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1 Raízes Filosóficas da Psicologia

Você sabia que, para compreendermos do que é composto o solo da psicologia,


precisaremos dar alguns passos para trás em busca da história da construção
científica? Esse percurso iniciará muito antes do que chamamos de ciência
propriamente dita, como concebida pela academia (campos de formação de
ensino superior e pós-graduações) na atualidade.
Essa história é extensa, e por ser longa, precisaremos realizar alguns recortes.
Infelizmente, não é possível apresentar todos os aspectos, autores, filósofos,
pensamentos e ideias que ajudaram a compor a narrativa histórica da psicologia.
As escolhas dos pensamentos que apresentaremos sempre está circunscrita a
partir do olhar daquele que conta a história. Basta você pensar que, ao contar
uma história, você sempre escolherá o que enfatizará.
Dito isso, fica assinalado que toda e qualquer construção escrita sobre alguma
área da ciência será sempre limitada, porque haverá recortes. Portanto, todos/as
aqueles que se dedicam ao estudo de alguma área do conhecimento, como
você, estudante de psicologia, necessitarão ler, ouvir e estudar diversos autores
contando a “mesma história”. Apesar de ser a “mesma história”, serão dadas
ênfases distintas, a depender do horizonte científico daquele que escreve.
Comentadas as considerações iniciais sobre o limite da escrita, agora chegou a
hora de você aprender sobre as bases filosóficas da psicologia. Você
conhecerá alguns dos pré-socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles.
Apresentarei também um pouco da história da idade média e depois entraremos
na história da idade moderna, o nascimento da ciência e o modo como a filosofia
influencia as nossas concepções sobre corpo e mente, bem como inato e
adquirido. Após essa história inicial, pensaremos juntos sobre a natureza e os
limites da psicologia.
É importante ressaltar que os filósofos não estavam pensando na constituição
da psicologia, eles estavam filosofando. Mas hoje percebemos o quanto as ideias
filosóficas, de algum modo, atravessam a psicologia que nascerá, enquanto
ciência, no século XIX.

1.1 Pré-Socráticos e Sócrates


Os primeiros filósofos da nossa cultura ocidental, que iniciaram o processo de
sistematização do conhecimento, surgiram por volta dos séculos VII-VI a.C.
Esses filósofos, chamados de pré-socráticos (porque vieram antes de Sócrates),
buscavam compreender a origem do cosmo: constituição, princípios e leis. Esse
período ficou conhecido como cosmológico. Cada pré-socrático, a partir dos
seus estudos e observações, indicava a essência, o princípio, a origem
cosmológica da natureza. Ou seja, eles buscavam explicar a arché (essência,
origem) da physis (natureza) (CASERTANO, 2011).
Clique abaixo e acompanhe algumas ideias dos pré-socráticos.
Tales de Mileto

Parmênides

Heráclito
Parmênides (520-440 a.C.), ao contrário dos filósofos daquela época, não acreditava que
a arché fosse algum elemento da natureza. Para ele, os elementos naturais são mutáveis,
e a essência não poderia ser mutável. Logo, ele assegura que o Ser seria o princípio, a
essência. O Ser aqui não é visível na aparência. Porque tudo que aparece é passível de
mudanças. O Ser faz parte de um universo que não pressupõe mutabilidade
(CASERTANO, 2011).
Houve muitos outros pré-socráticos, vinte são mencionados por Osborne (2012).
Contudo, optamos por apresentar três do mais mencionados. Apresentamo-los
para que fosse possível você compreender como as perguntas filosóficas sobre
a natureza e o ser já estavam postas 600 anos antes da era cristã.
Por falar em questões do Ser, Sócrates foi aquele que abandou as questões
sobre a natureza e se concentrou eminentemente nos problemas do ser humano.
Suas questões centrais eram: o que é o bem, a virtude e a justiça. Sócrates, filho
de mãe parteira, desenvolveu um método que ficou conhecido como maiêutico
(arte de trazer à luz, partejar). Esse método foi utilizado por Sócrates nos
encontros que ele realizava nas praças públicas. Os diálogos críticos realizados
por ele poderiam ser divididos em dois momentos: refutação e ironia (etapa em
que o filósofo enfatizava as contradições na resposta dada pelos interlocutores
às suas perguntas); a maiêutica era a etapa em que Sócrates construía questões
para que os interlocutores pudessem reconstruir as ideias anteriormente
refutadas (COTRIM; FERNANDES, 2016).

1.2 Platão e Aristóteles


Enquanto os pré-socráticos conflitavam entre si sobre a mutabilidade ou
imutabilidade da essência da natureza, Platão indicou uma solução que
comporta as duas dimensões. Para Platão, há algo que não muda, que
permanece. Esse algo estaria no mundo inteligível, ou seja, plano das ideias.
As ideias seriam fixas, imutáveis e, portanto, a essência de tudo o que existe.
Portanto, a verdade, por ser imutável e fixa, só poderia estar no mundo inteligível,
na transcendência. Partindo desse pressuposto, a verdade não se manifesta na
dimensão visível, aparente (COTRIM; FERNANDES, 2016).
O mundo sensível, por sua vez, seria mutável. É uma cópia imperfeita do que
existe no mundo inteligível e foi criado pelo demiurgo (espécie de deus
“artesão”). O mundo sensível é cheio de impressões e essa reprodução não
comporta a essência da verdade, apenas espelha uma parte do ser e não o que
ele é de verdade (COTRIM; FERNANDES, 2016).

Clique para abrir a imagem no tamanho original


Figura 1 - Mundo inteligível e mundo sensívelFonte: Elaborado pela autora, 2020

#PraCegoVer: A imagem mostra um esquema contendo características do


mundo inteligível e do mundo sensível.

Mas, então, como nós humanos, vivendo no mundo sensível, conheceríamos as


verdades eternas e imutáveis? Para Platão, para se chegar ao conhecimento da
verdade, é necessário realizar o exercício da razão. Nesse sentido, só se atinge
um conhecimento verdadeiro quando se submete as impressões ao raciocínio.
Apenas os seres humanos têm a capacidade de realizar o exercício da razão,
pois, para esse filósofo, apesar de homens e animais possuírem impressões
sobre o mundo sensível, só o homem poderá formar conhecimento racional,
transcendendo as impressões (COTRIM; FERNANDES, 2016).
Além desse pensamento dual sobre o mundo, Platão também compreende o ser
humano numa dualidade, pois é composto por alma e corpo. A alma/mente é o
bem mais precioso do ser humano, enquanto o corpo é inferior. Essa dualidade
atravessará muito fortemente as compreensões da medicina que delineará os
modos de lidar com o corpo e com a mente, como veremos mais adiante
(COTRIM; FERNANDES, 2016).
Enquanto Platão acreditava que as impressões do mundo sensível geravam
distorções e não eram verdadeiras, Aristóteles defendia que o conhecimento
advém da observação da realidade. Esse conhecimento que nasce da
observação do real, do sensível, daquilo que é mutável, ficou conhecido como
método indutivo. Segundo Cotrim e Fernandes (2016, p. 228), para Aristóteles:
A finalidade da ciência deve ser a compreensão do universal, visando estabelecer
definições essenciais que possam ser utilizadas de modo generalizado. Desse modo, a
indução (operação mental que vai do particular ao geral) representa, para Aristóteles, o
processo intelectual básico de aquisição de conhecimento. É por meio do método
indutivo que o ser humano pode atingir conclusões científicas, conceituais, de âmbito
universal.
Partindo desse pressuposto, Aristóteles, contrapondo-se a Platão, defende
também que o mundo inteligível e sensível andariam juntos e constituiriam a
realidade, pois as coisas são o que são. Sendo o que são, para conhecê-las,
seria necessário partir do dado empírico, perceptível aos sentidos (COTRIM;
FERNANDES, 2016).
Esse filósofo, além de superar a cisão entre mundo sensível e inteligível,
ultrapassou também o dualismo entre corpo e mente. Aristóteles defende que
corpo e mente são indivisíveis. O filósofo também foi o primeiro a discutir
questões muito peculiares para a psicologia, como: “mente, sentidos, sensação,
memória, sono e insônia, geriatria, brevidade da vida, juventude e velhice, vida,
morte e respiração” (FREIRE, 2008, p. 38).

1.3 Idade Média


Talvez você esteja se perguntando o motivo de dedicarmos um espaço para falar
sobre a idade média. Muitas vezes escutamos alguns estudiosos descartando a
história desse tempo, pois ele está muito atrelado a Igreja Católica como
instituição social. O período é tido como séculos escuros, das trevas, visto que
o pensamento cristão exercia uma grande influência que norteava as
concepções dessa época. A idade média teve início com a ascensão do
cristianismo no ocidente. O Deus cristão (teocentrismo) passou a ocupar o centro
em todas as esferas: arte, literatura, filosofia, educação, arquitetura e outros
(COTRIM; FERNANDES, 2016).
Nesse período, defendia-se que:
Toda investigação filosófica ou científica não poderia, de algum modo, contrariar as
verdades estabelecidas pela fé católica. Em outras palavras, os filósofos não
precisavam mais se dedicar à busca da verdade, pois ela já teria sido revelada por Deus
aos seres humanos. Restava-lhes, apenas, demostrar racionalmente as verdades da fé
(COTRIM; FERNANDES, 2016, p. 241).
A filosofia medieval pode ser dividida em: padres apostólicos, apologistas,
patrística e escolástica. A patrística tem como principal representante Santo
Agostinho, que foi influenciado por algumas ideias da filosofia platônica.
A escolástica é representada por São Tomas de Aquino, que foi influenciado
por Aristóteles (COTRIM; FERNANDES, 2016).
As construções filosóficas desse período tinham como finalidade defender e
estruturar as verdades da fé católica. Não houve contributos para o pensamento
psicológico. Contudo, só conhecendo esse período conseguimos compreender
o renascimento, o iluminismo e o fervor que construiu a idade moderna e
constituiu a nova ciência e o racionalismo (COTRIM; FERNANDES, 2016).

1.4 Idade Moderna: renascimento e advento da


nova ciência
Após dez séculos de influência do pensamento cristão em todas as esferas
humanas, algumas alterações começaram a acontecer nesses âmbitos: nos
setores sociais, econômico, político, artístico. O movimento que contribuiu para
as alterações foi chamado de renascimento. Essa etapa propiciou o
desenvolvimento da mentalidade racionalista e o retorno do antropocentrismo,
onde o homem volta a ser o centro e não Deus (teocentrismo), como era na
Idade média.
Contudo, a Igreja não iria abrir mão tão facilmente de sua influência e algumas
obras de arte e cultura ainda reproduziam resquícios religiosos. Além disso,
nesse período a inquisição da Instituição Católica perseguiu aqueles que se
contrapunham ao pensamento defendido por ela. Uma das mudanças essenciais
foi o heliocentrismo que, diferente do catolicismo, defendia que o sol e não a
terra era o centro do universo. Cotrim e Fernandes (2016, p. 256) indicam que:
Ao propiciar a expansão de uma mentalidade racionalista, o renascimento criou as
bases conceituais e de valores que favoreceriam o desenvolvimento da ciência no
século XVII. revelando maior disposição para investigar os problemas do mundo, o
indivíduo moderno aguçou seu espírito de observação sobre a natureza, dedicou mais
tempo à pesquisa e às experimentações, abriu a mente ao livre exame do mundo.
Foram as bases conceituais, fundadas nessa virada histórica, que começaram a
oferecer fundamentos para a criação e fundamentação das ciências que
aconteceriam posteriormente. Nessa época, a psicologia era essencialmente
filosófica, mas essas fundamentações também iriam oferecer as bases
necessárias para que a psicologia fosse alçada ao status de ciência nos séculos
posteriores (FREIRE, 2008).

1.5 Constituição da ciência moderna


As rupturas vividas entre a idade média e moderna geraram uma certa
desorientação. Fazia-se necessário criar bases sólidas para o conhecimento e
novos conceitos de verdade, visto que as bases fundadas no pensamento cristão
tinham sido postas em xeque. Segundo Cotrim e Fernandes (2016, p. 259),
A ruptura com toda a autoridade preestabelecida de conhecimento fez com que os
pensadores modernos buscassem uma base segura, algo que garantisse a verdade de
um raciocínio. Assim, um dos principais problemas da filosofia nesse período relacionou-
se com o processo de entendimento humano e, mais especificamente, com a seguinte
questão: Que garantia posso ter de que um pensamento é verdadeiro? Procurava-se,
portanto, um método.
Iniciou-se uma busca frenética pelo método para se chegar à verdade. Na busca
pelo método do conhecimento, novas concepções de homem e de mundo foram
sendo construídas pelos pensadores da época. A filosofia, debruçada no
compromisso do conhecimento, adota novas linguagens em que o humano
passa a ser valorizado como um ser racional. O racionalismo teve o seu triunfo,
e a base científica passou a ser: observação, experimentação e formulação de
hipótese. É importante destacar que cada filósofo construiu distintamente os
seus métodos e concepções e deu ênfases distintas também.
Francis Bacon foi um empirista que, contrário ao racionalismo da época,
enfatizou o papel das experiências sensíveis no processo de conhecimento.
Para ele, a razão só teria sentido se aplicada à experiência, e não o contrário.
Na sua obra Novum Organum, mostrou a importância de um método de
experimentação que reduzisse os equívocos tanto do intelecto quanto da pura
experiência, aliando o melhor de ambos para a aquisição dos conhecimentos
científicos. Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas,
as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da filosofia
propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano (COTRIM;
FERNANDES, 2016; FREIRE, 2008).
No que concerne à ciência, ele indicou que esta deveria valorizar a pesquisa
experimental, e defendeu o método indutivo. No seu método, Bacon indica que
são necessárias as seguintes etapas:

Em contraposição ao método experimental de Bacon, René Descartes construiu


um método em que desconfia das percepções e sensações, sendo
radicalmente racionalista. A rigorosidade do seu método indica que é
necessário duvidar de tudo, até reconhecer como indubitável a própria
existência. Para o filósofo, a única verdade livre de qualquer dúvida seria o fato
da existência. Sua famosa frase “Penso, logo existo” assegura que, pensando,
ele constatou que sua existência é verdadeira (COTRIM; FERNANDES, 2016).
O modo de pensar de Descartes também estabeleceu e reforçou a perspectiva
dualista iniciada em Platão. Após aplicar o seu método, da dúvida metódica,
René Descartes concluiu que existem duas substâncias distintas:
a substância pensante (res cogitans) e a substância extensa (res extensa). A
substância pensante corresponde à esfera da consciência, e a substância
extensa, ao mundo corpóreo e material (COTRIM; FERNANDES, 2016).
Sobre o método de Descartes, ele consiste em estabelecer uma dúvida
metódica. Nesse método, o questionamento rigoroso é o fundamento do
pensamento filosófico. Ele se constitui por quatro passos. Clique abaixo para
conhecê-los.
Regra da evidência: Só aceitar algo verdadeiro se for claro e evidente.

Regra da análise: Decompor o problema em elementos mais simples ou


últimos.

Regra da síntese: Orienta ir dos objetos mais simples aos mais complexos.
Regra da enumeração: Verificar para obter absoluta segurança de que nenhum
aspecto do problema foi omitido (COTRIM; FERNANDES, 2016).
No século XVIII, a fundação do positivismo fortaleceu a ciência que se baseia
nos fatos e nas experiências. Um dos principais representantes dessa
perspectiva é o filósofo Augusto Comte. O entusiasmo positivista foi um reflexo
do espírito da época e do entusiasmo da burguesia, capitalismo e do
desenvolvimento técnico-industrial. Sobre o objetivo e as características do
positivismo, Cotrim e Fernandes (2016) resumem:
De acordo com Comte, o método positivo de investigação tem por objetivo a pesquisa
das leis gerais que regem os fenômenos naturais. Assim, o positivismo diferencia-se do
empirismo puro porque não reduz o conhecimento científico apenas aos fatos
observados. É na elaboração de leis gerais que reside o grande ideal das ciências. com
base nessas leis, o ser humano seria capaz de prever os fenômenos naturais, podendo
agir sobre a realidade (COTRIM; FERNANDES, 2016, p. 291).
Controle, previsibilidade e generalização são as marcas do pensamento
positivista, que posteriormente influenciará, direta ou indiretamente, na
constituição das ciências. O espírito científico buscará consolidar métodos
científicos que assegurem esse tripé.
Após apresentar o pensamento de alguns filósofos, importa destacar que muitos
outros pensadores atravessaram a história da filosofia e da construção da
ciência. Todavia, fica inviável apresentar todos aqui e/ou se delongar nas ideias
dos que foram apresentados. Optamos por apresentar alguns que julgamos
importantes, na certeza de que existem outros e que você, estudante da área
psicológica, mergulhará em outros textos que enfatizarão outros pensadores.
Nos tópicos seguintes, retomaremos alguns desses filósofos e acrescentaremos
outros, com vias a discutir sobre a influência da filosofia na constituição da
ciência psicológica.

Vimos que os pré-socráticos tinham como problema a ser investigado o


princípio fundamental, a arché do cosmos. Já na idade moderna, o maior
objetivo dos filósofos era definir o método de chegar ao conhecimento. A
centralidade da idade moderna é a busca pelo método científico. É importante
saber as distinções e objetivos de cada período.

2 Dicotomia Mente e Corpo:


influências filosóficas e
ressonâncias na psicologia
O mundo ficou dual desde que Platão o separou. Essa perspectiva dualista foi
retomada em alguns momentos na história da filosofia, sobretudo com René
Descartes no século XVI. Para Descartes, a substância pensante corresponde
à mente, à consciência, enquanto a substância extensa corresponde à matéria
corporal (COTRIM; FERNANDES, 2016).
Essa cisão entre mente e corpo estabeleceu um longo debate nos tratados
filosóficos. O dualismo, defendido por alguns, era negado por outros. Caso
partisse da premissa de que haveria essas duas realidades, distintas, uma
questão se colocava: como mente e corpo poderiam interagir? (SCHULTZ;
SCHULTZ, 2009).
Antes de Descarte, acreditava-se que a interação entre essas duas substâncias
se dava de forma unilateral. Ou seja, a mente que comandava o corpo. Todavia,
Descartes, apesar de considerar substâncias distintas, defendia a mútua
interação entre elas, e não a unilateralidade (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009).
Conforme retomam Schultz e Schultz (2009, p. 36): “Descartes afirma que a
mente e o corpo, embora distintos, são capazes de interagir dentro do organismo
humano. A mente é capaz de exercer influência sobre o corpo do mesmo modo
que esse pode influenciar a mente”.
Sobre a natureza do corpo,
Na visão de Descartes, o corpo é composto de matéria física, portanto tem
características comuns a qualquer matéria, ou seja, possui tamanho capacidade motora.
Sendo uma matéria, as leis da física e da mecânica que regem o movimento e a ação
do universo físico aplicam-se também a ele. Logo, o corpo é semelhante a uma máquina
cuja operação pode ser explicada pelas leis da mecânica que governa o movimento dos
objetos no espaço. Seguindo esse raciocínio, Descartes prosseguiu com a explicação
do funcionamento fisiológico do corpo com base na física. Descartes foi claramente
influenciado pelo espírito mecanicista da época, refletido nos relógios mecânicos e nos
robôs (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, p. 36).
Fazendo referências ao mecanismo dos robôs, Descartes defende que há
reações do corpo que são reflexos dos movimentos externos e não
necessariamente uma vontade da mente. Por essa constatação, por vezes o
pensador é “definido como o autor da teoria do ato de reflexo. Essa teoria é a
precursora da moderna psicologia behaviorista de estímulo-resposta”
(SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, p. 36). Ainda nesse sentido, “o comportamento
reflexo não envolve pensamento nem processo cognitivo: parece ser
completamente mecânico ou automático” (SCHULTZ; SCHULTZ, p.36).
Enquanto o corpo é visto como uma máquina, a mente “não apresenta nenhuma
das propriedades da matéria, no entanto possui a capacidade de pensamento,
característica que a separa do mundo material ou físico” (SCHULTZ; SCHULTZ,
p. 38). Na interação entre corpo-mente, segundo o filósofo, o ponto central das
funções da mente é o cérebro, mais especificamente a glândula
pineal ou conarium. Os movimentos físicos e mentais influenciam um e o outro
mutualmente a partir desse ponto central.
Essas discussões sobre mente e corpo irão, posteriormente, no século
XIX, influenciar a medicina, inclusive a psicologia. A visão dualista
reverberou no modo de se compreender saúde e doença, bem como suas
possíveis associações com a mente e o corpo.
Travou-se uma discussão na medicina sobre o caráter de adoecimento do corpo,
se este tinha como causa fatores endógenos ou exógenos. Desde o século XV,
os médicos Galeno e Paracelsus tinham visões distintas. Para o primeiro, a
doença tinha causas endógenas, “estaria dentro do próprio homem, em sua
constituição física ou em hábitos de vida que levassem ao desequilíbrio”
(CASTRO; ANDRADE; MULLER, 2006, p. 40). Já para o médico Paracelsus:
As doenças eram provocadas por agentes externos ao organismo. Ele propôs a cura
pelos semelhantes , baseada no princípio de que, se os processos que ocorrem no
corpo são químicos, os melhores remédios para expulsar a doença seriam também
químicos, e passou então a administrar aos doentes pequenas doses de minerais e
metais (CASTRO; ANDRADE; MULLER, 2006, p. 40).
Nos séculos seguintes, essas discussões chegaram a outras áreas da medicina,
inclusive da psicanálise e psicologia. Na psicanálise freudiana, o determinismo
psíquico reforçou “a importância dos aspectos internos do homem” (CASTRO;
ANDRADE; MULLER, 2016, p. 40). Essa ideia foi reforçada pelo psicanalista
Groddeck com a sua obra “Determinação psíquica e tratamento psicanalítico das
afecções orgânicas” (CASTRO; ANDRADE; MULLER, 2016, p. 40). A
supremacia da mente sobre o corpo foi reforçada pela psicanálise, enquanto no
campo médico havia uma supremacia de cuidado com o corpo.
Apesar desse dualismo reverberar nas práticas psicológicas e médicas
contemporâneas, estudos atuais indicam a perspectiva holística como uma
saída para a cisão entre corpo e mente. Na postura holística, corpo e mente são
inseparáveis e interdependentes em aspectos psíquicos e biológicos (CASTRO;
ANDRADE; MULLER, 2016, p. 40).
Segundo Castro, Andrade e Muller (2006, p. 41):
Com o desenvolvimento das neurociências o conceito dualístico tornou-se mais difícil
de ser aceito. Por exemplo, o sistema nervoso autônomo não é tão autônomo assim e
se encontra regulado pelas estruturas límbicas junto com o controle emocional. O
sistema imune influencia e é influenciado pelo cérebro (URSIN, 2000). O campo de
estudo da psiconeuroimunologia tem suas origens no pensamento psicossomático e
tem evoluído no sentido da realização de investigações de complexas interações entre
a psique e os sistemas nervoso, imune e endócrino.
Mais ampla do que as discussões das neurociências e da postura holística, a
concepção de doença sociossomática amplia a inter-relação entre corpo,
mente, ambiente e meio social. Nesse sentido, a medicina e a atuação
psicológica, influenciada pela postura psicossomática, sociossomática e
holística, atuam de forma a considerar a multicausalidade dos aspectos da saúde
e da doença.

Assista aí
A Organização Mundial da Saúde, desde o ano de 1947 define que a saúde é
um estado que articula o bem-estar físico, mental e social. Hoje, muitos
pesquisadores acrescentam as dimensões espirituais e culturais, sendo saúde,
então, um bem estar biopsicossocial-espiritual e cultural, e não apenas
ausência de enfermidades biológicas.

3 Discussões sobre inato e


adquirido no ser humano
Assim como as discussões de corpo e mente perduraram e perduram até hoje
na filosofia e na ciência, as questões concernentes ao que é inato e o que é
adquirido pelo ser humano ao longo da existência também se estendem pelos
séculos.
Descartes, expoente do racionalismo moderno, tratou as ideias como inatas. Ou
seja, as ideias nasceram com o sujeito pensante. Em contraponto ao
pensamento de Descartes, Jonh Lock, segundo Cotrim e Fernandes (2016),
defendeu que não existem ideias inatas; ao contrário, quando o ser humano
nasce, nossa mente é como uma tábula rasa. No nascimento, nossa mente é
como um papel em branco e, a partir das experiências vividas no mundo,
inscrevem-se nossos conhecimentos. Para adquirir conhecimento, Lock indica
as ideias de sensação e de reflexão (COTRIM; FERNANDES, 2016). Veja suas
definições clicando abaixo.


O pensamento de Jonh Lock se associa ao pensamento de mente vazia indicada
séculos atrás por Aristóteles (FREIRE, 2008). Freire (2008, p. 61), sobre o
pensamento de Lock, resume:
As sensações, imagens e ideias formam o conteúdo da mente. São adquiridas através
das impressões sensoriais, tanto do mundo externo como no interno e são obtidas
através da percepção, que já é um processo psicológico. A percepção sensorial
consciente constitui, portanto, a base do conhecimento e recebe, quase que
passivamente, a influência de estímulos externos. Na escala da aquisição do
conhecimento, distinguem se dois elementos básicos: a sensação e a percepção. As
ideias que resultam desse processo podem ser simples quando se originam de um ou
mais sentidos ou da combinação deles com a reflexão (a ideia de comprimento). a ideia
de substância composta porque não se origina de nenhum sentido, mas da combinação
de várias ideias simples.
As ideias do filósofo Lock, empirista, são claramente distintas das ideias inatas
de Platão e Descartes. Por esse motivo, podemos considerá-lo como “o
precursor do estruturalismo psicológico do século XX” (FREIRE, 2008, p. 62).
Além das discussões filosóficas sobre o modo que o conhecimento é dado à
mente humana (se inatos ou adquiridos), existe uma outra linha a ser estudada
e investigada, que diz respeito a condições comportamentais, se essas são
genéticas ou apreendidas na relação com o ambiente. Clique abaixo e
acompanhe duas tendências alinhadas com esse pensamento.

Ambientalismo-
empirismo

Nativismo

Discutir sobre essas perspectivas é de extrema importância para a psicologia, a


fim de compreender as perspectivas psicológicas que têm mais inclinação para
a linha ambientalista e/ou nativista. Essas noções básicas fundamentarão
práticas e intervenções frente ao comportamento humano.

4 Natureza e limites da psicologia


Você já ouviu alguma dessas frases? “Eu sou a psicóloga na família”; “Sou o
psicólogo dos amigos”; “Sou professora e psicóloga dos meus alunos”.
Provavelmente sim, pois é frequente as pessoas fazerem menção à Psicologia
quando realizam alguma atividade de escuta, conselho ou persuasão. Essas
frases são resquícios da popularização dos termos psicológicos no senso
comum, assim como as palavras empatia, recalque, projeção e outras.
Primeiramente, vamos definir o que é senso comum. Ele é o conhecimento
cotidiano construído pelas pessoas num cenário de realidade. Não passa pelo
crivo da ciência e não é submetido a um método filosófico ou de pesquisa. O
conhecimento advindo do senso comum é passado de tradição para tradição, e
é assimilado por cada homem e mulher na lida com a vida cotidiana. Segundo
Bock, Furtado e Teixeira (2008, p. 18):
Esse conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por
se apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros
setores do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros saberes, muito
mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma
determinada visão-de-mundo. O que estamos querendo mostrar a você é que o senso
comum integra, de um modo precário (mas esse é o seu modo), o conhecimento
humano. É claro que isso não ocorre muito rapidamente. Leva certo tempo para o
conhecimento mais sofisticado e especializado seja absorvido pelo senso comum, e
nunca o é totalmente. Quando utilizamos termos como “rapaz complexado”, “menina
histérica”, “ficar neurótico”, estamos usando termos definidos pela Psicologia científica.
Não nos preocupamos em definir as palavras usadas e nem por isso deixamos de ser
entendidos pelo outro. Podemos até estar muito próximo do conceito científico, mas, na
maioria das vezes, nem sabemos. Esses são exemplos da apropriação que o senso
comum faz da ciência.
Contudo, apesar dessas palavras e frases serem assimiladas no senso comum
e no cotidiano das pessoas, isso não faz delas psicólogos/as. Isso porque a
Psicologia é uma ciência. Mas então, o que é ciência? Essa não é uma pergunta
fácil de responder, pois como vimos na história da filosofia e da ciência as
compreensões sempre são plurais e não únicas. Existem vários caminhos
distintos para definir os problemas da ciência, como fazer ciência e
consequentemente o que é ciência.
Mas, numa perspectiva mais tradicional, ciência são os conhecimentos
submetidos a metodologias reconhecidas por filósofos e cientistas. Os métodos
científicos, que também são vários, indicam os caminhos de se obter
conhecimentos validados pela academia (centros de pesquisas). Não se faz
ciência com achismos, faz-se ciência com métodos específicos, com pesquisas,
com crivo científico. Poderíamos dizer, como comumente é assinalado, que
científicos são os conhecimentos construídos de maneira programada,
controlada e sistematizada (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2008). No entanto,
há métodos científicos que não pressupõem controle e previsibilidade, como são
as pesquisas de cunho social, fenomenológicas e cartográficas (DANIELA,
2016).
Outro aspecto comumente indicado é que todos os campos científicos têm
um objeto de estudo. A Sociologia tem como objeto de estudo os fenômenos
ligados à sociedade; a Economia, os componentes econômicos; a Astrologia, os
astros. Mas, e a psicologia? Qual o seu objeto de estudo? (BOCK; FURTADO;
TEIXEIRA, 2008).
Segundo Bock, Furtado e Teixeira (2008), desde os primórdios da Psicologia
enquanto ciência foi difícil definir um único objeto de seu estudo, dado que cada
perspectiva que surge enfatiza aspectos distintos do humano. No início da
Psicologia Científica, o foco esteve no comportamento com os behavioristas.
Os/as psicólogos/as de base analítica (psicanálise) dirão que é o inconsciente;
aqueles de perspectiva fenomenológica, os fenômenos; os socioconstrutivistas,
as interações sociais. Enfim, passaríamos anos e anos indicando os diferentes
objetos da Psicologia, visto que ela é uma ciência multifacetada. Um resumo
coerente poderia ser o indicado por Bock, Furtado e Teixeira (2008, p. 22):
Nossa matéria-prima, portanto, é o ser humano em todas as suas expressões, as
visíveis (o comportamento) e as invisíveis (os sentimentos), as singulares (porque
somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) - é o ser humano-
corpo, ser humano-pensamento, ser humano-afeto, ser humano-ação e tudo isso está
sintetizado no termo subjetividade.
A Psicologia é uma ciência multifacetada, em que cada linha teórica, cada
abordagem e cada perspectiva definirá suas concepções de homem, de mundo
e os seus métodos de ação. É diferente da medicina, em que as evidências
científicas indicarão a melhor ação para aquele paciente; na psicologia, os
profissionais lidam com a multiplicidade de teorias que indicam modos distintos
de lidar com o mesmo fenômeno. Mas como indica Figueiredo (2009), essas
perspectivas, embora distintas, não são arquipélagos avulsos e desconectados.
O campo da Psicologia enquanto ciência e profissão por vezes deixa os
profissionais e estudantes de psicologia atordoados na busca de uma unicidade.
Ou seja, na busca de uma prescrição única. O professor Luís Cláudio Figueiredo,
ao falar do campo psicológico como campo de dispersão, nos lembra que:
Os alunos, ao ingressarem no curso e entrando em contato com o currículo, podem
ficar, de início, com a expectativa de que várias disciplinas irão se organizar
harmonicamente, convergindo para uma meta comum, segundo uma concepção
compartilhada por todos os professores do que seja pensar e fazer psicologia
(FIGUEIREDO, 2009, p. 17).
Nesse sentido, ressaltamos que mesmo uma ciência, a psicologia, não se
organiza com um objeto único, mas com objetos, campos, nuances de estudo e
investigação. Cada professor/a, a partir de suas perspectivas teóricas, indicará
possíveis modos de lidar com os fenômenos advindos dos diversos campos de
atuação psicológica.
Indicar essa abertura e essa multiplicidade inerente ao campo psicológico não
autoriza os profissionais a resvalarem nos achismos do senso comum, no
dogmatismo ou no ecletismo. É necessário que as práticas profissionais estejam
subsidiadas pela abordagem (perspectiva de prática) escolhida.
Alguns profissionais e estudantes, perdidos na dispersão teórica e metodológica,
se encaminham para a prisão do senso comum “porque ela é a mais próxima e
envolvente” (FIGUEIREDO, 2009, p. 19). Outros, os dogmáticos, se agarram
em uma perspectiva teórica e fecham-se a ela como se essa fosse a única e
grande verdade. “Ensurdecem para tudo que possa contestá-la” (FIGUEIREDO,
2009, p. 18) e não ampliam os seus horizontes. Já os ecléticos:
[...] adotam indiscriminadamente todas as crenças, métodos, técnicas e instrumentos
disponíveis de acordo com a sua compreensão do que lhe parece necessário para
enfrentar unificadamente os desafios da prática (FIGUEIREDO, 2009, p. 18).
Nenhuma dessas alternativas é indicada, isso porque todas cerceiam a
possibilidade da construção psicológica ética e coerente. A alternativa é a busca
contínua pela elaboração de conhecimentos novos e a articulação das teorias
com a prática profissional. Trata-se de fundamentá-los em perspectivas de
prática (abordagens), articulá-los com a experiência cotidiana e sempre viva
do profissional e daqueles que buscam a psicologia. Não dá para juntar todas as
teorias psicológicas como se elas falassem a mesma coisa, mas também não é
possível fechar-se em uma teoria como se ela comportasse a única e mais
exímia verdade sobre o comportamento humano. Importa sim definir qual será a
sua abordagem e onde está circunscrita a sua visão de mundo. Mas a partir
desse eixo, é necessário estabelecer diálogos, abrir questões, interrogar as
indicações teóricas e metodológicas.
Faz-se importante, inclusive, abrir novas questões nas abordagens e visões
de mundo majoritárias na psicologia. As perspectivas cognitivo-comportamental,
psicanalíticas, humanistas (Abordagem Centrada na Pessoa, Gestalt Terapia) e
fenomenológicas (Daseinsanalyse) nasceram em realidades distintas
da realidade brasileira, com teóricos Europeus e Estadunidenses e em séculos
diferentes do que estamos vivendo. Não se trata de abandonar esses teóricos,
trata-se de assumir essas concepções de ser humano e de mundo, colocando
novas e coerentes questões para os nossos séculos e para o nosso povo
brasileiro (SILVA; DANIELA, 2019).

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