Você está na página 1de 7

Izolina Fanzeres

O tema inveja é extremamente


amplo e tem suscitado controvérsias e
debates entre as várias escolas e ten-
dências psicanalíticas. Há muito vem
sendo reconhecido na teoria e na práti-
ca, embora nem sempre seja feita uma
clara distinção entre ciúme, inveja e
narcisismo.
Freud dá à inveja do pênis consi-
derável destaque ao longo de sua obra.
Menciona-a para designar a manifesta-
ção do complexo de castração na crian-
ça do sexo feminino. A inveja do pênis
é uma dentre as várias manifestações
desse sentimento. Sua importância na
patologia e na prática clínica é de rele-
vante valor.
A inveja, por parte de um homem,
dos atributos e capacidades de uma
Dra. Izolina Fanzeres
mulher, raramente fizeram parte dos
escritos de Freud.
Embora a inveja seja tão antiga
quanto a humanidade, foi a partir da
publicação de “Inveja e Gratidão”, de Melanie Klein (1957), que o tema pas-
sou a desempenhar papel mais relevante na clínica, bem como originou o
surgimento de inúmeros trabalhos psicanalíticos.
Klein enfatiza o sentimento gerado pelo fato de outra pessoa possuir e
desfrutar de algo desejável, sendo o impulso dirigido para espoliá-la desse
bem. Diz ela (1957) que ”a inveja é uma poderosa força mental que explica o
ataque agressivo contra os objetos bons internos e externos”. Enfatiza a inve-
ja do seio-que-nutre, sentido como fonte de vida e prazer. Para entender me-
lhor a idéia de inveja, é necessário que se aborde o destaque que Klein faz ao
componente agressivo e destrutivo da vida emocional, expandindo o uso do
termo “pulsão de morte” de Freud. Segundo ela, a “pulsão de morte” era repre-
sentada pelas fantasias de morder, rasgar e introduzir-se no corpo da mãe.
Klein amplia o conceito de frustração-agressão ligando à pulsão de morte a
característica de inveja. Isto a capacitou a reconhecer a presença de tais fanta-
sias, mesmo quando a mãe se faz presente e em condições de oferecer gratifi-
cação. Mais especificamente, a pulsão de morte é ativada por certos fatos que
podem ser divididos amplamente em: 1) frustração longe do seio (separação) –
o seio não satisfaz , conservando para si o leite e o amor, e 2) frustração no seio
(inveja), pela capacidade de dar leite. A inveja se dirige contra o objeto que
proporciona gratificação, sendo assim inteiramente diferente do ataque ao ob-
jeto que frustra.
H. Rosenfeld (1971) introduz a expressão “narcisismo destrutivo”, relaci-
onando-o com o conceito de pulsão de morte de Freud, descrevendo uma es-
trutura de Ego extremamente importante. No narcisismo destrutivo, segundo
Rosenfeld, a personalidade está dominada pela pulsão de morte e manifesta-se
clinicamente com uma idealização da destrutividade e ataques às partes boas
do self: “uma organização que pode não só impedir o acesso à parte libidinal
do paciente, mas pode, de fato, incorporar violentos ataques contra o objeto e
principalmente contra a parte amorosa do self”. Conseqüentemente, há um
estado interno de destrutividade do self para consigo mesmo. Tal conceito nos
dá a idéia da cisão da personalidade. Diz ele: “um objeto interno, bastante
semelhante a uma “gang” da Mafia criminosa, que domina e intimida as par-
Izolina Fanzeres
tes amorosas do self e idealiza a agressão e a destrutividade, controlando o
mundo interno”.
Na sua obra, Rosenfeld, ao apresentar concepções acerca da inveja, inici-
almente a concebe como tanática primária, posteriormente como manifestação
defensiva.
Rosenfeld diz ter sempre se interessado pelas “reações terapêuticas nega-
tivas”, enfatizando o papel da inveja nas mesmas. Como exemplo, cita aqueles
pacientes nos quais uma organização narcisista destrutiva tende a se desenvol-
ver. Essas formas de organização geralmente onipotentes exercem forte influ-
ência (de forma oculta ou manifesta) e são dirigidas contra a vida, destróem os
elos de ligação entre os objetos e o self, atacando ou matando partes do self,
também são destrutivas em relação a qualquer objeto bom, tentando depreciá-
lo e eliminar sua importância. Na análise, esses pacientes expressam seus sen-
timentos depreciando o trabalho do analista por meio de indiferença persisten-
te, de comportamento ardiloso e repetitivo e, às vezes, de franco menosprezo.
À semelhança de Rosenfeld, Klein considerava que a inveja é o motivo princi-
pal de uma espécie de reação terapêutica negativa, que se manifesta depois de
um trabalho útil ser reconhecido pelo paciente.
Betty Joseph (1986), ao abordar esse tema em seu artigo sobre a “Inveja
da Vida Cotidiana”, descreve-a desde suas manifestações mais simples e cons-
cientes que poderíamos classificar mais como admiração ou, no dizer de B.
Joseph, ambição – até as mais profundamente destrutivas. Sobre estas diz: “se
a inveja for excessivamente poderosa e não for suficientemente mitigada pelo
amor, ela perturba as relações normais com as pessoas e a construção de uma
estrutura de caráter saudável e satisfatória e contribuirá para sérias dificul-
dades emocionais”. Ao referir-se às “confusões” entre ciúme e inveja, assinala
que o ciúme, por ser geralmente ligado ao amor, é mais tolerável. A inveja e a
espoliação se fazem por ódio. Um exemplo das “confusões” entre ciúme e
inveja nos é dado por Elizabeth Spillius, em conferência pronunciada na Soci-
edade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (1991): “E mesmo Shakespeare
faz Iago descrever o elemento crucial do ciúme em termos que constituem uma
excelente descrição do cerne da inveja”.
“Oh! Tende cautela, Senhor, com o ciúme;
É o monstro de olhos verdes que escarnece
Da carne com que se nutre.”
B. Joseph (1982), em seu artigo intitulado “O vício pela quase morte”, faz
referência a certos pacientes que apresentam um tipo de autodestruição muito
maligna que, segundo a autora , é da natureza de um vício. Um vício pela
quase morte. Diz ela que este vício domina a vida desses pacientes, seu modo
de trazer material para a análise, seu relacionamento com o analista, seus rela-
cionamentos com o mundo externo e o modo como se comunicam consigo
mesmos. Ao descrever esses pacientes, assinala a tendência dos mesmos a ab-
sorverem-se em atividades que parecem dirigidas a destruí-los física e mental-
mente, citando como algumas das características comumente encontradas: tra-
balho excessivo, quase não dormir e alimentação inadequada (deficiente ou
excessiva). Esses pacientes sentem-se escravizados a uma parte do self que os
domina, aprisiona-os e não os deixa escapar nem atender aos chamados da
vida.
Não me proponho a fazer apresentação abrangente dos conceitos de inve-
ja, pois a mesma exigiria fundamentação bem mais detalhada, teríamos que
iniciar, penso eu, pelo Gênesis – onde, por inveja, Caim mata Abel, recorrer à
mitologia, às diversas correntes psicanalíticas, à literatura, aos ditos populares
tais como “morrer na praia”, etc.
Verbalizações de alguns pacientes, tais como: “tenho medo de mim mes-
mo”, “é como se existissem duas pessoas dentro de mim, uma é inimiga da
outra”, “se eu ficar bem parece que vai me acontecer uma desgraça”, etc., me
levam a pensar na hipótese de um funcionamento mental onde a destrutividade
tem papel relevante, e os profundos ataques que fazem contra si mesmos têm
características de inveja, com seu potencial destrutivo.
Muitos são os vértices que podemos utilizar para uma aproximação com-
preensiva do material que os pacientes nos trazem. Por vezes, as hipóteses
teóricas que nos ocorrem não parecem satisfatórias para tal. Na prática clínica,
as “teorias” se transformam em “conhecimentos” através das vivências emoci-
onais. Ao ler o trabalho de Rafael Lopes Corvo sobre “auto-inveja” ou “inveja-
de-si-mesmo” e na tentativa de uma compreensão mais próxima do observado,
o trabalho de Lopes Corvo pareceu-me um convite a pensar. A idéia já está
Izolina Fanzeres
presente na obra de Rosenfeld desde 1971, quando da apresentação de seu
importante relatório ao Congresso Psicanalítico de Viena.
Lopes Corvo (1992) procura descrever os mecanismos da “auto-inveja”
ou “inveja-de-si mesmo” referindo-se à escassa literatura existente sobre o
tema. Segundo ele, o termo foi originalmente introduzido por Clifford Scott
(1975) para definir “um problema existente toda vez que há um conflito entre
um aspecto depreciado e outro idealizado dentro do ego”.
Lopes Corvo assinala que a idéia já estava presente em Freud (1916),
quando descreve “Neurose de Fracasso”. O termo foi usado por Freud para
designar “indivíduos que parecem ser os artífices de sua própria infelicidade
porque não podem suportar a conquista do que mais parecem desejar” e, mais
tarde (1924), quando descreve “Neurose de Destino” em pessoas que “dão a
impressão de um destino que as persegue, de uma orientação demoníaca de
sua existência”. Nesse artigo, L. Corvo dá ênfase à origem intrapsíquica do
conflito: “a auto-inveja significa um ataque destrutivo efetivado por uma par-
te maligna do self contra aspectos criativos também do self”.
Na minha experiência, observo pacientes que sofrem de patologia narci-
sista e freqüentemente apresentam reações terapêuticas negativas com sua
agressividade inevitável. Não raro, após um trabalho produtivo, fazem profun-
dos ataques a si mesmos (psíquicos, físicos e materiais), sentindo-se empobre-
cidos e solitários, portanto não tendo o que invejar. Esse funcionamento nos dá
a imagem de suas relações consigo mesmos.
Penso que um ego invejoso destrutivo ataca um ego produtivo capaz de
fazer um bom vínculo, isto é, como se estes pacientes invejassem a própria
capacidade de fazer uma boa relação com a analista, não aceitando as coisas
positivas que a análise poderia proporcionar. Corvo, em seu artigo, ajuda-nos a
entender esse tipo de paciente, mencionando que ele apresenta uma modalida-
de de organização mental, narcisista ou limítrofe, formada por vários objetos
internos ou objetos do self, dispostos de tal forma que um dos componentes
continuamente ataca e destrói, por pura inveja, outro componente que foi ide-
alizado. A inveja manifesta-se como uma necessidade destrutiva contra esta-
dos internos de bondade, amor, amizade, criatividade e harmonia, que na trans-
ferência é “re-vivida” como um ataque contra a harmonia da aliança de traba-
lho, interferindo na relação que possa se dar entre o analista e a parte laboriosa
do self.

Após Freud, o conceito de inveja muito se ampliou. Partindo de vivências clíni-


cas, principalmente com pacientes onde se observa funcionamento limítrofe, e na
tentativa de uma aproximação com conceitos teóricos bem conhecidos e conceitua-
dos, o trabalho de Rafael Lopes Corvo sobre auto-inveja ou inveja-de-si-mesmo pare-
ceu-me um hipótese a ser pensada. Tanto na prática clínica como na vida cotidiana,
podem-se observar pessoas que, pela ação constante do que me parece inveja, não
conseguem desenvolver e realizar seus potenciais intelectuais e artísticos, tornando
suas vidas exemplo dramático de desperdício, sofrimento e frustração. Este é o aspec-
to trágico da inveja – o ataque a si mesmo. A atividade clínica e os conceitos estão em
movimento permanente e, portanto, sujeitos a novas indagações.

After Freud, the idea of envy has widen considerably. Departing from clinical
life experiences, mainly with patients where adjacent function is observed, and the
attempt of an approach with reputable and well known theoretical conceptions, the
work of Rafael Lopes Corvo about self-envy or envy-about-oneself seemed, to me, a
theory to be thought about. Much as on clinical practice as on daily life one can
observe individuals who, through continuous action, of what I consider envy, cannot
develop and accomplish their intellectual and artistic potentials, leading their lives to
an example of dramatic waste, suffer and frustration. This is the tragic feature of envy
– the offense to oneself. The clinical activity and the conceptions are in constant
motion and, hence, liable to new inquiries.

Inveja-de-si-mesmo.

Envy-about-oneself.
Izolina Fanzeres
BION, Wilfred (1957). “Ataques ao Elo de Ligação”. In: E. Bott Spillius (ed). Melanie
Klein Hoje. Rio de Janeiro: Imago, 1991. v.I.
FREUD, Sigmund (1919). “Além do Princípio do Prazer”. ESB. Rio de Janeiro: Imago,
1980. v.XVIII.
JOSEPH, Betty (1982). “ O vício pela quase morte”. In: E. Bott Spillius (ed). Melanie
Klein Hoje. Rio de Janeiro: Imago, 1991. v.I.
______. (1986). “A Inveja na Vida Cotidiana”. In: Equilíbrio Psíquico e Mudança
Psíquica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
KLEIN, Melanie (1957). “Inveja e Gratidão”. In: Obras Completas. Buenos Aires:
Paidós-Hormé, 1974. tomo VI.
LAPLANCHE, J. y PONTALIS, B. (1988). “Vocabulário de Psicanálise”. São Pau-
lo: Martins Fontes.
LOPES CORVO, Rafael E. (1992). “Sobre la Interpretación de la Auto-Envidia”. In:
Libro Anual de Psicoanálisis, 1992.
______. (1993). “Mecanismo de Auto-Inveja em Estruturas Narcisistas “. In: Revista
Brasileira de Psicanálise, v.27, nº 3.
MAIZELS, Neil (1985). “Self-Envy, the Womb and the Nature of Godness reappraisal
of the death instinct. In: International Journal of Psycho-Analisis, v.66.
ROSENFELD, Herbert (1971). “Narcisismo Destrutivo e Pulsão de Morte”. In: Impasse
e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
______. (1971). “Pacientes Narcisistas com Reações Terapêuticas Negativas”. In:
Impasse e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
SPILLIUS, Elizabeth B. “A Interpretação da Inveja na Análise”. In: Revista Brasilei-
ra de Psicanálise, v.25, nº 3, 1991.

Você também pode gostar