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IX

PODER - CORPO

Quel Corps?: Em Vigiar e Punir, você descreve um sistema político


em que o corpo do rei desempenha um papel essencial...
Michel Foucaulf. Numa sociedade como a do século XVII, o corpo do
rei não era uma metáfora, mas uma realidade política: sua presença
física era necessária ao funcionam ento da m onarquia.

Q.C .: E a república “ una e indivisível”?


M.F.: É uma fórm ula im posta contra os girondinos, contra a idéia de
um federalismo à am ericana. Mas ela nunca funciona como o corpo
do rei na m onarquia. N ão há um corpo da República. Em compensa-
ção, é o corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX,
o novo princípio. É este corpo que será preciso proteger, de um
modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restau-
rava a integridade do corpo do m onarca, serão aplicadas receitas, te-
rapêuticas como a elim inação dos doentes, o controle dos contagio-
sos, a exclusão dos delinquentes. A eliminação pelo suplicio é, assim,
substituída por métodos de assepsia: a criminologia, a eugenia, a ex-
clusão dos “ degenerados” ...

Q C.: Existe um fantasm a corporal ao nivel das diferentes institui-


ções?

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M.F.: Eu acho que o grande fantasma é a idéia de um corpo social
constituído pela universalidade das vontades. Ora, não é o consenso
que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exer-
cendo sobre o próprio corpo dos indivíduos.

Q.C.: O século XVIII é visto sob o ângulo da libertação. Você o des-


creve com o a realização de um esquadrinham ento. Um pode funcio-
nar sem o outro?
M.F .: Com o sempre, nas relações de poder, nos deparam os com fe-
nôm enos complexos que não obedecem á forma hegeliana da dialéti-
ca. O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser
adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginás-
tica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação
do belo corpo... tudo isto conduz ao desejo de seu próprio corpo
através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder
exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sa-
dio. Mas, a partir do m omento em que o poder produziu este efeito,
como conseqüência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmen-
te a reinvindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde con-
tra a economia, o prazer contra as norm as morais da sexualidade, do
casam ento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a
ser aquilo por que ele é atacado... O poder penetrou no corpo, encon-
tra-se exposto no p róprio corpo... Lembrem-se do pânico das insti-
tuições do corpo social (médicos, políticos) com a idéia da união livre
ou do aborto... N a realidade, a impressão de que o poder vacila é fal-
sa, porque ele pode recuar, se deslocar, investir em outros lugares... e
a batalha continua.

Q.C.: Esta seria a explicação das famosas “ recuperações” do corpo


pela pornografia, pela publicidade?
M.F.\ Eu não estou inteiramente de acordo em falar de “ recupera-
ção” . É o desenvolvimento estratégico norm al de uma luta... Tome-
mos um exemplo preciso: o do auto-erotismo. Os controles da mas-
turbação praticam ente só começaram na Europa durante o século
XVIII. Repentinamente, surge um pânico: os jovens se m asturbam .
Em nom e deste medo foi instaurado sobre o corpo das crianças -
através das famílias, mas sem que elas fossem a sua origem - um con-
trole, uma vigilância, uma objetivação da sexualidade com uma per-
seguição dos corpos. M as a sexualidade, tornando-se assim um obje-
to de preocupação e de análise, com o alvo de vigilância e de controle,
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produzia ao mesmo tem po a intensificação dos desejos de cada um
por seu próprio corpo...
O corpo se torno u aquilo que está em jogo num a luta entre os fi-
lhos e os pais, entre a criança e as instâncias de controle. A revolta do
corpo sexual é o contra-efeito desta ofensiva. C om o é que o poder
responde? Através de uma exploração econômica (e talvez ideo-
lógica) da erotização, desde os produtos p ara bronzear até os filmes
pornográficos... Com o resposta à revolta do corpo, encontram os um
novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão,
mas de controle-estimQlação: “ Fique nu... mas seja magro, bonito,
bronzeado!" A cada m ovimento de um dos dois adversários corres-
ponde o movimento do outro. Mas não é um a “ recuperação” no sen-
tido em que falam os esquerdistas. £ preciso aceitar o indefinido da
luta ... O que não quer dizer que ela não acabará um dia.

Q.C.: Uma nova estratégia revolucionária de tom ada do poder não


passa por uma nova definição de um a política do corpo?
M.F. : £ no desenrolar de um processo político - não sei se revolucio-
nário - que apareceu, cada vez com m aior insistência, o problema do
corpo. Pode-se dizer que o que aconteceu a p artir de 68 - e, provavel-
mente, aquilo que o preparou - era profundam ente anti-marxista.
Como é que os m ovimentos revolucionários europeus vão poder se
libertar do “ efeito-M arx” , das instituições próprias ao marxismo dos
séculos XIX e XX? Era esta a orientação deste m ovimento. Neste
questionam ento da identidade m arxismo=processo revolucionário,
identidade que constituía uma espécie de dogma, o corpo é um a das
peças im portantes, senão essenciais.

Q.C.: Qual é a evolução da relação corporal entre as massas e o apa-


relho de Estado?
M.F .: £ preciso, em primeiro lugar, afastar uma tese m uito difundi-
da, segundo a qual o poder nas sociedades burguesas e capitalistas te-
ria negado a realidade do corpo em proveito da alm a, da consciência,
da idealidade. N a verdade, nada é mais m aterial, nada é mais físico,
mais corporal que o exercício do poder... Q ual é o tipo de investi-
mento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionam ento de
uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que, do século
XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do
corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí
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esses terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos
hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas
famílias... E depois, a partir dos anos sessenta, percebeu-se que este
poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acredita-
va, que as sociedades industriais podiam se contentar com um poder
muito mais tênue sobre o corpo. Descobriu-se, desde então, que os
controles da sexualidade podiam se atenuar e tom ar outras formas...
Resta estudar de que corpo necessita a sociedade atual...

Q.C.: O seu interesse pelo corpo se distingue das interpretações


atuais?
M.F.: Acho que eu me distinguo tan to da perspectiva marxista quan-
to da para-m arxista. Q u anto à prim eira, eu não sou dos que tentam
delim itar os efeitos de poder ao nível da ideologia. Eu me pergunto
se, antes de colocar a questão da ideologia, não seria mais m aterialis-
ta estudar a questão do corpo, dos efeitos do poder sobre ele. Pois o
que me incomoda nestas análises que privilegiam a ideologia è que
sempre se supõe um sujeito hum ano, cujo modelo foi fornecido pela
filosofia clássica, que seria d otado de uma consciência de que o po-
der viria se apoderar.

Q.C.: Mas, na perspectiva marxista, existe a consciência do efeito de


poder sobre o corpo na situação de trabalho.
M.F.: Certam ente. M as hoje, no m omento em que as reinvindicações
são mais do corpo assalariado do que do assalariado, quase não se
ouve falar propriam ente delas. T udo se passa como se os discursos
“ revolucionários” permanecessem im pregnados de temas rituais que
se referem às análises marxistas. E, se há coisas muito interessantes
sobre o corpo em M arx, o m arxismo - enquanto realidade histórica -
as ocultou terrivelmente em proveito da consciência e da ideologia...
£ preciso se distinguir dos para-m arxistas com o M arcuse, que dão à
noção de repressão um a im portância exagerada. Pois se o poder só
tivesse a função de reprim ir, se agisse apenas po r meio da censura, da
exclusão, do im pedimento, do recalcam ento, à m aneira de um g ran-
de super-ego, se apenas se exeFcesse de um modo negativo, ele seria
m uito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível
do desejo. - com o se começa a conhecer - e tam bém a nível do saber.
O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível consti-
tuir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de discipli-
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nas militares e escolares. £ a partir de um poder sobre o corpo que
foi possível um saber fisiológico, orgânico.
O enraizam ento do poder, as dificuldades que se enfrenta para
se desprender dele vêm de todos estes vínculos. £ po r isso que a no-
ção de repressão, à qual geralmente se reduzem os mecanismos do
poder, me parece m uito insuficiente, e talvez até perigosa.

Q.C.: Você estuda sobretudo os micro-poderes que se exercem ao


nível do quotidiano. Você não negligencia o aparelho de Estado?
M.F.: Realmente, os movimentos revolucionários marxistas ou in-
fluenciados pelo marxismo, a partir do final do século XIX, privile-
giaram o aparelho de Estado como alvo da luta.
A que foi que isto levou? Para poder lutar contra um Estado que
não é apenas um governo, é preciso que o movim ento revolucionário
se atribua o equivalente em termos de forças político-militares, que
ele se constitua, portanto, com o partido, organizado - interiormente
- como um aparelho de Estado, com os mesmos mecanismos de dis-
ciplina, as mesmas heirarquias, a mesma organização de poderes.
Esta conseqüência é grave. Em segundo lugar, a tom ada do aparelho
de Estado - esta foi uma grande discussão no interior do próprio
marxismo - deve ser considerada como uma simples ocupação com
modificações eventuais ou deve ser a ocasião de sua destruição? Você
sabe com o finalm ente se resolveu este problema: é preciso minar o
aparelho, mas não completam ente, já que quando a ditadura do pro -
letariado se estabelecer, a luta de classes não estará, por conseguinte,
terminada... £ preciso, portanto, que o aparelho de Estado esteja su-
ficientemente intacto para que se possa utilizá-lo contra os inimigos
de classe. Chegamos à segunda conseqüência: o aparelho de Estado
deve ser m antido, pelo menos até um certo p on to, durante a ditadura
do proletariado. Finalmente, terceira conseqüência: para fazer fun-
cionar estes aparelhos de Estado que serão ocupados mas não des-
truídos, convém apelar para os técnicos e os especialistas. E, para is-
to, utiliza-se a antiga classe familiarizada com o aparelho, isto é, a
burguesia. Eis, sem dúvida, o que se passou na U.R.S.S. Eu não es-
tou querendo dizer que o aparelho de Estado não seja importante,
mas me parece que, entre todas as condições que se deve reunir para
não recomeçar a experiência soviética, para que o processo revolu-
cionário não seja interrom pido, uma das primeiras coisas a com-
preender é que o poder não está localizado no aparelho de Estado e
que nada m udará na sociedade se os mecanismos de poder que fun-
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cionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível
muito mais elem entar, quotidiano, não forem modificados.

Q.C.: E quanto às ciências hum anas, à psicanálise em particular?


M.F.: O caso da psicanálise é realmente interessante. Ela se estabele-
ceu contra um certo tipo de psiquiatria (a da degenerescência, da eu-
genia, da hereditariedade). Foi em oposição a esta prática e a esta
teoria - representadas na França por M agnan - que ela se constituiu
e, efetivamente, em relação a esta psiquiatria (que continua sendo,
aliás, a psiquiatria dos psiquiatras de hoje), a psicanálise desempe-
nhou um papel liberador. E em certos países ainda (eu penso no
Brasil), a psicanálise desem penhava um papel político positivo de de-
núncia da cum plicidade entre os psiquiatras e o poder. Veja o que se
passa nos países do Leste. Aqueles que se interessam pela psicanálise
não são os psiquiatras mais disciplinados... O que não significa dizer
que, em nossas sociedades, o processo não continue e não seja inves-
tido de outra maneira... A psicanálise, em algumas de suas atuações,
tem efeitos que entram no qu adro do controle e da norm alização.
Se conseguirmos modificar estas relações, ou to rnar intoleráveis
os efeitos de poder que aí se propagam , tornarem os muito mais difí-
cil o funcionamento dos aparelhos de Estado...
O utra vantagem de se fazer a crítica das relações a um nível mais
elementar no interior dos movimentos revolucionários, não se poderá
mais reconstituir a imagem do aparelho de Estado.

Q.C.: Através de seus estudos sobre a loucura e a prisão, assistimos à


constituição de uma sociedade cada vez mais disciplinar. Esta evolu-
ção histórica parece guiada por uma lógica quase inelutável...
M.F .: Eu procuro analisar com o, no inicio das sociedades indus-
triais, instaurou-se um aparelho punitivo, um dispositivo de seleção
entre os norm ais e os anormais. Devo, em seguida, fazer a história do
que se passou no século XIX , m ostrar com o, através de uma série de
ofensivas e contra-ofensivas, de efeitos e contra-efeitos, pôde-se che-
gar ao tão complexo estado atual de forças e ao perfil contem porâ-
neo da batalha. A coerência não resulta do desvelamento de um pro-
jeto, mas da lógica de estratégias que se opõem umas às outras. É pelo
estudo dos mecanismos que penetraram nos corpos, nos gestos, nos
com portamentos, que é preciso construir a arqueologia das ciências
hum anas.
Ela encontra, assim, uma das condições de sua emergência: o
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grande esforço de disciplinarizaçáo e de normalização realizado pelo
século XIX. Freud sabia bem disso. Em m atéria de normalização, ele
tinha consciência de ser mais forte que os outros. Por que, então, este
pudor sacralizante que consiste em dizer que a psicanálise não tem
nada a ver com a normalização?

Q.C.: Qual o papel do intelectual na prática militante?


M.F.: O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele
que dá conselhos. Cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar,
eles mesmos, o projeto, as táticas, os alvos de que necessitam. O que
o intelectual pode fazer é fornecer os instrum entos de análise, e é este
hoje, essencialmente, o papel do historiador. Trata-se, com efeito, de
ter do presente uma percepção densa, de longo alcance, que permita
localizar onde estão os pontos frágeis, onde estão os pontos fortes, a
que estão ligados os poderes - segundo uma organização que já tem
cento e cinquenta anos - onde eles se im plantaram . Em outros ter-
mos, fazer um sum ário topográfico e geológico da batalha... Eis aí o
papel do intelectual. M as de maneira algum a.dizer: eis o que vocês
devem fazer!

Q.C.: Quem coordena a ação dos agentes da política do corpo?


M.F.: £ um conjunto extrem amente complexo sobre o qual somos
obrigados a perguntar como ele pode ser tão sutil em sua distribui-
ção, em seus mecanismos, seus controles recíprocos, seus ajustam en-
tos, se não há quem tenha pensado o conjunto. £ um mosaico muito
complicado. Em certos períodos, aparecem agentes de ligação ... To-
memos o exemplo da filantropia no início do século XIX: pessoas
que vêm se ocupar da vida dos outros, de sua saúde, da alim entação,
da m oradia... Mais tarde, desta função confusa saíram personagens,
instituições, saberes... um a higiene pública, inspetores, assistentes so-
ciais, psicólogos. E hoje assistimos a uma proliferação de categorias
de trabalhadores sociais...

Naturalm ente, a medicina desempenhou o papel de denom ina-


dor comum... Seu discurso passava de um a outro. Era em nome da
medicina que se vinha ver como eram instaladas as casas, mas era
também em seu nom e que se catalogava um louco, um criminoso, um
doente... M as existe, de fato, um mosaico bastante variado de todos
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FACULDADE DE SAO BENTO


BIBLIOTECA
DO RIO DE JANEIRO
estes "trabalhadores sociais" a partir de uma m atriz confusa como a
filantropia...
O interessante não é ver que projeto está na base de tudo isto,
mas em termos de estratégia, com o as peças foram dispostas.
Junh o de 1975

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