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[...] aqueles nos quais essa mistura se encontra abundante e fria são presas
do torpor e da idiotia; aqueles que a têm abundante e quente são ameaçados
pela loucura (manikoi) e dotados por natureza, inclinados ao amor,
facilmente levados aos impulsos e aos desejos; alguns também são mais
falantes que o comum. Mas muitos, pela razão do pensamento, são tomados
pela doença da loucura ou do entusiasmo. O que explica as Sibilas, os
Bakis, e todos os que são inspirados, quando eles assim se tornam não por
doença, mas por mistura de sua natureza. E Marcacus, o Siracusiano, era
ainda melhor poeta nos seus acessos de loucura. Mas esses nos quais o
calor excessivo se detém, no seu impulso, em um estado médio, são
certamente melancólicos, mas são mais sensatos, e se são menos bizarros,
em compensação, em muitos domínios, são superiores aos outros, uns no
que concerne à cultura, outros às artes, outros ainda à gestão da cidade.
(Aristóteles, [c1998], p. 95).
1
“Há quatro humores no corpo humano: sangue, cólera, fleuma, melancolia. Terra melancolia,
água fleuma, ar sangue, cólera fogo” (Agamben, 2007, p. 37).
2
“Na mais antiga tradição patrística, os pecados capitais não são sete, mas oito. Na lista de
Cassiano, são os seguintes: Gastrimargia ‘gula’, Fornicatio ‘luxúria’, Philargyria ‘avareza’, Ira, Tristitia,
Acedia, Cenodoxia ‘vanglória’, Superbia. Na tradição ocidental, a partir de São Gregorio, a tristitia
funde-se com a acedia, e os sete pecados assumem a ordem que se encontra nas ilustrações
populares e nas representações alegóricas do fim da Idade Média e que se tornou familiar para nós
através dos afrescos de Giotto em Pádua, da tela circular de Bosch no Museu do Prado ou das
gravações de Brueghel. Quando, no texto, se fala de acídia, sempre há referência ao conjunto
resultante dessa fusão, que mais precisamente deveria denominar-se tristitia-acedia” (Agamben,
2007, p. 21).
3
“Maxime circa horam sextam monachum inquietans... Denique nonnulli senum hunc esse
pronuntiant meridianum daemonem, qui in psalmo nonagésimo nuncupatur” [“Precisamente perto
do meio-dia o monge se inquieta... Assim, alguns mais idosos anunciam o demônio meridiano, que
é citado no salmo noventa”]. (Joannis Cassiani. De institutis comobiorum, I, X, cap. I, em: Patrología
latina, 49). De modo semelhante João Clímaco (Scala Paradisi, gr. XIII, em: Patrologia graeca, 88)
escreve: “mane primum languentes medicus visitat, acedia vero monachos circa meridiem” [“de
manhã, o médico visita os mais débeis, a acídia realmente só visita os monges por volta do meio-
dia”]. Não é, pois, casual que, na gravura de Brueghel que representa a acídia, na parte do alto, à
esquerda, apareça um enorme quadrante sobre o qual, em lugar de ponteiros, uma mão indica
‘circa meridiem’. Sobre o demônio meridiano, veja-se também o que Leopardi escreve no seu Saggio
sopra gli errori popolari degli antichi, cap. VII. A referência ao ‘salmo noventa’ em Cassiano está,
para ser preciso, no v.6, e o termo hebraico correspondente é Keteb. Segundo Rohde, o demônio
meridiano dos autores cristãos é simplesmente uma reencarnação de Empusa, uma das figuras de
ogra do séquito espectral de Hécate, que aparece precisamente ao meio-dia (cf. E. Rohde. Psyche
Freiburg in Breisgau, 1890-94, trad. It. Bari, 1970, apêndice II)” (Agamben, 2007, p. 22).
4
Como aponta a tradução brasileira (Freud, 1917), o termo alemão Trauer, como o inglês mourning,
pode significar tanto o afeto da dor quanto sua manifestação externa. Trauer significa tristeza profunda
pela perda de alguém e luto no sentido das marcas externas desse estado (vestir-se de luto, a
duração do luto). A proximidade do conceito de luto com o de tristeza é, em alemão, mais evidente
do que em outras línguas: vem de Trauer o adjetivo Traurig (triste).
No excerto citado, fica claro que o sujeito tem que passar por um período
de constante dor, como se o enlutado lutasse psiquicamente para se desligar pouco
a pouco da libido em relação ao objeto de prazer e satisfação narcísica que o ego
perdeu, por morte, perda ou abandono. Com isso, paulatinamente, o enlutado vai
se desligando do objeto perdido, a psicose alucinatória de desejo dando lugar à
aceitação da realidade. Embora, escreve Maria Rita Kehl (2011),
Por mais que seja doloroso o tempo de luto, é um tempo pelo qual devemos
passar, porque é um desprazer natural, “uma vez concluído o trabalho de luto, o
ego fica novamente livre e desinibido” (Freud, 1917, p. 50-51). Porém, mesmo
que algumas características do luto sejam designadas, também, à melancolia, a
perda para o melancólico é de natureza ideal. O objeto não é algo que realmente
morre, mas que se perde como objeto de amor. E acrescenta Freud: “Não podemos
discernir com clareza o que se perdeu e com razão podemos supor que o doente
também não é capaz de compreender conscientemente o que ele perdeu” (Idem,
p. 50-51). Por tanto, se, para o melancólico, há um rebaixamento considerável de
sua autoestima, um empobrecimento do ego, ou seja, para ele o ego se torne
totalmente vazio, como a perda do objeto é inconsciente, o próprio melancólico
não sabe o que se perdeu. Em contrapartida, para o enlutado, “é o mundo que se
tornou pobre e vazio” (Freud, 1917, p. 52-53), porque a perda é consciente, e só o
tempo poderá resolver o estado de luto, para que o ego possa se desligar do objeto
e viver livremente novas experiências. Nem sempre, contudo, o desligamento do
enlutado é totalmente consciente, como aponta Maria Rita Kehl (2011)5; podendo
efetuar-se, em alguns casos, inconscientemente.
Mas não há obstáculos a que seu resultado chegue à consciência. O enlutado
consegue pensar que está menos triste, consegue admitir o paulatino desapego do
objeto perdido. Na melancolia a batalha é mais em função da ambivalência, que
pertence em si mesma ao reprimido. Quando a libido finalmente se desliga do
objeto amado/odiado, o aspecto narcísico da relação primitiva faz com que ela
retorne não a outro objeto qualquer, mas ao próprio ego, que é subitamente
revitalizado pelo retorno da libido. A esse aspecto econômico, acrescentamos os
aspectos tópicos e dinâmicos do triunfo do ego sobre o objeto que o subjugava,
objeto que permanece tão inconsciente e enigmático para o ego quanto no período
melancólico (p. 22).
5
Para um melhor entendimento sobre a análise que Maria Rita Kehl faz do conceito Contemporâneo
de melancolia, consulte os ensaios: Da melancolia às depressões e O tempo e o cão, em seu livro
O tempo e o cão: a atualidade das depressões (2009).
veloz” (p. 142); a arte sem forma ou musical cabe ao espírito dionisíaco. Da fusão
das duas potências surge a obra superior: a tragédia ática.
expressar, como faz a tragédia em sua imitação, com seu caráter elevado, o terror
e a piedade da existência humana. Como aponta Aristóteles em sua Poética, ou
como o próprio Roberto Machado (2001) citando Nietzsche, a experiência trágica,
com sua música e seu mito, é capaz de justificar a existência do “pior dos mundos”
transfigurando-o (p. 12).
Portanto, Nietzsche assinala que é na criação da obra de arte trágica que se
pode conferir sentido à vida e que só os gregos – reitera o filósofo alemão –
tinham alcançado essa magnitude. Se quiséssemos ter uma noção do que era essa
magnitude, teríamos que ter a coragem de nos engajarmos na tentativa de nos
aproximarmos da magnitude do espírito grego para tentarmos interpretá-lo. Como
enfatiza Giorgio Agamben (1970) – segundo o qual a arte é dom do espaço original
do homem:
O trabalho que João Guimarães Rosa faz com a linguagem, em seus contos,
é incrível. A sua habilidade de criar uma atmosfera onírica, com contornos de
mistérios, faz com que o leitor se sinta atraído abruptamente pelos seus contos.
Tal sedução que os contos de Rosa nos desperta, levando-nos a um mundo de
sonhos, de mistérios, de mitos, de lendas, do maravilhoso, aparece em A terceira
margem do rio6 (1962). Mas, no conto, trataremos de que modo o trágico é
apresentado, encarnado por alguns elementos e, principalmente, de que modo o
narrador-personagem se caracteriza enquanto narrador trágico. Como elucida no
ensaio O sentido do trágico em A terceira margem do rio, Consuelo Albergaria
traça um paralelo entre a “unidade de ação” desse conto “e a do teatro grego
clássico” (Albergatia, 1991, p. 523), identificando como trágico o estado de
imobilidade das personagens. Ou como Eduino Orione (2008), que parte de uma
associação entre Consuelo e o drama barroco alemão, identificando na personagem
principal aspectos tais como a melancolia e o luto, traços distintivos “do herói
trágico barroco” (p. 69).
Em resumo, antes de seguir com a análise propriamente dita, o conto trata
de um homem, o narrador-personagem, contando como, certo dia, seu pai resolveu
pedir para que lhe construíssem uma canoa. O filho, em tom memorialístico, vai
evocando o passado a partir de sua memória, do presente vivido. A filósofa Olgária
Matos (2010) assinala que “O presente é capaz tanto de nos despertar quanto de
ser ele mesmo despertado e, com isso, invertem-se as relações do tempo, por
sermos, simultaneamente, a infância, a maturidade e a adolescência, isto é,
memória” (p. 29). O narrador do conto afirma: ‘Do que eu mesmo me alembro’,
de antemão justificando que sua rememoração não é bem precisa, como se “o
processo da memória no homem fizesse intervir não só a ordenação de vestígios,
mas também a releitura desses vestígios” (Le Goff, 1988, p. 424). Justamente
nesse tom memorialístico, ‘meu pai’ – acrescenta o narrador do conto –
‘encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha
da popa, como para caber justo o remador.’ Pronta a canoa, o pai se aprumou nela
e seguiu rio à dentro, permanecendo naquele espaço de rio sem nunca mais voltar
à terra firme, mesmo a família esperando e rogando sua volta, mesmo os vizinhos
pedindo para que voltasse, mesmo depois de o neto nascer. Inexplicavelmente, o
pai não retorna.
O narrador-personagem se apresenta como um ‘homem de tristes palavras’,
num tom melancólico, culposo, angustiado. Mesmo quando descreve a personagem
do pai como ‘homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e
menino’, o tom é melancólico, como se a imagem do pai simbolizasse algo que
6
Todas as citações do conto A terceira margem do rio serão marcadas com aspas simples (‘ ’).
Usaremos a edição de Primeiras estórias da Editora Nova Fronteira de 1985.
foi, mas que não é, restando apenas o silêncio na memória na qual o pai ‘não
figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só
quieto’. Um certo mutismo do pai ao longo do conto, ao passo que o rio, como
metáfora, ‘se estendendo grande, fundo, calado que sempre’, se torna algo
aterrorizador para o narrador. Diferente da imagem que ele tem da mãe, uma
pessoa ‘que regia, e que ralhava no diário com a gente’. Mesmo quando o narrador
levava comida e a deixava numa pedra de barranco para seu pai, ela é descrita
como uma pessoa que sabia de tudo, ‘nossa mãe sabia desse meu encargo, só se
encobria de não saber’, como se fosse um modo, um ato de deixar o filho tomar
suas próprias decisões e suas escolhas, numa metáfora para a maturidade.
O mito do rio como memória-esquecimento é muito forte no conto. O rio é
‘largo, de não se poder ver a forma da outra beira’, símbolo do desconhecido, mas
presente, como se fosse o começo de tudo, enigmático, elemento fundador, que
lhe traz a sensação do desalento, desconsolo, o momento único e melancólico do
dia em que a canoa ficou pronta, cuja imagem não consegue mais esquecer ou
dela se desvencilhar. O mito do rio traz o mito do barqueiro Caronte, aquele que
leva os mortos para o outro lado, às portas do Hades, como se a canoa do pai
representasse, simbolicamente, um caixão, feita pequena, ‘para caber justo o
remador’, aquele que vai pelas águas correntes do rio para o além-lugar. O rio, a
canoa, as águas do rio remetem a algo inefável, ao tempo que é demarcado pelo
narrador pela memória da infância, da juventude e da velhice. Como se aludisse
ao grande enigma da esfinge dirigido a Édipo, cuja resposta é relativa ao tempo
vivido pelo homem.
Esses três momentos do conto são fundamentais para entendermos como o
narrador descreve sua angústia, negando a própria vida, que teria sido, mas não
foi, voltando-se para refletir sobre ela. E toda essa reflexão emerge a partir da
memória. Os objetos da memória, como assinala Olgária Matos (2010), “são
phantásmatas, imagens de algo que não é mais, são imagens de nada” (p. 27),
cujo modo de conhecer consiste em “representar na intuição um objeto mesmo
em sua ausência” (p. 26).
Como já se disse acima, a culpa do narrador é evidenciada logo no início
do conto, quando diz que ‘esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta’,
porque foi o momento crucial da ruptura com o momento presente do pai e o
momento ausente do pai, numa antítese “presença-ausência, perto-longe” (Orione,
2008, p. 69). O pai não volta, mas também ‘não tinha ido a nenhuma parte’,
porque ‘aquilo que não havia, acontecia’. O pai embrenhando no rio adentro e
afora, mesmo os passadores, as pessoas, os amigos, nunca conseguiam pegar o
pai na canoa; quando uma lancha tentou pegá-lo para tirar fotos, ele, o pai em sua
tem sua face voltada para o passado. “A tempestade do progresso que se prendeu
nas asas do anjo da história aqui se acalmou e o anjo da arte parece imerso em
uma dimensão atemporal” (Agamben, 1970, p. 176). Como se o passado se
apresentasse para o anjo da história como um acúmulo de indecifráveis ruínas. Já
os utensílios da vida ativa, representados no quadro de Dürer, estão espalhados
sem significado para o anjo melancólico, algo inapreensível. Segundo Agamben:
pai não vive mais entre os seus, mas sua presença é permanente e absoluta. Cria-
se um paradoxo existencial: uma presença ausente ou uma ausente presença?
(Orione, 2008, p. 69) Isso é tão forte no narrador que ele chega a afirmar que
‘aquilo que não havia, acontecia’. Mas essa não é a única antítese criada por
Guimarães Rosa para indicar essa presença ausente. No decorrer do conto há
muitas outras: ‘Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte’. O que
é formulado, de modo paradoxal: ‘não voltou/não tinha ido, ou perto/longe, ‘nosso
pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra,
se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele’. Todo
esse jogo de palavras denuncia que a espera é vivida pela família como uma
constatação trágica: a espera de um pai que, ao mesmo tempo, está perto, presente
e longe, ausente. Formulações para constatar uma presença ausente ou uma ausente
presença do pai do narrador.
Nesse momento adulto, em que o narrador recupera ensinamentos recebidos
do pai, agradecendo o que ele lhe dissera quando criança e que guarda na memória
como um troféu – ‘foi o pai que um dia me ensinou a fazer assim...; o que não era
certo, exato; mas que era mentira por verdade’. Entretanto, logo se seguem, em
suas contestações sobre a ausência do pai, o impedimento do filho progenitor de
enterrá-lo e consumar seu luto: ‘se ele não se lembrava mais, nem queria saber da
gente por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no
não-encontrável?’.
Mesmo quando a irmã tem o seu primeiro filho e foram todos, ‘no barranco,
num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela
erguia nos braços a criancinha [...] A gente chamou, esperou. Nosso pai não
apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados’. Como num
ritual de sepultamento, toda a família se reúne como para fazer suas preces, honrar
o pai, jogar-lhe uma flor e um punhado de terra, acendendo uma vela e se
despedindo, dando fim ao luto indissolúvel e à sua agonia. Nesse exato momento
a família deixa de viver o não vivido e se muda para a cidade grande: primeiro
‘minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui’. Depois o irmão ‘resolveu
e se foi’, mais tarde a mãe ‘terminou indo também, de uma vez...’, como se tivessem
consumado o luto e o apego dos enlutados fosse se disseminando, cedendo lugar
à aceitação da realidade, prontos para novos investimentos, voltarem a viver a
vida.
Entretanto, para o narrador personagem isso não foi possível. Ele continuaria
ali, envolvido, entrelaçado em seu permanente luto, em um tom melancólico e
emblemático dizendo: ‘Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar.
Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei – na
vagação, no rio no ermo – sem dar razão de seu feito’. Eis a descrição precisa e
pungente do estado psíquico do enlutado, como afirma Freud (1917): “A perda de
um ser amado não é apenas perda do objeto, é também a perda do lugar que o
sobrevivente ocupa junto ao morto” (p. 18-19). Nesta descrição, Freud explica
que o enlutado não perdeu apenas o ser amado, mas também o lugar que ocupava
no afeto daquele pai querido. Ou seja, arrancado daquele lugar, fica vagando rio
acima, rio abaixo, entretanto continuava ali, numa presença ausente que agora
lhe parecia estranha e vazia de interesse e de alegria. Com isso, a culpa é muito
forte no sentimento do narrador, o que o faz permanecer totalmente ligado àquela
não-vida, sem se casar, sem experenciar novas possibilidades.
Num terceiro momento do conto, no qual ‘apontavam já em mim uns
primeiros cabelos brancos’, o narrador evidencia a chegada da velhice e, com ela,
a culpa indissolúvel, que arrebata, angustia, disseca toda possibilidade de um
distanciamento do pai e de consumar o luto. Ele se pergunta: ‘De que era que eu
tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e rio-rio-rio, o
rio – pondo perpétuo’, como se sua dor e angústia fossem para sempre. Nesse
momento desperta no narrador o princípio de individuação apolínea, manifestado
no sentimento da busca de redenção; tomando o lugar do pai, poderia encontrar
descanso de sua dor; isso seria o único meio para garantir sua existência, pois,
para ele, a vida já se acabara.
Afirmando categoricamente que ‘esta vida era só o demoramento’, num
tom trágico, enumera suas angústias, ‘ânsias, cansaços, perrenguice de
reumatismo’, parecendo prever o momento em que o pai de ‘tão idoso, não ia,
mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que
bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma
e no tombo da cachoeira, brava, com o ferimento e morte’. Nesse tom de caráter
dramático e angustiante o narrador sentencia: ‘Sou culpado do que nem sei, de
dor em aberto, no meu foro’.
Chegando ao fim de seu testemunho fixa-se em realizar algo para compensar
o pai. Conforme aponta Roberto Machado (2005) os “deuses e heróis apolíneos
são aparências artísticas que tornam a vida desejável, encobrindo o sofrimento
pela criação de uma ilusão. Essa ilusão é o princípio de individuação” (p. 7).
Como se essa tarefa, a ser feita de qualquer modo, o absolvesse da culpa em seu
peito. Nesse estado reflexivo sobre a própria condição, o narrador a lamenta,
consciente de sua tarefa, vê-se resignado e percebe que não lhe resta outra
alternativa senão tomar o lugar do pai. O narrador nesse momento finge que vai,
mas não vai até o barranco; ‘com um lenço, para o aceno ser mais’, espera e,
como uma assombração, o pai aparece, como um vulto, ‘sentado à popa’, parado,
calado, observando, e o filho, falou o que nele urgia, o que tinha ‘jurado e
declarado’. Com a voz reforçada grita: ‘Pai, o senhor está velho, já fez o seu
tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo,
quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...’.
O pai escuta o filho, fica de pé, como que concordando com seu discurso, porém,
o filho treme, se perguntando por que só agora, depois de tantos anos, ele se
alevanta, estica ‘o braço e feito um saudar de gesto!’. E desiste, arrepende-se,
com os cabelos arrepiados, corre, se tirando de lá sem tomar o lugar do pai, mas
se dizendo, angustiado, ‘que ele me pareceu vir: da parte do além’ como uma
assombração, um espectro, um vulto que toma corpo. Porém com a sua recusa, o
fantasma do pai desaparece, enquanto o narrador fica ‘pedindo, pedindo, pedindo
um perdão’. Ou seja, assumir a aparência de homem penitente, resignado era,
antes de tudo, uma necessidade do narrador, pois, como assinala Nietzsche, o
“Uno-primordial, enquanto eterno-padecimento e pleno de contradição, necessita,
para a sua constante redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa”
(Nietzsche, 2011, p. 36).
Numa tentativa de colocar à tona os seus instintos dionisíacos, tomaria o
lugar do pai, em consonância com a faceta apolínea de sua individualidade. Roberto
Machado (1999), referindo-se à tragédia segundo Nietzsche, afirma que esta
representa o conflito “entre o principium individuationis e o uno originário; ou,
mais precisamente, ela representa a derrota do saber apolíneo e a vitória do saber
dionisíaco, na medida em que faz da individuação um mal e causa de todo
sofrimento” (p. 25). O próprio Nietzsche assinala:
Para o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer. Nessa
antítese, que faz pensar, nós pressentimos a suprema avaliação da
individuação [...]: o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim
último de seu prazer, de modo que o desaparecimento se torna tão digno e
venerável quanto o nascimento e o aquilo que nasceu deve cumprir, como
o desaparecimento, a tarefa que lhe incumbe como individualidade (apud
Machado, 1999, p. 25).
da vida na linguagem e os da vida do corpo, lhe são dados ab initio e lhe são
inerentes” (Idem, p. 116). Lamenta-se pelo fracasso e o medo que sentiu, desde o
princípio, um ‘grave frio dos medos’. E fica se perguntando se era homem ‘depois
desse falimento?’, ou se era o que não foi, ‘o que vai ficar calado’, se lamentando
e temendo ‘abreviar com a vida, nos rasos do mundo’, lamentando sua fraqueza e
impossibilidade de lidar com o que aconteceu, porque
Abstract
Mourning, melancholia, and the tragic in the The third bank of the river, by
Guimarães Rosa
This article aims to analyze the short story The third bank of the river, by João
Guimarães Rosa, taking in consideration two relevant intersecting points. The
first point is mourning and melancholia; the second point to be discussed is the
tragic. We will use as a theoretical basis the concept of nietzschean tragic and
how it manifests itself in the tale, given in its constitution two opposing drives,
the Apollo’s and the Dionysus’. The analysis of mourning and melancholia is
founded in the article Mourning and melancholia by Sigmund Freud. It is important
to remember, however, that the tale allows various interpretations, since it is an
enigmatic text, which, as an open work, permits multiple possibilities of readings.
Resumen
de un texto enigmático, como obra abierta que es, nos permite múltiples
posibilidades de lectura.
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Recebido em 28/07/2013
Aceito em 08/01/2014