Entendemos por "paradigma", em psicanálise, um conjunto de postulados teóricos, com as respectivas
regras técnicas e normas de conduta dos psicanalistas que, visando resolver algo considerado pro- blemático e enigmático para a comunidade científica, determinam a pauta, amplamente dominante e vigente para uma certa época, de como a psicanálise deve ser entendida e praticada. Assim, durante lon- gas décadas predominou, de forma exclusiva, o paradigma freudiano, com uma absoluta ênfase no embate entre os desejos pulsionais e as respectivas defesas do ego, aliadas às ameaças do superego contra eles. Com os teóricos das relações objetais, notadamente M. Klein, o pêndulo da psicanálise inclinou-se para a importância das relações objetais, internalizadas, resultantes das pulsões, especialmente as sádico- destrutivas, ligadas a objetos parciais, acompanhadas por ansiedade de aniquilamento e defesas do ego extremamente primitivas. A fim de ilustrar como a psicanálise transita de um paradigma para outro, creio que cabe fazer um apanhado sintético das principais transformações que importantes postulados de Freud, metapsicológicos, teóricos e técnicos, até então indiscutíveis, sofreram a partir das concepções de M. Klein, como são as seguintes: 1. Pulsão de morte. Freud descreveu o "instinto de morte", pela primeira vez, em Além do princípio do prazer (1920). M. Klein conservou esse mesmo termo (talvez para ser "politicamente correta" com a comunidade psicanalítica da época, maciçamente freudiana) para fundamentar a sua teoria sobre o desenvolvimento primitivo do psiquismo, porém o empregou com uma concepção bem distinta da de Freud. Enquanto para Freud o "instinto de morte" aludia a uma noção metapsicológica de uma "compulsão à repetição de uma energia psíquica, que tende ao inanimado, isto é, à morte", para M. Klein, esse instinto – que equivale à sua posterior (1957) postulação de "inveja primária", alude aos impulsos sádico-destrutivos. 2. Tipo de angústia. Freud enfatizou a importância soberana da angústia de castração, ligada ao conflito edípico, enquanto M. Klein parte da noção de que "a parte do instinto de morte que age dentro do psiquis- mo precoce do bebê provoca uma terrível sensação de morte iminente", à qual ela denomina de angústia de aniquilamento. 3. Mecanismos de defesa. Freud valorizou, sobretudo, o mecanismo defensivo da repressão (a defesa mais evidente nas pacientes histéricas de que ele tratava), além de outras presentes nos quadros paranóides, como a projeção, na psicopatologia das fobias e neuroses obsessivas, como deslocamento, anulação, isolamento e formação reativa. M. Klein, por sua vez, descreveu as defesas primitivas de que o psiquismo do bebê necessita para fazer frente à aludida angústia de aniquilamento, como são: negação onipotente, dissociação (splitting), projeção e identificação projetiva, introjeção e identificação introjetiva, idealização e denegrimento. 4. Formação do ego. Freud postulou que o ego formava-se a partir do id, quando con frontado com o princípio da realidade. Por sua vez, M. Klein, coerente com a sua idéia de que o psiquismo do recém-nato lança mão de defesas primitivas contra a angústia de aniquilamento, descreveu a existência de um ego inato (rudimentar), porquanto quem processa os mecanismos defensivos no psiquismo é o ego. 5. Fases e Posições. Freud (juntamente com Abraham) descreveu as fases (ou etapas, estágios, períodos) do desenvolvimento libidinal, as quais seguem um desenvolvimento biológico (oral, anal, fálico...), en- quanto Klein preferiu a noção de posição. que alude mais diretamente a uma "constelação de pulsões, angústias, defesas. afetos...", que adquirem configurações específicas e que se mantêm presentes ao longo de toda vida. 6. Superego. Como sabemos. Freud postulou que "o superego é o herdeiro direto do complexo de Édipo". M. Klein. baseada na sua observação de análise com crianças de tenra idade, entendia que o superego (os seus precursores) é de formação muitíssimo mais precoce, tem uma natureza cruel e tirânica e está intimamente ligado à pulsão de morte. 7. Complexo de Édipo. Freud situou o início da formação do complexo de Édipo por volta dos 3-4 anos de idade da criança. Para ser coerente com a sua noção da precocidade do superego, M. Klein fez recuar o início da formação daquilo que ela veio a denominar complexo de Édipo precoce. Assim, ela inverte a equação de Freud, afirmando que é Édipo quem se forma no rastro do superego. 8. Sexualidade. Em relação à sexualidade feminina, Freud insistiu nas suas teses de que a mulher sempre tinha uma "inveja do pênis", enquanto Klein deu uma concepção bem mais ampla e distinta à noção de inveja, ligando-a diretamente às pulsões destrutivas, de modo que a "inveja do pênis seria secundária à angústia de castração dos seus genitais, devido à fantasia inconsciente de uma retaliação aos seus ataques ao corpo da mãe". Da mesma forma, Freud não admitia que a meninazinha já tivesse um conhecimento da sua vagina (seria, para ela, um pênis castrado), enquanto M. Klein acreditava que existe, por parte da menina, uma percepção das sensações vaginais, e da vagina como um órgão anatômico seu. Por outro lado, pode-se dizer que a ênfase que Klein deu ao arcaísmo da mente, e dela ter feito Édipo retroagir a etapas primitivas, desfigurou a essência do significado original dessa importante concepção de Freud. 9. Narcisismo. A noção de "narcisismo", para Freud, consistia no investimento da libido no próprio corpo, como um auto-erotismo, de "sua majestade, o bebê". M. Klein não via vantagem na adoção desse postulado, tanto que, no curso de sua vasta obra, ela não empregou o termo "narcisismo" mais do que duas vezes para definir a sua crença de que o narcisismo não era mais do que uma busca do objeto idealizado presente na mente da criança. Poucos contestam que essa posição de M. Klein empobreceu em muito a sua teoria e sua técnica. 10. Repercussão na Técnica. A posição do analista seguidor de Freud ficava basicamente centrada na interpretação dos desejos edípicos, com as respectivas ansiedades e defesas contra a conseqüente angústia de castração. A partir de M. Klein, houve uma profunda ruptura desse paradigma técnico, no sentido de que os analistas kleinianos passaram a intepretar precipuamente as fantasias inconscientes mais diretamente ligadas à agressão e à inveja, assim como também para o assinalamento dos mecanismos defensivos os mais primitivos possíveis; a angústia de aniquilamento e de desintegração; as relações objetais internalizadas; os objetos parciais; o superego tirânico; a ansiedade paranóide, a maníaca e a depressiva; a formação de culpas e a necessária necessidade de fazer reparações, etc. Por tudo isso, tais analistas adotaram uma postura interpretativa bastante mais ativa e precoce, o que, por si só, evidencia o quanto uma transformação paradigmática igualmente promove transformações na ideologia da psicanálise e na forma de o analista analisar. Da mesma forma como Klein pro moveu mudanças no paradigma freudiano, também Bion efetivou profundas transformações na teoria kleiniana e, consequentemente, na prática clínica, porquanto teoria e técnica são indissociáveis. O paradigma kleiniano representou um grande avanço na psicanálise, pois abriu as portas para o tratamento psicanalítico de pacientes psicóticos e outros mais que apresentam um alto grau de regressão, além de haver possibilitado um notável aprofundamento no entendimento do desenvolvimento emocional primitivo do bebê. Um terceiro paradigma que na atualidade já está definitivamente encorpado pelos psicanalistas e que, em sua maior parte, devemos às contribuições de Bion, é o que pode ser denominado psicanálise vincular (outros preferem chamar de "psicanálise das inter-relações", "psicanálise interacional"...).