Os mitos, por sua • Desde as de Heráclito de Éfeso, Xenófanes de Colossas e,
natureza, se apresentam sobretudo, de Platão, para quem os mitos são produtos da com estrutura complexa, ignorância e, portanto, nefastos e perigosos, até os eruditos difícil e até mesmo da mitologia moderna que, partindo do sentido dos mitos nas comunidades arcaicas, vêem-nos como "histórias verdadeiras" obscura. Por causa dessa e preciosas pelo seu caráter sagrado, exemplar e significativo. realidade estrutural, surgiram — e continuam surgindo — muitas interpretações e posições extremamente diferentes. Para não fugir do nosso objetivo, não vamos nos alongar Compreender essas estranhas formas de nas interpretações dos comportamento (...) que são reconhecimento do fenómeno da cultura, criação do espírito e não como mitos. Queremos irrupção patológica de instintos, bestialidade ou considerá-los aqui infantilidade". Somente quando lidos nessa como categorias de perspectiva histórico-religiosa é que se revelarão como "fenómenos da cultura, perdendo seu caráter interpretação da aberrante ou monstruoso de jogo infantil ou de ato religião, procurando, puramente instintivo". no dizer de M. Eliade, " Para Eliade, um dos mais renomados mitólogos do • Ampliando essa definição, Eliade diz que "o mito momento, "todo mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, uma conta uma história realidade total, o Cosmo, ou apenas um sagrada; ele relata um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um acontecimento comportamento humano, uma instituição". ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio" • a. Caráter narrativo: os mitos são sempre relatos de A partir do conceito uma criação.
de Eliade, podemos • b. Caráter sagrado: os agentes da criação são
sempre Seres Sobrenaturais. Assim, os mitos inferir quatro relatam as façanhas desses Entes no "tempo fabuloso dos inícios". características Ora, o caráter de "sacralidade" ou de principais do mito "sobrenaturalidade" dos mitos decorre do fato de os agentes serem sobrenaturais. Segundo Eliade, é essa "irrupção do Sagrado que realmente fundamenta o • c. Caráter verdadeiro: os mitos falam do que mundo e o converte no realmente aconteceu e, portanto, não são frutos que é hoje". E mais. "É de fantasia ou de imaginação. O mito comogônico, modelo exemplar para toda espécie de criação é em razão da intervenção comprovado pela própria existência do mundo, dos Entes Sobrenaturais que atesta seu caráter verdadeiro. O mesmo que o homem é o que é acontece com o mito da morte, comprovado pela hoje, um ser mortal, mortalidade do homem. E assim por diante. sexuado e cultural." • Ao perguntar aos Arunta australianos por que d. Caráter exemplar: razão celebravam determinadas cerimónias, o Sendo os mitos os relatos missionário etnólogo C. Strehlow obtinha sempre a do que fizeram os Entes mesma resposta: Sobrenaturais na • "Porque os ancestrais assim o prescreveram". Os inauguração do tempo e Kai, da Nova Guiné, recusaram-se a modificar seu modo de trabalho porque "foi assim que fizeram os do Cosmo, eles se tornam Manu — seus ancestrais míticos — e fazemos modelos exemplares de como eles". todas as atividades • Esta é também a justificativa invocada pelos humanas significativas. teólogos ritualistas hindus: "Devemos fazer o que os deuses fizeram no princípio. Assim fizeram os deuses; assim fazem os homens". • Como vemos, os mitos implicam sempre um retorno. Eles rememoram o que os Entes Sobrenaturais fizeram nos "tempos fabulosos" do início da realidade. • O homem, voltando no tempo, passando por cima do tempo profano, cronológico, ingressa num tempo sagrado, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável. • Nesse retorno ao mito, o homem se sente convictamente ligado e firmado aos Entes Sobrenaturais ou aos Heróis míticos. • Eliade traz o exemplo do mito cristão da criação do homem à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27): tal mito está expressando a íntima convicção do homem de que a sua realidade está fortemente ancorada numa realidade absoluta, Deus, que nenhuma potência deste mundo pode destruir. Esta volta do homem aos seus primórdios lhe dá a mais absoluta segurança. • O mito, como afirmamos antes, é sempre a narrativa de uma criação: conta-nos como algo que não existia. Por outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva que, no dizer de J. S. Brandão, "é transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo. • Mito, portanto, é parole, a palavra 'revelada', o dito. E, desse modo, do mito se pode exprimir ao nível da linguagem, ele é, antes de tudo, segundo Van der Leeuw, 'uma palavra que circunscreve e fixa um acontecimento'". • realidade humana chegada até nós através de várias gerações, por pretender explicar o homem e o mundo, isto é, a complexidade do real, por isso, prossegue Brandão, "o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma janela para todos os ventos, presta-se a todas as interpretações".31 "É o tudo e é o nada", na expressão de F. Pessoa.3 ' 2 Daí a afirmação de R. Barthes: "O mito nao pode ser conseqúentemente um objeto, um conceito, ou uma ideia; ele é um modo de significação, uma forma".33 • Na linguagem popular, o mito leva o sentido de fantasia, criação da imaginação, ilusão. Mas os autênticos mitólogos não acatam esta concepção. R. Barthes, de acordo com J. S. Brandão, "apresenta o conceito do mito como qualquer forma substituível de uma verdade. Uma verdade que esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-lo como verdade profunda da nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que ele contém. Muitos vêem no mito tãosomente os significantes, isto é, a parte concreta do signo. E mister ir além das aparências, e buscar-lhe os significados, quer dizer a parte abstrata, o sentido profundo".31 • Já C. G. Jung, segundo J. S. Brandão, considera o mito como que a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido"35 . A palavra de Jung, prossegue o • autor citado, ilustra melhor o exposto: "Os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da existência individual, ao passo que os conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos que existem sempre a priori".36 Ora, o inconsciente não pode manifestarse de forma conceituai, verbal, e, por isso, ele o faz através de símbolos. "Atente-se", afirma Brandão, "para a etimologia de símbolo, do grego 'symbolon', do verbo 'symbállein', 'lançar com', arremessar ao mesmo tempo, 'com-jogar'. De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto dividido em duas partes, cujo ajuste, confronto, permitia aos portadores de cada uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito de equivalência." "Assim, para atingir o mito, que se expressa por símbolos, é preciso fazer uma equivalência, uma 'con-jugação', uma 're-união', porque, se o signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa sempre mais do que seu significado evidente e imediato".37 • a. Os mitos da criação narram a formação do mundo. Por exemplo, o mito babilónico no poema Enuma Elish: "Quando os céus, acima, ainda não tinham nomes e nem a terra embaixo era chamada por seu nome, quando o primeiro Apsu, seu procriador, Mummu Tiamat, que a todos havia engendrado, cruzou suas águas e ainda as câmaras sagradas não tinham sido consolidadas, nem se podiam encontrar canas nos juncais, quando nenhum dos deuses resplandecia, nem eram chamados por seus nomes, quando os destinos não estavam fixados, então nasceram deuses do seu seio".3 • b. Os mitos da origem do género humano narram, em geral, como tudo foi formado a partir de um objeto da natureza, como, por exemplo, de uma montanha, de uma árvore etc. Os herrero, da África, acreditavam que seus antepassados tinham surgido de uma árvore sagrada. A diferença entre estes mitos e os de origem é que aqui não se trata de um ser divino ou de uma matéria divina. Tal criação é mais propriamente uma emanação da terra já existente com seus animais e plantas. Note-se, neste contexto, que a origem do género humano no mundo vegetal parece ser uma concepção • mítica muito generalizada. Podemos recordar o mito nórdico de Ask e Embla, ou o iraniano de Masya e Masyane: Ahriman, despertando de um longo estado letárgico de milhares de anos, no qual fora colocado por Ahura Mazda, repleto de ira se precipita no mundo da luz e espalha a morte e a perdição por toda a criação. Ahriman mata o homem primordial e o touro primordial que haviam convivido num estado paradisíaco. No momento de sua morte, Gayomart, o homem primordial, e Gosurum, o touro primordial, derramam seu sémen, e, assim, do homem primordial nascem os primeiros homens, Masyz e Masyane, e do touro primordial nasce o gado. Os primeiros homens crescem da terra como plantas.42 • chamado herói epônimo. Por exemplo, o de Licaon, que aparece no mito como fundador da cidade. As tradições das colónias gregas estão repletas de relatos referentes a tais heróis da tribo.43 • d. Os mitos de fundação do culto também são, mitos universais. Os mitos totêmicos da Austrália, por exemplo, reproduzem o estabelecimento das cerimónias sagradas por parte do antepassado totêmico, quando, nos tempos originais, vagava pela terra. Mitos desse tipo são frequentes na religião grega. A descrição que Pausânias faz da Grécia traz inúmeros exemplos. Para Widengren, a proximidade entre os mitos da fundação do culto e do herói tribal "é natural. E como, muitas vezes, o herói tribal é considerado como um personagem divino e elevado à categoria de civilizador, ou, ao contrário, o civilizador alcança o grau de herói tribal, esse tipo de mitos está também em estreita relação com os mitos do civilizador".44 • e. Nos mitos do civilizador, se existe uma grande variedade, existe, também, uma grande imprecisão. Um exemplo desse tipo de mito é a descrição feita por Beroso de como Oannes sai do mar para a Babilónia e aparece ali como civilizador. Há, também, o célebre mito do civilizador no mito de Prometeu que, roubando o fogo do céu, o tornou conhecido dos homens.45 • f. Os mitos sociais são os que descrevem o nascimento de uma instituição socioreligiosa. Por exemplo, os mitos que tratam do estabelecimento dos diversos grupos totêmicos ou confratemidades dentro das culturas totêmicas podem ser considerados como mitos sociais, enquanto o totemismo é tanto um fenómeno social como religioso. Aliás, é típico do totemismo australiano atribuir, em geral, as leis e costumes da tribo a atividades de antepassados míticos.4
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