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SUZE PIZA
Título do Livro:
O que nos faz pensar? Volume 2: A questão do sujeito
Autoras:
Izabela Loner Santana
Suze Piza
Coordenação editorial:
Angelo Battistini Marques
Produção editorial:
Marielly Agatha Machado
Coordenação de Design Gráfico:
Eduardo Marinho Júnior
Diagramação:
Caique Felipe Serafim dos Santos
Capa:
Isabella Chiara
Conselho Editorial:
Jessé Souza, Eduardo Moreira, Gisele Cittadino,
Ladislau Dowbor, Lindener Pareto Jr., Rafael Donatiello,
Leonardo Boff, Marilena Chauí, Renato Janine Ribeiro,
Suze Piza e Angelo Battistini Marques.
© Editora Instituto Conhecimento Liberta, Vila Mariana, 2023
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser re-
produzida, transmitida ou arquivada, desde que levados em conta
os direitos do autor.
Bibliografia.
ISBN 978-65-85030-09-0
23-169943 CDD-100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Apresentação............................................................................................................................. 6
1. A noção de sujeito............................................................................................................7
2. Gênese e estrutura da ilusão antropológica kantiana....................15
3. Descentrar e desmontar o sujeito, uma tarefa histórica e vários
projetos teóricos................................................................................................................28
4. Sujeito Objeto....................................................................................................................32
Referências..................................................................................................................................41
Sobre as autoras................................................................................................................... 43
Apresentação
Suze Piza
6
1. A noção de sujeito
7
história da filosofia diversos tratamentos. Isto, pois, entendemos essa
questão não como algo restrito à produção teórica de um país ou
escola, mas como uma tarefa comum da filosofia ocidental e do ho-
rizonte intelectual modernos. Pois, assim como o sujeito surgiu no seio
destes em sua instauração, suas histórias se acompanham.
Ao ser uma noção intimamente ligada a uma época, a um pro-
jeto e suas consequências, ela pode, talvez, ser explicitado se tivermos
sempre em mente que o sentido da palavra “sujeito” é algo que está
na base ou por baixo, o alicerce ou o portador, ou ainda algo que
pode aparecer também como suporte ou substância de algo, inter-
pretado de maneira moderna como aquele ponto fixo que suportaria
e sustentaria seja a realidade, a experiência, os atributos ou até o
conhecimento. Dito de outra forma, o “sujeito” seria o suporte que sus-
tentaria a existência.
Sua formalização e justificação filosófico-teórica, que tentaremos
sintetizar neste texto, (im)postas pela filosofia moderna, foi assumida
por pensadores de áreas distintas do saber e em diversos aspectos, ob-
jetivos e visões de mundo divergentes, assim como, conforme veremos,
sua crítica. Se René Descartes, para muitos e para a narrativa histórica
que inventamos e reproduzimos da filosofia ocidental em seus feitos
e acontecimentos, inaugura o sujeito/indivíduo atomizado moderno,
separado do corpo e de seus sentidos enganosos, é com Immanuel Kant
que tal noção atinge seu ápice, pois o sujeito transcendental kantiano
passa a ser o grande protagonista de todas as esferas da vida. A cria-
ção dessa figura central deve-se a uma necessidade teórica do Ilumi-
nismo, mas funciona até hoje como uma espécie de recurso heurístico
para resolver questões que vão da política à educação, passando pela
neurociência. Quem conhece? Quem age? A resposta: o sujeito.
Buscando “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”,
Descartes, em suas Meditações metafísicas (publicada em 1641), mas
também em seu Discurso do método (publicado, primeiramente, em
1637), põe em dúvida, a partir do que ficou conhecido como “dúvida
metódica”, tudo o que poderia ser considerado fonte e garantia do
conhecimento, desde a própria existência das coisas até a maneira
8
como as acessamos e conhecemos, sejam as crenças, a imaginação e
as opiniões, as sensações ou até uma instância externa de garantia
da verdade e do mundo, no caso, Deus (DESCARTES, 1987b).
9
vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de
prudência nunca se fiar inteiramente em quem
já nos enganou uma vez (DESCARTES, 1987b,
primeira Meditação, §3).
(...)
(...)
10
Colocar esta fundamentação à sua filosofia e ao conhecimento
que ela almeja, faz tal filósofo valorar tudo como enganoso e passível
de erro, menos o sujeito, e este em uma concepção muito particular,
com características muito singulares, dado que é sujeito ao pensar.
Isto inaugura, ou pelo menos justifica, um novo momento na história
e abre filosoficamente uma época da subjetividade, um tempo da
imagem do homem, onde, apesar de todas as diferentes concepções
e definições, de modo geral, o que passa a ser o suporte seguro da
experiência, do conhecimento e da história e dos saberes (como ve-
remos com Foucault) é o sujeito pensante: sujeito-que-pensa, sujeito-
-pois-pensa. Tudo que se pode conceber e acessar tem, a partir daí,
como ponto de apoio ou “por baixo” o sujeito.
11
Assim, Kant elabora uma nova figura do
sujeito, o sujeito transcendental1. Essa figura recém
inventada no século XVIII tem a pretensão de acabar
com as ambições vazias da Metafísica de seu tempo,
ou aquela denominada por ele de pré-crítica, dado
que ao perder seu lastro com a realidade existente,
em sua concepção, empreendeu-se a discursar sobre
objetos impossíveis à constituição do ser humano,
indetermináveis à sua maneira e instrumentos
de conhecimento. Dito de outra forma, Kant luta
em seu tempo contra a pretensão de determinados
saberes conhecerem aquilo que não podem, como
é o caso da Metafísica. O sujeito que concebido por
Kant será aquele que tem em si todas as condições
de possibilidade de conhecer e, ao descrever como ele
conhece, é possível também indicar o que é possível
conhecer e o que só será possível pensar.
O limite, o freio, a crítica que faz Kant têm que ver com colocar
todos os fenômenos dentro de um campo de experiência possível. O
que escapa deste está fora do alcance humano, colocando limites às
ilusões da Metafísica.
Nas palavras do autor,
12
A razão, apesar de ter uma natureza que a impele a ultrapas-
sar os limites da experiência possível, deve ter assegurado até onde
é possível ir com segurança. Assim sendo, a tarefa que põe para sua
filosofia crítica é tentar “modificar o procedimento até hoje adotado na
metafísica, isso de tal modo que operemos uma verdadeira revolução
da mesma a partir do exemplo dos geômetras e dos pesquisadores da
natureza” (CRP, BXXII, grifo nosso). Pois, para ele, não há “nenhuma
investigação que seja mais importante, quanto à investigação da fa-
culdade a que chamamos entendimento e, ao mesmo tempo, quanto à
determinação das regras e limites de seu uso.” (CRP, AXVI, grifo nosso)
Assim, o sujeito transcendental entra como solução para a re-
alização desta crítica da razão que colocaria limites aos discursos
vazios — que “alargam o conhecimento humano para além de todos
os limites da experiência possível” (CRP, AXIV) —, no entanto, muito
poderosos de seu tempo. A razão teórica, especulativa e sem freios
atravancava o progresso para o melhor que, segundo o filósofo, os
humanos tenderiam.
É bem interessante observar como a arqueologia do moder-
no vai se desvelando nessa discussão, pois o que parece ser apenas
um tratamento de uma questão de teoria do conhecimento, vai se
apresentando aos poucos como antropologia e quando percebemos
estamos discutindo filosofia da história. Ou, como Kant defendeu em
sua obra O Conflito das Faculdades, que tipo de subjetividade pode
fazer com que a produção de conhecimento de uma época garanta
que o gênero humano progride para o melhor, questão atrelada aos
âmbitos político e científico do projeto moderno.
A solução kantiana de reposicionamento do sujeito no campo
da experiência vem da inspiração de uma inversão de perspec-
tiva, de uma inversão de posições e prioridades, Kant chamará
a figura de Copérnico e sua revolução como analogia para tal
movimento e com isso recriá-lo como protagonista das questões
primeiramente concernentes ao conhecimento e sua produção e
depois de outras esferas da existência. Passando, assim, dos objetos
que historicamente a filosofia tomou como distintivos de sua área
13
e conhecimento (Deus, alma e mundo), para um discurso filosófico
sobre o próprio conhecimento humano, suas condições de possibili-
dade, sua estrutura e seus limites.
A solução do problema, segundo Michel Foucault — outro fi-
lósofo que vai se filiar à tradição crítica, mas agora francês e do
século XX — criou outro problema, talvez até maior e mais difícil de
resolver do que as ilusões da Metafísica que ambicionava conhecer
o impossível. O filósofo francês defende que ao criar essa figura que
colocaria fim à chamada ilusão transcendental — i.e., a ideia de que
o sujeito pensante-cognoscente é tão poderoso a ponto de conhecer
científica e indubitavelmente todos os fenômenos, tudo o que se pode
pensar e que conhece as coisas em si mesmas, em sua existência real
e absoluta, tendo representações diretas do que há —, a filosofia kan-
tiana acabou sendo o início de uma outra grande ilusão, maior que
a anterior: a ilusão antropológica.
14
2. Gênese e estrutura da ilusão antropológica kantiana
15
profetas (sujeito, subjetividade, consciência, Eu, etc.)
será uma das tarefas de Foucault em sua obra.
16
isso na Lógica quando acrescentara à sua trilogia tra-
dicional uma última interrogação: as três questões crí-
ticas (que posso eu saber? que devo fazer? que me é
permitido esperar?) acham-se então reportadas a uma
quarta e postas, de certo modo, “à sua custa”: Was ist
der Mensch? (FOUCAULT, 2007, p. 471).
17
caracteriza a Filosofia moderna. A preocupação que
ela tem com o homem e que reivindica não só nos
seus discursos como ainda seu páthos, o cuidado com
que tenta defini-lo como ser vivo, indivíduo que tra-
balha ou sujeito falante, só para as boas almas assi-
naram o tempo de um reino humano que finalmente
retorna; trata-se de fato — o que é mais prosaico e
menos moral — de uma reduplicação empírico-crítica
pela qual se tenta fazer o homem da natureza, da
permuta ou do discurso como fundamento da própria
finitude. (FOUCAULT, 2007, p. 471)
18
Nas palavras de Foucault,
19
autonomia, independência e centralidade que até a
responsabilidade pela criação de si, da natureza e do
próprio mundo à sua volta é tarefa sua, nascendo a
típica figura do sujeito moderno. No entanto, menos
de dois séculos depois, ficará evidente na Filosofia
de Michel Foucault, que essa autonomia não se
realizaria, ou ao menos não se realizaria em sua
totalidade, pois a forma-sujeito seria extinta e as
condições de possibilidade da extinção já estavam
dadas no próprio período de sua constituição. E é na
explicitação dessa tese que veremos mais um dos
muitos usos que Foucault faz da filosofia kantiana.
20
O processo de desantropologização da história,
premissa básica de A Arqueologia do saber, se dá
não apenas na produção dessa obra, mas ao longo
de toda a obra de Foucault. Apesar da crítica à
razão antropológica, a problemática é o sujeito e,
sem dúvida, a formação da subjetividade ou dos
processos de subjetivação ou ainda o dos modos de
subjetivação. O sujeito para Foucault não é uma
substância e sim uma forma: forma-sujeito. E sua
Filosofia é a tematização dessa problemática (e suas
implicações) sem antropologizações.
21
também é pensar em aspectos desta constituição.
A meu ver, os mecanismos de objetivação e os me-
canismos de subjetivação concorrem, simultanea-
mente ou não, para os processos constitutivos do
indivíduo, cuja genealogia é o objeto dos trabalhos
de Foucault (FONSECA, 2007, p.24).
22
e elaborações específicas dos atos temporais. Tempo e espaço (his-
tóricos-concretos) em Foucault são as condições de possibilidade
concretas de formação desse indivíduo.
O século XVIII guarda uma revolução na forma de pensar,
o nascimento de outra forma de pensar: a já citada revolução
copernicana realizada por Kant, na qual desloca a questão do
“acesso” à realidade, pelo qual se procura resolver a possibilidade
de conhecimento a priori dos objetos por meio de uma submis-
são necessária do sujeito ao objeto, propondo a possibilidade do
conhecimento a partir de uma investigação sobre as faculdades
humanas do conhecimento. E afirma que é o sujeito quem legisla
e constitui o objeto, e é deste modo, em um estudo do sujeito, que
Kant funda o conhecimento humano. O sujeito forma o objeto, eis
a inversão proposta pelo filósofo.
23
Foucault se propõe a fazer uma crítica da razão
antropológica, uma crítica da razão humanista, essa
crítica se faz necessária considerando os equívocos
cometidos pelos historiadores, principalmente do
século XIX, que protegendo a soberania do sujeito
acabam por criar o construto de uma história
mundial que reduziria todas as formas de sociedade
à uma forma única, num dado sistema de valores
coerentes com um tipo específico de noção de
civilização. O projeto de uma crítica antropológica
torna-se possível quando Nietzsche denuncia que o
fundamento originário, cujo telos da humanidade
é a racionalidade, é uma farsa. A descentralização
operada por Nietzsche é reiterada quando a
psicanálise, a linguística, a etnologia, descentram o
sujeito. Mas, quem faz isso à maneira kantiana é
apenas Foucault.
Segundo o francês,
24
da História em que se tenta restituir ao homem tudo que nos últimos
séculos lhe escapa. Mas, não é uma restituição de direito. O exame
que aqui será realizado por ele é uma medição das mutações que
se operam, acontecem em geral no campo da História, a posição de
questionamento dos métodos e limites, empresa que pretende desfa-
zer as últimas sujeições antropológicas e as condições de possibilidade
de seu surgimento: o campo em que aparecem as questões do ser hu-
mano, da consciência e do sujeito.
Sua proposta é definir um método histórico-filosófico que seja
livre do tema antropológico, um método isento de qualquer antro-
pologismo (FOUCAULT, 2004, p.18). O filósofo sabe que os peri-
gos que tenta evitar fazem parte da própria natureza da empresa
a que se propõe.
Pretendendo dispensar o sujeito falante, livrar o discurso de
qualquer referência antropológica, ao descrevê-lo não o relaciona
a uma subjetividade e a intenção não era afirmar qualquer tipo de
discurso universal, ao contrário, trata-se de mostrar o discurso em
outro âmbito onde não se não se nega a História, contudo a mantém
em suspenso como a categoria geral e vazia da mudança para fazer
aparecer transformações de níveis diferentes. Há uma recusa de um
modelo uniforme de temporalização para descrever os discursos e
suas consequências diversas. É dessa forma que se delineia a crítica
da razão antropológica empreendida por Foucault.
Em meio a este empreendimento, algo curioso se instala na
conclusão da obra A Arqueologia do saber, ele apresenta a visão de
seus pares sobre seu pensamento, algumas críticas contundentes, mas
certamente pertinentes a um intelectual que está aberto ao diálogo.
Na leitura avaliativa (e lúcida) do pensamento foucaultiano, seus
“oponentes” afirmam que sua Filosofia cuidou de abandonar todos os
discursos que eram atribuídos a uma consciência, ou sujeitados a ela,
e resgatar algo perdido: a interrogação fundamental, a saber, per-
guntar pelas condições de possibilidade dessa razão que estabelece
uma série de “verdades” e as coloca dentro dos limites transcendentais.
25
Num dado momento do texto, Foucault afirma sobre a inter-
pretação que foi feita sobre seu pensamento que esta indicaria que:
26
evidenciar não um sujeito, nenhuma constituição transcendental sub-
jetiva, despojá-la do narcisismo antropológico (FOUCAULT, 2004, p.
227). Grande empreitada a de Foucault, fazer com a Antropologia o
que Kant fez com a arrogante metafísica e suas pretensões.
27
3. Descentrar e desmontar o sujeito, uma tarefa
histórica e vários projetos teóricos
28
E assim como Kant lançou mão da metáfora da revolução co-
pernicana para tirar a filosofia de seu sono dogmático, o psicanalista
francês Jacques Lacan, ao indicar a importância e a urgência da
tarefa desantropologizadora e anti-humanista para além dos muros
filosóficos, também mobiliza tal metáfora, agora para discursar sobre
a saída do sono antropológico no qual a modernidade se constituiu e
manteve.
O psicanalista, que preferia as aulas orais à escrita de livros e
tratados, no segundo ano do Seminário (datado de 1954-1955 e inti-
tulado O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, o que já
nos dá pistas quanto a sua relação ao nosso tema) que ministrou de
1953 até o ano de sua morte em 1981 à intelectualidade francesa, em-
prega o termo “revolução copernicana” para qualificar a intervenção
que seu campo (a psicanálise) pode operar na episteme moderna por
conta da descoberta de Sigmund Freud que ela sustenta, a saber, a
invenção do inconsciente. O uso da revolução de Copérnico, até então
usada como metáfora para criação de teorias sobre o sujeito, de co-
locação em centro deste, todavia, agora, será mobilizada no sentido
contrário, afinal é a perda do centro que será efetivada, o que ressoa
o realizado por Foucault como método n’A Arqueologia do saber.
Nas palavras de Lacan:
29
feitio do eu que começa numa data que podemos
situar ao redor dos meados do século XVI, início do
XVII. Mas estava no centro, na base. Com relação
a esta concepção, a descoberta freudiana tem exa-
tamente o mesmo sentido de descentramento que
aquele trazido pela descoberta de Copérnico. Ela se
expressa bastante bem na fulgurante fórmula de
Rimbaud — os poetas, que não sabem o que dizem,
corno é bem sabido, sempre dizem, no entanto, as
coisas antes dos outros — [Eu] é um outro. (LACAN,
1985, p. 14)
30
No curso de seu ensino, Lacan chegou a apontar para Descartes
como autor paradigmático da subjetividade ocidental, mas, assim
como Foucault, também tem em Kant como esta figura de organiza-
ção final e mais refinada da subjetividade modernidade, principal-
mente por conta de sua posição do sujeito quanto ao conhecimento,
diferenciado de seu objeto.
31
4. Sujeito Objeto
32
mal” e se “depara com limites de seu poder em sua própria casa”, até
então conferidas a demônios, espíritos ou patologias, é explicitado, a
partir da psicanálise, como constituinte do próprio sujeito humano,
como advindos não da consciência ou do exercício da razão em seu
mal uso ou em sua ausência, mas de outra instância, desconhecida
pela razão, como efeitos do inconsciente (FREUD, 2010b, p. 184).
O sujeito que se confundia com o “eu” e que se predicava como
autônomo, autor de seus próprios atos e vontades, independente em
suas causas e motivações, racional quanto a seus desígnios, ciente dos
processos de sua “mente” e de seus pensamentos — em outras palavras,
o que se reconhece como o sujeito das filosofias modernas, do conheci-
mento e da razão —, descobre que “uma parte de sua própria psique
furtou-se ao seu conhecimento e ao domínio de sua vontade” e que o
“eu não é senhor em sua própria casa” (FREUD, 2010b, p. 184), mas sim
desconhece grande parte dos seus pensamentos e de suas vontades.
Neste desconhecimento, o sujeito moderno, chamado também
de eu, não está mais no centro de ação e no qual tudo vê, conhe-
ce e sabe, mas mostra-se como um sujeito ilusório que é construído
historicamente (seja prática, política ou filosoficamente), ensinado
e naturalizado em nossa concepção moderna de mundo, parecendo
que sempre foi e sempre será, contínuo, este suporte fixo de nosso co-
nhecimento e experiência.
Uma ilusão constitutiva, mas operante, da subjetividade moder-
na que exige uma nova ciência, pois é irredutível ao aparato concei-
tual e científico existente até então. Ainda mais se for lembrado que
a psicanálise não se restringe à teoria, mas que também elabora uma
clínica que lida com o inconsciente e suas formações e efeitos. Inclusi-
ve, como diz Freud, ainda no texto de 1917, “[a] psicologia, tal como
é ensinada entre nós, dá respostas muito pouco satisfatórias, quando
questionada acerca dos problemas da vida psíquica” (FREUD, 2010b
[1917], p. 180).
Assim, ao postular o inconsciente para localizar o sofrimento, os
atos falhos, os sonhos, os sintomas, os chistes, as lembranças encobri-
doras, Freud traz à consideração tudo aquilo que o projeto moderno
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negligenciava em nome da razão, do fundamento de um conheci-
mento claro e distinto, seguro e puro. E ao trazer isso à tona, traz
também experiências, realidades e entidades que desmentem a auto-
nomia, o poder, o caráter ativo e independente do eu, mostrando, no-
vamente, sua alteridade, seu deslocamento quanto ao conhecimento
pleno, à identidade e transparência a si mesmo. Ou, como colocou
Foucault, com esse descentramento “ficou claro que o próprio homem,
interrogado sobre o que era, não podia explicar sua sexualidade e seu
inconsciente, as formas sistemáticas de sua língua ou a regularidade
de suas ficções” (FOUCAULT, 2004, p.15) entre muitas outras dimen-
sões e partes de sua existência.
Foucault e Lacan, ao se empenharem em trocar o sinal da revo-
lução kantiana abandonando todo e qualquer “desenvolvimento uni-
linear”, recusando etapas ou sequências, priorizando o movimento de
dispersão para pensar em subjetividades (como chamamos acima a
alteridade do eu e o descentramento), não fazem psicologia ou sociolo-
gia na medida que recusam a tarefa moderna de encontrar um funda-
mento antropológico, uma instância fundadora, ou mesmo a fixação
de uma individualidade ou qualquer tipo de defesa de humanismos.7
Nas palavras de Lacan:
7 Como veremos em detalhe com o seguir do texto, a arqueologia proposta por Foucault não é uma psicologia,
nem uma sociologia, pois ela não está ordenada para encontrar ali a expressão de uma individualidade ou de
uma sociedade para encontrar a instância do sujeito criador. O que se descreve na arqueologia são as práticas
discursivas que atravessam um dado campo. É uma reescritura dos discursos em sua exterioridade em que não
se pretende saber quem disse, mas o dito e as regras que subjazem o dito.
34
crença e confiança no ser humano como o sujeito (no sentido ati-
vo, consciente e de suporte) da história, dos saberes e das ações.
Um humanismo no qual decanta, se coaduna e infla as diversas
figuras do homem.
35
que cinde o sujeito, mostrando seu caráter construído, contingente,
não fixo nem original. Isto costura-se com nosso percurso ao aten-
tarmos que, logo na abertura deste texto, Lacan diz que a função
do sujeito na experiência da psicanálise, se “opõe a qualquer filo-
sofia oriunda do Cogito.” (LACAN, 1998, p. 98), nome pelo qual
ficou conhecido o sujeito pensante de Descartes e que, ainda à
época de Lacan, era mobilizado pelo humanismo acima descrito
(ver SARTRE, 1984).
Opõe-se, pois, nesta visão construída e não fundante do sujeito,
Lacan descreve como a noção de sujeito que, por conta de seu “inaca-
bamento anatômico”, há “uma verdadeira prematuração específica
do nascimento no homem”. Este desenvolvimento não realizado, é vi-
vido posteriormente, na formação do indivíduo, fabricado “apanha-
do no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem
desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua
totalidade”. (LACAN, 1998, p. 100)
Ou seja, o sujeito se desenvolve no bebê não de maneira
inata ou natural, mas em sua relação com os outros ao seu redor,
com as imagens que o circundam e com uma certa identificação,
reconhecimento da imagem de seu corpo no espelho. Isto trará à
criança uma ilusão de um eu, de um ser, de um corpo completo o
qual ele é e o qual se diferencia de todo o mundo ao redor. Mas
no qual também se aliena, no qual tem o sentimento de um sujeito
uno, forte, ativo, mas que é desmentido por uma certa função de
desconhecimento que sempre o acompanha, dada a ficção que é
sua montagem (1998, p. 103) e pelo inconsciente, como visto aci-
ma com Freud e o texto de 1917.
No correr do ensino, Lacan manterá sua crítica ao sujeito da
filosofia indicando outra noção de sujeito, menos original e sem-
pre mais indicada como efeito, seja das imagens e das relações
identificatórias como neste primeiro momento, seja da fala e da
linguagem como se seguirá ao encontrar o estruturalismo francês,
outro grande desafiador da subjetividade.
36
4.1 O sujeito: menos como causa, mais como efeito
37
Na obra, o filósofo nos mostra que sem procurar pela origem
do discurso, mas procedendo uma arqueologia pode-se perceber suas
condições de possibilidade, seus momentos, formas prévias de conti-
nuidade e com isso é possível trabalhar com um campo de aconteci-
mentos discursivos que é sempre o conjunto limitado de enunciados.
Como afirma Foucault, a arqueologia descreve a constituição
do campo, uma espécie de rede de conceitos, espaço de possibilidade
de emergência dos discursos:
38
um efeito nessa rede discursiva. O que ainda se amplia se pensarmos
que com isso não apenas fazemos outras perguntas quanto ao sujeito,
mas inaugurando novas formas de pensar, de discursar e de encarar
os saberes e disciplinas, não mais pela origem ou causa, não mais
buscando ou partindo de um lugar fixo e contínuo, criando meta-
narrativas, mas pensando as condições do que há, como se construiu,
como se sustenta, entre outras perguntas.
Haverá, portanto, uma arqueologia das formações discursivas.
Entendendo por formação discursiva, um conjunto de regras anôni-
mas que “(...) determina uma regularidade própria de processos tem-
porais: coloca o princípio de articulação entre uma série de aconteci-
mentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações,
mutações e processos” (FOUCAULT, 2004, p. 83).
Com o conceito de formação discursiva, Foucault nos mostra
que os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo, for-
mam um conjunto e passam a se referir ao que posteriormente serão
a referência de um único e mesmo objeto, entendido até então como
o início e não o resultado. Neste sentido, podemos compreender o des-
centramento do sujeito, bem como de qualquer outra substância ou
objeto, dado que o que chamamos de sujeito nada mais é que uma
unidade discursiva que foi constituída pelo conjunto de enunciados
que nomeavam e recortavam, indicando a amplitude do projeto, que
não se restringe apenas à categoria sujeito ou homem, mas a todo um
esquema de compreensão e operação do mundo.
Ainda sobre a inexistência de qualquer ponto de origem unifi-
cador e estável, não há nada que justifique que esses enunciados esti-
vessem juntos, nenhuma força unificadora, a não ser o espaço discur-
sivo mesmo e as relações de poder. Isso significa dizer que os discursos
não se fundam na existência concreta da existência de um sujeito e
sim no próprio campo semântico que o instaurou e que depois será
usado para validar ou não ontologicamente o que é ou o que não é
o objeto de referência. A unidade do objeto, no caso o ‘sujeito’ é, pois,
resultado de um jogo de regras também discursivas.
39
Isso posto, é permitido que concluamos com Foucault que a uni-
dade do discurso deve ser buscada junto aos próprios “objetos” e no
processo que antecede a nomeação. É na relação intencional que ca-
racteriza a própria prática discursiva que descobrimos um conjunto
de regras que são imanentes a tal prática e a circunscrevem como
singularidade. Os discursos não mais devem ser tratados como con-
juntos de signos, representando e comunicando coisas que já existem,
mas como práticas que constituem esferas de existência e de verdade,
logo, dos próprios objetos a que se referem.
Importante sublinhar, portanto, que o sujeito que aqui aparece
não é agente, mas efeito, é falado, aquilo que é somatória descontínua
de vários discursos. Isso não faz com que as figuras que representam
campos discursivos desapareçam simplesmente, a pergunta “quem
fala?” ou “quem tem o direito de falar” pode permanecer, porém ago-
ra deslocada, pois o sujeito do conhecimento desaparece, a “menta-
lidade” por trás do discurso desaparece no descentramento, mas não
desaparece a conjunção de subjetividades de poder que se fixam aqui
e ali como figuras, marcação de uma posição. O discurso está no es-
paço, nas regras de formação, mas alguém o articula, o exerce. Esse
processo não o faz desse alguém um sujeito, pelo contrário, no discurso
podemos buscar um campo de regularidade para diversas posições de
subjetividade. O discurso assim concebido é um amálgama em que se
podem marcar a dispersão do sujeito e sua descontinuidade consigo
mesmo. Esses conjuntos de regras são demasiado específicos, em cada
um destes domínios, para caracterizar uma formação discursiva sin-
gular e bem individualizada, sem sujeito, no entanto.
40
Referências
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos II, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
41
LACAN, Jacques. “O estádio do espelho como formador da função do eu tal
como nos é revelada na experiência psicanalítica”. Em: Escritos. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1998.
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Sobre as autoras
Suze Piza
suze.piza@ufabc.edu.br
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