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CAPÍTULO

1 Crítica ao conceito
de consciência
Habilidades da BNCC:
M13CHS103 EM13CHS403 EM13CHS501
Estudaremos neste capítulo:

© Photothèque R. Magritte/AUTVIS, Brasil, 2021


Um outro olhar: a razão e a
consciência no espelho

Charles Darwin:
o evolucionismo e sua
consequência moral

As contribuições de Marx,
Nietzsche e Freud à questão
da consciência

O peregrino,
de René Magritte, 1966.
Óleo sobre sobre tela
de 91 cm 3 65,5 cm.

Observe a imagem de abertura deste capítulo e responda:


1. No século XX, após as promessas não cumpridas do Iluminismo, é o momento de a razão e a consciência humana
se examinarem no espelho e ver o que falhou. Que fatos históricos apontam essa necessidade?
2. O que significa dualismo e que argumento justifica sua presença no pensamento cartesiano?

Parece haver dois tipos muito distintos de coisas que acontecem no mundo: as coisas que pertencem à realida-
de física, que muitas pessoas podem observar de fora, e as coisas que pertencem à realidade mental, que cada um
de nós experimenta interna e individualmente. E isso é verdade não somente para os seres humanos: cachorros,
gatos, cavalos e pássaros parecem ser conscientes, e é provável que também os peixes, as formigas e os besouros.
Quem sabe onde isso acaba?
Nossa concepção geral do mundo será insuficiente até que possamos explicar de que modo os elementos físicos,
quando combinados da maneira certa, formam não apenas um organismo biológico funcional, mas também um
ser consciente. Se a própria consciência pudesse ser identificada com algum tipo de estado físico, estaria aberto o
caminho para uma teoria unificada da mente e do corpo e assim, talvez, para uma teoria unificada do universo. Mas
as razões contrárias a uma teoria puramente física da consciência são bastante fortes para nos fazer duvidar de que
seria possível uma teoria física da realidade total. A ciência física avançou deixando a mente de fora daquilo que
tenta explicar, mas pode ser que haja mais sobre o mundo do que a ciência física é capaz de entender.
NAGEL, Thomas. Uma breve introdução à Filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 36-37.

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Foco no tema

Filosofia
Um outro olhar: a razão e a consciência no espelho
O fim do século XIX é uma época de crise e de rupturas, uma consequência do ceticismo diante do fra-
casso dos movimentos revolucionários burgueses, do distanciamento dos ideais iluministas e do avanço do
Naturalismo na ciência e na literatura. O mundo moderno é, assim, marcado pela fragmentação das estrutu-
ras religiosas, políticas e culturais da tradição. Essa “crise” não consiste apenas em uma crise de sentido em
relação ao passado, mas também de sua forma moderna; isto é, consiste em uma crise contra a razão, contra
o Iluminismo, contra um modelo de racionalidade que se frustrou na tentativa de compreender o mundo.

O coração tem suas razões, que a razão não conhece: sabe-se isso em mil coisas.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

Em pleno século XVII, na euforia

Reprodução/Biblioteca e Museu dos Desenhos Animados da Universidade Estadual de Ohio,EUA


da constatação do universo infini-
to, a reflexão do filósofo holandês
Blaise Pascal (1623-1662) já alertava
sobre os possíveis rumos da visão an-
tropocêntrica, apoiada na crença da
racionalidade como critério de huma-
nização, consciência e superioridade
do ser humano. Alheia às preocupa-
ções como a de Pascal, essa concep-
ção avança e é utilizada para justificar
e fundamentar ações de dominação
sobre a natureza, sobre outros indiví-
duos e sobre culturas.
Fatos e ações humanas vivencia-
dos no processo histórico, como es-
cravidão, guerras, diferentes formas
de violência, desigualdade, explora-
ção, velhos e novos colonialismos,
como o sugerido na charge de Victor
Gillam, ilustram que esse humano, que se julga racional, é capaz de cometer as mais terríveis atrocidades A charge de Victor Gillam,
e justificá-las em nome da razão. Diante disso, a certeza e o otimismo em relação ao poder da razão de publicada em 1899 na revista
Judge de Nova York, retrata
conhecer e organizar o mundo se transformam em fonte de inquietações e reflexões sobre os limites o neocolonialismo na África
entre razão e consciência, que serão o objeto das indagações dos pensadores entre os séculos XIX e XX. e na Ásia no século XIX.
Representantes das nações
britânica e estadunidense
Afinal, o que é a consciência? Ser racional é ser consciente? Como a consciência se caracteri- carregam nas costas as nações
za? Qual é a sua função? Como é possível definir filosoficamente o estado mental consciente? colonizadas, que parecem
contentes e agradecidas
por serem retiradas de um
Sem a pretensão de aprofundar conceitos sobre um tema tão vasto e tão complexo como a consciência, caminho de ignorância, vícios,
são destacadas aqui algumas considerações a fim de orientar os estudos, mas que podem ser aprofunda- superstições, brutalidades e
canibalismo – algumas das
das caso haja interesse particular. Além de sua complexidade, esta escolha didática se dá também pelo fato palavras escritas nas pedras –,
de este ser um tema ainda cheio de lacunas, desde sua conceituação até suas características e funções. característico dos povos não
No âmbito filosófico, o debate sobre a consciência e os fenômenos mentais pode ser dividido em brancos, em direção
duas correntes: o monismo e o dualismo. Enquanto os monistas afirmam que tudo no mundo é físico e à civilização.
reduzem os fenômenos mentais a padrões objetivos (comportamento, cérebro, funcionamento), para os
dualistas, a realidade é separada entre fenômenos físicos e fenômenos mentais subjetivos.
O dualismo é uma concepção marcante desde o pensamento antigo, por exemplo, na distinção
mente/corpo, presente nas teorias de Platão e Aristóteles; no pensamento medieval, fundado em um viés
filosófico-religioso, sob a influência da filosofia da antiguidade; e no pensamento moderno, ganhando
novos desdobramentos com René Descartes (1596-1650).

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Esses desdobramentos se destacam no pensamento de Descartes ao colocar a mente no centro da
discussão sobre o conhecimento, impulsionando a reflexão filosófica sobre o tema. Em sua concepção,
o corpo e a alma (mente) são concebidos como duas substâncias totalmente distintas e que possuem
propriedades incompatíveis.
De acordo com o pensamento cartesiano, mente e corpo são diferentes: o corpo (matéria) é sempre
divisível, enquanto a mente (imaterial) é indivisível. Mas como entender esse pensamento quando se
imagina, por exemplo, a remoção do cérebro? Como explicar essa teoria sem o cérebro, uma vez que o
pensamento não se registra na mente?
Ao dividir o ser humano enquanto um ser composto por uma substância pensante (imaterial) e outra
extensa (matéria), o dualismo cartesiano prezou pela imaterialidade da alma. Assim, ao buscar uma
resposta ao problema da interação, isto é, como algo imaterial interage com algo material, Descartes deixa
a questão aberta. Embora o pensamento de Descartes tenha impulsionado os estudos posteriores sobre a
mente humana e a consciência, no dualismo cartesiano a separação mente/corpo confundiu e dificultou
a compreensão do lugar da mente na natureza.
Destaca-se no dualismo cartesiano, essa abertura deixada na busca por uma interação que, refutada
pela ciência, se desdobra em avanços sobre o tema nas épocas posteriores, sob a forma da indagação:
como ocorre a interação mente/corpo? É importante ressaltar que, no que se refere à teoria sobre o
problema mente/corpo, o dualismo cartesiano é, na verdade, apenas o princípio do problema.
Você vai estudar esses desdobramentos ao longo deste capítulo.

O Realismo e a ressignificação da cultura


Em fins do século XIX, o sucesso da Revolução Industrial e o surgimento das novas tecnologias,
como as máquinas a vapor, as locomotivas, as grandes cidades, o telégrafo e o telefone, encantavam a
todos, provocando um êxodo rural em busca do acesso a melhores condições de vida e às facilidades do
mundo “moderno”. No entanto, esses benefícios e o glamour trazidos pela industrialização encobriam
as longas jornadas diárias de trabalho, a exploração da mão de obra e os baixos salários pagos aos
trabalhadores, mostrando que o acesso à modernidade era privilégio de poucos. A conscientização
sobre essa realidade social, aos poucos, ganha a forma de movimentos sociais, como o socialismo e o
comunismo, organizados por trabalhadores na luta por seus direitos. No Brasil, essa época vê grandes
acontecimentos, como a abolição da escravidão e a queda da monarquia, dando novos rumos à história
do nosso povo e do nosso país.
Nesse contexto, a Arte se reinven-
Alamy/Fotoarena

ta em uma reação ao Romantismo e


ao Neoclassicismo, por meio de um
movimento artístico e literário sur-
gido nas últimas décadas do século
XIX na Europa, denominado Realismo,
que traduzia os anseios da pequena
burguesia em ascensão. Esse movi-
mento, que teve início na França e
difundiu-se pela Europa e por outros
continentes, retratava o mundo opos-
to ao da alta burguesia, inspirado em
cenas do cotidiano e na labuta diária
de trabalhadores, como na pintura de
Jean-François Millet. Pinturas como
essa traduzem esse momento por
meio de uma Arte engajada que bus-
ca uma verdade objetiva, reveladora
dos problemas sociais do seu tempo.

Colheita de trigo sarraceno no ver‹o, de


Jean-François Millet, 1868-1874. Óleo sobre
tela de 85,4 cm 3 111,1 cm. Museu de Belas
Artes de Boston, EUA.

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A experiência artística se desloca do criar para o refletir, determinando-se pelos seus aspectos teó-
ricos e intelectuais e abandonando definitivamente a ideia de Arte como mímesis (imitação). A partir do

Filosofia
Realismo, experimentar uma obra de arte não é mais uma questão de sensação, mas uma experiência
intelectual com o objetivo de fundamentalmente compreend ê-la. Essa constatação reforça a consciên-
cia de que a Arte pode e deve ser concebida filosoficamente.
A Arte ganha, então, um novo papel: o artista deixa de ser um pintor de histórias, de retratos e de
paisagens e passa a ser testemunha da cultura da qual faz parte, na procura por recompor a condição
humana fragmentada por causa da submissão da Filosofia às exigências científicas do século XVII.
Qual é o significado do Realismo do ponto de vista filosófico?
Na Filosofia, o Realismo pode ser traduzido como uma reação ao Idealismo. Em termos gerais, o
Realismo procura explicar em que consiste a natureza ou essência do conhecimento. Sua concepção de
pensamento se opõe à do Idealismo, ao afirmar o mundo como um fenômeno objetivo, considerando real
aquilo que pode ser percebido e vivenciado. O idealismo, ao contrário, sustenta que não existem coisas
reais, independentes da consciência, e compreende as filosofias metafísicas que afirmam que a realida-
de é imaterial, construída mentalmente.
O contexto cultural favorecido pelo progresso das Ciências Naturais propiciou o surgimento de
doutrinas filosóficas e científicas como o positivismo. O surgimento dessa filosofia deve ser analisado
como consequência do grande desenvolvimento da economia capitalista voltada para a produção de bens
materiais e também da necessidade de uma filosofia positiva, naturalista, materialista, como suporte às
novas ideologias econômico-sociais. O positivismo foi uma tendência no conhecimento, de valorização da
ciência e de seus métodos, visando à obtenção de resultados objetivos e precisamente corretos.
A principal diferença entre o idealismo e o positivismo é que, enquanto o idealismo busca interpretar
e unificar a experiência a partir da razão, o positivismo, ao contrário, limita-se à experiência imediata,
admitindo, como única fonte de conhecimento e critério de verdade, a experiência, os fatos positivos,
os dados sensíveis, descartando qualquer justificativa transcendente ou metafísica. O positivismo visa à
cientificização do saber, valorizando uma objetivação da realidade, reduzindo a Filosofia à metodologia e
à sistematização das ciências. Arquivos históricos, documentos, pensamento neutro e a própria estrutura
objetiva da realidade formam os alicerces dessa forma de pensar e de interpretar a realidade.
Outras doutrinas filosóficas e científicas favorecidas pelo contexto do Realismo foram o evolucionis-
mo, de Charles Darwin, e o marxismo, de Karl Marx, de que trataremos a seguir.

As estruturas lógicas da consciência


© Photothèque R. Magritte/AUTVIS, Brasil, 2021

A faculdade da imaginação, de René


Magritte, 1948. Guache em papel de
18 cm 3 15 cm.

A história da Filosofia deixou muitas lacunas nos estudos sobre a consciência. Ainda hoje, muitas
pessoas preservam um pensamento dualista, isto é, pensam a consciência a partir da distinção mente/
corpo e acreditam que a vida mental tem lugar na alma, concebendo a consciência como uma parte não
física do mundo.

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Ressalta-se que essa separação entre o espírito consciente e a matéria inconsciente, no dualismo, era
útil aos estudos científicos, pois permitia um enfoque matemático sobre o mundo físico e a autonomia
da ciência diante da autoridade da religião. O dualismo só passa a ser obstáculo à ciência a partir do
século XIX, ao colocar a consciência e outros fenômenos mentais fora da realidade física e do âmbito das
Ciências da Natureza.
Os fisicalistas, em direta oposição ao dualismo, afirmam que a única coisa que existe é o mundo
físico, e somente a realidade objetiva pode ser estudada pela ciência. Nessa perspectiva, a vida mental
consiste em processos físicos que ocorrem no cérebro, embora não seja possível afirmar com certeza que
experiências como sentimentos, pensamentos e desejos sejam processos físicos cerebrais.
No entanto, em termos gerais, as discussões filosóficas acerca da consciência se referem ao seu as-
pecto subjetivo, considerada sua característica mais importante e aquela que apresenta maiores dificul-
dades para o estudo científico dos estados mentais, uma vez que a ciência é objetiva.
Segundo o filósofo Thomas Nagel (1937-), apesar dos avanços da neurociência e de suas pesquisas
sobre os fenômenos mentais, o caráter subjetivo da experiência permanece sem respostas satisfatórias
sobre como se origina a consciência.

A concepção de que o cérebro é a sede da consciência, mas que seus estados conscientes não são meros estados
físicos, é chamada de teoria do aspecto dual. É assim chamada porque, quando você morde uma barra de choco-
late, produz-se no seu cérebro um estado ou processo com dois aspectos: um aspecto físico, envolvendo várias
alterações químicas e elétricas, e um aspecto mental – a experiência do sabor de chocolate. Quando esse processo
ocorre, um cientista, ao examinar seu cérebro, poderá observar o aspecto físico, mas é você, internamente, que
passará pelo aspecto mental: você é que vai experimentar a sensação de saborear o chocolate.
Sendo assim, seu cérebro teria um interior que não poderia ser alcançado por um observador externo, mesmo
que ele o abrisse ao meio. Esse processo que ocorre no seu cérebro produziria em você um certo tipo de sensação ou
gosto. Poderíamos expressar essa ideia ao dizer que você é apenas corpo, não corpo e alma; mas seu corpo, ou pelo
menos seu cérebro, não é somente um sistema físico. É um objeto com aspectos físicos e mentais: pode ser dissecado,
mas tem um tipo de interior que a dissecação não pode revelar. Se existe algo dentro que parece saborear o chocolate,
é porque existe algo dentro que parece colocar seu cérebro na condição que se produz quando você come chocolate.
NAGEL, Thomas. Uma breve introdução à Filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 29-30.

Isso significa que um objeto ou fenômeno que existe independentemente da experiência do sujei-
to, como uma árvore ou uma montanha, tem um modo objetivo de existência. Mas aquilo que existe
devido, exclusivamente, às experiências de algum sujeito, como dor, gosto ou pensamento, possui um
modo subjetivo de existência. Para Nagel, essa subjetividade está relacionada ao fenômeno da cons-
ciência, sendo inacessível a qualquer abordagem reducionista ou fisicalista.

Para descobrir se a experiência que tivemos do sabor do chocolate foi, de fato, apenas um processo cerebral, tería-
mos de analisar alguma coisa mental – não uma substância física observável externamente, mas uma sensação de sabor
interna – em termos das partes físicas. E, por mais complexas e numerosas que sejam as ocorrências físicas no cérebro,
elas não poderiam ser as partes que compõem a sensação do gosto. Um todo físico pode ser analisado em partes físicas
menores, mas um processo mental, não. Não é possível somar partes físicas para obter um todo mental.
NAGEL, Thomas. Uma breve introdução à Filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 33.

A ciência se caracteriza por ser epistemologicamente objetiva, enquanto os estados de consciência


têm um modo de existência ontologicamente subjetivo, não podendo, portanto, ser estudados como
uma ciência. Por outro lado, a especificidade do caráter subjetivo da experiência aponta um limite ao
fisicalismo ao demonstrar que ela é única e privada, não podendo ser observável nem reproduzida. Uma
experiência vivenciada – por exemplo, a apreciação de um quadro ou o sabor do café – é única para o
sujeito que a experimenta, não sendo possível estudá-la cientificamente.

Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós.
Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam
desesperadamente fundir seus êxtases, isolados em uma única autotranscendência, debalde.
Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão.
Sensações, sentimentos, concepções, fantasias – tudo isso são coisas privadas e, a não ser através de símbolos, e
indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as
próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
HUXLEY, Aldous. As portas da percepção. Tradução Osvaldo de Araújo Souza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. p. 2-3.

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Parada obrigatória

Filosofia
1. Leia a tirinha para responder à questão.

© Joaquín Salvador Lavado


(Quino)/Fotoarena
Mafalda chama atenção sobre a forma de conceber um fenômeno do ponto de vista do Realismo em relação a outras concepções
de pensamento. Considerando a observação da personagem, explique em que consiste a concepção do Realismo do ponto de vista
filosófico.

Parada complementar
1. (Unicentro-PR) Sobre a corrente filosófica idealista, é correto afirmar:
a) O mundo é o conjunto de coisas prontas. d) A matéria é eterna, infinita.
b) A vida espiritual determina a vida material. e) A existência material é autônoma.
c) O homem é um produto da matéria.

2. (UEM-PR) O corpo tem muita importância para a Filosofia, pois representa uma experiência universal e pré-reflexiva de acesso ao
mundo. Com base nessa afirmação, assinale o que for correto.
01.“Dualismo psicofísico” é uma teoria metafísica que explica o ser humano como composto de duas partes diferentes: corpo (material)
e alma (espiritual).
02. Durante a Idade Média, o corpo foi cultivado de maneira narcisista, reforçando a liberdade e o amor-próprio do indivíduo.
04. No Renascimento e na Idade Moderna, o corpo passa a ser objeto da ciência, associado à ideia mecanicista que o considera uma máquina.
08. Para a fenomenologia, o conceito de corpo não pode estar associado ao conceito de espírito, pois é uma escola filosófica ligada ao
materialismo histórico.
16. Para René Descartes, a alma é mais fácil de ser conhecida do que o corpo, já que, na ordem das certezas, a res cogitans é anterior
a res extensa.

Teste seu conhecimento: 1

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Charles Darwin: o evolucionismo e sua consequência moral
O naturalista e biólogo britânico Charles Darwin (1809-1882) construiu uma teoria que afirma que, ao
longo do tempo, o funcionamento dos organismos passam por variações definidas pela natureza em um
processo chamado seleção natural. Assim, a formação de novas espécies se daria por lentos processos
de descendência, nos quais espécies mais antigas passariam por modificações. Herbert Spencer (1820-
1903), positivista inglês, buscou no evolucionismo de Darwin não só as respostas para a origem das es-
pécies, mas aplicou essa teoria a toda a natureza e seus fenômenos e, posteriormente, à vida psíquica
e social dos seres humanos. Ele acreditava que as leis evolucionistas levariam ao aperfeiçoamento e à
evolução das práticas humanas e da sociedade, por meio das descobertas científicas, do aprimoramento
das leis e dos costumes, da Arte e da Filosofia.
Dessa forma, os conceitos sobre a evolução de Darwin se deslocam do campo das Ciências Naturais
para outras esferas do conhecimento e, por vezes, acabam distorcidos, como ocorreu, por exemplo, com
o conceito de darwinismo social e seus métodos preconceituosos e equivocados de compreensão da
cultura, gerando sérias consequências no campo da moral.
O determinismo proposto na Biologia se desdobra para outras esferas da vida humana. Em termos
gerais, é uma corrente de pensamento que afirma a ideia de que tudo o que existe está determinado a
acontecer, ou seja, que as escolhas e ações humanas não acontecem devido à liberdade do indivíduo,
mas por relações de causa e efeito.
Esses conceitos, quando mal utilizados, podem ter consequências nefastas. O darwinismo social,
por exemplo, tornou-se, na prática, uma forma de sustentação de uma teoria racista, respaldada por
uma pseudociência determinista, que, pautada na ideia de hierarquia racial, defende a superiorida-
de da civilização europeia e branca em detrimento de indígenas e negros, considerados “atrasados”,
bárbaros e selvagens.

Reprodução/Puck magazine, Keppler & Schwarzmann


A charge, publicada na revista Puck, em 25 de janeiro de 1899, retrata o Tio Sam – a personificação dos Estados Unidos –,
dando uma aula sobre “Civilização”, com Cuba, Porto Rico, Havaí e Filipinas sentados na primeira fila, mostrando o direito dos
Estados Unidos de governar territórios recém-adquiridos conforme o modelo inglês descrito na lousa: “Por não esperar por seu
consentimento, ela [Inglaterra] levou muitas civilizações do mundo ao avanço. Os EUA devem governar seus novos territórios com
ou sem o consentimento deles até que possam se governar sozinhos”.

O preconceito e as práticas de discriminação sempre existiram nas sociedades com a intenção de


sufocar a diversidade cultural dos povos, forjando suas identidades. O que se pretende ressaltar aqui é
que, no passado, essas práticas fundavam-se em crenças e dogmas. No século XIX, elas ganham argumen-
tos e justificativas racionalizadas que respaldam e fundamentam essa crença, como no caso do racismo
no contexto da teoria darwinista da seleção natural e evolução das espécies, utilizada como justificativa
para práticas de dominação sobre povos africanos e asiáticos por potências capitalistas imperialistas

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durante o neocolonialismo no século XIX. No entanto, apesar de totalmente com sua base biológica. Dessa forma, a moral, que se-
essas teorias terem origem no século XIX, sua utilização trans- ria a expressão máxima da autonomia do ser humano em relação

Filosofia
cende o momento em que foram criadas, pois, na ausência da à natureza e definidora da sua liberdade, é questionada, sendo
racionalidade para questioná-las, elas sempre são úteis ao poder considerada uma ilusão. Essa constatação se baseia na impossi-
para justificar suas práticas de exploração e dominação, indepen- bilidade de uma moral objetiva, incompatível com seus funda-
dentemente do tempo e do espaço. Assim, é possível afirmar que mentos estritamente racionais para as normas universalmente
essas ideias justificaram, inclusive, a exploração indígena e a es- válidas. O evolucionismo caminha, assim, para uma concepção
cravização de pessoas negras no Brasil entre os séculos XVI e XIX. subjetivista (dever, culpa, amor) e pluralista (diversidade de valo-
res e crenças) da moral.

De olho
Fique por dentro

Reprodução/Graphic for Christmas


O documentário Homo sapiens 1900 (Suécia, 1998), de Peter Cohen,
retrata uma pesquisa sobre eugenia no século XX. O filme aborda as leis
de hereditariedade e propõe reflexões sobre questões éticas acerca da
seleção e purificação da raça humana.

As “mentiras” da consciência
As desigualdades e as práticas discriminatórias que desenca-
dearam as formas mais arbitrárias de violência nos séculos XIX e
XX apontam que o ideal de ser humano esclarecido e civilizado
preconizado pelo Iluminismo estava longe de ser alcançado.
Se a razão é necessária para a constituição de uma sociedade
de pessoas livres e conscientes, ela não pode ser reduzida ao
Esta propaganda de sabão se destaca por seu teor ideológico. O uso do cumprimento de normas e regras sociais, mas precisa ser exer-
sabão sobre a pele negra faria do negro um branco. cida por indivíduos capazes de questioná-la de forma racional,
tendo como objetivo a liberdade e a felicidade, ideais que não
podem prescindir da razão, só podendo ser alcançados livres
Duas teorias discriminatórias ficaram conhecidas como eugenismo
da opressão. Se os indivíduos forem deixados à mercê de suas
e higienismo. O eugenismo defendia a seleção dos seres humanos a
pulsões, a ausência de discernimento entre consciente e incons-
partir de suas características hereditárias, como forma de aperfeiçoar a
ciente gera o enfraquecimento do ego e leva, gradualmente, à
qualidade das gerações futuras, sendo usada como prática para atingir
ausência da consciência moral que, substituída por dispositivos
a “raça pura”. Essa teoria é reforçada pelo higienismo, que defende o
sociais, pode torná-los vítimas de ideologias irracionais, como
saneamento básico e medidas de higiene como forma de melhorar a
ocorreu no fascismo.
qualidade de vida nas cidades e a saúde da população. No Brasil, por
É a esse enfraquecimento do ego que Freud se refere ao citar
exemplo, com a vinda Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, e as
as feridas narcísicas na cultura ocidental:
péssimas condições de higiene devido à inexistência de uma rede de
esgotos, médicos intelectuais buscavam melhorias para a higiene da Segundo Freud, há três grandes feridas narcísicas na cultura oci-
cidade e da população, tentando barrar os surtos epidêmicos constan- dental: a ferida imposta por Copérnico; a outra, feita por Darwin,
tes. Entretanto, essas pesquisas assumiram um caráter social e moral quando descobriu que o homem descendia do macaco; e a ferida oca-
por meio de medidas repressivas e autoritárias direcionadas à popu- sionada por Freud, quando ele mesmo, por sua vez, descobriu que
lação mais pobre, concebidas como a origem dessas doenças. Assim, a a consciência nasce da inconsciência. Interrogo-me se não poderia
solução para os problemas passava pela “limpeza” de suas habitações afirmar que Freud, Nietzsche e Marx, ao envolverem-nos numa in-
e sua expulsão do centro da cidade, por serem consideradas pessoas terpretação que gira sempre para si própria, não tenham constituído
“perigosas” e “suspeitas”, com auxílio de repressão e fiscalização das para nós e para os que nos rodeiam espelhos que nos reflitam ima-
forças policiais. Nessas propostas de higienização urbana se encontra a gens cujas feridas inextinguíveis formam o nosso narcisismo de hoje.
origem de uma grande carga de preconceitos sociais e morais, tratados FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p. 17-18.
como problemas sanitários.
A primeira ferida, cosmológica, ocorreu quand o Nicolau
Copérnico (1473-1543), ao negar a superioridade da Terra no
Do ponto de vista filosófico, considera-se que o otimismo centro do universo, retira, ao mesmo tempo, o ser humano do
evolucionista contido na ideia do humano como um ser que se centro  do seu mundo e de suas referências. A segunda feri-
liberta dos instintos e evolui para uma racionalidade e civilização da, biológica, ocorreu quando Charles Darwin, ao proclamar o
não se sustenta, uma vez que a cultura não é capaz de romper ser humano como resultado da evolução natural, negou-lhe o

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status de criação feita à imagem e semelhança divina, nivelando-o a outras espécies, fruto de uma
evolução de milhões de anos a partir de características animais comuns a outras espécies. Finalmen-
te, a terceira ferida, psicológica, foi provocada por Sigmund Freud (1856-1939), ao afirmar a existência
do inconsciente, mostrando que o consciente se refere apenas a uma pequena parcela do ser e de
seus comportamentos, determinados por impulsos irracionais que não são passíveis de compreen-
são e sobre os quais não se tem controle.
Enfim, o fato de ser racional não garante ao ser humano a consciência moral necessária à construção
de uma sociedade mais justa e livre; entre uma e outra, existe um longo processo. Portanto, nós não so-
mos senhores de nós mesmos, e o ser humano não é o centro do universo conforme sustentou a ilusão
do modelo antropocêntrico e o racionalismo iluminista.

A subjetividade não é o ponto de partida


No século XIX, a separação radical entre Filosofia e ciência ocorreu em meio a uma crise que afetou
profundamente o saber, na tentativa de penetrar os domínios até então inacessíveis do pensamento
vigente na época. O paradigma da pesquisa biológica, em especial após as obras de Charles Darwin, foi
determinante no desenvolvimento das novas teorias sobre a consciência humana.
Embora a subjetividade seja a característica mais relevante nos estudos sobre a consciência, ela nem
sempre é concebida como o ponto de partida.
Opondo-se ao dualismo cartesiano, o filósofo norte-americano John Searle (1932-) defende que a
consciência é física, especificamente, biológica, podendo ser estudada cientificamente.
Conforme sustenta a Biologia Evolutiva, as espécies de organismos foram se originando e se modifi-
cando no decorrer do tempo geológico por processos evolutivos, da mesma forma que os mecanismos
de seleção natural. Portanto, houve uma evolução do Homo sapiens e do restante do mundo natural, e
a consciência evoluiu gradualmente, através de um longo processo, sendo uma característica biológica
resultante da atividade de sistemas nervosos complexos (presentes em chimpanzés, golfinhos, cães,
gatos, etc.) que deram origem à atividade mental consciente.
Entretanto, Searle reforça que estes fenômenos mentais conscientes possuem uma especificidade,
que é a subjetividade, demonstrando assim que o modo de existência da consciência, que é uma pro-
priedade biológica, é distinto do modo de existência das demais coisas do Universo, como a água, o
vento e as nuvens.
Para o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o pensamento é construído pela linguagem.
Ele realiza, afinal, a ruptura com a tradição dualista de ser humano ao rejeitar a concepção objetivista da
realidade, afirmando que tanto o “mundo” como o pensamento são construídos pela linguagem.
Wittgenstein considerou o ser humano como uma unidade psicofísica lançada no fluxo da vida.
Em sua concepção, seres humanos não são mentes, são seres humanos que percebem e pensam, de-
sejam e agem, sentem alegria e tristeza. Expressar-se como um humano significa dizer literalmente
que se é humano.
Hoje, ao observar os computadores e as máquinas, com seus sofisticados recursos e funções, efe-
Fique por dentro tuando tarefas como as humanas, muitas vezes até com mais precisão, surge a questão: se algo se com-
porta e se expressa como humano, podemos considerá-lo humano?
O Argumento do Quarto Então, será que a afirmativa de Wittgenstein estava certa? Estas são suas observações:
Chinês foi construído por
John Searle, que pretendia Poderia uma máquina pensar? Poderia ela sentir dores? Bem, deve-se chamar o corpo humano de uma máqui-
contrapor os pesquisadores na assim? Ele chega por certo a ser bem próximo de uma máquina assim. Mas é claro que uma máquina não pode
da área da Inteligência pensar! Isso é uma sentença empírica? Não. Nós só dizemos de uma pessoa e do que lhe é semelhante, que ela pen-
Artificial, para mostrar que sa. Nós o dizemos também de bonecas e até mesmo dos espíritos. Veja a palavra “pensar” como um instrumento!
os computadores, tal como Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 201.
são construídos atualmente,
Para Wittgenstein, esse “pensar” como instrumento significa que, para conceber um ser como pensante,
não são capazes de pensar.
deve-se recorrer à análise das formas como o seu comportamento se manifesta nas diversas circunstâncias
É possível ler sobre o
da vida. Não há dúvidas de que um computador realiza atividades humanas muitas vezes de forma mais
experimento neste link:
eficiente do que os próprios humanos ou que possui muito mais informações sobre determinado assunto
https://filosofianaescola.
do que seríamos capazes de armazenar, que domina uma infinidade de técnicas de jogos que nunca con-
com/metafisica/quarto-
seguiremos acessar, etc. No entanto, o ser humano não se reduz unicamente a um intelecto que opera logi-
chines/. Acesso em:
camente sobre símbolos, mas resulta de uma longa história evolutiva e apresenta domínios que vão muito
22 jan. 2021.
além de operações intelectuais, como o medo, a angústia, a fé, a esperança, a comunicação.

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[…] Se sou puro produto da determinação genética ou cultural ou de classe, sou irresponsável pelo que faço
no mover-me no mundo e se careço de responsabilidade não posso falar em ética. Isto não significa negar os

Filosofia
condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres
condicionados, mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidade e não de determinismo,
que o futuro, permita-se-me reiterar, é problemático e não inexorável.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 19. (Coleção Leitura)

Sarah Holmlund/Shutterstock

“Ser ou não ser.” Será que algum dia os computadores se


tornarão conscientes?

Investigue
MRS Editorial

Conheça o Teste de Turing, uma experiência que busca verificar se uma máquina
pode ou não ser considerada inteligente, capaz de pensar, a partir do “jogo da
imitação” proposto pelo cientista e matemático Alan Turing.
O homem do meio (C) vai iniciar uma conversa com um computador à esquer-
da (A), executando um programa de inteligência artificial, e com outra pessoa,
à direita (B). Cada jogador vai tentar convencer o interrogador que é um ser
A B
humano. Se a máquina convencer o interrogador que é um ser humano, ela será
considerada inteligente. Ressalta-se que, apesar da proposta desse jogo, Turing
sabia dos limites das máquinas em sua época, mas acreditava que, no futuro, elas
?
seriam capazes de enganar o interrogador. Leia sobre o Teste de Turing no artigo
disponível em: https://medium.com/turing-talks/turing-talks-1-o-que-%C3%A9-
o-teste-de-turing-ee656ced7b6 (Acesso em: 18 fev. 2021) e procure responder,
depois de debater em grupo, à indagação de Turing: afinal, as máquinas podem
ser inteligentes? C

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Conexões
A comparação do cérebro humano a máquinas é um tema recorrente nas Ciências Humanas e Naturais que sempre
despertou curiosidade. Será que um dia os computadores serão capazes de pensar como um ser humano? Ou isso
só acontece na ficção científica? Quais as consequências filosóficas dessa possibilidade?
Em um debate em sala, discuta com a turma sobre questões filosóficas tratadas no filme Ex-Machina: instinto
artificial (Direção: Alex Garland. EUA/Reino Unido, 2015). Para se orientar no debate, elabore previamente questões
sobre o filme, relacionadas aos seguintes conceitos: inteligência artificial, diálogo homem/máquina, questões de
gênero, o poder da inteligência humana, a relação entre linguagem, mente e sentimentos, o funcionamento do cé-
rebro. Fundamente suas respostas a essas questões a partir de argumentos sobre o tema, pesquisados em outras
disciplinas, como Sociologia, Matemática, Artes, História e Física.

Muitos outros esforços foram mobilizados nos diversos campos do conhecimento em direção à
compreensão do fenômeno da consciência e dos limites da razão, em busca de uma racionalidade mais
humana, social e historicamente construída. Destacam-se nesse processo as contribuições filosóficas de
Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud em suas reflexões acerca da consciência e da cultura, que
você estudará a seguir.
A partir do final do século XIX, a razão e a consciência sofrem severas críticas correspondentes ao
processo de formação da chamada “consciência falsa”, considerada ideologia em Marx, crítica da moral
em Nietzsche e ilusão em Freud, instaurando a dúvida sobre os poderes da consciência em apreender o
sentido do mundo e de si mesma, de maneira clara e distinta, como sustentava o cogito cartesiano.
É importante frisar que suas teorias não se traduzem como mero ceticismo. O que esses pensadores
pretendem é buscar outra via de acesso à consciência, uma interpretação mediada por signos e símbolos,
a partir dos quais eles acreditam que a consciência se manifesta. Você vai conhecer suas teorias, com
mais detalhes, a seguir.

Parada obrigatória
2. (IFMT)

TEXTO I:
Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta
vida livre e bela (...) de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos
nós. Lutemos por um mundo novo, um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança
à velhice.
(Fragmento de “O último discurso de Charles Chaplin”, no filme “O Grande Ditador”, 1940, citado no ensaio Contributo
para a Boa Governança Democrática em África e Moçambique, 2015, p. 16)

TEXTO II: TEXTO III:


Reprodução/IFMT, 2018

(Tirinhas disponíveis em https:// www.facebook.com/tirasarmandinho/)

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O Texto I foi parte de discurso proferido em um filme na década de 1940. As duas tirinhas foram produzidas no século XXI. Apesar da

Filosofia
diferença temporal, há convergências entre os textos. Dessa forma, podemos inferir, como ponto comum entre o texto do discurso
e as duas tirinhas, EXCETO que:
a) Os enunciadores dos discursos, Charles Chaplin e Armandinho, creem que a vida se constrói numa relação de solidariedade.
b) As falas de Armandinho buscam levar a uma reflexão sobre a necessidade de se viver em harmonia, assim como o de Chaplin.
c) Tanto Chaplin quanto Armandinho têm uma visão humanista do mundo.
d) Os três textos apontam para uma visão otimista sobre a vida.
e) Escrito em tempos diferentes, os três textos são distintos. Enquanto o primeiro aborda sobre guerra, o segundo descreve questões
da natureza, o terceiro destaca as diferenças entre seres humanos e animais.

Parada complementar
3. (Fuvest-SP) Em 2009, comemoram-se os 150 anos da publicação da obra A origem das espécies, de Charles Darwin. Pode-se afirmar
que a história da biologia evolutiva iniciou-se com Darwin, porque ele
a) foi o primeiro cientista a propor um sistema de classificação para os seres vivos, que serviu de base para sua teoria evolutiva da so-
brevivência dos mais aptos.
b) provou, experimentalmente, que o ser humano descende dos macacos, num processo de seleção que privilegia os mais bem adaptados.
c) propôs um mecanismo para explicar a evolução das espécies, em que a variabilidade entre os indivíduos, relacionada à adaptação ao
ambiente, influi nas chances de eles deixarem descendentes.
d) demonstrou que mudanças no DNA, ou seja, mutações, são fonte da variabilidade genética para a evolução das espécies por meio
da seleção natural.
e) foi o primeiro cientista a propor que as espécies não se extinguem, mas se transformam ao longo do tempo.

4. (Vunesp)
É difícil acreditar na guerra terrível, mas silenciosa, que os seres orgânicos travam em meio aos bosques serenos e campos risonhos.
(C. Darwin, anotação no Diário de 1839.)

Na segunda metade do século XIX, a doutrina sobre a seleção natural das espécies, elaborada pelo naturalista inglês Charles Darwin,
foi transferida para as relações humanas, numa situação histórica marcada
a) pela concórdia universal entre povos de diferentes continentes. d) pelas concepções de unificação europeia e de paz armada.
b) pela noção de domínio, supremacia e hierarquia racial. e) pela fundação de instituições destinadas a promover a paz.
c) pelos tratados favoráveis aos povos colonizados.

Teste seu conhecimento: 2

As contribuições de Marx, Nietzsche e Freud


à questão da consciência
Karl Marx e a questão da ideologia
Para Marx, a consciência humana é sempre social e histórica, ou seja, é determinada pelas condições
concretas e materiais da existência. Em termos gerais, isso corresponde à forma como os indivíduos se
organizam no modo de produção, constituído de forças produtivas (meios de produção: máquinas, terra
e outros instrumentos) e de relações de produção (trabalho). Nesse contexto, a possibilidade da cons-
ciência não se encontra no plano das ideias, mas na realidade concreta.

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Marx desenvolve uma concepção materialista da História, na qual afirma que o modo como a pro-
dução material de uma sociedade é realizada constitui o fator determinante da organização política
e das representações intelectuais de uma época. Dito de outra forma, para Marx, a superestrutura de
uma sociedade é reflexo da sua base material, ou seja, os pensamentos e ideias que a organizam, bem
como suas instituições políticas, jurídicas e religiosas não se compõem a partir de um processo natural
da evolução humana, mas são resultado de sua infraestrutura, ou seja, das condições econômicas e
materiais de vida.
Isso significa que a consciência dos sujeitos é uma expressão das relações sociais nas quais eles
estão inseridos. Como no sistema capitalista essas relações são de dependência e alienação entre o
operário, vendedor de sua força de trabalho, e o capitalista, dono dos meios de produção, a consciência
as internaliza dessa forma.

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material
dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição
os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão sub-
metidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção
espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes,
são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem
de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alem‹. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 47.

Nesse contexto, a ideologia é uma falsa representação, um conhecimento invertido da realidade que
tem por consequência a justificação de relações de dominação e poder. Por exemplo, há situações co-
tidianas em que a pobreza é colocada como se fosse uma escolha individual. A origem das relações de
produção e da luta de classes é ocultada por meio de explicações prontas (ideologia) que dão respostas,
do ponto de vista dos interesses das camadas dominantes, às questões que o ser humano se coloca,
não permitindo aos trabalhadores conhecer e compreender as causas da exploração, da dominação, da
miséria e da injustiça em que são envolvidos no processo de produção.

Então, como pensar o ser humano racional e consciente se a sua consciência é determinada pelas condições materiais
de existência e essa condição, enquanto condição de sobrevivência, antecede a própria construção da consciência?

Como fazer
(Uema) Analise a tirinha.

Reprodu•‹o/Uema, 2020

http://roquebastosprofessor.blogspot.com/2018/05/pratica-de-leitura-de-tirinhas-e.html

O diálogo entre as personagens revela percepções diferentes sobre determinadas situações cotidia-
nas. Esse diálogo expressa a noção de ideologia na perspectiva de
a) concepções variadas da realidade social, moldadas por ideias e valores que orientam o modo como
os indivíduos interpretam e representam tal realidade. 

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b) associações reflexivas da vida em comunidade, definidas em contraposição às mensagens transmiti-

Filosofia
das pelos veículos de comunicação.
c) construções do mundo ideal que norteiam o desenvolvimento da consciência e da razão humana. 
d) compreensões humanas que buscam garantir a manutenção da saúde física e da psíquica. 
e) reuniões de práticas individualistas que descrevem a vida social cotidiana e a instrumentalizam.

Resolução:
Leia com atenção a tirinha e o diálogo entre os personagens. Um deles apresenta uma visão distorcida
do conceito de pobreza muito presente ainda hoje. Embora não cite teorias e filósofos específicos, é possível
identificar, pela representação da pobreza no texto apresentado, que a questão trata do conceito de ideologia
relacionado à perspectiva marxista. O enunciado pede que seja feita essa relação, o que pode ser constatado na
alternativa a, que apresenta o conceito de forma correta. A alternativa b está incorreta, pois não existem variadas
associações reflexivas no texto, e a questão dos meios de comunicação não foi abordada. A alternativa c também
é incorreta, porque o texto não apresenta idealizações do mundo, mas uma situação objetiva que ocorre no
mundo. A alternativa d é incorreta, uma vez que a questão da saúde não foi abordada no texto. E, finalmente, a
alternativa e também é incorreta, já que o conceito é apresentado em seus aspectos gerais sem recorrer a práti-
cas individualistas específicas.

Friedrich Nietzsche e a crítica da moral


Para Nietzsche, o racionalismo moderno e a necessidade de afirmação das suas certezas reduziu e
fragmentou a natureza humana, enfraquecendo-a e subordinando-a; e impedindo, assim, o movimento
da escolha que leva à liberdade, característica que distingue e constrói o verdadeiro ser humano.

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma
soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após
longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que
o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram
em consideração como metal, não mais como moedas.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: MARÇAL, Jairo (org.). Antologia de Textos Filosóficos. Curitiba:
SEED-PR, 2009. p. 530-541.

Na sua visão, a submissão da moral ocidental ao racionalismo desconsiderou a natureza humana em


sua totalidade, configurando, aos poucos, uma forma de moral que enfraqueceu o humano moderno,
levando-o à servidão, à fraqueza de vontade e à decadência.
Nietzsche denomina essa moral como “moral de rebanho”, uma moral escrava, própria dos fracos e
ressentidos, constituída por um bando de seguidores mansos e medíocres, sem vontade própria. Uma
moral que, ao impossibilitar a escolha, nega ao indivíduo princípios instintivos vitais, que o tornam ca-
paz de expandir e crescer, levando a sociedade a um sentimento coletivo de enfado e desprezo diante
da vida.
Com essas considerações, Nietzsche realiza sua crítica à consciência, a partir de uma revisão da moral
ocidental e de um estudo histórico sobre o racionalismo moderno, na tentativa de compreender as mo-
tivações e os elementos que possibilitaram sua aceitação como referência na reprodução e perpetuação
dos princípios morais que orientam as ações e a vida dos indivíduos.

Em que momento da história ocorreu essa cisão entre a parte racional e instintiva do ser humano, fragmentando a
natureza humana? O que provocou a submissão do ser humano ao racionalismo como referência moral e a negação de
outros critérios de escolha? O que Nietzsche propõe em relação a isso?

Uma volta ao trágico da existência


Nietzsche, na obra O nascimento da tragédia, analisa o declínio da cultura grega quando a Filosofia,
representada sobretudo por Sócrates e Platão e reforçada, posteriormente, pelo cristianismo, instaura no
Ocidente o predomínio da razão, da racionalidade argumentativa, da lógica e da demonstração.

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Com esse intento, Nietzsche retoma a tragédia grega, por meio da relação e distinção entre dois prin-
cípios: o apolíneo e o dionisíaco, referenciados pelos deuses gregos Apolo (deus da razão, da clareza,
da ordem, da harmonia das formas, da figura, da perspectiva, das cores) e Dionísio (deus do instinto, da
vida, da metamorfose, da desmedida, da morte, do sexo, da dor e da música). Para Nietzsche, ao afirmar
a excelência da razão, Sócrates criou a oposição entre esses dois princípios, o apolíneo e o dionisíaco,
marcando o predomínio da razão sobre os instintos, que foram submetidos a ela.
Em síntese, com o desenvolvimento da razão filosófica e, depois, da racionalidade científica, ocorre
o predomínio do espírito apolíneo sobre o espírito dionisíaco, que será, gradativamente, reprimido. Esse
predomínio da racionalidade confere à consciência a tarefa de comandar a existência, limitando qual-
quer interferência do corpo (dos instintos). O resultado dessa moral “decadente”, de rebanho, foi uma
acomodação e uniformização do ser humano, e o niilismo, um sentimento de impotência que se traduz
num desencantamento com a vida. Surge, assim, a necessidade de destruir esses valores e criar outros,
que sejam capazes de recompor as forças vitais e fragmentadas pela moral, o que seria possível pelo que
ele denomina “vontade de poder”.
Nietzsche inverte a situação: o ser humano não é a sua consciência, é corpo e consciência; o corpo
antecede a consciência, ele é a grande razão, o ponto de partida de uma grande transformação. A von-
tade de poder não se refere ao domínio sobre o outro, mas é o poder sobre si mesmo, o despertar das
capacidades humanas, das forças vitais adormecidas, recompondo a relação apolínea/dionisíaca – razão
e instinto, consciência e corpo – como uma unidade integrada e necessária à reconstrução e criação do
novo ser humano.
Assim, Nietzsche dirige sua crítica contra a tradição que privilegiou a consciência em detrimento do corpo,
desprezando sua sabedoria. Ao atribuir um caráter biológico à consciência, o que Nietzsche pretende é retirar
a consciência do âmbito metafísico e religioso para mostrar sua inserção no âmbito físico, corporal, terreno.

Investigue
Amplie seus estudos sobre Nietzsche assistindo ao episódio “Nietzsche e o sofrimento”, da série para televisão
Filosofia: um guia para a felicidade, produzida por Alain de Botton em 2000. Além de trabalhar aspectos curiosos de
sua biografia, o programa aborda os principais conceitos do pensamento do filósofo, sob a temática do sofrimento, e
contextualizados ao cotidiano das pessoas e das sociedades, de uma forma crítica e humana.
É possível localizá-lo na internet. Depois de assisti-lo, escreva um texto sobre os principais conceitos e contextos
apresentados e responda: de que forma os ensinamentos de Nietzsche podem ser úteis para a sua vida cotidiana?

Sigmund Freud e o inconsciente


O inconsciente foi a grande novidade proposta por Sigmund Freud e permitiu compreender uma série
de acontecimentos da vida psíquica, referente ao mundo oculto dos desejos que orientam o comporta-
mento humano. Essa ideia encontrou grande resistência na cultura da época, marcada pela concepção
racionalista do ser humano como um ser dotado de consciência e de razão. Ao interessar-se pelos fenô-
menos ligados às emoções, afetos e impulsos humanos, Freud deslocou-se dos ideais iluministas tentan-
do penetrar outras esferas do conhecimento e compreender forças obscuras que movem o ser humano,
e que a racionalidade não conseguia penetrar.

Fique por dentro


O filme Freud: alŽm da alma (Direção: John Huston. EUA, 1962) é uma versão biográfica sobre o pai da psicanálise,
Psique: estrutura mental
do indivíduo. A palavra se Sigmund Freud. Apresenta suas trajetórias pessoal e profissional e ressalta fatos e conceitos importantes de sua teoria,
origina do grego psykhŽ, que se como traumas, narcisismo e o inconsciente. O filme faz uma leitura interessante da teoria freudiana, que pode contribuir
refere à alma ou ao espírito. O para o aprofundamento de seus estudos.
conceito inclui, de modo geral,
a personalidade do indivíduo:
os pensamentos, sentimentos e Segundo Freud, a nossa mente é composta de três estruturas: o Id, a parte primitiva, que corresponde
comportamentos – conscientes
ao instinto e que obedece ao princípio do prazer; o Superego ou parte de repressão e censura que cor-
ou inconscientes – que o
orientam, adaptando-o ao responde ao social e ao cultural; e o Ego ou elemento que sublima os impulsos primários ou instintos de
ambiente físico e social. forma a manter o que é aceitável ou permitido à psique, com base no princípio da realidade.

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Para compreender como isso funciona na mente humana, Freud recorre à

Crystal Eye Studio/Shutterstock


metáfora do iceberg: no primeiro nível, está a ponta do iceberg, que corres-

Filosofia
ponde à parte consciente. Compreende os pensamentos e todas as sensações
processadas pelos sentidos e emoções, que são conhecidos e estão sob con-
trole. No segundo nível, há o pré-consciente, que corresponde à parte do ice- Consciência
berg localizada entre a parte emergida e a parte submersa, podendo ser vista
ou não, dependendo do movimento das águas. Compreende pensamentos e
sensações ocultos e latentes, sobre os quais se tem certo controle e que, se
houver esforço e for possível superar alguns mecanismos de defesa que os re-
primem, podem ser trazidos à luz e reconhecidos. No terceiro nível, encontra-
-se o inconsciente, submerso, oculto, invisível, desconhecido e inacessível, Pré-consciente EGO
mas ativo. Nessa parte se alojam os instintos mais primitivos, os impulsos,
memórias e desejos reprimidos, mas em atividade, exercendo influência e
manifestando-se nos comportamentos humanos sob as mais diversas formas.
“O homem não é senhor em sua própria casa”. Essa frase, atribuída a Freud,
sugere que o indivíduo não tem consciência dos seus atos, determinados pelo SUPEREGO
inconsciente, que são inacessíveis e se manifestam sem o seu controle. Inconsciente
ID
Do ponto de vista do inconsciente, mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, te-
mer, ambicionar são simplesmente amorais, pois o inconsciente desconhece valores
morais. Inúmeras vezes, comportamentos que a moralidade julga imorais são rea-
lizados como autodefesa do sujeito, que os emprega para defender sua integridade
psíquica ameaçada (real ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente conde-
náveis, podem, porém, ser psicologicamente necessários. Nesse caso, como julgá-los
e condená-los moralmente?
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1997. p. 355-356.

A metáfora do iceberg.

Diante disso, como definir um ser humano como racional e consciente?

A crença racionalista de que o ser humano é capaz de controlar seus desejos e tomar decisões pela
consciência foi profundamente abalada perante a constatação de que as manifestações conscientes,
chamadas racionais, constituem apenas uma parte minúscula da constituição psíquica do indivíduo, não
sendo possível definir o ser humano pela racionalidade, nem sua mente pela consciência. Ao contrário, ele
é determinado por desejos e impulsos ocultos, privados, dos quais não tem conhecimento e que, embora
reprimidos, permanecem em seu inconsciente, influenciando e manifestando-se em seu comportamento.

O mal-estar na cultura
Em sua obra O mal-estar na civilização, escrita em 1930, Sigmund Freud demonstra que o processo
cultural ou civilizatório ocorre com a interdição da lei e da consequente repressão dos instintos humanos
e da renúncia à liberdade, o que resulta no sentimento de insatisfação que os indivíduos experimentam
ao viver em sociedade.
Esse mal-estar é produzido pelo conflito irreconciliável entre as exigências do desejo e as restri-
ções da civilização. O sofrimento psíquico ocorre devido ao impasse entre as exigências de renúncias
impostas pela sociedade e o impulso para sua satisfação, sendo o sintoma neurótico efeito das difi-
culdades dessa negociação.
Segundo Freud, o sofrimento ameaça os indivíduos em três direções: do próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de
advertência; do mundo externo, que pode se voltar contra o ser com força de destruição esmagadora e
impiedosa; e, finalmente, dos relacionamentos com as outras pessoas.
Para civilizar-se, o ser humano adiou e modelou a exigência de satisfação do prazer (sexo e agressivi-
dade), na tentativa de estabelecer um controle pulsional. Em troca de sua renúncia, a cultura lhe ofere-
ceria satisfações substitutivas, encarnadas nos inúmeros bens sociais e materiais.
Para Freud, grande parte das lutas da humanidade tem como finalidade encontrar uma “acomoda-
ção conveniente”, isto é, uma acomodação que traga felicidade, entre as necessidades do indivíduo e as

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reivindicações culturais do grupo. Segundo afirma, o destino da humanidade depende de saber se tal
acomodação pode ser alcançada por meio de alguma forma específica de civilização ou se esse conflito
é irreconciliável.
A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da
libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo
de que modo específico ele pode ser salvo.
FREUD, Sigmund: O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 54.

Ao mesmo tempo, nota-se uma preocupação em definir se a infelicidade humana seria consequente
de falhas da própria cultura, que não consegue oferecer compensações suficientes às renúncias do indi-
víduo, ou se esse estado de insatisfação é algo inerente ao próprio ser humano.

Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização, alterações tais que satisfaçam melhor nossas
necessidades e escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a ideia de existirem
dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma.
FREUD, Sigmund: O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1997. p. 73.

Para Freud, embora a civilização se encontre a serviço da pulsão da vida (eros), ao mesmo tempo, ela
é atravessada pela pulsão da morte (tânatos). Dessa forma, o que ocorre na civilização pode ser traduzido
como uma repetição do conflito psíquico entre pulsão de vida (movimentos e mecanismos de preservação
da vida) e pulsão de morte (caminhos de autodestruição, redução por completo das atividades de um ser
vivo), sendo ambas exigências imperativas de satisfação, que a cultura tentaria equilibrar.
A pulsão de vida e a pulsão de morte trabalham em oposição uma com a outra. Enquanto uma se
inclina à preservação, a outra segue em direção oposta, rumo à destruição de uma existência. A cada
momento, uma dá sinal de assumir o controle, desde ações mais simples ou determinantes. É o que Freud
Neurose: conceito freudiano
denomina neurose.
que se refere a perturbações Assim, a cultura se expressaria por meio da produção de regras, normas e valores na tentativa de
preservadas no inconsciente que harmonizar as relações dos indivíduos consigo mesmo e com os outros. No entanto, devido ao caráter
geram sentimentos negativos, artificial da cultura, essas regras definidoras das ações humanas seriam, ao mesmo tempo, sentidas
como angústia, ansiedade e como repressão à satisfação das pulsões. Assim, é possível concluir que mesmo as crenças na mudança
mal-estar, e interferem na forma
como as pessoas relacionam-se comportamental do ser humano são uma ilusão. O máximo que se poderia alcançar seria uma redução
consigo mesmas e como reagem do nível de hostilidade dos humanos à vida em sociedade.
à vida. É nesse contexto que, para o bem ou para o mal, a política e os governos tentam atuar.

Fique por dentro


Para aprofundar seus estudos sobre o mal-estar civilizatório, leia o capítulo III da obra O mal-estar na civilização,
de Sigmund Freud, publicada pela primeira vez em 1930 e com diversas edições brasileiras. É possível localizar um
exemplar em bibliotecas ou livrarias físicas ou on-line.

Parada obrigatória
3. (Uece) A filósofa brasileira Rosa Dias diz o seguinte sobre a filosofia da arte de Nietzsche:
“[O] ponto mais importante da estética nietzschiana do seu primeiro livro [O nascimento da tragédia] é o desenvolvimento dos aspectos
apolíneo e dionisíaco na arte grega, considerados como impulsos antagônicos, como duas faculdades fundamentais do homem: a imaginação
figurativa, que produz as artes da imagem (a escultura, a pintura e parte da poesia), e a potência emocional, que encontra sua voz na linguagem
musical. Cada um desses impulsos manifesta-se na vida humana por meio de dois estados fisiológicos, o sonho e a embriaguez, que se opõem
como o apolíneo e o dionisíaco. O sonho e a embriaguez são condições necessárias para que a arte se produza; por isso, o artista, sem entrar
em um desses estados, não pode criar”.
DIAS, Rosa Maria. Arte e vida no pensamento de Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, v. 36, nº 1, p. 228, 2015.

Com base na citação acima, é correto afirmar que

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a) como o apolíneo e o dionisíaco são dois impulsos an- c) ambos os impulsos se manifestam artisticamente: o apo-

Filosofia
tagônicos, o artista, em seu processo de criação, deve líneo nas formas plásticas da visão, nos sonhos e na poe-
escolher apenas uma das duas vias: ou estado de sonho sia escrita; o dionisíaco, na embriaguez em que repousa
ou de embriaguez. a música.
b) o impulso apolíneo expressa nossas propensões intelec- d) os impulsos apolíneo e dionisíaco não são potências sensí-
tuais em direção ao suprassensível e o impulso dionisíaco, veis e criadoras da natureza e produzem estados fisiológi-
nossa participação no mundo sensível, emocional. cos diversos, porque não são adequados ao humano.

Parada complementar
5. (UPE) Sobre a consciência crítica, considere o texto a seguir: Caracterize, a partir da leitura do texto acima, a concepção filo-
sófica da ética contemporânea, assinalando a resposta correta.
O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem:
uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; a) Parece mesmo que a civilização ocidental, ao tentar man-
perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. O que é de grande ter equidistância entre os dois princípios de transcendên-
cia que inspiraram suas primeiras conquistas culturais – o
valor no homem é ele ser uma ponte e não um fim; o que se pode amar
princípio de transcendência moral e o princípio de trans-
no homem é ele ser uma passagem e um acabamento. Eu só amo
cendência estética –, viu-se compelida a sustentar a pró-
aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são esses
pria ideia de crise como ideal civilizatório unificador. Por
os que atravessam de um para outro lado.
trás dessa ideia, está o homem concreto da ação moral, os
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo, 1999, p. 27.
valores da vida e a valorização do corpo e das paixões.
b) A consciência, crescente nas décadas que se sucederam à
O filósofo Nietzsche elucida, sobre a consciência crítica e a Segunda Guerra Mundial, de que o “princípio da realidade”
filosofia, que ou o “movimento dialético da história”, libertaram o ho-
mem da necessidade de realização moral, é a base de sus-
a) o valor da natureza íntima do homem está na pura razão e
tentação da ética contemporânea. A busca da felicidade
não na vontade de viver. não passa pela moral, mas sim pela realização econômico-
b) a dimensão existencial tem importância e conduz à exalta- -social de caráter individualizante.
ção da vida e à superação do homem. c) A moralidade, sob a ótica contemporânea, figura no campo
c) a virtude do homem está na superação do existir para al- das compensações: ela retira o comportamento humano da
cançar a salvação. determinação da realidade e o coloca sob orientação do prin-
d) o homem deve renunciar à vida e buscar o sentido do su- cípio de prazer. A ética constitui, nesses termos, um conjunto
per-homem na transcendência. de preceitos que orientam os homens na busca pela satisfa-
e) a consciência crítica é a supressão da vontade de viver, já ção responsável e consciente de seus apetites e desejos.
que o homem é o Super-homem. d) O principal paradigma da moralidade, hoje, possui critérios
de valoração regidos pelo seguinte princípio determinante:
6. (Unicentro-PR) ou tudo ou nada. Ou o agente moral é obediente, e está mo-
ralmente justificado, ou é desobediente e está em falta. Nes-
A modernidade pós-kantiana procura ‘dialetizar’ a certe- ses termos, qualquer falta põe em evidência a condição de
za moral. Procurou-se contextualizar a realização moral no que tal agente não é bom, pois não é absolutamente bom.
momento dialético do progresso da humanidade. Procurou-se e) Combater as superstições e o arbítrio de poder, defender
encontrar uma medida para avaliar os diferentes graus de rea- o pluralismo e a tolerância das ideias, eis o paradigma da
lização moral ao alcance do homem. Reconheceu-se que a civi- moralidade contemporânea. Com efeito, a tradição reli-
lização melhorou a qualidade moral do homem, cujos instintos giosa não lhe basta, os ideais morais devem ser filiados à
animalescos foram sendo progressivamente domesticados. / moralidade de uma classe social, buscando o máximo de
Os principais representantes desse modelo relativista são os universalidade e socialização. A validade das normas deve
alemães Karl Marx e Sigmund Freud. estar filiada ao ideal universal de bem, sendo que a virtude
(CUNHA, J. A. Filosofia – Iniciação à investigação resulta do trabalho reflexivo, isto é, do controle racional
filosófica. São Paulo: Atual, 1992). dos desejos e paixões.

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Síntese
Complete o quadro com as informações que você aprendeu no capítulo, seguindo os exemplos já preenchidos. 

CRÍTICA AO CONCEITO DE CONSCIÊNCIA

CONSCIÊNCIA CRÍTICA À CONSCIÊNCIA

Contexto: Realismo Correntes filosóficas Estrutura lógica da Charles Darwin


– Fins do século XIX. Dualismo consciência – Teoria da seleção
– Expressão objetiva do – Divide a realidade entre Dualista natural.
mundo cotidiano sem fenômenos físicos e – Distinção mente/corpo. Herbert Spencer
artifícios. mentais subjetivos. – A vida mental está – Aplica a teoria de
– Distanciamento dos Monismo na alma. Darwin à natureza e seus
ideais iluministas. fenômenos, e depois à
Fisicalista
– Avanço do naturalismo vida psíquica e social
na ciência e na dos seres humanos.
literatura.

Karl Marx
– A infraestrutura
determina a
superestrutura.
Ideologia

Realismo e Filosofia René Descartes: Subjetividade Friedrich Nietzsche


o dualismo cartesiano

Sigmund Freud
O inconsciente

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Teste seu conhecimento

Filosofia
1. (Unesp-SP) d) O questionamento da noção antropocêntrica de homem,
centrada na individualidade e na subjetividade.
De um lado, dizem os materialistas, a mente é um processo
e) A distinção entre as noções biológica e histórica de homem.
material ou físico, um produto do funcionamento cerebral. De
outro lado, de acordo com as visões não materialistas, a mente
3. (Unicentro-PR) Leia o texto a seguir.
é algo diferente do cérebro, podendo existir além dele. Ambas
as posições estão enraizadas em uma longa tradição filosófica, A velha Atenas caminhava para o fim. Em toda parte os ins-
que remonta pelo menos à Grécia Antiga. Assim, enquanto De- tintos estavam em anarquia; em toda parte se estava a poucos
mócrito defendia a ideia de que tudo é composto de átomos e passos do excesso. Ninguém mais era senhor de si, os instintos se
todo pensamento é causado por seus movimentos físicos, Platão voltavam uns contra os outros. Quando há a necessidade de fazer
insistia que o intelecto humano é imaterial e que a alma sobrevive da razão um tirano, como fez Sócrates, não deve ser pequeno o
à morte do corpo. perigo de que outra coisa se faça de tirano. A racionalidade foi en-
(Alexander Moreira-Almeida e Saulo de F. Araujo. “O cérebro produz a mente?: um tão percebida como salvadora, nem Sócrates nem seus “doentes”
levantamento da opinião de psiquiatras”. www.archivespsy.com, 2015.) estavam livres para serem ou não racionais – isso era obrigatório,
seu último recurso. O moralismo dos filósofos gregos a partir de
A partir das informações e das relações presentes no texto,
Platão é determinado patologicamente.
conclui-se que
(Adaptado de: NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos.
a) a hipótese da independência da mente em relação ao cé- São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.21.)

rebro teve origem no método científico. 


Sobre esse diagnóstico, considere as afirmativas a seguir.
b) a dualidade entre mente e cérebro foi conceituada por
Descartes como separação entre pensamento e extensão.  I. A plena racionalidade é uma exigência para que a ação
c) o pensamento de Santo Agostinho se baseou em hipóte- seja justa.
ses empiristas análogas às do materialismo.  II. A supressão dos instintos leva a uma vida verdadeiramen-
d) os argumentos materialistas resgatam a metafísica platô- te livre.
nica, favorecendo hipóteses de natureza espiritualista.  III. A racionalidade a qualquer custo é remédio possível para
aqueles que não são mais senhores de si.
e) o progresso da neurociência estabeleceu provas objetivas
IV. A escravidão frente às forças presentes no próprio homem
para resolver um debate originalmente filosófico.
é um sintoma de decadência.
2. (Unemat-MT) Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e II são corretas. 
“A centralidade da subjetividade, a ênfase no indivíduo,
b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. 
a valorização do homem serão também problematizadas ao
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. 
longo do desenvolvimento do pensamento moderno através
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. 
de várias teorias e descobertas científicas que questionam, de
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
diferentes pontos de vista, o antropocentrismo, a centralidade
atribuída ao homem. Entenda-se por isso a definição tradicio-
4. (Enem)
nal de homem encontrada na modernidade, o próprio conceito
de natureza humana como dotada de consciência autônoma. A moralidade, Bentham exortava, não é uma questão de
É ilustrativa a esse respeito a famosa frase de Michel Foucault agradar a Deus, muito menos de fidelidade a regras abstratas.
na conclusão de As palavras e as coisas (1966), “[…] o homem A moralidade é a tentativa de criar a maior quantidade de felici-
é uma invenção recente na história de nosso pensamento, e dade possível neste mundo. Ao decidir o que fazer, deveríamos,
talvez seu fim esteja próximo”. portanto, perguntar qual curso de conduta promoveria a maior
Marcondes, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a
quantidade de felicidade para todos aqueles que serão afetados.
Wittgenstein. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 254. RACHELS, J. Os elementos da filosofia moral. Barueri-SP: Manole, 2006.

A afirmação de Michel Foucault é citada no final do texto Os parâmetros da ação indicados no texto estão em confor-
por Marcondes para ilustrar um processo de argumentação midade com uma 
a respeito da definição tradicional de homem. Assinale a al- a) fundamentação científica de viés positivista. 
ternativa que explicita o sentido do enunciado de Foucault. b) convenção social de orientação normativa. 
a) A ascensão do antropocentrismo na modernidade. c) transgressão comportamental religiosa. 
b) A possibilidade da extinção da humanidade. d) racionalidade de caráter pragmático. 
c) A necessidade de preservação da subjetividade humana. e) inclinação de natureza passional. 

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