 2 2 9 • No presente,
tira tão assentada que, não aman- agora que o tempo esclareceu as
do a verdade, não se pode conhe- coisas, isso parece assim. Mas,
cê-la. ao tempo em que era perseguido,
865 - Se há jamais um mo- esse santo era um ,homem que se
mento em que se deve fazer pro- chamava Atanásio; e Santa Tere-
fissão dos dois contrários, é sa era uma jovem. "Elias era um
aquele em que se censura a omis- ~ornem como nós, e sujeito às
são de um. Logo, os jesuítas e os mesmas paixões que nós", diz o
jansenistas fazem mal em escon- apóstolo Tiago 2 3 0 para desenga-
dê-lo; osjansenistas mais, porém, nar os cristãos dessa falsa idéia
porque os jesuítas fizeram me- que nos fez rejeitar o exemplo
lhor profissão dos dois. dos santos como despropor-
866 - Duas espécies de cionado ao nosso estado: "Eram
gente igualam as coisas, como ·as santos", dizemos, "não como
festas aos dias de trabalho, os nós". Que se passava, pois?
cristãos aos padres, todos os Santo Atanásio era um homem
pecados entre si, etc. Daí con- chamado Atanásio, acusado de
cluírem uns que o que é nefasto muitos crimes, condenado em tal
aos padres é-o também aos cris- e tal concílio, por tais e tais cri-
tãos; e outros, que o que não é mes; todos os bispos consentiam
proibido aos cristãos é permitido e o Papa igualmente. Que se diz
aos padres. aos que resistem? Que perturbam
867 - Se a antiga Igreja la- a paz, que fazem cisma, etc.
borava em erro, a Igreja caiu. Se Zelo, luz. Quatro espécies de
ainda laborasse hoje, não seria a pessoas: zelo sem ciência; ciência
mesma coisa, pois recebe sempre sem zelo; nem ciência nem zelo;
a máxima superior da tradição, zelo e ciência. As três primeiras o
da mão da antiga Igreja; assim, condenam, as últimas o absol-
essa submissão à antiga Igreja vem, são excomungadas pela
prevalece e tudo corrige. Mas a Igreja e, no entanto, salvam a
antiga Igreja não supunha a Igre- Igreja.
ja futura e não a encarava, como 869 - Se Santo Agostinho
supomos e encaramos a antiga. viesse hoje e tivesse tão pouca
autoridade quanto seus defenso-
*868 - O que nos indispõe
res, nada faria. Deus conduz bem
para comparar o que se passou
outrora na lgrej a com o que se vê 229
Noutras edições: e agindo conosco como
agora é que, ordinariamente, se deuses. (N. do E.) ·
2 30
Pascal escrevera São Pedro. No manus-
encara Santo Atanásio, Santa Te- crito, porém, estas palavras estão riscadas. A
resa e outros como coroados de passagem é de São Tiago, 5, 17. (N. do E.) ·
272 PÂSCAL

sua Igreja, tendo-o enviado à por todos como tendo poder de


frente, com autoridade. insinuar em todo o corpo, porque
870 - Deus não quis absol- · detém o ramo principal que se
ver sem lgrej a. Como ela parti- insinua por toda parte? Como
cipa da ofensa, ele quer que parti- fora fácil fazer degenerar isso em
cipe do perdão. Ele a associa a tirania! Eis por que Jesus Cristo
esse poder como fazem os reis lhes deu este preceito: Vos autem
com os parlamentos; mas, se ela non sic.
absolve ou prende sem Deus, não 873 - O Papa odeia e teme
é mais a Igreja: como no parla- os sábios que a ele não estão sub-
mento, pois, ainda que o rei con- metidos pelo voto.
ceda graça a um homem, deve a 874 - É preciso não julgar o
graça ser ratificada; mas, se o que é o Papa por algumas pala-
par lamento ratifica sem o rei ou vras dos padres, como diziam os
se recusa à ratificação, apesar gregos num concílio (regra im-
da ordem do rei, não se trata pórtante), mas pelas ações da
mais do parlamento do rei e sim Igreja e dos padres, e pelos
de um corpo revoltado. cânones.
8 71 - Igreja, Papa, Unida- Duo aut tres. ln unum - A
de, Multidão - Considerando a unidade e a multidão: é erro
Igreja como unidade, o Papa, excluir uma das duas, como
quem quer que seja ele, é o chefe, fazem os papistas que excluem a
é como tudo. Considerando-a multidão, ou os huguenotes que
como multidão, o Papa é apenas excluem a unidade.
uma parte dela. Os padres consi- 8 7 5 - Seria desonroso para
deram-na ora de um modo, ora o Papa receber de Deus e da tra-
de outro; falaram diversamente dição suas luzes? Não seria de-
do Papa. (São Cipriano: Sacer- sonra para ele separá-lo dessa
dos Dei.) Mas, estabelecendo santa união?
uma dessas duas verdades, não 8 76 - Deus não faz ~ilagres
excluíram a outra. A multidão na conduta ordinária da Igreja.
que não se reduz à unidade é con- Seria um milagre estranho se a
fusa; a unidade que não depende infaiibilidade estivesse em um;
da multidão é tirania. Só resta mas, estando na multidão, isso
quase a França, onde seja permi- parece natural, pois a conduta de
tido dizer que o concílio está Deus se esconde na natureza,
acima do Papa. como em todas as suas obras.
872 - O Papa é o primeiro. 877 - Os reis dispõem de seu
Quem mais é conhecido por império; mas os papas nao
todos? Quem mais é reconhecido podem dispor do seu.
PENSAMENTOS 273

878 - Summum jus, summa blico. Pasce oves meas, não tuas.
injuria 2 3 1 • Deveis-me alimento.
A pluralidade é a melhor via, 880 - Ama-se a segurança.
porque é visível e porque tem Quer-se que o Papa seja infalível
força para se fazer obedecer; no em matéria de fé e que os douto-
entanto, é a opinião dos menos res graves o sejam em matéria de
hábeis. costumes, a fim de se ter seguran-
Se fosse possível, ter-se-ia ça.
posto a força nas mãos da justi- 881 - A Igreja ensina e Deus
ça: mas, como a força não se inspira. Um e outro infalivel-
deixa manejar como se quer, por- mente. A operação da Igreja
que é uma qualidade palpável, ao serve apenas para preparar a
passo que a justiça é uma quali- graça ou a condenação. O que
dade espiritual de que se dispõe ela faz basta para condenar, não
como se quer, a justiça foi posta para inspirar.
entre as mãos da força; e, assim, 882 - Todas as vezes que os
se chama justo ao que se é força- jesuítas induzirem o Papa em
do a observar. erro, tornarão a cristandade per-
Vem daí o direito da espada, jura. O Papa é facilmente indu-
pois a espada dá um verdadeiro zido em erro por causa de suas
direito. De outro modo, ver-se-ia ocupações e da confiança que
a violência de um lado e a justiça deposita nos jesuítas; e os jesuí-
do outro. (Fim da décima segun- tas são muito capazes d.e induzir
da Provincial.) Vem daí a injus- em erro por causa da calúnia.
tiça da Fronda, que eleva a sua 883 - Os infelizes que me
pretensa justiça contra a força. obrigaram a falar do fundo da
Não acontece o mesmo na Igreja; religião.
pois há uma justiça verdadeira e 884 - Pecadores purificados
nenhuma violência. sem penitência, justos justifi-
879 - Injustiça - A jurisdi- cados sem caridade, todos os
ção não é dada ao administrador cristãos sem a graça de Jesus
e sim ao administrado. É peri- Cristo, Deus sem poder sobre a
goso dizê-lo ao povo; mas o povo vontade dos homens, uma pre-
tem demasiada fé em vós; isso destinação sem mistério, uma
não o prejudicará e pode ser-vos redenção sem certeza!
útil. É preciso, pois, torná-lo pú- *885 ·-. Faz-se padre quem
quer, como sob Jeroboão. É hor-
2 3 1 O direito extremo é a extrema injustiça rível que nos apresentem a disci-
(citado por Charron, que se refere a Terêncio, plina atual da Igreja como exce-
Heautontimorumenos, IV, e a Cícero, De Offi-
ciis, 1, 10). lente e considerem um crime
274 PASCAL

querer mudá-la. Outrora ela era não são membros da hierarquia,


boa infalivelmente, e verifica-se participaram dessas corrupções,
que puderam mudá-la sem peca- é certo, por outro lado, que os
do; e agora, tal qual é, não se verdadeiros pastores da Igreja,
pode desejá-la mudada! Foi per- que são os verdadeiros depositá-
mitido mudar o hábito de fazer rio·s da palavra divina, conserva-
padres com tamanha circuns- ram-na imutavelmente contra os
pecção que bem poucos eram esforços dos que empreenderam
dignos de sê-lo, e não será permi- arruiná-la.
tido queixar-se do costume, que Assim, não têm os fiéis ne-
faz tantos padres indignos! nhum pretexto para seguir esses
*886 - Heréticos - Eze- relaxamentos, que só lhes são
quiel. Todos os pagãos falavam oferecidos pelas mãos estran-
mal de Israel, e o profeta tam- geiras desses casuístas, em lugar
bém; nem por isso tinham os da sã doutriiia, que lhes é apre~
israelitas direito de dizer-lhe: sentada pelas mãos paternais de
"Falais como os pagãos", pois ti- seus próprios pastores. E os ím-
rava sua maior força do fato de pios e os heréticos não têm ne-
os pagãos falarem como ele. nhum pretexto para apresentar
887 - Os jansenistas asseme- esses abusos como marcas da
lham-se aos heréticos pela refor- falta de providência de Deus em
ma dos costumes; mas vós vos relação à sua Igreja, porque,
assemelhais a eles pelo mal. como a Igreja está propriamente
888 - Ignorais as profecias, no corpo da hierarquia, decorre
se não sabeis que tudo isso deve daí que não podemos concluir do
acontecer: príncipes, profetas, estado presente das coisas que
papas e mesmo os padres; e, no Deus a tenha abandonado à
entanto, a Igreja deve subsistir. corrupção, mas que, nunca mais
Graças a Deus, não chegamos a do que . hoje, ele parece tê-la
tanto. Desgraçados sejam esses defendido visivelmente contra a
padres!, mas esperamos que corrupção.
Deus nos concederá a miseri- Pois, se alguns desses homens
córdia de não sermos desses. que, por uma vocação extraordi-
São Pedro, cap. 2: falsos pro- nária, fizeram voto de sair do
fetas do passado, imagem dos mundo e envergar o hábito reli-
futuros. gioso para viver em um estado
889 - ... De maneira que, se mais perfeito que o comum dos
é verdade, por um lado, que al- cristãos, caíram em relaxamentos
guns religiosos relaxados e al- que causam horror aos cristãos
guns casuístas corrompidos, que comuns e se tornaram entre nós o
PENSAMENTOS 275

que eram os falsos profetas entre garante a bolsa mostrando essa


os judeus, trata-se de uma des- injustiça.
graça pessoal e particular que se 894 - Os que amam a Igreja
deve, em verdade, lamentar, mas queixam-se de ver corromperem-
da qual não há como tirar qual- se os costumes; ma_s, ao menos,
quer conclusão acerca do cuida- subsistem as leis. Os outros,
do que Deus tem com sua Igreja. porém, corrompem as leis: estra-
Tanto mais quanto todas essas gam o modelo.
coisas estão tão claramente pre- *895 - Nunca se faz o mal
ditas, e que foi anunciado de há tão plena e alegremente como
muito que essas tentações se quando se faz com consciência.
evidenciariam da parte dessa es- 896 - Foi em vão que a Igre-
pécie de gente; e que, quando se ja adotou estes vocábulos: here-
está bem instruído, vê-se antes sia, anátema, etc. . . Servem-se
nisso as marcas da conduta de deles contra ela.
Deus do que seu esquecimento a 897 - O servo não sabe o que
nosso respeito. faz o senhor porque este lhe apre-
890 - Tertuliano: nunquam senta tão-somente a ação e não o
Ecclesia reformabitur 2 32. objetivo; e é por isso que ele se
891 - É preciso mostrar aos submete tão servilmente e peca
heréticos, que se prevalecem da muitas vezes contra o objetivo.
doutrina dos jesuítas, que não é a Mas Jesus disse-nos o fim. E vós
da Igreja. . . a doutrina da Igre- destruís esse fim.
ja; e que nossas dissensões não 898 - Não podem ter a
nos afastam do altar. perpetuidade e buscam a univer-
892 - Se, divergindo, conde- salidade; e por isso dizem que
nássemos, teríeis razão. A unifor- toda a lgrej a está corrompida, a
midade sem diversidade é inútil fim de que eles sejam sãos.
aos outros, a diversidade sem 899 - Contra aqueles que
uniformidade é ruinosa para nós. abusam dos trechos das Escritu-
Uma nociva exteriormente, outra ras e se prevalecem. do fato de
interiormente. encontrarem algum que parece
893 - Mostrando a verdade, favorecer seu erro.
faz-se que nela acreditem; mas, O capítulo das Vésperas, o
mostrando a injustiça dos minis- domingo da Paixão, a oração
tros, não se faz que se corrija. pelo rei.
Garante-se a consciência mos- Explicação destas palavras:
trando _essa falsidade; não se "Quem não é por mim é contra
mim". E estas outras: "Quem
23 2 A Igreja nunca será reformada. não é contra vós, é por vós". -
276 PASCAL

Uma pessoa que . diz: "Não sou Há pessoas que se aborrecem


nem a favor nem contra". Deve- com esse constrangimento. Que-
mos responder-lhe ... rem ter, como os outros povos, a
900-- Quem quer dar o senti- liberdade de seguir as suas imagi-
do das Escrituras e não o toma nações. É em vão que lhes grita-
nas Escrituras é inimigo das mos, como os profetas faziam
Escrituras. (Agostinho, d. d. c.) outrora aos judeus: "Ide à Igreja;
233 informai-vos das leis que os anti-
901 - "Humilibus dat gra- gos lhe deixaram e segui esses
tiam "; an ideo non dedit humili- caminhos"·. Respondem como os
tatem ?2 3 4 judeus: "Não iremos; queremos
"Sui eum non receperunt; seguir os pensamentos do nosso
quotquot autem non receperunt" coração, e ser como os outros
an non erant sui?23 6 povos".
902 - "É preciso", diz Feuil- 904 - Fazem da exceção a
lant, "que isso não seja certo, regra.
porque a contestação marca a Os antigos deram a absolvição
incerteza" (Santo Atanásio, São antes da penitência? Fazei-o com
Crisóstomo; a moral, os infiéis). o espírito de exceção. Mas, da
Os jesuítas não tornaram a exceção, vós fazeis uma regra
verdade incerta, mas tornaram a sem exceção, de maneira que não
impiedade certa. quereis sequer que a regra seja
A contradição sempre foi dei- exceção.
xada para cegar os maus; pois 905 - Acerca das confissões
tudo o que choca a verdade ou a e absolvições sem sinais de arre-
caridade é ruim; eis o verdadeiro pendimentos.
princípio. Deus só observa o interior: a
*903 - Todas as religiões e Igreja só julga pelo exterior.
todas ·as seitas do mundo têm Deus absolve logo que vê a peni-
tido a razão natural por guia. Só tência no coração; a Igreja, quan-
os cristãos têm sido obrigados a do a vê nas obras. Deus fará uma
tomar suas regras fora de si mes- Igreja pura por dentro, que con-
mos e a se informarem das que funda, por sua santidade interior
Jesus Cristo deixou aos antigos e toda espiritual, a impiedade
para serem transmitidas aos fiéis. interior dos sábios soberbos e dos
fariseus; e a Igreja fará uma
2 3 De Doctrina Ghristiana.
J
23 4
"Aos humildes dá a graça"; não lhes teria assembléia de homens cujos cos-
dado a humildade? (São Tiago, 4, 6). tumes exteriores sejam tão puros
23 5
"Os seus não o receberam; todos os que
não o receberam" não seriam dos seus? (São que confundam os costumes dos
João, 1, 11-12). pagãos. Se há hipócritas tão bem
PENSAMENTOS 277

disfarçados que ela não conhece *908 Será provável que a


o seu veneno, tolera-os; com efei- probabilidade garanta? Dife-
to, ainda que não sejam recebi- rença entre o repouso e a firmeza
dos por Deus, que não podem de consciência. Só a verdade dá
enganar, o são pelos homens, que segurança; só a busca sincera da
enganam. Assim, ela não é de- verdade dá repouso.
sonrada por sua conduta, que pa- 909 - Toda a sociedade de
rece santa. seus casuístas não pode dar segu-
Mas quereis que a Igreja não rança à consciência no erro, eis
julgue nem o interior porque isso por que é importante escolher
só compete a Deus, nem o exte- bons guias.
rior, porque Deus só se detém no Assim serão eles duplamente
interior, e assim, tirando-lhe toda culpados: tanto por terem segui-
a possibilidade de escolha dos do caminhos que não deviam se-
homens, retendes na Igreja os guir como por terem ouvido dou-
mais depravados e os que a tores que não deviam ouvir.
desonram tanto que as sinagogas 910 - Talvez não seja a
dos judeus e as seitas dos filóso- complacência do mundo que vos
fos os teriam exilado como indig- leve a achar as coisas prováveis.
nos e os teriam abominado como Buscareis fazer-nos crer que seja
ímpios. a verdade, e que, se não houvesse
*906 - As condições mais a moda do duelo, acharíeis pro-
fáceis de viver segundo o mundo vável que se possa duelar, enca-
são as mais difíceis de viver rando a coisa em si mesma?
segundo Deus; e, ao contrário, 911 - Dever-se-á matar
nada é tão difícil segundo o para impedir que haja maus?
mundo do que a vida religiosa; Isso é fazer dois maus em lugar
nada é mais fácil do que viver de um: Vince in bono ma/um.
sem Deus. Nada é mais fácil do 912 - Universal - Moral e
que ter um grande cargo e gran- linguagem são ciências particula-
des bens segundo o mundo; nada res, mas universais.
é mais difícil do que nele viver 913 - Probabilidade
segundo Deus, e sem nele tomar Todos podem pôr, ninguém pode
parte e gosto. tirar.
907 - Os casuístas subme- 914 - Eles deixam agir a
·tem a decisão à razão corrupta e concupiscência e retêm o escrú-
a escolha das decisões à vontade pulo, quando se deveria fazer o
corrupta, a fim de que tudo o que contrário.
há de corrupto na natureza do 915 - Monta/te - As opi-
homem participe da sua conduta. niões relaxadas agradam tanto
278 PASCAL

aos homens que é estranho que as tros. Dignos discípulos de tais


deles lhes desagradem. É que eles mestres, digni sunt, procuraram
excederam todos os· limites. E, aduladores e os encontraram.
além disso, há muita gente que vê 920 - Se renunciarem à pro-
a verdade e não pode atingi-la. babilidade, suas boas máximas
Mas há pouca que não saiba que serão tão pouco santas quanto as
a pureza da religião é contrária más, porque assentam na autori-
às nossas corrupções. Ridículo ·é dade humana; assim, se forem
dizer que uma recompensa eterna mais justas, serão mais razoá-
é oferecida a costumes duvido- veis, porém não mais santas. Eles
sos. se prendem ao tronco selvagem
916 - Probabilidade em que se enxertam.
Eles têm alguns princípios verda- Se o que digo não serve para
deiros; mas abusam deles. Ora, o vos esclarecer, servirá ao povo.
abuso das verdades deve ser pu- · Se aqueles se calarem, falarão
nido da mesma maneira que a as pedras. ·
introdução à mentira. O silêncio é a maior persegui-
Como se houvesse dois infer- ção. Nunca os santos se calaram.
nos, um para os pecados contra a É verdade que é preciso vocação,
caridade, outro para os pecados mas não são as sentenças do
contra a justiça! Conselho que é preciso conhecer
91 7 - Probabilidade - O quando se é chamado; e sim a
ardor dos santos em pl,"ocurar a necessidade de falar. Ora, depois
verdade seria inútil se a probabi- que Roma falou e que se pensa
lidade fosse certa. Medo dos san- que esse Conselho condenou a
tos que sempre tinham seguido o verdade e que eles o escreveram,
mais seguro (Santa Teresa tendo e que os livros que disseram o
sempre seguido seu confessor). contrário foram censurados, cabe
918 - Tirai a probabilidade, gritar tanto mais alto quanto
não se pode mais agradar ao mais injustamente somos censu-
mundo: ponde a probabilidade, rados e tentam abafar-nos a pala-
não se pode mais desagradar-lhe. vra mais violentamente, até que
919 - São os efeitos dos surja um Papa que ouça ambas
pecados dos povos e dos jesuítas: as partes e consulte a antiguidade
os grandes aspiravam a ser adu- para render justiça. Por isso, os
lados; os jesuítas desejaram ser bons papas ainda encontrarão a
amados pelos grandes. Todos Igreja cheia de clamores.
foram dignos de ser abandonados A Inquisição e a Sociedade,
ao espírito da mentira, uns, para dois flagelos da verdade.
enganar, ambiciosos, voluptuo- Por que não os acusais de aria-
sos: Coacervabunt sibi magis- nismo? Pois disseram que Jesus
PENSAMENTOS 279

Cristo era Deus. Talvez eles o Não ganhareis mais acusando-


entendam, não pela_ sua natureza, me de impostura.
mas como está dito, Dii estis. Não disse tudo, vós o ve-
Se minhas cartas forem conde- reis ...
nadas em Roma, o que nelas eu 921 - ... . Os santos sutili-
condeno está condenado no céu: zam para se achar criminosos e
Ad tuum, Domine Jesu, tribunal acusam suas melhores ações. E
appel/o. esses sutilizam para desculpar as
Vós mesmos sois corruptíveis. piores.
Receio que tenha escrito mal, Um edifício igualmente belo
vendo-me condenado; mas o por fora, mas sobre maus alicer-
exemplo de escritos tão piedosos ces. Os pagãos avisados cons-
me faz acreditar no contrário. truíam-no. E o diabo engana os
Não é mais permitido escrever homens por essa semelhança
bem, de tal maneira a Inquisição aparente, assentada no funda-
é corrompida e ignorante! mento mais diferente.
"É melhor obedecer a Deus do Jamais alguém teve causa tão
que aos · homens." Nada receio; boa como . eu. E nunca ninguém
nada espero; os bispos não são foi tão bom alvo como vós.
assim. O Port-Royal receia, e é Quanto mais marcam com fra-
má · política separá-los; pois não queza a minha pessoa, mais auto-
recearão mais e se farão recear ridade dão à minha causa.
mais. Não temo sequer vossas Dizeis que sou herético. É isso
censuras particulares, se não se permitido?
baseiam na tradição. Censurais E, se não temeis que os ho-
tudo? Mesmo o meu respeito? mens façam justiça, não temeis
Não. Dizei, portanto, o que, ou que Deus a faça?
não fareis nada, se não apontar- Sentireis a força da verdade e
des o mal e por que é o mal. E é cedereis ...
o que terão dificuldade em fazer. Há algo sobrenatural em ta-
Probabilidade - De bom manha cegueira. Digna necessi-
grado explicaram a segurança; tas.
pois, após terem estabelecido que Falsa devoção, duplo pecado.
todos os seus caminhos são segu- Estou só contra trinta mil?
ros, não mais se referiram ao que Ficai com a corte, com a impos-
leva ao céu, sem perigo de lá não tura; eu, com a verdade, é toda a
chegar, e sim ao que leva ao céu, minha força; se a perco'} estou
sem perigo de sair desse cami- perdido. Não me faltarão acusa-
nho. ções e perseguições. Mas tenho a
Que ganhastes, acusando-me verdade, e veremos quem ganha-
de zombar das coisas santas?· rá.
280 PASCAL

Não sou digno de defender a 923 - Não é somente a absol-


religião, mas vós não mereceis vição que redime os pecados pelo
defender o erro e a injustiça. Que sacramento da penitência, mas a
Deus, em sua misericórdia, não contrição, a qual não é verda-
atentando para o mal que está em deira se não busca o sacramento. ·
mim e atentando para o bem que 924 - Gente sem palavra,
está em vós, nos conceda a todos sem fé, sem honra, sem verdade,
a graça de a verdade não sucum- dúbia de coração e de língua, e
bir em minhas mãos, e a menti- . semelhante, como vos foi outrora
ra ... censurado, a esse animal anfíbio
922 - Provável - Que se da fábula, que se mantém em um
verifique se procuramos sincera- estado ambíguo, entre o peixe e o
mente Deus pela comparação das pássaro ...
coisas que amamos; é provável Importa aos reis, aos prínci-
que essa carne não me envenene; pes, serem estimados pela devo-
é provável que não perca meu ção: e, para tanto, é preciso que
processo não solicitando ... se confessem a vós.
ÍNDICE

INTRODUÇAÕ . •. ••••• . . . . . . . . . . . •. . . . •. . • . . . . . . ••. . . . . . . . . 7


A VIDA DE PASCAL, escrita por Mme Périer, sua irmã . . . . . . . . . . . . . . . 13

PENSAMENTOS

ART.I - Pensamentos sobre o espírito e sobre o estilo . . . . . . . . . 41


ART. II - Miséria do homem sem Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
ART. III - Da necessidade da aposta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
ART. IV - Dos meios de crer ....... . ........... ~ . . . . . . . . . 105
ART. V - A justiça e a razão dos efeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
ART. VI - Os filósofos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 7
ART. VII - A moral e a doutrina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
ART. VIII - Os fundamentos da religião cristã . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
ART. IX -- A perpetuidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 7
ART.X - Os figurativ<;>s . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
ART.XI - As profecias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 7
ART. XII - As provas de Jesus Cristo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239
ART. XIII Os milagres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
ART.XIV - Fragmentos polêmicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
- _ Este livro integra a coleção
OS PENSADORES - HISTÓRIA DAS GRANDES IDtlAS DO MUNDO OCIDENTAL
Composto e impresso nas oficinas da
Abril SA. Cultural e Industrial, caixa postal 2372, São Paulo

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