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INTRODUÇÃO AO NARCISISMO (1914)

(I) O conceito de narcisismo precedeu, em certo sentido, o estudo


psicanalítico sobre o tema. Esse termo referia-se, então, à conduta
adotada pelo indivíduo acerca de seu próprio corpo, tratando-o
como se fosse objeto de prazer sexual. Sob essa perspectiva,
chegou a ser cogitada a hipótese de seu enquadramento como uma
perversão capaz de absorver toda a vida sexual da pessoa.

A psicanálise estendeu a compreensão do fenômeno à


alocação da libido para o eu, o que tenderia a acontecer dentro do
desenvolvimento regular do ser humano. Assim, o fato de não se
inserir no plano das perversões fez com que fosse associado ao
instinto de autoconservação presente em cada ser vivo.

No entanto, o entendimento sobre o tema fez com que e


também se cogitasse na possibilidade de sua presença em estados
psicóticos tipicamente esquizofrênicos (ou, para Freud,
parafrênicos), tendo em vista as manfestações de megalomania e
do distanciamento do interesse por objetos do mundo externo
presentes na patologia. Quanto a esse abandono da “realidade
objetiva”, neuróticos (histéricos e obsessivos) também assim
procedem, ainda que de maneiras menos drásticas e não
permanentes como o psiquismo dos outros os levam a fazer.
Ademais, neuróticos não suspendem a relação erótica com
pessoas e coisas, para as quais a libido invariavelmente se dirige,
inclusive em suas fantasias, mesmo quando mantêm uma relação
objetal com o outro apenas por essa via, quando opera o que Jung
chamou de introversão da libido.
Não obstante, referida introversão libidinal, ao contrário do
postulado por Jung, não pode abranger os parafrênicos, já que
eles não dispõem da mesma capacidade de simbolização, não
conseguindo extrair das pessoas e coisas do mundo externo a sua
libido sem as substituir em suas fantasias. A exceção se daria
quando o psiquismo opera pela via delirante, onde se vale de
elementos fantasísticos para as suas construções, o que, porém,
deve ser entendido como parte de uma tentativa de cura a fim de
reverter a libido ao objeto, ainda que pela via alucinatória.

A questão crucial que se põe diz respeito à destinação da


libido extraída dos objetos nos psicóticos. A megalomania é-lhes
característica disso, denotando que aquela libido retirada do objeto
recai sobre o próprio eu da pessoa, cujo ato psíquico é denominado
de narcisismo; porém, a megalomania não surge exclusivamente
por esse processo, mas é potencializada pelo processo, tendo em
vista que há traços da mesma na tenra infância, do que se infere
que o tipo de narcismo ora abordado possui um caráter secundário
(narcisismo secundário), o qual se aproveita de uma
predisposição do já menos expressivo narcisismo primário
presente no sujeito para a sua consecução.

Tanto em crianças quanto em certas culturas, é verificada


uma superestimação do poder de seus desejos (onipotência dos
pensamentos), o que é demonstrado pela crença na força mágica
das palavras empregadas para lidar com o mundo externo. Por
esse motivo, é cabível vislumbrar a presença de um investimento
libidinal originário sobre o eu, o que, e só posteriormente, se dirige
a objetos externos, mas que, a despeito disso, persiste enquanto
possibilidade de reinvestimento, assim ocorrendo ao haver o
refluxo da libido ao eu. Dessa maneira, a psicanálise que,
inicialmente, se deteve sobremaneira nos sintomas neuróticos,
passou a ampliar suas observações clínicas com a introdução do
narcisismo.

Quanto mais se reforça um investimento (objetal ou egoico),


mais se empobrece o outro. No apaixonamento, por exemplo, a
libido costuma ficar investida em elevado grau no objeto
enamorado a ponto de o eu chegar mesmo a se anular, como que
absorvido pelo objeto com o qual realiza extrema identificação e
estabelece, com isso, enorme dependência. Nos paranoicos, por
sua vez, vislumbra-se o extremo oposto, onde a libido se situa de
forma altamente concentrada no âmbito dos pensamentos
delirantes do eu, trazendo-lhe por efeito uma profunda negação e
rejeição à realidade externa, do que desenvolve a constante
percepção – e desejo – de fim do mundo.

O eu não surge já formado desde o início da vida da pessoa,


sendo constituído e desenvolvido ao longo do tempo. Ademais, o eu
não é uma unidade ou uma instância única e totalmente integrada.
Esse conjunto de percepções e sensações de variadas ordens e
características a que se habitou chamar de eu, desde os
primórdios, lida com pulsões que o impelem à ação, dentre as
quais aquelas ligadas ao autoerotismo. Então, se já haveria
disposições pulsionais autoeróticas, é preciso discerni-las no que
tange ao narcisismo.

As pessoas lidam incialmente com duas pulsões de caráter


fundamental à sua existência: pulsão sexual e pulsão de
autoconservação, que denotam a dupla função do sujeito. Essas
forças psíquicas decorrem da mesma e primordial energia
intrasubjetiva que induz o sujeito a buscar o prazer mediante a
descarga de tensões que se acumulam e se lhe mostram
desprazerosas e angustiantes. Ora, a energia sexual, ou mais
precisamente a libido, não é uniforme e nem possui destinação
pré-determinada, podendo assumir variadas conformações e fins
psíquicos, biológicos e sociais. Em assim sendo, partindo das
constatações clínicas efetuadas em relação às neuroses de
transferência (histeria e neurose obsessiva), assim como do que
se vislumbra em quadros paranoicos e esquizofrênicos, é
possível distinguir as ações e os efeitos pulsionais nos sujeitos.

Ao criticar a teoria da libido, Jung expôs que sua


inconsistência teria sido demonstrada pelo próprio caso Schreber,
vez que nele o conteúdo sexual se mostrara insuficiente para
vincular a libido às questões psíquicas do paciente. Além disso,
Jung refutou a tese de que o comprometimento da percepção da
realidade objetiva por Schereber também teria se dado por causa
da retração libidinal, entendendo que o resultado disso revelaria
mais a probabilidade de o sujeito se tornar um “anacoreta ascético”
do que acometido por “demência precoce”. Ora, para Freud, não
se cuidaria de erradicação do desejo sexual a situação relativa a
um anacoreta, mas sim a uma sublimação, que implicaria o
deslocamento do desejo a um objeto tido por mais sublime e
elevado. Ademais, a afirmação de Jung de que o fracasso da teoria
da libido para casos psicóticos apontaria também para a sua
inaplicabilidade para as neuroses mostrou-se igualmente
equivocada, sobretudo porque a escola suíça da qual fazia parte
não conseguiu explicar a origem e os mecanismos da
esquizofrenia.
(II) A melhor compreensão do narcisismo demanda considerações
que também envolvam questões relativas a doenças orgânicas, à
hipocondria e à vida sexual amorosa.

No que tange à intensidade e ao tipo da dor orgânica, sabe-


se que pessoas dela acometidas tendem a se mostrar menos
interessadas por aspectos do cotidiano que antes lhes davam
prazer a ponto de não mais a eles se dedicarem, já que fustigadas
por sofrimentos que podem até mesmo as incapacitar. Dessa
feita, a libido até então investida em objetos de prazer retorna ao
eu, ainda que temporaria e parcialmente, pois que a eles costumam
voltar quando o doente melhora.

Em relação à hipocondria, as sensações penosas faz o


psiquismo do sujeito retomar a libido para o ego, concentrando-a
naquilo que o faz sofrer, sendo ou não verificável, o que diferencia
esta situação da anterior. Nas neuroses histéricas (neurastenia) e
nas neuroses de angústia, elementos hipocondríacos costumam
igualmente ficar evidenciados, já que a atenção principal da pessoa
sobre algo do seu corpo cria uma espécie de cisão com a
realidade, favorecendo ainda mais a manutenção da libido no
órgão ou área orgânica específica, o que significa um resgate da
energia pulsional antes dirigida a objetos externos.

Havendo o represamento da libido no eu, importantes


fatores são observados. É o caso das neuroses atuais ou
neuroses de transferência (histérica e obsessiva) que, ao
atuarem em estrita sintonia com o mecanismo de adoecimento,
produzem sintomas mediante a utilização da libido do eu. Em
igual passo, a angústia hipocondríaca aproveita-se da angústia
neurótica para se robustecer e, com isso, melhor se firmar e
expressar. Também se nota na introversão, a que se refere outro
autor, o alicerce advindo da regressão. Portanto, não se cuida tão
só do retorno da libido ao eu, mas de sua fixação sobre ele,
processo que passa a se engendrar aos já existentes internamente,
produzindo, dentre outros, o efeito de comprometimento da
percepção do mundo externo.

O represamento da libido revela-se desprazeroso porque


mantém um nível elevado de tensão. Por isso que a libido de
objeto é mais comum, pois que torna a possibilidade de descarga
mais efetiva, ou seja, a libido do eu é satisfatória até certa medida
e sob determinadas circunstâncias. Doutro lado, há de ser
salientado que a concentração da libido no eu exerce um grande
poder de proteção e força ao sujeito, ainda que esse intenso amor
a si próprio se mostre causador de sintomas e prejuízos à pessoa
e ao seu entorno, o que apenas se evita ao se lançar ao amor fora
de si para dar fruição à libido e, com isso, mitigar as chances de
adoecimento.

Seja destinada a objetos “reais”, seja a objetos


imaginários, a libido necessita de um alvo como meio de
descarga de tensões; contudo, ao voltar-se a libido a objetos
imaginários (introversão), ela mantém-se represada. Uma solução
encontrada pelo psiquismo, então, é a construção da megalomania
como meio de obtenção de certo prazer em si mesmo. Se esse
construto não se desenvolver, o represamento tende a se tornar
patogênico, sobre o que outros processos psíquicos passam a
atuar para resgatar um estado saudável, buscando a cura por
intermédio de delírios.
Retomando e aprofundando os termos abordados, destaca-se
que, para Freud, as parafrenias correspondem a estados
psíquicos consubstanciados em delírios crônicos (alucinações)
ligados a elaborações mentais extremamente fantasiosas de teor
paranoico. A diferença delas para as neuroses de transferência
consiste no fato de que, nas primeiras, a libido não permanece
adstrita a objetos (fantasiosos ou não), mas se concentra com toda
a força e impacto no eu. Esse fato pode ocasionar a megalomania,
dada a introversão da libido, comprometendo a percepção do eu
a ponto de ampliar a sua importância, função e noções quanto às
suas capacidades. Todavia, se fracassado esse processo
magalomaníaco, desenvolve-se a hipocondria da parafrenia, com
carcaterísticas análogas às angústias de transferência, as quais
podem ser elaboradas em mais de uma formação psíquica (por
conversão, formação reativa ou formação protetiva – fobia).
Embora as parafrenias atuem como tentativas de restauração
psíquica, acarretam um desligamento parcial da libido objetal, o
que resulta três possibilidades: a) manifestações residuais de
caráter neurótico; b) processo patológico consistente na
megalomania, hipocondria, distúrbios afetivos e regressões; c)
tentativa de restauração psíquica mediante a novo apego objetal
da libido, o que se processa analogamente a histerias (observado
na esquizofrenia) ou a neuroses obsessivas (na paranoia).

Convém destacar que outra modalidade do narcisismo se


exprime pela via das experiências amorosas. Crianças e
adolescentes tomam por objetos de satisfação aqueles ligados
aos momentos que estão vivenciando. Inicialmente, as satisfações
autoeróticas são experimentadas juntamente com as funções vitais
de autoconservação. Como objeto externo de destinação da
libido, a figura materna é a primeira fonte de prazer que se
configura no psiquismo humano, sendo habitual a busca, num
momento posterior, por alguém que apresente traços daquela figura
primária de apoio e sustentação amorosa. Há indivíduos, porém, em
que o objeto de amor se distancia do modelo materno, tendo como
paradigma a própria pessoa, do que se tem a configuração do
objeto amoroso do tipo narcísico. Para Freud, perversos e
homossexuais seriam exemplos de sujeitos com indicativos de
narcisismo.

Segundo o fundador da psicanálise, do que ressalva não se


tratar de características universais, seria mais típico do homem a
superestimação sexual, fazendo com que seja mais propenso à
relação objetal, acarretando uma mitigação libidinal do eu, além
de marcar a necessidade intrínseca de amar. Na mulher, seria mais
comumente observável um cuidado com a sua imagem corporal,
dadas as exigências de beleza a que sujeita socialmente, fator
limitador de sua escolha objetal, decorrendo disso a necessidade
maior de ser amada.

Pessoas cujo psiquismo é alicerçado no narcisismo


costumam exercer um poder de atração maior a outras cujos
caracteres narcísicos são mais frágeis. A autossuficiência e a alta
capacidade que as primeiras emanam encantam e cativam as
segundas por conta da sensação de sua insuficiência e
vulnerabilidade. Como os narcisistas mantêm-se afastado de sua
imagem tudo o que lhes possa diminuir, isso gera inveja aos que se
sentem menos potentes, daí a busca do que falta aos segundos no
que transborda da imagem dos primeiros. Logicamente, como
ressalvado, há mulheres com superestimação sexual dos objetos
eleitos, ao passo que há homens extremamente centrados no
próprio eu (narcisistas).

Certas mulheres narcisistas encontram no filho um objeto


de amor quando o percebem como parte de si mesmas, de modo
que conseguem, com isso, estabelecer uma relação de amor
objetal. Há outras, por sua vez, que, quando menores, se sentiam
masculinas, mas que, com o avançar da idade, vivenciaram um
despertar da feminilidade, a partir do que anseiam por um ideal
masculino, que nada mais é do que a continuação de traços da
masculinidade que as habitaram.

De modo esquemático, pode-se resumir do seguinte modo a


modalidade de amor de uma pessoa:

TIPO “DE APOIO” TIPO NARCÍSICO


a) quem é a) a mulher nutriz*
b) quem foi b) o homem protetor*
c) quem gostaria de ser
d) quem foi parte de si *e os seus substitutos

Na relação envolvendo figuras cuidadoras e crianças que


estão sob os seus cuidados amorosos, é possível vislumbrar a
atuação do narcisismo quando as figuras parentais, ao falarem
de seus filhos, colocam-nos em condição superestimada, muitas
vezes de perfeição, ocultando as suas características vulneráveis
e humanas, o que, aliás, também explica a negação da
sexualidade na vida infantil. Privilégios almejados por tais pais
narcisistas são transferidos a seus filhos, inclusive, e se preciso,
mediante a desconsideração de conquistas culturais da
humanidade. Esses pais costumam não admitir a possibilidade de
seus filhos se encontrarem sujeitos a situações como doenças,
morte, frustrações, restrições das vontades, críticas, perdas,
derrotas, como se as leis naturais e sociais não se estendessem a
eles, que gozariam de uma condição de nobreza e superioridade
em relação aos demais. E, ainda, transferem aos filhos a missão de
realizar os sonhos que os pais não conseguiram concretizar a fim
de se tornarem pessoas altamente bem-sucedidas e vitoriosas,
ricas e deslumbrantes, vez que percebidos como herois, príncipes
ou princesas. Logo, os pais passam a viver os seus sonhos mais
infantis por intermédio dos filhos, que são instrumentalizados para
esse fim em sério detrimento de suas reais identidades subjetivas,
o que faz dessa espécie de amor objetal um renascimento do
narcisismo primário dos próprios pais.

(III) O complexo da castração envolve a angústia relativa à perda


do pênis/falo, no menino; inveja do pênis/falo inexistente, na
menina. A sexualidade habita o humano desde o nascimento.
Pulsões dessa ordem, ainda que primitivas e difusas, impelem as
crianças a buscar o que lhes é necessário mediante o prazer e a
satisfação que tais experiências lhes propiciam nas diferentes
fases do desenvolvimento e maturação psicossexual do sujeito.
No entanto, até ser atingida a fase genital na puberdade, os
infantes precisam lidar com circunstâncias pulsionais que lhes
deixam intimidados.

As pulsões da libido costumam se exprimir de forma


independente dos instintos presentes no sujeito e dos ímpetos
naturais de autoconservação. Ao ser constatada clinicamente uma
oposição entre ambos, faz-se preciso não apenas aferir como e
quando esse processo se deu, mas, e antes, como eles se
encontravam conjugados em prol de interesses narcísicos do eu.

Alfred Adler defendia a tese do “protesto masculino”,


entendida como força motriz atuante para a formação do caráter e
da neurose, sendo aquela dotada de uma valoração social ao
invés de uma tendência narcísica, o que significava a exclusão da
libido do processo. Para a psicanálise, entretanto, esse “protesto
masculino” estaria vinculado à natureza narcísica e ao complexo
de castração. Assim, ainda que relacionado à formação do caráter,
mas juntamente com outros fatores conforme a psicanálise, seria
ele insuficiente para esclarecer a gênese e os mecanismos da
neurose, que, segundo Adler, apenas serviriam ao interesse do eu.
Ora, para Freud, baseado nas vivências clínicas, esse “protesto
masculino” não disporia exclusivamente de papel patogênico, de
modo que poderia não dar gênese a neuroses.

Quando um adulto não apresenta mais sinais de


megalomania, não se pode concluir, de imediato, que o
narcisismo infantil que por ela também se caracteriza estaria
ausente do sujeito, de modo que a libido do eu teria sido
substituída pela libido objetal. Isso porque a pulsão está
habitualmente sujeita à ação da repressão patogênica por conta
do conflito havido com o ideário moral e cultural da pessoa a
cujas exigências se sujeita. Então, pode-se considerar que a
repressão proviria do eu, que rejeitaria impressões, vivências,
impulsos e desejos dissonantes daqueles seus parâmetros, o que
pode ocorrer tanto pela via consciente quanto inconsciente. Assim,
o ideal internalizado cria as condições da ação repressora no
sujeito.

Ao referido ideal do eu dirige-se o amor a si mesmo que fora


desfrutado na infância. Dessa feita, o narcisismo desloca-se para
o eu ideal, conferindo-lhe o status de perfeição. A libido se
concentra nesse aspecto psíquico do eu, onde o sujeito passa a
experimentar a satisfação. Assim, por não ter se privado da
perfeição narcísica da infância, embora dela possa ter se
distanciado por conta das exigências de seu desenvolvimento, o
sujeito pode readquirir na forma do ideal do eu que depois se
constitui.

É válido, agora, diferenciar a formação de ideal da


sublimação. Esta refere-se à modificação da destinação da libido
de um determinado objeto para outra meta, onde a satisfação
então pretendida pela via sexual seja obtida por outros meios. Na
idealização, o objeto é ampliado psiquicamente em seu valor,
ainda que a sua natureza se mantenha inalterável, o que pode tanto
se dar no âmbito da libido do eu quanto da libido objetal, mas
sempre tendo presente a sua superestimação.

O elevado ideal do eu vem, portanto, como substituto ao


narcisismo primário, que para aquele deslocou a libido outrora
investida na megalomania primitiva. Por isso, não se trata de uma
sublimação da pulsão, cuja efetivação independe da instigação
pelo ideal, mas de um intenso investimento libidinal na referida
idealização egoica. Não obstante a formação de ideal aumentar
as exigências do eu em prol de um processo de repressão, e a
sublimação representar uma alternativa ao cumprimento das
exigências sem ocasionar a repressão, tanto uma quanto a outra,
embora de formas distintas, exercem relações causais no que
tange às formações de neuroses.

Verifica-se, dessa feita, que a instância psíquica do eu pode


ser submetida a um processo de controle, vigilância e contínua
aferição pelo ideal [mais tarde, isso será desdobrado no supereu].
Essa operacionalidade intrassubjetiva pode originar estados
delirantes como é observado em casos de paranoia, pois que,
quanto mais a pessoa se encontra mergulhada numa idealização
de si mesma, o que tende a se expandir para aspectos e objetos
do seu entorno, estabelecendo percepções calcadas na simplista
dualidade bem x mal, mais ela estará distanciada da realidade
objetiva, o que torna propício o advento de delírios e alucinações,
bem como de sensações persecutórias e messiânicas. E ainda
que não se constituam como tanto, podem traços disso ser notados
em neuroses de transferência apresentadas pelo sujeito.

Com a alteração perceptiva, as falas do sujeito tendem a


revelar muito da mesma, como a de ter os seus pensamentos
conhecidos por outrem e as suas ações constantemente por eles
vigiadas [crenças conspiratórias], além de outras construções
psíquicas que passam a fazer parte do universo mental da pessoa.
Daí é possível avançar para estados sensoriais igualmente
perturbados, ocasionando alucinações auditivas, visuais,
odoríficas ou de outras ordens. Tudo passa a ser entendido e
sentido como verdade para o sujeito, que tem, então, de lutar
contra algo para o qual destina e projeta seus medos e aflições,
atribuindo-lhe um poder descomunal. Por conseguinte, a pessoa
entra num processo regressivo, retomando atitudes e posturas
infantilizadas, já que tem por comprometida a sua capacidade de
pensamento crítico e autoanalítico.

Ora, o ideal do eu é amplamente dependente de uma


consciência moral exagerada que fora introjetada, podendo ter
tido sua gênese na educação e na voz de comando das figuras
cuidadoras (paterna e materna), às quais se agregam vozes de
professores, instrutores, cultura, religião etc. Essa vociferação
introjetada tende, portanto, a congelar e a enrijecer o sujeito, não
só em suas ações, mas e principalmente, conforme aventado, em
suas percepções e demais processos psíquicos.

Sentindo-se parte importante de uma trama, a cujo


protagonismo se sente convocada, a pessoa vale-se do ideal
narcísico do eu para essa missão especialíssima, o que lhe
confere um sentido primordial de existência e propósitos repletos
de nobreza e pureza, cuja conservação lhe é sinônimo de
satisfação. De tal modo, sua posição, fala e sentimentos são
transbordantes, atuando em prol da repressão e da invalidação do
que lhe é oposto ou percebido como ameaça, dando vez a
proibições, punições e hostilidades de toda sorte. Para dar conta
de tamanha missão, doses cavalares de libido são concentradas e
investidas para a referida batalha existencial e universal,
constituindo-se a instância censória como base fundamental do
quadro sintomatológico.

A atividade psíquica que deu vez à consciência moral, ao


impelir o sujeito à constante auto-observação, confere ao eu um
status de atenção privilegiado, a partir do que sistemas de
pensamento especulativo ganham forma e consistência, os quais
podem tanto favorecer o sujeito mediante uma autoanálise crítica
que não seja violenta contra si mesmo e produza um saber do qual
a pessoa poderá se valer, como prejudicá-lo a partir do instante em
que cobranças descabidas e autopunições passam a ser
instigadas como modalidade punitiva ao próprio eu quando não se
adequa às fortes exigências morais introjetadas. Isso pode até
mesmo descambar para autoflagelações ou mortificações
corporais altamente preocupantes para a saúde física e mental da
pessoa, além de se estender à sua vida social e colocar o sujeito
numa condição de paladino da moral e dos bons costumes, custe o
que custar ao outro e à sociedade, conferindo à paranoia um
espaço maior à sua expressão e destinação.

Experiências infantis relativas a sensações de onipotência


deixam marcas e resíduos psíquicos que contribuem ao amor
próprio do indivíduo. Não obstante, é preciso que também incorra
no processo a libido narcísica. Quanto a isso, é interessante
destacar que, nas parafrenias, o amor próprio é elevado, ao passo
que, nas neuroses de transferência, ele se acha em menor
proporção, o que também atua para lançar o neurótico na direção
de um objeto que não apenas seja amado por ele, mas que, e
principalmente, o ame, com o que o amor próprio consegue adquirir
maior consistência. Afinal, ao amar, perde-se libido; ao ser amado,
a libido é reavida e o narcisismo fortalecido.

Se a vida amorosa da pessoa encontrar-se destituída de tais


dinâmicas, as sensações de impotência e de esvaziamento do eu
tendem a ser mais impactantes, isso a ponto de gerarem um
rebaixamento do amor próprio, trazendo, por efeito, um
angustiante sentimento de inferioridade. Assim, é vital ao amor a
reciprocidade, caso contrário, quando o amor apenas flui na
direção de dar o afeto a outrem sem que haja uma contrapartida, o
investimento libidinal extraído tende a ocasionar danos de difícil
reparação ao eu.

A dinâmica das neuroses, por outro lado, merece uma


atenção mais detida, não se restringindo a meras relações de
causa e efeito. Diante de alguma sensação de inferioridade
irrompida no sujeito, dela a neurose se utiliza como pretexto para
atender a algum propósito. Como exemplo, podem ser destacadas
duas pessoas neuróticas que se sentem igualmente feias, sendo
que, uma delas, ao se achar incapaz de ser amada por tal motivo,
ingressa em algum processo de adoecimento, ao passo que, a
outra, pode adotar uma postura defensiva compensatória
mediante o desenvolvimento de aversão ao sexo, com posturas
ativas de repulsão, ainda que disponha de características sexuais
atrativas. Tem-se, assim, que a histeria se desenvolve por conta de
variáveis psíquicas diversas, nas quais a autopercepção é um de
seus componentes, tanto que há pessoas destituídas de grandes
atrativos sexuais, mas que não desenvolvem reações neuróticas
por conta disso.

Retomando a questão do amor próprio, a relação do mesmo


com o erotismo, em termos de investimento libidinal de objeto,
demanda aferir como o referido investimento opera, pois que tanto
pode estar em sintonia com o eu, como sofrer resistências
advindas da repressão. No primeiro caso, amar, como qualquer
outra atividade do eu, tende a acarretar-lhe benefícios,
fortalecendo-o; porém, estando a libido reprimida, o investimento
amoroso é sentido como ameaça de enfraquecimento do eu, o
que compromete o processo e a correlata satisfação, tornando
mais desejável a retirada de investimento libidinal de objetos
para reinvestir a libido no eu, aspecto que fomenta e potencializa
o narcisismo, trazendo ao sujeito sensações típicas de seu estado
primário, quando libido de objeto e libido do eu não se
diferenciavam.

(p. 33)

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