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IZABELA LONER SANTANA

SUZE PIZA

O QUE NOS FAZ PENSAR?


VOLUME 2: A QUESTÃO DO SUJEITO

Editora Instituto Conhecimento Liberta


FICHA TÉCNICA

Título do Livro:
O que nos faz pensar? Volume 2: A questão do sujeito
Autoras:
Izabela Loner Santana
Suze Piza
Coordenação editorial:
Angelo Battistini Marques
Produção editorial:
Marielly Agatha Machado
Coordenação de Design Gráfico:
Eduardo Marinho Júnior
Diagramação:
Caique Felipe Serafim dos Santos
Capa:
Isabella Chiara

Curadoria da coleção Saber e sociedade:


Suze Piza

Conselho Editorial:
Jessé Souza, Eduardo Moreira, Gisele Cittadino,
Ladislau Dowbor, Lindener Pareto Jr., Rafael Donatiello,
Leonardo Boff, Marilena Chauí, Renato Janine Ribeiro,
Suze Piza e Angelo Battistini Marques.
© Editora Instituto Conhecimento Liberta, Vila Mariana, 2023

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser re-
produzida, transmitida ou arquivada, desde que levados em conta
os direitos do autor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Santana, Izabela Loner


O que nos faz pensar? [livro eletrônico] : volume
2 : a questão do sujeito / Izabela Loner Santana,
Suze Piza. -- São Caetano do Sul : Instituto
Conhecimento Liberta, 2023. -- (Saber e Sociedade)
PDF

Bibliografia.
ISBN 978-65-85030-09-0

1. Filosofia 2. Foucault, Michel, 1926-1984 -


Crítica e interpretação 3. Kant, Immanuel, 1724-1804
- Crítica e interpretação 4. Sujeito (Filosofia)
I. Piza, Suze. II. Título. III. Série.

23-169943 CDD-100
Índices para catálogo sistemático:

1. Filosofia 100

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

Editora Instituto Conhecimento Liberta


Rua Capitão Cavalcanti, 79
Vila Mariana - São Paulo/SP
Cep. 04017-000
Tel: (11) 94172-8439
E-mail: contato@institutoliberta.com.br
Sumário

Apresentação............................................................................................................................. 6
1. A noção de sujeito............................................................................................................7
2. Gênese e estrutura da ilusão antropológica kantiana....................15
3. Descentrar e desmontar o sujeito, uma tarefa histórica e vários
projetos teóricos................................................................................................................28
4. Sujeito Objeto....................................................................................................................32
Referências..................................................................................................................................41
Sobre as autoras................................................................................................................... 43
Apresentação

O que nos faz pensar? A questão do Sujeito é parte da cole-


ção Saber e Sociedade da Editora Instituto Conhecimento Liberta. A
coleção tem por objetivo contribuir com a introdução ao estudo de
temáticas fundamentais para compreensão do nosso tempo e espaço.
O primeiro volume O que nos faz pensar? Filosofia para nossos
fins apresentou ao leitor e à leitora uma maneira de ver a filosofia e
manejá-la para diagnosticar nosso presente colocando-a à nossa dis-
posição. Nesse segundo volume, trazemos uma das questões filosóficas
mais centrais da modernidade, pelo menos desde Kant, a pergunta
pelo que somos nós: o que é o ser humano? O que é isso, o sujeito?
O que denominamos como subjetividade? E todos os
desdobramentos advindos desta reflexão.
No âmbito desta discussão está nada menos que a própria ar-
queologia das Ciências humanas. A “questão” do sujeito, longe de ser
uma questão estritamente filosófica, atravessa a modernidade oci-
dental e por meio dela é possível, portanto, começar a elaborar uma
arqueologia da própria modernidade.
Adentrar em uma problemática como essa não tem intenção
apenas de reproduzir filosofia, mas fazer circular pensamento como
um todo. Afinal, como diria Foucault, há um papel não só do filósofo,
mas do intelectual, que passa pela criação de regimes de verdade.
Com a apresentação de uma discussão teórica como essa, não é nosso
papel, no entanto, reforçar tais regimes de verdade e sim, evidenciar
aquilo que não está sendo visto para que, a partir daí, se veja.
O texto O que nos faz pensar Vol. 2: A questão do sujeito é uma
estratégia de ao apresentar o tratamento de uma questão, mostrar
uma das facetas de um projeto da sociedade ocidental moderna.
Boa leitura,

Suze Piza

6
1. A noção de sujeito

“Estamos agarrados ao dorso de um tigre”.

Michel Foucault, As palavras e as coisas.

As páginas que seguem pretendem tratar filosoficamente de


uma questão que não se encerra na filosofia, nem mesmo em um
campo meramente teórico. A noção de sujeito (e seus derivados sub-
jetividade, consciência, Eu etc.) coexiste de maneira íntima com o
projeto moderno em sua estruturação, manutenção e crítica. A pró-
pria sociedade moderna, seus princípios e valores, está fundada nessa
“questão”. Como bem sintetiza Bicca (1997), a noção de

“subjetividade” é o indicador ou denominador exce-


lente para a época da história da filosofia que se con-
vencionou chamar de “filosofia moderna”. (...) Nesta,
a subjetividade ocupa o temário filosófico central. A
rigor, “subjetividade” é um termo genérico, isto é, é
uma noção que enfeixa ou se encontra em relação
necessária com uma série de outros conceitos, que,
conjugados, circunscrevem uma problemática: Eu,
consciência, consciência de si, autorreferência, auto-
determinação, personalidade, espírito, enumerando
apenas os mais importantes. (BICCA, 1997, p. 145)

A proposta deste texto não é a de apresentar cada ocorrência


deste conceito esgotando-o ou enunciar as teses de como este é apre-
sentado nas teorias filosóficas, nem mesmo o que cada autor ou auto-
ra disse sobre o sujeito exaustivamente e em detalhe, mas apresentar
em linhas gerais a questão do sujeito como um problema geral único
que se expressa em diversas teorias e que obteve na assim chamada

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história da filosofia diversos tratamentos. Isto, pois, entendemos essa
questão não como algo restrito à produção teórica de um país ou
escola, mas como uma tarefa comum da filosofia ocidental e do ho-
rizonte intelectual modernos. Pois, assim como o sujeito surgiu no seio
destes em sua instauração, suas histórias se acompanham.
Ao ser uma noção intimamente ligada a uma época, a um pro-
jeto e suas consequências, ela pode, talvez, ser explicitado se tivermos
sempre em mente que o sentido da palavra “sujeito” é algo que está
na base ou por baixo, o alicerce ou o portador, ou ainda algo que
pode aparecer também como suporte ou substância de algo, inter-
pretado de maneira moderna como aquele ponto fixo que suportaria
e sustentaria seja a realidade, a experiência, os atributos ou até o
conhecimento. Dito de outra forma, o “sujeito” seria o suporte que sus-
tentaria a existência.
Sua formalização e justificação filosófico-teórica, que tentaremos
sintetizar neste texto, (im)postas pela filosofia moderna, foi assumida
por pensadores de áreas distintas do saber e em diversos aspectos, ob-
jetivos e visões de mundo divergentes, assim como, conforme veremos,
sua crítica. Se René Descartes, para muitos e para a narrativa histórica
que inventamos e reproduzimos da filosofia ocidental em seus feitos
e acontecimentos, inaugura o sujeito/indivíduo atomizado moderno,
separado do corpo e de seus sentidos enganosos, é com Immanuel Kant
que tal noção atinge seu ápice, pois o sujeito transcendental kantiano
passa a ser o grande protagonista de todas as esferas da vida. A cria-
ção dessa figura central deve-se a uma necessidade teórica do Ilumi-
nismo, mas funciona até hoje como uma espécie de recurso heurístico
para resolver questões que vão da política à educação, passando pela
neurociência. Quem conhece? Quem age? A resposta: o sujeito.
Buscando “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”,
Descartes, em suas Meditações metafísicas (publicada em 1641), mas
também em seu Discurso do método (publicado, primeiramente, em
1637), põe em dúvida, a partir do que ficou conhecido como “dúvida
metódica”, tudo o que poderia ser considerado fonte e garantia do
conhecimento, desde a própria existência das coisas até a maneira

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como as acessamos e conhecemos, sejam as crenças, a imaginação e
as opiniões, as sensações ou até uma instância externa de garantia
da verdade e do mundo, no caso, Deus (DESCARTES, 1987b).

Ao depurar essas possíveis garantias de certeza


sobre o mundo, duvidando e suspendendo para pôr
cada uma delas à prova, percebe que algo resiste
— o que, em seu método de duvidar, mostraria o
indubitável princípio e fundamento do conhecimento
que se pode vir a ter, o ponto de partida, a saber,
o sujeito que operou todo o processo de dúvida, a
consciência que se provou a cada duvidar, frente a
todos os objetos suspendidos e postos como não certos.
Indo das coisas pensadas, objetos, ao sujeito que os
pensa e ao próprio ato de pensá-los, ao duvidar resta
e afirma-se algo, aquele que pensa, independente
de qualquer enganação ou erro no mundo e das
representações que podemos ter sobre ele: “não há, pois,
dúvida alguma de que sou, se ele [o gênio maligno,
um possível enganador externo] me engana; e, por
mais que me engane, não poderá jamais fazer com
que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma
coisa”. (DESCARTES, 1987b, p. 24)

Do pensamento, Descartes decanta a existência, pois seria uma


“contradição conceber que aquele que pensa não existe verdadeira-
mente ao mesmo tempo que pensa” (DESCARTES, 1987b, segunda
meditação § 7).
Nas palavras de Descartes,

Tudo o que recebi, até presentemente, como o


mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos senti-
dos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas

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vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de
prudência nunca se fiar inteiramente em quem
já nos enganou uma vez (DESCARTES, 1987b,
primeira Meditação, §3).

(...)

Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo


são falsas; persuado-me de que jamais existiu de
tudo quanto minha memória referta de mentiras
me representa; penso não possuir nenhum sen-
tido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o
movimento e o lugar são apenas ficções de meu
espírito. O que poderá, pois, ser considerado ver-
dadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser
que nada há no mundo de certo (Descartes, se-
gunda Meditação, § 3)

(...)

Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tem-


po? A saber, por todo o tempo em que eu penso;
pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse
de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de
existir. Nada admito agora que não seja neces-
sariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando
precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é,
um espírito, um entendimento ou uma razão, que
são termos cuja significação me era anteriormente
desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeira
e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o
disse: uma coisa que pensa. (DESCARTES, 1987b,
Segunda Meditação § 7).

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Colocar esta fundamentação à sua filosofia e ao conhecimento
que ela almeja, faz tal filósofo valorar tudo como enganoso e passível
de erro, menos o sujeito, e este em uma concepção muito particular,
com características muito singulares, dado que é sujeito ao pensar.
Isto inaugura, ou pelo menos justifica, um novo momento na história
e abre filosoficamente uma época da subjetividade, um tempo da
imagem do homem, onde, apesar de todas as diferentes concepções
e definições, de modo geral, o que passa a ser o suporte seguro da
experiência, do conhecimento e da história e dos saberes (como ve-
remos com Foucault) é o sujeito pensante: sujeito-que-pensa, sujeito-
-pois-pensa. Tudo que se pode conceber e acessar tem, a partir daí,
como ponto de apoio ou “por baixo” o sujeito.

1.1 Duas ilusões

Ao retomar a questão do conhecimento e de suas certezas e


fundamento, Kant, em sua Crítica da razão pura (publicada pri-
meiramente em 1781 e reelaborada em uma nova versão em 1787),
põe um limite ao sujeito, dado que este não pode conhecer e asse-
gurar tudo o que há. Há uma finitude no sujeito do conhecimento
dado que existem objetos que ele não pode conhecer com segurança
de maneira indubitável, tais como Deus, a liberdade e a imortali-
dade da alma (KANT, CRP, 2021, B7).
O conhecimento precisa, assim, de uma âncora. Apesar de
defender essa tese de finitude do sujeito do conhecimento, o filósofo
não abandonará o sujeito, mas, ao não tomá-lo como fonte de certe-
za indubitável para o conhecimento, empreende uma investigação
sobre ele e sua capacidade de conhecer, a partir desses limites e des-
tas finitudes. Em outras palavras, em vez de mudar o fundamento,
depura-o investigando as condições de possibilidade do conheci-
mento no sujeito (ver FOUCAULT, 2007, p. 471).

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Assim, Kant elabora uma nova figura do
sujeito, o sujeito transcendental1. Essa figura recém
inventada no século XVIII tem a pretensão de acabar
com as ambições vazias da Metafísica de seu tempo,
ou aquela denominada por ele de pré-crítica, dado
que ao perder seu lastro com a realidade existente,
em sua concepção, empreendeu-se a discursar sobre
objetos impossíveis à constituição do ser humano,
indetermináveis à sua maneira e instrumentos
de conhecimento. Dito de outra forma, Kant luta
em seu tempo contra a pretensão de determinados
saberes conhecerem aquilo que não podem, como
é o caso da Metafísica. O sujeito que concebido por
Kant será aquele que tem em si todas as condições
de possibilidade de conhecer e, ao descrever como ele
conhece, é possível também indicar o que é possível
conhecer e o que só será possível pensar.

O limite, o freio, a crítica que faz Kant têm que ver com colocar
todos os fenômenos dentro de um campo de experiência possível. O
que escapa deste está fora do alcance humano, colocando limites às
ilusões da Metafísica.
Nas palavras do autor,

A razão humana tem o peculiar destino, em um dos


gêneros de seu conhecimento [metafísico, no caso] de
ser atormentada por perguntas que não pode recu-
sar, posto que lhe são dadas pela natureza própria
da razão, mas que também não pode responder,
posto ultrapassarem todas as faculdades da razão
humana. (KANT, CRP, 2021, AVII)
1 Transcendental em Kant é justamente essa estrutura subjetiva ‘cognitiva’ de condições de possibilidade para conhecer.

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A razão, apesar de ter uma natureza que a impele a ultrapas-
sar os limites da experiência possível, deve ter assegurado até onde
é possível ir com segurança. Assim sendo, a tarefa que põe para sua
filosofia crítica é tentar “modificar o procedimento até hoje adotado na
metafísica, isso de tal modo que operemos uma verdadeira revolução
da mesma a partir do exemplo dos geômetras e dos pesquisadores da
natureza” (CRP, BXXII, grifo nosso). Pois, para ele, não há “nenhuma
investigação que seja mais importante, quanto à investigação da fa-
culdade a que chamamos entendimento e, ao mesmo tempo, quanto à
determinação das regras e limites de seu uso.” (CRP, AXVI, grifo nosso)
Assim, o sujeito transcendental entra como solução para a re-
alização desta crítica da razão que colocaria limites aos discursos
vazios — que “alargam o conhecimento humano para além de todos
os limites da experiência possível” (CRP, AXIV) —, no entanto, muito
poderosos de seu tempo. A razão teórica, especulativa e sem freios
atravancava o progresso para o melhor que, segundo o filósofo, os
humanos tenderiam.
É bem interessante observar como a arqueologia do moder-
no vai se desvelando nessa discussão, pois o que parece ser apenas
um tratamento de uma questão de teoria do conhecimento, vai se
apresentando aos poucos como antropologia e quando percebemos
estamos discutindo filosofia da história. Ou, como Kant defendeu em
sua obra O Conflito das Faculdades, que tipo de subjetividade pode
fazer com que a produção de conhecimento de uma época garanta
que o gênero humano progride para o melhor, questão atrelada aos
âmbitos político e científico do projeto moderno.
A solução kantiana de reposicionamento do sujeito no campo
da experiência vem da inspiração de uma inversão de perspec-
tiva, de uma inversão de posições e prioridades, Kant chamará
a figura de Copérnico e sua revolução como analogia para tal
movimento e com isso recriá-lo como protagonista das questões
primeiramente concernentes ao conhecimento e sua produção e
depois de outras esferas da existência. Passando, assim, dos objetos
que historicamente a filosofia tomou como distintivos de sua área

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e conhecimento (Deus, alma e mundo), para um discurso filosófico
sobre o próprio conhecimento humano, suas condições de possibili-
dade, sua estrutura e seus limites.
A solução do problema, segundo Michel Foucault — outro fi-
lósofo que vai se filiar à tradição crítica, mas agora francês e do
século XX — criou outro problema, talvez até maior e mais difícil de
resolver do que as ilusões da Metafísica que ambicionava conhecer
o impossível. O filósofo francês defende que ao criar essa figura que
colocaria fim à chamada ilusão transcendental — i.e., a ideia de que
o sujeito pensante-cognoscente é tão poderoso a ponto de conhecer
científica e indubitavelmente todos os fenômenos, tudo o que se pode
pensar e que conhece as coisas em si mesmas, em sua existência real
e absoluta, tendo representações diretas do que há —, a filosofia kan-
tiana acabou sendo o início de uma outra grande ilusão, maior que
a anterior: a ilusão antropológica.

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2. Gênese e estrutura da ilusão antropológica kantiana

A tese de Foucault do desaparecimento do sujeito, apresentada em


As Palavras e as coisas, tem seu fundamento na leitura que faz da An-
tropologia do ponto de vista pragmático de Kant. O filósofo francês, em
1961, defende como Tese complementar à sua tese principal, Histoire de la
folie à l’âge classique, uma introdução à Antropologia do ponto de vista
pragmático de Kant (resultado de aulas ministradas de 1772 a 1796),
bem como a tradução da obra para o francês. Toda a Tese complemen-
tar resulta em uma crítica às antropologias e à própria instauração dessa
temática antropológica no pensamento ocidental. Parece, portanto, que
é no interior da criação dessa figura “homem” na filosofia de Kant que
Foucault verá todo um movimento teórico que teria como finalidade a
antropologia e, a partir, disso o desenvolvimento de toda uma discussão
teórica que fundará o pensamento antropológico, e, com isso, todas as
ciências humanas, com impactos severos também nas ciências naturais.

Para mostrar a centralidade e a importância


deste passo kantiano à filosofia moderna ocidental,
Foucault assegura que “a Antropologia constitui talvez
a disposição fundamental que dirigiu o pensamento
filosófico desde Kant até nós” (2007, p. 472). Se o filósofo
livrou a filosofia do sono dogmático em que estava
com as ilusões metafísicas, ele o faz inserindo-nos em
um novo sono, do que resultou a necessidade de uma
filosofia como a de Foucault, a qual busca fazer uma
arqueologia das ciências humanas, isto é, descrever um
dado tipo de homem que até então não existia e que
em breve iria desaparecer, não só pela contingência
histórica de sua emergência, mas também pelos
problemas prático-teóricos que tal empreendimento
teve como efeito. Mostrar a sua estruturação,
manutenção, limites e realizar a crítica desta noção
de homem, moderna e central à modernidade e seus

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profetas (sujeito, subjetividade, consciência, Eu, etc.)
será uma das tarefas de Foucault em sua obra.

No prefácio à primeira edição da Crítica da razão pura (CRP,


A VII-XII) Kant fala do poder dos dogmáticos e dessa pretensão que
precisava ser revista. Ele ainda afirma na sequência do texto que
o dever da Filosofia era dissipar a ilusão proveniente de um mal-
-entendido, mesmo com risco de destruir uma quimera tão amada
e enaltecida (AXIII). A quimera kantiana é a Metafísica. Duzentos
anos depois, Foucault tentará destruir outra quimera: a Antropolo-
gia. A crise que o filósofo de Königsberg via em seu tempo devido
às pretensões da Metafísica, Foucault vê no seu tempo em relação
ao pensamento antropológico que consagra todas as interrogações à
questão do ser do homem (FOUCAULT, 2004, p. 229). A tarefa será
a mesma, mesmo que com objetos diferentes e, certamente a segunda
com um grau ainda maior de dificuldade.
Em As Palavras e as coisas, obra na qual se dedica a analisar
o “homem”, o sujeito moderno e a forma de organizar e compreender
a realidade a partir dele, Foucault afirma que

A Antropologia como analítica do homem teve indu-


bitavelmente um papel constituinte no pensamento
moderno, pois que em grande parte ainda não nos
desprendemos dela. Ela se tornara necessária a partir
do momento em que a representação perdera o poder
de determinar, por si só e num movimento único, o
jogo de suas sínteses e de suas análises. Era preciso que
as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer
outro lugar que não na soberania do “Eu penso”. De-
viam ser requeridas onde precisamente essa sobera-
nia encontra seu limite, isto é, na finitude do homem
– finitude que é tanto a da consciência quanto a do
indivíduo que vive, fala, trabalha. Kant já formulara

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isso na Lógica quando acrescentara à sua trilogia tra-
dicional uma última interrogação: as três questões crí-
ticas (que posso eu saber? que devo fazer? que me é
permitido esperar?) acham-se então reportadas a uma
quarta e postas, de certo modo, “à sua custa”: Was ist
der Mensch? (FOUCAULT, 2007, p. 471).

Assim, Kant, ao colocar a finitude do homem, a finitude de seu


conhecimento frente a grandes questões até então importantes à filo-
sofia e cultura ocidentais e modernas, teve de buscar um outro ponto
seguro para fundar o conhecimento, dado que o ponto e o sujeito, o
suporte, posto por Descartes, o “Eu penso”, não dava mais conta de
tudo, não dava mais a certeza e a garantia do conhecimento, mas é
questionado, limitado e posto como finito.
Para responder a necessidade e o problema elaborados pela an-
tropologia kantiana, i.e., para descrever o tipo de homem que passou a
existir com o fim da certeza do pensamento puro e que, para Foucault,
virá a desaparecer, o filósofo não mais busca explicitar as condições de
possibilidade desse ou daquele saber específico ou até mesmo da estru-
tura do conhecimento, como pode-se querer em um horizonte kantiano,
mas antes, mapear a epistémê fundante do saber ocidental em sua for-
ma moderna. Explicitar, por conseguinte, as condições de possibilidade
da epistémê moderna, no que encontraremos o homem, explicitando a
relação íntima, acima posta, entre sujeito e modernidade.2

Essa questão, como se viu, percorre o pensamento


desde o começo do século XIX: é ela que opera, fur-
tiva e previamente, a confusão entre o empírico e o
transcendental, cuja distinção, porém, Kant mostrara.
Por ela, constituiu-se uma reflexão de nível misto que
2 Segundo Castro (2004), a noção de epistémê em Foucault é o que permite definir o campo de análise do método arqueológico. O que
é articulado a partir de outras noções tais como formações discursivas, arquivo, enunciado, etc. Assim, ela é determinada temporal
e geograficamente. Descrevê-la é descrever também os códigos fundamentais de uma cultura, ou seja, os códigos que regem sua lin-
guagem, seus esquemas perceptivos, seus intercâmbios, suas técnicas, seus valores, a hierarquia e suas práticas e as teorias científicas e
filosóficas que explicam todas essas formas de ordem”. Em um tom muito kantiano, a epistémê em Foucault, seria como as condições
de possibilidade dos discursos e dos saberes de uma determinada época e lugar. (cf. CASTRO, 2004, vocábulo “Episteme”).

17
caracteriza a Filosofia moderna. A preocupação que
ela tem com o homem e que reivindica não só nos
seus discursos como ainda seu páthos, o cuidado com
que tenta defini-lo como ser vivo, indivíduo que tra-
balha ou sujeito falante, só para as boas almas assi-
naram o tempo de um reino humano que finalmente
retorna; trata-se de fato — o que é mais prosaico e
menos moral — de uma reduplicação empírico-crítica
pela qual se tenta fazer o homem da natureza, da
permuta ou do discurso como fundamento da própria
finitude. (FOUCAULT, 2007, p. 471)

Há na obra de Foucault, de maneira geral, um confronto com o


humanismo que, segundo ele, teria brotado deste solo antropológico,
o que é acompanhado tanto em As Palavras e as coisas quanto em
A Arqueologia do saber — de uma premissa metodológica de desan-
tropologizar a história, os saberes, a forma de conhecer e entender o
mundo como um todo.

Foucault finaliza a Gênese e estrutura da


Antropologia de Kant, Tese complementar, com
uma reflexão bastante contundente sobre o impacto
das Antropologias para a produção do pensamento
filosófico dos séculos XIX e XX e a necessidade da
recusa delas, tanto das Antropologias filosóficas
quanto das Filosofias que tomam como ponto de
partida certa reflexão antropológica sobre o homem.
O filósofo faz nova denúncia a essa nova “ilusão”,
a ilusão antropológica. Nova, pois no século XVIII,
como já dito anteriormente, Kant teria feito o mesmo,
denunciado uma ilusão: a ilusão transcendental.
Tendo denunciado, caberá ao filósofo, (tal como
coube a Kant) realizar um novo empreendimento
crítico, prosseguindo com o projeto kantiano.

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Nas palavras de Foucault,

Aqui e lá está em jogo uma “ilusão” que, desde Kant, é


própria à Filosofia Ocidental. Ela contrabalança, em
sua forma antropológica, a ilusão transcendental que
a metafísica pré-kantiana encobria. É por simetria e
em referência a ela enquanto um fio condutor que
se pode compreender em que consiste esta ilusão
antropológica. Com efeito, uma deriva historicamen-
te da outra, ou antes, foi por um deslocamento de
sentido na crítica kantiana da ilusão transcendental
que a ilusão antropológica pôde nascer. O caráter
necessário da aparência transcendental foi cada vez
mais frequentemente interpretado não como uma
estrutura da verdade, do fenômeno e da experiên-
cia, mas como um dos estigmas concretos da finitude
(FOUCAULT, 2011, p.109). [TC]. Grifo nosso.

A ilusão antropológica, segundo ele, vai aparecer como um


pressuposto para a verdade, aquilo que dá base para que ela esteja
sempre aí. A ilusão passa a ser o retraimento da verdade. A ilusão
antropológica é como uma imagem no espelho da ilusão transcen-
dental. Será preciso retomar o projeto de Kant para dar conta dela,
assim como ele fez com a ilusão transcendental e com isso desfazer a
nova noção de sujeito.

O curioso é que o nascimento de uma das


ideias mais caras à Modernidade, a noção de
sujeito, nasce com todas as condições de efetivação
de sua morte já determinadas. Assim, enquanto o
sujeito transcendental de Kant é construído no séc.
XVIII delineia-se a sua morte. O sujeito exposto no
idealismo transcendental é anunciado com tamanha

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autonomia, independência e centralidade que até a
responsabilidade pela criação de si, da natureza e do
próprio mundo à sua volta é tarefa sua, nascendo a
típica figura do sujeito moderno. No entanto, menos
de dois séculos depois, ficará evidente na Filosofia
de Michel Foucault, que essa autonomia não se
realizaria, ou ao menos não se realizaria em sua
totalidade, pois a forma-sujeito seria extinta e as
condições de possibilidade da extinção já estavam
dadas no próprio período de sua constituição. E é na
explicitação dessa tese que veremos mais um dos
muitos usos que Foucault faz da filosofia kantiana.

Como já dito, em As Palavras e as coisas a morte do homem


é anunciada. Com o aparecimento da psicanálise, da etnologia, da
formalização da linguagem e da literatura, tem fim a epistémê do
século XVIII. Esta teria como traço delineador a Antropologia e está
mergulhada no sono antropológico. As teorias humanistas (existen-
cialistas, idealistas, marxistas) teriam criado um homem racional e
criativo, livre e autoconsciente, artífice de seu futuro. Esse homem, se-
gundo o filósofo francês, não existe fora da positividade que o forjou,
isto é, o “eu” proclamado que está devorado por estruturas biológicas,
psicológicas e sociais e que, assim, não passa de uma ficção, um áto-
mo fictício. O sono antropológico fez com que o sujeito humano fosse
visto como possuidor de liberdade, responsabilidade, poder de fazer a
história, história essa que teria um sentido, um destino, um telos.
Uma de suas tarefas será despertar o pensamento do sono an-
tropológico, se concluída a tarefa teria destronado o eu, o sujeito, e,
consequentemente, sua autodeterminação e autotranscendência. Em
poucas palavras, trata-se de inverter a direção que estavam indo os
saberes sobre os homens, identificando e explicitando estruturas oní-
voras no sujeito. Dissolução do homem, portanto.

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O processo de desantropologização da história,
premissa básica de A Arqueologia do saber, se dá
não apenas na produção dessa obra, mas ao longo
de toda a obra de Foucault. Apesar da crítica à
razão antropológica, a problemática é o sujeito e,
sem dúvida, a formação da subjetividade ou dos
processos de subjetivação ou ainda o dos modos de
subjetivação. O sujeito para Foucault não é uma
substância e sim uma forma: forma-sujeito. E sua
Filosofia é a tematização dessa problemática (e suas
implicações) sem antropologizações.

O filósofo nos conduz, ao longo de sua trajetória, a uma história


das práticas nas quais o sujeito aparece não como instância de fun-
dação, mas como efeito de uma constituição. Parte do pressuposto que
os modos de subjetivação são (coerentes com sua teoria) na verdade,
modos de objetivação do sujeito, isto é, nada mais que o modo como
o sujeito aparece como objeto de uma determinada relação. Os modos
de subjetivação e objetivação são dependentes um do outro, seu de-
senvolvimento é mútuo, concomitante, uma vez que ele se subjetiva
na modernidade, objetivando-se3.
Como afirma Fonseca:

De maneira geral, pode-se dizer que Foucault pre-


tende estudar as formas de constituição do indiví-
duo moderno. Quando se fala em formas de ob-
jetivação e formas de subjetivação, é sempre em
relação à constituição do indivíduo. Pensar, por-
tanto, nos processos de objetivação é pensar em
aspectos da constituição do indivíduo. Da mesma
forma que pensar nos processos de subjetivação
3 Principalmente se observarmos as teses defendidas em Vigiar e Punir.

21
também é pensar em aspectos desta constituição.
A meu ver, os mecanismos de objetivação e os me-
canismos de subjetivação concorrem, simultanea-
mente ou não, para os processos constitutivos do
indivíduo, cuja genealogia é o objeto dos trabalhos
de Foucault (FONSECA, 2007, p.24).

Sua obra possibilita estabelecer a constituição do “indivíduo”


como sujeito e como objeto na modernidade. O sujeito se constitui
como objeto na medida em que é vitimado pelas práticas da cultu-
ra que está inserido que vão lhe dando forma e se constitui como
sujeito na medida em que está vinculado a uma identidade que lhe
é atribuída como sua. O que Foucault faz é explicitar as condições
de possibilidade (histórico-culturais-materiais) dessa formação.
Se pararmos um pouco neste ponto e refletirmos como exata-
mente Foucault fez isso no interior de sua Filosofia, perceberemos
mais uma vez a presença de Kant. Primeiramente, essa descrição
dos modos de subjetivação e objetivação remeterá às teses expostas
na Crítica da razão pura acerca da dualidade da natureza do “eu
penso” que se por um lado é sujeito do conhecimento, por outro é
objeto do conhecimento de modo que são as condições subjetivas
(sensíveis e lógicas) que permitem que esse seja, isto é, que possi-
bilita que o “eu penso” seja fenômeno. Neste filósofo, os modos de
subjetivação são modos de objetivação, pois o que consideramos ex-
terno só é devido ao que consideramos interno. Por outro lado, sem
o externo o interno não seria despertado.
Além desse ponto há outro em que mais uma vez observa-
-se a maneira criativa com que Foucault se apropria da Filosofia
de Kant: no primeiro, o indivíduo é resultado de um processo de
constituição que se efetiva numa certa determinação específica
de uso do tempo e do espaço. A disciplina, como técnica de poder,
que forma indivíduos úteis e dóceis na modernidade se efetiva por
meio dos usos do tempo e do espaço. O poder se concretiza sobre
o indivíduo por meio da imposição de tipos específicos de espaços

22
e elaborações específicas dos atos temporais. Tempo e espaço (his-
tóricos-concretos) em Foucault são as condições de possibilidade
concretas de formação desse indivíduo.
O século XVIII guarda uma revolução na forma de pensar,
o nascimento de outra forma de pensar: a já citada revolução
copernicana realizada por Kant, na qual desloca a questão do
“acesso” à realidade, pelo qual se procura resolver a possibilidade
de conhecimento a priori dos objetos por meio de uma submis-
são necessária do sujeito ao objeto, propondo a possibilidade do
conhecimento a partir de uma investigação sobre as faculdades
humanas do conhecimento. E afirma que é o sujeito quem legisla
e constitui o objeto, e é deste modo, em um estudo do sujeito, que
Kant funda o conhecimento humano. O sujeito forma o objeto, eis
a inversão proposta pelo filósofo.

Foucault, por sua vez, preservou a tarefa e as teses kantianas,


mas às avessas e em um campo material: uma nova revolução co-
pernicana, em que a questão filosófica (e do conhecimento) é nova-
mente deslocada, pela qual se procura pôr em destaque as condições
de possibilidade do conhecimento através de uma submissão necessá-
ria do sujeito ao a priori histórico. O sujeito é agora formado. Há mais
uma virada metodológica aqui, mas, desta vez, com consequências
para o protagonismo do sujeito que se esvai.

Em As Palavras e as coisas e A Arqueologia do saber o a priori


histórico aparece como um corpo de enunciados ou a conjugação de
elementos conceituais e práticos de um enunciado de um determina-
do tempo e lugar que torna possível qualquer positividade, inclusive
o indivíduo, ou o sujeito. Foucault postula uma espécie de domínio
transcendental que condiciona o saber, mas que, ao contrário de Kant,
é não-subjetivo e variável. O francês, assim como o alemão, intro-
duz uma série de novos problemas filosóficos, e dessa forma inventa
um “novo” método histórico de fazer Filosofia kantiana do saber. Há
aqui, sem dúvida, um kantismo paradoxal.

23
Foucault se propõe a fazer uma crítica da razão
antropológica, uma crítica da razão humanista, essa
crítica se faz necessária considerando os equívocos
cometidos pelos historiadores, principalmente do
século XIX, que protegendo a soberania do sujeito
acabam por criar o construto de uma história
mundial que reduziria todas as formas de sociedade
à uma forma única, num dado sistema de valores
coerentes com um tipo específico de noção de
civilização. O projeto de uma crítica antropológica
torna-se possível quando Nietzsche denuncia que o
fundamento originário, cujo telos da humanidade
é a racionalidade, é uma farsa. A descentralização
operada por Nietzsche é reiterada quando a
psicanálise, a linguística, a etnologia, descentram o
sujeito. Mas, quem faz isso à maneira kantiana é
apenas Foucault.

Segundo o francês,

(...) em relação às leis de seu desejo, as formas de sua


linguagem, às regras de sua ação, ou aos jogos de seus
discursos míticos ou fabulosos, quando ficou claro que
o próprio homem, interrogado sobre o que era, não
podia explicar sua sexualidade e seu inconsciente, as
formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade
de suas ficções... (FOUCAULT, 2004, p.15).

No auge da crítica foucaultiana e em consonância com os im-


pactos causados pela noção de sujeito nas Ciências Humanas aparece
o tema da continuidade da história, que é antes de tudo um tema
enraizado na Antropologia. Ele considera que há um uso ideológico

24
da História em que se tenta restituir ao homem tudo que nos últimos
séculos lhe escapa. Mas, não é uma restituição de direito. O exame
que aqui será realizado por ele é uma medição das mutações que
se operam, acontecem em geral no campo da História, a posição de
questionamento dos métodos e limites, empresa que pretende desfa-
zer as últimas sujeições antropológicas e as condições de possibilidade
de seu surgimento: o campo em que aparecem as questões do ser hu-
mano, da consciência e do sujeito.
Sua proposta é definir um método histórico-filosófico que seja
livre do tema antropológico, um método isento de qualquer antro-
pologismo (FOUCAULT, 2004, p.18). O filósofo sabe que os peri-
gos que tenta evitar fazem parte da própria natureza da empresa
a que se propõe.
Pretendendo dispensar o sujeito falante, livrar o discurso de
qualquer referência antropológica, ao descrevê-lo não o relaciona
a uma subjetividade e a intenção não era afirmar qualquer tipo de
discurso universal, ao contrário, trata-se de mostrar o discurso em
outro âmbito onde não se não se nega a História, contudo a mantém
em suspenso como a categoria geral e vazia da mudança para fazer
aparecer transformações de níveis diferentes. Há uma recusa de um
modelo uniforme de temporalização para descrever os discursos e
suas consequências diversas. É dessa forma que se delineia a crítica
da razão antropológica empreendida por Foucault.
Em meio a este empreendimento, algo curioso se instala na
conclusão da obra A Arqueologia do saber, ele apresenta a visão de
seus pares sobre seu pensamento, algumas críticas contundentes, mas
certamente pertinentes a um intelectual que está aberto ao diálogo.
Na leitura avaliativa (e lúcida) do pensamento foucaultiano, seus
“oponentes” afirmam que sua Filosofia cuidou de abandonar todos os
discursos que eram atribuídos a uma consciência, ou sujeitados a ela,
e resgatar algo perdido: a interrogação fundamental, a saber, per-
guntar pelas condições de possibilidade dessa razão que estabelece
uma série de “verdades” e as coloca dentro dos limites transcendentais.

25
Num dado momento do texto, Foucault afirma sobre a inter-
pretação que foi feita sobre seu pensamento que esta indicaria que:

(...) a razão que estabelece todas essas “verdades” no-


vas, temo-la sob grande vigilância: nem ela, nem seu
passado, nem o que a torna possível, nem o que a
faz nossa, escapa à delimitação transcendental. Será
a ela, agora – e estamos firmemente decididos a ja-
mais renunciar a isso – que colocaremos a questão da
origem, da constituição inicial, do horizonte teleológi-
co, da continuidade temporal. Será este pensamento,
que hoje se efetiva como nosso, que manteremos na
dominância histórico-transcendental (FOUCAULT,
2004, p.227). [AS]. Grifo nosso.

O francês responde a essa interpretação, que o coloca como um


filósofo que mantém a razão sob vigilância e que coloca os discursos
em uma delimitação transcendental mantendo o pensamento numa
dominância histórico-transcendental da seguinte forma: ora, obstinei-
-me em avançar. Não que esteja certo da vitória (...) Mas, porque
achei que no momento, era o essencial: libertar a história do pensa-
mento de sua sujeição transcendental (FOUCAULT, 2004, p.227)4.
No detalhe percebemos o que se passa aí. Como se tratava de
desantropologizar o pensamento, o que Foucault fez (metodologi-
camente) foi o que Kant fez quando quis livrar o pensamento de
toda a metafísica. O que ele cria nesse momento é uma espécie de
materialismo transcendental, um tipo de Filosofia que critica o idea-
lismo transcendental, que critica a sujeição ao transcendental, tendo
como alvo o sujeito transcendental (universal). É disso que se trata.
Foucault usa a crítica kantiana contra Kant, quando afirma que a
crítica que realiza pretende libertar a história do pensamento de sua
sujeição transcendental, fazer uma análise histórica que permitisse
4 A pretensão era de eliminar o sujeito transcendental, não parece ser de eliminar o campo transcendental.

26
evidenciar não um sujeito, nenhuma constituição transcendental sub-
jetiva, despojá-la do narcisismo antropológico (FOUCAULT, 2004, p.
227). Grande empreitada a de Foucault, fazer com a Antropologia o
que Kant fez com a arrogante metafísica e suas pretensões.

27
3. Descentrar e desmontar o sujeito, uma tarefa
histórica e vários projetos teóricos

O projeto de desantropologizar ou de criticar o sujeito ou o fun-


damento humanista da modernidade não começa ou restringe-se a
Foucault, pois já no fim do ápice da modernidade (o que propomos,
para fins didáticos, reconhecer no Iluminismo, seguindo ainda o re-
corte kantiano feito) podemos encontrar nomes como o de Hegel,
criticando a filosofia kantiana por seu recorte estritamente epistemo-
lógico, sua redução a uma teoria do conhecimento que se afastara
das grandes questões filosóficas5. O que podemos encontrar também
(para termos referências e um breve panorama em mente) em Karl
Marx, que promoverá um descentramento do sujeito quando faz uma
análise das relações de produção e não dos sujeitos em suas vontades
e consciências individuais, da estrutura e do funcionamento do siste-
ma e do capital e não de ações pontuais e/ou empíricas; Nietzsche
com a sua filosofia a golpes de martelo que quebra as estruturas da
noção de Eu e explícita sua fragilidade e contingência6, seu caráter
passageiro, de ponto entre o animal e o que há e pode vir a ser com o
além-do-homem [Ubermensch], não mais preso às amarras e aos va-
lores modernos; ou até mesmo Martin Heidegger que não se permite
sequer usar o termo sujeito, humano ou homem, tratando-nos como
Dasein, i.e., como tempo-lugar longe de qualquer instância fundado-
ra do quer que seja.
5 Como diz Hegel em sua Enciclopédia: “Um ponto de vista principal da filosofia crítica é que, antes de empreender conhecer
a Deus, a essência das coisas, etc., é mister investigar primeiro a faculdade do conhecimento, a ver se é capaz de dar conta do
empreendimento. Seria preciso primeiro aprender a conhecer o instrumento, antes de empreender o trabalho que será executado
por meio dele; se o instrumento for insuficiente, toda a fadiga será, aliás, inútil. Esse pensamento pareceu tão plausível que susci-
tou a maior admiração e aprovação, e fez o conhecimento voltar-se de seu interesse pelos objetos e de sua ocupação com eles, ao
formal. Contudo, caso não se queira enganar-se com palavras, fácil é ver que se pode eventualmente examinar e apreciar outros
instrumentos de outro modo que empreendendo o trabalho próprio a que são destinados. Mas o exame do conhecimento não
pode ser feito de outra maneira a não ser conhecendo; no caso deste assim-chamado instrumento, examinar significa o mesmo
que conhecê-lo. Ora, querer conhecer antes que se conheça é tão absurdo quanto o sábio projeto daquele escolástico, de aprender
a nadar antes de arriscar-se na água.” (HEGEL, 1995, §10) Isto é, reduziu-se ao campo que privilegia, principalmente, as relações
de conhecimento entre sujeito e objeto.
6 A título de exemplificação da visão nietzschiana, cito: “Em algum remoto recanto do universo, que se designa fulgurantemente
em inumeráveis sistemas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astutos inventaram o conhecimento. Foi o minuto
mais audacioso e hipócrita da “história universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto.” (NIETZSCHE, 2007, p. 25).

28
E assim como Kant lançou mão da metáfora da revolução co-
pernicana para tirar a filosofia de seu sono dogmático, o psicanalista
francês Jacques Lacan, ao indicar a importância e a urgência da
tarefa desantropologizadora e anti-humanista para além dos muros
filosóficos, também mobiliza tal metáfora, agora para discursar sobre
a saída do sono antropológico no qual a modernidade se constituiu e
manteve.
O psicanalista, que preferia as aulas orais à escrita de livros e
tratados, no segundo ano do Seminário (datado de 1954-1955 e inti-
tulado O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, o que já
nos dá pistas quanto a sua relação ao nosso tema) que ministrou de
1953 até o ano de sua morte em 1981 à intelectualidade francesa, em-
prega o termo “revolução copernicana” para qualificar a intervenção
que seu campo (a psicanálise) pode operar na episteme moderna por
conta da descoberta de Sigmund Freud que ela sustenta, a saber, a
invenção do inconsciente. O uso da revolução de Copérnico, até então
usada como metáfora para criação de teorias sobre o sujeito, de co-
locação em centro deste, todavia, agora, será mobilizada no sentido
contrário, afinal é a perda do centro que será efetivada, o que ressoa
o realizado por Foucault como método n’A Arqueologia do saber.
Nas palavras de Lacan:

Não que aquilo que não é copernicano seja abso-


lutamente unívoco. Nem sempre os homens acredi-
taram que a Terra fosse uma espécie de prato infi-
nito, acreditam também que tivesse limites, formas
diversas, por vezes, a de um chapéu de senhora.
Mas, enfim, tinham a ideia de que havia coisas que
estavam por baixo, digamos no centro, e que o resto
do mundo se edificava por cima. Pois bem, se não
sabemos direito o que um contemporâneo de Sócra-
tes podia pensar do seu eu havia, contudo, algo que
devia de estar no centro, e não parece que Sócrates
duvide disto. Este algo não tinha provavelmente o

29
feitio do eu que começa numa data que podemos
situar ao redor dos meados do século XVI, início do
XVII. Mas estava no centro, na base. Com relação
a esta concepção, a descoberta freudiana tem exa-
tamente o mesmo sentido de descentramento que
aquele trazido pela descoberta de Copérnico. Ela se
expressa bastante bem na fulgurante fórmula de
Rimbaud — os poetas, que não sabem o que dizem,
corno é bem sabido, sempre dizem, no entanto, as
coisas antes dos outros — [Eu] é um outro. (LACAN,
1985, p. 14)

Retomando o sentido acima citado de sujeito (suporte, substân-


cia), Lacan dá marcos importantes como a data de emergência (sécu-
lo XVIII), o lugar central e o nome deste suporte: o “eu”, como o sujeito
filosófico por excelência. Além de indicar o que Freud, e consequente-
mente a psicanálise que ele constrói, dele faz, descentra, tirando-o de
seu lugar de fixidez, transparência e conhecimento, identidade para
um lugar de alteridade, deslocado, como um outro.

Indicando esta base, neste Seminário, ao tratar


do “eu” a partir da psicanálise, mas em constante
diálogo com a filosofia moderna, afirma que “o
homem contemporâneo cultiva uma certa ideia
de si próprio que se situa num nível meio ingênuo,
meio elaborado. A crença de que ele tem de ser
constituído assim e assado participa de um certo
medium de noções difusas, culturalmente admitidas”
(LACAN, 1985, p. 10). Citação essencial não só para
colocar Lacan em nossa narrativa, como também
para mostrar as implicações e os efeitos que as
justificações e construções filosóficas podem ter,
cultural e socialmente.

30
No curso de seu ensino, Lacan chegou a apontar para Descartes
como autor paradigmático da subjetividade ocidental, mas, assim
como Foucault, também tem em Kant como esta figura de organiza-
ção final e mais refinada da subjetividade modernidade, principal-
mente por conta de sua posição do sujeito quanto ao conhecimento,
diferenciado de seu objeto.

31
4. Sujeito Objeto

No âmbito da psicanálise, Lacan observa que o humano em


sua época crê tanto em si mesmo como meio para operação de fins
que chega a imaginar que essa é uma propensão natural:

Ele pode imaginar que ela é oriunda de uma pro-


pensão natural, quando, no entanto, no atual estado
da civilização ela lhe é ensinada, de fato, por todos os
lados. Minha tese é a de que a técnica de Freud, em
sua origem, transcende esta ilusão que, concretamen-
te, exerce uma ação sobre a subjetividade dos indi-
víduos. A questão é, portanto, saber se a psicanálise
vai pouco a pouco se relaxando até abandonar o que
foi por um instante entreaberto ou se, pelo contrário,
ela vai tornar a patentear seu relevo, e de maneira
que o renove. (LACAN, 1985, p. 10)

Com Freud acontece uma irrupção, uma nova perspectiva


que revoluciona o estudo da subjetividade e que mostra justamente
que o sujeito não se confunde com o indivíduo (LACAN, 1985, p. 10).
E é isso que permite Lacan, ainda, afirmar que “a relação toda do
homem consigo mesmo muda de perspectiva com a descoberta freu-
diana” (LACAN, 1985, p. 23).
Podemos aprofundar isso em um texto freudiano intitulado “Uma
dificuldade da psicanálise”, de 1917, no qual o psicanalista fala que
a psicanálise opera uma das feridas narcísicas da civilização moder-
na ocidental, sendo uma afronta ao amor-próprio desta civilização.
Nesse sentido, para Freud, a psicanálise, junto do descentramento do
planeta Terra evidenciado por Copérnico e da evolução das espécies
de Darwin, desmente a ilusão narcísica de que o ser humano é o
soberano de si mesmo. As perturbações, o sofrimento, os impulsos e
desejos desconhecidos, em geral, as situações nas quais “o eu se sente

32
mal” e se “depara com limites de seu poder em sua própria casa”, até
então conferidas a demônios, espíritos ou patologias, é explicitado, a
partir da psicanálise, como constituinte do próprio sujeito humano,
como advindos não da consciência ou do exercício da razão em seu
mal uso ou em sua ausência, mas de outra instância, desconhecida
pela razão, como efeitos do inconsciente (FREUD, 2010b, p. 184).
O sujeito que se confundia com o “eu” e que se predicava como
autônomo, autor de seus próprios atos e vontades, independente em
suas causas e motivações, racional quanto a seus desígnios, ciente dos
processos de sua “mente” e de seus pensamentos — em outras palavras,
o que se reconhece como o sujeito das filosofias modernas, do conheci-
mento e da razão —, descobre que “uma parte de sua própria psique
furtou-se ao seu conhecimento e ao domínio de sua vontade” e que o
“eu não é senhor em sua própria casa” (FREUD, 2010b, p. 184), mas sim
desconhece grande parte dos seus pensamentos e de suas vontades.
Neste desconhecimento, o sujeito moderno, chamado também
de eu, não está mais no centro de ação e no qual tudo vê, conhe-
ce e sabe, mas mostra-se como um sujeito ilusório que é construído
historicamente (seja prática, política ou filosoficamente), ensinado
e naturalizado em nossa concepção moderna de mundo, parecendo
que sempre foi e sempre será, contínuo, este suporte fixo de nosso co-
nhecimento e experiência.
Uma ilusão constitutiva, mas operante, da subjetividade moder-
na que exige uma nova ciência, pois é irredutível ao aparato concei-
tual e científico existente até então. Ainda mais se for lembrado que
a psicanálise não se restringe à teoria, mas que também elabora uma
clínica que lida com o inconsciente e suas formações e efeitos. Inclusi-
ve, como diz Freud, ainda no texto de 1917, “[a] psicologia, tal como
é ensinada entre nós, dá respostas muito pouco satisfatórias, quando
questionada acerca dos problemas da vida psíquica” (FREUD, 2010b
[1917], p. 180).
Assim, ao postular o inconsciente para localizar o sofrimento, os
atos falhos, os sonhos, os sintomas, os chistes, as lembranças encobri-
doras, Freud traz à consideração tudo aquilo que o projeto moderno

33
negligenciava em nome da razão, do fundamento de um conheci-
mento claro e distinto, seguro e puro. E ao trazer isso à tona, traz
também experiências, realidades e entidades que desmentem a auto-
nomia, o poder, o caráter ativo e independente do eu, mostrando, no-
vamente, sua alteridade, seu deslocamento quanto ao conhecimento
pleno, à identidade e transparência a si mesmo. Ou, como colocou
Foucault, com esse descentramento “ficou claro que o próprio homem,
interrogado sobre o que era, não podia explicar sua sexualidade e seu
inconsciente, as formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade
de suas ficções” (FOUCAULT, 2004, p.15) entre muitas outras dimen-
sões e partes de sua existência.
Foucault e Lacan, ao se empenharem em trocar o sinal da revo-
lução kantiana abandonando todo e qualquer “desenvolvimento uni-
linear”, recusando etapas ou sequências, priorizando o movimento de
dispersão para pensar em subjetividades (como chamamos acima a
alteridade do eu e o descentramento), não fazem psicologia ou sociolo-
gia na medida que recusam a tarefa moderna de encontrar um funda-
mento antropológico, uma instância fundadora, ou mesmo a fixação
de uma individualidade ou qualquer tipo de defesa de humanismos.7
Nas palavras de Lacan:

[...] hoje, como sempre, a palavra humanismo é um


saco no qual vão apodrecendo devagarinho, amon-
toados em cima uns dos outros, os cadáveres destes
surgimentos sucessivos de um ponto de vista revo-
lucionário sobre o homem. (LACAN, 1985, p. 262)

Indicando o perigo do sujeito tal como a filosofia via cons-


truindo e como este se tornou o que, no horizonte intelectual fran-
cês de sua época, convencionou-se a chamar humanismo, essa

7 Como veremos em detalhe com o seguir do texto, a arqueologia proposta por Foucault não é uma psicologia,
nem uma sociologia, pois ela não está ordenada para encontrar ali a expressão de uma individualidade ou de
uma sociedade para encontrar a instância do sujeito criador. O que se descreve na arqueologia são as práticas
discursivas que atravessam um dado campo. É uma reescritura dos discursos em sua exterioridade em que não
se pretende saber quem disse, mas o dito e as regras que subjazem o dito.

34
crença e confiança no ser humano como o sujeito (no sentido ati-
vo, consciente e de suporte) da história, dos saberes e das ações.
Um humanismo no qual decanta, se coaduna e infla as diversas
figuras do homem.

Assim, o psicanalista, na contramão, postula


um sujeito não como causa do conhecimento, da
elaboração dos saberes, senhor e consciente de todos
os seus sentimentos e ações, e sim como efeito de
uma montagem, uma ilusão que se instala depois e
não de início. Isso é explicitado por ele logo no início
de seu ensino quando, em 1936, elabora o texto
intitulado “O estádio do espelho como formador da
função do eu [sujeito] tal como nos é revelada na
experiência psicanalítica”.

Lacan, desde sua tese de doutoramento em psiquiatria — de


1932 e intitulada Da psicose paranóica e suas relações com a per-
sonalidade (ver LACAN, 1987) — já buscava falar do sujeito na
contramão do discurso médico e filosófico de sua época. Para isso,
colocava outras noções para pensar a personalidade (que virará,
em seu ensino, uma preocupação com o sujeito) que não as filosófi-
cas, antropológicas ou metafísicas, a saber, a biografia, a concepção
de si e as relações sociais. Estas articulavam uma teoria não de um
sujeito fixo, suporte, “por baixo” de todas as ações e acidentes, subs-
tancialista e individualizada, como queria não só a filosofia, mas
também a psiquiatria e a psicologia da época, mas de uma “gênese
social da personalidade” e da existência humana enquanto funda-
das no social, como um produto das relações empreendidas e não
como ponto de causa e partida.
Isto será mais bem formalizado quando, no texto de 1936,
Lacan descreve essa gênese relacional no encontro com o outro e
determinado, pautado por esse outro, e pelo desejo, uma instância
não computada pelo entendimento descrito pelos modernos, mas

35
que cinde o sujeito, mostrando seu caráter construído, contingente,
não fixo nem original. Isto costura-se com nosso percurso ao aten-
tarmos que, logo na abertura deste texto, Lacan diz que a função
do sujeito na experiência da psicanálise, se “opõe a qualquer filo-
sofia oriunda do Cogito.” (LACAN, 1998, p. 98), nome pelo qual
ficou conhecido o sujeito pensante de Descartes e que, ainda à
época de Lacan, era mobilizado pelo humanismo acima descrito
(ver SARTRE, 1984).
Opõe-se, pois, nesta visão construída e não fundante do sujeito,
Lacan descreve como a noção de sujeito que, por conta de seu “inaca-
bamento anatômico”, há “uma verdadeira prematuração específica
do nascimento no homem”. Este desenvolvimento não realizado, é vi-
vido posteriormente, na formação do indivíduo, fabricado “apanha-
do no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem
desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua
totalidade”. (LACAN, 1998, p. 100)
Ou seja, o sujeito se desenvolve no bebê não de maneira
inata ou natural, mas em sua relação com os outros ao seu redor,
com as imagens que o circundam e com uma certa identificação,
reconhecimento da imagem de seu corpo no espelho. Isto trará à
criança uma ilusão de um eu, de um ser, de um corpo completo o
qual ele é e o qual se diferencia de todo o mundo ao redor. Mas
no qual também se aliena, no qual tem o sentimento de um sujeito
uno, forte, ativo, mas que é desmentido por uma certa função de
desconhecimento que sempre o acompanha, dada a ficção que é
sua montagem (1998, p. 103) e pelo inconsciente, como visto aci-
ma com Freud e o texto de 1917.
No correr do ensino, Lacan manterá sua crítica ao sujeito da
filosofia indicando outra noção de sujeito, menos original e sem-
pre mais indicada como efeito, seja das imagens e das relações
identificatórias como neste primeiro momento, seja da fala e da
linguagem como se seguirá ao encontrar o estruturalismo francês,
outro grande desafiador da subjetividade.

36
4.1 O sujeito: menos como causa, mais como efeito

Reconstruída a questão e os problemas em torno das figuras da


subjetividade moderna, voltemos a Foucault em seu método de aná-
lise e crítica. Um de seus feitos em A Arqueologia do saber foi nos
oferecer recursos epistêmicos para nos livrarmos de uma dada forma
de pensar a história e os saberes que prima pelo discurso do contínuo
e faz da consciência humana ou do sujeito histórico um soberano em
que o tempo é concebido em termos de totalização, linearidade, sequ-
ência e agentes históricos. Recursos epistêmicos para nos livrarmos da
compreensão de história e dos saberes que se estruturam suportados
por um sujeito contínuo, fixo e imutável, ponto pacífico e ahistórico a
partir ou para o qual tudo se apresenta e se constrói.
Desde o século XVIII houve um empenho em salvar a sobe-
rania do sujeito individual como agente na produção e reprodução
da vida, ao mesmo tempo e justamente por isso, surge o empreendi-
mento contrário de desantropologização. A obra em questão é um
grande projeto de descentramento do sujeito, sem, no entanto, deixar
de tratar de questões que se referem ao humano, à consciência e à
origem do sujeito. Mas, trata de uma origem não como causa, como
era até então ao colocar o sujeito neste lugar, mas como condição de
possibilidade histórica, pois esses temas aparecem em um contexto
de desconfiança sobre a forma como cada um destes termos foram
sendo encadeados ao longo da história. O que Foucault faz é tratar
desses e de outros temas como acontecimentos dispersos, notando
recortes e agrupamentos, regras e esquemas institucionalizados, for-
mações e práticas discursivas que merecem ser analisadas umas ao
lado dos outras, tomando-as não como sustentadas por uma origem
ou fundamento comum, o sujeito, mas como unidades discursivas e
só por isso, já os dissolve.8
8 Dadas as referências que trouxemos acima para elucidar a questão e o problema da categoria sujeito para as diversas matrizes
conceituais ocidentais, é importante sublinhar aqui que o sujeito, no seguimento tardio do ensino lacaniano, também será to-
mado como efeito da linguagem, não como ponto de origem e enunciação da fala, por exemplo, mas como aquilo que sobra do
funcionamento independente da linguagem, não ligada a qualquer sujeito, consciência ou enunciador, mas que se fala. Sujeito
não apenas como efeito da linguagem, mas que emerge exatamente por essa linguagem não ser toda, um contínuo pleno, mas
falha. Cf. esquema da divisão, Seminário 10 (LACAN, aula 21/11/1962).

37
Na obra, o filósofo nos mostra que sem procurar pela origem
do discurso, mas procedendo uma arqueologia pode-se perceber suas
condições de possibilidade, seus momentos, formas prévias de conti-
nuidade e com isso é possível trabalhar com um campo de aconteci-
mentos discursivos que é sempre o conjunto limitado de enunciados.
Como afirma Foucault, a arqueologia descreve a constituição
do campo, uma espécie de rede de conceitos, espaço de possibilidade
de emergência dos discursos:

Empreguei o termo arqueologia para dizer o tipo de


análise que eu fazia estava deslocada não no tem-
po, mas no nível em que ela se situa. Meu problema
não é estudar a história das ideias em sua evolução,
mas, sobretudo ver debaixo das ideias como pude-
ram surgir tais ou tais objetos como objetos possíveis
de conhecimento (FOUCAULT, 2000, p. 320).

A descrição de acontecimentos do discurso possibilita que se


pergunte o que não é possível perguntar quando o sujeito é soberano
e agente racional que simplesmente expressa com a linguagem os
fatos. A pergunta “quem fala” ou “o que é o homem”, ou “quem é o
sujeito que fala?” é deslocada para “como se constituiu esse campo de
acontecimentos discursivos e não outro campo qualquer em seu lu-
gar?” ou “por que dizemos isso e não outros enunciados?”. Como o foco
não é o sujeito do discurso, mas o campo de acontecimentos discursi-
vos do qual o próprio “sujeito” é efeito, é falado, portanto, é possível
compreender os enunciados, determinar suas condições de existência,
fixar seus limites e sua extensão e por seu meio estabelecer o que não
cabe em um determinado campo, ou seja, tudo que ele exclui.
O resultado desta verdadeira revolução é que tudo que era to-
mado como natural, universal, dado, imediato não sobrevive a esse
processo. Realizar outras perguntas, descentradas do sujeito, nos leva
a desnaturalizar o sujeito, realocá-lo a seu lugar de efeito, de mais

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um efeito nessa rede discursiva. O que ainda se amplia se pensarmos
que com isso não apenas fazemos outras perguntas quanto ao sujeito,
mas inaugurando novas formas de pensar, de discursar e de encarar
os saberes e disciplinas, não mais pela origem ou causa, não mais
buscando ou partindo de um lugar fixo e contínuo, criando meta-
narrativas, mas pensando as condições do que há, como se construiu,
como se sustenta, entre outras perguntas.
Haverá, portanto, uma arqueologia das formações discursivas.
Entendendo por formação discursiva, um conjunto de regras anôni-
mas que “(...) determina uma regularidade própria de processos tem-
porais: coloca o princípio de articulação entre uma série de aconteci-
mentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações,
mutações e processos” (FOUCAULT, 2004, p. 83).
Com o conceito de formação discursiva, Foucault nos mostra
que os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo, for-
mam um conjunto e passam a se referir ao que posteriormente serão
a referência de um único e mesmo objeto, entendido até então como
o início e não o resultado. Neste sentido, podemos compreender o des-
centramento do sujeito, bem como de qualquer outra substância ou
objeto, dado que o que chamamos de sujeito nada mais é que uma
unidade discursiva que foi constituída pelo conjunto de enunciados
que nomeavam e recortavam, indicando a amplitude do projeto, que
não se restringe apenas à categoria sujeito ou homem, mas a todo um
esquema de compreensão e operação do mundo.
Ainda sobre a inexistência de qualquer ponto de origem unifi-
cador e estável, não há nada que justifique que esses enunciados esti-
vessem juntos, nenhuma força unificadora, a não ser o espaço discur-
sivo mesmo e as relações de poder. Isso significa dizer que os discursos
não se fundam na existência concreta da existência de um sujeito e
sim no próprio campo semântico que o instaurou e que depois será
usado para validar ou não ontologicamente o que é ou o que não é
o objeto de referência. A unidade do objeto, no caso o ‘sujeito’ é, pois,
resultado de um jogo de regras também discursivas.

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Isso posto, é permitido que concluamos com Foucault que a uni-
dade do discurso deve ser buscada junto aos próprios “objetos” e no
processo que antecede a nomeação. É na relação intencional que ca-
racteriza a própria prática discursiva que descobrimos um conjunto
de regras que são imanentes a tal prática e a circunscrevem como
singularidade. Os discursos não mais devem ser tratados como con-
juntos de signos, representando e comunicando coisas que já existem,
mas como práticas que constituem esferas de existência e de verdade,
logo, dos próprios objetos a que se referem.
Importante sublinhar, portanto, que o sujeito que aqui aparece
não é agente, mas efeito, é falado, aquilo que é somatória descontínua
de vários discursos. Isso não faz com que as figuras que representam
campos discursivos desapareçam simplesmente, a pergunta “quem
fala?” ou “quem tem o direito de falar” pode permanecer, porém ago-
ra deslocada, pois o sujeito do conhecimento desaparece, a “menta-
lidade” por trás do discurso desaparece no descentramento, mas não
desaparece a conjunção de subjetividades de poder que se fixam aqui
e ali como figuras, marcação de uma posição. O discurso está no es-
paço, nas regras de formação, mas alguém o articula, o exerce. Esse
processo não o faz desse alguém um sujeito, pelo contrário, no discurso
podemos buscar um campo de regularidade para diversas posições de
subjetividade. O discurso assim concebido é um amálgama em que se
podem marcar a dispersão do sujeito e sua descontinuidade consigo
mesmo. Esses conjuntos de regras são demasiado específicos, em cada
um destes domínios, para caracterizar uma formação discursiva sin-
gular e bem individualizada, sem sujeito, no entanto.

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Referências

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Sobre as autoras

Izabela Loner Santana


izabelalonersantana@gmail.com

Doutoranda em Filosofia na Universidade Estadual de Cam-


pinas. Mestra em Filosofia pela Universidade Federal do ABC,
Bacharela em Filosofia e em Ciências e Humanidades pela mes-
ma instituição. Membra do Grupo de Trabalho Filosofia e Psi-
canálise da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia
(ANPOF). Desenvolve pesquisas em Filosofia e Epistemologia
da Psicanálise e em Filosofia Francesa Contemporânea. Em sua
pesquisa atual, investiga as críticas de Jacques Lacan à filosofia
em seus Seminários dos anos 1960-1970, mobilizando temas como
linguagem, lógica e metafísica.

Suze Piza

suze.piza@ufabc.edu.br

É professora de Filosofia na UFABC. Faz parte dos programas


de Pós-Graduação em Filosofia, na linha de pesquisa de Ética e
Filosofia Política e no Programa de Economia política mundial na
linha de pesquisa de Conhecimento, produção e trabalho. É dou-
tora em Filosofia pela Unicamp onde foi pesquisadora de pós-dou-
torado e professora colaboradora no Departamento de Filosofia
(IFCH) UNICAMP entre 2015-2017.Tem diversos artigos e livros
publicados. Atua principalmente nos seguintes temas: produção
de pensamento filosófico e das ciências humanas, pensamento éti-
co-político latino-americano, africano e europeu, interfaces entre
Filosofia e Psicanálise e o instrumental analítico produzido por
Michel Foucault. É membro do NEAB - Núcleo de Estudos Africa-
nos e Afro-Brasileiros. Atualmente coordena o projeto de extensão
Produção e reprodução do conhecimento em Heliópolis-SP. É cura-
dora das coleções de Ciências Humanas na Editora ICL.

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