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História da Psicologia
Influências Filosóficas
HERMANN EBBINGHAUS (1850-1909)
Um Longo Passado
Uma Curta História
Doença Mental - Primórdios
Até ao século XIX
Psicanálise
SIGMUND FREUD (1856-1939)
Três episódios na vida de Freud
Psicanálise
Estudo Experimental da Inteligência
ALFRED BINET (1857-1911)
Binet e os E.U.A.
HENRY GODDARD (1866-1957)
LEWIS TERMAN (1877-1956)
Início da Psicologia na Alemanha - A Fundação e a Institucionalização da Psicologia
Científica
WILHELM WUNDT (1832-1920)
ESCOLA DE WURZBURG
OSWALD KÜLPE (1862-1915)
EDWARD TITCHENER (ver Estados Unidos)
GESTALT (PSICOLOGIA DA FORMA)
MAX WERTHEIMER (1880-1943)
KURT KOFFKA (1886-1941)

História da Psicologia 1
WOLFGANG KOHLER (1887-1967)
Os 4 princípios de Gestalt:
Os 7 fundamentos básicos da Psicologia da Gestalt (muito utilizados no design
ou na arquitetura) são:
Expansão da Psicologia nos E.U.A.
Psicologia nos Estados Unidos
Correntes da Psicologia nos E.U.A.
EDWARD TITCHENER (1867-1927)
ESTRUTURALISMO
FUNCIONALISMO
BEHAVIORISMO - JOHN WATSON (1878-1958)
BEHAVIORISMO - Fase inicial
BEHAVIORISMO - Após Watson
Notas (não avaliação)

Influências Filosóficas
A Psicologia tem um longo passado mas apenas uma curta
histórica.

HERMANN EBBINGHAUS (1850-1909)

Hermann Ebbinghaus

Em 1910, apenas 30 anos depois de Wilhelm Wundt fundar o


primeiro laboratório de pesquisa psicológica em 1879,
Hermann Ebbinghaus descreveu a psicologia como tendo um
longo passado mas uma pequena história.

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Comparando com ciências estabelecidas como astronomia,
anatomia, física, química e fisiologia, a psicologia tem de
facto uma “pequena história”.

Mas como Ebbinghaus disse, a curta história da psicologia é


complementada pelo seu longo passado; muitas das
questões e preocupações da psicologia vem de antes das
civilizações do Egito, Grécia e Roma.
David Hothersall - History of psychology

Um Longo Passado
A noção de que o cérebro é um órgão de importância deverá ter dezenas de
milhares de anos na história da espécie humana, tal como o sugere a prática da
trepanação.
ANTES DO HOMO SAPIENS

Mammuthus Sungari; esta espécie viveu no norte da China, durante uma parte do plistoceno

Na fase inicial do Plistoceno (ou pleistoceno), há cerca de 2,6 milhões de anos,


os antepassados da espécie eram hominídeos, dotados de um cérebro
relativamente pequeno, andavam em pé e teriam algumas ferramentas toscas,
de pedra.

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Paranthropus Boisei Seixos talhados de tradição olduvaiense

☝️☝️☝️☝️☝️☝️☝️(reconstrução facial forense). Este hominídeo viveu na África


Oriental durante a fase inicial do Plistoceno (2,3 a 1,2 milhões de anos).

Não teriam certamente linguagem (embora possam ter comunicado através de


uma pré-linguagem), música, arte ou grande inteligência criativa. Acredita-se
que tivessem conseguido o uso controlado do fogo - ou mesmo que fossem
capaz de o produzir. E que na fase final da sua existência vivessem em
pequenos bandos, semelhantes aos das sociedades de caçadores-recoletores
conhecidas.

Homo erectus, reconstituição hipotética de cabana (~380000 anos)

Terão sido os primeiro hominídeos a caçar em grupos coordenados e a tomar


conta dos doentes e dos mais fracos.

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Crânio de rapariga, trepanado com sílex 3500 a.C.

A trepanação é uma intervenção cirúrgica na qual é efetuado um buraco no


crânio de modo a resolver problemas de saúde relacionados com doenças
intracranianas. Pode igualmente ser utilizada noutras partes do corpo, como
forma de aliviar a pressão sob a superfície, contudo, em tempos remotos, a
trepanação foi praticada em pessoas que se considerava terem um
comportamento anormal, provocado por espíritos malignos ou diabólicos.
Existem evidências desta prática desde (pelo menos) os tempos da Revolução
Neolítica (foram descobertos mais de 1500 crânios trepanados relativos ao
período Neolítico; podendo ter um ou mais buracos, de vários tamanhos; a
maior parte desses crânios pertenceram a homens adultos, mas existem
igualmente crânios trepanados pertencentes a mulheres e a crianças; é
possível que algumas trepanações tenham sido efetuadas na tentativa de
ressuscitar membros de valor da tribo - em especial caçadores - refletindo tal
prática uma concepção primitiva da morte).

Pinturas em grutas pré-históricas indicam que se acreditava que a trepanação


curava ataques epiléticos, dores de cabeça e outras formas de perturbações
mentais (embora também deva ter sido utilizada como procedimento de
emergência em situações de ferimentos na cabeça). O osso trepanado era
conservado e existem sugestões de que era utilizado como amuleto, para
afugentar maus espíritos.

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“A extração da pedra da folia” - Hieronymus Bosch (ca. 1488-1516) - alegoria
da tolice e da estupidez?
A trepanação continuou a ser praticada através dos tempos. Hipócrates, por
exemplo, deixou indicações precisas dos procedimentos a efetuar (Hipócrates
terá sido, nos tempos documentados, o primeiro autor a reconhecer que o
cérebro é o órgão da inteligência.
De igual modo, a noção de doença mental deverá ter milhares de anos na
história humana, ainda que não existam documentos que o possam comprovar.

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Ilustração de trepanação, França

Ebers Papyrus - prescrição para um


remédio para a asma (descoberto no Egito,
em 1870)

O “Papyrus Ebers” é um papiro egípcio com cerca de 3500 anos onde estão
registados conhecimento médicos da altura, através do uso de ervas. Entre as
mais de 700 fórmulas mágicas e remédios para várias doenças, existe uma
breve menção à depressão clínica.
As antigas civilizações do Egito, Grécia, Roma, Índia, China e Pérsia deixaram
escritos valiosos sobre o estudo da Psicologia, num ângulo filosófico ou pré-
científico. O chamado “papiro Edwin Smith”, por exemplo, é um texto médico
do antigo Egito que constitui o mais antigo tratado de cirurgia sobre o trauma (o
“Papiro Edwin Smith” foi assim nomeada devido ao nome do comerciante que o
comprou em 1862).

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Papiro de Edwin Smith; pranchas 7 e 8

Este papiro contém uma das mais antigas descrições do cérebro, assim como
algumas especulações sobre as suas funções (é de notar que o papiro tem
uma natureza prática, racional e científica; e não mágica).
GRÉCIA E ROMA

Aristóteles
Platão
Tales de Mileto Hipócrates

Vários filósofos gregos - incluindo Tales de Mileto, Platão e Aristóteles -


ocuparam-se de questões de ΨυΧη´-logia (estudo do espírito ou alma).
Hipócrates em especial teorizou sobre as perturbações mentais há cerca de
2500 anos; atribuindo-as a causas físicas e não sobrenaturais.

Platão antecipou em mais de 2000 anos (com as noções de “alma racional” e


“alma irracional”) os conceitos de consciente e inconsciente de Freud.
Aristóteles, além de ter sido dos primeiros pensadores a usar de forma
sistemática a indução (observação) para completar as suas deduções,

História da Psicologia 8
desenvolveu princípios básicos da memória humana que são ainda hoje
fundamentais nas teorias contemporâneas.

Περ`ι ΨυΧη~ς (De anima - sobre a alma

PÉRSIA

Astrónomo Persa, 1236-1311; pormenor do modelo planetário egípcio

Ahmed Ibn Sahl Al-Balkhi (850-934) foi dos primeiros a conceber a noção de
doença psicossomática. Ao discutir perturbações relacionadas com o corpo e
a mente, defendeu que “se (a psique) adoece, o corpo pode igualmente perder
a alegria de viver e pode eventualmente desenvolver uma doença física”.
Reconheceu, além disso, que o corpo ou a mente podem estar saudáveis ou
doentes, equilibrados ou não. Descreveu, por exemplo, que o desequilíbrio no
corpo pode resultar em febre, dores de cabeça e outras afeções corporais. Por
seu lado, o desequilíbrio da alma pode resultar em raiva, ansiedade, tristeza e
outros sintomas relacionados com a psique. Reconhecer ainda dois tipos de
(aquilo a que hoje se chama) “depressão”: uma causada por razões
conhecidas, como perda ou falência, que pode ser tratada psicologicamente, e
outra causada por razões desconhecidas, possivelmente de origem fisiológica,

História da Psicologia 9
que pode ser tratada através de Medicina física. Na sequência de Ahmed Ibn
Sahl Al-Balkhi, vários outros médicos muçulmanos medievais desenvolveram
práticas para tratar sujeitos que sofriam de várias “doenças da mente”.
Outros pensadores muçulmanos que discutiram matérias relacionadas com a
Psicologia:

Ibn Sirin escreveu um livro sobre sonhos e a sua interpretação

Al-Kindi (Alkindus) desenvolveu formas de terapia através da música

Ali Ibn Sahl Rabban Al-Tabari desenvolveu uma forma pioneira de


psicoterapia (al-’ilaj al-nafs)

Al-Farabi (Alpharabius) discutiu temas relacionados com a Psicologia Social


e o estudo da consciência

Ali Ibn Abbas Al-Majusi (Haly Abbas) descreveu aspetos de neuroanatomia


e neurofisiologia

Abu Al-Qasim Al-Zahrawi (Abulcasis) escreveu sobre questõ es de


neurocirurgia

Ibn Tufail antecipou o argumento da tabula rasa e o debate natureza vs.


educação

Fases da conquista islâmica (amarelo: expansão durante o califado Omíada, 661-750)

Uma Curta História


Antes da Psicologia
Numa disciplina que se chamasse Psicologia existiu antes do século XIX. O
que nós podemos chamar desajeitadamente “discurso reflexivo” - discurso
sobre a natureza humana, Mente e Alma - sempre existiu mas, tirando
algumas excepções, antes de 1800 isto não era científico em qualquer
senso moderno, quanto mais experimental. Isto surpreendente. Em “The

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Advancement of Learning” (1605) e “Novum Organum” (1620), Francis
Bacon advocou uma ciência geral sobre a Natureza e o Estado do Homem
no início da Revolução Científica. Ainda algumas experiências de um tipo
Psicológico estão documentadas antes de 1850, e ainda a pesquisa
empírica não experimental era escassa. Em Inglaterra, a palavra
“Psychology” era rara antes do início de 1800, quando o poeta-filósofo
Samuel Taylor Coleridge a importou da Alemanha (onde os filósofos já
usavam há muito tempo “Psychologie”). A significância desta ausência
deve ser sublinhado uma vez que, como mencionado anteriormente, a
Psicologia era tradicionalmente vista como uma emergência inicial do
“discurso reflexivo”, começada pelos antigos Gregos.
A linha de que as questões permanecem as mesmas, mas os métodos para
respondê-las mudam é insatisfatória, pois se esses pensadores anteriores
estivessem fizessem as mesmas perguntas que os psicólogos fazem, então
conceber os métodos empíricos óbvios de investigação, pelo menos para
alguns deles, teria sido fácil. Até em 1700 eles podiam ter submetido ratos a
labirintos, questionários, ver quando ensaios levava para aprender listas de
palavras ou inventar (albeit crude) instrumentos para medir os tempos de
reação - todos os métodos típicos da psicologia moderna. A razão pela
qual não o fizeram foi porque nem se quer estavam a fazer este tipo de
perguntas.

Isto não quer dizer uma completa falta de conexão histórica, apenas que os
seus predecessores não estavam a fazer o que os psicólogos começaram a
fazer no final do século XIX, ainda menos do que fazem hoje. Eles não
falharam a resposta das mesmas perguntas mas sim perguntavam
perguntas diferentes, sobre a natureza da virtude, as relações entre a alma
imortal (se é que existia) e o corpo, se todas as nossas ideias vinham de
uma experiência sensorial ou se de um sele evidente inato, que tipo de
substância a mente era, como dominar as paixões de alguém, como educar
crianças, como a personalidade era manifestada na cara.
Graham Richards, 2004

Na manhã de 22 de outubro de 1850, uma terça-feira, Gustav Fechner teve um


“insight” ao acordar. Um “insight” tão importante que, de certo modo, criou o
campo da Psicologia moderna. O que ele compreendeu nesse momento foi que
era possível medir, com grande precisão, a relação entre os mundos físico e
psicológico.

História da Psicologia 11
Gustav Theodor Fechner, 1801-1887

“Rodas dentadas”

Qual pesa mais? Um quilo de chumbo ou um quilo de penas?

Estrutura de penas de papagaio Nódulos e cubo de chumbo refinados por


eletrólise

Tal como disseste, eles pesam o mesmo.


Estás certo e ao mesmo tempo errado: estás certo do ponto
de vista físico, contudo, se agarrares o chumbo com uma

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mão e as penas na outra, repararás que os seus pesos são
bem diferentes, o chumbo parece mais pesado.
De facto, muitas pessoas diriam que é três vezes mais
pesado que as penas… A experiência dos objetos das tuas
mãos é uma experiência psicológica. Por outras palavras,
mesmo que os dois pesem o mesmo, o teu cérebro diz…

… o teu cérebro diz-te (por causa da diferença de


densidades) que o chumbo é muito mais pesado.
Há uma diferença entre os mundos físico e psicológico. Não
são o mesmo.
Judy Benjamin Jr. - a brief history of modern psychology

“Rodas dentadas”

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Objeto impossível “blivet” (ou “poiuyt)

Ilusão da grelha cintilante (1994)

O Grande Homem - Zeitgeist

A teoria do grande homem diz que o progresso histórico


ocorre pelas ações de grandes pessoas que são capazes de
sintetizar eventos e pelos seus próprios esforços mudar o
caminhos desses eventos na direção da inovação. O modelo
de “Zeitgeist”, ou “espírito dos tempos” argumenta que os
eventos por si só contêm um momento que permite que a
pessoa certo no momento certo expresse uma inovação.
Uma variante da visão Zeitgeist na história da ciência,
proposta por Kuhn, sugere que o social e o cultural
desenvolvem paradigmas, ou modelos, da ciência em várias
fases e que o trabalho cientifico é feito dentro de um dado
paradigma por um período limitado de tempo, até o
paradigma ser substituído.
James Brennen - history and systems of psychology

História dos sucessos vs. História completa

História da Psicologia 14
Os livros de psicologia normalmente descrevem os sucessos
dos psicólogos. Esta história da Psicologia, por outro lado,
descreve ambos os sucessos e os falhanços.
Há uns tempos, psicólogos proeminentes advogaram com
grande confiança e convicção respostas para a psicologia
que mais tarde se provaram erradas. Descrever os erros do
passado não é desacreditar, desmistificar ou diminuir
psicólogos do passado, é sim completar a história da
psicologia e, principalmente, alertar-nos para a nossa
falibilidade.
Nós devemos evitar a tendência de interpretar e avaliar as
contribuições dos psicólogos iniciais de acordo com os
padrões do presente.
David Hothersall History of Psychology

INÍCIO DA PSICOLOGIA EXPERIMENTAL

História da Psicologia 15
Ernst Heinrich Weber, 1795-1878
Wilhelm Wundt, 1832-1920

A nova prefeitura logo após a conclusão, Leipzig, entre 1890 e 1905


Leipzig depois de 1905

História da Psicologia 16
Trummerbeseitigung, 1950 (Leipzig após os bombardeamentos

Gustav Fechner começou a realizar pesquisa Psicofísica na Universidade de


Leipzig, durante a década de 1830. Dessa pesquisa resultou a articulação do
princípios de que a percepção humana de um estímulo varia numa escala
logarítmica de acordo com a sua intensidade. No seu livro “Elementos de
Psicofísica”, publicado em 1850, Fechner desafiou a posição Kantiana quanto
ao estudo quantitativo da mente.
Por seu lado, em Heidelberga, Herman Von Helmholtz conduzia pesquisas
paralelas em percepção sensorial, formando o fisiologista Wilhelm Wundt.

Selo da Universidade de Heidelberga; S. Pedro, segurando uma chave, está rodeado por dois
cavaleiros ajoelhados com as armas dos eleitores palatinos

💡 Motto (o livro do aprender está) sempre aberto - o futuro. Desde 1386

História da Psicologia 17
Vista romântica do castelo de Heidelberga, Antiga Universidade de Heidelberga, ca.
1815 1900 (atual reitoria)

Wundt acabou estabelecendo-se em Leipzig, onde fundou o laboratório de


Psicologia, a partir do qual o conhecimento da Psicologia Experimental se
espalhou pelo mundo.

Doença Mental - Primórdios


Até ao século XIX
O tratamento da doença mental não constitui um capítulo agradável na história
da civilização ocidental. Até ao século XIX, as torturas e a crueldade da
Inquisição foram utilizadas para tratar muitos daqueles que hoje se consideram
doentes mentais. A feitiçaria e a bruxaria eram aceites como explicações
razoáveis para os comportamentos dos doentes mentais. A doença mental era
vista como governada por forças obscuras ou diabólicas, ou sujeita a
influências bizarras, como a dos “raios da lua” (daí se empregar, até hoje, a
expressão de “lunático” para designar essas pessoas). Os doentes mentais
eram postos a ridículo ou encarcerados em prisões, juntamente com
criminosos ou outros presos de delito comum.

Atribui-se com frequência a Philippe Pinel, psiquiatra francês, a criação do


primeiro hospital psiquiátrico, em 1798. Na verdade, vários séculos antes de
Pinel, já os árabes tinham construído hospitais psiquiátricos, por exemplo no
atual sul de Espanha. De igual modo, em 1330, um convento da ordem St. Mary
of Bethlehem foi convertido na primeira instituição para doentes mentais na
Grã-Bretanha, tendo o rei Henrique VIII atribuído em 1543 um fundo ao hospital
de St. Mary of Bethlehem para criar um asilo para os “lunáticos” (instituição
que ficou conhecida como “Old Bedlam”, por corrupção do nome de

História da Psicologia 18
Bethlehem. No entanto Pinel teve o mérito de, desde logo, melhorar as
condições de vida dos doentes mentais institucionalizados, acabando com a
restrições físicas (por exemplo as correntes de ferro) e os abusos.

Pinel freeing the insane from their chains

Não foi exatamente o primeiro a fazê-lo: oito anos antes, Vincenzio Chiarugi em
Itália tinha proibido o uso de correntes nos doentes mentais, mas as ações de
Pinel foram mais extensas, mais conhecidas e melhor documentadas, e teve,
para isso, que enfrentar uma série de obstáculos e resistências, desde logo o
conselho revolucionário da Comuna de Paris (que sarcasticamente lhe
perguntou se iria a seguir libertar os leões e os tigres no Jardim Zoológico).

Auguste Hippolyte Collard: The Hôtel de Ville after the Commune

👆Descrição: Moradores e turistas ficaram boquiabertos com as ruínas da


prefeitura de Paris, construída a partir de 1532 e concluída quase um século
depois. Juntamente com pinturas preciosas e decoração escultórica, os

História da Psicologia 19
arquivos historicamente preciosos da cidade de Paris foram perdidos para
sempre quando o edifício foi incendiado em maio de 1871. Uma reconstrução
do Hôtel de Ville, iniciada em 1874 e concluída uma década depois, fica no
mesmo sítio hoje.

ℹ️ Pinel também teve contributos notáveis para classificação das


perturbações mentais e tem sido descrito como “o pai da Psiquiatria
moderna”. Por exemplo, há quem defenda ter sido o primeiro (em
1809) a teorizar sobre a doença mais tarde conhecida como
“dementia praecox” ou esquizofrenia, ainda que Emil Kraepelin seja
geralmente considerado como o autor da primeira conceptualização.

O primeiro doente a quem foram retiradas as correntes foi um oficial inglês,


que tinha sido preso 40 anos antes em Bicêtre. Começando em 1793, foram
sendo introduzidas lentamente reformas no tratamento dos doentes mentais
institucionalizados, assim como na atitude geral em relação a eles. Os “asilos
para lunáticos” que foram surgindo ao longo do século XIX nos países
ocidentais procuraram lidar com casos de psicopatologia e curar a doença
mental nomeadamente através de programas de “terapia moral” - exercício
físico, terapia ocupacional, higiene pessoal, recreação, prática religiosa e
outras atividades, tais como a jardinagem. O crescimento das populações
tornou esses asilos numa espécie de “armazéns” de casos crónicos e
desesperados, além disso, a profissão psiquiátrica não viu com bons olhos o
interesse da Psicologia pela doença mental. A hostilidade e o conflito
agudizaram-se ao longo do século XX, à medida que a profissão de Psicologia
Clínica ia evoluindo e captando mais praticantes.

Psicanálise
SIGMUND FREUD (1856-1939)

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Três episódios na vida de Freud
1. Quando soldados nazis vieram a casa de Freud, a mulher pediu-lhes que
deixassem as espingardas no bengaleiro. Revistaram a casa, tendo
roubado uma quantia significativa de dinheiro. Comentário do Freud: “dear
me, I have never taken so much for a single visit”

2. Soldados nazis fizeram uma fogueira pública para queimar os livros de


Freud apreendidos na Sociedade Psicanalítica de Viena. Comentário de
Freud: “what progress we are making. In the middle ages they would have
burnt me; nowadays they are content with burning my books”

3. Como condição para o deixar sair da Alemanha, os nazis obrigaram Freud a


assinar uma declaração em que tinha sido bem tratado, assim como a sua
família. Freud assinou a declaração, acrescentando: “I can most highly
recommend the Gestapo to anyone”

Psicanálise
A Psicanálise é um caso único e paradoxal na Psicologia do século XX. Por um
lado, é o mais conhecido (o que não quer dizer que seja compreendido)
sistema teórica na Psicologia e o seu fundador é certamente uma das figuras
mais conhecidas a nível mundial (existem mais de 70 biografias escritas sobre
Freud).

História da Psicologia 21
Freud de 8 anos ao lado do seu pai Jakob

Mas, por outro lado, a Psicanálise tem muito pouco a ver com as outras
expressões ou movimentos da Psicologia. A Psicanálise está sobretudo
alinhada com a tradição germânica de conceber a mente como uma entidade
ativa, dinâmica e geradora de si mesma (e com a crença existente no século
XIX de níveis conscientes e inconscientes de atividade mental). Apesar disso
teve, tal como Freud, um impacto tremendo na Psicologia e a sua influência
refletiu-se em várias outras áreas do conhecimento — dar arte à literatura, da
cultura à filosofia.

Frente de nota de 50 xelins com Sigmund Freud

História da Psicologia 22
Ao contrário da tradição inglesa, que via a mente como passiva, e da visão
sensacionalista francesa, segundo a qual a mente é um constructo
desnecessário, a tradição alemã, na senda de Leibniz e Kant, que enfatizaram a
atividade mental, concebe a mente como uma entidade ativa que se gera e que
se estrutura a si mesma, estruturando a experiência humana de modos
característicos. Consistente com essa tradição, e com a posição da Psicologia
da Gestalt, a Psicanálise foi firmemente alicerçada num modelo ativo dos
processos mentais (e com a crença existente no século XIX de níveis
conscientes e inconscientes de atividade mental) embora não tenha abraçado
o compromisso da Psicologia da Gestalt com o empiricismo.
Freud não procurou testar as suas hipóteses de forma rigorosa, através de
verificações independentes.

Simplesmente, Freud não era um metodologista. A sua


coleção de dados não sistemática e descontrolada consistia
primariamente naquilo que Freud se lembrava que os seus
pacientes diziam. Ele não fez nenhuma tentativa
independente de confirmar a precisão dos relatos dos seus
pacientes
James Brennan - History and systems of psychology

Pelo contrário, construiu o seu sistema baseado no seu elevado poder de


observação, nas suas intuições e em estudos de caso. Além da fama que
obteve, pela fundação do movimento psicanalítico, Freud é também recordado
pelos seus esforços pioneiros em melhorar o tratamento das “anomalias”
mentais e comportamentais. Foi instrumental no reconhecimento da Psiquiatria
como um ramo da Medicina que trata especificamente da Psicopatologia. Além
disso, antes dele, e apesar dos avanços conseguidos por Pinel e outros, não
havia muitos métodos efetivos de tratar pessoas doentes mentalmente ou que
simplesmente se desviavam das normas aceites pelas sociedades, assim como
na ligação entre a Psicologia e o estudo e tratamento da doença mental.

História da Psicologia 23
O sofá de Sigmund Freud

ℹ️ Freud não criou o papel de psicoterapeuta, mas estabeleceu a sua


importância e esteve na origem de virtualmente todas as escolas de
pensamento psicoterapêutico.

Contudo e apesar da sua enorme popularidade como método terapêutico, a


psicanálise sempre teve problemas com a Psicologia académica, em parte,
porque o Behaviorismo e a Psicologia dominante que daí decorrem negavam o
estudo de fenómenos que não fossem claramente visíveis, em parte, porque
apesar de ser uma fonte enorme de conceitos e de hipóteses, a Psicanálise
sempre resistiu à verificação empírica.

Mau comportamento é, por definição, aquele ao qual não


damos qualquer significado (apesar de lhe atribuirmos
causas), é irracional, maluco. [é uma situação] na qual a
psicologia serve para providenciar significados. Em relação à
loucura, procura, no caso da psicanálise de forma bastante
direta, atribuir sentido àquilo que antes lhe faltava.

Graham Richards - putting psychology in its place

Também por isso, a posição da Psicanálise é única na História da Psicologia: se


por um lado, nem Freud nem os seus seguidores desenvolveram uma teoria
que gerasse hipóteses testáveis, por outros lado Freud conseguiu aquilo que
muito poucos, em todos os ramos da ciência, conseguiram: revolucionou

História da Psicologia 24
atitudes e criou um novo quadro conceptual para pensar o seu objeto de
estudo.

Estudo Experimental da Inteligência


Mitificação e Mistificação na História da Ciência: a Psicologia, a Grande
Guerra e o “Grande Evento da Década”
O episódio da aplicação de supostos testes de inteligência (”Army Alpha” e
“Army Beta”) aos recrutas do exército norte-americano, em vésperas de
partir para a Grande Guerra na Europa, foi amplamente celebrado pela
corrente dominante da Psicologia como um acontecimento maior da sua
história. O presente ensaio considera, todavia, tal episódio como um
exemplo de mitificação e mistificação da história da Psicologia e, de um
modo geral, da Ciência. Mais concretamente, como uma tentativa de
apropriação da disciplina pelo dogma e pelo preconceito, no contexto da
subjugação do conhecimento científico (e da sua busca) ao fanatismo e ao
fundamentalismo, assim como da utilização pervertida e fraudulenta da
autoridade científica para procurar justificar e validar políticas sociais mais
do que simplesmente duvidosas, como o racismo.
Pressupostos Básicos
Não é fácil, nem é gratificante, tentar simplificar uma matéria complexa.
Sobretudo se tal matéria, além de complexa (pela sua própria natureza ou
essência), for intricada na sua organização. Se, mais precisamente, for
composta por uma grande quantidade de coisas, desordenadas e dispersas
ou, pelo contrário, emaranhadas, formando um conjunto confuso que é
preciso, desde logo, ordenar.

Aceite-se, contudo, arguendo, que não existe muitas vezes outra escolha.
Aceite-se que é por vezes necessário simplificar ou reduzir o tema em
estudo (sem desenvolver o tema, pode-se referir a título de exemplo o
reducionismo metodológico, uma estratégia que provou ser eficaz nos mais
de três séculos de história da Ciência moderna. Estratégia que, todavia,
deve estar sujeita a “vigilância permanente”, de modo a prevenir ou evitar
os excessos que tendem a ocorrer com a sua utilização). Seja por razões
de conveniência de exposição, seja, por exemplo, para conseguir desse
modo trazer um pouco de claridade a um tópico obscuro.

Aceite-se de igual modo, por razões que serão traçadas adiante, que a
matéria histórica em Psicologia é uma dessas matérias: complexa,

História da Psicologia 25
complicada e intrincada; mesmo não sendo particularmente extensa (aludo
às muito citadas palavras que Hermann Ebbinghaus utilizou para abrir o seu
popular manual Abriss der Psychologie (1908), observando ter a Psicologia
um longo passado ainda que a sua história (enquanto disciplina) fosse
curta. Esta proposição, que acabou tornando-se uma fórmula ou mesmo
um slogan da recém-criada disciplina científica, não deixa de captar um
paradoxo muito próprio da Psicologia e de outras ciências sociais e
humanas: o facto de, adaptando as palavras de Bachelard (1971), poderem
ser epistemologicamente consideradas como domínios de pensamento que
não rompem nitidamente com o conhecimento vulgar, tal como sucede com
as ciências físicas. O nascimento formal da Psicologia enquanto disciplina
científica é recente, tendendo a aceitar-se a data de 1879 como um marco
simbólico. Mas a psicologia popular já existia muito antes disso). Talvez
suceda o mesmo com a maioria das matérias históricas, quer em Ciência,
quer fora dela. Ou talvez a complexidade da matéria histórica, no caso
particular da Ciência, dependa estreitamente da complexidade e natureza
do ramo científico em causa; ou do âmbito ou vastidão (ou de quaisquer
outros traços distintivos relevantes) daquilo que estuda, fazendo com que,
por exemplo, a história de uma ciência que lida com fenómenos não-
lineares seja, ipso facto, mais complexa do que a história de uma ciência
ocupada com fenómenos lineares. Ou tralvez, ainda, existam dificuldades
que surgem ciclicamente, ou transitoriamente, em determinadas (mas não
em todas as) faces do desenvolvimento de cada ramo científico.

Aceite-se por fim, para efeitos práticos, que existe em Psicologia (enquanto
disciplina académica e enquanto prática) uma corrente principal e
dominante, tal como sucede ou já sucedeu noutros ramos da Ciência. Uma
corrente que apresentei de forma extensa noutro local (Urbano, 2007 —
apresentei com efeito na dissertação Da história e epistemologia da
Psicologia uma descrição circunstanciada de tal corrente. A sua existência,
a descrição dos seus principais traços (como ideologia, como sistema de
poder, como paradigma, etc.) e a história da sua ascensão à posição de
supremacia que ainda hoje ocupa, foram temas recorrentes dessa
dissertação e constituem aliás uma das suas principais teses. Dada a
complexidade do tema e dada a extensão dos argumentos que aí
apresentei, remeto pois para a sua leitura, tendo a consciência de que
estou a apelar à indulgência de quem lê este pequeno ensaio), e da qual
direi aqui, apenas, que pode ser descrita em termos brevíssimos como
sendo originária dos Estados Unidos da América e como tendo, a partir da

História da Psicologia 26
década de 1940, começando a tornar-se prevalente, primeiro na América,
depois na Europa e enfim um pouco por todo o mundo ocidental ou sujeito
à sua influência. Corrente essa que, de algum modo, se arrogou desde
então a autoridade para definir o rumo e o destino da Psicologia.

Entenda-se então, caso se aceitem os pressupostos que acabei de


enumerar, este ensaio sobre mitificação e mistificação na história da
Ciência, ainda que circunscrito a um episódio específico na história da
Psicologia, como servindo para ilustrar e defender a tese de que o gesto
(raramente inocente) de mexer no passado, através da história, é uma
forma de mexer no presente e, de algum modo, de condicionar o futuro.
1 - Da marcha imparável de certos acontecimentos
Como é sabido, e como (de qualquer modo) não podia deixar de ser, a
História lida com acontecimentos de todos os tipos, géneros, classes e
categorias. Num dos extremos da escala, encontram-se os acontecimentos
de natureza cósmica, contra os quais a humanidade nada pode fazer —
porque não dispõe de conhecimentos suficientes para isso ou porque o
grau de desenvolvimento tecnológico não o permite. Um exemplo concreto
deste tipo de acontecimentos seria o da colisão de um corpo celeste contra
o planeta. Num outro extremo, encontram-se acontecimentos, iniciados —
de forma deliberada ou por acidente — pela mão humana, que não sendo
necessariamente ecuménicos ou catastróficos, nem inevitáveis ou fatais,
podem contudo atingir um limiar ou uma massa crítica, a partir dos quais
acabam tornando-se, também eles, inelutáveis ou imparáveis; até ao seu
esgotamento ou até se exaurirem as condições que os permitiram. Seja
qual for a sua natureza ou origem, seja qual for a sua dimensão: do simples
(salvo seja) incêndio florestal a uma pandemia de proporções bíblicas.
Existem obviamente, para além dessas duas categorias, uma infinitude de
outros acontecimentos de gravidade ou alcance médios, mas considerem-
se por um momento, para efeitos de argumentação, apenas aqueles
acontecimentos que por alguma razão são, ou se tornam a certa altura,
inelutáveis ou imparáveis; tenham ou não tido origem na mão humana. E
considere-se nesses casos não tanto aquilo que é provável e humanal: o
pânico, o sentimento de impotência ou de tragédia ou de conformismo de
multidão. Considere-se antes aquilo que estando invariavelmente presente
nestas ocasiões, tende a passar (compreensivelmente) desapercebido: o
oportunismo. O oportunismo mais básico, mais despido de escrúpulos,
mais totalmente anético ou mais completamente maquiavélico, de algumas

História da Psicologia 27
minorias que tendem a irromper no palco nesses momentos e que tudo
farão para conseguir tirar proveito imediato ou duradouro das
consequências (destruição, devastação, desordem, caos, anarquia). Da
simples mas selvática pilhagem, como se os escombros fossem presas
feitas ao inimigo; até ao mais ardiloso assalto e eventual conquista do
poder, tantas vezes caído ou ferido, ou dos seus despojos. As grandes
catástrofes naturais, tal como as grandes movimentações ou as revoluções
sociais mais violentas, têm a particularidade — por vezes muito dolorosa —
de gerar desordem e, nesse sentido, de criar um caleidoscópio de causas,
de condições, de puros acidentes até, que atraem aqueles e aquelas que
encontram aí oportunidades, quase sempre ilegítimas. Oportunidades de
fazer nascer novos poderes; ou de perpetuar ou de reforçar velhos
poderes. Perante, tantas vezes, a docilidade mais extraordinária da
multidões; talvez porque, tal como afirmou Tocqueville (1835, 1840), “[…]
quando um tempo calmo sucede a uma revolução violenta, os grandes
homens parecem desaparecer subitamente e as almas fecham-se em si
próprias” (p. 218).
2 - Da apropriação dos acontecimentos e da sua memória

Não é possível, por uma simples questão lógica, impedir ou estacar uma
marcha que por definição seja imparável — até ao seu esgotamento ou até
se exaurirem as condições que os permitiram. Uma tal marcha não é,
contudo, necessariamente caótica ou imprevisível, no seu desenrolar.
Razão pela qual, dependendo da sua natureza e de outras variáveis, não é
impossível alterar-lhe o andamento ou o rumo. Entre outros possíveis
exemplos, o conceito de “paisagem epigenética” de Conrad Waddington
ilustra como um conjunto de vales, num bloco ou maciço de montanhas,
permite canalizar ou conduzir processos — de desenvolvimento biológico,
no contexto original — que, tal como a metafórica bola no plano inclinado,
“procuram” uma forma de libertar a energia potencial armazenada; até
atingir um novo patamar de equilíbrio. Dito de outro modo: um
acontecimento (v.g. geológico, biológico, psicológico, social) não ocorre no
vácuo, onde não existem sulcos prévios, obstáculos ou acidentes. Antes
pelo contrário, mesmo a mais violenta ou cataclísmica das revoluções
sociais pode seguir, pelo menos parcialmente ou transitoriamente, um trilho
previamente traçado. Traçado nomeadamente pelas circunstâncias que, no
fundo, a fizeram eclodir.

História da Psicologia 28
Nesse sentido, enfrentar a marcha imparável dos acontecimentos pode não
ser um mero exercício de vaidade, de loucura, de total futilidade, inutilidade
ou vacuidade. Pode ser, e é muitas vezes, uma tentativa séria, real, de
apropriação — no imediato — dos próprios acontecimentos (mais
precisamente, da forma como são percebidos pelo senso comum. Uso aqui
alguma liberdade poética, essencialmente por uma questão de estilo e
conveniência de exposição), procurando aprisioná-los e domá-los,
tentando regular-lhes a marcha ou alterar-lhes o rumo. E a realidade parece
confirmar esta ideia, de tal modo não é raro constatar o quanto os sistemas
hegemónicos ou totalitários — entre outros oportunismos — procuram
enfrentar até mesmo esta classe extrema de acontecimentos, tantas vezes
com um ousadia e uma arrogância à altura do seu desejo de omnipotência.
Procurando, justamente, domá-los, regulando-lhes a marcha a alterando-
lhes o rumo.
Pode ser, também e por outro lado, uma tentativa também muito séria,
também muito real — e muito eficaz, aliás — de apropriação de um
passado (em rigor, e uma vez mais, da forma de o perceber) que
geralmente acaba de ocorrer e que, nalguns casos, poderá ter deixado a
vasta multidão num estado dócil; de entorpecimento e perplexidade, por
exemplo, perante acontecimento traumáticos. Desde que influencie
gravemente a comunidade, tal como é suposto suceder (por definição) com
todos os grandes acontecimentos, ficará registado ou impresso na sua
memória. A memória dessa comunidade é, por assim dizer, o rasto da sua
vivência, que vai ficando atrás de si. E o rasto do passado é uma tentação
demasiado grande para todos os oportunismos que depressa se
mobilizarão para conseguir tirar proveito das circunstâncias; sobretudo
num período de revolução, de mudança, de confusão, de caos, de dor. Não
é sobretudo por acaso que, por exemplo, na acalmia que se segue à
revolução violenta atrás aludida por Tocqueville, surgem do nada e de
forma persistente um número estranho de heróis, de heroínas e de
putativos gestos de heroísmo, que, não por acaso, tinham até aí passado
despercebidos. Pela mais simples, pela mais básica de todas as razões:
porque nunca existiram. Porque foram fabricados, criados ou grandemente
exagerados, para aproveitar a ocasião. Tal como as lendas e sagas que
irão, a partir daí, glorificá-los como meio deuses ou meias deusas, e
confirmar a sua morada no Olimpo.
O passado pode possuir (ou não) ainda uma parte da força do presente,
mas é em regra, à escala da memória humana, perigosamente dúctil. É

História da Psicologia 29
moldável com alguma facilidade. Neste como noutros casos, “a memória é
a vida, sempre trazida pelos grupos vivos e, por essa razão, ela está em
evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente das suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as
utilizações e manipulações, susceptível de longas latências e frequentes
revitalizações”. A memória, ainda neste caso, é mais do que isso: é história,
e nesse sentido remorso; é consciência histórica; é memória plural, e nesse
sentido memória histórica; é a imagem que cada um tem de si mesmo e
dos outros, individualmente ou em grupo. É uma força notável, não porque
através dela seja possível parar a marcha dos acontecimentos, mas pelo
seu poder instrumental para influenciar o modo como são percebidos (as
duas últimas frases condensam, de forma grosseira, algumas das
proposições apresentadas sinteticamente por Torgal (1989) na introdução a
História e ideologia, proposições que são desenvolvidas de diferentes
formas ao longo dessa obra, articuladas em torno da ideia base de que a
história tem uma relação profunda com a ideologia, ou as ideologias. O meu
intuito e o contexto em que o faço são muito diferentes, naturalmente; este
não é um artigo de História nem a história é a sua única ou principal razão
de ser. Mas defendo uma tese semelhante acerca da manipulação da
história, neste caso da Psicologia, como forma de obter e perpetuar o
poder, neste caso por parte daquilo a que se tem chamado a Psicologia
dominante).

É evidente que nem todos os acontecimentos são grandes, ecuménicos ou


catastróficos; ou inevitáveis ou fatais. Pelo contrário, alguns não são
sequer acontecimentos: são falsos acontecimentos. E essa é justamente
uma das razões pelas quais a sua conquista se tornou um reflexo — mais
do que uma simples tendência generalizada — para muitos oportunismos e
para muitos sistemas hegemónicos de poder (ainda que não sejam os
únicos a fazê-lo), na tentativa persistente e despudorada a rever e
rescrever a sua história; jogando com as latências da memória,
revitalizando-a naquilo que lhes interessa; insinuando-se nos vazios
criados por essa estranha disputa entre a lembrança e o esquecimento.
Mostrando quão bem compreendem a utilidade instrumental do passado,
tanto na sua ductilidade, que permite martelá-lo e trabalhá-lo, como na sua
virtualidade de se estender até ao presente e de nele sobreviver,
condicionando-o, influenciando-o; modelando-o até. Mexer no passado é,
em grande medida, mexer no presente. Algo que foi totalmente
compreendido pela corrente dominante em Psicologia

História da Psicologia 30
3 - O caso particular da Psicologia

Em Ciência, como em vários outros campos, a história e o conhecimento do


passado são intensamente importantes, por vezes fundamentais, por
variadas causas e em particular para permitir compreender e assimilar o
presente. De modo a que, por exemplo, as novas gerações apreendam
aquilo que estudam, as razões de ser daquilo que estudam, as formas
através das quais se chegou aos conhecimentos presentes, assim como as
várias limitações desses conhecimentos, nomeadamente para se evitar
repetir erros passados ou evitar seguir pistas que conduziram a becos sem
saída. Neste domínio particular, a Psicologia não é diferente nem é um caso
único ou especial.
Contudo, para o grupo ou corrente que a domina e determina uma parte
importante dos seus destinos, desde há mais de meio século, assim como
para a sua historiografia instituída, é incómodo ou muito inconveniente
olhar para trás e narrar o que realmente se passou. Para essa Psicologia, é
preferível e muito mais útil criar uma versão edulcorada, ornamentada,
fertilizada por fabelas, lendas, exageros, jactâncias ou juízos morais,
marcada por acontecimentos inventados ou prodigamente embelezados,
despolitizada, sem guerras nem cadáveres, sem conflitos, discórdias ou
controvérsias. É-lhe preferível perfilhar um discurso triunfalista,
autocongratulatório, pontuado por supostos marcos que lhe permitem
celebrar a todo o momento os mitos acerca da sua suposta origem, do seu
suposto progresso, das suas supostas revoluções (entre outros, Richelle
(2002) faz notar que um olhar sobre a história da Psicologia ajudaria cada
nova geração a superar algumas das suas falhas, a começar por uma
complacência ingénua para acreditarem que a sua geração está no centro
de uma revolução, em vez de perceberem as mudanças que ocorrem na
sua disciplina como etapas de uma evolução. É claro que podem acontecer
mudanças de paradigma em Psicologia, insiste o autor, tão ou mais
importantes do que aquelas que ocorrem noutras ciências. Mas em todos
os casos, tais mudanças, por dramáticas que sejam na aparência, só se
concebem em relação àquilo que as precede; uma coisa é a condição da
outra. Negligenciando isso, a Psicologia enquanto comunidade perde o
sentido de continuidade e da natureza cumulativa do seu empreendimento
científico. Para os triunfalismos da Psicologia, sejam eles freudianos,
behavioristas, construtivistas, cognitivistas ou outros do mesmo género,
não existe melhor antídoto do que as lições da história (p. 233)). Também
desse modo, a Psicologia dominante consegue legitimar a sua existência e,

História da Psicologia 31
sobretudo, o seu papel aos comandos da própria disciplina; dando à
comunidade, incluindo as novas gerações, a ideia de que a história da
Psicologia é a narrativa de uma caminhada triunfal e que não vale, por
conseguinte, a pena questionar os destinos da disciplina.
Em parte para criar consensos em torno da sua suposta importância, em
parte para legitimar o seu poder mais do que discutível, a Psicologia
dominante reduz de forma teimosa a pluralidade da memória histórica de
toda a disciplina a um discurso linear e encomiástico à magnitude fabricada
dos seus (supostos) grandes vultos, assim como das suas supostas
grandes instituições. E no meio da sua narrativa mitológica, consagrada
pela sua historiografia oficial, surge em grande destaque, como um grande
feito, a aplicação dos testes para putativamente medir a inteligência aos
recrutas do exército americano, em vésperas de partir para a Grande
Guerra na Europa: os chamados “Army Alpha” e “Army Beta” — destinados
a recrutas alfabetizados, ou não. Episódio oficialmente comemorado como
o grande acontecimentos da década de 1910, mas que, para além de
constituir uma forma assaz óbvia de logro científico, apresenta nas suas
consequências algumas semelhanças inquietantes com um dos episódios
mais lúgubre da história da Ciência e, de um modo geral, da humanidade: o
“lysenkismo”.
Com efeito, o Immigration Restriction Act de 1924 (cf. v.g. Gould, 1981, p.
161) assim como — e sobretudo — a promoção da políticas eugénicas
fazem parte do conjunto dessas consequências, que vieram a tornar os
Estados Unidos o primeiro país do mundo a promulgar programas de
esterilização compulsiva (em 1897, no estado do Michigan) e,
possivelmente, o último no mundo ocidental a retirá-los — em 1981
decorreu a última intervenção, no estado do Oregon, embora o Oregon
Board of Eugenics, mais tarde apelidado Board of Social Protection, tenha
existido até 1983. Sem estar aqui a fazer um processo do passado, é
importante sublinhar que o Immigration Restriction Act teve a sua
fundamentação na teoria do QI hereditário que, por sua vez, foi
fundamentada pela aplicação desses supostos testes de inteligência ao
exército durante a Grande Guerra. Isto é, tal como nota ainda Gould (1981),
os resultados de tal aplicação, ainda que fraudulentos, proporcionaram os
elementos técnicos necessários para a institucionalização da própria
ideologia hereditarista (pp. 161 e 241). Sendo igual modo de sublinhar que,
em termos genéricos, as políticas eugénicas estão estreitamente ligadas a
Galton, por razões óbvias, aos seus seguidores (entre os quais pontifica o

História da Psicologia 32
seu protegido, Pearson) e continuadores (como Cyril Burt) e, de um modo
geral, ao seu paradigma, que, com algumas modificações, viria a constituir
o núcleo da correntes dominante da Psicologia (Thomas Leahey (1997),
cuja clássica e venerada história da Psicologia constituiu parcialmente uma
ode à psicologia americana, descreve as relações entre esses vários
autores, sem contudo comprometer a corrente dominante da Psicologia, da
seguinte forma: “Os galtonianos consideravam os imigrantes recentes e os
negros como Próspero considera Calivan em A Tempestade de
Shakespeare: "um demônio, um demônio nato, cuja natureza e criação
nunca podem aderir". Os testes do exército, disseram os galtonianos,
demonstraram a estupidez irremediável desses grupos, fixada nos genes,
que nenhuma educação poderia melhorar. Como a educação era incapaz
de melhorar a inteligência, a moralidade e a beleza dos americanos,
concluíram eles, algo teria que ser feito a respeito da estupidez, do imoral e
do feio, se os americanos não cometessem "suicídio racial".
Especificamente, de acordo com os galtonianos, a raça inferior teria de ser
impedida de imigrar para a América e os americanos que já estão aqui, mas
amaldiçoados pela estupidez ou pela imoralidade, teriam de ser impedidos
de se reproduzir. Os galtonianos procuraram, portanto, restringir a
imigração a pessoas que consideravam o melhor tipo de pessoas e
implementar a eugenia negativa, impedindo a reprodução entre os piores
tipos de pessoas. Embora apenas ocasionalmente fossem líderes nas
políticas de imigração e eugenia, os psicólogos desempenharam um papel
importante no apoio aos objetivos galtonianos” (p. 358)).

4 - Parêntese breve: o caso Lysenko e o “Lysenkismo”

Lysenko

Não é este o local para analisar, nem laconicamente, o caso Lysenko e


sobretudo o “lysenkismo”, esses trinta e cinco anos de irracionalidade

História da Psicologia 33
brutal, na palavra de Joravsky (1970), da qual viria a resultar, de uma forma
ou de outra, a morte à fome de milhões de pessoas na antiga União
Soviética. Seriam necessárias muitas páginas para o fazer. Abra-se
contudo e apenas um parêntese breve nesta reflexão crítica acerca das
pequenas e grandes mistificações na história da Psicologia para o referir,
de modo somente superficial, desde logo naquilo que ele exemplifica de
totalmente errado na apropriação da Ciência pelo dogma e pelo
preconceito; ou ainda na subjugação do conhecimento científico (e da sua
busca) ao fanatismo e ao fundamentalismo; ou mesmo à utilização
completamente pervertida e fraudulenta da autoridade científica para
supostamente justificar e validar políticas sociais mais do que
simplesmente duvidosas — como o racismo, que tinha estado duas
décadas antes na base da aplicação dos (supostos) testes de inteligência
aos recrutas do exército dos Estados Unidos.

“A história bizarra deste homem”, afirma Sacarrão (1989), “constitui um dos


capítulos mais estranhos da história recente da biologia” (p. 302). Apesar
de nunca ter conseguido provar nenhuma das suas proposições
supostamente científicas, e apesar de vários malogros na prática, Lysenko,
sublinha Sacarrão (p. 303), conseguiu impor a sua teoria e decretar a
falsidade da genética, descreditando na URSS a teoria cromossómica da
hereditariedade, levando à suspenção dos estudos sobre a Genética, à
destituição de investigadores e à prisão e exílio para a Sibéria, onde veio a
morrer, de Nikolai Vavilov, cientista de grade reputação internacional, que
dirigira importante investigação genética. “Conhecem-se diversas grandes
mistificações científicas, mas o caso Lysenko é, provavelmente, o que
ganhou maiores proporções e o que se traduziu por maior fanatismo. É
certo que o nazismo inventou uma antropologia para uso próprio e serviu-
se fraudulentamente da ciência para instaurar uma falsa biologia racial, e à
sua sombra praticou genocídios e horrores de difícil paralelo na história.
Mas foi uma mistificação coletiva, toda ela emanando afinal da própria
ideologia fascista” (ibidem, p. 305). O caso Lysenko é diferente: “O
lysenkismo foi um movimento de grande importância, não apenas por
traduzir uma direta e lamentável intromissão do poder e da ideologia na
ciência, como todos os erros e violências consequentes, mas sobretudo
porque, apoiado firmemente no poder político, cresceu e perseguiu a
comunidade científica. E, assim, o que era falso passou a ser verdadeiro
por simples decisão do poder político partidário” (ibidem, p. 304).

História da Psicologia 34
O episódio dos (supostos) testes de inteligência aplicados aos recrutas do
exército norte-americano não conheceu um apoio firme e aberto do poder
político, o que aliás seria ilógico de acontecer num país apesar de tudo
democrático, como já o eram os Estados Unidos da América no início do
século XX. Todavia, as semelhanças entre os dois casos são dignas de
reflexão. Até no facto de, num como noutro, o que era falso ter passado a
ser verdadeira; fossem as ideias absurdas de Lysenko sobre a
hereditariedade, fossem as ideias não menos absurdas de Robert Yerkes
ou de Henry Goddard, entre outros que se lhes seguiram, também sobre a
hereditariedade (da inteligência) ou sobre a eugenia ou sobre a suposta
psicologia das raças humanas.
5 - A aplicação em massa de (supostos) testes de inteligência

A inteligência, mais precisamente a sua definição e a sua suposta


mensuração, é um espinho cravado na história e, sobretudo, no processo
de cientificação da Psicologia. Tendo-se tornado igualmente, por outro lado
e por isso mesmo, uma espécie de doença metafórica no seu corpo.
Grande parte do problema pode-se resumir a uma ideia simples: a
inteligência poderia e, mais do que isso, deveria ser estudada de várias
formas, sob diferentes ângulos, muito em particular sob a luz da evolução e
do evolucionismo. Como compreender, desde logo, o cérebro humano e a
sua assombrosa complexidade e evolução, se não for à luz da evolução? (a
resposta a uma tal questão transcende por completo o âmbito deste artigo.
Poderei apesar disso afirmar que, em si mesma, a evolução representa um
dos níveis de análise do comportamento humano na sua globalidade, e não
apenas da inteligência, absolutamente necessário ainda que não suficiente;
sendo que todos eles são complementares e mais ou menos pertinentes
consoante os tipos de questões em estudo. Acerca das assombrosa
evolução do cérebro, acrescentarei com Badcock (2009) que “the truth is
that […] we don’t really know why the human brain evolved, what purpose it
evolved to serve, precisely who or what benefited from it, how they or it
benefited, or why” (p. 33).) Todavia, a Psicologia dominante reduziu
também aqui a pluralidade e complexidade do fenómeno e uma
conceitualização estreita, quase monodimensional, baseando-se para tal
em pressupostos mais do que discutíveis — e, de qualquer modo, nunca
provados — acerca da sua natureza. Pressupostos que, com frequência, se
basearam apenas nos preconceitos dos seus defensores, tendo, além
disso, sido definidos a partir da linguagem e da cultura que lhes estava na

História da Psicologia 35
origem e não espelhando nenhuma estrutura natural e universal do ser e do
devir humanos, caso exista uma tal coisa.
Nesse sentido, o estudo da inteligência foi e continua a ser um presente
envenenado que um certo pragmatismo norte-americano ofereceu à
Psicologia, na sua ânsia aflita de tudo reificar e tudo reduzir a números, de
operacionalizar e quantificar todas as realidade, mesmo (ou sobretudo) as
pior compreendidas e mais imperfeitamente definidas. Acreditando, a partir
desse passe de mágica, que a realidade medida (a realidade estatística) é a
realidade “real” (neste caso, a realidade psicológica); e criando em seguida
uma série de tautologias, das quais a mais panglossiana deverá ser,
justamente, uma das mais repetidas no universo da Psicologia: a
inteligência é aquilo que os testes testam. Aliás, mais do que um presente
envenenado, foi — e continua sendo — um presente amaldiçoado, no
sentido em que, em grande medida, a Psicologia não pode viver com ele;
do mesmo modo que não pode passar sem ele. Até porque a mensuração
da inteligência tornou-se, e não apenas na América, uma indústria lucrativa.
A matéria é demasiado vasta, além de complexa e matizada por tonalidade
de difícil apreensão, para poder ser aqui tratada como aprofundamento que
merece. Direi, todavia, o básico. Por um lado, que grande parte do impulso
para estudar a inteligência dessa forma estreita (e preconceituosa e
dogmática) nos Estados Unidos foi iniciado por (apenas) um punhado de
nomes, ligados ao eugenismo e à suposta Psicologia da Raça e, não
obstante estas inclinações duvidosas, amplamente celebrados pela
historiografia instituída; tendo em particular muito ficado a dever aos
esforços prosélitos dos já citados Goddard e Yerkes. Sendo de notar, por
outro lado, que a apropriação desse acontecimento é em si mesmo uma
ironia: os testes aplicados talvez medissem, olhando para eles com alguma
indulgência, o grau de aculturação aos valores dominantes nos Estados
Unidos no início do século XX (não são necessários muitos exemplos para
perceber o quanto ambos os testes (”Alpha” e “Beta”) eram basicamente
testes de aculturação, ainda por cima culturalmente enviesados. No caso
do teste “Beta”, um teste com ilustrações (para os recrutas iletrados), era
necessário estar familiarizado com coisas como o fonógrafo ou a lâmpada
incandescente, o que de facto não acontecia com muitos imigrantes
recém-chegados à América. No caso do teste “Alpha”, perguntas como
“Velvet Joe appears in advertisements of: (tooth powder) (dry goods)
(tobacco) (soap)” ou “Christy Mathewson is famousa as a: (writer) (artist)
(baseball player) (comedian)” são suficientemente reveladoras. Tal como

História da Psicologia 36
refere Diane Paul (1995), os testes parecem sobretudo uma versão da
época do jogo Trivial Pursuit), mas não eram certamente uma forma de
medir a inteligência. Ou seja, tratou-se de um acontecimento inventado ou
prodigamente embelezado, o que é típico, tipicamente despolitizado, sem
conflitos, discórdias ou controvérsias. Um falso acontecimento ou, se se
preferir, uma mistificação, toda ela emanando, tal como o “lysenkismo”, de
uma ideologia, neste caso racista e eugenista. Um símbolo quase perfeito
da jactância e do modus operandi dessa clique ou corrente que ainda
domina a Psicologia enquanto prática, enquanto disciplina científica e
académica. Perante o torpor, a indiferença ou a docilidade mais
extraordinária da comunidade.
Gould (1981) consagrou uma parte importante do seu famoso The
mismeasure of man a uma rara leitura (a leitura feita por Stephen Gould é
rara no sentido de preciosa, mas também no sentido mais literal do termo,
uma vez que a extensa monografia de Robert Yerkes raramente foi lida: “Os
resultados do trabalho são um desastre vergonhoso, e não apenas por
causa do excesso de ambição ou da falta de realismo de Yerkes. Todos os
detalhes constam da monografia, mas quase ninguém a lê. O resumo
estatístico converteu-se numa poderosa arma social para os racistas e os
eugenistas; as suas raízes podres podiam ser detectadas no corpo
monografia, mas quem é que faz indagações para além da superfície
quando esta reflete uma ideia que coincide com a suas própria?”) crítica
desse episódio; tendo observado desde logo a esse respeito que a
“principal repercussão dos testes não proveio da pouco entusiástica
utilização que fez o exército dos resultados obtidos pelos indivíduos, mas
da propagada geral que rodeou o relatório de Yerkes sobre os dados
estatísticos finais” (p. 204). O próprio Yerkes reconheceu claramente que
“salvo poucas excepções, todas [as opiniões dos comandantes militares]
se revelaram contrárias ao trabalho dos psicólogos e levaram vários oficiais
do Estado-maior a concluir que o trabalho é de pouca, ou nenhuma,
utilidade para o exército e deveria ser interrompido” (Yerkes, R. M. (1921).
Psychological examinig in the United States army. Memoirs of the National
Academy of Sciences, 15, p. 43., como citado em Gould, 1981, pp. 210-211.).
Yerkes não chegou a ser interrompido, devido às suas relações pessoais e
às suas diligências, mas prosseguiu sob uma nuvem de suspeita,
nomeadamente quanto aos seus próprios (ibidem, p. 211; p. 203). “Um [dos
oficiais] chegou à conclusão de que era preciso controlá-lo para que
“nenhum teórico… possa utilizá-lo como mero pretexto para a obtenção de

História da Psicologia 37
dados com visitas ao seu trabalho de investigação e ao futuro benefício da
raça humana” (cit. in Kevles, 1968, p. 577)” (ibidem, p. 203).

Muito pelo contrário, Boring (Edwin Garrigues Boring (1886-1968) vem


sendo considerado há décadas, pela corrente dominante da Psicologia e
pela sua historiografia instituída, de forma acrítica e largamente indiscutida,
o “deão” da história da Psicologia. Algo que é putativamente sustentado
pela estatística, mais do que discutível mas transformada em facto, de ser
um dos cem autores, mais citados na história da Psicologia. Como se a
métrica fosse uma forma não risível de medir a grandeza do verso ou do
bardo.), o putativo “deão” da história da Psicologia, mostrou-se pouco ou
nada crítico na sua magnum opus, a History of experimental psychology,
mesmo na versão revista de 1950. Na verdade, introduz o tópico com
alguma grandiosidade: “the big event of the decade was the use of
intelligence tests in the First World War” (1929/1950, p. 575). Ao que
acrescenta, no mesmo tom jubilatório: “The tests were adopted in order to
prevent getting feeble-minded incompetece into the ranks. They were
successful for that purpose and also proved to be a quick way of getting
the brighter recuits sorted out from the duller so that the more competent
men could at once be given more responsible work” (ibidem). Nada disso é
verdade; tais testes não permitiram, nem de perto nem de longe, nada de
sequer semelhante. Para além disso, a história que Boring se esquece de
contar nestas breves linhas é que, segundo os resultados apurados, os
recrutas brilhantes e competentes eram brancos de tipo caucasiano,
enquanto que os lentos, estúpidos ou broncos (termos que a Psicologia
dominante hoje não toleraria) eram negros.

Boring, que esteve presente, que participou de forma esforçada nessa


aplicação como ajudante de Yerkes, estaria à partida numa posição
delicada, enquanto historiador, para a julgar. Sobretudo porque esse
trabalho, sintetizando o relato de Gould (que mais não é do que uma
síntese da própria monografia de Yerkes, que ninguém leu) e as suas
observações críticas, assentes em raízes podres e cujos resultados são um
desastre vergonhoso, foi realizado perante a hostilidade generalizada dos
oficiais e o desnorteamento completo de milhares de recrutas que nunca
haviam pegado num lápis (ou não conseguiam sequer ouvir ou ver o
examinador), sem uniformidade nem critérios fixos, sem coerência nos
procedimentos (ou com procedimentos duvidosos e viciados), sob
permanentes dificuldades logísticas que impuseram uma distorção
sistemática. Ou que houve escamoteamento de correlações óbvias, assim

História da Psicologia 38
como houve alteração de resultados ou falsificação dos resumos
estatísticos, de modo a ultrapassar a óbvia inadequação do teste “Alpha”. E
estava numa posição privilegiada para testemunhar o desastre e ponderar
sobre as suas muitas deficiências e a fragilidade óbvia, ou nulidade, dos
seus resultados. O que não fez.
Nota Final

Apesar das suas várias limitações como historiador, Boring acabou sendo
transformado num ícone da historiografia instituída da Psicologia
dominante (que no fundo se limitou a continuar a via por ele traçada), e que
o celebrou sem vergonha a partir daí, reforçando desse modo a sua
suposta autoridade e dando início a um fenómeno cuja lógica circular é
insofismável. Em termos simples, ao influenciar toda a Psicologia
americana, o livro e a versão de Boring vieram, pela posição dominante que
essa mesma Psicologia viria a ocupar no mundo, influenciar toda a
Psicologia ocidental. Levando até a Europa a aprender a sua própria
história, ou a história da sua própria Psicologia, através daquilo que a
Psicologia dominante entendia, ou entendia entender — ou conseguia
entender — dessa mesma Psicologia. E que Boring, em grande parte, se
limitou a estenografar.
Há qualquer coisa de absurdo na forma laudatória como a literatura norte-
americana de introdução à disciplina se lhe refere, como o deão, na medida
em que alude literalmente à dignidade eclesiástica a que está inerente a
presidência do cabido. A dignidade de Boring como historiador é, no
mínimo, uma matéria de contenção. Contudo, o seu muito discutível
estatuto contribuiu para que a mistificação criada em torno da tão
celebrada aplicação dos testes “Army Alpha” e “Army Beta” acabasse por
ser perpetuada por quase toda a historiografia, oficial e não oficial, da
disciplina; quer nos Estados Unidos da América, quer no resto do mundo.
Tal episódio é, em vários sentidos, uma das maiores mistificações da
história e da historiografia da Psicologia Dominante, da Psicologia e da
Ciência, de um modo geral. Sendo, simultaneamente, uma das mais graves,
até porque a historiografia oficial cobriu com um véu de silêncio, quando
pelo contrário deveria ter denunciado, as feições mais sinistras de um
empreendimento várias vezes fraudulento que não disfarçava sequer os
preconceitos racistas de onde partia; os quais obviamente confirmou, à
custa de entorses e falsificações. As más consequências imediatas dessas
aplicação no desenvolvimento da Psicologia como Ciência nunca foram

História da Psicologia 39
contabilizadas. Mas são, contudo, pequenas quando comparadas com as
consequências da sua aplicação social. Tal como defende Gould (1981),
sintetizando o episódio e algumas das suas ramificações, “os caminhos da
destruição muitas vezes são indiretos, mas as ideias podem converter-se
em meios tão eficazes quantos os canhões e as bombas” (p. 244). Com
efeito, as ramificações sociais dessa mistificação são comparáveis, mesmo
que possam não ter tido a mesma gravidade, às do “lysenkismo”, uma das
mais sinistras mistificações da história da Ciência — ou, em rigor, da falsa
ciência. A promoção de políticas eugénicas, assim como a promulgação de
programas de esterilização compulsiva atrás referidas, são um exemplo
desumano de tais ramificações, num dos países onde menos de esperaria
vir a encontrá-las. Aliás, quando a questão das esterilizações compulsivas
foi levantada nos julgamentos de Nuremberga, vários nazis defenderam-se
afirmando que a inspiração viera dos Estados Unidos (para um panorama
geral das políticas eugénicas e de esterilização nos Estados Unidos, veja-
se por exemplo: In the name of eugenics: Genetics and the uses of human
heredity (Kevles, 1985)).

Posição do problema → Binet e o Q.I.

A descoberta de Binet passou a ser chamada “teste de


inteligência”; ela mede o “Q.I.

Assim como outras modas Parisienses, o QI depressa


chegou aos EUA, onde passou por um sucesso modesto até
à Primeira Grande Guerra.

Naquele tempo, o QI era usado para testar mais de um


milhão de recrutas e - com a vitória dos EUA no conflito - a
invenção de Binet ter-se-ia verdadeiramente estabelecido. A
partir desse dia, o teste de QI parecia o maior sucesso da
psicologia - uma ferramenta científica e genuinamente útil.

Howard Gardner - Múltiplas Inteligências (2006)

A escala, propriamente dita, não permite medir a inteligência


porque as qualidades intelectuais não são sobreponíveis, e

História da Psicologia 40
portanto não podem ser medidas como superfícies lineares o
são.
Alfred Binet - L’âme et le corps 1905

ALFRED BINET (1857-1911)

Alfred Binet

Alfred Binet (Alfredo Binetti) nasceu em 1857, de um pai médico e de uma mãe
pintora. Após ter terminado o secundário em Paris, iniciou estudos de direito
tendo-se graduado em 1878. Abandonou a advocacia seis anos depois de ter
começado iniciando estudos de medicina que não chegou a terminar.
Continuou a sua formação eclética assistindo as aulas de Psicofisiologia e de
Psiquiatria Clínica. Em 1884 iniciou estudos de ciências naturais na Sorbonne,
sob a orientação do seu sogro, professor de embriologia. Encorajado por
Théodule Ribot, resolve estudar psicologia, vindo a trabalhar com Charcot.
Torna-se diretor adjunto do laboratório de Psicologia Fisiológica da Sorbonne
e, no mesmo ano (1892), Théodore Simon, interno de Psiquiatria, contacta-o a
propósito de crianças anormais → iniciam uma colaboração.

Em decorrência da lei de 1882, relativa ao ensino primário obrigatório, o


governo francês contacta-o. É encarregado pelo ministro da educação de criar
um instrumento que permita detetar crianças susceptíveis de vir a ter
dificuldades. A escala psicométrica que desenvolve visa obter um diagnóstico
rápido de atrasos, comparando o desempenho de cada criança ao
desempenho de crianças do mesmo grupo etário. Essa escala é considerada o
primeiro teste psicométrico, supostamente para a medição da inteligência - ou
do seu desenvolvimento - em função da idade. Na verdade, Binet afirmou
claramente que a escala não permitia medir a inteligência e foi dos primeiros
autores a sublinhar a diferença social nas variações cognitivas dos
desempenhos intelectuais e físicos. Do mesmo modo, não queria que a sua

História da Psicologia 41
escala servisse para eliminar crianças com dificuldades em nome de uma
ideologia elitista, pelo contrário, entendia que se deve criar para as crianças
com mais dificuldades uma estrutura de acolhimento que lhes permita integrar
o mais rapidamente possível as turmas normais. E nesse sentido, criou em
1905 um laboratório de Pedagogia, contudo, a sua escala irá dar origem a
interpretações naturalistas, simplistas e racistas, nomeadamente nos EUA. A
sua modificação por Lewis Terman fará dela um instrumento de seleção e de
elitismo.

Binet, um francês que caiu na Psicologia por acidente; texto por Stephen
Murdoch, 2007

Na passagem para o século XX, a inteligência foi salva por Alfred Binet, um
francês que caiu na Psicologia por acidente e que falhou, miseravelmente,
repetidamente, e publicamente até criar os exames que são a fundação dos
testes de inteligência de hoje. Aos 22 anos, Binet convalesceu na Biblioteca
Nacional de Paris depois de um colapso nervoso - o local ideal de
recuperação para um intelectual jovem e independente financeiramente. O
seu colapso emocional veio depois de anos de estudo trivial. Tal como
muitos homens e mulheres jovens que são confrontados com muitas
escolhas e insuficiente direcionamento, Binet tinha sido atraído
primeiramente para direito, um campo que prometia estabilidade e respeito,
ou pelo menos algo para fazer. Ele até ganhou a sua licença para praticar,
mas não se conseguiu puxar para trabalhar como advogado, concluindo
que direito era “a carreira dos homens que ainda não escolheram a sua
vocação”.
Binet deixou direito e entrou na escola de medicina, mas não conseguiu
tolerar o teatro de operações. Não era tanto o sangue e vísceras que o
perturbavam, mas sim as memórias de uma pai fisiologia sádico que o tinha
forçado a tocar num cadáver quando ele era apenas uma criança com a
intenção de “curar” o jovem Alfred da sua timidez.
Durante a sua recuperação na biblioteca, Binet ficou fascinado pela
psicologia. Aprendeu informalmente sobre o campo de estudo a ler e a
praticar (embora o seu praticar na altura fosse um desastre). Descobriu que
era extremamente mau na psicologia experimental - pelo menos
inicialmente. E os seus erros eram grandes, públicos e humilhantes.
Durante um período de 20 anos, publicou artigos baseados em
experiências mal arquitetadas que danificaram severamente a sua
reputação. Em particular, conduziu uma experiência pensamental que

História da Psicologia 42
envolvia uma mulher bonita e neurótica, um íman grande de ferraduras e
hipnose o que lhe trouxe chacota nos jornais sérios. […]
Surpreendentemente, fora a dificuldade profissional e pessoal, emergiu um
home que é considerado um gigante na história da psicologia. Como
resultado das suas experiências, Binet também se tornara cientificamente
mais rigoroso e mais conservador nas suas conclusões

Binet e os E.U.A.
(Henry Goddard ↔ Lewis Terman)

MORON
“Moron” (débil mental) foi cunhado em 1920 pelo psicólogo
Henry H. Goddard a partir da antiga palavra grega “moros”
que significava “dull” (chato) (oposto de oxy, que significava
“sharp” (inteligente)), e usou-o para descrever a pessoa
adulta com uma idade mental entre 8 e 12 anos na Escala de
Binet.

Foi uma vez aplicado a pessoas com um QI entre 51 e 70,


sendo um nível superior a “imbecil” (QI entre 26 e 50) e dois
níveis superiores a “idiota” (QI 0-25).
A palavra “débil mental”, tal como outras como “idiota”,
“imbecil”, “estúpido” e “mente fraca”, eram formalmente
consideradas um descritor na comunidade psicológica, mas
já não são mais utilizados pelos psicólogos.

HENRY GODDARD (1866-1957)

História da Psicologia 43
Henry Goddard

💡 Eugenia (eugenics) → é um conjunto de ideias que almeja a melhoria


genética dos seres humanos; “o estudo dos agentes sob o controlo
social que podem melhorar ou empobrecer as qualidade raciais das
futuras gerações seja física ou mentalmente”.

Henry Herbert Goddard é considerado pela histografia oficial americana um


proeminente psicólogo e eugenista (tal classificação é discutível a vários
níveis).
Factualmente, foi o corresponsável (juntamente com Lewis Terman) por
introduzir as escalas de Binet-Simon nos Estados Unidos. Foi ele, aliás, quem
traduziu em primeiro lugar a escala de Binet, em 1908, após uma visita à
Europa e foi um dos defensores mais veementes da utilização de testes de
inteligência em instituições societais como hospitais, escolas e nas forças
armadas. Traduziu também a escala Binet-Simon de 1911, tradução que
permaneceu o teste-padrão nos Estados Unidos da América até à versão de
Terman, de 1916. Estabeleceu ainda a aplicação de testes de inteligência na
estação de emigração da Ilha de Ellis, em 1913.

Estação de chegada de imigrantes na Ilha de Ellis (24 de fevereiro de 1905)

História da Psicologia 44
Mas ficou acima de tudo conhecido pelo seu estudo “The Kallikak family: a
study in the heredity of feeble-mendedness”

Caricatura da família Kallikak; Henry Edward Garret

História da Psicologia 45
O suposto “lado mau” da família Kallikak

Goddard estudou o suposto “lado mau” dessa família, em oposição àquilo que
ele considerava o “lado bom”: o “lado mau” corresponderia ao filho que Martin
Kallikak teve de uma relação pontual com a empregada de uma taberna, e sua
descendência; o “lado bom” corresponderia aos sete filhos (e sua
descendência) que teve do casamento com uma mulher de “boas famílias”
(quaker); o próprio Goddard era filho de pais quakers, devotos e evangélicos, e
frequentou escolas quaker.
No suposto “lado mau” a família, entre 480 descendentes, Goddard terá
encontrado apenas 46 pessoas “normais”. Das restantes, 143 seriam
indubitavelmente deficientes mentais, 36 seriam filhos ilegítimos, 33 seriam
pessoas “sexualmente imorais”, 24 seriam alcoólicos e 3 seriam epilépticos.
Entre esses descendentes, haveria ainda ladrões de cavalos, pobres,
condenados, prostitutas, criminosos e donos de casas de má reputação; a
“ralé” da sociedade.

Pelo contrário, do “lado bom”, entre os 496 descendentes do casamento com


uma mulher quaker, não havia filhos ilegítimos ou epilépticos. Havia somente
três pessoas “algo degeneradas mentalmente”, dois alcoólicos e uma pessoa
com hábitos sexuais “liberais”. Nesse lado da família, Goddard afirma ter
encontrado os pilares da sociedade: médicos, juízes, advogados, educadores,
comerciantes e proprietários.

Goddard concluiu do seu estudo, que apresentou em 1911 na delegação nova


iorquina da APA, que a inteligência e a deficiência mental eram herdadas
geneticamente através de mecanismos da genética mendeliana. O estudo
possuía vários erros graves, como o próprio Goddard veio a reconhecer mais

História da Psicologia 46
tarde. Isso não o impediu de publicitar aquilo que ele considerava uma ameaça
genética ao povo americano (também não impediu que tenha dado origem a
numerosos outros estudos do mesmo teor) e de recomendar a esterilização
compulsiva de pessoas com (suposta) deficiência mental ou de ser consultor
psicológica da “eugenics section” da American Breeders’ Association,
colaborando no relatório para a eliminação de “pessoas com defeitos” da
população dos Estados Unidos da América. Esse comité recomendou em 1914
que as “classes com defeitos” fossem eliminadas da população humana
através de esterilização; incluindo-se em tais classes os deficientes mentais,
os pobres, os criminosos, os epilépticos e os loucos, entre outros. Comité que
teve igualmente o parecer favorável de Robert Yerkes, Edward Lee Thorndike e
Lewis Terman, que eram considerados nos EUA os psicólogos mais eminentes
da época. O estado do Indiana aprovou em 1907 as primeiras leis estaduais
sobre esterilização de “criminosos confirmados, idiotas, imbecis e violadores”.
Nas duas décadas seguintes, outros 20 estados norte-americanos aprovaram
leis similares, permitindo esterilizações eugénicas. Quando a lei alemã sobre
esterilização foi aprovada em 1933, o editorial da revista americana Eugenical
News congratulou-se

Da segregação à esterilização: a história de Carrie Buck


Em 1920, uma mulher de Charlottesville, Virginia, chamada Carrie Buck
tinha muitos problemas, muitos dos quais ela não podia controlar. O seu pai
tinha morrido e a sua mãe, Emma, era pobre e analfabeta. Quando Carrie
era muito nova, o condado decidiu que a sua mãe era uma “mente fraca”
(feebleminded) e ordenou que fosse institucionalizada, deixando a Carrie e
os seus irmãos sem pais. Aos 3 anos, Carrie foi viver com os seus pais
adotivos, John e Alice Dobbs. Eles colocaram-na na escola básica por 5
anos, e ela viveu com eles.
Em 1923, Alice Dobbs saiu da cidade no verão, e o seu sobrinho arranjou a
oportunidade de violar a Carrie de dezessete anos. Ela ficou grávida e este
evento local e familiar mudaria não só a vida de Carrie, mas eventualmente
a de vários outros no mundo.
Os Dobbes decidiram esconder o crime do seu sobrinho ao iniciarem um
processo de institucionalização para a Carrie.

A 23 de janeiro de 1924, um juiz da família de Charlottesville mandou a


Carrie e os seus pais biológicos e adotivos estarem presentes perante a
comissão para determinar se a Carrie era “mente fraca” ou “epilética”.

História da Psicologia 47
Apenas os Dobbes e a Carrie apareceram, porque a sua mãe já estava
presa em Lynchburg e o seu pai morto.

O caso legal de Carrie Buck é importante não só em termos do seu impacto


em como os testes de QI passaram a ser usados na medicina e direito
durante a primeira metade do século XX, mas também porque ilustra como
a inteligência - particularmente em casos sobre os “mente fraca” - era
definida de forma amorfa e flexível pelo comportamento, algumas vezes
corroborada pelo QI, mas nem sempre.

Apesar da sua brevidade, as inconsistências e a falta de evidências, a


comissão decidiu que a Carrie era “mente fraca ou epilética” e decidiram
institucionalizá-la.

Esta avaliação comportamental e circunstancial da inteligência, com


nenhuma associação com a biologia ou cognição, permitiu que as pessoas
a tratassem a ela e nos anos seguintes, a dez milhares de outros humanos
de “baixo grau”.
Stephen Murdoch, 2007. “IQ. A samrt history of a failed ideia (pp. 100-2)

LEWIS TERMAN (1877-1956)

Lewis Madison Terman, 1923

Lewis M. Terman nasceu numa quinta, no estado do Indiana, o 11º de 14 filhos.


Entrou para a escola com 6 anos e ao fim de 6 meses passou para o 3º ano.
Apesar da sua precocidade e de ser um bom aluno, era suposto trabalhar na
quinta. Conseguiu, no entanto, que os seus pais, com algum sacrifício
financeiro, o mandassem estudar, de modo a vir ser professor do ensino
básico. Após ter dado aulas em várias escolas rurais, entrou para a
universidade de Indiana, onde obteve uma graduação. Obteve igualmente uma
bolsa para a Universidade Clark, como aluno de doutoramento de Hall. Foi

História da Psicologia 48
nessa ocasião que se interessou pelos testes mentais, o que o levou a ter que
escolher outro orientador, pois Hall desaprovava os testes mentais.
Questões de saúde levaram-no a ir para a Califórnia, onde foi professor de
liceu da (atual) California State University e da Universidade de Stanford, onde
permaneceu até ao fim da sua carreira. Foi na Universidade de Stanford que
Terman começou a investigar a escala Binet-Simon, estudo o que o levou
posteriormente a apresentar várias revisões da escala original. Publicou em
1916 a primeira revisão (Stanford Revision of the Binet-Simon scale) tendo
apresentado novas revisões em 1937 e 1960.

Ao fazer a revisão da escala Binet-Simon, Terman e os seus


colaboradores usaram a amostra de estandardização de
2300 pessoas: 1700 crianças normais, 200 crianças
defeituosas e superiores e 400 adultos. Apesar dos itens
originais do teste Binet-Simon, Terman incluiu dez itens
adicionais à categoria de possíveis itens dos quais os itens
que passaram à revisão final foram incluídos. As crenças
fundamentais de Terman eram que a inteligência era em
grande parte influenciada pela hereditariedade e era
constante.
Nos Estados Unidos, a escala Stanford-Binet de 1916
permaneceu o instrumento teste padronizado para medir a
inteligência até 1938, quando Terman e os seus
colaboradores publicaram a sua segunda revisão.
David Hothersal - History of psychology

No dia 6 de abril de 1917, o presidente Wilson assinou uma declaração de


guerra da qual resultou a entrada oficial dos Estados Unidos da América na
Grande Guerra. Nesse mesmo dia, Yerkes convocou uma sessão especial da
Society of Experimental Psychologists, para discutir os contributos que os
psicólogos deveriam dar para o esforço de guerra.

Em abril, o concelho da APA nomeou uma comissão especial da qual fazia


parte Yerkes, para estudar o papel da Psicologia no esforço de guerra. Faziam

História da Psicologia 49
parte igualmente John Watson, James Cattel, Stanley Hall e Edward Thorndike.
Decidiram concentrar-se no desenvolvimento de método de exame psicológico
adaptados às necessidade militares. A convite de Goddard, um grupo de
psicólogos (incluindo Terman e Yerkes) reuniu-se em Vineland e, numa questão
de poucos meses, desenvolveram dois testes de aplicação coletiva que vieram
a ser conhecidos como “Army alpha” e “Army beta”. Estes testes foram a ponta
visível de uma das maiores falsificações da história da Ciência.

Este livro, portanto, é sobre a abstração da inteligência como


uma entidade única, a sua localização no cérebro, a sua
quantificação como um número para cada indivíduo, e o uso
desses número para organizar pessoas numa escala de valor
invariavelmente para descobrir que os grupos oprimidos e
em desvantagem - raças, classes ou sexos - são inatamente
inferiores e merecem o seu estatuto. De forma resumida,
este livro é sobre o “medir mal” os homens.
Steven Jay Gould - The mismeasure of man

A década de 1920 foi um período de grande polémica sobre


os testes mentais. A testagem mental era uma ideia cujo
tempo ainda não tinha chegado - tal até teria chegado cedo
demais. Muitos dos psicólogos teriam querido que os
resultados dos testes fossem neutro, mas não o eram.
David Hothersal - History of Psychology

Início da Psicologia na Alemanha - A


Fundação e a Institucionalização da
Psicologia Científica
Nomes Importantes

Whilhelm Wundt → foi um médico, filósofo e psicólogo alemão; é


considerado um dos fundadores da Psicologia Experimental junto com
Ernst Heirich Weber e Gustav Theodor Fechner.

História da Psicologia 50
Weber
Wundt
Fechner

Edward Bradford Titchener → foi um psicólogo estruturalista britânico;


estudou em Leipzig com o seu mestre Wundt

Leipzig
Titchener

Wurzburg - cidade da Alemanha onde se situa uma universidade


conhecida pela Psicologia

Universidade de Wurzburg

História da Psicologia 51
Psicologia da Gestalt → também denominada Gestaltismo,
Guestaltismo, Configuracionismo ou Psicologia da Forma, é uma escola
de Psicologia do início do século XX da Áustria e Alemanha; teoria da
percepção que rejeita princípios básicos da psicologia elementalista e
estruturalista de Wundt e Titchener; fundada por wertheimer, Kohler e
Koffka

Kohler

Koffka
Wertheimer

A Psicologia na Alemanha era dividida entre duas escolas. A escola de Leipzig


e a escola de Wurzburg

Escola de Leipzig Escola de Wurzburg

Wilhelm Wundt Oswald Kulpe

Psicologia Fisiológica Psicologia Fenomenológica

História da Psicologia 52
Kulpe (1862-1915)
Wundt (1832-1920)

Psicologia Fisiológica: Psicologia Fenomenológica:


Estudo dos mecanismos neurais do Entende o seu humano como
comportamento por meio da protagonista da sua própria vida;
manipulação direta do cérebro em estuda as relações entre consciência
experiências controladas (métodos empírica e transcendental; vem de
cirúrgicos e elétricos de manipulação fenomenologia que é uma
cerebral são mais comuns). metodologia que retoma a
importância dos fenómenos

A disciplina académica da Psicologia foi fundada


institucionalmente na Alemanha do final do século XIX. Foi
um crescimento natural do sistema progressiva da
Universidade Alemã, que foi favorável ao desenvolvimento
de novas disciplinas como a linguística e a psicologia.
Wilhelm Wundt (1832-1920), que fundou a psicologia
científica na Alemanha em 1879, o ano em que estabeleceu
um laboratório experimental na Universidade de Leipzig,
caracterizou a nova disciplina como “Psicologia Fisiológica”.
Isto não foi porque o mesmo acreditava que os estados e
processos psicológicos devem ser redutivelmente

História da Psicologia 53
explicados em termos de estados e processos fisiológicos,
mas sim porque acreditava que a psicologia científica
deveria aproveitar os métodos experimentais que se tinham
provado tão bem sucedidos no desenvolvimento da fisiologia
alemã do século XIX
John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

WILHELM WUNDT (1832-1920)

Apenas os psicólogos mais controversos discordariam de


que a Psicologia como uma ciência experimental teria
começado com o estabelecimento do primeiro laboratório de
pesquisa psicológica por Wilhelm Wundt na Universidade de
Leipzig em 1879.
David Hothersal - History of Psychology

É apropriado começar a história de psicologia moderna em


1982, porque nesse ano a Associação de Psicologia
Americana foi fundada.
Thomas Hardy Leahey - A history of modern psychology

Wilhelm Maximilian Wundt foi a primeira pessoa a chamar-se a si mesmo


“psicólogo”.

História da Psicologia 54
Nasceu na pequena aldeia de Neckarau, perto de Mannheim (no principado
alemão de Baden). Filho de um pastor luterano, ambas as suas famílias de
origem (materna e paterna) foram intelectualmente proeminentes. Incluindo,
nomeadamente, dois presidentes da Universidade de Heidelberga.

Apesar disso, terá tido uma infância triste e solitária. O seu único companheiro
de brincadeiras, por quem se sentia responsável, sofria de uma deficiência
mental ligeira. Talvez por isso, tenha sido toda a vida uma pessoa tímida e
reservada.

Wilhelm Maximilian Wundt nasceu na vila de Neckaray no


município alemão de Baden, o quarto filho de um ministro
Luterano, Maximilian Wundt, e a sua esposa, Marie
Frederike. Veio de uma família conceituada da qual faziam
parte presidentes e professores de Universidade, cientistas,
administradores do governo e teólogos.

John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

Detestava viajar, não gostava de conhecer pessoas e evitava novas


experiências. A sua experiência escolar começou por ser fraca: foi
aconselhado a desistir dos estudos e a procurar uma profissão que não
exigisse qualificação académica. Perseverou nos estudos, porém. Um tio
materno (professor de anatomia cerebral e fisiologia) aconselhou-o a entrar na
Universidade como pré-aluno de medicina. Foi aluno da Universidade de
Heidelberga, onde completou o curso de medicina em três (e não quatro) anos,
graduando-se em 1855 com elevado louvor (Summa Cum Laude).

Depois de um começo académico atribulado (odiava a


escola, faltava às aulas, os seus professores diziam-lhe que
não era feito para qualquer carreira profissional mais
desafiadora), Wundt destacou-se como estudante de
medicina na Universidade de Heidelberg e recebeu o seu
diploma de medicina (com louvor) em 1855.

John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

História da Psicologia 55
Depois de ter passado pela Universidade de Berlim, voltou a Heidelberg, onde
foi assistente de Von Helmholtz no recém-criado Instituto de Fisiologia. Essa
posição foi um desapontamento para ele, pois tinha a seu cargo sobretudo dar
aulas e não investigar. Apesar disso, conseguiu criar uma disciplina de
Antropologia, a que hoje se chamaria de Psicologia Social, em 1859: viria a
dedicar uma grande obra (em dez volumes) a esse tema nas últimas décadas
da sua vida.
Wundt conceptualizou a psicologia como se situando entre as ciências naturais
e as ciências sociais. Entendia também que, sempre que possível, a nova
ciência devia utilizar os métodos de pesquisa experimental das ciências físicas.
No entanto, nem todas as áreas da Psicologia poderiam ser estudadas dessa
forma. Assim, Wundt dividiu o estudo da Psicologia Científica em 3 áreas ou
ramos: 1) como ciência experimental indutiva; 2) como estudo da linguagem,
dos mitos, da estética, da religião e dos costumes sociais, ou seja, dos
processos mentais superiores ou das suas produções (uma vez que esses
processos não podem ser manipulados ou controlados, não podem ser
estudados experimentalmente - nesse caso, devem ser abordados através de
registos históricos e literários e de observações naturalísticas); 3) como
integração dos conhecimentos empíricos da Psicologia com os das outras
ciências (a esta terceira subdivisão, Wundt chamou “metafísica científica” que
deveria evoluir para o objetivo ideal da ciência - uma teoria coerente de todo o
Universo - nesse sentido, a Psicologia deveria ser uma ciência de base ou uma
ciência preliminar daquela que seria a ciência que iria integrar as ciências
físicas e sociais).

Depois de ter ensaiado uma carreira política no parlamento de Baden e de ter


sido professor em Zurique, Wundt tornou-se regente da disciplina de filosofia
na Universidade de Leipzig, conseguindo um espaço para expor e utilizar os
instrumentos que trouxera de Zurique. Esse espaço, disponibilizado no edifício
“Konvict” em 1876, viria a tornar-se o primeiro laboratório de Psicologia
Experimental de todo o mundo.

A nova disciplina científica de Wundt começou


suficientemente modesta. O primeiro curso que ele ensinou
em Leipzig foi em Psicologia Fisiológica. Algumas das
demonstrações e práticas relacionadas com esse curso
eram feitas na sala de arrumações providenciada pela

História da Psicologia 56
universidade no verão de 1876. A sala (prometida a Wundt
em 1875) estava localizada numa estrutura despretensiosa
chamada edifício Konvikt, que tinha sido construída para ser
uma cafeteria para estudantes pobres.
John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

Estabelecendo-se em 1879 como data da sua criação, uma vez que foi no
outono desse ano que se iniciou a realização de algumas experiências de
Psicologia Experimental. Na verdade, o laboratório só foi reconhecido pela
própria Universidade no ano de 1883, em parte porque Wundt ameaçou aceitar
um convite para o levar para a Universidade Breslau. O estabelecimento desse
laboratório foi um ato de coragem, pois Wundt teve que enfrentar a oposição
de vários colegas (que questionavam a legitimidade da Psicologia como ciência
experimental). Wundt teve igualmente que enfrentar a oposição vigorosa de
muitas vozes da filosofia. O laboratório cresceu em tamanhos e importância ao
longo dos anos, tendo vindo a chamar-se “Instituto de Psicologia” e a ocupar
um edifício concebido expressamente para se efetuar pesquisa Psicológica
(edifício que veio a ser destruído durante um “Raid” aéreo na noite de 4 de
dezembro de 1943, por forças armadas anglo-americanas).

Trummerbeseitigung, 1950 (Leipzig após os bombardeamentos); Autor: Roger Rossing (1929-


2005)

História da Psicologia 57
Wundt não se limitou a fundar a Psicologia científica: formou pessoalmente
uma coorte substancial da primeira geração de Psicólogos.

Wundt no 1º laboratório de Psicologia Experimental; Wundt Research Group, autor


desconhecido, s/ data (ca. 1880)

Por exemplo, 12 dos 43 laboratórios de Psicologia que existiam em 1900 nos


Estados Unidos foram fundados por antigos alunos de Wundt. No mesmo anos,
4 dos 5 psicólogos americanos mais proeminentes (de acordo com Cattell)
tinham sido alunos de Wundt. De igual modo, em 1920 os estudantes e
seguidores Japoneses de Wundt estavam a construir uma réplica do seu
laboratório na Universidade de Tóquio. Foi, além disso, professor de mais de
24000 alunos (dando aulas num estilo que Titchener veio copiar, na
Universidade Cornell).
As suas aulas atraíam muitos estudantes de Leipzig (as suas aulas eram
diferentes: ele não se limitava a ler, foi dos primeiros a utilizar diapositivos e
demonstrava experiências). No entanto, apesar de ter tudo muitos estudantes,
Wundt teve poucos discípulos intelectuais.

ESCOLA DE WURZBURG
O programa da Psicologia Experimental de Wundt em Leipzig foi uma força
dominante na Alemanha por muitos anos, mas não foi o único programa de
Psicologia baseada em laboratório, no final do século XIX e início do século XX.
Houve outras universidade alemãs que criaram institutos de Psicologia e os
seus programas vieram a rivalizar (e até ultrapassar) o programa de Wundt.
Houve igualmente outros nomes importantes na fundação e institucionalização
da Psicologia Científica na Alemanha, como por exemplo, Hermann
Ebbinghaus, Georg Ellias Muller, Franz Brentano ou Carl Stumpf. O mais

História da Psicologia 58
proeminente terá no entanto sido Oswald Kulpe, que se doutorou com Wundt e
foi seu assistente.

OSWALD KÜLPE (1862-1915)

O laboratório de Psicologia da Universidade de Wurzburg, orientado por


Oswald Kulpe, desenvolveu uma nova abordagem da Psicologia Experimental,
ignorando muitas das restrições de Wundt, em especial, quanto à
impossibilidade de estudar experimentalmente os processos mentais
superiores. Kulpe estava particularmente interessado em estudar os processos
do pensamento. A escola de Wurzburg desenvolveu formas de o fazer, criando
experiências que com o passar dos anos se foram tornando cada vez mais
orientadas no sentido da cognição. A pesquisa realizada em Wurzburg foi no
entanto extensamente e frequentemente criticada por Wundt e pelos seus
alunos. A morte de Kulpe, em 1915, veio terminar o programa de pesquisa de
Wurzburg.

Selo da Universidade de Wurzburg, 1583; Autor: Julius-Maximilians

EDWARD TITCHENER (ver Estados Unidos)

História da Psicologia 59
Edward Bradford Titchener (1867-1927)

Sobre este autor, ver o Módulo “Estados Unidos” (Expansão da Psicologia nos
E.U.A.)

GESTALT (PSICOLOGIA DA FORMA)

Psicologia da Gestalt: 7 leis

História da Psicologia 60
💡 Funcionalismo

É um ramo da antropologia e das ciências sociais que procura


explicar aspetos da sociedade em termos de funções. Para ele, cada
instituição exerce uma função específica na sociedade e o seu mau
funcionamento significa um desregramento da própria sociedade.

Behaviorismo
É uma abordagem sistemática para a explicação do comportamento
dos seres humanos e animais. Para o behaviorismo, comportamento é
tudo aquilo que um organismo - humano ou animal - faz ou produz,
incluindo ações privadas, como sentir ou pensar (causas,
manutenção e perda de comportamentos).

Estruturalismo

É uma corrente de pensamentos na ciências humanas que se inspirou


no modelo da linguística e que depreende a realidade social a partir
de um conjunto considerado elementar (ou formal) de relações:
metodologia pela qual elementos da cultura humana devem ser
entendidos face à sua relação com um sistema ou estrutura maior,
mais abrangente.

A Psicologia da Gestalt (ou da forma) surgiu em parte como reação ao


Funcionalismo e ao Comportamentalismo (behaviorismo) nascente. Durante as
primeiras décadas do século XX, a psicologia da Gestalt constituiu uma
alternativa maior e um desafio a essas duas correntes, bem como à corrente
do Estruturalismo. É geralmente representada pelos estudos pioneiros dos seus
fundadores no chamado “Grupo de Berlim”: Max Wertheimer, Kurt Koffka e
Wolfgang Kohler

MAX WERTHEIMER (1880-1943)

História da Psicologia 61
Max Wertheimer nasceu em Praga (império austro-húngaro) numa família judia
germanófona. A mãe, apaixonada por música e literatura europeia, encoraja-o
a aprender piano e violino. Em 1898, inscreve-se na faculdade de direito de
Praga, mas interessa-se rapidamente por outras matérias, como a fisiologia, as
artes e a filosofia. Acaba por escolher a filosofia e tem como professor
Christian Von Ehrenfels, que foi o primeiro pensador a formular a ideia de
“Gestalt”.
Tendo partido em 1902 para Berlim, vem a ser aluno de Carl Stumpf. É nessa
altura que aprofunda os seus conhecimentos de música e se apaixona pela
Psicologia Experimental, embora vá terminar a sua tese na Universidade de
Wurzburg. Foi expulso da Universidade (em 26 de abril de 1933) e da
Alemanha.

Após uma tentativa fracassada de conseguir um lugar na London School of


Economics, emigrou para os Estados Unidos, onde se juntou àquela que veio a
ficar conhecida como a “University in Exile” - a new school for social research,
da cidade de Nova Iorque (essa instituição acolheu mais de 170 professores e
investigadores, assim como as suas famílias, incluindo Hannah Arendt e
Claude Lévi-Strauss.

KURT KOFFKA (1886-1941)

História da Psicologia 62
Kurt Koffka nasceu e estudou Psicologia em Berlim, tendo terminado a sua tese
em 1908 sob a orientação de Carl Stumpf. Foi assistente de Johannes Von
Kries na Universidade de Freiburg e de Oswald Kulpe na Universidade de
Wurzburg (Oswald Kulpe, formado por Wundt e também orientador de
Wertheimer, irá animar a chamada “escola de Wurzburg”, rival da escola de
Wundt). Após a saída de Kulpe, irá para a Universidade de Frankfurt, onde
participa nas experiências de Max Wertheimer. Em 1927, emigra para os
estados unidos, tornando-se professor no Smith College.

WOLFGANG KOHLER (1887-1967)

Em 1913, a academia prussiana de ciência instalou, na ilha de Tenerife, nas


Canárias, uma estação para estudo do comportamento de antropoides.
Wolfgang Kohler, ainda muito jovem e quase sem experiência em Biologia e
Psicologia de animais, foi nomeado diretor dessa estação. Nascido em Talinn
(Estónia), de pais Alemães, mudou-se para a Alemanha aos 6 anos tendo vindo
a estudar nas Universidades de Tubingen, Bonn e Berlim. Terminou em 1909 a
sua tese sobre psico-acústica sob a orientação de Carl Stumpf. Continuou as
suas pesquisas sobre a audição na Universidade de Frankfurt, onde veio a
encontrar Max Wertheimer e Kurt Koffka. Forçado a permanecer em Tenerife
até 1920, devido à Grande Guerra, coloca em evidência o fenómeno da
“aprendizagem súbita” (ou “insight”).

História da Psicologia 63
As suas experiências (hoje consideradas clássicas) com Chimpanzés
mostraram por exemplo que eles eram capazes de empilhar caixotes para
alcançar alimentos. Comprovado que estes grandes primatas têm condições
para resolver problemas relativamente complexos, aproximando-se portanto da
inteligência humana. Tais pesquisas enfatizam que não só a percepção
humana, mas também as nossas formas de pensar e agir, funcionam, com
frequência, de acordo com os pressupostos da Gestalt da reorganização
perceptiva. Observou por exemplo que o ato cognitivo corresponde a uma
restruturação do conhecimento anterior (informações disponíveis na memória),
tal como posteriormente veio a ser defendido pelos construtivistas na esteira
de Jean Piaget. As suas observações nesta matéria foram publicadas em 1917
em Intelligenzprufungen An Anthropoiden.
Tendo regressado à Alemanha em 1920, ensinando na Universidade de Berlim
até 1935 e tendo publicado em 1929 a obra Gestalt Psychology. A chegada ao
poder nos Nazis, que ele critica abertamente devido às suas políticas racistas,
obriga-o a abandonar definitivamente a Alemanha. Instala-se nos Estados
Unidos em 1935, tornando-se professor no Swarthmore College (Pensilvânia)
até 1955. Torna-se nessa altura membro do Institute For Advanced Study de
Princeton, vindo depois a ser professor no Dartmouth College. Recebeu o
“Distinguished Scientific Contribution Award” da American Psychological
Association, da qual será posteriormente o presidente.

A palavra Gestalt significa “forma”, “formato”, “configuração”


ou ainda “todo”, “cerne”.
Principalmente dedicada ao estudo do processos de
percepção, essa corrente da psicologia defendida que os
fenómenos psíquicos só podem ser compreendidos, se
forem vistos como um todo e não através da sua divisão em
simples elementos perceptuais.

De certo modo, a psicologia da Gestalt tem como lema o


princípio da não-aditividade: o todo é mais do que a soma
das suas partes.

Os 4 princípios de Gestalt:

História da Psicologia 64
Segundo a Psicologia da Gestalt existem quatro princípios a ter em conta para
a percepção de objetos e formas: 1) tendência para a estruturação; 2)
segregação figura-fundo; 3) pregnância ou boa forma; 4) constância
perceptiva

A white cup or two black faces? autoria. Bryan Derksen, 2007

Os 7 fundamentos básicos da Psicologia da Gestalt (muito


utilizados no design ou na arquitetura) são:
1. Segregação: desigualdade de estímulo; gera hierarquia: importância e
ordem de leitura;

2. Semelhança ou similaridade: elementos da mesma cor e forma tendem a


ser agrupados e constituir unidades; e estímulos mais próximos e
semelhantes, têm tendência para serem (mais) agrupados;

A lei da similaridade diz que elementos dentro de um conjunto de objetos


são agrupados perceptivamente se forem semelhantes uns aos outros: esta
semelhança pode ocorrer em termos de forma, cor, sombra, etc. Por
exemplo, a figura que ilustra a lei da semelhança representa 36 círculos
todos igualmente distantes uns dos outros a formar um quadrado. Nesta
imagem, 18 dos círculos são pretos e 18 são brancos. Nós percebemos os
círculos pretos e brancos agrupados entre sim formando 6 linhas
horizontais dentro do quadrado. Esta percepção de linhas deve-se a lei da
similaridade — autoria: eumedemito, 2008

História da Psicologia 65
3. Unidade - um elemento encerra-se em si mesmo; vários elementos podem
ser percebidos como um todo;

4. Proximidade - elementos próximos tendem a ser agrupados visualmente:


unidade de dentro do todo;

A lei da proximidade diz que quando um indivíduo percebe um conjunto de


objetos, percebe os objetos mais próximos como um grupo. Por exemplo,
na figura que ilustra a lei da proximidade, há 72 círculos, mas nós
percebemos a coleção dos círculos em grupos. Mais especificamente, nós
percebemos que há um grupo de 36 círculos na metade esquerda da
imagem e 3 grupos de 12 círculos na metade direita. Esta lei costuma ser
usada no marketing de logótipos para enfatizar que aspetos de eventos
estão associados. — Autoria: eumedemito, 2008

5. Pregnância - é a lei básica da percepção da Gestalt;

6. Simplicidade - tendência para harmonia e para o equilíbrio visual;

7. Fechamento - formas interrompidas: preenchimento visual de lacunas

Triângulo de Kanizsa; autoria: Fibonacci, 2007

8. Lei da simetria

História da Psicologia 66
A lei da simetria diz que a mente percebe objetos como sendo simétrico e a
formar um ponto concêntrico. É perceptivamente agradável dividir objetos
num número par de partes simétricas. Portanto, quando dois elementos
simétricos estão desconectados, a mente perceptivamente conecta-os
para formar uma forma coerente. Semelhanças entre objetos simétricos
aumenta probabilidade dos objetos serem agrupados para formarem um
objeto simétrico combinado. Por exemplo, a figura da lei da simetria mostra
a configuração de parêntesis retos e curvos. Quando a imagem é
percebido, tendemos a observar 3 pares de parêntesis simétricos em vez
de 6 parêntesis individuais.

Composição de 12 figuras envolvendo os vários princípios de Gestalt; autoria: Impronta, 2011

A Psicologia da Gestalt é/foi uma das principais escola da Psicologia da


Alemanha nos anos de 1920. Durante essa década, a Alemanha era um país
devastado pelas consequência da 1ª Grande Guerra com 21 milhões de vítimas.
Depois da guerra, as instituições sociais, económicas e políticas da Alemanha

História da Psicologia 67
estavam desorganizadas. Em novembro de 1918, motins por Berlim levaram ao
armistício (partes envolvidas em conflito armado concordam em parar de lutar)
e para a fundação, depois de mais motins sangrentos, da República de Weimar.
Esta república passou por 21 mudanças de governo de 1919 a 1933, acabando
com a eleição de Adolf Hitler. A fome era comum e a inflação foi para níveis
difíceis de compreender. Em agosto de 1922, 400 marcos alemães (moeda)
compravam um dólar dos Estados Unidos. Em agosto de 1923 o rácio é de 1
milhão de marcos para 1 dólar e em novembro era 4,2 triliões de marcos para 1
dólar. Bancos pagavam saques de dinheiro a peso. — David Hothersal, história
da Psicologia

TÓPICO NÃO AVALIAÇÃO: Kurt Lewin


C = f (P, A)

Comportamento = f (Pessoa [em interação com o seu] Ambiente)

Princípios da psicologia topológica, 1936

Kurt Lewin

Nasceu a 9 de setembro de 1890, na aldeia de Moglino, atualmente na


polónia (na época, a província Prussiana de Posen). Foi criado numa família
judia de Classe Média, com algumas dificuldades e restrições. Foi um aluno
fraco até ao final do ensino secundário, altura em que a sua elevada
inteligência se tornou aparente. Estudou Medicina e Biologia nas
Universidade de Freiburg e Munique, tendo-se transferido para Berlim em
1910. Interessou-se pela Psicologia, mas achava grande parte das
disciplinas como sendo irrelevantes e chatas. Quando a Grande Guerra

História da Psicologia 68
rebentou, Lewin voluntariou-se, tendo passado 4 anos nas trincheiras
tendo sido condecorado com a “cruz de ferro”, antes de ser ferido em 1918.
Após a sua desmobilização, voltou para o Instituto de Psicologia de Berlim,
como colega de Wertheimer e Kohler; sendo amigo de Koffka. Em 1921 foi
nomeado como Privatdozent da universidade, atraindo muitos alunos às
suas aulas. Formava com os seus alunos um grupo coeso, encontrando-se
com frequência com ele no café sueco, para discussões informais.

Adaptou a Psicologia da Gestalt à sua teoria do campo psicológico, que


utilizou depois noutros campos, de forma pioneira: desenvolvimento da
criança, gestão industrial, reabilitação e Psicologia Social. Foi por
conseguinte um dos fundadores da Psicologia Social.
(quer na Universidade de Berlim, quer na Universidade de Iowa, quer ainda
no M.I.T., Lewin formou um número impressionante de alunos, entre os
quais (na Psicologia Social) Tamara Dembro, Leon Festinger, Stanley
Schachter e Phil Zimbardo.

Foi Pioneiro:

Das Dinâmicas de Grupo

Do desenvolvimento Organizacional

Da Psicologia Aplicada

Não há nada mais prático do que uma boa teoria. A


experiência sozinha não cria conhecimento. Se tu queres
perceber algo verdadeiramente, tenta mudá-lo.
Tem sido dito que a democracia é a pior forma de
governo exceto por todas as outras formas que já foram
tentadas.

Expansão da Psicologia nos E.U.A.


Estruturalismo e Funcionalismo; O início do Behaviorismo; O Behaviorismo após
Watson; (A fundação da “psicologia dominante”)

Psicologia nos Estados Unidos

História da Psicologia 69
A psicologia primeiro era uma disciplina académica na
Alemanha porque a Alemanha desenvolveu o sistema
moderno universitário que permitiu a Wundt e os seus
colegas criarem uma psicologia experimental assente no
sucesso anterior da psicologia experimental.
Contudo, a psicologia foi desenvolvida mais rapidamente
institucionalmente na América do que na Alemanha. Pelo fim
do século XIX, a psicologia Americana já tinha uma
organização profissional ativa, a Associação Psicológica
Americana (APA), fundada em 1982; jornais dedicados à
psicologia geral, experimental e aplicada; e a presença
académica substancial no sistema Americano universitário.

John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

Correntes da Psicologia nos E.U.A.

Psicologistas americanos que retornaram de Leipzig e outras


universidades Alemãs reproduziram as estruturas
institucionais da universidade Alemã, notavelmente os
laboratórios e os seminário de pesquisa associados com as
novas disciplinas científicas.
Alguns psicólogos Americanos estavam imbuídos com o
compromisso Alemão da pesquisa científica per se, e ainda
menos perseguiram carreiras de pesquisadores devotas a
programas experimentais procuradas nos laboratórios
Alemães.
John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

História da Psicologia 70
EDWARD TITCHENER (1867-1927)

Edward Titchener

A psicologia em Cornell andava à volta e foi mantida na


órbita da personalidade por E.B. Titchener. Que homem! Para
mim, ele sempre foi o mais próximo de génio do que
qualquer outra pessoa com quem eu estive proximamente
associado. Eu costumava ver as minhas conversas com ele
na esperança de que um dia eu pudesse ganhar algum
insight sobre o porquê dos seus pensamentos serem muito
melhores que os meus.

História da Psicologia 71
Edwin Boring - A history of psychology in autobiography

Edward Bradford Titchener nasceu e estudou em Inglaterra, tendo-se graduado


na Universidade de Oxford, antes de seguir para Leipzig, onde estudou vários
anos em Wundt, de quem diria ser um fiel discípulo.

Após ter obtido o seu doutoramento, foi para a Universidade de Cornell, nos
Estados Unidos, onde se celebrizou por ser um suposto seguidor fiel de
Wundt. Na verdade, aquilo que apresentou nos estados Unidos foi a sua versão
das ideias de Wundt e da Psicologia (Wundt não aprovou sequer as traduções
para inglês dos seus “princípios”, feitas por Titchener) que ficou conhecida
como “Estruturalismo”

Ao contrário do que Titchener dizia, Wundt esteve muito


tempo interessado em tópicos que para ele não poderiam ser
estudados experimentalmente.
David Hothersal - History of psychology

ESTRUTURALISMO
Wundt procurou estabelecer no seu laboratório uma base verdadeiramente
científica para a nova ciência da Psicologia. Nesse sentido, realizava
experiência para obter dados sistemáticos e objetivos que poderiam ser
replicados por outros pesquisadores de modo a permanecer fiel ao seu ideal
científico, Wundt dedicou-se principalmente ao estudo de reações simples a
estímulos realizados sob condições controladas, contudo, essa era apenas
uma das subdivisões da Psicologia, na visão de Wundt. Esse seu método de
trabalho viria a ser denominado de estruturalismo por Titchener que o divulgou,
adulterando-o nos Estados Unidos. O alvo do seu estudo era a estrutura
consciente da mente e do comportamento, sobretudo as sensações. Um dos
métodos utilizados por Titchener era a introspeção: nela o indivíduo explora
sistematicamente os seus próprios pensamentos e sensações a fim de obter
informações sobre determinadas experiências sensoriais. A tónica do trabalho
era, mais do que compreender o que é a mente, conhecer o “como” e o
“porquê” do seu funcionamento.

As principais críticas levantados contra o estruturalismo foram:

História da Psicologia 72
Reducionismo: pretende reduzir a complexidade da experiência humana a
simples sensações.

Elementarismo: dedicar-se ao estudo de partes ou elementos em vez de


estudar estruturas mais complexas, como as que são típicas para o explicar
o comportamento humano.

Mentalismo: basear-se somente em relatórios verbais, excluindo do seu


estudo indivíduos incapazes de introspeção, como crianças e animais.
Além disso a introspeção foi alvo de muitos ataques por não ser um
verdadeiro método científico

FUNCIONALISMO
Enquanto que o Estruturalismo e a Psicologia da Gestalt foram importadas da
Alemanha, o Funcionalismo é considerada a primeira escola americana de
Psicologia. O funcionalismo é uma escola americana na sua origem, na sua
abordagem e na sua “personalidade” (o chamado pragmatismo americano, de
William James e de Charles Sanders Peirce, serviu-lhe de pano de fundo).

O funcionalismo começou na Universidade de Chicago, mas ao contrário das


correntes de origem europeia, não teve um líder (ou um grupo de líderes) (há
quem questiono se chegou a ser sequer uma escola formal de Psicologia).
Apesar disso, teve algumas figuras proeminentes, como John Dewey, James
Rowland Angell, Harvey Carr, Robert Woodworth, Edward Lee Thorndike e
James Cattel (as três primeiras personalidade na Universidade de Chicago, as
três restantes na Universidade de Columbia).
Tal como a cidade onde teve origem, o Funcionalismo pretendia ser uma
Psicologia forte, ampla, pragmática e útil. Os funcionalistas acreditavam que
podiam explorar o conhecimento da natureza humana para melhorar a
educação, a formação, a seleção de pessoal ou mesmo os problemas de saúde
mental. A sua visão pragmática para a Psicologia levava-os a conceberem uma
ciência (socialmente útil) de “predição prática e controlo” de modo a
(supostamente) conseguirem melhorar a condição humana. Essa escola foi
influenciada pelas ideias de William James, considerado na transição entre os
séculos XIX e XX como o psicólogo americano mais proeminente.

História da Psicologia 73
💡 William James
William James (janeiro 11, 1842-agosto 26, 1910) foi um filósofo e
psicólogo americano, e o primeiro educador a oferecer um curso de
psicologia nos Estados Unidos.

James é considerado o pensador principal do século XIX, um dos


mais influentes filósofos dos Estados Unidos, e o “Pai da Psicologia
Americana”.

Juntamente com Charles Sanders Peirce, James estabeleceu a


escola filosófica conhecida como pragmatismo, e é também citado
como uma dos fundadores da psicologia funcional.
~Wikipédia

Muitos psicólogos americanos acolheram o pragmatismo no


sentido geral de que as teorias deveriam ser julgadas pela
sua utilidade prática (embora poucos estivessem
comprometidos com as especificidades das teorias
pragmáticas de significado e verdade, e a maioria rejeitasse
a ideia de James de que a verdade de uma teoria poderia ser
garantida pela satisfação derivada de acreditar nela).
James foi como uma figura parental no desenvolvimento da
psicologia Americana, como um veículo intelectual que
refletiu o desenvolvimento do século XIX na psicologia
experimental, na teoria evolutiva e nas abordagens
pragmática e funcional da psicologia que se tornaram
dominantes nas décadas futuras.
John D. Greenwood - A conceptual history of psychology

Mais exatamente: William James concordava com Titchener quanto ao objeto


da Psicologia: os processos conscientes. No entanto, o estudo desses
processos não se deveria limitar a uma descrição de elementos, conteúdos e
estruturas. Nesse âmbito, James opunha-se à abordagem de Titchener

História da Psicologia 74
(baseada parcialmente em Wundt). A mente consciente seria, para James, um
constante fluxo, em constante interação com o meio ambiente, por isso a sua
atenção estava mais voltada para a função dos processos mentais
conscientes.

A psicologia, a seu ver, deveria estudar as emoções, a vontade, os valores, as


experiência religiosas e místicas; tudo o que faz de cada ser humano um ser
único. Essa e outras ideias de James foram desenvolvidas por John Dewey,
que se dedicou sobretudo ao trabalho prático na educação.
A escola, para Dewey, era uma parte da cultura da sociedade e um meio crucial
de assegurar que as pessoas tinham uma oportunidade de funcionar e
competir no melhor das suas capacidades na luta pela sobrevivência. Opondo-
se aos direitos divinos, às aristocracias por herança e às formas não-
democráticas de governo, Dewey entendia que todas as pessoas deveriam ter
iguais oportunidades de vida, e uma forma de o alcançar seria através de
igualdade de oportunidades de educação e de ocupação profissional,
sobretudo numa cidade como Chicago, na qual 4 em cada 5 pessoas eram de
origem estrangeira ou filhas de pessoas emigradas (na viragem do século XX,
os Estados Unidos eram considerados “a terra das oportunidades”; entre
outros exemplos clássicos de inspiração, contam-se nomes como Andrew
Carnegie, John Rockefeller, Henry Ford, os irmãos Wright e Alexander Graham
Bell). Toda a sua visão da Psicologia orientou-se nesse sentido.

BEHAVIORISMO - JOHN WATSON (1878-1958)

John Broadus Watson

Nunca abraçar, nunca beijar, nunca permitir que se sentem


ao colo. Não deverá nunca abraçá-las ou beijá-las, ou

História da Psicologia 75
permitir que se sentem ao colo. Se não tiver alternativa, dê-
lhes um único beijo na testa quando elas disserem boa noite.
Dê-lhes a mão pela manhã, passe a mão pelas suas cabeças
quando elas se saírem extraordinariamente bem numa tarefa
difícil. Experimente. Numa semana vai descobrir como é fácil
ser perfeitamente objetivo com o seu filho, sem perder a
ternura. Vai ficar bastante envergonhado com o modo
sentimental e piegas com que o tem tratado até agora.
John Watson - Psychological care of the infant and child
(1928)

História da Psicologia 76
💡 Mariette Hartley

Mariette Hartley, neta de John Watson

As teorias do meu avô infetaram a vida da minha


mãe, a minha vida e as de milhões de pessoas. Como
quebramos o legado? Como evitar transmitir uma
herança debilitante, de geração em geração, como
uma falha genética?
O homem responsável, o homem para agradecer era
“professor John Broadus Watson de Universidade
Johns Hopkins”:
Eu deixei o livro e tive arrepios.
John Broadus Watson. O pai daminha mãe. O Grande
John. O meu avô.
Mary Loretta Hartley (& Anne Commire), 1990 -
Breaking the silence

Watson nasceu no meio rural, no estado da Carolina do Sul. O pai era um


homem violento, preguiçoso, irresponsável, de muito má reputação.
Abandonou a família quando Watson tinha 13 anos, para viver com duas
mulheres Índias. A mãe era uma mulher pia, de adesão estrita a proibições
fundamentalistas contra a bebida, o fumo e a dança. Levou o filho a fazer um
voto muito precoce de que viria a ser padre.

História da Psicologia 77
O próprio Watson, contudo, descreveu-se na sua autobiografia, como um
jovem cruel, violento, preguiçoso e insubordinado. Era um estudante fraco, em
constantes problemas com as autoridades, escolares e civis. Foi preso duas
vezes: por disparar uma arma e por se envolver em lutas com negros; uma
atividade que ele considerou ser um dos seus passatempos favoritos (a prisão
de um jovem branco por violência nos estados rurais do sul, no século XIX, era
rara; o comportamento de Watson devia ser extremo). Depois de várias
peripécias, Watson conseguiu matricular-se na Universidade de Chicago. Oito
anos depois, conseguia um lugar de professor na Universidade de Johns
Hopkins, após uma ascensão meteórica que havia de ser seguida de uma
queda igualmente muito rápida.

BEHAVIORISMO - Fase inicial


Watson não foi o primeiro a defender que a Psicologia deveria ser uma “ciência
do comportamento”; antes dele, várias personalidade de vulto o fizeram (por
exemplo; William McDougall, Edward Thorndike, Ivan Pavlov, Sechenov ou
Vladimir Bectherev) mas foi um dos mais enérgicos e bem sucedidos
advogados dessa posição.

Após um percurso meteórico em Chicago, Watson publicou em 1913 um artigo


na revista Psychological Review apelando para uma Psicologia do
Comportamento (”behaviorista”) que iria mudar o curso da Psicologia do
século XX. Nesse artigo, Watson defendeu que o comportamento do sujeito é,
em si mesmo, o objeto do estudo da Psicologia - e não o que esse
comportamento possa refletir acerca de algum estado de consciência.

A psicologia, como o behaviorista a vê, é um ramo


experimental puramente objetivo da ciência natural. O seu
objetivo teórico é a previsão e o controlo do comportamento.
A introspecção não faz parte dos seus métodos, nem o valor
científico dos seus dados depende da prontidão com que se
prestam à interpretação em termos de consciência.

Behaviorismo inicial

O sistema que define psicologia como o estudo do comportamento


recebem um suporte firme num desenvolvimento do século XX que
ocorrem grandemente nos Estados Unidos. Assumiu-se que o

História da Psicologia 78
comportamento observável e quantificável tem, por si só, significado, em
vez de simplesmente servir como uma manifestação de eventos mentais
subjacentes. Este movimento foi formalmente iniciado por um psicólogo
americano, John Broadus Watson (1878-1958), no seu famoso artigo,
“Psicologia como um comportamentalista a vê”, publicado em 1913. Watson
propôs uma separação radical das formulação existentes da psicologia
definindo que a direção apropriada para o desenvolvimento da psicologia
não é o estudo da consciência interior. De facto, ele dispensou o conceito
de alguns estados mentais não físicos da consciência e considerou-os um
pseudoproblema para a ciência. No seu lugar, Watson defendeu o evidente
o observável como o único e legítimo assunto que importa para a
verdadeira ciência da Psicologia.
Watson foi muito bem sucedido a iniciar o redirecionamento do
desenvolvimento da psicologia. Embora Watson possa ter sido o porta-voz
para um movimento revolucionário definindo a extensão da psicologia,
deve ser reconhecido que o sucesso subsequente do movimento
behaviorista é melhor caracterizado como evolucionário em vez de
revolucionário. Comportamentalismo, especificamente nos Estados Unidos,
tem mudado gradualmente da definição inicial de Watson para uma que
acompanha a reflexologia objetiva de Sechenov para os problemas
psiquiátricos, e em 1907 ele fundou o St. Petersburg Psychoneurological
Institute.

Em 1910, Beckterev publicou a sua “Psicologia Objetiva”, que proporcionou


o abandono de conceitos mentais a partir da descrição de eventos
psicológicos. Embora Beckterev tenha feito algumas experiência
inovadoras sobre a punição, a sua maior contribuição foi a sua escrita
extensiva, que trouxe um grande conhecimento e aceitação da reflexologia
para um maior audiência.
Beckterev foi um contemporâneo e às vezes rival de Pavlov. Porque ele
estava familiarizado com a psicologia de Wundt, ele era mais sensível aos
problemas de preocupação dos psicólogos do que o Pavlov o era. Desta
forma, a sua escrita sobre reflexologia ganhou uma aceitação rápida entre
os psicólogos do que o trabalho mais sistemático de Pavlov

James Brennan, 1998 - History and systems of psychology

Embora tenha expandida e dado coerência aos argumentos que favoreciam o


estudo do comportamento - e não da consciência - Watson não apresentou
nesse manifesto nada de verdadeiramente original. A chamada tradição

História da Psicologia 79
sensacionalista francesa, que tinha reduzido os conteúdos mentais às
sensações, tinha já estabelecido uma versão preliminar do behaviorismo. No
entanto, Watson foi melhor sucedido na mudança do estudo dos “estados e
conteúdos da consciência” para o estudo do comportamento. Essa mudança
ficou a dever-se em parte e indiretamente a Charles Darwin, cujas observações
meticulosas para fundamentar os princípios da seleção natural, sublinharam a
importância do valor adaptativo do comportamento. O behaviorismo de Watson
teve a sorte de estar no sítio certo, no momento certo, tendo acabado por
funcionar como catalisador de várias tradições que eram, já de si mesmas,
convergentes. Depois de Watson, o behaviorismo dos Estados Unidos foi
dominado por quatro nomes: Edwin Guthrie, Clark Hull, Edward Tolman e B.F.
Skinner.

BEHAVIORISMO - Após Watson


O behaviorismo depois de Watson

Depois da formulação inicial da psicologia comportamental e as revisões


pelos behavioristas iniciais, o movimento começou uma evolução que
gradualmente expandiu o escopo do behaviorismo para incluir problemas
relacionados com a mediação central do comportamento. Embora a
definição do behaviorismo tenha mudado, uma comunalidade partilhada ao
longo da sua evolução foi a aceitação de uma metodologia empírica
essencial no estudo do comportamento. Talvez mais do que a análise
preliminar de Watson, foi a característica positivista do behaviorismo que
deixou um legado mais permanente na psicologia do século XX.
No Estados Unidos, a fase inicial da evolução comportamentalista consistiu
num esforço intensivo para construir estruturas sistemáticas da teoria do
comportamento.

Na segunda fase da evolução behaviorista, a preocupação com a


construção da teoria foi substituída pela coleção de informação. Em
resposta à pesquisa enganosa para uma teoria comportamental completa,
psicólogos começaram a empregar informação como o guia para a
pesquisa progressiva. Contudo, por volta de 1970 outra transformação no
behaviorismo era aparente; dava uma ênfase à construção de mini-teorias
ou modelos assim como a aplicação de princípios comportamentais,
especialmente no desenvolvimento da tão chamada tecnologia
comportamental.

História da Psicologia 80
Devemos ser conscientes do que está a acontecer à psicologia europeia
durante este período. Embora os modelos psicológicos baseados em
assunções ativas da consciência - como Gestalt, psicanálise e
fenomenologia - fossem movimentos Europeus, a agitação criada pelos
eventos voláteis no século XX na Europa resultou na exploração destas
visões para a América. Para além de trazerem morte e destruição, as
guerras mundiais destruir completamente a atividade intelectual. Não foi
por acaso que uma das primeiras revisões do behaviorismo watsoniano
coincidiu com a emigração dos líderes do movimento Gestalt, que fugiram
do anti-intelectualismo e do antissemitismo que se seguiram à tomada de
poder por Hitler em 1933. Depois dos líderes das propostas Europeias para
a formulação da psicologia fugirem para os Estados Unidos, as suas visões
modificaram o behaviorismo existente para várias extensões

James Brennan, 1998 - History and systems of psychology

Skinner em especial radicalizou o behaviorismo posterior a Watson, que


tentava construir uma teoria do comportamento. Skinner terminou essa fase do
behaviorismo e advogou um esquema não-teórico, guiado e baseada em
dados empíricos, supostamente positivista.

O seu positivismo defendia uma ênfase sistemática na metodologia e um


retorno à posição de Watson - ignorar quaisquer possíveis agentes do
comportamento, fossem cognitivos ou fisiológicos. O comportamento, para
Skinner, era completamente determinado pelo ambiente. Se o ambiente for
controlado, o comportamento será controlado. A base da sua pesquisa era o
estudo do comportamento operante, e a sua crença era a de que as
características específicas da espécie humana (resultantes de um muito longo
processo evolucionário) eram uma ilusão fabricada para nos dar um sentido de
segurança.

História da Psicologia 81
Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) foi um psicólogo americano, behaviorista, autor,
inventor e filósofo social. Foi professor de psicologia na Universidade de Harvard de 1958 até
se reformar em 1974.

História da Psicologia 82
💡 Debby Skinner

Debby Skinner: um “bebé numa caixa”

Num compartimento fechado, “quase tão espaçoso


como uma cuba de tamanho normal”, de paredes
“bem isoladas” das quais uma é “um grande painel
de vidro inquebrável”, colocou a sua “filhinha” a viver
durante onze meses, contando “quase de certeza”
(na altura da publicação) conservá-la “até aos dois
anos, ou talvez até aos três”.
Segundo afirma: “a descoberta que mais nos
agradou “a ele e à esposa foi a de que o choro e a
excitação podiam sempre parar aumentando
levemente a temperatura”.
De acordo com o mesmo artigo, “gastamos cerca de
uma hora a uma hora e meia por dia a alimentar,
mudar e dar outras coisas ao bebé. Isto inclui tudo
menos mudar as fraldas e preparar os biberões”.
Entre as “outras coisas” inclui-se a interação dos pais
com o bebe. Poder-se-ia reduzir esse tempo, mas
que não se deve fazê-lo, porque “à medida que o
bebé cresce, precisa duma certa quantidade de
estímulo social”.
Outra das vantagens da “caixa” tornou-se evidente a
propósito da curiosidade que o nascimento da filha
causou na vizinhança e, em especial, nas crianças
das redondezas: “as crianças da vizinhança entram
pela nossa casa dentro para ver (o bebé), mas veem-

História da Psicologia 83
no através do vidro e guardam para si as suas
doenças da idade escolar”.
Enfim, “uma vantagem que não se deve desprezar é
a de que o isolamento sonoro também protege a
família do bebé”. Quer dizer, se os pais não
conseguirem descobrir por que é que o bebé chora,
“não há razão para que a família e talvez a vizinhança
também tenham de sofrer”. Com este dispositivo
instalado universalmente, os senhorios deixariam de
recusar famílias com bebés.
Frederick B. Skinner - “Baby in a box”, 1945

O seu sucesso pessoal, nos Estados Unidos, acabou transformando o


behaviorismo num modelo dominante de Psicologia, primeiro no seu próprio
país e depois no mundo. Ao mesmo tempo, a radicalidade desse modelo e a
insistência doutrinária na importância do ambiente marcou o início do longo
declínio do behaviorismo - e, por arrastamento, do modelo dominante de
Psicologia nos EUA e no mundo. Declínio também ajudado pela emergência de
outros modelos, como aqueles que foram propostos pela Etologia, pela
chamada “revolução cognitiva” ou mesmo pelo avanço das ciências
informáticas.

O declínio do Behaviorismo

De acordo com o behaviorismo clássico, o comportamento complexo


envolve o condicionamento associativo de cada item componente
sucessivo ao seu antecessor. Por volta de 1950 era aparente que isto
simplesmente não conseguia explicar muitos comportamentos humanos de
ordem superior tal como tocar piano ou até aprender uma língua. Construir
estas situações criando cadeias associativas tomaria muito mais tempo do
que aquele que qualquer pessoas tem disponível. Este era o ponto fraco na
armadura behaviorista, rapidamente travado pelos novos psicólogos
cognitivos como George A. Miller. O ataque cognitivo foi impulsionado pelo
facto de que ao desenhar computadores para fazeres ações complexas, a
primeira geração de programadores rapidamente desenvolveu ideias muito

História da Psicologia 84
melhores sobre como tais resultados podem ser neurologicamente
implementados. A superioridade da nova Psicologia Cognitiva a lidar com a
organização de comportamentos complexos desferiu aos behaviorismo um
golpe muito prejudicial.
A segunda dificuldade veio das nova pesquisa etológica no comportamento
animal por pessoas como Konrad Lorenz e Nico Tinbergen, que levantaram
a questão ambientalismo doutrinário do behaviorismo. Enquanto os
teoristas iniciais dos instintos tinha lidados com instintos como a agressão,
fome e sexo, a nova geração deu ao conceito de instinto um significado
muito mais específico. No auge da nova etologia era óbvio que o
behaviorismo tinha sido seriamente mal interpretado ao colocar a sua fé no
rato branco.

O racional inicial de Watson, que nós poderíamos utilizar o rato branco


como um organismo comportamental conveniente para estudar o
comportamento, continha o erro lógico escondido. A razão pela qual o rato
branco era tão conveniente de usar era porque era um animal muito
adaptativo: omnívoro, capaz de se ajustar rápido a novos ambientes e
muito generalizado no seu comportamento - de forma curta, porque o seu
comportamento ser sobretudo determinado pelo ambiente. Ter descobertas
no rato branco como uma evidência do papel primário do ambiente na
determinação do comportamento era, portanto, uma petição de princípio.

Graham Richard, 2004 - Putting psychology in its place: a beginner’s guide.


A critical historical overview.

O chamado “Modelo Padrão das Ciências Sociais” é, no que diz respeito à


Psicologia, uma faze do modelo que (ainda) a domina

História da Psicologia 85
💡 O Modelo-Padrão

O “Modelo-Padrão” tem uma longa história; remonta pelo menos aos


filósofos do Renascimento. Tal como a teoria filosófica da tabula rasa,
normalmente atribuída a John Locke e que se tornou a “agenda
política” da maior parte das ciências sociais e das humanidades nos
EUA, incluindo a Psicologia.

Durante o século passado, a doutrina da tábula rasa


definiu a agenda para grande parte das ciências
sociais e humanidades. Assim como nós devemos
ver, a psicologia tem procurado explicar todo o
pensamento, sentimento e comportamento com
alguns mecanismos simples de aprendizagem

Steven Pinker - The blank slate

https://www.youtube.com/watch?v=CuQHSKLXu2c&ab_channe
l=TED

Um dos exemplos mais proeminentes dessa “agenda” na Psicologia


foi o movimento do behaviorismo, cujos continuadores deram rumo a
uma parte importante da corrente dominante da disciplina. As
posições radicais de Watson - que acreditava ser capaz de
condicionar uma criança para ser o que ele entendesse - e de Skinner
subjazem a esse modelo

Deem-me doze crianças saudáveis, bem formadas, e


o meu mudo especificado para as colocar lá e eu vos
garanto de tirar uma aleatoriamente e a treinar para
ser qualquer tipo de especialista que eu quiser, seja
doutor, advogado, artista, negociante, e até um
ladrão independentemente dos seus talentos,

História da Psicologia 86
tendências, habilidades, vocações e raça dos seus
ancestrais.
John Watson

Este modelo representa a ortodoxia reinante nas correntes


dominantes da Antropologia, da Sociologia e na maior parte das
correntes da Psicologia atual nos EUA.
Segundo este modelo (ou ortodoxia), todos os conteúdos específicos
da mente humana derivam ou resultam do seu “exterior”, isto é, do
ambiente e do mundo social, e a arquitetura da mente consiste
apenas, ou predominantemente, num número reduzido de mecanismo
de finalidade genérica, que são independentes de qualquer conteúdo.

Este modelo tem utilizado várias metáforas para descrever a estrutura


da mente humana: tábua rasa, painel de interruptores, computador
geral. Tais mecanismos são designados como “aprendizagem”,
“indução”, “inteligência”, “limitação”, “racionalidade”, “capacidade
para cultura” (ou simplesmente “cultura”).
Dito de outra forma, ainda de acordo com Steven Pinker, este modelo
baseia-se em três pressupostos básicos (e relacionados entre si) no
que diz respeito à psicologia humana: 1) a analogia da “tábua rasa”,
para definir a estrutura da mente humana; 2) a irrelevância da
Biologia, no sentido em que os constrangimentos biológicos no
comportamento humano são menores e pouco importantes; 3) a
existência de mecanismos gerais de aprendizagem, e a negação de
mecanismos específicos (poucos ou nenhuns).

Tal como referem Gaulin e McBurney, na sua obra de referência


Evolutionary psychology, o Modelo-Padrão é criticável em numerosas
dimensões, nomeadamente: 1) por não compreender a natureza do
desenvolvimento humano; 2) por estabelecer uma falsa dicotomia
entre o inato e o adquirido (”nature and nurture”; 3) porque os efeitos
do ambiente não podem ser explicados por leis gerais de
aprendizagem; 4) porque estabelece uma separação entre ciências
sociais e as ciências naturais; 5) porque lhe falta uma teoria
integradora e unificadora que considere a evolução

História da Psicologia 87
Notas (não avaliação)
Em termos epistemológicos, muitos dos conceitos da Psicologia Dominante
não resistem a um exame crítico, não têm fundamentação nem estatuto
científico; são por vezes pseudo-soluções para pseudo-problemas,
suportados por uma rede nomológica discutível, sem maior fundamentação
que a lógica circular que a sustenta; nalguns casos, são jargão vazio e
mistificação, expressos nos mais elevados níveis de erudição.

A historiografia oficial da Psicologia, convocada pela sua corrente


dominante, perpetua desde sempre a tradição historiográfica americana sui
generis de transformar a memória histórica de uma determinada
comunidade numa narrativa sectária, parcial, implacavelmente inclinada
para uma visão solipsista de si mesma.

O operacionalismo radical da Psicologia dominante, suspenso sobre uma


rede nomológica, inquestionada que lhe dá apenas uma falsa segurança,
permite-lhe fabricar, com rigor e precisão discutíveis, ou apenas a
aparência disso mesmo, tautologias cada vez mais elaboradas; no entanto,
sabe muito pouco da realidade, da qual está divorciada.

História da Psicologia 88

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