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UM PASSEIO COM MELANIE KLEIN

Ryad Simon1

Considero Melanie Klein a mais importante criadora de teorias e técnicas em


Psicanálise depois de Freud. Sua invenção da técnica lúdica para análise de crianças desde
tenra idade forneceu-lhe instrumentos para desvendar segredos das profundezas da mente
humana desde os primórdios de sua formação. Não é possível entender os conteúdos e o
funcionamento da mente psicótica sem os conceitos que desenvolveu gradativamente
estudando os meandros da comunicação infantil. Ela parte da constatação de que no
psiquismo da criancinha o inconsciente está muito próximo do consciente, e as
manifestações da fantasia inconsciente manifestam-se na conduta e no brincar de forma
quase indisfarçada – para o olhar do observador preparado.
Devido o estilo de escrita de Melanie Klein ser bastante direto e sem rodeios; sem
pedir desculpas e sem tentar persuadir o leitor, a leitura de seus trabalhos é chocante pela
crueza da exposição. Quando eu era pós-graduando em Psicologia Clínica, lendo seus
textos vinha-me inevitavelmente a impressão: “essa mulher é louca!” – “como pode ela
saber o que se passa na mente do bebê se este não fala e mal se comunica?” Quando ela
apresentava seus trabalhos na Sociedade Britânica de Psicanálise os psicanalistas diziam
educadamente: - “Sra. Klein, nós não entendemos o que a senhora diz!” Ao que ela
retrucava: “Mas minhas crianças e meus pacientes entendem...” De fato, em minha
experiência como supervisor de psicoterapia psicanalítica de crianças (e também de
adultos) quando, diante da exposição da sessão, eu dizia algo do inconsciente profundo –
deduzido da comunicação do paciente – o colega, constrangido, dizia: “Mas eu posso dizer
isso à criança?!” Eu respondia: “Claro! Pode dizer que a criança entende.” E na supervisão
seguinte o supervisionando surpreso confessava: “A criança recebeu com naturalidade a
interpretação; e ainda acrescentou coisas mais escabrosas!” Ou seja, o embaraço e a
angústia eram do terapeuta, não do paciente.
Ainda me lembro do primeiro caso de criança que atendi, há 45 anos atrás. Depois
de uma sessão com um menino de nove anos cabia-me apresentar o primeiro relato a um
grupo de colegas, todas mulheres. Virgínia Bicudo era a supervisora, Durval Marcondes a
acompanhava. Sentávamos em volta de uma mesa retangular comprida, na sala de um
casarão do Serviço de Saúde Mental (depois demolido para abrigar o Hilton Hotel).
Perguntei a dona Virgínia se devia fazer o relato com outras palavras, atenuando o impacto.
Respondeu-me: “Conte a sessão como aconteceu.” E quando chegou ao trecho da sessão
em que o menino me dizia: “Doutor bosta... doutor bostinha... vou enfiar esse troço no teu
cu!” As colegas suspiraram; e o Dr. Durval – que costumava segurar um lápis com o braço
apoiado sobre a mesa disparou a bater o lápis num ritmo de metralhadora”.
Não é segredo para ninguém que os primeiros pacientes de Klein foram seus filhos.
Não há nada para espantar nisso, pois, naquela época – entre 1915 e 1920 – não havia
psicanalistas de crianças, com exceção de Hermine Von Hug-Helmuth, que ensaiava os

1 Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia USP, Orientador


Acadêmico-Científico do Curso de Pós-Graduação Especialização em Psicoterapia Psicanalítica do Inst.
Psicologia da USP; Membro Efetivo da Soc. Bras. Psicanálise de S. Paulo.
primeiros passos na técnica, mas com uma abordagem pedagógica; mais de educadora do
que de analista. Então, não havia pacientes infantis. Era preciso começar de algum lugar. O
supervisor que deu um impulso decisivo na formação de Melanie Klein foi Karl Abraham.
Procurando aprofundar-se na análise do conteúdo trazido pela criança na sessão, Klein se
preocupava com a angústia levantada pelas interpretações. Ao que Abraham retrucava: “Se
a angústia depois diminuiu, e apareceu mais material, continue nessa direção.” Abraham,
além de supervisor, tornou-se analista de Klein. Com ele aprendeu a importância de
trabalhar a “transferência negativa”; isto é, os sentimentos hostis que surgem no paciente na
relação com o analista, sendo os mais importantes os encobertos, que se manifestam
indiretamente (silêncios tensos e prolongados, atrasos na chegada à sessão, faltas sem
justificativa, “esquecimento” de pagamento, etc). Com isso ela foi percebendo a
importância da agressividade na etiologia dos distúrbios mentais e na adaptação do
paciente ao mundo circundante.
Freud descobriu inicialmente a importância das perturbações da sexualidade na
etiologia das neuroses. Explicou a neurose como efeito de distúrbios na evolução da
sexualidade infantil: as chamadas “fixações” (aprisionamento da libido – energia do
instinto sexual – nas etapas do desenvolvimento, desde o nascimento: erotismo oral, anal e
genital, dirigidas às pessoas significativas do ambiente da criança – complexo de Édipo).
Essas fixações poderiam evoluir para as perversões sexuais, ou, por reação do ego contra as
mesmas, para as neuroses. Como Freud confessou posteriormente: estava tão ocupado
estudando as influências do id, que se esqueceu do ego. Mas esqueceu-se também da
influência da agressividade. Coube a Melanie Klein reconhecer e enfatizar a influência da
destrutividade. Mas ambos cometeram excessos: Freud, por voltar demais a atenção ao
erotismo “esqueceu-se da agressividade”; e Klein, ao procurar tanto as causas e
conseqüências da agressividade, “esqueceu-se” do erotismo. (A ponto de, em sua obra
magistral de 1935 Contribuições à psicogênese dos estados maníaco depressivos,
confundir, em algumas passagens, o id como continente exclusivo do instinto de morte.)
Felizmente ela corrigiu esse viés em trabalhos posteriores; assim como Freud procurou
corrigir seu descuido na investigação do ego (a partir da Introdução ao narcisismo, de
1914).
Uma das contribuições importantes e inovadoras feita por Melanie Klein diz
respeito ao momento da formação e estrutura do superego, no artigo de 1928 Os estágios
primitivos do complexo de Édipo.. Em seu trabalho anterior com crianças foi surgindo a
convicção de que o complexo de Édipo (e o superego que dele resulta) inicia-se em período
anterior ao suposto por Freud. Este propõe que o superego, como “herdeiro do complexo de
Édipo”, inaugura a fase de latência, ao redor do quinto ou sexto ano de vida da criança. Em
Early analysis (1923), Klein propõe que o início do superego seja entre o segundo ou
terceiro ano de vida; já em Os princípios psicológicos da análise de crianças (1926) situa-o
ao redor do primeiro ano de vida, com o desmame. Mas no artigo citado no início do
parágrafo descreve a situação do início da formação do superego após o desmame, como
um período de muita labilidade emocional, impulsos misturados e conflitantes. Começa a
ver em seu trabalho psicoterápico que a libido não evolui exatamente por etapas, como
supunham Freud e Abraham: primeiro a fase oral, depois a anal, e finalmente a genital. Ela
descobre que a libido ocorre de modo misturado, coexistindo todas as formas; apenas, a
cada etapa da evolução infantil, uma delas predomina. Separa então a libido pré-genital
(oral, anal, uretral), na qual o sadismo prepondera, da etapa genital infantil, em que

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predomina a libido sobre o sadismo. Isso tem um efeito crucial sobre a estrutura e função
do superego. Bastaria citar aqui um parágrafo daqueles que me deixava estupefato com a
leitura de Klein:

“A análise de crianças pequenas revela a estrutura do superego como sendo


construído por identificações datada de vários períodos e estratos da vida mental. Essas
identificações são surpreendentemente contraditórias em natureza: excessiva bondade e
excessiva severidade existindo lado a lado. Encontramos nestas, também, uma explanação
da severidade do superego, que surge de forma especialmente explícita nas análises
infantis. Não nos parece claro por que uma criança, digamos, de quatro anos deva abrigar
em sua mente uma imagem irreal e fantástica de pais que devoram, cortam e mordem. Mas
é claro porque numa criança de cerca de um ano a angústia causada pelo começo dos
conflitos edípicos tome a forma do medo de ser devorada e destruída. A própria criança
deseja destruir o objeto libidinal mordendo, devorando e cortando, o que leva à angústia,
visto que o despertar das tendências edípicas é seguido pela introjeção [fantasia de
engolir] do objeto e do qual então uma punição [desde dentro da mente] é esperada. A
criança teme então uma punição correspondente à ofensa: o superego se torna algo que
morde, devora e corta.” (palavras entre colchetes introduzidas por mim.)(Citação de “Early
stages of the Oedipus conflict”, em The Writings of Melanie Klein, vol. 1, pg. 187 –
London: Ed.Karnac,1992 – minha tradução.)

Alguns anos depois (1932) Klein publica sua obra magistral: Psicanálise de
Crianças, a qual, a meu ver, é proporcional, dentro do conjunto de seus escritos, à obra
principal de Freud em relação à totalidade de sua produção: A Interpretação dos Sonhos
(1900). Aqui Klein utiliza clinicamente, pela primeira vez, os conceitos de instintos de vida
e instintos de morte propostos por Freud em 1920. Ela lança os princípios e as bases da
psicanálise de crianças, tão solidamente fundamentados que são aplicáveis ainda hoje. A
análise de adultos é feita principalmente através da comunicação verbal. Mas a fala da
criança é limitada. Se se colocar uma criança pequena no divã e se pedir associações
dificilmente ela dirá alguma coisa útil; logo se levantará do divã e irá procurar uma
distração, ou irá chorar, ou irá embora. Parecia então que a psicanálise seria inaplicável a
crianças. Em 1909 Freud publica o relato da análise de uma criança. Mas Freud não teve
contato com essa criança, exceto uma vez. Quem a analisou, supervisionado por Freud, foi
seu pai, psicanalista do grupo freudiano. Daí Freud concluiu que para analisar uma criança
pai e analista devem coexistir na mesma pessoa. E com isso sepultou a possibilidade do
desenvolvimento da análise infantil. São casos que ocorrem na história da Ciência, na qual
o pesquisador descobre, mas deixa escapar sua descoberta. Melanie Klein, a partir de suas
observações, e de sua intuição genial para captar o inconsciente (fato percebido por
Ferenczi e Abraham, seus dois analistas), propôs usar brinquedos como instrumentos
intermediários de comunicação para obter associações da criança. E postulou (com sua
criatividade excepcional) que o brincar da criança é equivalente ao sonhar do adulto.
Portanto, a criança (e por que não o adulto?) brincando está sonhando. Resta ao analista,
com sua intuição, desvendar o sentido do brinquedo. Mas isso não é tão fácil (como bem
sabe quem trabalha em psicoterapia infantil), porque a comunicação do brincar se faz em
nível muito primitivo, concreto, precisando o analista renunciar a seu pensamento abstrato,

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racional, e ter bom contato com seu próprio inconsciente arcaico. Além disso, ter acesso
criativo ao próprio simbolismo de seu inconsciente.
Essa obra – Psicanálise de Crianças – é dividida em duas partes: técnica, na qual
aborda os princípios da análise de crianças, em que oferece diretrizes práticas para o
atendimento da criança pequena (além da criança na fase de latência; e adolescência) e que
são válidas ainda hoje; e uma parte teórica, oferecendo uma visão da vida psíquica sob a
tensão das situações arcaicas geradoras de angústia, influenciando a estrutura do ego e do
superego, e o desenvolvimento da sexualidade da menina e do menino. Aqui revela seu
modelo para efetuar o que propõe serem as bases de qualquer análise: não dirige, não
educa, não critica nem aprova, não afaga nem rejeita, deixa o paciente expressar o que vive
no momento, favorecendo a criação do que chamou de “situação analítica”, que permite o
desenvolvimento da transferência, e cria o ambiente para o deslindamento do inconsciente
através de interpretações sucessivas. Sua bússola para alcançar as fontes dos distúrbios é a
angústia. A angústia é decorrente dos ataques destrutivos efetuados pela fantasia onipotente
da criança. Ataques ao corpo da mãe, aos bebês, ao pênis do pai – fantasiado como estando
dentro do corpo da mãe – visando o roubo ou a destruição desses objetos. Mas, por não
possuir ainda instrumentos teóricos para discriminar as espécies de angústia, nessa obra
Klein ainda confunde perseguição e culpa.
Essa distinção foi tornada possível pelo avanço e aprofundamento da teorização a
propósito da angústia e suas origens na fantasia inconsciente. As investigações de Klein na
análise de crianças permitiram-lhe ter acesso aos estratos profundos da mente, abrindo
caminho para compreensão do funcionamento psíquico do psicótico. Conjecturou que o
psicótico regride a um modo de pensar, de sentir, de relacionar-se com o mundo interno e
externo de uma forma muito próxima ao do comportamento do bebê.
Essas concepções fecundas foram apresentadas em seu artigo de 1935 Contribuições
à psicogênese dos estados maníaco depressivos. Aqui já se pode afirmar que teve início
outra “escola” dentro psicanálise: um conjunto de concepções novas, não uma rejeição, mas
um desenvolvimento das teorias freudianas, uma construção teórica relativamente coerente
e sustentada em novas descobertas, fornecendo uma visão mais ampla da estrutura e
funcionamento da vida anímica. Freud conheceu a criança através da análise do adulto.
Suas investigações permitiram-lhe apreender as condições da origem e evolução do
psiquismo até o nível neurótico, por assim dizer. Klein, abordando diretamente a criança,
teve condições de deduzir a origem e evolução normal e patológica do bebê, ampliando o
conhecimento da mente até o nível psicótico. (Talvez, se encontrarmos uma forma de
analisar o bebê, estaremos em condições de conhecer a origem e evolução do
funcionamento mental da espécie humana...) Neste artigo Klein lança as bases da nova
teoria da formação da mente, desde o nascimento. É uma construção relativamente rústica,
comparada com a sofisticação metapsicológica de Freud no capítulo VII da Interpretação
dos Sonhos (1900) e mais tarde em O Ego e o Id (1923). Mas suficientemente articulada e
coerente para permitir um vislumbre das estruturas e processos psicológicos da mente
arcaica. (Bion se incumbirá de prover a sofisticação do aparelho psíquico do grupo
kleineano em O Aprender da Experiência – 1962.)
Propõe Klein que nas primeiras semanas de vida estabelece-se a posição paranóide
(que será chamada esquizo-paranóide, posteriormente, em reconhecimento do fato que o
bebê, ao efetuar a divisão do objeto, também fica dividido). Ao nascer o bebê já estabelece
uma relação de objeto com a mãe (contrariando a teoria do “narcisismo primário”, de

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Freud, na qual o bebê vive dentro de seu universo subjetivo, sem contato com o mundo
externo). Apenas, como o ego primitivo é incoordenado, as impressões sensoriais são
dispersas, não se juntam para formar um objeto coerente. A percepção do bebê, nos três
primeiros meses de vida, é fragmentada, controlada pela cisão, criando o que Klein chamou
de “objetos parciais”. A projeção do instinto de vida no objeto externo cria o objeto que
gratifica, alimenta, ama e protege o bebe; é considerado um “peito bom”, é amado. A
projeção do instinto de morte no objeto externo cria o objeto frustrador, que rejeita e
ameaça o bebê; é considerado um “peito mau”, e é odiado. (Melanie Klein esclarece que a
palavra “peito” é atribuída pelo adulto ao bebê – que ainda não forma palavras – para
designar um suposto objeto psíquico, nada tendo a ver com o peito anatômico.) Dada a
qualidade rudimentar do aparelho perceptivo do bebê, as imagens criadas nesse contato
com o mundo externo são impregnadas pelas projeções da fantasia inconsciente. E são
simultaneamente introjetadas, isto é, incorporadas concretamente, engolidas, por assim
dizer, criando um mundo interno de objetos fantásticos, ora extremamente generosos, ora
excessivamente cruéis, assim como se vê nos delírios e alucinações dos psicóticos. A
angústia predominante nos primeiros meses de vida é a “angústia de aniquilamento”, cujo
protótipo é o trauma do nascimento, também designada como “angústia persecutória”, ou
“angústia paranóide” (daí o nome de posição paranóide). As angústias mobilizam o ego a
criar “defesas”. As principais, nesse início da vida, são a cisão (“splitting”), procurando
separar o “peito bom” do “peito mau” para que este não o destrua; a projeção procurando
colocar fora da mente os perseguidores; a negação para aniquilar a percepção quando o
perseguidor não é diretamente destruído; a idealização, criando objetos muito poderosos
para proteger o ego do aniquilamento visado pelos objetos persecutórios. A patologia da
posição esquizo-paranóide constitui a base para o desenvolvimento da esquizofrenia e
quadros assemelhados.
Com o crescimento do bebê, pela maturação do sistema nervoso, e pela tendência à
síntese característica do ego, vai se constituindo, aos poucos, desde o terceiro mês de vida,
um modo de funcionamento e estruturação da mente que Klein designou como posição
depressiva. Isso porque a angústia predominante nesse estágio de desenvolvimento – que se
encontra plenamente instalado no sexto mês de vida do bebê, e na evolução normal, alcança
o fim do primeiro ano – é a “angústia depressiva” Esta angústia é gerada pelo temor de que
o objeto amado do bebê tenha sido – ou venha a ser – destruído por seu ódio. E como se
estabelece essa posição depressiva? – Pela tendência à integração, as imagens do “peito
bom” e do “peito mau” vão se aproximando na mente do bebê. Ele começa a perceber que o
objeto amado- que ele quis proteger – e o objeto odiado – que ele quis destruir – são
componentes de um só objeto o “peito total”. E assim vai ocorrendo com os outros objetos
parciais amados e odiados, temidos e desejados, que, ao serem integrados, tornam-se
amados e odiados simultaneamente, de modo que o sujeito ingressa num novo mundo, com
novas dimensões – o mundo da ambivalência – responsável pelo fato das pessoas serem tão
contraditórias e complexas. Com a integração dos objetos parciais vai-se gradativamente
compondo a mãe completa. Como esse processo coincide com o desmame, com nascimento
dos dentes, que o levam a morder o objeto, exacerbando as fantasias canibalísticas, o bebê
forma a impressão de que com seu ódio destruiu a mãe amada. Daí surge um sentimento de
culpa, um arrependimento pelo dano causado na fantasia onipotente, acarretando um estado
de luto pelo mundo destruído, interna e externamente, vivido com muita dor e remorso,

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muito semelhante ao adulto quando perde um objeto amado. Aliás, para Melanie Klein, a
perda do objeto amado do adulto seria a revivência da posição depressiva infantil.
Se a destrutividade do bebê não for excessiva, a mãe atacada ainda tem vida, está
parcialmente intacta e pode ser reconstruída. O amor e a culpa pelo dano causado à mãe, e
sua identificação com o sofrimento dela, mobilizam um mecanismo de “reparação”, pelo
qual o bebê renuncia a sua destrutividade e inicia um movimento de lenta restauração do
objeto amado prejudicado. Esse processo de reparação é fundamental para o bom
relacionamento humano e preservação e evolução da cultura. Por outro lado, se os impulsos
destrutivos do bebê forem excessivos, seja por ódio, voracidade ou ciúme (mais tarde ficará
mais explícito o papel da inveja), a mãe será percebida como morta, ou agonizante, não
sendo possível recuperá-la pelos meios da reparação. A figura da mãe interna danificada se
tornará um objeto que provoca uma relação de “culpa persecutória” irreparável. Nada do
que o bebê faça poderá restaurá-la adequadamente. Na impossibilidade de reparar a mãe
interna destruída, restará ao sujeito apenas indenizá-la continuamente, numa dívida sem
possibilidade de remissão. Na melhor das hipóteses o sujeito estabelecerá posteriormente
relações masoquistas de submissão e condescendência com a própria mãe, ou pessoas que a
substituam cotransferencialmente no futuro. Na pior das hipóteses, desenvolverá um estado
psicótico melancólico, que poderá eventualmente ser revertido temporariamente para outro
quadro psicótico de tipo maníaco, esse mais instável e que desemboca em novo período
melancólico, com risco de suicídio.
Após a apresentação de suas concepções em Contribuições à psicogênese dos
estados maníaco depressivos, em 1935, a tranqüilidade e aceitação das idéias de Melanie
Klein entre os londrinos (para onde se mudara em 1926, a convite de Ernest Jones, Joan
Riviere, James e Alix Strachey, entre outros), nunca mais foi a mesma. Os ataques mais
furiosos vieram de Edward Glover, até então apreciador das contribuições de Klein. Sua
objeção mais preconceituosa e raivosa vinha de sua indignação: “Como pode uma pessoa
sem formação médica, e sem experiência, falar de psicose?” Pretendia excluir Melanie
Klein da Sociedade Britânica de Psicanálise, e talvez tivesse conseguido, não fosse a defesa
intransigente de Ernest Jones, então seu presidente. Depois vieram os refugiados do
nazismo, entre eles a ferrenha adversária de Klein, Anna Freud, em 1938, acompanhando
seu velho e glorioso pai, Sigmund Freud, que viria a falecer em Londres, pouco depois, em
setembro de 1939. Entre 1943 e 1944 participa do duelo de idéias entre os grupos kleineano
e annafreudiano, conhecido com “Controversial Discussions”, concebido por Ernest Jones
como uma forma de busca de entendimento entre essas duas correntes de pensamento
psicanalítico. Não resultou no esperado entendimento mas forçou Klein e seus
colaboradores a refinarem e apurarem mais suas concepções. Disso resultaram vários
trabalhos, que foram sendo publicados periodicamente.
O resultado mais notável do esforço de Klein para fazer uma transposição de suas
descobertas com a análise de crianças – base para compreensão do mundo mental do bebê
–para a patologia do universo caótico do psicótico foi o artigo Notas sobre alguns
mecanismos esquizóides (1946). Descreve um tipo de projeção – a “identificação projetiva”
– que consiste na fantasia onipotente de divisão de partes do self, lançando-as dentro dos
objetos externos, controlando-os e transformando-os em objetos parcialmente idênticos ao
sujeito. Ali ela esmiuça os meandros da interação entre impulsos, fantasias, angústias e
defesas, nos três primeiros meses de vida e relata formas de perturbação do funcionamento
mental do psicótico, principalmente a cisão estilhaçadora dos objetos, resultando em

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miríades de perseguidores, a identificação projetiva excessiva, (gerando objetos estranhos
que Bion iria chamar de “objetos bizarros”) que esvazia a mente do sujeito, acarretando a
despersonalização. A identificação projetiva patológica cinde o self, partes suas invadem os
objetos externos resultando em relações objetais narcísicas. Seu reverso, a identificação
introjetiva patológica produz uma intromissão do objeto dentro do ego criando uma pseudo
identidade (Sobre a Identificação, 1955). O artigo Notas sobre alguns mecanismos
esquizóides, combinado com o anterior - Contribuição à psicogênese dos estados maníaco
depressivos – constituíram a base para o início de um trabalho profícuo de atendimento
psicanalítico de psicóticos, adotando uma sistemática estritamente psicanalítica. Ou seja, o
paciente era atendido nos moldes clássicos da psicoterapia psicanalítica, apenas com uso da
verbalização, várias sessões semanais, interpretação sistemática das angústias, defesas,
impulsos e da transferência, dentro de uma situação analítica com características de uma
“psicose de transferência”. O primeiro a aplicar essas teorias kleineanas foi Herbert
Rosenfeld, secundado por Hanna Segal, depois Wilfred Bion, com relativo sucesso,
conseguindo, senão uma cura, pelo menos a possibilidade do paciente esquizofrênico viver
fora dos sanatórios, e ser capaz de prover seu próprio sustento.
Em 1957, quando já não se esperavam grandes avanços, Melanie Klein, aos 75 anos
publica Inveja e Gratidão, surpreendendo seus colegas com um trabalho notável no qual
ressalta a importância da inveja na primeira relação do bebê com o peito. Se a inveja do
bebê é excessiva, este ataca o peito que o provê, estragando suas qualidades, introjetando
um peito prejudicado, e perturbando definitivamente suas relações posteriores. Klein
admite que a inveja é uma manifestação direta do instinto de morte, que pode ser atenuada
pelo instinto de vida, tornando-se um fator de estímulo para o progresso. Mas, quando a
inveja atua em demasia, o que significa que as pulsões de morte assumem a primazia, o
estrago do objeto interno não permite um aproveitamento adequado de suas qualidades, e o
ego, identificado com ele, induz a que o sujeito seja condenado a uma vida vazia e pouco
produtiva. Ao passo que se a gratidão prevalece na relação do bebê com o peito, este
internaliza um peito bom amado, que formará o alicerce de uma estrutura mental saudável,
com capacidade de amar, construir e usufruir a vida. As considerações de Klein sobre a
inveja, uma das quais a auto-inveja, isto é, o estabelecimento no mundo interno do bebê de
um objeto invejoso, faz com que a pessoa sempre se critique, nunca considere boa sua
produção, nunca consiga usufruir das coisas que consegue com imenso sacrifício. A auto-
inveja é um dos conceitos mais difíceis de compreender, mais difíceis de tratar, de explicar
para os paciente, porque contém em si, a meu ver, a essência da loucura. Isso me lembra
um colega dos tempos em que eu trabalhava no Departamento de Medicina Preventiva da
Escola Paulista de Medicina. Numa ocasião, em que eu criava e desenvolvia um teste
projetivo usando figuras a serem pintadas com lápis de cor (Teste Estilocrômico) entre
1967 e 1973, este colega, que trabalhava em estatística, dizia-me: “Vocês psicólogos ficam
perdendo tempo fabricando testes. É muito fácil. Você pode fazer um teste assim. Você
pega uma nota de cem e dá pro sujeito. Se ele rasgar, é louco!” Com isso ele captava
intuitivamente a importância patogênica da auto-inveja.
Melanie Klein trabalhou até o último alento de vida (faleceu em 1960) para concluir
a obra que seria um modelo de trabalho para seus continuadores em psicoterapia
psicanalítica de crianças: Narrativa da Análise de uma Criança, publicada
postumamente, em 1961. Mas, para não morrer e deixar tranqüilamente embalados seus
colaboradores, Klein publica em 1958 um controvertido artigo intitulado Sobre o

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desenvolvimento do funcionamento mental. Neste, ela lança o conceito de “objetos
terroríficos”, que seriam fruto de um tipo de cisão em que o instinto de morte predomina.
Estes objetos aterrorizantes devem ser relegados pela cisão às profundezas da mente para
permitirem o funcionamento mental com relativa tranqüilidade. Durante toda sua obra,
Klein propunha que a saúde mental é fruto da integração, do predomínio das forças de vida;
que o trabalho da análise visa aproximar as partes da mente que estão cindidas; que a
patologia era fruto dessa divisão da mente e que sua reversão só era possível quando a
mente se recompunha, restaurando a saúde mental. Nesse artigo ela coloca em dúvida a
universalidade da integração como condição da normalidade. Isso porque, esses objetos
aterrorizantes são de tal natureza destrutivos que nenhuma possibilidade de conciliação é
possível. Habitualmente eles são postos à distância, quando as forças psíquicas positivas
preservam o equilíbrio. Contudo, em situações de crise emocional esse estado de
afastamento dos objetos terroríficos fracassa, eles invadem mais espaços da mente,
causando o estado de pavor característico dessas situações instáveis da vida. (Em meu livro
Psicologia Clínica Preventiva – S. Paulo:Edit. Pedagógica-Univ., 1989 – utilizei esse
conceito de emergência dos objetos terroríficos para fundamentar minha teoria da crise
adaptativa.) O controle somente se restabelece por nova cisão e recondução desses objetos
inconciliáveis de volta aos confins do universo psíquico.
Alguns colegas kleineanos supunham que esse artigo tinha a finalidade de abrandar
a distância entre as teorias de Klein e dos seguidores de Freud, porque foi apresentado no
Congresso Internacional de Psicanálise em Paris, e supunham que ela estivesse pleiteando a
presidência da Associação Psicanalítica Internacional. Essa é uma alegação que não
procede, a meu ver. Tendo demonstrado ao longo da vida uma coragem e um amor à
verdade a toda prova. Tendo doado generosamente seu sangue e seu suor, retirando do
próprio sofrimento e de sua capacidade de amar, através de sua genialidade, suas
concepções mais criativas, não seria para bajular um punhado de colegas, no fim da vida,
que ela alteraria suas idéias. De fato, penso que ela deixou uma mensagem: nunca se
acomodem; a verdade é inapreensível; com o máximo de empenho conseguimos colher
minúsculo progresso; e somente a luta incessante permite aproximações sucessivas à
realidade humana.

Para um conhecimento pouco mais amplo das contribuições de Melanie Klein recomendo meu livro:
Introdução à Psicanálise: Melanie Klein, S. Paulo, E.P.U, Editora Pedagógica Universitária, 1986.
E ainda: Segal, H. – Introdução à Obra de Melanie Klein, Rio: Imago, 1975.
Meltzer, D. – Desenvolvimento Clínico de Melanie Klein, S. Paulo, Editora Escuta, 1989.
Petot, J. M. – Melanie Klein I e II, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1987.

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