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Formação do conceito de soberania – 8ª PROVA – 1-4-2015 – m5/2/8/5/5/7/5/2

A FORMAÇÃO DO CONCEITO
DE SOBERANIA
a história de um paradoxo

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A FORMAÇÃO DO CONCEITO
DE SOBERANIA
Formação do conceito de soberania – 8ª PROVA – 1-4-2015 – m5/2/8/5/5/7/5/2

a história de um paradoxo

Juliana Neuenschwander Magalhães

2014

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ISBN 978-85-02-21485-9

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Este trabalho é dedicado à memória de


Niklas Luhmann. É dedicado aos momentos
preciosos em que pude, com Raffaele De Giorgi,
partilhar da maravilhosa presença deste teórico
genial e desta pessoa adorável no mundo.
É dedicado também àqueles que, com
Luhmann, conheceram a paixão pela teoria ou,
ainda, a teoria como paixão.
E é, por fim, dedicado a todos aqueles que
desejam compartilhar da presença de Luhmann,
ainda, na sociedade; muito especialmente, aos
meus alunos da Faculdade de Direito da Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, bem como
aos meus ex-alunos da UFMG, alguns deles hoje
professores, sempre meus professores.
Não por último, porque para eles existo, a
Marcus e Ernesto.

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“Conceitos históricos são conceitos que


fazem diferença na história.
Eles movem a história.
Esta diferença histórica, então,
torna-se parte de sua significação.”
Niklas Luhmann

“Todos os conceitos nos quais se resume semiotica-


mente um processo completo escapam à definição;
só é definível aquilo que não tem história.”

Nietzsche

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Agradeço aos Professores Raffaele De Giorgi


e Menelick de Carvalho Netto pela orientação
na realização da tese que deu origem a este livro.
Ao Professor Celso Campilongo minha gra-
tidão pela rigorosa análise do texto e pelo in-
centivo à publicação, já em 2000.
Agradeço também ao Max-Planck Institut
für europäische Rechtsgeschichte a hospitalida-
de que me possibilitou, durante os invernos de
2002 e 2003, o acesso direto aos clássicos do
pensamento sobre a soberania e a elaboração
de uma ampla revisão do trabalho apresentado
originariamente como tese de doutorado defen-
dida na Universidade Federal de Minas Gerais.
Ao Conselho Nacional de Pesquisa, CNPq,
minha gratidão pelo apoio continuado ao de-
senvolvimento de minhas pesquisas, mediante
concessão de Bolsa de Produtividade em Pes-
quisa.
Aos meus Pais, Ana Maria e Edison Haeckel,
por tudo e sempre.

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Sumário

Prefácio – A história de um paradoxo.............................................. 13

Apresentação .................................................................................... 25

1. O
 problema da fundação e o pressuposto evolutivo da semântica
da soberania .................................................................................. 29
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1.1 “Soberania”: etimologia e semântica .................................... 29


1.2 As origens da soberania como conceito político-jurídico ..... 34
1.3 As origens medievais da tese da soberania popular .............. 60
1.4 Para uma história semântica do conceito de soberania......... 92

2. O moderno conceito de soberania: um conceito, dois problemas 103


2.1 U m só conceito para a solução de diferentes problemas
sociais.................................................................................... 103
2.2 A
 formação da soberania moderna na tensão entre “razão de
Estado” e “direito de resistência”........................................... 115
2.3 S
 oberania como unidade da diferença de direito e política: o
direito visto como ordem do soberano e a política como sinô-
nimo de Estado...................................................................... 159

3. A tese da soberania absoluta: a coroa e o círculo perfeito da so-


berania ......................................................................................... 175
3.1 A construção da tese da soberania absoluta ......................... 175
3.2 Hobbes: a preservação da vida como início e fim da soberania 207
3.3 O
 círculo e o paradoxo da soberania: um poder ilimitado
“porque” limitado ................................................................. 225

4. Os paradoxos da modernidade e a soberania ............................. 233

Referências ........................................................................................ 241

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Prefácio
A história de um paradoxo

Está muito na moda, aqui no Brasil, “direito e literatura”. Algo


impreciso, sobre o que muitos falam, em sentidos bastante dife-
rentes. As diferenças entre os juristas-literatos não são pouco
relevantes, já que não são apenas diferenças de tonalidade: so-
bretudo dizem respeito ao fato de que não está claro o que se
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compreende por “direito e literatura”. Aquilo que torna inapreen-


sível o espaço cognitivo do objeto de “direito e literatura” é, cer-
tamente, a conjunção, aquele “e” que une duas indeterminações,
que não são ainda, ou não são mais que dois termos: dois concei-
tos que, conjugados, se embaçam no reenvio às duas partes de
uma distinção, que não é uma distinção de uma unidade e, por-
tanto, não é uma distinção, mas um ajuntamento de referências,
as quais, acopladas, tornam-se aquilo que poderíamos oportuna-
mente chamar de um explanatory concept. Um como tantos outros.
Daddy – pede a filha, Mary, ao pai, em um famoso Metálogo de
Gregory Bateson - what is an instinct? E o pai: An instinct, my dear,
is an explanatory concept. A filha: But what does it explain? O pai:
Anything – almost anything at all. Anything you want it to explain.
Também com “direito e literatura” se pode explicar, de fato, any-
thing you want it to explain.
É por isso que, na múltipla literatura em circulação, procura-
-se inutilmente uma determinação. A origem da corrente, como
quase sempre acontece, é norte-americana. Os buscadores de
textos literários que possam justificar a conjunção de direito e
literatura recorrem aos clássicos, preferencialmente europeus, e
esquecem que a literatura latino-americana produziu material
que dispõe de uma riqueza de sentido muito maior do que aque-

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le já utilizado, e que aqui chega, trazido pelas correntes de ar do
Norte. Um material que seria útil para se pensar de um modo
diferente não apenas aquilo que geralmente é designado por
“direito e literatura”, mas também, de modo específico, tanto o
direito quanto a literatura: um material que recolhe em si grandes
construções que poderiam ser tratadas como uma vasta riqueza
de recursos para alimentar a etérea e frágil encenação daquilo
que se continua a chamar de “direito e literatura”. Impossível,
nesse ponto, não pensar nas esplêndidas páginas de Eduardo Ga-
leano: hipotecam a soberania, dizia Galeano, porque não conhecem
outros caminhos senão aquele da mendicância. Como as classes diri-

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gentes dos países da América Latina, continuava o grande escritor


uruguaio, que confundem a impotência com um presumido des-
tino infeliz. Entretanto, seguramente, existem outros caminhos.
O livro de Juliana Neuenschwander Magalhães, que aqui
apresentamos, segue um outro percurso. A autora não tem ne-
nhuma intenção em se ocupar daquilo que está na moda. Sua
preocupação é outra. Sua intenção específica é escrever uma
história e, portanto, fazer literatura. Sua pesquisa foi voltada para
a reconstrução – construção – dos caminhos, percursos, das veredas
abertas e das veredas fechadas de uma trama, a tecer uma histó-
ria. Mas essas veredas são como os caminhos do mundo no qual
poderá ser justificada a legítima produção daquilo que será apre-
sentado como direito.
Mas a literatura não é um laboratório secreto de histórias? Não
é o universo da construção de universos de sentido que abrem
possibilidades inapreensíveis de construção de universos de sen-
tido? E a história da literatura não é um tecido que tece histórias?
Isto é, não é ela mesma história? E o direito, por sua vez, não é
um tecido de conceitos? Um conceito jurídico não é uma história?
Uma história, no sentido das histórias de que é feita a literatura?
As histórias de que é feita a literatura não contam a realidade,
não contam fatos ou personagens: uma história é uma construção

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de sentido que inventa a si mesma: a história conta sobre si mes-
ma, fala de si e, por isso, é um mundo em formato reduzido. Um
conceito jurídico, por sua vez, também é uma construção de
sentido, uma conexão de sentido (Sinnzusammenhang), um con-
teúdo de sentido (Sinninhalt) que é utilizado como um esquema
de qualificação, isto é, como sentido (dito objetivo) e que é atri-
buído ao mundo: esse é um construto que é utilizado para atribuir
sentido a alguma coisa que, ela mesma, não pode falar de si
mesma.
E uma construção de sentido não é uma história que fala de
si? Os juristas também sabem que os conceitos jurídicos não des-
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crevem a realidade, não reproduzem a realidade, não narram


fatos: se o direito contasse a realidade, então dever-se-ia reconhe-
cer que aquilo que continua a ser chamado o dever-ser do direito
deriva daquilo que é. Um sacrilégio para os juristas. Então, os con-
ceitos jurídicos são como as histórias da literatura. Não dizia Sa-
vigny que o sistema do direito é resultado da lógica e da filologia?
Também aqui, temos direito e literatura.
Juliana Neuenschwander Magalhães também escreve uma
história. Como se pode ler essa história? Quando leio (e releio)
as histórias de Juliana Neuenschwander Magalhães vejo histórias
que foram escritas no Ocidente, na Europa. Aqui, na América
Latina, pode-se apenas contar a violência que se tolerou, ou mes-
mo aquela que essas histórias permitiram que fossem praticadas
com a mais alta legitimidade. Quando vejo essas histórias, o meu
pensamento vai inevitavelmente na direção de uma certa litera-
tura, no sentido de que situo essas histórias no universo das
tramas de que é feita determinada literatura.
Kleist, por exemplo. As histórias de Kleist são histórias de
paradoxos: o direito se faz matéria explosiva e o paradoxo oculta
a irreparável violência que o direito faria a si mesmo se não es-
condesse a si mesmo de seus próprios olhos. Kohlhaas é esse pa-

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radoxo: ele experimenta sobre seu corpo e sobre sua vida como,
de fato, opera o direito, como a soberania opera realmente e,
também, como opera a justiça daquele direito e daquela sobera-
nia. E, de fato, depois que o príncipe eleitor disse: Kohlhaas, hoje
é o dia em que te foi feita justiça! (…). Veja, eu lhe entrego tudo aquilo
que te foi subtraído com violência; depois que Kohlhaas assegurou
agradecido ao grande chanceler, levantando-se e colocando a mão sobre
o coração, que o seu maior desejo na terra foi realizado; quando ele
voltou-se em direção ao patíbulo onde a sua cabeça caiu sob a machada-
da do carrasco soube – sem poder dizê-lo porque não podia ver – o
que significa dizer que a justiça é uma fórmula da contingência,

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como a descreveu esplendidamente Luhmann.


A Marquesa d’O é o paradoxo oculto que finalmente se mostra
– a Marquesa de O..., viúva de excelente reputação e mãe de crianças bem
educadas, fez com que se conhecesse por meio dos jornais que se encontra-
va, sem saber como, em estado interessante e que o pai do menino que
tivesse parido que se apresentasse; e que ela, por respeito a família, esta-
va decidida a com ele se casar – e deixa ver o tempo como conden-
sado de sentido de uma contingência que não pode, certamente,
se tornar fórmula. O duelo, onde a justiça absoluta, aquela divina,
pode continuar a operar como justiça deve se autocondicionar,
deve exonerar a si mesma do seu caráter absoluto – o imperador
inseriu nos estatutos da sagrada ordália, onde se prevê que a culpa seja
imediatamente trazida à luz do dia, as palavras: “se essa é a vontade de
Deus”.
Dessa vez, no entanto, não me interessa tanto abrir as páginas
do livro que apresentamos e ler o paradoxo que é contado pela
história – como no caso da outra história que Juliana Neuensch-
wander já contou, aquela da semântica dos direitos humanos.
Dessa vez, meu interesse é ler o paradoxo de uma história que
conta um paradoxo. Aqui, a história mesma como paradoxo.
Procuro buscar traços de leitura dessa construção, procuro ler
as páginas que Juliana Neuenschwander Magalhães escreveu

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seguindo os traços indicados por Novalis, deixando-me acompa-
nhar deles como da presença de uma sombra. Uma sombra, de
fato, permite que se veja a corporeidade do reflexo, pois ela reen-
via a algo mais, a algo que se deve intuir: ela é traço de alguma
coisa, uma imagem de alguma coisa. É assim que gostaria de
sugerir a leitura da semântica da soberania, a sua invenção, as suas
transformações: noutras palavras, o paradoxo da história de um para-
doxo. Ou mesmo: a história de uma história.
Procuro em Novalis, nos seus Fragmentos; procuro naqueles
estilhaços de rocha, sobre aquelas pedras que são desenhos ape-
nas esboçados; procuro naquelas definições, naquelas fórmulas
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nas quais o mundo se condensa sem perder nada da sua riqueza,


ao contrário, se condensa de um modo que exatamente aquela
riqueza, isto é, a sua universalidade, pode ser finalmente intuída,
sentida. Busco ali, naquelas pedras que trazem insculpido o rosto
da poesia que cura as feridas que o intelecto provoca, como diz
um fragmento (die Poesie heilt die Wunden, die der Verstand schlägt).
Juliana Neuenschwander, na sua trama sobre a semântica do
conceito de soberania, reconstrói o trabalho do intelecto (Vers-
tand): ela redescreve a história do trabalho do intelecto entorno
a seu objeto, a soberania. Juliana ocupa-se das representações
desse objeto, dos significados que lhe são atribuídos e dos signi-
ficados que, através da soberania, são construídos para qualificar
o mundo. Esse intelecto fere, golpeia, segundo o fragmento. O
trabalho do intelecto é um trabalho imanente, um trabalho con-
tínuo, que não se interrompe: e isso ocorre não porque o concei-
to oponha resistência, não pela paciência ou dor do conceito– der
Schmerz und Geduld des Begriffes, como teria dito Hegel – mas
porque, como o leitor poderá ver, a obra do intelecto tem como
sua função, precisamente, golpear e ferir: o intelecto age para
ocultar. O intelecto construiu não para deixar ver, iluminou para
delinear sombras, liberou para reprimir. Por isso, o trabalho do
intelecto que se depreende das densas páginas deste livro é tra-

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balho duro que golpeia, é trabalho duro que reprime, porque
apenas com a violência da repressão se esconde a violência que
ele torna possível, as feridas que torna inobserváveis e que, na-
turalmente, deixa abertas. Os conceitos nos quais se condensam
os significados através dos quais o poder constrói aquilo que
utiliza como realidade, aqueles significados que interpretam o
mundo que eles mesmos constroem, não inócuos e não são ino-
centes. Por isso, o intelecto fere.
Para compreender porque o intelecto fere e a poesia cura,
recorremos ainda às esculturas de Novalis, aqueles traços que são
apenas esboços, os quais, exatamente por sua essencialidade,

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constringem a escrever a sua narrativa do ponto de vista de um


intelecto que não fira, isto é, de um intelecto que renuncie a ser
aquilo que é. Em outros termos, negue a si mesmo, fazendo-se
poesia. Como dizia Maturana: termina a teoria e começa a poesia.
Nós preferimos dizer: nega-se a ilusão teórica da descrição do
mundo e se reconhece a capacidade de o construir na sua infini-
tude, isto é, sem repressão.
Die Poesie, explica Novalis, löst fremdes Dasein in Eignen auf: a
poesia dissolve e desmancha a existência estranha em algo que é
apenas seu. A poesia não esconde o mundo, não oculta a exis-
tência; a poesia não reprime aquilo que lhe é estranho, não lhe
apaga os traços, não qualifica a existência: a poesia, e portanto a
literatura, dissolve a existência em si mesma, tornando-a existên-
cia da poesia, dá-lhe sua palavra para fazê-la falar, torna-a única
e portanto universal, fá-la tornar-se história, tecido aberto, espa-
ço de infinitos reenvios, espaço do mundo que finalmente é em
si, não mais fora de si.
O conceito do qual Juliana Neuenschwander teceu a histó-
ria, como produto do intelecto, reprime a existência daquilo que
é estranho ao poder que está em si, ao poder que se autodescre-
ve como soberania; reduz a existência àquilo que Hegel chamou
de das absolut Harte (o absolutamente áspero), reduzindo-a à

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resistência infinita, que deve ser continuamente reprimida, es-
condida, ocultada.
E a história dessa repressão? É uma história que se pode con-
tar? O intelecto não pode contar o seu trabalho como trabalho da
repressão, não pode deixar ver aquilo que deve ser ocultado.
Apenas um observador externo que saiba como se escrevem as
histórias e observe o trabalho do intelecto pode ver como esse
trabalho se materializa na obra do próprio intelecto.
Die Geschichte erzeugt sich selbst, diz Novalis nos Fragmente und
Studien, 1799/1800. A história se produz, se cria, se faz por si
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mesma. A história significa uma estória, isto é, cada estória. Ela


não conta, não descreve, não reproduz coisas ou fatos. A história
não é uma geografia conceitual dos eventos: quando se faz, a
história constitui aquilo que é sua matéria. Essa matéria não é
conteúdo da história porque a história é matéria de si mesma. A
história temporaliza as conexões de sentido (Sinnzusammenhang)
que são a matéria mesma da história.
Mas os Fragmentos têm ainda um outro sentido. A conexão de
sentido que escreve a história, condensa ela mesma como patri-
mônio semântico, isto é, como conexões de sentido através dos
quais o mundo representa a si mesmo. O mundo constrói seman-
ticamente as interpretações de si que o orientam no presente.
Essa semântica é uma semântica histórica: isto significa que, nas
construções de sentido que a semântica utiliza para descrever o
mundo e para descrever as transformações do mundo, para in-
terpretá-lo, ela pode recorrer apenas ao seu próprio patrimônio:
os conteúdos de sentido da representação são, também eles,
construções semânticas. A estrutura da sociedade se apresenta a
si mesma como conexões de operações que têm um sentido. A
história da estrutura da sociedade é o espaço da presença dos
conteúdos de sentido das suas operações: isto é, o espaço do pre-
sente, no qual a sociedade repete e esquece, isto é, temporaliza a

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historicidade da semântica que alcança e na qual encontra a
matéria para a representação de si mesma.
A história da soberania que aqui Juliana Neuenschwander
Magalhães nos representa – digo: representa, no sentido hegeliano
da Aufführung – é essa história que erzeugt sich sebst, que se faz por
si, se faz a si mesma com a matéria de si mesma. Essa não é his-
tória da soberania, não é descrição de objetos, de eventos, de
teorias ou de sistemas de pensamento. Não é história de conceitos
teológicos que se explicam através do recurso a conceitos políticos
que recorrem a representações jurídicas. Esta história se faz en-
quanto se escreve; quando ela fala de sua matéria, na realidade

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ela observa a si mesma através das representações de si que a


sociedade elabora a partir, de fato, dos conteúdos de sentido que
ela oferece.
Não se trata de uma simples circularidade. Mas de uma figu-
ra estranha, particular: nas palavras de Juliana Neuenschwander
Magalhães: A soberania poderia ser representada, mais adequadamen-
te, pela figura conhecida como “tira de Möebius”. Juliana não diz, no
entanto, que o tecido do qual é feita essa tira é constituído de
fibras artificiais, cujos fios se enrolam em strange loops, como dizia
Hofstaedter, e que o resultado do trabalho das tiras que são cons-
truídas na evolução da sociedade age sobre ela, a sociedade, na
forma de hierarquias que se intersectam, para usar ainda a imagem
de Hofstaedter.
A história da soberania é representada por Juliana Neuens-
chwander Magalhães como a história de um paradoxo: como a
história de algo que tem sua materialidade no seu ser imaterial,
que se coloca no alto porque não está em lugar nenhum, que
representa a sua natureza divina através de conceitos de nature-
za exclusivamente política, que representa a sua função política
através de conceitos de natureza exclusivamente teológica. A
soberania é alguma coisa que pode diferenciar-se apenas de si

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mesma, porque é ela mesma uma unidade que deve ocultar si
mesma de si mesma, de modo a poder operar uma parte ou outra
da distinção na qual se diferencia: divindade e materialidade,
força e autolimitação da força, política e direito. A soberania é o
paradoxo que deve ocultar a unidade da diferença, porque apenas
assim pode operar a política e pode operar o direito, pode operar
a força e pode justificar a sua autolimitação, pode decidir e pode
construir aquilo que será utilizado como realidade da decisão,
pode ser praticada a violência que pode ser justificada como le-
gítima, pode construir a exceção e apresentar essa exceção como
normalidade, pode construir irracionalidade a ser apresentada
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como razão de Estado, bem como podem ser construídas artifi-


cialidades a serem apresentadas como Natureza. A história que
Juliana Neuenschwander Magalhães escreve pode ser tratada
como uma coletânea de material histórico que torna evidente a
crua realidade da afirmação de Luhmann: there are paradoxes
everywhere, wherever we look for foundations.
Mas podemos ver, também, algo mais. O problema é o poder:
a representação da necessidade de determinar o conteúdo da
exclusividade do poder, o lugar da sua fundação, a matéria da sua
legitimação, o espaço da sua manifestação. O problema é o fun-
damento, precisamente, porque do fundamento deriva a forma
que dá forma à unidade daquilo que não pode ser separado, da-
quilo que não pode ser nada mais que si mesmo, daquilo que não
pode ser superado porque deve ser superior em relação a tudo.
Do fundamento decorre também a possibilidade de configurar,
isto é, de delinear a figura na qual se manifesta o poder, de dese-
nhar a sua epifania assim como se escreve a história por si mesma,
como origem, como derivação, nascimento, aquisição, como
Dasein, como existência que não pode manifestar-se senão como
epifania de si mesma e, portanto, como ser (Sein) que se torna
visível. Em outras palavras, como algo que deve ser incondiciona-
do, porque dá a si mesmo suas próprias condições.

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Retomemos Novalis, Blütenstaub: “Wir suchen überall das Un-
bedingte und finden nur Dinge” (procuramos por toda parte o in-
condicionado e encontramos apenas coisas). A busca do incon-
dicionado deixa emergir as suas condições, as coisas, diz Novalis,
isto que é “vulgarmente” presente, aquilo que Marx chamou de
“empiria vulgar”. Em outros termos, aquilo que é absoluto conduz
a uma simples existência terrestre, a uma existência mundana,
como dizia, ainda, Marx: se vê o mundo, se veem as coisas na sua
materialidade miserável. Pode-se observar como se constrói o
gosto místico que cobre o absoluto, aquilo que não deve ser visto:
que o paradoxo deve ser ocultado não apenas porque diversa-

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mente se veria aquilo que não pode ser visto porque cega, isto é,
a unidade da diferença, mas também porque se veria que o ab-
soluto é algo que é sensivelmente suprassensível, ver-se-ia exatamen-
te aquilo que o poder deve reprimir, a materialidade daquilo que
é imaterial, a usurpação da realidade daquilo que se sublima na
invenção da própria natureza divina.
Então, o povo veria que se torna soberano quando não tem
nenhum poder, ou melhor: que ele se torna soberano apenas após
ter se tornado um conceito jurídico, uma artificialidade. E que a
sua miserável reivindicação da mais alta soberania, não só é des-
provida de sentido, mas implica uma artificialidade ainda mais
marcada. Então, poder-se-ia ver que a história que se faz por si,
na realidade, como história do paradoxo, é narrativa de outra
coisa que não si mesma, é narrativa daquilo que deve ser manti-
do na exclusão porque, diversamente, não poderia funcionar nem
mesmo o paradoxo e o seu ocultamento, porque esse explodiria
contra si mesmo. É por isso que a história do paradoxo é a histó-
ria de como se produzem formas que produzem formas que
produzem formas, como escreve Juliana Neuenschwander Ma-
galhães: unidade de distinções que ocultam unidade de distinções.
Numa linguagem mais precisa, aquela história é uma narrativa
das discriminações que ocultam discriminações que ocultam dis-

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criminações. A soberania é a luz que cega. Para falar ainda com
Novalis, nos Neue Fragmente. Noten an den Rand des Lebens: Wenn
man einen Riesen sieht, so untersuche man erst den Stand der Sonne –
und gebe acht, ob es nicht den Schatten eines Pygmäen ist (Novos Frag-
mentos. Notas à margem da vida: quando se vê um gigante, é o
caso de se buscar a posição do sol – e de estar atento que não se
trate da sombra de um pigmeu). A materialidade é visível como
sombra, como forma desenhada pelo poder, como a sua projeção,
ela se torna uma forma de formas, não pode pretender nenhuma
existência autônoma, se estende e se contrai de acordo com a
posição da fonte de luz. Não é, portanto, por acaso que a sobera-
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nia está por detrás da teoria das fontes. Assim como na teologia,
do outro lado. Aos teóricos modernos da soberania, aqueles que
aspiram à realização de novas soberanias, à afirmação de novos
lugares, de novas colocações, de novas expansões da soberania,
com o reconhecimento de novos sujeitos da soberania, poder-se-ia
sugerir que procurassem primeiro a posição do sol. Que, natural-
mente, não pode ser observado.
Poderíamos continuar. Mas preferimos deixar para o leitor a
curiosidade de ler com os seus olhos a história da repressão da-
quilo que não deve ser visto.

Raffaele De Giorgi

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Apresentação

No ano de 1994, pesquisadora na Universidade “Tor Vergata“,


em Roma, deparei-me com as dificuldades da teoria jurídica clás-
sica em explicar alguns paradoxos do direito. Naquela ocasião,
meu problema eram os princípios gerais do direito. O encontro
com Raffaele de Giorgi abriu-me a perspectiva de uma análise
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não dogmática da dogmática jurídica. Com De Giorgi aprendi, no


eco do vento forte da Masseria Campone e da música de Men-
delssohn-Bartholdy, junto à mítica e ao mesmo tempo humana-
mente próxima e doce presença de Niklas Luhmann, que apren-
der é não renunciar nunca à capacidade de aprender.
De volta ao Brasil, ousei continuar meus estudos, sempre com
aporte na Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann e Raffaele De
Giorgi, na tradicional Faculdade de Direito da UFMG, onde tor-
nei-me professora em 1998. Graças a um credenciamento especial,
pude novamente ser orientada por Raffaele De Giorgi, e desta
feita escolhemos que o paradoxo pelo qual nos interessaríamos
era aquele que se esconde sob o rótulo “soberania”. No período
1995-2000, a pesquisa desenvolveu-se em meio ao ápice do de-
bate sobre globalização e o “fim da soberania”. Minha impressão,
já então, era a de que havia, naquela discussão, um alarde ao qual
não correspondia, de fato, uma mudança estrutural na sociedade.
Minha intuição é de que não estávamos diante de uma transfor-
mação tal que permitisse falar numa global society como uma so-
ciedade diversa daquela que já conhecíamos.
Entretanto, era evidente que algo de diverso ocorria, embora
este não fosse da ordem de uma mudança estrutural. Pensei,
então, que provavelmente as transformações que observávamos

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fossem muito mais semânticas que estruturais, ou seja, encontra-
vam-se muito mais nos modos de conhecer e descrever a socieda-
de do que propriamente na estrutura social. Em vez de ocupar-me
da globalização e do “fim da soberania” dediquei-me, então, a
estudar o sentido do conceito de soberania, seu processo de for-
mação, suas transformações semânticas e, sobretudo, sua função
enquanto modalidade da descrição social. Meu objeto de estudo,
neste passo, definiu-se como sendo a “semântica da soberania”,
ou seja, a observação da formação, estabilização e transformações
do clássico conceito de soberania.
O trabalho levou-me a interessantes descobertas acerca da

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formação do próprio pensamento político e jurídico da moderni-


dade, fortemente apoiado na noção de soberania. Percorrendo os
clássicos da literatura político-jurídica, percebi que a história se-
mântica da soberania apresenta-se como a história de um para-
doxo, ou melhor, a história de um paradoxo que se desenvolve
na forma de outro paradoxo que, por sua vez, desdobra-se num
outro paradoxo. Compreendi, então, que a soberania não estava
em seu fim, simplesmente porque não há soberania a ter fim. A
soberania não é a realidade do poder ou do direito, mas é uma
forma da descrição do poder e do direito praticados pelo Estado
moderno. O poder não é soberano, mas se autodescreve como
tal. Também o direito não é soberano, e nem mesmo é um pro-
duto da soberania, seja seu titular o monarca absoluto ou o povo.
Soberania absoluta e soberania popular são diferentes versões do
paradoxo da soberania.
O texto não foi imediatamente publicado, como foi nossa
intenção original e a recomendação da banca examinadora. Em
2000 iniciei outro doutorado em Lecce, Itália, concluído durante
meu período de pós-doutoramento no Instituto Max-Planck de
História do Direito Europeu em Frankfurt (nos invernos europeus
de 2002 e 2003), para fazer concurso para a disciplina Sociologia
do Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao chegar

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ao Rio, encontrei a Faculdade Nacional de Direito em franco
processo revolucionário e, nos anos seguintes, engajei-me na luta
pela reconstrução daquela instituição. Tornei-me Diretora da
Faculdade no período 2005-2009 e, mais tarde, sucedi a Profes-
sora Margarida Camargo na coordenação do recém-criado Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito da UFRJ.
Com alguma surpresa, passados tantos anos de sua elaboração,
encontrei o texto fresco, atual, com sua compreensão facilitada
pela passagem dos anos e por um certo exaurimento, após ter
sido inflacionado, do discurso da globalização e do fim da sobe-
rania. De fato, o temor de que a soberania estava definhando
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precisou fazer as contas, no século XXI, com o exercício da “so-


berania” de forma descontrolada por parte do Estado e, também,
para além do próprio Estado. De fato, agora pode-se ver com
maior clareza, não era de fim de soberania que se falava nos anos
1990, e sim do desvelamento de um paradoxo.

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1 O problema da fundação e o pressuposto
evolutivo da semântica da soberania

1.1  “Soberania”: etimologia e semântica


O conceito de “soberania” representou, na modernidade, o pon-
to de partida para a compreensão do direito e da política como sis-
temas funcionalmente diferenciados. O primeiro autor a ocupar-se,
ao final dos seiscentos, com uma definição da soberania, conceito
em circulação então havia alguns séculos, foi Jean Bodin. No célebre
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Les Six Livres de La République, cuja primeira edição data de 1567,


Bodin definiu soberania como “o poder absoluto e perpétuo da Re-
pública”1. Este conceito, afirmou Bodin assinalando também os
antecedentes gregos do termo, a princípio equivaleria àquilo que os
romanos anteriormente haviam chamado de maiestatem e os italianos,
de segnoria. A modernidade trouxe consigo a necessidade, no entan-
to, para a compreensão dos problemas característicos do Estado
moderno, de uma fixação de sentido, desconhecida até então, de
soberania: “é portanto necessário formar-se a definição da soberania,
porque não houve nem jurisconsulto nem filósofo político que a
tenha definido: porque este é o ponto principal e o mais necessário
de se compreender no tratado da República” (BODIN, 1578: 89)2.
O termo “soberania”, portanto, ainda que não tenha sido
novidade do século XVI, somente então adquiriu aquela signifi-

1 “Fouuerainité eft la puissance abfoluë & perpetuelle d’Vne Republi-


que” (BODIN, 1578: 87).
2 ”Il eft icy besoin de former la definition de fouverainité, parce qu’il
n’y a ny Iurifconfulte, ny philosopfhe politique, qui l’ait definie: iaçoit
que c’eft le poinct principal, & le plus neceffaire d’eftre entendu au trait-
té de la Republique”(BODIN, 1578: 87).

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cação, na qual até hoje é lembrado. Empregada já no tardo-me-
dioevo (os primeiros registros datam do século XIII), a expressão
“soberania” conheceu, desde então, uma história etimológica e
semântica marcada por profundas transformações. Tais desloca-
mentos semânticos sucederam, a uma distância considerável,
como de resto sucede com todos os conceitos inventados como
modalidades da autodescrição da sociedade, transformações que
foram não apenas conceituais, mas que significaram radicais mu-
danças nas estruturas sociais (LUHMANN & DE GIORGI, 1993).
Assumindo tal ponto de vista, consideramos que uma abordagem
da história do conceito de soberania traz proveito, apenas, se esta

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tem como escopo observar, através das alterações etimológicas e


semânticas, as profundas transformações sociais que este concei-
to veio traduzir. Estas variações etimológicas e semânticas, a
partir do período tardo-medieval, mas sobretudo a partir do mo-
mento em que foi estabilizado na modernidade como um concei-
to central do discurso político-jurídico, entrelaçaram-se, de tal
forma, que não é de pensar nesta evolução sem descuidar das
mudanças sociais que, no século XVI, a fixação do moderno con-
ceito de soberania veio imdicar. Por isso, neste estudo da história
semântica do conceito de soberania, as considerações etimológi-
cas que passamos a desenvolver representam, apenas, indicações
para uma reconstrução desta trajetória do sentido da soberania
em face da evolução social.
A palavra “soberania” tem sua raiz no francês antigo souvera,
em italiano soprano ou sovràno, que derivam do adjetivo do baixo
latim superaneus. Denotou, primeiramente, a “qualidade do sobe-
rano”, daquele que tem supremacia ou está em posição de supe-
rioridade em relação a outros – seus inferiores. Na Idade Média,
quando começam a despontar no vocabulário político e jurídico
– de forma aproximadamente simultânea, as palavras souveraine-
tè (para os franceses) e sovranità (para os italianos) indicam a
posição de superioridade de uma pessoa, ou seja, a posição da-

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quele que é superior, sendo utilizadas para expressar essa ideia
em muitos contextos: na religião, nas relações familiares e, por
fim, também na política e no direito. Etimologicamente, o adje-
tivo “soberano”, referido a uma pessoa, antecedeu a formação do
substantivo “soberania”, que vem indicar a qualidade daquela
pessoa. Tal fato demonstra que ocorreu um processo, ao fim do
qual a qualidade indicada por “soberania” separou-se da pessoa
chamada “soberano”. Observando-se esse processo evolutivo,
pode-se determinar o cerne do conceito nesta progressiva desper-
sonalização da noção de soberania que, afinal, acabou por tradu-
zir – curiosamente – não a supremacia do poder, mas a submissão
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deste à lei3. Nessa evolução, falou-se primeiro de uma “soberania


que ao soberano pertence” e, somente depois, em soberania como
a qualidade de um ente abstrato como o Estado ou, ainda, o
“povo”.
Nesta obra, devemos acompanhar esse processo evolutivo.
Uma primeira incursão no percurso etimológico do termo indica
como se deram essas transformações semânticas sofridas pela
palavra “soberania” que, como vimos, deriva do substantivo “so-
berano”. Souverain (soberano) é um termo que, na Idade Média,
guarda uma proximidade de uso com sieur (senhor), palavra que,
igualmente, denotava superioridade como qualidade de uma
pessoa. Entre souverain e sieur, no entanto, existe uma diferença
etimológica. Observa Bertrand de Jouvenel que sieur, assim como
sire e signore, são palavras que têm uma raiz diversa, ainda que
aproximada, daquela de souverain e suzerain (JOUVENEL, 1971:

3 “En oposición al hombre medieval, el hombre moderno prefirió so-


meterse al poder ininfluenciable e impersonal de la ley, antes que al poder
de una persona. El ideal de la impersonalidad y objectividad se presenta
en el mundo moderno como el principio estructurador del estado; nos
creemos libres cuando estamos subordinados a una ley que se burla de
cualquier acto nuestro de arbítrio u oposicíon” (HELLER, 1995: 85).

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213). Signore, em italiano, deriva de seniorem, enquanto sire e sieur
derivam de senior, sendo que ambos descendem da palavra senex,
trazendo a ideia de superioridade conexa à noção de “velhice”.
Senior (sire, sieur) é uma palavra já presente no Baixo Império para
designar o nobre que detém o domínio fundiário e o poder mili-
tar. Em 1290, na Inglaterra, era este também o sentido da palavra,
como se pode depreender de seu uso: “For sire king, Þou art mi
souerein, and Þe erchebischop al-so”4. O latim vulgar superanum, por
sua vez, é formado a partir do prefixo super (que, embora expres-
sasse igualmente a noção de superioridade, não se vinculava à
noção de “velhice”) e resultou no termo souverain, ao passo que

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suzerain se origina da raiz sus (denotando relação de dependência).


Na Alta Idade Média, super aparecia para apontar um vínculo de
parentela: “Paternum (feudum) autem voco quicumque ex superioribus
id acquisivit, etc.” (CALASSO, 1997: 44-45). O termo tornou-se
mais comum, mas apenas no período tardo-medieval teve seu
uso estendido ao vocabulário político, uma vez que a idade pre-
cedente preferira palavras como maior (de onde maiestas5) ou in-
ferior para denotar relações de superioridade (indicando o lado
que está acima) ou de inferioridade (indicando o lado que está
abaixo). Tanto na expressão sire (senior, signore) quanto na palavra
souverain (suzerain), encontra-se presente a ideia de “estar acima”.
Tais expressões foram, então, utilizadas indistintamente e em

4 “Ao senhor rei, por sua arte senhor e também arcebispo” S. Eng. Leg,
1290. Cit. The Oxford English Dictionary, A New English Dictionary on Histori-
cal Principles, v. X. Oxford: Clarendon Press, 1933, p. 487.
5 Conforme observa Ari Marcelo SOLON, os romanos não conheceram
o conceito de soberania, ainda que a ideia imperial de Roma tivesse de-
sempenhado um papel crucial na tradição deste conceito: “O direito ro-
mano outorgava majestas, imperium e potestas ao populus Romanus, cujo
direito de representação era exercido simultaneamente pelo Princeps e
pelo Senado” (SOLON, 1997: 21).

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múltiplos contextos: “um pai era chamado de ‘sire’ por seu filho,
como se diz ainda na Inglaterra para os cavalos e os cães de raça,
um esposo era o ‘sovrano’ de sua mulher, o seu senhor, enquan-
to um rei era chamado de ‘mio sire’” (JOUVENEL, 1971: 109)6.
Essa grande multiplicidade de significados que o termo soberania
encontra no vocabulário medieval torna necessária uma delimi-
tação do campo de pesquisa e, também, a sua especificação. Por
isso, consideraremos aqui o uso político-jurídico tardo-medieval,
no qual o sentido do termo “soberania” adquire contornos que
serão cada vez mais claros e relevantes para as formulações teó-
ricas posteriores. Buscaremos, nesta direção, examinar o proces-
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so semântico-político tardo-medieval. No século XIII, dadas algu-


mas transformações sociais que a seguir descreveremos, as
acepções de super e senior aproximam-se, adquirindo uma cono-
tação propriamente política ligada à situação política de então.
Aquela comparação de idade, que estava implícita ao originário
termo senior, acaba por atrair a expressão superior, compreendido

6 No Dicionário Oxford encontramos exemplos destes múltiplos usos, do


marido em relação à sua mulher:”To hire lord & souerayn seide sche than:
‘My sovereyn’, sche seide, ‘owre owne am J’ (“Para o mais alto lorde &
soberano ela então disse: ‘meu soberano’, ela disse ‘eu sou sua’.” Loveli-
ch, Merlin, 6336, 1450 apud The Oxford English Dictionary, A New English
Dictionary on Historical Principles,1933: 487) ou, em ainda um outro senti-
do, aparentemente bem diverso, mas basicamente o mesmo, de uma
pessoa ou coisa que supera outras em suas qualidades (“This Soveraigne
of her Sexe”, utilização do século XIX, no contexto do então nascente
movimento feminista (A. Stafford, Fem. Glory (1869), 75, idem) A com-
paração dos usos, neste caso, é bastante curiosa. No século XV o marido
é o “soberano”de sua mulher, sobre ela exerce sua supremacia; quando
as mulheres querem abolir essa hierarquia e se inicia a “luta” feminista,
reentra na argumentação a noção de hierarquia da qual, supostamente,
as mulheres queriam liberar-se: a mulher é soberana em relação ao seu
sexo.

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este no sentido de ascendente, na direção de um significado aná-
logo no mundo feudal (CALASSO, 1957: 46).
Diante do feudalismo e da afirmação da noção de território
correlata a essa forma de estruturação estratificatória da socieda-
de, a palavra “soberania” passou a concentrar os sentidos de
“velhice” e “superioridade”, sendo usada de forma inovadora em
referência à senhoria – tradicional – que se exerce sobre um ter-
ritório. O conceito de soberania adquire, então, significação pro-
priamente política7.

1.2  As origens da soberania como conceito político-jurídico

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Em torno do termo “soberania” sedimentou-se, gradualmen-


te, um conceito que se afirmou e estabilizou como solução de
diversos problemas sociais. A palavra “soberania” foi utilizada
relativamente tarde – mas ainda no período medieval – com re-
ferência a uma qualidade do poder. Como anotamos acima, os
usos medievais da palavra eram múltiplos e os sentidos bastante
díspares. Esta nossa posição, no entanto, está longe de represen-
tar um consenso na doutrina. Alguns autores procuram identifi-
car já na interpretação da Bíblia que se difunde na teologia me-
dieval o uso propriamente político do termo “soberania”.
Segundo esses autores, a referência política da palavra “soberania”
estava presente já em sua utilização na teologia medieval, de
forma que o seu sentido moderno é visto como resultado da “se-
cularização” de um conceito teológico. Argumenta-se que o
conceito de soberania, referindo-se à noção de potestade, residi-

7 Segundo Mario De La Cueva, “la Alta Edad Media, sin embargo, no


acuñó la palabra soberanía, pero no tuvo necesidad de ella, porque los
términos: derecho divino, derecho revelado y mandamientos de Dios,
poseen una fuerza mayor” (HELLER, 1995: 11).

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ria sobre uma base teológica, estando presente nos textos bíblicos.
A referência é o conceito de “soberania real de Deus”, apresen-
tado no Antigo e no Novo Testamento. No Velho Testamento,
diz-se que Israel experimenta a soberania de Javé na ação de um
Deus sobre a história8. A Seigneurie royale de Dieu é, em primeiro
lugar, a vontade salvadora de Deus, a realização da profecia do
Deuteronômio (FARDELLA, 1997: 117). No Novo Testamento, a
soberania de Deus tem um caráter escatológico; nos evangelhos,
ela é relativa a uma escatologia que pode realizar-se a qualquer
momento. Segundo o Novo Testamento, o poder supremo de Deus
encontra seu fundamento na vontade de Deus: Deus quer ins-
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taurar acima de todas as coisas um chefe único, o Cristo (Eph. 1,


10). Na teologia de São Paulo (séc. I), a Igreja formava um corpus
mysticum, cuja cabeça era Cristo, pois a soberania do Cristo é a do
Cosmocrator, que resume em si todas as coisas e à qual todo poder
cósmico está submetido (FARDELLA, 1997:117). A Igreja como
corpo de Cristo significa a sociedade cristã constituída por todos
os fiéis, presentes, passados e futuros, “existentes em ato ou po-
tência” (KANTOROWICZ, 1998: 126).
Essa ideia, posteriormente, acaba transferindo-se para a Igre-
ja como organismo administrativo e não apenas como unidade
espiritual, moldando o pensamento político do período medieval
e passando a ser utilizada, então, tanto para fundar como para
negar determinadas prerrogativas dos papas. Por ocasião da con-
trovérsia sobre o local em que deveria residir o papa, se em Roma
ou em Avignon, por exemplo, escreveu Pelagio que “a Igreja, que

8 “Israel fait l’expérience de la souveraineté de Jahwé dans l’action de


son Dieu sur l’histoire: elle n’est pas un ‘Royaume’, ni une ‘sphére de
domination’, mais elle s’exprime dans l’action par laquelle Jahwé conduit
et gouverne son peuple en roi, action qui procède de la pouissance abso-
lue de Jahwé et se manifeste par le rôle de guide qu’il remplit à l’égard
d’Israel” (apud FARDELLA, 1997: 117).

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é o corpo-místico de Cristo (...) e a comunidade dos católicos (...)
não é delimitada pelos muros (de Roma). O corpo místico de
Cristo é onde está a cabeça, isto é, o papa” (KANTOROWICZ,
1998: 132)9. É assim que segundo alguns, como Kantorowicz,
esse conceito de corpus mysticum acabou servindo para uma fun-
damentação do Estado moderno, também, como um organismo.
A metáfora do corpo serviu tanto para fazer com que a elevada
ideia da Igreja como corpus mysticum cuius caput Christus fosse in-
flada de conteúdos seculares, corporativos e também legais, como
para oferecer ao “Estado” secular – partindo, por assim dizer, do
extremo oposto – sua própria exaltação e glorificação quase reli-

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giosa. Dessa forma, “o conceito nobre do corpus mysticum, após


haver perdido grande parte de seu significado transcendental e
ter sido politizado e, em muitos aspectos, secularizado pela própria
Igreja, foi uma presa fácil do mundo do pensamento dos estadis-
tas, juristas e acadêmicos que estavam desenvolvendo novas
ideologias para os Estados territoriais e seculares nascentes”
(KANTOROWICZ, 1998: 133).
A tese de uma origem teológica da noção de soberania foi
postulada, no século XX, por Carl Schmitt, para quem “soberania”,
na modernidade, nada mais é do que um conceito teológico “se-
cularizado”10. Na célebre abertura do terceiro capítulo de sua

9 O conceito de “corpo místico” permanece sendo utilizado durante o


período medieval, aparecendo em autores como Guilherme de Ockham,
desta vez para negar ao papa a prerrogativa de vender bens da Igreja,
porque estes não lhe pertenciam pessoalmente, mas sim a “Deus e seu
corpo místico, que é a Igreja” (KANTOROWICZ, 1998: 132).
10 “Secularização” é um termo muito utilizado na teoria social e política,
principalmente por Max WEBER. Cfr. WEBER, Max. Economia y sociedad.
Esbozo de sociología comprensiva. Ed. aos cuidados de Johannes Winkel-
mann. México: Fondo de Cultura Economica, 1992, p. 356 e 573. Ver,
também, BLUMENBERG, Hans. The Legitimacy of the Modern Age. Cambrid-
ge: MIT Press, 1983.

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Teologia política, Schmitt afirma que todos os conceitos centrais da
teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados (SCHMITT,
1972: 61). Esta é uma tese que, como mais adiante discutiremos,
é bastante controvertida. Schmitt oscila entre as concepções pré-
-moderna e moderna da política, quando afirma como nota dis-
tintiva da modernidade a chamada “secularização”. Esta, no en-
tanto, não nos parece uma explicação suficiente sobre a
característica de uma sociedade que passa a se descrever “moder-
na”. Por secularização Schmitt parece entender uma “apropria-
ção”, embora com notas distintivas, de uma mesma tradição,
configurando uma continuidade que deveria ter a sua “forma”
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específica resgatada no campo secularizado da política, ela própria


uma teologia secularizada. Dessa forma, quando Schmitt consi-
dera o conceito de soberania um conceito teológico secularizado,
assume-o de forma paradoxal como tipicamente moderno, pois
precisamente aí, e somente aí, residiria a sua nota distintiva, a
sua característica específica, necessária para a autoexplicação do
Estado moderno (SCHMITT, 1972: 61). Isso equivale a dizer que,
naturalmente, mesmo para a Teologia política, a Idade Média não
conheceu a moderna noção de soberania.
Embora não estejamos convencidos de que a modernidade
da sociedade moderna consista no fato de esta ser “secularizada”,
as teses de Schmitt são esclarecedoras precisamente naquilo que,
com elas, se pretende ocultar. A ideia de Schmitt é muito inte-
ressante, portanto, não apenas pelos motivos que ele explicita-
mente indica, mas em particular pelo que está implícito na sua
reconstrução da ideia moderna de soberania. Soberania é um
conceito teológico e a secularização desse conceito, isto é, a sua
“mundanização”, torna possíveis representações de qualidades
do poder político que, no entanto, não podem por si sós cancelar
as origens teológicas do próprio conceito. Em outros termos,
mesmo quando referido ao poder soberano mundano, o concei-
to de soberania traz em si uma representação teológica desse

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poder. As teorias da soberania mundana conservam sempre al-
guma coisa de teológico na representação da “mundanidade”. As
origens teológicas ressurgem no plano da fundação que oculta a
realidade do poder.
Assim, ao examinarmos a história do conceito de soberania,
o interessante é não apenas obsevar como o conceito político-
-jurídico de soberania pode ser interpretado como uma apropria-
ção, pela teoria política moderna, do conceito teológico de “so-
berania real de Deus”, mas também ver nessa apropriação uma
utilização teológica de uma característica da mundanidade, a
política. Analisando a questão “pelo avesso”, podemos ver, então,

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a necessidade teológica de se fazer referência à noção de um


poder secular11 – como “realeza” – na construção da noção de
poder temporal. Na formulação teológica da ideia de poder divi-
no (soberano) encontra-se presente a noção de realeza, ou seja,
de poder secular, como um atributo a mais do poder divino: “E
o Senhor será rei sobre toda a terra; naquele dia um será o Se-
nhor, e um será o seu nome” (Zacarias, 14, 9). Do mesmo modo,
mas de forma especular, assim como o poder de Deus, na Idade
Média, é tal que não se restringe às coisas do céu, também o
poder dos reis, na modernidade, passa a ser interpretado como
supremo na medida em que tem sua origem no poder divino.
Em ambas as descrições, a teológica, que quer apontar a supe-
rioridade do poder divino, e a política, que quer indicar a exclu-

11 Como observa Luhmann, o poder, como meio da comunicação, é um


universo da existência social: “Os meios de comunicação simbolicamente
generalizados possuem, no que também são comparáveis à linguagem,
uma referência sistêmica necessária: a sociedade. Eles se referem a pro-
blemas de relevância para a totalidade da sociedade, regulam constelações
possíveis a todo momento e em toda parte da sociedade” (LUHMANN,
1992: 75).

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sividade do poder mundano soberano (porque fundado na
vontade de Deus), o recurso para a justificação destas caracterís-
ticas está, no campo da religião, no universo político e, no cam-
po político, no universo religioso.
Tal fato reflete a indiferenciação medieval entre política e
religião e, consequentemente, entre teologia e reflexão jurídico-
-política; reflete, simultaneamente, o progressivo processo de
diferenciação, característico da modernidade da sociedade mo-
derna, dos sistemas sociais funcionalmente diferenciados. Aque-
la indiferença fez aparecer, na Alta Idade Média, o rei como
gemmina persona, humano por natureza e divino pela graça. Quan-
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do consagrado, o rei ligava-se ao altar enquanto “rei”, a um só


tempo humano e divino, e não apenas como pessoa, como passa
a ocorrer posteriormente. A teologia política, nesse período, ain-
da era moldada pela linguagem litúrgica. Como observa Kanto-
rowicz, até então não se desenvolvera uma “teologia política”
secular independente da Igreja, sendo o rei “’litúrgico’ como rei,
porque e na medida em que representava e ‘imitava’ a imagem
do Cristo vivo. ‘Sois o vigário de Cristo; ninguém senão seu imi-
tador é o verdadeiro senhor’, proclamava o historiador Wipo no
campo imperial” (KANTOROWICZ, 1998: 72).
Na Baixa Idade Média, passa-se da liturgia à ciência do di-
reito, ou seja, da linguagem litúrgica à linguagem da ciência do
direito, da realeza “litúrgica” para a realeza do “direito divino”,
que se fundava mais em doutrinas jurídicas do que no pensa-
mento teológico, uma vez que se tratava de direito, ainda que
este fosse teologicamente fundado. Importante, para esta pas-
sagem, foi a introdução no pensamento medieval, pelo Papa
Gelasio e com uma clara inspiração no direito romano, da dife-
rença entre autorictas e potestas. Essa diferença vai tornar possível
uma interpretação diversa do “poder divino dos reis” e da “au-
toridade secular dos Papas”, na medida em que atribui a um e
outro qualidades diferentes do poder: ao papa corresponde a

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autorictas12, ao passo que, ao imperador, dá-se a potestas13. Ao
longo dos séculos XI e XII tornou-se cada vez mais difundida a
ideia defendida por Gelasio de que nenhum homem, depois da
vinda de Cristo, poderia ser ao mesmo tempo sacerdote e rei
(BLOCH, 1999: 51). Enquanto os dois poderes foram indistintos,
a sua união fora expressa na imagem de Cristo, rei e sacerdote.
O poder mundano expressava apenas uma face dessa duplicidade.
Depois, ao contrário, a gradual diferenciação dos dois poderes
acentuou a distinção das funções: ainda que numa relação de
supraordenação e de subordinação, isto foi projetado como a
garantia do poder universal da Igreja, para a manutenção da or-

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dem, para sua defesa e para a aplicação da justiça.


Essas funções poderiam ser divergentes, como de fato no
futuro acabaram manifestando-se, entrando em contraposição.
Neste período, no entanto, as diferentes funções, na sua indistin-
ção, sustentaram-se reciprocamente. O processo de diferenciação
das funções religiosa e política é um processo muito complexo
que escapa às reconstruções sistemáticas que aqui poderíamos
desenvolver, tendo por finalidade compreendermos essa passagem
da indistinção dos dois poderes à sua diferenciação e oposição. É

12 O conceito de autorictas, cunhado pelos romanos, na sua origem faz


referência a problemas ligados à legitimidade. “Auctoritas; ius obligandi
alios”: autoridade é o direito de impor obrigações aos outros (BRUNNER,
1983: 1043). De acordo com o princípio gelasiano, acolhido no século XIII
pelo Decreto, colocam-se no mesmo nível a “autorictas sacra pontificum”
e a “regalis potestas” (contra os canonistas que postulavam a superiori-
dade do papa sobre o imperador, proclamando o primeiro como “verum
imperator”) (Cf. CALASSO, 1958: 48-49).
13 No sentido de “plenitudo potestatis”, como uma soma de poderes
(inclusive a iurisdictio) cujo único titular, na consciência medieval, era o
imperador, dominus mundi. Apenas depois, nos séculos XII e XIII, afirmar-
se-á a fórmula da potestas regis, segundo a qual “rex superiorem non
recognoscens in regno suo est imperator”.

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assim que, quando dessa passagem, no tardo-medievo os reis
apareceram não mais como “sacerdotes”, mas como “tenentes”
de Deus14. Ao referir-se ao tempo das cruzadas, Bossuet tece al-
gumas observações que bem ilustram as “trocas” presentes no
período medieval entre poder espiritual e secular. Por um lado,
reis e príncipes, ao partirem para a Guerra Santa, punham suas
pessoas e bens sob a proteção dos Sumos Pontífices, servindo-se
do nome e do respeito da religião para colocarem-se a salvo dos
ataques de seus inimigos. Simultaneamente, a potestade espiritual
aproveitava-se de todas essas coisas para usurpar os direitos dos
soberanos, o que pode ser provado com as “palavras tão sábias”,
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que podem ser lidas no testamento do rei São Luís, com as quais
encomenda a Felipe, seu filho e sucessor, que antes de tudo se
esforce em respeitar e honrar a Igreja. Mas, por outro lado, ocor-
reu também que o poder temporal derrogara alguns direitos do
poder espiritual, dado que desde o século VI, ao tempo de São
Gregório, o Grande, os imperadores pretendiam que um papa
eleito canonicamente não pudesse ascender à Santa Sé sem ter
antes obtido deles sua confirmação15.

14 “Dieu, qui est le père et le protecteur de la société humaine, qui a


ordonné les rois pour la manitenir, qui les a appelés ses christs, qui les a
faits ses lieutenants, et qui leur a mis l’epée en mains, pour assurer la
justice” (BOSSUET, J. B. “Véme Avertissement aux Protestants sur le lettres
du Ministre Jurieu. Les fondementas des empires renversé par ce ministre”,
in Oeuvres de Bossuet, tome XXI, Versailles, apud FARDELLA, 1997: 117).
15 “Muchas veces también los Reyes y los Principes al partir para la
guerra Santa, ponian sus personas y bienes baxo la proteccion de los
Sunos Pontifices. (...) se servian en mil maneras del nombre y del respe-
to de la Religión para ponerse à salvo de los ataques de sus enemigos: por
lo que sucedia muchas veces, que los mas importantes negocios temporales
se trataban y manejaban en Roma ante el Sumo Pontifice. Entretanto la
potestad espiritual se aprovechaba de todas estas cosas, para ussurpar los
derechos de los Soberanos (...) Non es menester mas prueba que aquellas

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Não há como se falar em um sentido puramente “teológico”
no uso medieval do termo “soberania”, do mesmo modo que não
se pode falar, então, em um uso propriamente político deste. Isso
leva-nos a concluir que, durante o período medieval, o uso da
palavra soberania já trazia ao termo um significado político. Nos-
sa conclusão suspeita das teses da “secularização”, que parecem
interpretar tal processo como um progressivo abandono do mun-
do por parte da religião. O que ocorre é que, em um primeiro
momento, esse significado político não se diferenciava do signi-
ficado religioso (litúrgico). Somente depois, gradualmente, foi-se
configurando um sentido propriamente político-jurídico 16 da

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palavra “soberania”, na direção da formulação desse conceito em


sua moderna significação.
Ainda que de forma limitada, aqui se torna necessária uma
explicação sobre essa passagem, isto é, sobre a forma como, ao
desgarrar-se da referência teológica, já no período medieval, a
palavra “soberania” passou a ser utilizada no contexto propria-
mente político, para indicar o relativo poder dos senhores feudais
e do próprio rei (por sua vez, também ele um senhor feudal entre
tantos outros) e as suas prerrogativas da legislação e da jurisdição.

palabras tan sabidas, que se leen en el testamento del magnanimo Rey


San Luis, por las quales encomienda à Phelipe su hijo y succesor, que ante
todo aplique à respectar y honrar la Iglesia(...),De la misma suerte ha
sucedido también, que la potestad temporal se abrrogado algunos de los
derechos de la espiritual. Desde el siglo VI, en tiempo de San Gregorio el
Grande, los Emperadores querian que un Papa elegido canonicamente,
non pudiese ascender a la Santa Siede, sin haver antes haver obtenido de
ellos la confirmacion de su eleccion” (BOSSUET, 1771: 165).
16 Político-jurídico não no sentido de que já exista uma forma qualquer
de regulamentação jurídica das características da soberania, mas sim no
sentido de que esta qualidade inicialmente se desloca da natureza à pessoa,
até passar à função. Mas a função é já função política, e a soberania a esta
atribui um fundamento. Um fundamento que, portanto, é político.

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Essa passagem pode ser compreendida a partir das transformações
que o feudalismo e a noção de território a este ligada introduziram
no mundo medieval. No século XIII, conforme já observamos, o
uso político de “soberania” se difunde na França, Inglaterra, Es-
panha e Itália. Na obra Les coutumes de Beauvaisis (1283), Philippes
de Beaumanoir (1690: 81) utiliza-se do termo soberania como a
qualidade do soberano-suserano. Depois de afirmar que “cada
um dos barões é soberano em seu baronato”17, Beaumanoir con-
clui “o rei é soberano acima de todos”, porque tem um direito de
tutela geral e aquilo que este estabelece deve ser observado por
todos18. Neste sentido, explica Beaumanoir, fala-se da souveraine-
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tè que ao soberano pertence. Nesse mesmo período, surge a as-


sertiva rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator19,
cuja origem é apontada por Calasso na obra Prooemium Glossatoris
de Marino da Caramanico, escrita entre os anos 70 e 80 do sécu-
lo XIII20. Mediante esta fórmula, a essa época já adotada na Fran-

17 “Pour che que nous parlons en che Livre pluriex de Souverain, & de
che que il puet & doit fere aucunes perſonnes ſi pourroient entendre pour
che que nous ne nommons ne Duc ne Comte, que che feuſut dou Roy,
mês en tous les liex là ou li Rois neſt pas nommés, nous entendons de
chaus qui tiennent em Baronnie, car chaſcuns des Barons ſi eſt Souverains
en ſe Baronnie” (BEAUMANOIR, 1690: 181).
18 “Voirs eſtt que li Roys eſ Souverains par deſſus de fon droit le general
garde dou Roiaume, parquoi il puet fere tex Eſtabliſſements comme il li
pleſt pour le quemun pourfit, & che que il etabliſt i doit eſter renu, & ſi
nen i a nul li grant defous li qui ne puiſt eſter trais en ſe Cour pour defau-
te de droit ou de faus jugements, & pour tous le cas qui touquent au Roy
& pour che que il eft Souverains par deffeut tous, nous le nommons quant
nous parlons d’aucune Souverainité qui a li touche” (BEAUMANOIR,
1690: 181).
19 O rei que no seu reino não reconhece superior é imperador.
20 “Un momento di eccezionale importanza per la storia della formola è
segnato dalla sua apparizione nelle fonti scientifiche dell’Italia meridio-

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ça, na Itália e na Inglaterra, transferiu-se ao rei a posição que fora
atribuída ao princeps no Corpus Iuris Civilis, sem, no entanto, que
se fizesse derivar o poder dos reis de uma vinculação destes com
o Imperador. Esta estratégia consistiu numa utilização do direito
romano, visando legitimar-se a autonomia dos reis em face do
Imperador, o que se deu contemporaneamente em várias regiões:
essa mesma máxima apareceu, no ano de 1367, em um docu-
mento dos duques da Baviera, no qual se enuncia que o papa, o
imperador e o rei nada podem impor sobre os territórios dos
proprietários de terras (BRUNNER, 1983: 559). A observação da
utilização do termo “soberania”, no período tardo-medieval, com

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uma conotação já propriamente política traz consigo uma questão:


qual o sentido que esta expressão encontrou quando foi utilizada
no contexto do século XIII, ao aparecer no vocabulário político-
jurídico – e não mais meramente no vocubário dito “teológico”?
Esta discussão traz, pelo menos, duas posições antagônicas, que
constituem diferentes pontos de vista acerca da modernidade do
conceito ou da moderna necessidade de se fixar um sentido para
este, apontada de maneira explícita por Bodin nos Six Livres (BO-
DIN, 1578: 89).
A primeira posição é aqui representada por Francesco Calas-
so, para quem o sentido moderno de soberania, ainda que ligado
às características específicas do Estado moderno, despontava já
nos textos medievais. Segundo este ponto de vista, no texto de
Beaumanoir já estão presentes os dois traços característicos da
moderna noção de soberania: a posição de supremacia do rei em
relação a todas as outras pessoas do reino e o seu poder de ditar

nale, e soprattutto nella più antica che a me fin ora sia riuscito di segan-
lare, il proemio di Marino da Caramanico al ‘Liber Constitutionum ‘ di
Federico II” (CALASSO, 1958: 125). Calasso discorda das teses, como a
de Ercole, que afirmam a prioridade de fontes francesas em relação às
italianas.

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normas (fere establissemens) de observância obrigatória21. Daí que,
para Calasso, o sentido da soberania medieval era, naquele tem-
po, o mesmo que a palavra encontrou na modernidade; para este
autor, “soberania” já era um argumento central no pensamento
jurídico medieval.
Esta tese, no entanto, contraria a maioria dos autores, para os
quais soberania é um conceito tipicamente moderno. Ela apoia-se
na assertiva de que a doutrina que nega a existência e importân-
cia da soberania no pensamento jurídico medieval entende esta
como um conceito necessariamente ligado ao de Estado (moder-
no), enquanto um elemento essencial deste. Para Calasso, na
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verdade, não existe uma ligação lógica necessária entre o concei-


to de Estado moderno e a noção de soberania: quando se preten-
de ensinar que a Idade Média não conhece o conceito moderno
de soberania, entendido como poder absoluto e arbitrário do
Estado, parte-se da assertiva de que o medievo não conheceu o
conceito de Estado. Nisso, diz Calasso, residiria um paradoxo, na
medida em que a própria constatação da ausência de uma con-
cepção moderna de Estado (como um ente abstrato, único e
originário) tem como premissa lógica a negação da existência da
soberania como uma qualidade “essencial” deste22. Ora, conclui

21 Ou seja, no conceito de soberania fundem-se as noções de autorictas


e potestas. Do fato de que as “leis” postas pelos barões e reis sejam obri-
gatórias em seus domínios Calasso deduz que aqui já se encontra formu-
lada uma concepção jurídica de soberania, ou, para dizer de outro modo,
uma forma de pensar a soberania como uma qualidade do “legislador”.
Como veremos adiante este é um dos aspectos mais relevantes da moder-
na noção de soberania.
22 “In quanto, nel mondo moderno, di sovranità si discorre, e può
unicamente discorrersi, in rapporto a un ente che ha codeste caratteris-
tiche a esclusione di ogni altro, in modo da costituire, com’è stato detto
a ragione, la ‘differenza specifica’ tra esso e ogni altro ente” (CALASSO,
1957: 19).

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Calasso, assim como é moderna a construção do Estado nesse
sentido, seria igualmente estranha à Idade Média a concepção de
uma summa legibusque soluta potestas, que encontrará de fato, pela
primeira vez, esta célebre formulação na obra de Jean Bodin23.
Sustenta o autor de Lecce, no entanto, que por mais que a ideia
moderna de soberania seja estranha ao mundo medieval, é neste
que devemos buscar a sua gênese24. Aqui, parece-nos necessário
sublinhar o fato de que, se é verdade que a moderna doutrina do
Estado o descreve com as características aportadas por Calasso –
superioridade absoluta, unidade, arbítrio etc. –, então devemos
reconhecer que exatamente essas características têm uma origem

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na teologia medieval.
Por outro lado, no período medieval, em que poder e direito
eram relativamente indiferentes um ao outro, já existia a neces-
sidade de um vínculo jurídico ao poder, ainda que, naquele con-

23 Calasso desconfia que nesse conceito tipicamente moderno de sobe-


rania “vi sia stato qualche irrigidimento, e, in particolare, che il fantasma
dello Stato moderno, e, sopratutto, qualcuna delle esaltazioni più clamo-
rose di cui esso è stato oggetto nel secolo passato e nel presente, abbiano
offerto un falso angolo d’osservazione del problema storico, così che
codesto fantasma (...) vi ha proiettato la sua ombra deformante, costrin-
gendo a ripieghi, storici e dottrinali, che non appagano” (CALASSO,
1957: 19).
24 Seu ponto de vista é reforçado pela assunção de que tanto Estado
quanto soberania são apenas “dogmas” do pensamento político-jurídico:
“La verità é che, nello stesso pensiero moderno, Stato e sovranità sono
due astrazioni ipostatizzate, o, come i giuristi amano dire con infelice
parola, due dogmi; di esse, peraltro, la dottrina si è servita di solito con
estrema cautela, come per paura di esserne giocata, e nei momenti di
sincerità non ha esitato a confessare la propria sfiducia di fronte a concet-
ti che si prestano così facilmente a valutazioni soggetive e, talvolta, anche
all’equivoco. Il che non toglie, peraltro, che se ne discorra appunto di
dogmi” (CALASSO, 1957: 20).

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texto, nem poder nem direito pudessem ser percebidos como uma
unidade “soberana”. Apenas o Estado moderno, e já o moderno
Estado absolutista, conhece esta noção de unidade da política e
do direito, produzindo, de maneira cada vez mais decisiva, o di-
reito ao qual tenderá, gradualmente, a submeter-se. Para aqueles
que pensam que a moderna concepção de soberania seja o resul-
tado de um longo processo de secularização, é preciso dizer que
a conclusão desse processo não será outra coisa senão a definiti-
va submissão do poder ao direito. Soberania, de fato, será uma
modalidade da autolimitação do poder fundado no direito.
Na interpretação de Calasso, a moderna noção de soberania
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já apareceria no confronto entre o direito comum europeu e os


direitos particulares. Assim, ao longo do período medieval, a
fórmula rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator,
que a princípio significava simplesmente que os poderes que a
consciência da época reconhecia no imperador dominus mundi, no
Império Universal, deveriam ser reconhecidos a cada rei livre, no
âmbito de seu próprio reino, sofreu um alargamento tal que pas-
sou a se estender a todo ordenamento particular (para além
apenas dos reis livres), acabando por afirmar a prioridade do ius
proprium em relação à ordem jurídica universal. O direito comum,
assim, teria uma função subsidiária de regulador e coordenador
supremo, ao passo que o ius proprium seria a forma de manifes-
tação mais espontânea e livre e, portanto, também mais legítima,
da vida dos ordenamentos jurídicos particulares (CALASSO,
1957: 23)25. Isso permitiria, para Calasso, a utilização da expres-
são soberania ainda na ausência de Estado, sendo aquele termo
então utilizado em referência às ordens jurídicas particulares. Em

25 Observe-se o uso da palavra “legítima”, aqui indicando que o costume,


enquanto manifestação da vontade do povo, seria uma forma de mani-
festação do direito considerada mais “legítima”.

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síntese, Calasso nega a existência de uma vinculação entre o
conceito de Estado e o de soberania, para dizer que, mesmo na
ausência do Estado, há soberania, pois este é um conceito que
aponta para problemas jurídicos, e não propriamente políticos26.
Essa posição é, por certo, extremamente original, confirmando a
tese de que a ideia de soberania tenha tido uma função constitu-
tiva na representação da ordem medieval. Isso explica, ou justi-
fica, a nossa reconstrução semântica. Não se trata, aqui, apenas
de um problema linguístico que, em sua evolução, gerou um
conceito; trata-se de um conteúdo de sentido que vem resolver
problemas sociais específicos, tornando possível uma representa-

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ção destes. No entanto, a tese de Calasso, por essas mesmas razões,


encontra forte resistência.
A tese oposta mais convincente parece-nos aquela de Paolo
Grossi, que afirma que o termo “soberania”, no contexto medie-
val, tem que ser tomado com muita cautela, não sendo possível
identificá-lo como análogo à moderna noção de soberania. Diz
Grossi que o risco de uma interpretação equivocada do uso da
palavra “soberania” no léxico político medieval é ainda maior do
que no caso de outras palavras que apareceram no mesmo perío-
do, como, por exemplo, Estado. Os sentidos medieval e moderno
do termo “soberania” são completamente distintos, ainda que
aproximados. Assim, quando, no século XIII, Beaumanoir enun-
ciara que chascun barons est souverain en sa baronie, o domínio
“soberano” de um senhor feudal deve ser interpretado como,
apenas, um nível na escala de poderes característica da ordem
política medieval. No contexto do direito feudal, “soberania” aqui

26 Curiosamente, a questão que hoje se coloca no debate jurídico e po-


lítico é a de se poder falar na existência de Estado e, também, de direito,
na ausência de um poder soberano (v. MacComirck, Beyond the sove-
reingty state in The Modern Law Review, v. 56, jan. 1993, n. 1, como exem-
plo desta discussão).

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denota superioridade (ainda na sua significação originária de
superior, portanto), noção relativa que fixa o sujeito no interior
de uma relação hierárquica complexa, própria da ordem jurídica
medieval27.
As consequências que dessa constatação derivam são relevan-
tes. Para Grossi, é completamente inadequada ao mundo medie-
val a noção moderna de soberania. Em primeiro lugar, porque
aquela organização política medieval configurava-se na forma de
esferas políticas e ordenamentos jurídicos autônomos, e não so-
beranos no sentido moderno do termo. E, diz Grossi, se a Idade
Média jurídica é um mundo de ordenamentos, ou seja, de auto-
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nomias, não se deve esquecer que a característica essencial de


toda autonomia é a relatividade: trata-se, portanto, de indepen-
dências relativas a alguns ordenamentos, mas não a outros
(GROSSI, 1999: 48)28. Sustenta Grossi que no período medieval,
até quase todo o século XII, a vida política foi compreendida de
maneira tradicional. Os “poderes” encontravam sua limitação na
autoridade universal da Igreja (autorictas) e no poder universal do
Império (potestas). Segundo Grossi, se entendermos por soberania
um poder ilimitado, no sentido moderno, na cosmovisão medie-
val o único soberano poderia ser apenas Deus, mas este seria,

27 A oposição das duas posições está expressamente colocada em nota


no texto de Gross: “(...) questa baronia rappresenta soltanto un grado,
relativissimo, della complessa scala gerarchica feudale. Da questo testo di
Beaumanoir noi non trarremmo per nulla le conseguenze che ne trae
Calasso (...)” (GROSSI, 1999: 49).
28 “L ‘entità autonoma non appare mai come un qualcosa che ‘per se
stat’, avulsa da tutto il resto; anzi, è pensata – al contrario – come ben
inserita al centro di un fitto tessuto di relazioni che la limita, la condizio-
na ma anche le dà concretezza, perchè mai pensata come solitaria bensì
immersa nella trama di rapporti con altre autonomie. Il mondo politico
giuridico è mondo di ordinamenti giuridici perchè mondo di autonomie.”

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paradoxalmente, um soberano sobre uma ordem terrena deri-
vada de um poder necessariamente não soberano (GROSSI,
1999: 49).
No quadro dessa ordem política e jurídica pluralista, compos-
ta de várias ordens que se sobrepõem e que integravam ordena-
mentos jurídicos diversos, que tinham entre si uma relação de
coexistência, direito e política estavam unidos no amálgama re-
ligioso, mas curiosamente desenvolviam-se de maneira indife-
rente um em relação ao outro. Essa “indiferença” talvez seja o
traço mais revelador da não diferença que estes encontravam em
uma sociedade cuja única diferença eram os estratos29. Esta é uma

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“indiferença” da política (pelo menos se pensarmos política como


“governo”) em relação ao direito, e deste em relação àquela, na
medida em que o direito prescinde da política para afirmar-se
enquanto tal30: o detentor do poder, àquela época, não concebia

29 Sobre a diferenciação estratificatória, característica da estrutura da


sociedade medieval, ver LUHMANN & DE GIORGI, 1993: 281-290. Dizem
os autores que por estratificação entendem um conceito que descreve a
diferenciação interna dos sistemas da sociedade, quando estes “si diffe-
renziano dal punto di vista di uma differenza di rango in rapporto ad altri
sistemi del loro ambiente interno della società”, de forma que “la stratifi-
cazione non nasce per la scomposizione di um tutto in parti come di so-
lito viene rappresentato questo processo, ma per la differenziazione e la
chiusura dello strato superiore” (LUHMANN & DE GIORGI, 1993: 282).
30 Quando se pensa na diferenciação estratificatória da sociedade, carac-
terística da Europa entre o final da Idade Média e o início da modernida-
de, “dobbiamo tener conto (...) di condizione storico-situazionali, come
le diversità geografiche, le premesse strutturali (per esempio, il significa-
to particolare del diritto), il fatto che tra religione, economia monetaria e
domini politici territoriali, si può registrare l’acquisizione di un alto livel-
lo di non identità, che frantuma la forma del regno. (...) la stratificazione
in Europa non poggiava su un concetto di purezza che potesse essere ri-
tualizzato dalla religione, ma ebbe la sua fonte nella proprietà fondiaria e

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o direito como um objeto necessário de sua atenção e como um
instrumento irrenunciável de seu regime, não identificando nes-
te um indispensável instrumentum regni (GROSSI, 1999: 50).
Nesse sentido, o direito medieval foi diverso das formas jurí-
dicas que o precederam, tanto quanto foi e é diverso do chamado
direito moderno. Os romanos, por exemplo, já tinham a percep-
ção de que um domínio sobre o direito era fundamental para um
domínio político. Quando o Imperador Justiniano levou a cabo
seu projeto do Corpus Iuris Civilis, ele não apenas reduziu à lei todo
o direito romano vigente a seu tempo, como também arrogou-se
na qualidade de “intérprete” exclusivo daquele direito. Mas, assim
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como ao direito romano clássico escapava a ideia do direito como


algo ligado ao território, também no direito medieval o “pluralis-
mo jurídico” afirmou-se sobre todos os territórios, indiferente-
mente aos poderes que já se exerciam sobre os domínios de terras.
O direito moderno, por sua vez, é caracterizado exatamente
pela apropriação, por parte do Estado – ou seja, sob uma base
territorial –, dos canais “produtores” de direito: direito moderno
é direito positivo, posto e compreendido sobretudo como direito
legislado, isto é, como estatuído mediante decisões políticas. Nes-
te sentido, o positivismo jurídico do século XIX nada mais é do
que a descrição desta forma de acoplamento31 de direito e políti-

poi, in modo crescente, ormai solo nell’ordinamento giuridico”


(LUHMANN & DE GIORGI, 1993: 281).
31 Sobre os “acoplamentos estruturais” dos sistemas político e jurídico
trataremos mais adiante. A noção de acoplamento estrutural é retirada da
biologia de Humberto Maturana e indica os pressupostos ambientais que
devem estar presentes para que um sistema possa prosseguir na sua au-
topoiesis: os sistemas sociais, por exemplo, estão acoplados às consciências.
V. BARALDI, CORSI, ESPOSITO, LUHMANN in Glossario. I concetti fon-
damentali della teoria dei sistemi sociali. Milano: Franco Angeli, 1996. I
concetti fondamentali della teoria dei sistemi sociali. Milano: Franco An-

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ca, típica da modernidade, como a única possibilidade de se pro-
duzir direito, ao ponto em que este é concebido como uma “ordem
do soberano”32. Já naquela indiferença relativa entre direito e
política, característica do período medieval, a atenção do monar-
ca, do senhor, da cidade dirigia-se especialmente àquela zona do
direito que, naturalmente, vinculava-se ao exercício e à conser-
vação do poder e que hoje é identificada como “direito público”.
Quanto ao restante, permanecia evidente a indiferença da polí-
tica. Essa relativa indiferença do detentor do poder político quan-
to ao direito gerou certa autonomia deste em relação àquele
(GROSSI, 1999: 51). Essa autonomia é entendida por Paolo

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Grossi no sentido de que o direito não é a expressão de um regi-


me político e, também, de que o poder político se estabelece
prescindindo do direito para se legitimar enquanto tal. A relação
entre ius commune e ius proprium é descrita, nesta perspectiva,
diferentemente de como havia sido tratada por Calasso.
O direito comum medieval, cultivado após o declínio do Im-
pério Romano no século IV, surgiu exatamente de uma “vulgari-
zação”33 do direito romano na direção da formação do direito

geli, 1996. LUHMANN, Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt: Suhrkamp,


1993, em especial Capítulo 10. LUHMANN, Niklas e DE GIORGI, Raffae-
le. Teoria della Società, Capítulo 1. LUHMANN, Sistemi sociali. Fondamenti
di una teoria generale. trad. e introd. de Alberto Febbrajo. Bologna: Il
Mulino, 1990.
32 Isto será mais cuidadosamente abordado nos segundo e terceiro capí-
tulos desta obra. A tradição positivista do “direito como uma ordem do
soberano” nasce já em Hobbes mas tem seu apogeu no século XIX, na
obra de juristas como Bentham e Austin, passando a ser contestada pelo
positivismo jurídico do século XX, sobretudo por Kelsen e Hart (por razões
diversas em um e em outro).
33 Este direito é chamado “vulgar” porque apresenta um caráter não
estatal, representando o “o recurso a forças alternativas para se preencher
o vazio deixado pelo esfacelamento político” (GROSSI, 1999: 53).

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europeu, o que permitiu a passagem do princípio da personali-
dade da lei34 – típico do direito romano – ao princípio da territo-
rialidade do direito – característico do direito feudal e pressupos-
to necessário para se pensar uma “nova” ou uma “moderna”
unidade de direito e política. Pouco a pouco as pessoas, ligadas
não mais por estirpes mas como grupos de outro tipo (religiosos,
corporações de ofício), especialmente fortes, passaram a reivin-
dicar o direito de serem julgadas de acordo com o direito de seu
grupo. É o caso do clérigo em relação ao direito canônico como
ius ecclesiae e, mais tarde, dos mercadores em relação ao direito
especial produzido pelo coetus mercatorum, embrião do futuro di-
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reito comercial. Na segunda metade da Idade Média, com o sur-


gimento da noção de território e de um direito a ele ligado, tor-
nou-se ainda maior a estranheza, aos olhos da modernidade, do
direito medieval: no mesmo território vigoravam e eram aplicados
tanto as regras identificadas como iura propria, ou seja, as normas
particulares consolidadas em costumes ou emanadas nas locali-
dades por monarcas ou pelas cidades livres, como o ius commune,
isto é, o sistema jurídico universal elaborado sobre a base do di-
reito romano e canônico35. Como explica Grossi, o poder político

34 De acordo com a noção de personalidade da lei, característica da pri-


meira metade da Idade Média, valores como a pertinência a uma estirpe
ou o mito do sangue eram indiscutíveis e, correlatamente a esses princí-
pios, o direito era visto de forma que “(...) ogni persona, all’interno
dello stesso regime politico, lungi dall’essere soffocata entro un diritto
unitario a proiezione territoriale, è portatrice – a seconda delle partico-
larità del proprio ceppo etnico – di un diritto specifico e differenziato, si
chè (...) il romano potrà professare ed usare il patrimonio proprio alla sua
tradizione giuridica allo stesso modo che il longobardo il suo” (GROSSI,
1999: 54).
35 “(...) patrimonio scientifico ovunque presente a fornire schemi inter-
pretativi, invenzioni tecniche e soluzioni per i troppi casi localmente non
previsti dalla miopia dei singoli legislatori” (GROSSI, 1999: 54).

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respeitava essa pluralidade de tradições que então conviviam,
tratando tudo isso com “indiferença”: as leis emanadas dos de-
tentores do poder constituiam apenas uma fonte do direito, entre
tantas outras. Se durante o Império Romano, no período pós-
-clássico, o direito havia se concentrado nas mãos do Imperador,
após a queda do Império Romano do Ocidente uma nova “troca”
de direito e política foi possível, quando foi estabelecida a noção
de um direito especial ligado a um território que, por sua vez,
coexiste com as outras formas universais de direito, ligadas ainda
à noção de personalidade da lei. A ordem pluralista feudal – ba-
seada nessa relativa indiferença entre política e direito – gerou

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essa noção de territorialidade, pressuposto da organização políti-


co-Estatal e, portanto, da positividade do direito moderno36. O
processo de formação do Estado moderno pode, então, ser des-
crito como “uma progressiva apropriação, por parte do Estado,
da tarefa de administrar o direito em suas várias manifestações”
(PADOA-SCHIOPPA, 1997: 337). De fato, contrariamente ao que
ensina Calasso, para Grossi não há que se falar em soberania
propriamente dita no período medieval, quanto mais porque o
direito naquela época foi experimentado como de todo indepen-
dente da vontade do soberano.
Em nossa opinião, essa contraposição das perspectivas de
Calasso e de Grossi é muito interessante, mas não representa o
problema do conceito de soberania de forma clara. Esse problema
não se refere à questão de saber se a soberania moderna, atribu-
to do Estado, existia ou não na Idade Média. A soberania do Es-
tado moderno lhe pertence enquanto característica específica de
sua fundação, ou seja, enquanto construção teórica capaz de

36 Aqui, encontramos um bom argumento histórico contra a tese de que


o direito é “uma ordem do soberano”, ou seja, de que o direito é um
produto do Estado. Antes do acontecimento histórico do surgimento do
Estado moderno, havia direito.

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representar esta fundação. A Idade Média construiu representa-
ções de uma diferença que era exclusiva e originária. Essa dife-
rença descrevia uma pertinência à natureza, à qualidade das
pessoas e, depois, do poder. Uma olhada em outros conceitos
importantes na “modernização” do direito ilustra esse nosso pon-
to de vista. Observemos, a título de exemplo, a noção de igual-
dade. Da mesma forma em que se usou a palavra “soberania” na
Idade Média, naquele período também foi elaborado e utilizado
o conceito de igualdade37. Mas também a igualdade medieval e a
igualdade moderna são profundamente diferentes. A Idade Média
foi a época que, mais que todas as outras, utilizou o conceito de
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igualdade, não obstante tenha sido também o período em que,


na evolução da sociedade, se conheceu e praticou a maior desi-
gualdade entre as pessoas. Naquele período, a noção de aequalitas
traduz a ideia grega de proporcionalidade geométrica, especifi-
cando-se como princípio de diferenciação interno a um grupo
constituído, exatamente, de aequales. Na ordem estratificatória
medieval, entre os iguais existe uma desigualdade externa, “mas
seus status não são confrontáveis” (DE GIORGI, 1998: 115). Já a
sociedade moderna conheceu e elaborou a ideia de igualdade
como base de sua constitucionalização. A novidade da utilização
moderna da fórmula da igualdade encontra-se, portanto, na ge-
neralização jurídica deste princípio, de onde deriva a expectativa
“mas também a preocupação, de que as situações de desigualda-
de possam ser superadas e que a direção do futuro da sociedade
possa ser orientada neste sentido” (DE GIORGI, 1998: 115). Ao
se generalizar, a fórmula da igualdade torna-se, também, totali-
zante. A invenção das Constituições no século XVIII, assim como

37 Como observa Raffaele De Giorgi, no direito natural e no direito da


Razão já estava inscrito, ainda que de uma forma diversa daquela moder-
na, um modelo jurídico da igualdade (DE GIORGI, 1998: 114).

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o processo de positivação do direito, integra as transformações
sociais que tornam possível este tipo de representação: “o princí-
pio da igualdade encontra sua legítima colocação nas constitui-
ções. E, como se sabe, a constituição jurídica é também constitui-
ção da sociedade” (DE GIORGI, 1998: 116). A igualdade medieval
e a igualdade moderna são, portanto, “igualdades” que não são
descritas adequadamente, como em geral se faz, mediante o re-
curso à diferença entre igualdade formal e igualdade material.
Em uma sociedade estratificada, que conheceu uma hierarquia
da estratificação, todos os homens eram reputados iguais no in-
terior do estrato a que pertenciam. Essa igualdade era tida como

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plenamente compatível com a assunção de todos os homens como


sendo filhos de Deus.
Do mesmo modo, nesta sociedade podiam subsistir títulos de
soberania autônomos, ainda que relativos, para utilizar a expressão
de Paolo Grossi. Esses títulos de soberania não excluíam a possibi-
lidade de uma soberania que os compreendesse, funcionando a um
só tempo como sua origem e justificação. A Idade Média não co-
nheceu o Estado moderno e, portanto, não pode elaborar aquela
representação específica da soberania, que depois seria própria do
Estado moderno. Este teve como pressuposto a quebra da hierar-
quia característica da ordem medieval e pode diferenciar-se, apenas,
no interior de uma diferenciação não estratificada da sociedade. O
período tardo-medieval apresenta, neste passo, muitos traços de
um certo enfraquecimento do princípio estratificatório, que depois
irão manifestar-se, por exemplo, na forma da passagem de uma
noção patrimonialista do poder para uma noção publicista do poder.
Mas este é um processo que durará muito, até que a estratificação
deixe de ser o modo preponderante de diferenciação social e até
que, em face dessa mudança estrutural, uma nova constelação de
conceitos jurídicos e políticos venha a se estabilizar.
Exatamente por isso, como aqui já foi dito, as teorias moder-
nas do Estado descrevem a soberania do Estado moderno recor-

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rendo àquelas características da soberania que foram elaboradas
na Idade Média, que derivam de ideias de natureza teológica e
que, no entanto, foram utilizadas para representar fundamentos
não teológicos do poder político. A soberania do Estado moderno
será representada como qualidade de um poder absoluto e arbi-
trário para servir de fundamento ao sistema político de um Esta-
do que não será nem arbitrário, nem absoluto, nem exclusivo.
Mas é exatamente nisto que consiste, como veremos, o caráter
paradoxal da soberania estatal. Nossa conclusão, portanto, é de
que as teses de Calasso e de Grossi não se contrapõem. Ambas as
visões fornecem elementos úteis para uma reflexão mais atenta
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sobre a semântica histórica do conceito de soberania. O famoso


trecho de Beaumanoir supramencionado, em que este proclama
o poder de um barão fazer leis válidas em seus domínios, pode
ser entendido como uma decorrência daquilo que o autor chama
de soberania dos barões sobre seus baronatos. Só que, enquanto
para Calasso isso significa “soberania”, para Grossi trata-se de uma
mera “autonomia”, não correspondendo ao moderno sentido de
soberania. Para além da diferença terminológica, no entanto, os
dois autores indicam uma mesma evolução, qual seja, a transfor-
mação na forma medieval de se conceber a relação entre o poder
– ou os poderes – e o direito – ou os direitos.
Na França do século XIII, como narra Sueur, a autoridade do
rei não era a mesma em todas as regiões. Tal situação teria levado
Beaumanoir a distinguir, nos Coutumes de Beauvaisis, entre as or-
denações que se aplicavam especificamente ao domínio real onde
o rei era reconhecido como o senhor soberano (seigneur souverain)
e aquelas em que este se impunha como soberano ainda timida-
mente, ou seja, como um rei suserano (roi suzerain)38. Esta é a

38 “Si on se souvient que l’affermissement capétien correspondit à la


lente mutation qui fit du roi suzerain un roi souverain, on comprend qu’il

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distinção entre uma concepção dominical do direito do susera-
no para a concepção, tipicamente moderna, do poder soberano
como poder, sobretudo, de fazer e administrar a lei. Beaumanoir
formula, naquele contexto, uma doutrina “moderada”, adequa-
da para servir de fundação à intervenção legislativa do rei, mas
que está longe de equiparar-se à afirmação de que toda e qual-
quer produção de direito se dá pelas mãos e vontade do sobe-
rano – algo que só aparece com o positivismo jurídico avant la
lettre de Bodin e Thomas Hobbes. Neste passo, Beaumanoir co-
loca três condições mediante as quais o rei estaria autorizado a
legislar: uma condição de circunstâncias (tempo de guerra ou

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necessidade eminente); uma condição de fundo, introduzindo


a noção de “bien commun (commun pourfit: ‘comme il li plest pour
le commun pourfit, et ce qu’il établi doit estre tenu’)” e uma condição
de forma, a decisão à Grand Conseil, segundo a qual o rei deveria
reunir seus barões para decidir sobre uma nova lei (SUEUR,
1994: 58-60).
Temos então uma “soberania” que, alicerçada na ideia de um
poder legislativo do rei extremamente condicionado, é muito li-
mitada: esta é, naquele momento, ainda o simples reflexo da
“senhoria” que o rei tem sobre um território, como a tem qualquer
outro barão sobre seus territórios. Ainda fundada na noção de
propriedade de terras, esta soberania medieval traz consigo um
paradoxo. Encontramo-nos diante de uma contradição, se pen-
sarmos nesta “soberania” medieval relativa, que se define com
base na noção de territorialidade ou, ainda, de propriedade. Cla-
ramente, esta é uma visão do poder que se manifestava, por mais
que apontasse para uma função legislativa do rei, como poder de

se heurta longtemps à l’opposition des grands vassaux qui se refusaient


à reconnâitre les lois qu’il édictait pour toute le royaume” (SUEUR,
1994: 58).

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um particular. A soberania, nesse sentido, é definida sempre, como
já observamos, não como qualidade do território, mas como atri-
buto da pessoa que tem senhoria sobre ele. A esta definição da
soberania, de acordo com a literatura da época, como senhoria
sobre um território, segue-se a pergunta: o que é um território?
O espaço onde um senhor exerce o seu poder? Essa é uma per-
gunta que foi posta por Otto Brunner, a propósito da situação
que, na Alemanha, perdurou por muito tempo39. Diante de tal
questionamento, a “soberania” medieval aparece, portanto, mar-
cada pela forma circular em que é formulada: é concebida como
a qualidade de um senhor que exerce poder sobre um território
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que, por sua vez, define-se como o âmbito onde um senhor exer-
ce sua soberania, ou seja, sua “superioridade”, manifestando-se
como seu poder de governar e fazer leis.
Esse paradoxo levou à necessidade de que, nos séculos se-
guintes, fosse superada a noção de um rei “senhor feudal”, pas-
sando-se à afirmação deste enquanto “senhor da lei” (sires de la
loy)40 e não mais de um território. Naquele momento, a socieda-
de sofre a passagem da estratificação característica da Idade Média

39 “Ma cosa è un territorio? L’ambito territoriale nel quale si esercita la


signoria di un signore territoriale. Ci si trova evidentemente davanti ad un
circolo vizioso che per lo più viene celato nella formulazione abbreviata
secondo cui la sovranità territoriale sarebbe la signoria su di un territorio,
cioè un territorio immediato all’Impero” (BRUNNER, 1983: 236).
40 Sueur narra como isso ocorreu na França: “Au terme d’une concen-
tration étatique irréversible, la monarchie exerçait seule l’autorité légis-
lative, puisqu’en vertu d’un édit de 1572, les seigneurs territoriaux ne
pouvaient plus faire d’ordonnances et de règlements sauf en les confor-
mant aux ordennances royales. Les villes jadis autonomes avaient perdu
tout pouvoir créateur de droit pour ne conserver qu’une activité régle-
mentaire exercée en matière de voirie, d’urbanisme, de fiscalitè locale,
sous la tutelle du représentant du roi” (SUEUR, 1994: 61).

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para uma estrutura tipicamente moderna, na qual direito e polí-
tica se diferenciam, passando a apoiar-se reciprocamente. Desta
forma, a modernidade já lançava mão do velho conceito de so-
berania para exprimir não mais aquela relativa indiferença entre
os muitos centros da política e os vários ordenamentos jurídicos.
Com a modernidade, soberania passa a ser conceito que vem
marcar a unidade e, portanto, também a diferença – e não mais
a indiferença – entre o direito e a política.

1.3  As origens medievais da tese da soberania popular


A expressão “soberania popular”, consagrada nas modernas

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constituições, também já desponta na linguagem jurídico-política


medieval. Ocorre que, aqui também, é necessária certa cautela
na compreensão do significado medieval desta expressão, tanto
no tocante ao sentido de “soberania” quanto no que diz respeito
ao significado de “popular”. Ou seja: aquilo que hoje se entende
por “soberania popular” é bastante diferente da conotação me-
dieval que a expressão encontrou. Se há algo em comum entre o
sentido medieval e moderno da soberania popular, é o fato de
que, já na Idade Média, o termo refere-se ao problema da decisão
e, portanto, da participação do povo na tomada de decisões. A
fórmula, regulae do direito romano e retomada naquele período,
reaparecendo nas várias teorias medievais da soberania popular,
é: Quod omnes tangit, omnibus tractari et approbari debet41, cuja tra-
dução literal seria “todos aqueles afetados devem ser ouvidos e
estar de acordo”.
Essa ideia, que introduz a ideia de participação no seio de uma
sociedade estratificada, gera muitos questionamentos. Uma pri-

41 Retirada do direito romano, mais precisamente do Codex Iust. 5. 59.5.


2; ”quod omnes tangit, ab omnibus comprobetur” (cf. PADOA-SCHIOPPA,
1997: 341, nota 14).

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meira dúvida surge quando a, de forma aparente, generalizante
ideia de participação popular (“todos”) é confrontada com um
excludente sentido que a palavra “povo”, no quadro da estratifi-
cação, encontrou. Quem é o “todos” do quod omnes tangit? Ou
seja, se todos aqueles afetados devem ser ouvidos, quem é a
parte afetada? Quem decide? Em outros termos: o que significa
quod omnes tangit no quadro da ordem jurídica medieval?42 Esta
tese segundo a qual as decisões devem ser tomadas por todos
aqueles que por elas sejam afetados – o povo – apareceu, a partir
do século XIV, em autores como Marsílio de Pádua, Jean de Paris
e, mais tarde, nos chamados “monarcômacos” franceses. A noção
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de povo, na qual tal tese encontrou apoio era, naquele contexto,


uma ideia que remetia muito mais à noção de exclusão do que
de inclusão na tomada das decisões. Como observa Friedrich
Müller, a tradição histórica e (jus)política da utilização do concei-
to de “povo” revela que este “não se reveste de traços inocentes,
neutros, objetivos, mas decididamente seletivos”43. No período
medieval, esta seletividade opera no quadro da diferenciação

42 Essa permanece sendo uma pergunta fundamental, ainda hoje (cf.


Müller, 1998).
43 “Em Péricles o ‘demos’ abrange tão somente todos os homens ate-
nienses livres, aptos para a guerra, contribuintes e domiciliados há muito
tempo. No direito romano o dualismo altamente elaborado [ausgefeilt]
de nobreza e povo, que domina tudo, produz uma cisão (...) Na Igreja
cristã primitiva o caminho do kleros para o laós descreve uma rápida di-
ferenciação entre a ‘comunidade’, o ‘povo de Deus’, na direção de uma
hierarquia de dois graus, que consolidou a cisão do ‘povo’ (‘comunidade’
= todos os crentes) no caminho da divisão do trabalho por meio da divisão
de funções, da hierarquia de funções até a hierarquia de instituições e
normas e a estruturas de dominação. Exatamente por isso tornou-se ne-
cessária uma palavra adicional para os leigos enquanto crentes simples,
colocados em graus hierárquicos inferiores, enquanto não funcionários”
(MÜLLER, 1998: 83-84).

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estratificatória. A estratificação social não comportava, então, uma
universalidade do conceito de povo. Na verdade, o povo era con-
cebido como um universo, entre outros: como aparece na distin-
ção, presente em Marsílio de Pádua, entre universitas civium e
universitas fidelium, a que corresponde o povo enquanto instância
política, de um lado, e o povo enquanto povo de Deus, ou ins-
tância religiosa, de outro. Ao final da Idade Média, período em
que a expressão “soberania popular” passa a aparecer cada vez
mais frequentemente na linguagem jurídico-política, a estratifi-
cação social teve necessidade de outra diferenciação, aquela entre
nobreza e povo comum (plebe)44. Essa nova distinção tornou-se

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possível graças a outro conceito que, nos séculos posteriores,


serviria como base para universalização da ideia de humanidade
e, portanto, de direitos humanos: dignidade. Citando Diego de
Valera, para quem Dignità è una qualità che fa differenze nel popolino,
explicam Luhmann e De Giorgi que, para a consciência daquele
tempo, existem homens com dignidade e homens sem dignidade
(LUHMANN & DE GIORGI, 1993: 288)45. Essa dignitas, que depois
apareceu como virtù, tornou possível uma pressuposição da no-
breza como necessariamente virtuosa e, portanto, adequada para
a tomada das decisões políticas. Nesse quadro, quem tinha o
poder de tomar decisões era, apenas, essa parte do povo que se

44 “La stratificazione ha bisogno prima di tutto di una semplice diffe-


renza: quella tra nobiltà e popolo comune” (LUHMANN & DE GIORGI,
1993: 288).
45 E os indivíduos do sexo masculino são, neste quadro, mais virtuosos
do que as mulheres, segundo a máxima contida no Digesto (D.1.9.1):
“Maior dignitas est in sexu virili”. Sobre os direitos das mulheres no qua-
dro da sociedade estratificada, ver KOCH, Elisabeth. Maior dignitas est in
sexu virili. Das weibliche Geschlecht im Normensystem des 16. Jahrhun-
derts. Ius Commune. Veröffentlichungen des Max-Planck-Instituts für
Europäische Rechtsgeschichte. Sonderheft. Studien zur Europäischen
Rechtsgeschichte, 57. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1991.

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considerava virtuosa46. Afinal de contas, eram eles os afetados
pela decisão47.
A cautela no uso da expressão “soberania popular” na Idade
Média deve, então, ser dobrada: de um lado porque não podemos
falar em um povo em que todos estão incluídos no status de
cidadãos48 e, de outro, porque não podemos, ainda, falar em
soberania no sentido que a modernidade emprestou ao termo49.

46 “L’assimetria viene rafforzata per il fatto che in alto il numero viene


tenuto ristretto e così viene accresciuta la disponibilità delle risorse. In
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questo quadro si sviluppano differenziazioni nelle differenziazioni, in


particolare, all’interno della nobiltà si sviluppano distinzioni che sono
importanti ai fini dei matrimoni o anche per questione cerimoniali, ma
che non possono più valere come sistemi parziali in sistemi parziali”
(LUHMANN & DE GIORGI, 1998: 288).
47 A propósito da fórmula “Quod omnis tangit”, ver a crítica de Luhmann
a Habermas (LUHMANN, 1998).
48 A doutrina dos três estados (clero, nobreza e terceiro estado, que
aparece na França já no século XV, é, de acordo com Luhmann e De Gior-
gi, um artefato semântico: “Essa maschera la sostanziale dualità della
differenza stratificatoria, serve alla rappresentazione di una distinzione di
funzioni (orare, pugnare, laborare), descrive distinzioni tra le aspettative
morali, e infine, con l’iniziale costituirsi dello stato territoriale, descrive
anche distinzioni tra le posizioni giuridiche. E proprio per la chiarezza con
la quale questi caratteri sono elaborati, quella dottrina diventa anche un
documento visibile della obsolescenza del vecchio mondo” (LUHMANN
& DE GIORGI, 1993: 288-289).
49 A esse propósito, mais especificamente analisando a formulação da
tese da soberania popular na obra Defensor Pacis, de Marsílio de Pádua
(1324), escreveu Gary NEDERMAN que “if we choose to describe Marsi-
glio, therefore, as a proponent of popular sovereignty, then we must
place the emphasis on ‘popular’ and employ ‘sovereignty’ only in a loose
and weak sense, because the active participation of citizens is conditioned
in Dictio I by the extrinsic standards of reason and justice. The populus
cannot be construct as sovereign in the complete, modern sense” (NE-
DERMAN, s/d: 93-94).

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Uma aproximação daquilo que hoje se entende por soberania
popular exigiria uma “ênfase” na noção de povo, um alarga-
mento da compreensão medieval deste conceito e, simultanea-
mente, a consideração do termo soberania num sentido mais
“fraco”. Ora, é evidente que não é possível, no contexto da es-
tratificação, um tal alargamento do conceito de povo. Isto passou
a ser possível apenas mediante as profundas transformações
estruturais que, nos séculos seguintes, vieram traduzir a moder-
nidade da sociedade, sendo que, não obstante tais transforma-
ções, nem todas as estratificações foram (ainda) abolidas. Ao
mesmo tempo, tomar em um sentido “fraco e vago” o termo

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“soberania” significa reconhecer que, então, existia soberania,


mas que esta não era tão soberana assim. Encontraremos, então,
na assertiva do quod omnes tangit um sentido bastante diverso
daquele que a moderna noção de “soberania popular” vem su-
gerir. No entanto, nada nos impede de buscar, na raiz medieval,
os desenvolvimentos que levaram à formulação da moderna
soberania popular.
A tese medieval da soberania popular tem sua origem na
interpretação que os juristas medievais fizeram dos textos jus-
tinianos, sobretudo do Digesto, quando este se referia ao funda-
mento da autoridade imperial. De acordo com o Digesto, a au-
toridade política tinha sua origem no povo, que a transferia ao
imperador. Nas Constituições de Justiniano e Constantino en-
contrava-se a afirmação de que o Imperador tem direito de
fazer as leis, negando-se qualquer validade ao costume como
fonte criadora de direito. A interpretação de tais textos pelos
juristas medievais conduziu tanto a teses absolutistas quanto a
teses favoráveis ao primado da soberania popular. De um lado,
era possível concluir, a partir de tais textos, que o povo teria
renunciado a toda autoridade legislativa (e portanto política)
estabelecendo o poder absoluto do imperador (CROSA, 1915:

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27)50. De outro lado, a partir dos mesmos textos romanos poder-
-se-ia admitir a força do costume para a derrogação das leis, como
se pode observar em Irnério51. O Digesto aparece, assim, como um
instrumento que, manipulado pelos juristas medievais, serviu não
apenas para afirmar o poder do imperador, mas também para
fundar as teses de que o poder deste é limitado pela condição de
pertencer originariamente ao povo. Como observa Padoa-Schiop-
pa, uma das razões do sucesso extraordinário da compilação de
Justiniano na história do direito europeu é exatamente essa sua
ambiguidade ou, até mesmo, a sua polivalência52.
Em um contexto moldado pela noção de direito natural e pela
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origem divina do poder dos princípes, ainda era vaga a noção de


a qual título o povo poderia ser portador de um poder originário,
ou seja, ainda não se mostrava possível conciliar-se a teoria da
instituição terrena (voluntária ou consensual) com a teoria do
poder divino dos reis (CROSA, 1915: 31). A solução desse pro-
blema buscou inspiração, primeiro, na doutrina de Tomás de
Aquino que, ao haver estabelecido a origem divina da criação do
universo, deixou aberto o caminho para o reconhecimento de
que o povo agia, certamente, por inspiração divina, mas com li-

50 Crosa indica como referência o Cod. I, 14, 12; VIII, 52 (53), 2.


51 O célebre jurista de Bolonha, no entanto, não admite tal possibili-
dade quando o poder tiver sido transferido ao Imperador. Mas, se isso
faz sugerir a defesa, por parte de Irnério, de um poder absoluto do im-
perador, este é imediatamnete limitado por um conceito de autoridade
legislativa inspirado nas “necessidades providenciais do povo” (cf. CRO-
SA, 1915: 27).
52 “It would, however, be a mistake to suppose that the Roman model
worked only in favour of the power of the state. One of the reasons for
the extraordinary success of Justinian’s compilation in the history of Eu-
ropean law is its ambiguity, or rather its polivalence” (PADOA-SCHIOPPA,
1997: 341).

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berdade de discernimento e de vontade (CROSA, 1915: 31). A
limitação do exercício do poder, seja pelo povo ou pelo monarca,
encontrava-se, portanto, no direito natural. Para São Tomás, isso
tornava desnecessário qualquer ato que estabelecesse a instituição
e as funções do governo. Mas, para os publicistas medievais, di-
ferentemente, era necessário determinar os mecanismos median-
te os quais a instituição do poder era possível. Essa, no entanto,
era uma explicação que não poderia mais ser apenas religiosa,
devendo também ser jurídica (embora as duas formas de argu-
mentação ainda não se diferenciassem).
Este pensamento permitiu a construção de teses pré-contra-

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tualistas. Em Ugolino, por exemplo, o imperador aparece como


um “procurador do povo”53, enquanto outros publicistas medie-
vais entenderam a transferência de poder do povo para o impe-
rador tomando-a da noção civilista de “traslação” da potestade,
desenvolvendo-a, posteriormente, de uma maneira mais ampla
em termos de “cessão” de poder. Retomou-se a noção de pactum
subiectionis, já estipulada por Manegoldo ao tempo de Gregorio
VII . Essa teoria era útil, sobretudo, para dar fundamento jurídico
à deposição do soberano quando este rompia o pacto estipulado
com o povo. Essa noção de pactum subiectiones, alicerçada na figura
do contrato feudal e em substituição à simples “cessão”, tornou-se
o artifício pelo qual se estabeleceu a cessão de poder do povo
para o monarca – dando a esse artifício o caráter contratual e à
noção de “povo” uma configuração propriamente jurídica. En-
gelberto formula, nesta direção, a origem desse pactum subiectio-
nes, afirmando que a constituição dos reinos decorre “da arte e

53 “Intelligendum est secundum vetera jura, quum populus habetat


plenam potestadem condendi jura: sed postquam transtulit omne jus in
imperatorem, non potuit. Sed certe sic ut non remaneret apud eum, sed
constituit eum quasi procuratorem ad hoc” (CROSA, 1915: 28).

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da natureza, princípios diretivos da ação humana”, que impõem
a eleição do rei, cujo reinado tem por finalidade “salvar e conser-
var o povo que o obedecia em virtude do pacto mediante o qual
havia se submetido” (Cf. CROSA, 1915: 32). Aponta Engelberto
dois importantes elementos em sua teoria: primeiro, a instituição
do governo por um ato voluntário dos homens, e, segundo, a
obrigatoriedade de estes obedecerem ao príncipe em virtude da-
quela obrigação assumida voluntariamente.
As fontes onde os juristas buscam fundamento para constru-
ções deste tipo encontravam-se tanto no direito romano quanto
no direito feudal. Nessa ideia de uma sujeição fundada em uma
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relação contratual estão, conforme explica Padoa-Schioppa, as


raízes do moderno “contrato social” (solução moderna para o
mesmo problema)54. A noção medieval de pacto é uma referência
fundamental para o desenvolvimento do pensamento posterior
que, ao longo dos séculos XIII, XIV e XV, tal como evoluiu prin-
cipalmente nas cidades do norte da Itália, buscou exprimir ins-
trumentos jurídicos particularmente voltados para a organização,
conservação e transmissão do poder político.

54 “Legal science also made repeated use of the rules of feudal law, even
in the field of public law in those cases (for example) where there was an
attempt to formulate the legal relationship between sovereignty and ter-
ritory; at the same time, Roman law sources were used in feudal law even
for the formulation of certain feudal rules. More generally, emphasis has
been rightly placed on the close ties existing in England and in France
between feudal structures and the structures of the state, with particular
regard to the personal nature of the ties with which the sovereign bound
to himself (and consequently to the service to the state) both those indi-
viduals who were in his confidence and bodies such as the privy Council.
Nor should we forget that the contractual theory of the modern state – that
of being based fundamentally on an agreement or ‘pact’ between sovereign
and subjects-citizens – has some roots in the feudal contract” (PADOA-S-
CHIOPPA, 1997: 345).

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O contexto da formação e afirmação das cidades do norte da
Itália como “cidades-Estado” exigia que estas se autoafirmassem
como autônomas e, ao mesmo tempo, como incluídas numa
hierarquia de autoridades superiores e universais55. Neste con-
texto, a resposta ao problema da autonomia, ou da soberania,
passou pela assunção de alguns princípios e práticas do “autogo-
verno” nas cidades do norte da Itália. A noção tardo-medieval de
“liberdade”, correspondente ao sentido medieval de “soberania”,
constitui a base da reivindicação de autonomia por parte das
Repúblicas italianas. Segundo Quentin Skinner, naquelas cidades
italianas já se veiculavam duas ideias bastante claras e distintas

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acerca da autonomia, quando elas defendiam sua “liberdade”
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contra o Império: “uma era a ideia do direito a não sofrerem


qualquer controle externo de sua própria vida política – ou seja,
a afirmação de sua soberania; outra era a ideia do direito, conse-
quente do primeiro, a se governarem conforme entendessem
melhor – ou seja, a defesa de suas Constituições republicanas”
(SKINNER, 1996: 28-29). A autonomia manifestava-se, portanto,
mediante instrumentos jurídicos, com a promoção da estabilida-
de da cidade mediante um “estatuto” e o estabelecimento de
instrumentos legais para a manutenção da autoridade oligárqui-
ca. Este último aspecto introduziu uma espécie de “ideologia do
interesse público”, na qual se pode observar que administração e
jurisdição, ao final da Idade Média, já começavam a reivindicar
para si um só fundamento56. A noção de autonomia, ainda en-

55 Este era um contexto no qual “the city-state established itself included


other ‘superior and universal authorities’: the juridical instruments the-
refore bore the signs of a (theoretical and political) revindication of au-
tonomy (in the first place, obviously, the potestas condendi statuta) and
aimed at the exploitation and protection of the political (but also the
economic and cultural, in the wider sense) content of this autonomy”
(SBRICCOLI, 1997: 40).
56 “Publicas utilitas (...) appears in the wording of the commune statutes

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tendida de acordo com o sentido medieval de liberdade, já signi-
ficava uma reivindicação de independência da cidade não apenas
política, mas também jurídica: esta deveria ter seus próprios es-
tatutos, seus próprios órgãos jurisdicionais.
A afirmação de princípios como a publica utilitas ou o quod
omnes tangit consistiu, neste passo, na base argumentativa sobre
a qual se pretendeu fundar a autonomia das cidades em face do
Papado e do Império. Tanto à noção de publicum quanto à de
omnes subjaz uma certa concepção de sociedade, segundo a qual
a cidade era um todo constituído por partes que não significavam,
por si sós, o todo. Fórmulas como quod omnis tangit traduzem uma
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ideia de participação que permite que, em nome do todo, apenas


uma parte participe. Isso porque o omnes não é a soma dos parti-
culares, nem mesmo de todos os particulares. Por um lado, indi-
ca uma parte do todo; por outro, o omnes é algo mais, que se
exprime no conceito abstrato de publicum. Essas considerações
nos permitem ver como o omnes, entendido como povo, constitui
uma referência abstrata da fundação do poder. Essa referência é
abstrata porque, na sua justificação, exclui que a decisão possa
afetar apenas um particular. Da mesma forma, o conceito de pu-
blica utilitas permite justificar qualquer decisão através do recurso
a uma referência desprovida de referências concretas. E então,
se, por um lado, omnes não pode ser o povo, por outro sua inven-
ção abre as portas para a determinação jurídica moderna de povo.
Marsílio de Pádua (1275-1342) é um autor que, neste quadro,
merece ser estudado mais detidamente. Ele realizou uma “ne-

and is found among the motives underlying the political decisions made
by citizen assemblies and by the other organs of government; but , above
all, it was given greater worth in the interpretative reasoning of the jurists,
which constituted the argumentative and legal basis of the decisions, both
administrative and judicial” (SBRICCOLI, 1997: 44).

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cessária e radical operação” no sentido da construção da tese
da plena autonomia dos cidadãos e do Estado (ULMANN, s/d:
206). Tal consistiu na virada em direção a uma fundamentação
não mais exclusivamente religiosa da autonomia das cidades.
No célebre tratado O defensor da paz (1324), Marsílio constrói a
tese, àquele tempo bastante ousada, de que a Igreja não é uma
instituição capaz de exercer qualquer poder legal ou político,
insistindo no fato de que o próprio Cristo deliberadamente
excluiu “seus apóstolos e discípulos, bem como seus sucessores,
os bispos ou sacerdotes” do exercício de qualquer “autoridade
coercitiva ou poder deste mundo” (SKINNER,1996: 41). Na

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fundamentação de suas teses, Marsílio serviu-se de uma estra-


tégia que resultou na introdução da diferença entre universitas
civium e universitas fidelium. Ao observar a instituição do Estado
a partir dessa diferença, Marsílio afirma ser este um fim em si
mesmo: ele tinha seu próprio valor e era insuscetível de ser
melhorado, uma vez que o estágio indicado como “Estado” é
alcançado quando a “congregação dos cidadãos” (universitas
civium) tiver adquirido plena autonomia57. O pano de fundo de
tal argumentação é uma concepção de sociedade como socie-
dade política, à maneira de Aristóteles, na qual os homens se
reúnem visando o “bem-viver”58.

57 “The former congregation of the faithful (universitas fidelium) was to


give way to the mundane, earthly citizens body, the State, as the one and
only public body that lived on its own inner substance (...) The State was
composed of citizens only, and it did not matter whether they were Ch-
ristians. The constitutive element of the State was the citizen pure and
simple. Of course, neither the term citizen nor the term congregation was
in any way new, but what was new was the meaning attached to the
combination of the two” (ULMANN, s/d: 206).
58 “(...) la cité est determinée en vue de la vie et de la vie bonne comme
sa fin” (MARSÍLIO, 1968: 66).

– 70 –

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Assim, a boa cidade ou o bom principado são aqueles que
promovem o bem comum segundo a vontade dos súditos: “(...)
nós diremos que todo governo estabelece-se em consonância com
a vontade dos sujeitos ou contra sua vontade. O primeiro é o
gênero dos governos bem temperados, o segundo aquele dos
governos corruptos” (MARSÍLIO, 1968: 93). Na fundação de todo
governo, ou seja, na origem do poder de governar, Marsílio co-
loca o problema da lei e da identificação de quem é o legislador.
O artifício universitas civium/universitas fidelium permite a introdu-
ção da tese da “secularização” do poder de fazer leis, separando
a “lei da cidade” nas multiplicidades implicadas, não apenas nas
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multiplicidades de “fontes da lei”, mas também de sentidos da


própria palavra “lei”, características da ordem jurídica medieval59.
Conclusões desse tipo, naturalmente, exigem uma definição de
“lei”. Marsílio aponta, no Defensor Pacis, pelo menos quatro usos
da palavra “lei”: num primeiro uso dessa palavra traduz-se uma
inclinação natural “sensível a uma ação ou a uma paixão”; num
segundo sentido, lei é um habitus produtivo; em uma terceira
acepção, significa “a regra que contém preceitos das ações huma-
nas comandadas”60; e, em uma quarta acepção, mais conhecida,
a lei designa a ciência, doutrina ou julgamento universal do jus-
to e do útil na cidade, bem como de seu oposto (MARSÍLIO, 1968:
98). Dois seriam, nesse último sentido, os elementos caracteriza-
dores da lei: o fato de que esta é uma decisão sobre o justo e o
injusto e o fato de que resulta de um poder coercitivo.

59 O fato de enfocar o problema do fundamento político como um pro-


blema do fundamento do direito faz de Marsílio um autor que, para alguns,
é considerado moderno: “Marsiglio would not have been a medieval
political writer if he had not focused attention upon the law as the crucial
matter of political science. In fact one go as far as to say that this theory
of law was the pivot of his political doctrine” (ULMANN, s/d: 207).
60 “(...) en tant qu’elles sont ordonnées à la gloire ou à la peine dans le
monde futur” (MARSÍLIO, 1968: 98).

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O “legislador” das leis humanas, para Marsílio, já não é Deus,
e sim o conjunto dos cidadãos: o universitas civium ou, ainda, sua
maior parte (valentior pars)61. Esse conjunto dos cidadãos Marsílio
chama de “legislador humano”, distinguindo-o claramente de
qualquer legislador divino (cf. ULMANN, s/d: 207). Curiosa e
inversamente às teses que se apoiam no poder divino dos reis,
em Marsílio é exatamente porque a lei emana dos cidadãos que
ela é coercitiva e justa. De acordo com esta interpretação, coerci-
bilidade não significa arbítrio. Isto por duas razões: primeiro,
porque a lei, quando feita pelo conjunto dos cidadãos, pode ser
feita apenas em prol do bem destes; depois, porque “apenas o

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conjunto dos cidadãos pode observar uma lei imposta por eles
mesmos”. O que permite concluir: “a coerção enraiza-se na so-
berania do povo” (QUILLET in MARSÍLIO, 1968: 99). Portanto,
é o artifício de um povo legislador – o legislador é o povo porque
este é o único que pode limitar a si mesmo – que funda a unida-
de da vida política e, logo, a desejada “autonomia” das comuni-
dades particulares. Escreve Marsílio que esta é uma unidade “de
ordem”, uma unidade de homens que se dizem um, não porque
formalmente sejam um, mas sim porque são um em relação a
uma unidade quanto ao número62.
A novidade desta tese de que os cidadãos constituem a uni-
dade política, consequentemente, corresponde à formulação de

61 “(...) human law is a precept of the community of citizens (‘universi-


tas civium’) or ist greater part (‘valentior pars’)” (Marsílio, 1993: 2).
62 “C’est une unité d’ordre, non une unité absolue mais plutôt une plu-
ralité d’hommes qui est dite une, ou encore des hommes qui sont dits être
une chose unique quant au nombre, non qu’ils soient un en nombre
formellement, par quelque forme, mais ils sont vraiment dits un quant
au nombre parce qu’ils sont dits par rapport à une unité quant au nombre,
à savoir le gouvernement, à l’égard duquel et par lequel ils sont ordonnés
et gouvernés” (MARSÍLIO, 1968: 162).

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um conceito de cidadão que alcança tanto clérigos quanto leigos,
sendo que esses não são considerados diferentes entre si enquan-
to cidadãos. Marsílio propõe a eliminação, portanto, de uma
daquelas diferenças que, introduzidas no contexto de uma socie-
dade estratificada, reproduziam a estratificação na estratificação.
A consequência lógica é que, daí, emerge a tese de uma maioria
quantitativa e não mais qualitativa (o que, alguns séculos depois,
irá constituir o artifício das modernas democracias, de acordo com
o princípio one man, one vote)63. Observe-se que tal assertiva não
equivale à afirmação de que todo e qualquer indivíduo seja um
cidadão. A cidadania permanece sendo definida como um status
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relativo a uma “parte” da sociedade, entendida esta, em sentido


aristotélico, como o “todo” formado pelo conjunto dos indivíduos.
A não existência de diferenças qualitativas, portanto, dá-se em
relação àquela parte chamada de “corpo dos cidadãos”: os indi-
víduos livres do sexo masculino. Ou seja, o grande passo de
Marsílio em direção a uma cidadania generalizada está, precisa-
mente, na abolição da diferença entre fiéis e leigos, o que não
impede que, para além dessa distinção, as diferenças estratifica-
doras como senhor/servo ou diferenças bem mais antigas, como
a de gênero (homem/mulher), permanecessem produzindo dife-
renças naquelas sociedades.
Por isso, quando identificamos em Marsílio uma defesa da
“soberania popular”, a expressão deve, necessariamente, ser to-
mada com a cautela a que nos referimos anteriormente. Observe-
-se que, ainda que sem utilizar a palavra “soberania”64, Marsílio

63 “Since every citizen had the same value, no distinction in quality


could be made, and there remained only counting by heads” (ULMANN,
s/d: 207).
64 Não encontramos, no Defensor Pacis, a expressão “soberania do povo”,
utilizada por Jeannine Quillet, por Walter Ulmann, por Gary Nedermann

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lança mão de expressões da época coincidentes com o sentido
político-jurídico que, àquele tempo, já se delineava para o vocá-
bulo: como vimos no caso da obra de Beaumanoir, um sentido
ligado à noção de superioridade, de um vértice em uma hierarquia
de poderes. Nesta direção, Ulmann diz que a ênfase posta pelo
autor do Defensor Pacis na assertiva de que o único legislador é o
povo leva à concepção de que neste o autor vê um poder “sobe-
rano”, no sentido de “supremo”, uma vez que não há autoridade
acima daquela do legislador humano. Se não há autoridade su-
perior acima da comunidade dos cidadãos, isto significa, então,
que o povo é soberano de si mesmo65.

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A descrição que Marsílio oferece, no entanto, é decididamen-


te pré-moderna. Os termos utilizados no Defensor Pacis são “supe-
rior” ou “supremo” para referir-se ao poder fundador do povo.
Na tradução francesa do Defensor Pacis, foi utilizado o termo “su-
prême”: “Ce principat, le suprême, sera un, dis-je, de toute nécessité, non
plusieurs: si le royaume ou la cité doivent être droitment disposés” (MAR-
SÍLIO, 1968: 163). A unidade, portanto, é numérica, há um só
principado, senão na cidade não pode haver unidade. Mas esta
unidade em cada principado comporta a convivência de vários

e por outros estudiosos da obra de Marsílio para se referirem a suas teses.


As expressões que aparecem na edição francesa do Defensor Pacis são “au-
torité humaine de faire les lois” e “pouvoir efficient d’établir ou d’élire le
gouvernement” para indicar os poderes pertencentes ao legislador ou ao
conjunto dos cidadãos.
65 Para Ulmann, Marsílio “(...) stressed that there was no one above the
people: the people, the citizenhood (or the human legislator) was ‘supe-
rior’, that is sovereign, since there was no authority outside or above it.
The citizenhood had become its own superior, its own sovereign. Marsiglio
went even so far as to say that plenitude of power belonged to the people,
thus using a notion from the opposite camp to make clear his own prin-
ciples” (ULMANN, s/d: 208).

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principados, de sorte que não significa que, para todo o mundo,
haverá apenas um principado66.
Esta é a descrição da sociedade de seu tempo que, tal como o
Visconde Medardo di Terralba do romance de Calvino, é uma
sociedade “partida”67. A diferenciação estratificatória exigia uma
tal descrição da sociedade, realizada a partir do vértice da hierar-
quia e a partir do centro, isto é, da parte que governava a cidade.
O recurso a esta diferença todo/parte é, sem dúvida, uma solução
“genial” para o problema do paradoxo de uma unidade que é, ao
mesmo tempo, múltipla e una (unitas multiplex). Este artifício,
comum no período medieval, permitiu uma distribuição do pa-
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radoxo todo/parte em dois planos, distintos um do outro, “sem


que deva ser tematizada a unidade daquilo que é distinto: um
plano é formado pelo todo, o outro pela parte” (LUHMANN & DE
GIORGI, 1993: 347). É esta a operação realizada por Marsílio,
quando este descreve uma cidade feita de “partes”, na qual os
cidadãos “participam” da vida política. A distinção todo/parte é
reinterpretada, no contexto medieval, “mediante a distinção aci-
ma/abaixo, isto é, através de um reenvio à hierarquia” (LUHMANN
& DE GIORGI, 1993: 348). Assim é que o povo, em Marsílio, é
concebido – enquanto “universo” – como a parte da comunidade
que tem por missão fazer as leis, não coincidindo, portanto, com
a totalidade dos indivíduos na sociedade.

66 Essas afirmações levam ULMANN a concluir da seguinte maneira:


“There was no superior set above the State as the body of the citizens,
just as there was no superior set above the Church understood as the body
of the faithful: each was, in a word, sovereign” (ULMANN, s/d: 214). Essa
é uma conclusão da qual não compartilhamos. É claro que aqui Ulmann
não entende o Estado, como Marsílio, como uma congregação de homens,
porque, se assim fosse, a sua afirmação seria contraditória. Ele entende o
Estado em sentido muito mais moderno, como uma organização de apa-
ratos. Nesse caso, a sua afirmação é tautológica.
67 CALVINO,“Il Visconte dimezzato”. Milano: Oscar Mondatori, 1993.

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Nesse quadro, Marsílio indica uma segunda parte, cuja autori-
dade é conferida pelo legislador: o Príncipe. Encontramo-nos,
então, perante uma “ordem das partes” da cidade em suas relações
recíprocas. O paradoxo da soberania popular desponta, portanto,
já no século XIV: na afirmação da superioridade de um povo que
é, ele mesmo, seu superior. Enquanto povo, este se constitui como
a parte “superior” da sociedade de forma que, portanto, apenas ele
pode limitar a si mesmo. Subjaz a esta ideia, portanto, a diferença
superior/inferior, própria das sociedades estratificadas. Se o “povo”
é o “superior”, isso significa que, fora deste povo, há um “inferior”,
que é encoberto pelo artifício da soberania do povo e, logo, que

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nem todos estão incluídos na qualidade da “parte” superior.


O paradoxo não parece representar grande problema para os
autores medievais. Em Bartolo de Sassoferrato (1314-1357) en-
contramos a assertiva de que a civitas que não reconhece um
superior é príncipe de si mesma, sibi princeps. Seu povo é livre,
possui imperium: a cidade tem sobre seu povo o mesmo poder
que o imperador tem sobre o mundo inteiro68. Essa construção,
em Bartolo, é fundada em instrumentos jurídicos, e não na filo-
sofia, como em Marsílio. Bartolo utilizou os textos do direito
romano para construir a sua tese ascendente do governo e do
direito para além dos elementos individualistas contidos no pró-
prio direito romano. Esses elementos seriam o conceito de cida-
dão, o conceito de direito consuetudinário, que já foram men-
cionados, e a chamada lex regia69. Lex regia é uma construção do

68 BARTOLO, Ad Digestum Novum, de publicis iudiciis, Infamem, 14. apud


FASSÒ, 1982: v. 1, p. 198.
69 “What he did was to utilize certain already well-known Roman law
texts and to construct the ascending thesis of governement and law out
of individual Roman law elements. The most important of these elements
we have mentioned before: the concept of the citizen, the concept of
customary law, and the so called lex regia” (ULMANN: s/d , p. 214).

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direito romano que foi utilizada, no século II, para explicar aos
romanos a origem do poder do imperador de elaborar leis. En-
quanto os glosadores tomavam o direito romano para pensar o
direito local através da noção de cessão imperial deste poder de
elaborar o direito, ou seja, como uma permissão do imperador
para que as cidades seguissem seus próprios costumes (consuetu-
dines), Bartolo inovou ao propor o mesmo conceito em termos
de iurisdictio, isto é, de um ordenamento jurídico autônomo
(FASSÒ, 1982: 198).
A estratégia consistiu na introdução da distinção entre poder
de facto e de iure70. Com auxílio dessa diferença, Bartolo entendeu
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que o superiorem non recognoscere da fórmula rex superiorem non


recognoscens in regno suo est imperator deveria existir de fato e não
de direito, com a clara intenção de assegurar à cidade uma posição
idêntica àquela do imperador (BRUNNER, 1983: 559). Soberania
apareceu, curiosamente, como um conceito aparentemente me-
tajurídico, como um poder de facto, para descrever uma situação
jurídica que não deriva do direito, mas do fato, na medida em
que o soberano era aquele capaz de impor-se como tal: “A sobe-
rania do soberano começa a instaurar-se apenas no momento em
que este último (...) encontra-se em condições de poder efetiva-
mente decidir por conta própria” (BRUNNER, 1983: 560). Con-
clui-se então que toda iurisdictio, como manifestação desta “sobe-
rania”, desde a do Império até aquela que se estabelece por um
barão, no âmbito de seu baronato, é autônoma. Aqui, chega-se a
uma formulação bem parecida com aquela que no século prece-
dente havia sido proposta por Beaumanoir. Para Bartolo, assim

70 Essa é uma distinção à qual muito frequentemente ainda se recorre


na teoria jurídico-política contemporânea. Esta diferença entre fato e
direito será analisada no terceiro capítulo desta obra. Por ora, o impor-
tante é ressalvar que já Bartolo introduziu essa diferença para afirmar,
exatamente, que o poder de “facto” também poderia ser de “iure”.

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como o imperador, que é senhor de tudo, faz a lei universal, tam-
bém aqueles que são senhores apenas parcialmente, do mesmo
modo fazem estatutos particulares (FASSÒ, 1982: 198). Nesses
status superiorem non recognoscens, cujo chefe político não recebe seu
poder do Império, sendo este afirmado de facto, o titulus que ou-
torga legitimidade a quem governa é o consentimento do povo.
Isso corresponderia à afirmação de que a soberania – a origem do
poder – está no povo. Aqui também veremos a utilização de um
conceito do direito romano, o de cidadão, tal como representado
no Digesto como portador a título pleno de direitos e deveres71. Na
interpretação contextualizada que Bartolo faz dos textos romanos,

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um povo livre é aquele que não reconhece nenhum superior72.


Neste sentido, aquilo que os juristas dos quatrocentos indicaram
com a fórmula “Um Rei em seu reino é Imperador” reaparace na
tese de Bartolo do povo como sendo o príncipe (civitas sibi prin-
ceps)73. A concepção de “soberania” popular aparece, então, na
constatação de que o fundamento do poder político se dá no con-
sentimento do povo. Mas não apenas por isso.
Bartolo avança em relação à própria tese de que os costumes
(mores) locais são o único direito “da cidade”. Ou seja, avança em
relação àquilo que, por ser de facto, poderia ser interpretado como
metajurídico, partindo para o terreno induvidosamente – desde
o ponto de vista do “senso comum dos juristas” – jurídico da le-

71 Assim, como observa Ulmann, “that people or citizenhood which made


its own laws was ‘a free people’ and could be compared to the Roman
people which, according to the lex regia, originally had power” (ULMANN,
s/d: 216).
72 “(...) because it was its own ‘superior’, or, as he also had it: a free
people was its own prince”(ULMANN, s/d: 216).
73 “There it was the king’s sovereignty, here it was the people’s sove-
reignty, which was to be expressed by the Roman law terms of princeps”
(ULMANN, s/d: 216).

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gislação. Se o povo pode exprimir tacitamente seu consentimen-
to, por que não fazê-lo através da lei? Se o povo pode criar o
direito através do costume, pergunta Bartolo, por que não pode
fazê-lo através de estatutos, isto é, criando também direito escri-
to? Para Bartolo, o elemento que reveste de caráter jurídico os
usos e costumes é simplesmente o consentimento do povo. Se o
povo cria direito com seu consentimento tácito, conclui Bartolo,
ele também pode criar direito manifestando explicitamente seu
consentimento, fazendo estatutos, criando direito escrito. Assim,
a diferença entre o direito costumeiro e o direito escrito é sim-
plesmente a da forma pela qual o consentimento é expresso: no
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primeiro caso ele é tácito, no segundo é explícito (ULMANN, s/d:


216). É do consentimento de um povo livre, tácito ou expresso,
que se institui um governo pertencente ao próprio povo, que
Bartolo chama regimen ad populum.
Mesmo que não seja utilizada a expressão “soberania popular”
(assim como em Marsílio), a tese de Bartolo delineia uma pro-
posta desse tipo, com todas as limitações que vimos no caso de
Marsílio, ainda que com outras características. Aqui, o ponto de
partida da fundação é dado pela faticidade do poder que se legi-
tima – se “juridiciza” – através da faticidade do consenso. O reco-
nhecimento jurídico, na fundação, é disso uma consequência.
Podemos dizer que, em ambos os casos, encontramo-nos diante
de referências metajurídicas: uma universalidade sem referência
específica de um lado, e uma faticidade da qual decorre um re-
conhecimento jurídico, de outro. Marsílio e Bartolo são expressões
de um momento específico italiano, representando diferentes
tentativas de fundar-se a autonomia das cidades italianas. En-
quanto as teses de Marsílio e de Bartolo se desenvolviam no solo
italiano, que, pela sua história e pelas suas dimensões, havia
produzido uma grande fertilidade intelectual, uma semântica na
qual se desenvolve uma ideia de soberania popular florescia tam-
bém na França e na Inglaterra. Na literatura frequentemente

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faz-se referência a estas teses como “protoconstitucionalistas”. O
que se pode verificar, aqui, é uma convergência de diferentes
respostas para um mesmo problema: o da fundação do poder do
direito dizer o direito. Podemos falar, neste caso, em uma coevo-
lução, a qual reflete a universalidade do conhecimento medieval,
ou seja, reflete não só a universal consciência medieval da neces-
sidade de submissão do poder às leis, mas também uma cada vez
mais difundida consciência de que, para que as novas formas de
organização política que emergiam pudessem obter autonomia,
era necessário buscar fundamentos para além da religião. O pro-
blema central era, portanto, o da determinação de um fundamen-

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to do poder capaz de liberar o exercício da potestas terrena da


autorictas divina. Este problema encontrou soluções no recurso à
determinação de uma fonte do poder que materialmente era ela
mesma objeto do exercício do poder. Soluções desse tipo abrem
o caminho para uma contínua expansão da função constitutiva
de poderes por parte de quem não tem poder, o povo “comum”,
e conduzirão a uma progressiva ruptura dos velhos fundamentos
dos privilégios.
É assim que, naquele mesmo período, podemos colher exem-
plos semelhantes na França e na Inglaterra. Na França, Jean de
Paris salienta a inexistência de uma conexão entre a Igreja e o
Estado, dado que o poder do rei era derivado de Deus através da
eleição feita pelo povo. O rei assumiria o poder por ser essa a
vontade do povo (rex est a populi voluntate), tendo como função
tão somente a de preservar a ordem social, de atender às neces-
sidades da “vida boa”. A ideia central, aqui, é a de que o rei po-
deria adquirir o poder unicamente através do consentimento
daqueles a quem iria governar e, da mesma forma, poderia ser
deposto, tão somente, pelo povo74. Em sua tentativa de encontrar

74 “Just as the king was elect by the people, in the same way he could

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uma fundação “terrena” para o poder, calcada no consentimento
popular, Jean de Paris chegou mesmo a aplicar esta sua teoria
também às autoridades eclesiásticas, que, assim como o rei, para
ele recebiam seu poder por meio do consentimento do povo.
Assim, o poder secular do papa também poderia ser retirado pelo
povo, porque o pressuposto do poder do papa era o consentimen-
to dos fiéis, e este lhe pode ser negado em caso de insanidade,
inépcia ou qualquer outra razão que o povo considere relevante.
Nessa mesma direção, na Inglaterra do século XIV, Guilherme de
Ockham admitiu que o direito soberano essencialmente político
do povo era um direito positivo do povo romano75. Aqui, outra
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vez, vê-se curiosamente o direito romano como uma das princi-


pais fontes do constitucionalismo76.

be deprived of his power by the people: the deposition of the king was a
matter for the people” (ULMANN, s/d: 203-204).
75 “Cum igitur jus quod habent Romani super imperium sit jus humanum
positivum. Non absque consensu expresso vel tacito totius universitatis
mortalium” (OCKHAM, Guilherme. Dia. III, tr.2, I, 1, c. XXIX, apud CRO-
SA, 1915: 38).
76 Skinner anota que isso “pode parecer paradoxal”, tendo em vista o
fato de que o Digesto tantas vezes fora invocado para legitimar o poder
absoluto dos governantes sobre os governados. Observa, a este propósito,
uma outra maneira de se usar a autoridade do direito romano para fun-
damentar uma posição constitucionalista, mediante uma adaptação de
argumentos de direito privado que justificassem o emprego da violência.
Era o caso da lei canônica que tratava dos juízes injustos, quando se pro-
cura saber “se é legítimo resistir a um juiz que está procedendo injusta-
mente”. A essa questão respondeu o Papa Inocêncio IV, dizendo que “se
um juiz procede de forma injusta em um caso que não é de sua jurisdição
(...) pode-se de fato resistir-lhe com violência”, da mesma forma que,
ainda segundo o Papa, “se um juiz causa uma injúria a alguém”, é lícito
“opor-lhe, impunemente, uma resistência violenta” (SKINNER, 1996:
404-405).

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Em 1340, Ockham aplica ao campo do pensamento político a
teoria da resistência oriunda do direito privado. Ao abordar o pro-
blema de se definir se o papa é juiz do imperador ou vice-versa,
Ockham lança mão de mais uma distinção tipicamente medieval
(o que traz uma noção de direito de resistência concebido quase
como uma “razão de Estado”): a distinção entre superioridade
“no decurso regular dos acontecimentos” (regulariter) e superio-
ridade em “circunstâncias excepcionais” (casualiter). Essa distin-
ção, narra Skinner, é ilustrada por Ockham mediante uma aná-
lise da relação de um rei com seu reino: “Um rei é superior a seu
reino como um todo no ‘decurso regular dos acontecimentos’,

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mas ‘em circunstâncias excepcionais’ pode ser inferior ao reino,


o que é comprovado pelo fato de que em casos de ‘calamitosa
necessidade’ é legítimo que o povo ‘deponha o rei e o mantenha
sob custódia’” (SKINNER, 1996: 406). Como observa Crosa, essa
tese de Ockham consistiu numa primeira tentativa de fundamen-
tação jurídica por parte dos publicistas medievais para dar à teo-
ria da soberania popular uma fundamentação voltada para a
prática. Este caráter mais pragmático da noção de soberania po-
pular na Inglaterra é visível na tradição do direito inglês. Este
formou-se a partir do século XIII, com a fusão das tradições do
direito romano, do direito feudal, do direito canônico e, sobretu-
do, dos costumes propriamente ingleses.
O direito inglês, aplicado pelas cortes do rei em todo o reino,
deveria tornar-se a lei para o súdito “grande” e para o “humilde”.
Aí, foi de grande importância a formação de uma classe de juris-
tas, como Bracton e Glanvill, que procuraram dar valor prático
às normas jurídicas. O direito inglês, que Bracton chamou de
common law, não era o direito existente e vigente por decreto do
soberano, ou seja, não era o principi placuit (princípio justiniano
acolhido na Idade Média nos países da Europa continental). Brac-
ton não apenas afirmou a originalidade do common law como
direito costumeiro e não escrito, ao lado do jus scriptum do conti-

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nente77. O common law, ao qual também se sujeita o rei, é um
direito nascido da consciência popular e declarado, antes que
aplicado, pelos juízes, que o descobrem na constituição do país e
nos precedentes judiciais, não no decreto do soberano (FASSÒ,
1982: 20). É claro que, também na tradição inglesa, o significado
de “povo” não encontra ainda uma intenção universalizante. As
palavras de Bracton são bastante evidentes neste sentido, quando
este afirma ser o direito inglês resultado do consentimento dos
magnates, tendo sido “right decided and approved with the coun-
sel and consent of the magnates and the general agreement of
the res publica” (BRACTON, 1968: 19).
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Enquanto Guilherme de Ockham havia formulado sua dou-


trina a partir das instituições do direito romano, ao buscar inspi-
ração mais no direito inglês do que nos textos romanos, Bracton
aponta como, àquela época, o common law já demonstrava sua
inclinação constitucionalista78. Bracton formula o princípio, fun-

77 “Thought in almost all lands use is made of the leges and the jus
scriptum, England alone uses unwritten law and custom. There law de-
rives from nothing written [but] from that usage has approved” (BRAC-
TON, 1968: 19).
78 A esse propósito, escreve RADBRUCH que “(...) l’intera vita costitu-
zionale ha anche i suoi fondamenti positivi nel Common Law. In esso ha
le sue radici la monarchia: “Lex facit, quod ipse iste rex” (la legge fa sì che
egli sia re) scrive BRACTON, e Francis BACON chiama la regina Elisabet-
ta “a common law Queen” (una regina di diritto comune). L’Inghilterra
ha conservato questa concezione propria del diritto germanico anche
quando l’assolutismo continentale fece suo il principio romano del “prin-
ceps legibus solutus” (il principe sta sopra la legge). Il principio “The king
can do no wrong” (il re no può commettere ingiustizie) è solo un’equi-
voca formulazione del principio che il re, nel caso che violi il diritto, non
può essere punito e nel processo civile non può essere chiamato in giu-
dizio attraverso una citazione, ma tutt’al più nei singoli casi con una
‘petition of right’“ (RADBRUCH, 1962: 26).

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damental para o desenvolvimento ulterior do constitucionalis-
mo, segundo o qual não é o rei quem faz a lei, estando esta
acima do rei. Esta ideia de que o rei está a um só tempo acima
e abaixo da lei – Rex infra et supra legem – apenas aparentemen-
te era autocontraditória (KANTOROWICZ, 1998: 100). Ademais,
não era nova. O próprio Frederico II, comtemporâneo de Brac-
ton, já definira o lugar do imperador no sistema medieval como
“pai e filho da Justiça”79. O pensamento de Bracton, no entanto,
era mais “concreto” do que o do imperador, pois fazia mais ape-
lo ao direito visto como experiência do que às então correntes
concepções do direito natural. O problema, em Bracton, não é

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o de determinar se o rei era “pai e filho da Justiça”, mas se este


estava “acima e abaixo da Lei”. Enquanto Frederico II deduziu
do direito romano a fundamentação de suas próprias prerroga-
tivas, Bracton afirmava, a partir das mesmas passagens, que o
rei estava abaixo da lei natural, reconhecendo, no entanto, a
posição única do rei, contra quem a lei não poderia ser aciona-
da (KANTOROWICZ, 1998: 101). A posição única do rei signi-
ficava que, no Reino, este não conhecia equal80. Isso correspon-
dia à afirmativa de que o rei estava submetido, apenas, à lei

79 É certo, no entanto, que o imperador utilizava a máxima em um


sentido diverso dos conceitos ingleses.”Federico II definia seu lugar acima
e abaixo da Justiça em termos muito precisos, admitindo francamente
que, em alguns aspectos, o imperador estava sujeito à lei, mas enfatizan-
do com muita firmeza que o Príncipe possuía poder legislativo exclusiva-
mente por inspiração divina e ao mesmo tempo pela lex regia. Pressupunha
que ele próprio era ‘a Lex’, a lex animata e encarnação da própria ideia de
Justiça (...)” (KANTOROWICZ, 1998: 101).
80 “The king has no equal within his realm,[Subjects cannot be the equals
of the ruler, because he would therebz lose his rule, since equal can have
no authoritz over equal] nor a fortiori a superior, because he would then
be subject to those subject him. Thus he willed himself to be under the
law that he might redeem those who live under it” (BRACTON, 1968: 33).

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divina ou natural81. Na verdade, portanto, o rei como vigário de
Deus era, tal como Jesus Cristo, aquele que retira seu poder do
fato de ter se submetido às leis82. O paradoxo do soberano “acima
e abaixo da lei” era resolvido de forma que, na prática, o rei para
Bracton estava muito mais “acima da lei” do que “abaixo” desta83.
Na trilha da teoria de Bracton, John Fortescue (1396-1479),
dando ênfase à dimensão constitucionalista desta, faz do diálogo
In praise of the laws of England (Da louvação das leis da Inglaterra)
um libelo contra o direito romano e uma apologia xenófoba do
direito inglês, enquanto resultante este da aprovação de “todo
inglês”84. Em Fortescue, vemos claramente como, com base nas
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81 “The king must not be under man but under God and under the law,
because laws makes the king, [Let him therefore bestow upon the law
what the law bestows upon him, namely, rule and power.] for there is no
rex where will rules rather than lex” (BRACTON, 1968: 33).
82 “And that he ought to be under the law appears clearly in the analo-
gy of Jesus Christ, whose vicegerent on earth he is, for though many ways
were open to Him for his ineffable redemption of the human race, the
true mercy of God chose this most powerful way to destroy the devil’s
work, he would use not the power of force but the reason of justice”
(BRACTON, 1968: 33).
83 Neste sentido, observa Kantorowicz: “Parece que a ênfase exagerada
(...) da máxima bractoniana, lex supra regem, levou a obscurecer indevi-
damente o aspecto oposto da doutrina de Bracton: ‘o rei acima da Lei’.
Não é preciso dizer que a condição do rei ‘acima da Lei’ era, em si mesma,
perfeitamente ‘legal’ e garantida pela Lei. Seus direitos supralegais, ser-
vindo ‘àquelas coisas que pertencem à jurisdição e à paz’ e sua proteção,
eram garantidos ao rei pela própria Lei” (KANTOROWICZ, 1998: 103).
84 “Quando o príncipe, no começo do diálogo, consulta seu chanceler
sobre a oportunidade de concentrar-se no estudo do direito civil, o minis-
tro lhe responde sem mais rodeios que o direito romano, como um todo,
é completamente avesso à natureza ‘política’ da constituição inglesa. (...)
O chanceler recomenda ao seu príncipe que se concentre inteiramente
no estudo dos costumes e estatutos ingleses, e que considere todas as leis

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especificidades do direito inglês, é construída a tese de que, como
fonte última do direito, o povo – como corpo político – é sobera-
no. Essa ideia do povo como corpo político do reino constitui o
cerne do constitucionalismo inglês. Segundo esta ideia, inspirada
em Santo Agostinho quando este havia dito que “um povo é um
grupo de homens unidos pelo consentimento da lei e por uma
comunidade de interesses”, um povo ergue a si mesmo como
reino. Mas o corpo político do reino, tal como os corpos naturais,
não pode prescindir de uma cabeça, ou seja, de um homem que
governe todo o corpo e que se mantenha a ele ligado por aquilo
que consiste no “sangue” do corpo político: “as leis políticas”85. O

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corpo político mantém-se unido, como corpo, através da lei que


o povo consentiu em dar-se a si mesmo. Na doutrina de Fortescue,
em que Bracton dissera “o rei está acima e abaixo da lei”, pode-se
ler “o rei está acima e também abaixo do corpo político do reino”
(KANTOROWICZ, 1998: 146).
A estratégia constitucionalista de Fortescue consiste na intro-
dução da diferença entre royal dominion e political and royal domi-

humanas, [quer] costumes, [quer] estatutos, a não ser que não desperte
qualquer dúvida seu status de leis naturais. Faz-se nesse momento o
elogio das leis costumeiras, com base no argumento (que mais tarde seria
reiterado por sir Edward Coke e, séculos depois, de novo por Burke) de
que são perfeitamente adaptadas às peculiaridades da situação inglesa,
enquanto os poderes do Parlamento são defendidos dando-se por razão
que, sempre que é aprovado um estatuto, todo inglês está representado”
(SKINNER, 1996: 335-336).
85 “And just as in the body natural, as the Philosopher said, the heart is
the first living thing, having in itself the blood which in sends forth to all
the members, whereby they are quickened and live, so in the body poli-
tic the intention of the people is the first living thing, having in it the
blood, namely, political provision for the interest of the people, which it
transmits to the head and all the members of the body, by which the body
is nourished and quickened” (Fortescue, 1997: 20-21).

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nion. A diferença entre uma e outra forma de dominação encon-
tra-se, precisamente, no fato de que na segunda as leis são feitas
sob a base do consentimento do povo, contra o qual o rei não
pode impor sua própria vontade86. A definição da lei afirma a
supremacia do common law – enquanto direito do povo inglês –
sobre si mesmo. E nesta assertiva funda-se a soberania popular
em Fortescue. Esta construção também é uma construção circu-
lar: o common law é supremo sobre si mesmo; o povo inglês (re-
presentado, do século XVII em diante, pelo Parlamento) é sobe-
rano sobre si mesmo. Neste princípio funda-se o direito inglês e,
como ocorre em todos os princípios fundantes, por detrás dele
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se oculta um paradoxo.
Mas, contrariamente a tantos quantos o precederam, Fortes-
cue demonstra ter uma aguda consciência do caráter tautológico
de suas teses, fazendo remissão a Aristóteles, neste passo, para
reafirmar que Any principle is its own ground for holding it (Fortes-
cue, 1997: 15). Para o autor inglês, na raiz de todo princípio
fundante do governo e do direito, e mesmo daquele que aponta
o direito inglês como obra do povo inglês, encontramos um pa-
radoxo. Uma passagem do escrito In praise of the laws... é, aqui,
particularmente interessante e esclarecedora. Nela, Fortescue
narra o diálogo de um jovem príncipe, futuro rei da Inglaterra,
e seu preceptor.

86 “There are two kinds of kingdoms, one of which is a lordship called


in Latin dominium regale, and the other is called dominium politicum et
regale . And they differ in that the first king may rule his people by such
laws as he makes himself and therefore he may set upon them taxes and
other impositions, such as he wills himself, without their assent. The
second king may not rule his people by other laws than such as they
assent to and therefore he may set upon them no impositions without
their own assent” (Fortescue, 1997: 83).

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O jovem futuro rei da Inglaterra, interessado no estudo das
leis de seu país, pergunta a seu Chancellor por quanto tempo de-
verá dedicar-se ao estudo do direito e se, neste estudo, deverá
ater-se às leis da Inglaterra ou, também, buscar conhecer o direi-
to romano, reconhecido por todos os outros países87. A resposta
do chanceler consiste numa explanação sobre o significado dos
princípios para o conhecimento. Fazendo alusão a Aristóteles,
quando este afirma que pensamos conhecer as coisas quando
conhecemos suas causas e princípios, bem como seus elementos,
o mestre explica ao filho do rei que os princípios consistem em
“certains universals which those learned in the laws of England and

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mathematicians alike call maxims, just as rhetoricians speak of parado-


xes, and civilians of principles of law”88. A origem de tais máximas
universais, no entanto, não se encontra nem na força da argu-
mentação nem nas demonstrações lógicas, dado que os princípios
derivam da indução, realizada através do sentido e da memória89.

87 “(…) two things afflict my mind and puzzle me, just as a boat in
troubled waters knows not wither to direct its bows. One is that when I
recollet how many years students in the curricula of the law devote to
their stude before they attain to an adequate expertise therein, I fear lest
I mayself spend the years of my youth in the same way. The second is
whether I shall devote myself to the study of the laws of England or of
the civil laws which are renowned throughout the world. For the people
should not be ruled by any save the best laws; as Aristotle says, ‘Nature
always covets the best. Hence I should willingly pay heed to your advice
in these things’” (Fortescue, 1997: 13).
88 Sobre o caráter paradoxal dos princípios gerais do direito, ver
NEUENSCHWANDER M. O uso criativo dos paradoxos do direito: a aplicação
dos princípios gerais do direito pela Corte de Justiça Europeia. Dissertação
de mestrado. Florianópolis: UFSC, 1994.
89 “These principles, indeed, are not discerned by force of argument nor
by logical demonstrations, but they are arrived at, as it is taught in the
second book of the ‘Posteriora’, by induction through the senses and the
memory” (Fortescue, 1997: 15).

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Portanto, tal como já Aristóteles havia afirmado, no segundo livro
da Física, “não existem fundamentos racionais para os princípios”
(FORTESCUE, 1997: 15). Quem queira conhecer qualquer ciên-
cia, explica o mestre ao seu jovem discípulo, deve fazê-lo conhe-
cendo os princípios desta, de onde derivam seus elementos. Mas
o conhecimento dos princípios, causas e elementos não exige o
conhecimento do fundamento dos princípios. Na Teologia, por
exemplo, “podemos saber que conhecemos a lei divina quando
sentimos que conhecemos a fé, a caridade, a esperança, assim
como os sacramentos da igreja, e os comandos de Deus, deixando
outros mistérios da Teologia para os doutores da igreja” (FORTES-
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CUE, 1997: 15).


Fortescue indica, portanto, ser necessário conhecer a partir
dos princípios, fundando o conhecimento nos princípios. Já o
fundamento dos princípios não pode ser conhecido, porquanto
estes não podem, por sua vez, ser racionalmente fundados. Se
os princípios têm por fundamento a si próprios, toda vez que
estes são observados, inevitavelmente também é observado este
paradoxo. Diante disso, este é o conselho que o chanceler dá ao
filho do Rei: Knowing not high things. Ou seja, o jovem príncipe
deve dedicar-se em conhecer a lei de seu país como se esta fos-
se uma “gramática”, sem se preocupar em explorar os mistérios
do direito inglês: “it is sufficient for you to progress in the laws as you
have in grammar” (Fortescue, 1997: 16). Ou seja: o paradoxo da
fundação nos princípios que fundam a si mesmos não só não
pode ser observado pelo Príncipe como não deve ser objeto da
preocupação deste. Um governante não pode se colocar a todo
momento a questão sobre qual é o direito que lhe confere o
poder de governar e, portanto, também de criar o direito. O
Príncipe deve assumir o paradoxo como constitutivo de seu
poder de governar, pois apenas com base nesse paradoxo é pos-
sível fundar esse poder numa base racional. Em Fortescue,
chama a atenção esse reconhecimento do fato de que os princí-

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pios se tornam necessários enquanto estratégia de fundação,
isto é, de ocultação, daquilo que não pode ser fundado.
A soberania popular, como a base do constitucionalismo in-
glês, assume e aponta os caminhos “criativos” do paradoxo, ao
definir o poder de governar a partir de uma definição da lei como
fundada na supremacia do common law – enquanto direito do povo
inglês – sobre si mesmo. Mas o paradoxo, fatalmente, reaparece.
Em cada tradição, a inglesa, a italiana, a francesa, o paradoxo
permanece latente por detrás das várias formulações da soberania
popular medieval. Quando a parte da sociedade que representa
o todo que se indica como “povo” já não é mais capaz de se apre-

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sentar como uma unidade, a diferença fundadora do poder rea-


parece como sendo uma diferença, e não uma unidade: poder-
contra poder. No seio do “protoconstitucionalismo” medieval, que
havia defendido a limitação jurídica do poder político sob o argu-
mento de que este pertencia ao povo, o paradoxo da autofunda-
ção do direito e da política reaparece quando a “soberania popu-
lar” da Idade Média demonstra já não ser mais “soberana” e,
tampouco, popular.
Aquilo que a Idade Média chamou de souverain (ou superior,
suprême) somente poderá impor-se soberanamente – no sentido
moderno da palavra – a partir do século XVI, quando existe um
aparato político autônomo e unitário capaz de concentrar com
exclusividade, em um território, jurisdição e legislação. As várias
teses da soberania popular medieval nasceram ligadas aos direitos
“próprios” medievais, que manifestam as características de uma
sociedade estamental. Nesse contexto, o “todos” a decidir da fór-
mula quod omnes tangit, segundo a qual todos os afetados devem
ser ouvidos e concordar, será sempre uma “parte”, o senhor de
terras, por vezes seus vassalos, os mercadores, o clero90.

90 “‘Quod omnis tangit’ é uma máxima do direito das corporações que


é lembrada sempre pelos melhores descendentes (melior) ou pela parte

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Assim, se a ideia de soberania popular, já em sua origem, está
definitivamente ligada à palavra participação, esta aqui não se lê
no sentido em que hoje interpretamos este termo. O conceito de
participação, aqui, descreve a relação medieval de todas as partes
com o todo. Participação, na sociedade medieval, mais do que
“tomar parte” das decisões, significa decisões que são tomadas por
uma “parte”. Neste velho sentido da palavra, participação não
significa nada mais do que a palavra mesma diz: ser parte de um
todo (LUHMANN, 1985: 12). O “povo”, portanto, será sempre a
parte que participa; para utilizar a linguagem de Marsílio de Pádua,
a valentior pars ou a parte preponderante da sociedade. O popular
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da expressão medieval “soberania popular” permanece sendo


definido pela parte, “o povo”, daquele todo que será afetado pelas
decisões – que, por sua vez, também recebe o nome de povo.
Ao conceito de soberania popular são referidas pretensões de
natureza moral, segundo as quais cada parte, em virtude da par-
ticipação, possui direitos e deveres, podendo reivindicar proteção
em troca de prestações de serviços em favor do todo (LUHMANN
& DE GIORGI, 1993: 349). A relação que existe entre o todo e as
suas partes é uma relação de tensão, que é ocultada com a inter-
posição da distinção entre representação e participação91. Se o
todo não é a soma das partes, se nem todas as partes participam,
então torna-se necessário pensar em como, através da represen-
tação, pode uma parte fazer as vezes do todo92.

tida de maior razão (sanior), quando membros com proeminência social


suficiente querem reivindicar sua participação” (LUHMANN, 1998: 158).
91 “Sulla partecipazione si innesta la distinzione tra diritto e doveri, la
cui unità viene indicata come jus e in questa forma viene resa di nuovo
disponibile per la differenziazione sociale secondo il rango e la collocazio-
ne” (LUHMANN & DE GIORGI, 1993: 349).
92 Como dizem Luhmann e De Giorgi, é fácil observar, em algumas si-
tuações, como forma produz forma, produz forma, produz forma.

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Essas reflexões nos permitem entrever como a reflexão jurí-
dico-política do século XIII em diante demonstra a necessidade
de se buscar fundamentos novos para o poder. No entanto, no
contexto da estratificação não se pode, senão por tentativas, uni-
versalizar aquilo que ainda não pode ser universalizado, isto é, o
povo. Encontramo-nos diante daquilo que Parsons, em um sen-
tido bastante especial, e depois Luhmann e De Giorgi, num sen-
tido muito mais aproximado àquele que é aqui utilizado, chamam
preadaptive advances. Tentativas, novas aquisições, obstáculos,
quebras de antigas certezas, superação de resistências, pesquisa
de novas formulações: todo esse material encontramos nas fases

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originárias da construção de uma nova semântica. Exatamente


por isso, não é possível, na reconstrução da evolução dos concei-
tos semânticos, deixar-se enganar pelo uso dos termos, pela sua
recorrência e pelo pensamento de um único autor, nem mesmo
ainda pela permanência, apenas aparente, de uma tradição lin-
guística qualquer. As estabilizações semânticas representam so-
luções provisoriamente definitivas para problemas cuja percepção
é muito mais antiga e para transformações estruturais da socie-
dade que, não obstante se manifestem com evidência, encontram
obstáculos à sua elaboração conceitual.

1.4  Para uma história semântica do conceito de soberania


Não foi um mero acaso o desenvolvimento simultâneo das
antecipações intelectuais teóricas e doutrinárias das teses da so-
berania, que em diferentes regiões teriam tornado explícita a
necessidade de determinar uma nova fundação do poder. Também
não foi certamente um acaso o fato que essas antecipações se
movessem, no período tardo-medieval, na direção que recorria à
ideia de soberania popular. Ainda que não seja possível dizer,
como vimos, que na Idade Média o conceito de soberania, e tam-
bém aquele de soberania popular, tenha encontrado uma elabo-
ração completa, naquele período já se encontram os pressupostos

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da moderna formulação deste conceito. Dessa forma, os movi-
mentos teóricos que levaram às primeiras elaborações de uma
noção de soberania durante a Idade Média, em diferentes re-
giões, assinalavam as profundas transformações que o mundo
político europeu começou a sofrer a partir do século XIV, com
o desenvolvimento de organizações políticas com pretensões de
autonomia (de liberdade). Como vimos, nas cidades do norte da
Itália, essa pretensão de liberdade não chega a romper com a
forma de estruturação hierárquica da sociedade, mas a necessi-
dade de se construir a autonomia destas em relação aos outros
centros de exercício do poder político, papado e império, levou
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à elaboração da tese que reconhece no povo a origem da lei e


do poder político. Na França, essa ideia surge da convicção de
que o rei é um mero guardião da ordem pública, bem como dos
costumes, e estes são obra do povo. Na Inglaterra, a autonomia
revelou-se sobretudo como a necessidade de afirmação do di-
reito inglês, o common law, trazendo já na Idade Média a cons-
ciência constitucionalista de que o poder político deve observar
o direito como limitação e fundamento do seu atuar, portanto,
como autolimitação.
Ainda que as consequências fáticas de tal movimento teórico
àquela época não tenham sido grandes, o impacto daquelas teses
significou a abertura do caminho para o desenvolvimento, sobre-
tudo, das teses constitucionalistas nos séculos seguintes93. Ao

93 Embora, como veremos já no Capítulo 2, da perspectiva teórica cons-


titucionalismo e soberania tenham se manifestado como pontos de vista
antagônicos. É curioso, exatamente por isso, que as Constituições moder-
nas tenham consagrado, como fundamento de sua própria legitimidade,
o princípio da soberania popular. Não obstante tal fato, simultaneamente
as Constituições limitaram extremamente a possibilidade de um exercício
deste poder-direito por parte do povo. Discutiremos este último aspecto
no Capítulo 3.

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mesmo tempo, contribuiu para a formulação jurídica da noção
de soberania no contexto da abolição da ordem estamental e da
inauguração do Estado moderno como unidade da vida política.
Uma lição que destas conclusões podemos derivar é a de que a
investigação sobre a história semântica de termos como sobera-
nia levam a constatações, no mínimo, curiosas. Assim como
agora procedemos com o termo “soberania”, se examinarmos
as origens da palavra “Estado”, também constataremos que as
opiniões oscilam entre aqueles que identificam na literatura
medieval o emprego do termo – e portanto apontam o surgi-
mento do Estado já na Idade Média – e aqueles que entendem

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o Estado como um fenômeno tipicamente moderno. E também


aqui, como acontece com soberania, tanto na hipótese do sur-
gimento do Estado na Idade Média como naquela que o consi-
dera uma estrutura típica da modernidade, no plano linguístico
o conceito Estado surge, no sentido moderno que empregamos o
termo, relativamente tarde (LUHMANN, 1993: 406 e s.). E isso
mesmo quando, ainda no amanhecer da modernidade – o clás-
sico exemplo é a obra de Maquiavel –, observa-se o emprego do
termo status. À novidade dessas palavras no século XIII (sobera-
nia) e XIV (Estado) não necessariamente correspondeu uma
novidade “política” ou “jurídica”.
A ligação desses termos, e dos eventos históricos que preten-
dem indicar, é evidente. Como vimos, Francesco Calasso descre-
veu a conexão existente entre a noção de Estado moderno e a de
soberania como uma “hipérbole”, uma armadilha daqueles que
se recusam a reconhecer a soberania como um conceito central
do pensamento político-jurídico medieval, defendendo a origem
e importância do conceito para o pensamento político e jurídico.
Em direção oposta, Paolo Grossi recusa-se a identificar as origens
da tese da soberania no pensamento jurídico medieval, por en-
tender que aquilo que os autores medievais chamaram de sobe-
rania é algo diferente daquilo que a modernidade apontou como

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tal. Mas se “soberania” e “Estado” são conceitos que nascem, na
modernidade, ligados um ao outro, a história dessas palavras
coincide sobretudo na medida em que são utilizadas no contexto
medieval para designar fenômenos diferentes daqueles que, hoje,
descrevemos quando as utilizamos. Durante todo o período me-
dieval tardio, aquilo que hoje chamamos de Estado permanece
sendo referido com os tradicionais termos imperium, regnum, res
publica, civitas (GROSSI,1999: 49)94. A palavra “Estado” propria-
mente dita, status, não era utilizada com referência ao sistema
político enquanto uma autodescrição do sistema político para
designar as formas de organização da política. Um exemplo do
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uso do termo é a discussão sobre “razão de Estado”, presente já


na obra de Maquiavel95. Quando aparece a palavra Stato pela
primeira vez na literatura política, esta ocorre no sentido em que
era utilizada na linguagem da época: “estado das coisas”, “situação
política atual”96.
Conceitos como o de soberania ou Estado são conceitos his-
tóricos. Isso não significa apenas que estes são conceitos que
surgem historicamente ou são conceitos que “fazem diferença na

94 Grossi indica várias fontes em nota: G. POST, Studies in Medieval legal


Thought. Public Law and the State, 1100-1322. Princeton: Princeton, Univer-
sity Press, 1964. p. 241 e s; G. MIGLIO, Genesi e trasformazioni del
termine-concetto ‘Stato’. In Le regolarità della politica. Milano: Giuffrè,
1988. p. 802.
95 No próximo capítulo analisaremos como a elaboração da noção de
razão de Estado foi fundamental para a concepção moderna de soberania
e, como, mediante a indicação da separação entre política e moral, Ma-
quiavel anuncia a modernidade da política.
96 “State, like latin ‘status’, simply meant the actual conditions and pre-
sent situation of political power, including financial and military means,
external and internal relations, good counsel and good luck” (LUHMANN,
1990: 166).

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história”, mas significa, sobretudo, que essa diferença torna-se
parte de seu sentido97. Em torno dos conceitos sedimentam-se
sentidos, que se transformam como expressão de uma modalida-
de da descrição social, na medida em que se transforma, também,
a própria sociedade. Nesta direção, podemos falar em uma evo-
lução histórica da semântica do conceito de soberania. Podemos
observar como a sociedade, ao descrever a si mesma, lançou mão
do conceito de soberania. Observar essa semântica, como ela se
construiu e como ela evolui, é fundamental para a compreensão
do significado desse conceito, dado que qualquer definição de
“conceitos históricos” desse tipo, então, pode abranger apenas

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parte daquilo que significam. Para que o conceito de soberania


possa ser compreendido em sua totalidade, é necessária uma
compreensão da situação histórica em que tal conceito tornou-se
necessário para que a sociedade descrevesse a si mesma98. Em
outros termos, para uma observação do significado de soberania
precisamos descrever a situação em que este conceito precisou
ser “inventado”. Mais especificamente, é necessário olhar de
perto o problema específico que a introdução de tal conceito
procura resolver na sociedade – ou seja, qual é a função, na so-
ciedade, do conceito de soberania.

97 “(…) the notion of the state became an historical concept. By this


term I mean not only a concept that has been used in history. Historical
concepts are concepts that make a difference in history. They thereby
move history. This historical difference, then, becomes part of their mea-
ning. The state is, in fact, the modern state” (LUHMANN, 1990c: 168).
98 O que se dá, também, com o conceito de Estado. Para uma compreen-
são deste, importante é observar-se “the situation in which something
like ‘the state’ became necessary, that is, the situation in which a formu-
la for the self-description of the system had to be invented, given the only
alternative: that the political system will not operate at the required level”
(LUHMANN, 1990: 168).

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No presente capítulo, em primeiro lugar apresentamos a eti-
mologia da palavra soberania para, depois, vermos como, ao se
desgarrar dos vários usos que encontrou já em sua origem, o
termo foi adquirindo um sentido propriamente jurídico-político,
dando forma a um conceito que serviria, nos séculos seguintes,
de fundamento para as explicações modernas acerca da fundação
da política e do direito. Perguntas como “qual é a origem do poder
político?”, “qual é o direito de o direito dizer o que é jurídico e
antijurídico?” ou “qual a legitimidade do poder político?” foram
respondidas, já nas várias teorias do tardo-medievo, recorrendo-
-se à noção de soberania.
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Soberania é um conceito que traduz fundação, que está liga-


do a uma explicação não metafísica da origem do poder político
e do direito. Sua origem no período tardo-medieval denota exa-
tamente a necessidade de se buscarem conceitos capazes de tra-
duzir as transformações profundas que aquela sociedade já sofria,
no alvorecer da modernidade. Diante da busca medieval de uma
fundamentação teórica para a autonomia dos pequenos centros
políticos, em contraposição à potestas do Império e à autorictas da
Igreja, inventaram-se as noções de “superioridade”, de “supre-
macia”, até que fosse utilizada, enfim, a palavra “soberania”.
Naquele período, assistiu-se a uma transformação no vocabulário
político, que utilizou formas velhas para a representação da no-
vidade das mudanças estruturais da sociedade. Essas transforma-
ções assinalam a necessidade de se desenvolver um moderno
sentido para as palavras “Estado” e “Soberania”, de uma “moder-
nização” destes termos. Assim, ao mesmo tempo que a introdução
da referência à soberania como fundamento da política e do di-
reito representa uma resposta às pressões evolutivas que já se
manifestavam àquele tempo em direção a uma nova forma de
diferenciação social, no período medieval “soberania” é um termo
que ainda reflete, em sua significação, uma sociedade organizada
em estratos e onde a religião ainda exerce seu primado.

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A transformação semântica, a inovação não mais apenas
terminológica mas também conceitual, tornou-se possível apenas
após a transformação estrutural – após a progressiva perda da
noção de hierarquia e a estabilização de uma nova “ordem” social.
Só então soberania pôde passar a significar o fundamento da
unidade da moderna política – o Estado – e, também, a unidade
do sistema jurídico na modernidade, compreendido este como
direito sobretudo estatal. Aqui, interessa-nos ver como, nos tex-
tos em que a sociedade pretendeu descrever a si mesma, foi
utilizada essa noção de soberania e como, na evolução da socie-
dade, formou-se uma semântica (e uma “constelação semântica”)

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do (e em torno do) conceito de soberania. Esta é a tarefa desta


obra, quando aqui se propõe uma reconstrução histórica do
conceito de soberania. Quando Skinner, Ulmann, Nedermann e
outros autores, inclusive a autora deste livro, falam do conceito
de soberania em Marsílio ou Bartolo, que possivelmente não
utilizaram nunca o termo soberania, na realidade, reconstroem,
hoje, uma história do conceito de soberania. Trata-se de obser-
vadores de terceira ordem. É exatamente por isso que, na re-
construção dos conceitos, o problema central do observador é a
diferença e não a unidade.
Neste capítulo, vimos que a semântica do moderno conceito
de soberania esboçou-se na Idade Média, adquirindo seus con-
tornos no alvorecer da modernidade. Naquele momento, teve
início a história de uma palavra que, em sua evolução, voltou-se
para a expressão da fundação do poder do Estado e do direito.
Trata-se de um conceito relativo à fundação porque surge para
cumprir a função de determinar uma fundação pela incipiente
diferenciação de política e religião, que mais tarde viria estabilizar-
-se como diferenciação entre os sistemas da política e do direito.
A palavra “soberania”, na Idade Média e, portanto, no contexto
de uma estrutura hierárquica da sociedade, ainda não traduz esta
diferenciação, tipicamente moderna, do direito e da política. As-

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sim, não se refere, mesmo quando já utilizada no léxico político
e jurídico, a uma posição de supremacia “exclusiva”, seja do
poder político ou do direito. Significa uma relativa superioridade
(mesmo quando do uso da palavra em outros contextos durante
aquele período, como já exemplificamos) de uma ordem política
em relação a outras ordens políticas. Desta primeira noção de
soberania como superioridade foi definindo-se a moderna noção
de soberania, a de plenitudo potestatis. É preciso, então, uma expli-
cação de como este termo passou a ser utilizado para indicar não
apenas o “superior”, ou “um vértice em uma escala de poderes”,
mas sim “o titular de um comando que não se apoia na vontade
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do inferior e dela não depende” (CALASSO, 1957: 46). O superior


não pode prescindir do inferior, o superior deve ser superior em
relação a algo ou a alguém. As teses constitucionalistas tardo-me-
dievais talvez signifiquem tão somente esta aguda constatação. A
modernidade, que não comporta mais hierarquias, exige a uni-
dade do poder e não mais o esfacelamento deste na diferença
superior/inferior. Esta passagem será objeto de nossa investigação,
interessada em compreender e explicar como o superior medieval
tornou-se o soberano moderno. Trata-se, portanto, de uma des-
crição de como o roi suzerain medieval tornou-se um roi souverain
na modernidade.
Compreender as elaborações teóricas medievais de soberania
é um passo importante para o conhecimento do significado mo-
derno do termo, como princípio que traduz a moderna unidade
da diferença entre direito e política. Esta unidade da diferença é
construída a partir da separação e posterior “acoplamento” das
esferas jurídica e política. A formulação de Beaumanoir a que nos
referimos neste capítulo de certa forma antecipa este porvir. Na
medida em que trata como uma das “superioridades” de que goza
o barão em seu domínio a faculdade de fazer leis (o que inclui o
rei), Beaumanoir já indica que a medieval indiferença do poder
político em relação ao direito não se manteria por muito tempo

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(ela iria ser rompida ao manifestar-se como “diferença”). Pouco
a pouco, o projeto de “secularização”, esboçado nas teses dos
autores medievais defensores da soberania popular, materializou-
-se, separando direito e política da religião, levando estes à sua
respectiva diferenciação e, portanto, à superação daquela “indi-
ferença”.
É óbvio que, à época de Beaumanoir, não é ainda sequer
esboçada a noção de soberania típica da Idade Absolutista, tal
como esta seria formulada por Bodin ou Hobbes, alicerçada na
realidade do Estado moderno e, portanto, na visão de direito e de
política como unidade. Da mesma forma, nem sequer se encontra

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esboçada a ideia de soberania como autolimitação da política por


meio do direito ou autoafirmação do direito através da política.
No entanto, o conceito de soberania já despontava como um
conceito fundamental – ou fundacional – para se pensar tanto a
política quanto o direito da modernidade99. Assim como, na mo-
dernidade, a ideia de soberania pretende resolver o problema da
fundação, um duplo problema da fundação, do direito e da polí-
tica, a introdução da palavra no léxico jurídico-político no perío-
do medieval representou uma estratégia semelhante no mesmo
sentido, mas as amarras da estratificação social não possibilitaram
que tal tentativa fosse muito longe. Assim, a semântica do con-

99 Kelsen, neste sentido, aponta a teoria da soberania como fruto de um


“sincretismo metódico” , dizendo que “seria falso pensar que sob a teoria
da soberania, que a doutrina do direito público sustenta há séculos, en-
contram-se apenas postulados políticos. As coisas são mais no sentido de
que há alguns séculos um conhecimento correto do direito esforça-se em
buscar um caminho no meio do labirinto de elementos políticos e de
outro tipo a ela estranhos. Sem esse conteúdo puramente teorético, a
doutrina da soberania não poderia ter se conservado como patrimônio
intangível da teoria do direito e do Estado, até memso como um de seus
capítulos mais importantes” (KELSEN, 1989: 6).

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ceito de soberania está diretamente ligada àquilo que se chamou
de modernidade, descrita por alguns como um “processo de ra-
cionalização”, ou ainda, de “secularização” do poder político.
Como suprema potestas superiorem non recognoscens, o conceito de
soberania aparece, em sua formulação moderna, quando da for-
mação do Estado moderno, passando a ser um conceito em torno
do qual se sedimentam todos os problemas e aporias da teoria
juspositivista do direito e do Estado (FERRAJOLI, 1997: 7).
Soberania é, portanto, um conceito no qual a modernidade
do direito e a modernidade da política apoiam-se reciprocamen-
te. Denota o processo de diferenciação (em relação à religião
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primeiro, e depois em relação à moral) dos sistemas sociais da


política e do direito. A primeira formulação precisa da soberania
data do século XVI, aparecendo nos Les Six Livres de la République
(1567), de Jean Bodin. Ao definir soberania como summa legibus-
que absoluta potestas, Bodin traz este conceito para o centro da
teoria política, passando este a ser fundamental para a descrição
do Estado moderno. Desde Bodin, a soberania é descrita como
um atributo essencial do Estado, como um poder perpétuo, indi-
visível e originário, que se manifesta sobretudo na função legis-
lativa desse Estado100. Com Bodin, o processo de secularização da
soberania teológica – no quadro de uma doutrina do Estado – tem
seu momento culminante: com a identificação do poder soberano
com a função legislativa, “o Deus todo-poderoso torna-se o legis-
lador todo-poderoso” (FARDELLA, 1997: 118).
A história semântica do conceito de soberania inicia-se, por-
tanto, correlatamente ao processo de formação do “Estado” mo-

100 Segundo Philippe Sueur: “La souveraineté legislative du roi affirmée


à la fin du XVIe siècle est la volonté unificatrice qui animait la royauté
soutinrent un vaste mouvement, parfois imperceptible, de concentration
des sources et de coordination des droits” (SUEUR, 1989: 28).

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derno e ao desenvolvimento posterior desta forma de organização
política como organização também jurídica – ligadas pelo víncu-
lo da Constituição –, o que se conclui somente no século XVII, na
Inglaterra e, na Europa Continental e na América do Norte, com
as Revoluções do século XVIII. E, no século XIX, quando final-
mente esse processo pode ser descrito com o rótulo “Estado de
Direito”, o conceito de soberania inicia seu “ocaso”. Esse ocaso é
conhecido, hoje, por rótulos como “globalização”, “deslegitimação
normativa”, “pluralismo jurídico”. E, exatamente quando a so-
berania parece desaparecer junto com o crepúsculo do século XX,
as teses medievais da “soberania” popular e da participação re-

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tornam, tentando alçar seu derradeiro voo. Mas até onde se pode
voar com a noção de soberania popular?101 E, afinal de contas,
quem é o soberano?

101 “One says the Owl of Minerva begins its flight at twilight. But how
high can she fly? (...) And if one just lets the owl quod omnis tangit fly,
why not another owl?” (LUHMANN, 1998).

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2 O moderno conceito de soberania:
um conceito, dois problemas

2.1  Um só conceito para a solução de diferentes problemas


sociais
O conceito de soberania estabilizou-se, desde o século XVI,
como um conceito a um só tempo político e jurídico. Os proble-
mas sociais aos quais se refere o conceito que se exprime no
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termo “soberania” constituíram-se, progressivamente, com as


tentativas de se subtrair o poder político ao império e ao papado,
bem como na evolução das relações sociais entre poder e direito,
com a tentativa de emancipação do direito de uma política sub-
metida à territorialidade proprietária. Já em sua primeira formu-
lação moderna, pode-se observar que a soberania surge como
uma solução única para problemas que, na realidade, são diver-
sos. O primeiro desses problemas é aquele relativo à necessidade
de imposição da unidade estatal enquanto unidade, também,
jurídica. O segundo, de natureza propriamente política, diz res-
peito ao reconhecimento da qualidade da supremacia do poder
estatal como característica das organizações político-estatais.
Assim, já na definição de Jean Bodin, soberania é um termo que
se refere tanto a problemas políticos quanto a problemas de na-
tureza jurídica e que, em suas características de absolutez, su-
premacia e perenidade, busca resolver tais problemas mediante
a afirmação do Estado como soberano.
Ao longo da história da soberania, essa dualidade de problemas
permaneceu, sempre latente, revelando-se como uma dualidade
que se manifesta, também, no próprio conceito de soberania.
Observe-se a diferença, por exemplo, entre soberania “externa”
e “interna”, política e jurídica: uma faz referência ao problema

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externo à organização estatal, que se torna manifesto na luta dos
poderes espiritual e temporal e no combate do Rei da França com
o Imperador; a outra, ao problema interno ao Estado, que é o
problema da luta dos senhores feudais e do rei para criar a uni-
dade nacional e do poder. Na literatura, nesta direção, abusou-se
de expressões como “os dois lados da soberania” ou “a dupla face
da soberania”.
De toda sorte, quando na modernidade fala-se em soberania
e com este conceito faz-se aquela dupla referência, a afirmação
simultânea de uma soberania política e ao mesmo tempo jurídica
exclui, como adiante iremos descrever, exatamente aquilo que é

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a essência deste conceito, na medida em que afasta qualquer


noção de supremacia, ou melhor, de uma “exclusiva” supremacia
– isso tanto em relação à política quanto no que diz respeito ao
direito. De forma que os maiores embaraços à noção moderna de
soberania residem, portanto, exatamente no fato de ser esta, como
tão sinteticamente definiu o Dicionário de política de Bobbio, uma
categoria político-jurídica, que interessa tanto à política quanto
ao direito. É um princípio que vai explicar a fundação tanto do
sistema da política quanto do sistema do direito: com soberania
indica-se, a um só tempo, a fonte da lei e a fonte do poder1. Os
problemas sociais e as teorias que a seguir descreveremos revelam
como, exatamente porque a noção moderna de soberania pre-
tende ser a solução de dois problemas diferentes, de natureza
distinta (um político e outro jurídico, mas ambos ligados ao apa-
recimento do Estado moderno), tal conceito vai sempre manter
no seu interior, latentes ou manifestas, as motivações que levaram

1 A própria ideia de fonte reenvia àquela de fundamento. Sobre o pro-


blema das fontes, com uma crítica da doutrina tradicional do direito, v.
Luhmann Niklas. La dottrina Giuridica delle fonti del diritto nella pros-
pettiva della sociologia, 1990a.

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à sua formulação, a dualidade imanente à sua semântica, a tensão
implícita entre duas diferentes soluções possíveis e a inexprimível
necessidade de rejeição da outra solução diante da afirmação de
uma delas.
Considerando tudo isso, a disputa entre aqueles que ligam o
conceito de soberania a uma específica representação do Estado
moderno e aqueles que, ao contrário, consideram que a origem
do conceito de soberania encontra-se já nas características da
política medieval é uma disputa perigosa, desviadora, cujas jus-
tificativas desaparecem se o conceito de soberania é submetido a
uma análise semântica. Da perspectiva de uma análise daquele
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tipo, a tese daqueles que sustentam ter o conceito de soberania


emergido e se estabilizado já no período medieval (CALASSO,
1957) pode ser parcialmente aceita como válida se entendermos
que, já na Idade Média e, de maneira cada vez mais acentuada,
na passagem da Idade Média para a modernidade, a soberania
passou a ser nada mais que “um novo modo de se pensar um
velho problema: a natureza do poder e do direito” (HELD, 1995:
39). Isso porque, na Idade Média, o conceito de soberania não
constituía uma resposta ao problema tipicamente moderno da
fundação da unidade da diferença entre direito e política, visto
que, então, a relação entre política e direito pudesse ser caracte-
rizada como uma “relativa indiferença” recíproca (ainda que,
como vimos, naquele período o termo soberania já existisse).
Soberania, portanto, é um termo que exprime diferentes
conceitos, cada um dos quais condensa diferentes semânticas, em
que se manifestam diferentes problemas sociais. O fator que uni-
fica todas essas diferenças e que se apresenta na continuidade e
permanência do termo não permite que se identifique a conti-
nuidade de um conceito, mas tão somente a continuidade de um
problema: o problema da fundação. Todas as diferenças são de
natureza conceitual, porque, na evolução histórica, transforma-se
aquilo que requer uma fundação: trata-se da fundação e da eman-

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cipação da política em face do papado, da fundação da indiferen-
ça relativa de direito e política e, por último, da fundação da
unidade da sua diferença. Aqueles que determinam a origem da
ideia de soberania na Idade Média, os que vêm uma continuida-
de no conceito, assim como aqueles que vêm a soberania como
um conceito específico do Estado moderno, limitam-se, na reali-
dade, a uma análise filológica do termo, e confundem a identida-
de deste com a identidade do conceito, assim como confundem
a identidade do conceito com a identidade do problema.
Na realidade, o termo “soberania” permanece o mesmo, em-
bora mudem as referências sociais para sua utilização, assim como

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é alterada sua relevância semântica, sendo a única continuidade


aquela que é dada pela persistência do problema da fundação de
constelações evolutivamente diferenciadas das relações entre
poder político e direito. Alguns exemplos retirados da literatura
antiga e da literatura mais recente, desde a formação moderna da
semântica da soberania até seu “ocaso” na chamada “pós-moder-
nidade”, permitem que se veja como aparentes disputas teóricas
derivam, na realidade, de confusões semânticas.
O conceito moderno de soberania difere daquele pré-moder-
no, então, por duas razões. Primeiro, porque o “lugar” da sobe-
rania não é mais uma posição relativa, passando esta na moder-
nidade a ser descrita como absoluta, fundadora de uma política
unitária, não territorial e tematicamente fragmentada. Segundo,
porque a soberania moderna é um poder (ou um direito?) a um
só tempo político e jurídico que vai conduzir, também, a uma
legitimação da unidade do direito. A soberania moderna não pode
mais ser afirmada como a senhoria que se exerce sobre um ter-
ritório. A progressiva concentração de poder no período tardo-
-medieval fez com que o dominium deixasse de estar necessaria-
mente ligado à propriedade de terras, devendo, portanto,
encontrar novos motivos para sua fundação. Soberania deixa de
significar uma posição relativa de autonomia de um senhor feu-

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dal em relação aos outros barões ou ao rei, ele também um senhor
feudal. No contexto da quebra da ordem feudal, o poder deve,
necessariamente, descrever-se não mais apenas como autônomo,
mas também como soberano. Soberania, em segundo lugar, é um
conceito que, na modernidade, tende a se universalizar, a se ma-
nifestar cada vez mais como a expressão de uma totalidade e não,
como se pode observar nas análises que fizemos das teses medie-
vais, das “parcialidades” de uma sociedade estratificada. Nesse
quadro, o conceito de soberania sofre uma transformação semân-
tica em relação ao seu sentido pré-moderno: apenas com este
deslocamento pode servir para explicar o fundamento e a legiti-
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mação da nova forma de domínio.


Nos séculos XVI e XVII já é possível observar a distinção entre
a senhoria medieval e a nova soberania moderna. Esta é uma
distinção que, naquele período, já denota a passagem de uma
visão patrimonialista do poder para a compreensão deste como
manifestação do domínio público. A distinção primeira é entre
senhoria privada e senhoria pública. No século XVII já é bastante
nítida essa diferença, construída ao longo dos quinhentos. Char-
les Loyseau observa essa distinção, apresentando-a como a tra-
vessia do domínio privado para o “domínio público e soberano”,
passando pela forma em que a senhoria pública se distingue da-
quela privada enquanto apresenta-se como “senhoria privada in
concreto”2. Loyseau parte da noção tradicional de senhoria priva-

2 “C´est aſſez parlé de la Seigneurie prife in abſtracto, en tant qu’elle


ſignifie toute puiſſance en proprieté, ſoit publique, ſoit privée. Parlons
maintenant de la Seigneurie priſe in concreto, qui eſtant formée & concrée
de la rencontre de la Seigneurie publique, & de la priuée (...) fignifie vne
terre Seigneuriale, en laquelle ces deux Seigneuries ſe rencontrent, &
principalemente f’y trouue la publique, que nous auons dict eſtre la plus
vraye, & la plus propre Seigneurie” (LOYSEAU, 1660: Des Seigneuries,
11).

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da: considerada in abstracto, esta é um domínio real e manifesto,
ou seja, é um direito que tem cada particular sobre as suas coisas,
não vinculando pessoas (aqui não se pensa em escravidão); con-
siderada concretamente, a senhoria privada então é dotada de
puissance publique en proprieté e significa uma “terra senhorial”. Já
a senhoria pública “nada mais é que um direito intelectual, uma
autoridade que se tem sobre as pessoas livres e sobre as coisas
possuídas pelos outros” (Loyseau, 1660: Les Seigneuries, 1). So-
bre esta última, a senhoria pública, ensina Charles Loyseau que
existem dois tipos: a suzeraineté, exercitada por aqueles que co-
mumente são chamados de “senhores” e a souveraineté, própria

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do Estado. Nesta diferença entre suserania e soberania está im-


plícita a reivindicação de uma concentração do poder nas nãos
do soberano, o que envolve a extinção das jurisdições feudais,
por exemplo3. Mas também, por outro lado, está implítico também
o reconhecimento de que o poder exercido pelos antigos barões
não era mero dominium exercido a título privado, sendo sua na-
tureza pública, o que enseja a concentração deste poder nas mãos
do soberano. É assim que a soberania passa a ser indicada como
a “senhoria própria do Estado”, uma vez que toda senhoria pú-
blica a ele pertence, embora os senhores particulares a tenham
usurpado enquanto suzeraineté. Loyseau, portanto, reconhece a
diferença entre a senhoria privada e a soberania pública, ou so-
berania (“justa senhoria do Estado”), entendendo que toda suse-

3 “(...) en France, & en ſi peu qu’il y a d’autres pays, où la iuſtice &


puifsace publique eſt laiſſée en proprieté aux particuliers, il y a deux degrez
de Seigneurie publique, à ſaçauoir celle qui demeure inſeparablemet par
deuers l’Eſtat, nonobſtant cefte vſurpatiõ; que nous appellõ Souueraineté:
et celle qui a eſté ainfi vſurpee par les particuliers, pour laquelle exprimer
il nous a fallu forger vn mot expres, & l´appeller Suzeraineté, mot qui eſt
auſfi eſtrage, comme cefte eſpece de Seigneurie eſt abſurde” (LOYSEAU,
1660: Les Seigneuries, 9).

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rania é apenas um domínio privado que, se exercido como se-
nhoria pública, o é por usurpação. A soberania é de tal modo
inseparável do Estado que um Estado sem soberania já não é um
Estado4.
No texto de Loyseau, o conceito de soberania, enquanto “se-
nhoria pública”, desponta em sua acepção moderna, ou seja, não
mais como um direito patrimonial, mas como o direito de criar o
direito: como autoridade. Com suas indicações, Loyseau reforça
nossa hipótese de que o conceito de soberania, já na sua primei-
ra acepção moderna, como soberania absoluta, vem traduzir as
relações tipicamente modernas entre política e direito. Essas re-
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lações, na história das teorias, manifestaram-se como uma tensão


que resulta em se apontar, por vezes, uma supremacia do direito
sobre a política e, por outras, o contrário. Isso tanto no caso em
que é afirmada a indeterminação, e, portanto, a não limitação da
segunda pelo primeiro (teses absolutistas), quanto no caso em
que a política deixa vincular-se juridicamente (teses constitucio-
nalistas). No primeiro caso, a soberania absoluta da política vai
fazer desta o vértice de onde se produz direito; ao passo que, nas
teses constitucionalistas, política e direito se sustentam recipro-
camente, uma vez que todo direito é visto como manifestação do
monopólio da força física pelo Estado5 ao mesmo tempo que o
poder político é observado como “legítimo”, ou seja, portador de

4 “Cette Souveraineté eſt la propre Seigneurie de l´Eſtat. Car bien que


toute Seigneurie publique deuſt demeurer à l’Eſtat, neanmoins les Seig-
neurs particuliers ont uſurpé la Suzeraineté: mais la Souveraineté eſt du
tout infeparable de l’Eſtat, duquel ſi elle eſtoit oſtée, ce ne ſeroit plus un
Eſtat, & celuy qui l’auroit, auroit l’Eſtat, en tant qu’il auraoit la Seigneu-
rie ſouveraine(...)” (LOYSEAU, 1660: Les Seigneuries, 11).
5 Kelsen fala de “quase monopólio” da força física, pelo fato de que
sempre há uma força física residual cujo exercício é reservado aos indiví-
duos.

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legitimidade juridicamente garantida. Consequentemente, se
referirmo-nos à soberania do Estado, entendendo por este a for-
ma moderna de organização do poder, vemos que, na moderni-
dade, todo Estado é concebido como Estado de direito (e, neste
sentido, até mesmo o Estado Absoluto). Logo, ao estabelecimen-
to da soberania do poder político estatal corresponde uma sobe-
rania, também, do direito6.
Daí a afirmação de que a soberania é um conceito simulta-
neamente político e jurídico. Tal assertiva, no entanto, pode levar
a uma interpretação de que, também na modernidade, não exis-
te uma diferença entre política e direito. Pode levar, de um lado,

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à crença de que, necessariamente, toda forma de poder político


encontra seu fundamento e, portanto, também sua legitimação,
no mundo do direito7. Reversamente, pode também levar ao
equívoco de se pensar que todo direito tem como fundamento
último o poder político organizado sob a forma do Estado. Assim
como nem sempre soberania foi entendida como um atributo do
Estado, ou como uma categoria jurídica, nem sempre a política e
o direito “necessitaram” do argumento da soberania para se va-
lerem enquanto política ou enquanto direito. Ao contrário, este
é um conceito que surge com o Estado moderno exatamente para
“resolver” os problemas específicos da política e do direito da

6 Kelsen, por exemplo, vê esse processo de modernização, ou se secu-


larização, como uma juridicização do poder político, a ponto de não
conceber Estado que não seja o Estado de Direito; daí, a identificação do
Estado com o direito (que não necessariamente implica a identificação do
direito com o Estado) na Teoria Pura do Direito. Via de consequência,
como adiante iremos descrever, para Kelsen não há que se falar em sobe-
rania “política”, mas apenas em “soberania do direito” (KELSEN, 1994).
7 Neste quadro se inscrevem todas aquelas teorias que tratam ora do
primado da política ora do primado do direito. Exemplares, neste sentido,
são o liberalismo e o marxismo.

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modernidade, enquanto sistemas funcionalmente diferenciados.
Diante daquela relativa “indiferença” entre direito e política que
caracterizou a pré-modernidade, a modernidade reagiu com uma
diferenciação entre política e direito. Mediante essa diferencia-
ção8, para o direito tornam-se relevantes apenas as questões
jurídicas, da mesma forma que, para a política, tornam-se rele-
vantes apenas as questões políticas. Por diferenciação, entendemos
o resultado e um processo que leva à formação de sistemas estru-
turalmente diferenciados, cada um dos quais trata de um proble-
ma social específico e que, por consequência, constitui em si uma
unidade. Do lado da política – e sob o rótulo “Estado” – a delimi-
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tação política dos temas políticos, isto é, a unidade da política, foi


vista através de um conceito de soberania concebido, pelo menos
aparentemente, como um atributo do poder político que não
guardava nenhuma fundação externa, nem mesmo de natureza
jurídica.
Uma interpretação desse tipo levou Georg Jellinek a concluir
que “a soberania é, na sua origem histórica, uma concepção de
índole política que, apenas mais tarde, condensou-se em uma de
índole jurídica” (JELLINEK, 1954: 327). Segundo esta interpre-
tação, da qual não compartilhamos, soberania é um conceito, a
princípio exclusivamente político, que foi se “juridicizando”. Esta
tese de uma progressiva juridicização do conceito de soberania,
no entanto, parece partir do pressuposto de que, na absolutez de
sua origem, soberania era um conceito político que não tinha
necessidade do direito. Da mesma forma, mais tarde (ou, se assim

8 A especificação teórica e a relevância analítica do conceito de diferen-


ciação serão explicadas mais adiante. O conceito de diferenciação que aqui
empregamos é aquele usado por Luhmann, que aplicou teoricamente a
ideia de diferenciação na descrição das diversas formas da evolução social.
No primeiro capítulo, já aludimos à forma que é característica da socie-
dade medieval, a estratificação.

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podemos dizer, já “no seu ocaso”), a soberania passa a ser consi-
derada um conceito exclusivamente jurídico no seio de uma
concepção jurídica da própria política (Kelsen), ou seja, de uma
recusa à observação da realidade da política ou, ainda, da afirma-
ção da implausibilidade da autofundação da política. Na evolução
das teorias, a tensão da unidade da diferença entre direito e po-
lítica, subjacente ao conceito de soberania, por muitas vezes re-
solveu-se apontando este como um conceito exclusivamente
jurídico (Kelsen) ou exclusivamente político (Schmitt). Estas
oscilações refletem, sempre, a velha tensão da unidade da dife-
rença entre direito e política que o conceito de soberania veio

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encobrir. Desde sua primeira formulação moderna, o conceito de


soberania vem cumprindo a estranha e curiosa função de apontar
um vértice para uma sociedade que, como veremos, progressiva-
mente perde a noção de hierarquia. A consciência da implausi-
bilidade da conciliação entre a modernidade da sociedade moder-
na e os traços de pré-modernidade que, através da noção de
soberania, nela se pretende reintroduzir, levou, ao início do sé-
culo XX, à consideração do conceito de soberania como um “pro-
blema”, um “dogma” (KELSEN, 1989) ou, ainda, como um
“polêmico” conceito (MACHADO PAUPÉRIO, s/d).
Em meio a este extenso debate, certo é que, na evolução do
pensamento jurídico e político, a expressão soberania sofreu
muitas oscilações semânticas antes de alcançar sua estabilidade9.
Essas variações correspondem, na realidade, à própria transfor-
mação dos problemas sociais a que este conceito faz referência,
encontrando sua explicação no fato que a ideia da soberania é,
ao mesmo tempo, resultado e pressuposto da evolução do direito

9 O que leva Léon Duguit, no século XX, a dizer que “Il est absolument
impossible d’expliquer humainement la souveraineté de l’État” (DUGUIT,
1927: 552).

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e da política. Aqui, interessa-nos observar as características da
modernidade que são descritas através do conceito de soberania.
O conceito de soberania, como nenhum outro conceito político
ou jurídico, exprime a tensão das mudanças estruturais da socie-
dade na passagem da “pré-modernidade” para a “modernidade”.
Se o significado da modernidade da sociedade moderna encontra-
se, precisamente, no abandono da estratificação e na especializa-
ção da comunicação tendo em vista a especificação de funções
sociais, em nossa abordagem consideramos soberania um termo
que, desde sua origem, denota a tensão existente entre a “indi-
ferenciação” tipicamente medieval e a diferenciação funcional de
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sistemas sociais, como o direito e a política10, como traço da mo-


dernidade da sociedade moderna.
A história da soberania pode ser descrita como um processo
em que, paulatinamente, o Estado e o direito passam a ter reco-
nhecidamente um só fundamento. Esse fundamento simultâneo
do direito e da política traduz a também simultânea supremacia
e, portanto, a unidade da diferença, do direito e da política. Por
isso, muitas vezes, a história do conceito é descrita como relacio-
nada ao que se convencionou chamar secularização. Para nós, a
evolução da noção de soberania é uma trajetória dos pensamentos
político e jurídico, que será descrita como uma sucessão de dife-
rentes respostas a uma mesma pergunta: se o poder político, como
poder na (e da) pólis, é o poder supremo, em que este se funda,
ou seja, quais são seus limites? Em outras palavras, qual é o poder
que limita o poder? Este é um poder político juridicamente fun-
dado? Este é um poder jurídico – um direito – juridicamente
fundado? E, se este é um conceito contemporaneamente jurídico

10 Porque, na modernidade, estes se diferenciam com base em suas res-


pectivas funções e, portanto, como formas diferentes de resolução de
diferentes problemas sociais.

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e político, qual é o lugar da fundação simultânea do direito e da
política, enquanto fundação, também, de sua diferença? E quem
é, então, o titular deste poder – ou deste direito – “originário”?
Mudam-se as referências sociais e os temas que se inscrevem sob
estes problemas relativos à fundação dos sistemas político e jurí-
dico: o problema, no entanto, permanece. É precisamente por
isso que, mediante uma reconstrução da história semântica do
conceito de soberania, buscaremos aqui observar como esse con-
ceito, quase sempre desgarrado de referências teológicas, vai
servir nas diferentes teorias do Estado e do direito da moderni-
dade para resolver problemas relativos à sua fundação. A semân-

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tica da soberania sofre uma transformação, ou seja, uma evolução,


toda vez que a mudança estrutural da sociedade leva esta a bus-
car novas formas de autodescrição11. Transforma-se o sentido de
soberania, portanto, sempre que a evolução social produz espaços
novos nos quais se condensa uma nova forma de descrição da
fundação do poder político e do direito. E, se com soberania re-
ferimo-nos a um conceito que tem a função de “resolver” os
problemas relativos à descrição da fundação dos sistemas político
e jurídico, este é, também, o conceito que designa os limites das
teorias políticas e jurídicas. Nossa indagação é: como, em suas
diferentes formulações, o conceito de soberania cumpriu a função
de responder ao problema da unidade e, portanto, da fundação,
do direito e da política? Veremos como as teorias, ou autodescri-
ções, foram construídas na busca de uma explicação da fundação,

11 O que não significa, evidentemente, que exista uma correspondên-


cia ponto a ponto entre mudanças estruturais e evolução semântica. Ao
contrário, como dizem Luhmann e De Giorgi, “Le trasformazioni seman-
tiche seguono le trasformazioni strutturali a considerevoli distanza.
Perchè, attraverso il ripetere e il dimenticare, posscondensarsi senso a
condizioni di tipo nuovo, si richiede tempo” (LUHMANN & DE GIORGI,
1993: 400).

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de uma descrição de unidade, ou seja, do fechamento dos sistemas
político e jurídico, através da introdução do conceito de soberania.
Sem dúvida alguma, soberania é o conceito central e, ao mesmo
tempo, o mais embaraçante, destas teorias.

2.2  A formação da soberania moderna na tensão entre


“razão de Estado” e “direito de resistência”
2.2.1  Na passagem de uma sociedade estratificada para uma
sociedade funcionalmente diferenciada, a busca por novas expli-
cações para a fundação da nova ordem social produz-se median-
te tentativas, indicações de diferentes percursos teóricos, conden-
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sações de sentido que consistem naquilo que, na teoria da


evolução, conhecemos como preadaptives advances12. Os caminhos
que levaram à construção da moderna noção de soberania como
explicação da fundação da política e do direito da modernidade
refletem, na nossa opinião, a evolução de dois outros conceitos
que, por sua vez, originaram-se na velha semântica da “liberdade”
enquanto autonomia: “razão de Estado” e “direito de resistência”.
Cada uma destas elaborações teóricas procurou resolver, entre os
séculos XIV e XVII, a seu modo, aquela dualidade de problemas
que, desde os quinhentos, encontrou outra solução na noção de
soberania. O aparecimento dos conceitos “razão de Estado” e
“direito de resistência”, no amanhecer da modernidade, está re-
lacionado com a reivindicação de autonomia da política e do di-
reito um perante o outro. De um lado, com “razão de Estado”13 se

12 “Evolution ist keine allmähliche, kontinuierliche, bruchlose Steigerung


von Komplexität, sondern ein Modus von Strukturänderung, der durchaus
mit sprunghaften Umbrüchen (‘Katastrophen’( und mit langen Zeiten der
Stagnation (‘Stasis’) kompatibel ist” (LUHMANN, 1993a: 243).
13 “Querendo resumir numa definição tão sintética quanto possível e,
consequentemente, sumamente genérica e abrangente as teses da dou-
trina da Razão de Estado, esta tradição afirma que a segurança do Estado

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pretende indicar o momento em que os motivos políticos se im-
põem sobre toda razão jurídica; de outro, o rótulo “direito de
resistência” proclama a supremacia do direito sobre uma política
que não se pratica de forma justa. Com a função de resolver
aquele antagonismo entre política e direito, que se manifestava,
desde o século XV, na forma da contraposição desses dois motivos
recorrentes nas teorias daquela época, é que surgiu a moderna
noção de soberania. As diferentes vertentes do pensamento da
soberania irão indicar a primazia ora de um, ora de outro, nas
formulações das teses – não necessariamente divergentes14 – da
“soberania absoluta” e da “soberania popular”15. Os temas “razão

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de Estado” e “direito de resistência” aparecem, portanto, como os


problemas centrais do pensamento político jurídico dos séculos
XV e XVI, período em que o pensamento humanista abriu cami-
nho para o iluminismo filosófico dos séculos XVII e XVIII.
Num primeiro momento, tanto “razão de Estado” quanto
“direito de resistência” eram argumentos que encontravam apoio
no conceito de liberdade. “Liberdade”, como vimos, foi o concei-

é uma exigência de tal importância que os governantes, para a garantir,


são obrigados a violar normas jurídicas, morais políticas e econômicas que
consideram imperativas, quando esta necessidade não corre perigo”.
(PISTONI, Swergio. “Razão de Estado”, in BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.
e PASQUINO, 1991: 1066).
14 Não necessariamente divergentes porque, como procuraremos expli-
citar mais adiante, também a soberania absoluta pode ser concebida como
“popular” ou, dizendo de outra forma a mesma coisa, também a soberania
popular pode resultar em “absoluta”.
15  O que não equivale a dizer que todas as doutrinas da razão de Estado
ou do direito de resistência lançaram, necessariamente, mão da noção de
soberania. Na verdade, “Les doctrines de la raison d’Etat vont donc se
développer soit en supposant un concept de souveraineté, soit indépen-
damment de lui” (ZARKA, 1994: 2). O mesmo vale, como veremos, para
o direito de resistência.

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to no qual o humanismo encontrou uma fundamentação para
descrever a política e o direito durante o Renascimento16. Du-
rante a primeira metade do século XV, o termo libertas (utilizado
já para a reivindicação de autonomia das cidades italianas) é
utilizado de acordo com a já tradicional acepção de independên-
cia, porém no sentido de um autogoverno republicano. Liber-
dade foi, nesse contexto, compreendida “tanto no sentido de se
estar livre da interferência externa quanto no de se ter a liber-
dade de tomar parte ativa no governo da República” (SKINNER,
1996: 99)17. Um importante aspecto da liberdade, nesta visão
humanista, é a ideia de uma “constituição” livre, que confira a
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todo “cidadão” a igual oportunidade de participar ativamente


dos negócios do governo. Nessa direção, Leonardo Bruni, no
Elogio, clamou que a soberania (a superioridade) do conselho

16 O “humanismo cívico”, como é conhecido o humanismo italiano dos


quatrocentos, representa a retomada da cultura clássica e dos ideais re-
publicanos no contexto tardo-medieval, implicando uma escolha simul-
taneamente metodológica e política. “Metodológica, porque os humanis-
tas mudaram completamente a relação com os textos, que não eram mais
vistos simplesmente como uma etapa para uma forma superior de conhe-
cimento (...) mas como a marca viva de um ato de palavra, que fazia
deles ao mesmo tempo o fio de continuidade de uma escolha transtem-
poral e um discurso de alcançe cívico imediato. Escolha política, porque
eles uniram a retórica à política, insistindo assim no caráter essencialmen-
te social da humanidade” (BIGNOTTO, 1991: 16).
17 Como observa Skinner, fazendo referência a Baron, é equivocada a
posição que indica que seja esta uma “nova ideologia”: “Na verdade, a
análise que lemos nos humanistas prolonga vários temas que, conforme
já vimos, podem ser encontrados em negociações diplomáticas, crônicas
locais e outras formas de propaganda política redigidas em datas tão re-
motas como, pelo menos, os meados do século XIII” (SKINNER, 1996:
99). Além disso, a ideia de liberdade como autonomia estava implícita na
utilização do termo “soberania” já durante o século XIII.

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popular da cidade garantisse que “o povo e sua liberdade a tudo
dominem” (cf. SKINNER, 1991: 101)18.
Outro autor desse período, Nicolò Cusano, afirmou que as leis
devem ser feitas pelos mesmos que a elas estão sujeitos, ou seja,
pela “maioria”. À lei corresponde a soberania (onde as leis não
são soberanas, repetiu Cusano com Marsílio e Aristóteles, não há
política, ou seja, boa forma de Estado). O poder de fazer as leis,
portanto, pertence ao povo, que pode dá-lo ao Imperador de
forma que, assim, também o príncipe deve estar sujeito à lei19.
Tanto em Bruni quanto em Cusano, podemos observar que a

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defesa humanista da liberdade concretiza-se como a defesa da
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forma republicana de governo. Na defesa da República, Bruni


chega a afirmar, em sua Oração, que o mérito desta forma de go-
verno “é que nela a esperança de ascender às honras públicas, de
fazer uma carreira por seus esforços públicos, é igual em todos”
(cf. SKINNER, 1996: 101). Nestes autores humanistas o enfra-
quecimento do princípio estraticatório desponta, visto que estes
professam a crença de que o mérito de um cidadão, seu valor, não

18 O mérito da constituição da cidade, diz Bruni, é de que esta “confere


iguais possibilidades a qualquer um de tomar parte nos negócios da Re-
pública”, garantindo que “tudo se dirija, na mais ampla medida possível,
para a conservação da liberdade e, ao mesmo tempo, da igualdade de
todos os cidadãos”, sendo estes livres para criticar e controlar o seu go-
verno, uma vez que “ninguém precisa ter medo do poder ou capacidade
de que outro lhe faça mal”. De igual forma, estão isentos de serem escra-
vizados por um regime tirânico, já que a participação de todos os cidadãos
assegura “que o controle da cidade está para sempre impedido de recair
em mãos de um só ou de alguns poucos” (SKINNER,1996: 100).
19 A concepção de liberdade grantidada pelas leis é, como observa Bar-
beris, tributária de Cícero, e está presente também em Maquiavel, que
fala de leis” che si fanno in favore della libertà” e de “leggi e ordini in
beneficio della publica libertà” (BARBERIS, 1999: 67-68).

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é medido pelo fato de pertencer a uma determinada linhagem ou
por suas riquezas. Conforme o ensinamento de Buannocorso, “a
miséria honesta não faz perder nada da virtude” (SKINNER, 1996:
103): na direção da modernidade, a medida do valor de um ho-
mem, cada vez mais é dada por “sua capacidade de desenvolver
os talentos que possui, de atingir um senso adequado do espírito
público, e de assim canalizar as energias para o serviço da comu-
nidade” (SKINNER, 1996: 102), ou seja, é dada cada vez menos
pela estirpe e cada vez mais pela biografia. É retomado, neste
passo, o conceito clássico de virtus, refletindo a crença na possi-
bilidade de uma completa excelência humana que, enquanto
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“força social criativa”, torna o homem capaz de moldar seu próprio


destino e vencer a luta cotra a fortuna20. Neste quadro, a noção
de liberdade passa a ser utilizada num sentido inovador, o da
afirmação da vontade como livre. Como exercício da liberdade,
a virtus constitui a única verdadeira nobreza, é a qualidade da
natureza do homem que o faz apto a moldar seu próprio destino
e, portanto, também a sociedade. Na segunda metade dos qua-
trocentos, a introdução dessa ideia traz profundas mudanças na
visão da vida política.
Paradoxalmente, a defesa da liberdade também vai servir,
nesse período21, para fundar a não limitação do poder dos prín-
cipes. Em Piccolomini, por exemplo, encontramos que a essência
do principado, enquanto ente soberano, consiste em seu aspecto
livre de todo vínculo, também e acima de tudo livre do vínculo
da lei, que será entendida como criação voluntária do “Estado” e

20 “O homem passou a sentir-se em condições de utilizar sua liberdade,


de modo a fazer-se arquiteto e explorador de sua própria pessoa” (SKIN-
NER, 1996: 119).
21 Mas também posteriormente, quando Hobbes, por exemplo, afirma
que no Estado civil a única verdadeira liberdade é a do soberano.

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não como limite – humano, natural ou divino – ao seu poder.
Isso significa que os reis não estão sujeitos à lei, ainda que seja
louvável que vivam e julguem em conformidade com esta. A
soberania é apontada, ainda em seu sentido medieval, como
poder legibus solutus. Com a introdução dessas ideias, essa ver-
tente não republicana do humanismo volta sua atenção não
mais para a totalidade dos cidadãos (que difere, como vimos, da
totalidade dos indivíduos), passando a dedicar-se a uma litera-
tura que terá como alvo principal os próprios príncipes (o “Es-
pelho dos Príncipes”) e voltada, portanto, aos interesses destes
em preservarem seus principados. Nesses textos, o ideal huma-

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nista do principado irá considerar a política, desvinculada da


ética e do direito, como uma atividade autônoma do homem
que, dirigida a seus próprios fins, puramente políticos, desen-
volve-se em um plano distinto da moral. Ao mesmo tempo,
reivindica-se o valor das leis enquanto criação humana, dirigida
a fins humanos.

2.2.2  A ambivalência do humanismo gerou a também am-


bivalente ideia de “razão de Estado”, que grande sucesso conhe-
ceu sobretudo nos séculos XVI e XVII22. O conceito de razão de
Estado foi aquele que, ao cair do medievo, demostrou maior
força em sua capacidade de exprimir a reivindicação de supre-
macia da política, o que significava reivindicação de moderni-
dade (diferenciação) num contexto em que esta supremacia
poderia consistir, apenas, na reafirmação dos pressupostos mo-

22 Sobre o conceito e sua evolução, ver STOLLEIS, Michael. Staat und


Staatsräson in der frühen Neuzeit. Frankfurt am Main: Suhkamp, 1990; DE
MATTEI, Rodolfo. Il problema della ‘ragion di stato’ nell’ età della controrifor-
ma. Milano: Riccardo Ricciardi Editore, 1979; ZARKA, Yves Charles (Org.).
Raison et déraison d’État. Paris: Presses Universitaires de France, 1994.

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rais, tipicamente medievais. Assim, na discussão tardo-medieval
o tema “razão de Estado”, reiteradamente invocado durante a
segunda metade dos quinhentos e por todo o século seguinte,
já aparece23.
Ragion di Stato – termo presente na “lingua parlata” primeiro
e, apenas mais tarde, na literatura – é um conceito que na sua
origem, quando inexistia o Estado a que se refere tais razões,
“produziu mais fumaça do que fogo” (LUHMANN, 1990: 167). O
problema da “razão de Estado” faz-se sentir antes mesmo que o
Estado moderno fosse uma realidade social, portanto, fosse capaz
de impor qualquer “razão”. A mais conhecida formulação do
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problema – mas não ainda do conceito – da razão de Estado deu-


-se no início dos quinhentos, para muitos com Nicolò Maquiavel24,
ainda que a terminologia propriamente dita tenha despontado na
literatura mais tarde, especificamente em Francesco Guicciardini,
com uma pequena variação, ragion degli stati (Del Reggimento di
Firenze, entre 1521 e 1523).

23 “Dapprima sussurata nel segreto dei gabibetti di corte ove si discorra


d’ arte di governo, la nuova parola d’ ordine, sibilina e tentante, guadag-
na presto la popolarità, circola, si diffonde, stimola il gelo o il caldo,
smuove e scompensa l’ aria, ovunque penetri, e penetra dappertutto (…)”
(DE MATTEI, 1979: 24).
24 Contra esta posição, defendida por Meinecke, De Mattei, dentre outros,
VASOLI, Machiavel inventeur de la raison d’État? (in ZARKA, 1994). Após
apontar as bases do pensamento político de Maquiavel, Raymond Polin
escreve: “Qu’est-ce d’autre, en effet, que la Raison d’ Etat? Après Machia-
vel, on lui donnera un nom, on la mettra en application, bien ou mal, on
en critiquera les mauvais et les bons usages. On inventera la coscience
morale et on renchérira sur ses scrupules ou sur l’éminente dignité de la
personne humaine, on imaginera la valeur sans condition de l’ individu
absolu. On érigera les conflits de la Raison d’Etat en conflits tragiques“
(in SCHNURR, 1975: 40-41).

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Com Maquiavel25, a discussão sobre “razão de Estado” surge
com a função de solucionar o problema da relação entre moral
e política, pano de fundo de toda a discussão tardo-medieval.
No Príncipe (1512), Maquiavel enuncia que a conduta do gover-
nante deve ser tanto onesta quanto utile, pensando a utilidade
do bom governo como a manutenção da paz, e não a defesa da
liberdade do povo, como pensaram os humanistas cívicos. Com
isso, os regimes tirânicos de certa forma se justificam como, não
necessariamente, contrários à noção de virtude26. A referência
do autor fiorentino, embora seu argumento da tensão entre
política e moral possa ser interpretado como uma antecipação

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da modernidade, é claramente a de uma sociedade tradicional.


Neste quadro, quando trata do tema da razão de Estado, Ma-
quiavel não parece referir-se a um cálculo racional, no sentido
de uma adequação de meios a fins, mas a uma prudência, no
sentido tradicional da palavra: portanto, aquele é um problema,
ainda, moral. A novidade encontra-se no fato de que a prudên-

25 Cf. MEINECKE, Die Idee der Staatsräson in der neuren Geschite, obra
apresentada e discutida por Michael Stolleis, no artigo L’idée de la raison
d’Etat de Friedrich Meinecke el la recherche actuelle (ZARKA, 1994). Essa
também é a opinião de Rodolfo de Mattei, que no entanto salienta que,
embora a essência da noção de “razão de Estado” esteja presente no pen-
samento de Maquiavel, o termo não aparece nos textos do secretário
florentino (MATTEI, 1979: 5). Contra esta tese afirma Vasoli que, exata-
mente por desconhecer o conceito de soberania, “comme principe et
fondement du pouvoir, raison véritable de son autorité et du caractère
nécessaire des dérogations aux ordennances légitimes et au système legal“,
Maquiavel não pode ser considerado o precursor das teorias da razão de
Estado dos séculos XVI e XVII (ZARKA, 1994: 50).
26 Maquiavel assume que “o povo pede minimamente para não ser
oprimido”, mas com isso nada mais faz que atribuir ao povo um papel
também minimamente relevante na vida política, embora sempre no
sentido de evitar-se a opressão.

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cia clássica, em Maquiavel, articula-se com uma percepção da
contingência dos fatos27. O Príncipe aponta para o problema da
contingência da lei e, portanto, também da moral em que esta
encontrava seu fundamento. Maquiavel descobriu serem as leis
fruto do conflito infinito de desejos opostos, que não podem ser
anulados por uma solução constitucional, que consistiria numa
ilusão diante da rivalidade: “Nesse universo em permanente
movimento, as leis são uma referência importante, mas expri-
mem, ao mesmo tempo, o que a política tem de ambíguo e
provisório” (BIGNOTTO, 1991:96). A contingência da lei e,
portanto, da própria moral, aparece na possibilidade de que a
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decisão política possa eventualmente ir de encontro à moral:


“razão de Estado”. Assim, mais do que propriamente promover
a separação entre política e moral, Maquiavel chama a atenção
para o fato de que, na política, nada é necessariamente moral,
tudo é contingente. Maquiavel dialoga com a tradição que es-
tabelece na virtus a qualidade do príncipe, opõe a virtus à fortu-
na e à força, e diz que um princípe não necessariamente é vir-
tuoso. Ou melhor, que nem sempre a virtude se encontra num
comportamento “virtuoso”. À necessidade da moral, Maquiavel
opõe a contingência da política, mas ainda não separa o domínio
ético do político.
O problema da razão de Estado aparece, então, como o pro-
blema de se determinar se “o virtuosismo moral era simplesmen-
te uma questão do agir moral ou se aqui dever-se-ia levar em
conta paradoxos que vão de encontro à própria moral, isto é, se
a virtude pode ser alcançada mediante um comportamento que,
ocasionalmente, pode ser imoral” (LUHMANN, 1993b: 65). Na

27 “Pensar a contingência sem o socorro da forma ideal reguladora é


o passo definitivo de Maquiavel para a modernidade” (BIGNOTTO:
1991, 94).

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discussão posterior a Maquiavel, os críticos que viram no pensa-
mento do secretário florentino a defesa da “amoralidade” da di-
mensão política deixam claro que a “razão de Estado” não exclui
a crueldade ou a imoralidade da ação. Contra Maquiavel afirma-se
que a utilidade do comportamento imoral não faz deste moral.
Esta crítica, que frequentemente é interposta ao autor do
Príncipe, consiste paradoxalmente na definitiva comprovação da
imensa contribuição de Maquiavel para a posterior compreensão
do domínio da política como não sendo, necessariamente, o ter-
reno da virtude. Apenas num contexto em que política e moral
começam a se diferenciar é possível opor uma crítica moral à

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conduta política. É assim que, após a publicação do Príncipe, se-


gue-se um período antimaquiaveliano, em que sucessivos ataques
serão desferidos contra Maquiavel por autores como Innocent
Gentillet (que, em 1576, publica seu Anti-Maquiavel), fazendo das
máximas maquiavélicas juízos como “viciosas e detestáveis no
mais alto grau” (SKINNER, 1996: 269). Mesmo em Guicciardini,
a ação política praticada contra o princípio moral pode ser per-
mitida enquanto razão de Estado, o que não exclui, de fato, que
a crueldade permaneça sendo considerada crueldade. E isso ain-
da que a conduta dos homens maus se justifique como sendo
interesse do Estado28. Nesta direção, Giovanni della Casa contras-
ta a noção de “razão de Estado” – voce barbara e fiera – com aque-
la de “razão civil”, a qual preside Deus, enquanto diz respeito à
associação dos homens29. Esse antimaquiavelismo indicava, so-

28 “Parrà forse parola maligna o sospettosa, ma Dio volessi non fusse


vera: sono più e cattivi che e buoni massime dove va interesse di roba o
di stato” (Cf. DE MATTEI, 1979: 9).
29 “Mascherare ‘sotto ‘l nomme della ragione l’ opera della fraude e
della violenza’ significa, secondo il Della Casa, turbare e confodere ‘ l’or-
dine della cose e della natura’. ‘Ragione’ non può non identificarsi con

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bretudo, que o triunfo do poder dos príncipes e da “política”
maquiavélica não fez desaparecer o forte apelo de alguns ideais
cívicos, como a ideia de virtus. O príncipe deve reunir em si as
características da virtude, ele é quem dela mais se aproxima.
Não podemos, aqui, deixar de pensar em Hegel, quando este
diz que a coruja de Minerva somente abre suas asas ao cair do
crepúsculo, se pensarmos que, ao triunfo das cidades-Estado e,
portanto, ao poder dos príncipes que surge no ocaso da Repúbli-
ca, segue-se um período em que se manifesta, em toda sua ex-
tensão, a grandiosidade das ideias republicanas. Neste contexto,
Savonarola vai propor, tal como fizera Marsílio de Pádua, que a
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única solução segura dos problemas pertinentes aos assuntos


políticos “está em tratar o corpo inteiro dos cidadãos como supre-
ma autoridade em todos os assuntos políticos” (SKINNER, 1996:
168). Essa defesa da virtude e do apelo ao republicanismo no
contexto do fortalecimento dos principados vai se dar através do
clamor pela soberania popular e, também, pelo direito de resis-
tência. Como veremos adiante, a resistência consistiu num extre-
mo apelo à virtude naquelas situações de extremo exercício de
outra virtude (razão de Estado), ou seja, naquelas situações de
tirania. Se o problema era o de se confrontar diferentes “virtudes”,
os defensores da tradicional noção de virtude acabam por se cur-
var ante a crescente violência daquele período, bem como à difi-
culdade de se manter o ideal da virtude e da justiça como o
único fundamento possível para a vida política.
Giovanni Botero, na sua Della Ragion di Stato (1589), escreveu
que non è cosa più gelosa, che gli Stati. Ao longo dos seiscentos, cada
vez se torna mais visível que a virtude, por si mesma, já não po-
deria garantir a permanência do príncipe no poder. A política do

onestà, giustizia, equità, onore, dirittura; né potrà mai conciliarsi con


appetito, utilità, crudeltà” (DE MATTEI, 1979: 13).

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Renascimento encontrava-se fundada, ainda, nos pressupostos
medievais da estratificação30, na relação amigo/inimigo31, e a
unidade entre poder e contrapoder manifestava-se como rivali-
dade. Mas esta diferença amigo/inimigo reentrava em si mesma,
de forma que no lado dos “amigos” muitos eram inimigos; o
vértice da estratificação de tal forma dotado de uma concentração
de poder, de tal forma cobiçado, explica Luhmann, que ali se
encontrava, também, concentrada toda rivalidade e o príncipe,
sem amigos, estava extremamente exposto à rivalidade. Assim, o
problema da rivalidade torna inócuo o apelo à liberdade na de-
fesa do “Estado”, enquanto “a totalidade dos estados de paz e uma

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parte dessa totalidade” (LUHMANN, 1993b)32. E isso mesmo


quando este se organiza como república e não como principado.
Se, por um lado, insistia-se na liberdade republicana e esta era
alcançada, por outro, contemporaneamente, intensificavam-se

30 As sociedades pré-modernas tinham uma predisposição à rivalidade


exatamente porque “podiam diferenciar-se a partir da estratificação e/ou
da diferença centro/periferia, ou seja (...), podiam diferenciar centros da
política a partir da estratificação ou da diferença centro/periferia”
(LUHMANN, 1993b: 67).
31 Essa é uma fórmula que encontraremos, no século XX, no pensamen-
to de Carl Schmitt. Parece-nos legítimo, portanto, perguntarmo-nos se a
concepção da política desenvolvida por Carl Schmitt não pode ser consi-
derada, ao tratá-la necessariamente como rivalidade, uma concepção
pré-moderna.
32 Naquela época, ainda que o Estado moderno ainda não tivesse encon-
trado sua realidade, o uso da palavra “Estado” era corrente: fala-se em
“alterations de l’estat”, “redresser l’Estat”, “on voit florir l’Estat”... Anto-
nio Palazzo, por exemplo, refere-se a “perfetto stato” e , com isso, quer
dizer nada mais que paz. Palazzo observa uma “constância no operar”,
“um ser sempre a mesma essência”: “isto é, a paz e aquilo que assegura a
paz, o domínio que para este fim é necessário”. O termo “Estado” pode
ser empregado para indicar qualquer situação invariante, a vida religiosa,
a arte e a situação política.

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tanto a luta das facções quanto as intervenções estrangeiras,
tornando oportuno “que se fizesse uma transição em direção a
uma espécie de governo de ‘manager’ ou, então, em direção à
monarquia” (LUHMANN, 1993b: 68). O pensamento daqueles
que, contra Maquiavel, defendiam a virtude e a justiça acima de
qualquer interesse político, começa a reconhecer que “nos casos
em que a busca da justiça venha a provar-se realmente incom-
patível com a conservação da república, pode tornar-se justificá-
vel praticar o útil em vez daquilo que é estritamente correto”
(SKINNER, 1996: 270). Assim, em nome da preservação da paz,
então concebida como tranquilitas animi, um senhor é obrigado
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a submeter seus rivais e a intervir nos conflitos entre seus vas-


salos, “sobretudo nos conflitos que não podem ser resolvidos de
maneira conforme à ideia de justiça” (LUHMANN, 1993b). Em
nome da paz, um príncipe pode promover a guerra. “No senhor
culminam contemporaneamente paz e guerra, paz e não paz”
(LUHMANN, 1993b: 78).
A fórmula da liberdade republicana, portanto, não se mostrou
capaz de resolver o problema da rivalidade (poder/contrapoder),
que retornava sempre no seio de uma sociedade estratificada:
todos querem ser a parte que ocupa o vértice, mas, como numa
sociedade em estratos a parte que participa é sempre uma parte
– um estrato, não é possível que esta seja indicada como “todos”.
A rivalidade sobrecarrega a noção de liberdade e esta ideia, con-
sequentemente, perde sua força. No contexto da estratificação,
ao mesmo tempo que não há um monopólio do Estado na utili-
zação da força física, a rivalidade e o problema que dela deriva, a
violência, colocam continuamente a necessidade de uma unidade
política. A rivalidade passa a ser afrontada mediante uma crescen-
te centralização do poder político, até o momento em que a polí-
tica passa a organizar-se em “unidades” centralizadas, os Estados.
Nesse contexto, começa a forjar-se também o conceito mo-
derno de Estado, que depois, na modernidade, “servirá de apoio

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para a passagem de função” (LUHMANN, 1993b: 74). O sucesso
da palavra “Estado” naquela passagem revela, como observou
Luhmann, uma valoração positiva daquilo que é fixo e seguro em
relação à variabilidade das circunstâncias, própria daquele perío-
do. Mais tarde, a palavra “Estado”33, que vinha sendo utilizada já
havia bastante tempo com a acepção de estabilidade, adquire seu
sentido moderno, tal como aparece em francês num texto de
1621, L’Homme d’Estat Chrestien (tradução da obra El Gobernador
Christiano, de Juan Marques). A palavra, na sua origem referida
àquela distinção fixo/instável, referida à noção de paz, traz em si
aquele que é o problema central do pensamento político dos

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quinhentos e seiscentos: a preservação da República (para falar


nos termos de Bodin) ou daquela forma de organização da polí-
tica que se legitima através de seu fim: assegurar o “Estado” en-
quanto paz. O Estado já não é apenas a “situação atual da políti-
ca”, mas é, também, a paz34.
Nesse sentido de Estado há uma certa ambiguidade, não ape-
nas porque este “aparece tipicamente em formulações nas quais
não é necessário distinguir-se o todo da parte dominante, o corpo
político da sociedade do seu governo” (LUHMANN, 1993b), mas
também porque o Estado pressupõe que, apesar de este “ser sem-
pre o mesmo”, esteja inserido um valor de perturbação da ordem
– que sirva como o outro lado da diferença entre a paz (Estado) e
a não paz (o não Estado: pecado original, desordem natural etc.).
O problema da razão de Estado reflete, portanto, esta ambiguida-
de: o Estado, enquanto paz, requer dominium e potestas. A ordem

33 Sobre a etimologia, observa Luhmann, não há necessidade de uma


representação muito detalhada: é certo que ètat, staat, state remontam ao
latim status, no contexto de uma distinção fixo/oscilane, seguro, inseguro,
invariável/variável (LUHMANN, 1993b: 80).
34 Tal como na antiga ideia germânica de Estado, que designava este
como um “fim de paz e de justiça” (CROSA, 1914: 267).

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exige o arbítrio. Esta reivindicação está presente nos textos da-
quela época. Assim, em Giovanni Botero, o Estado nada mais é
do que un dominio fermo sopra popoli: sua conservação consiste na
paz e tranquilidade dos súditos, e sua fundação, portanto, situa-se
na obediência dos súditos ao seu superior, isto é, ao príncipe. O
príncipe é virtuoso, dotado de uma superioridade moral que lhe
garante a posição de comando; porque é ele quem comanda,
então ele necessariamente é, também, virtuoso.
Embora Botero abra sua Della ragione d’stato discutindo a im-
portância de o príncipe guiar-se pelos princípios de justiça, ele
passa depois à noção de prudência política, ao argumentar que a
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prudência e o valor seriam “os pilares gêmeos sobre os quais se


deve fundar todo o governo” (SKINNER, 1996: 272). Aqui, a paz
justifica, como razão de Estado, a fundação do próprio Estado.
Nesta mesma direção, na França, onde depois a literatura sobre a
razão de Estado difundiu-se largamente, Montaigne afirmava que
a única resposta possível “às divisões e subdivisões que hoje dila-
ceram nossa nação” consistia em “admitir que a ‘prudência’ ocu-
pa um papel tão importante quanto a ‘bondade’ na direção de um
governo” (SKINNER, 1996: 272). Aqui, vê-se um deslocamento
da visão das relações entre meios e fins: a virtude é o meio, mas
o Estado é um fim em si mesmo. Neste quadro, a paz torna-se a
tranquilidade e a passividade dos que ao Estado estão submetidos.
Mas, dado que a natureza tende ao movimento, o Estado enquan-
to paz deve ter sua preservação assegurada através da habilidade
da razão de Estado: La paix est donc le vraye point de l’État, se dizia,
naquele tempo, na França (cf. LUHMANN, 1993b: 85).
A paz será, então, nada mais que a manutenção do status quo,
e não a perfeição natural do contexto humano que se possa al-
cançar através do Estado. E, se a ordem exige o arbítrio, no con-
texto de uma sociedade ainda tradicional, diferenciada em estra-
tos, a paz pode significar apenas arbítrio, já que não é possível a
eliminação da rivalidade. A paz exige o outro lado, a não paz, a

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guerra. Na literatura da época, este paradoxo continuamente
desponta: Botero, por exemplo, descreve o problema de fundo da
rivalidade como uma exigência da unidade do poder. Recomenda
que os amigos do Rei, ou seja, seus potenciais rivais, tenham um
poder limitado, uma vez que são estes, exatamente, aqueles que,
“por sua excelência”, são chamados a defender o domínio (cf.
LUHMANN, 1993b: 74). Isso num quadro em que, como se vê na
literatura político-moral do século XVI, o senhor é ainda repre-
sentado como virtuoso, moderado, gentil, nobre; de maneira a
nunca provocar um descontentamento excessivo: “A moderação
em relação aos fortes, mas também em relação às populações

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camponesas que vivem no limite da sobrevivência, é também esta


uma medida que se pode aconselhar (...) e que no final das con-
tas é estilizada como virtude” (LUHMANN, 1993b: 75).
Não é surpreendente, portanto, que o Estado da primeira
época moderna tenha se erguido como principado: na passagem
da estratificação para a diferenciação funcional, em meio aos
resquícios da velha hierarquia e acirradas as rivalidades, a paz
poderia, apenas, ser imposta. Neste contexto de afirmação do
Estado moderno emerge novamente a discussão sobre a “razão
de Estado”, em contraposição àquilo que permanecia ainda do
republicanismo medieval e daquela noção de liberdade, ou seja,
em contraposição à afirmação do “direito de resistência”. Portan-
to não é mero acaso que, no final dos quinhentos, e por todo o
século seguinte, o tema razão de Estado torne-se cada vez mais
comum (Giovanni Botero, Della Ragione di Stato, 1589; Antonio
Palazzo, Discorso del Governo e della Ragion vera di Stato, 1606; Zuc-
colo, Della Ragione di Stato, 1621; Scipione Chiaramonti, Della
Ragione di Stato, Fiorenza, 1635). Sob a etiqueta “razão de Estado”,
justificavam-se aquelas decisões políticas que, ocasionalmente,
poderiam ir de encontro aos próprios fins do Estado, sob o pre-
texto de alcançá-los. A tensão entre direito e política é resolvida
de forma que as decisões políticas são justificadas como ratio.

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Como explica Luhmann, a correção do agir político não é mais,
portanto, medida pelos direitos daquele que age, passando a
consistir na realização da ratio, isto é, na realização de uma ragion
di stato num contexto em constante transformação e que, por isso,
não pode facilmente ser objeto de tratamento jurídico, isto é,
numa situação em que as transformações não podem ser previs-
tas a cada caso por textos jurídicos.
À ênfase que se dá à “razão de Estado” a partir da segunda
metade do século XVI e por todo o século seguinte corresponde,
portanto, um “deslocamento do centro temático” no sentido do
Estado territorial. Esse deslocamento temático resulta no progres-
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sivo abandono das argumentações de ordem moral como funda-


mento da unidade do então nascente Estado moderno. O que
sucedeu, então, é uma nova conformação semântica de toda uma
constelação de conceitos. “Liberdade”, “Estado”, “soberania”,
“povo” são termos que se “modernizaram”, na medida em que
passaram a adquirir novos contornos semânticos quando utiliza-
dos nas autodescrições que a sociedade moderna faz de si mesma.
O surgimento do “Estado” moderno é apontado como o motor
de toda essa revolução semântica.
No contexto da discussão sobre razão de Estado surge, então,
uma controvérsia moral, mas isso apenas porque este é um con-
ceito que assinala uma acumulação daquilo que é político e da-
quilo que é jurídico, acenando para uma supremacia da política
sobre o direito. É claro que os autores daquele período ainda não
podem observar que o conceito de “razão de Estado” vem, na-
quele momento, anunciar a passagem, na evolução política, da
estratificação à forma moderna de diferenciação da política. Da
mesma maneira que a obra de Maquiavel, ao tratar do tema da
“razão de Estado”, ainda estava longe de ser uma tradução da
diferenciação política/moral, aquela literatura política que, por
todo os quinhentos e ao longo do século seguinte, abordou o tema
continuou a tratar as questões da política e, portanto, também o

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problema da razão de Estado, em uma perspectiva moral35. Se,
na primeira metade do século XVI, a Ciência Política era sobre-
tudo Ética Política (LUHMANN, 1993b: 65), negligenciando ou
mesmo ocultando os paradoxos da moral, já anteriormente
apontados por Maquiavel, a ênfase no conceito de “razão de
Estado” assinala, cada vez mais, aquela “acumulação” de direito
e política. E isso ainda que, naquele momento, razão de Estado
não era um conceito capaz de traduzir tal “acumulação” como
um problema especificamente político e jurídico, continuando a
tratá-lo como um problema moral. Os autores daquele período
“escrevem sobretudo a partir de pressupostos de tipo tradicional”

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(LUHMANN, 1993b: 66), mas naturalmente sofrem as conse-


quências das mudanças sociais, ressentem-se do fato de que a
sociedade já não é a mesma. De um lado, a estratificação pro-
gressivamente revela-se pouco adequada à noção de virtude. A
virtude tradicional já não parece tão virtuosa: ao propor a su-
pressão da diferença de “graus”, Thomas Morus afirma que ne-
nhuma sociedade hierárquica pode – por princípio – ser virtuo-
sa, “pois, mantendo os ‘graus’, encorajamos o pecado do orgulho;
e, encorajando-o, produzimos uma sociedade que estará funda-
da não nas virtudes, mas no mais odioso dos vícios” (SKINNER,
1996: 278). De outro lado, a virtude revela-se pouco adequada
para a tradução da passagem para a não estratificação, para uma
sociedade onde os sistemas sociais tendem a se diferenciar da
sobrecarga moral medieval.
Neste quadro, exatamente porque a semântica da razão de
Estado traz consigo uma forte carga moral, torna-se necessária a
invenção de uma nova forma de descrição da sociedade, de uma
sociedade em que a política, como unidade, tem que se afirmar

35 V. Benedetto Croce/Santino Caramella. Politici e moralisti del seicento,


Bari, 1930.

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como distinta da moral. No século XVI e XVII, o problema da
rivalidade coloca continuamente em xeque aquela subordinação
da política à moral, até o ponto em que o paradoxo da moral,
ocultado pela fórmula “razão de Estado”, aparece: um comporta-
mento imoral que, sob o manto da “razão de Estado”, fora admi-
tido como moral, permanece sendo imoral. Esse paradoxo, que
fora ocultado mediante a afirmação da razão de Estado, que so-
brepunha à virtude tradicional outra ordem de virtude (política),
encontra uma nova solução – desta vez política e jurídica, a um
só tempo – no conceito de soberania. Sob as ruínas da Idade Mé-
dia, a noção de “razão de Estado” transforma-se, com bases em
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pressupostos jurídicos e não mais morais, na moderna teoria da


soberania36.
Assim, quando o Estado moderno acaba por se impor, uma
revolução semântica eclode, de forma que o Estado, enquanto
unidade, se autorrepresenta a partir da noção – moderna – de
“soberania”. A invenção da soberania como conceito central da
doutrina do Estado moderno vem, exatamente, traduzir a novi-
dade da moderna unidade entre direito e política na forma do
Estado. Essa é uma unidade que, no entanto, pressupõe a dife-
renciação de direito e política. Àquela ideia de uma autonomia
relativa, característica do pluralismo medieval, contrapõe-se a de
uma unidade política, que não pode mais ser explicada simples-
mente em termos de liberdade: ou seja, em termos de “razão de
Estado” ou “direito de resistência”. Essa moderna unidade de
política e direito exprimiu-se mediante o conceito de soberania
enquanto expressão das características da absolutez do poder – e
do direito – estatal. A tese da soberania absoluta significa uma
nova forma de solução, portanto, para aqueles problemas que,

36 V. STOLLEIS, Michael, Reichpublizistik – Politik – Naturrecht im


17.und 18. Jahrhundert, in STOLLEIS, 1977: 13.

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na perspectiva da tradição, haviam sido solucionados através da
noção de razão de Estado. No vértice da soberania absoluta fun-
davam-se a um só tempo política e direito; soberania absoluta é
uma assimetria hábil a indicar a unidade do direito e a unidade
da política como um problema que se resolve pelo lado da polí-
tica, pela subordinação do direito à vontade política do soberano.
No século XVI, essa supremacia da política vai configurar-se na
organização desta com base nos Estados “soberanos”: o problema
da rivalidade, dessa forma, é resolvido com a unidade interna
dos reinos e uma simultânea “nacionalização” da ideia de inimi-
go. É o soberano, segundo o critério do novo direito das gentes

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(que, por sua vez, também encontra seu fundamento na noção


de soberania), quem vai decidir sobre a guerra e a paz. Com a
introdução do conceito de soberania absoluta, funda-se a unida-
de da diferença entre direito e política, apontando-se para uma
supremacia da política como o lugar da fundação comum de dois
sistemas que, cada vez mais, já se manifestam como sistemas
diferenciados. Como veremos mais adiante, este é o passo que
distingue Jean Bodin de muitos de seus contemporâneos que,
ao insistirem na razão de Estado, reafirmavam os pressupostos
tradicionais numa sociedade que tendia a desembaraçar-se da
tradição.

2.2.3  Por outro lado, em outra vertente que irá evoluir tam-
bém na formulação da moderna noção de soberania, “direito de
resistência” é um conceito que designa outra possível solução para
o problema da tensão, manifestada já no tardo-medievo, entre
indiferença e diferença do direito e da política. Quando a tensão
entre unidade e diferença de direito e política resolve-se pela
supremacia do direito em face da política, tem-se a afirmação do
“direito de resistência”, que se desenvolve, ora como fundamen-
to, ora como decorrência, da construção da soberania como so-
berania popular.

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A literatura que trata do direito de resistência, que assume
tanto as feições de “resistência ativa” ou “direito à revolução”
quanto se apresenta como “resistência passiva” ou “desobediên-
cia civil”, vai localizar as origens desse conceito no pensamento
medieval, quando se passa a admitir, conforme já vimos no capí-
tulo anterior, que os atos do soberano que sejam violadores da
lei natural fossem formalmente nulos e sem efeito. Já no século
XII, na Inglaterra, o povo resistiu passivamente ao recusar-se a
pagar impostos, e no século XIII foi ali que se assistiu à redação
da Magna Carta (que séculos depois receberá uma leitura cons-
titucional), na qual é reconhecido o direito de os barões e os
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comuns, no caso de excessos no exercício da soberania real, opo-


rem-se ao rei através de todos os meios, ressalvando-se apenas a
inviolabilidade da pessoa e da família real e o dever de retornarem
à obediência, logo que o abuso houver cessado (MACHADO
PAUPÉRIO: 1978, 32). Em direção semelhante, a Lei das Sete
Partidas já dizia que “o Rei faz a justiça, porém, quando transfor-
ma seu poder em tropelia, pode rebelar-se o súdito contra o rei”
(GIERKE, 1914). Nos séculos XIV e XV, a teoria da resistência
desponta nos Dialogus de Ockham, no Defensor Pacis de Marsílio
de Pádua, na obra de John Fortescue, bem como de outros de-
fensores da origem popular do poder (cujas ideias, em linhas
gerais, foram apresentadas no capítulo anterior).
O conceito de direito de resistência naquele período avizinha-se
da noção, então já bastante difundida, de soberania popular –
onde soberania é termo usado ainda naquele sentido tradicional
de “liberdade” ou autonomia, assim como o sentido de povo ex-
prime a realidade de uma sociedade estratificada – sendo que
ambas as noções despontam como respostas ao problema da ti-
rania. Em Salutati, por exemplo, encontramos uma apaixonada
defesa da tradicional noção de liberdade como fundamento da
resistência, quando em 1390, em resposta a uma declaração de
guerra enviada à Florença, escreve: “Agora haveremos de tomar

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armas para defender tanto a nossa liberdade quanto a dos outros,
a quem gravemente oprimis com o jugo de vossa tirania, esperan-
do que a eterna justiça da Majestade Divina haverá de guardar a
nossa liberdade e perceber a miséria da Lombardia, não toleran-
do que a ambição de um único mortal prevaleça sobre a liberda-
de de tantos povos” (SKINNER: 1991, 99).
Da perspectiva do direito de resistência, o príncipe que dá
ordens injustas não é um príncipe, mas um tirano, contra o qual
insurge o direito de resistir. A formulação do direito de resistência,
portanto, trata este a princípio como um problema exclusivamen-
te moral: o príncipe, enquanto tal, deve necessariamente ser bom

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e justo; um princípe injusto é um príncipe doente, que faz do


principado um principado doente. A doença deve ser extirpada,
isto é, o mau príncipe deve ser eliminado (justificativa do tirani-
cídio). O problema central da discussão sobre a resistência, neste
quadro, é o de saber quem está na posição de afirmar que um
governante é mau. Naquela situação em que moral e direito se
confundem, o valor do bem ou mal – aos quais em última instân-
cia apela o direito – era distribuído por aqueles em condições de
disputar com o príncipe o poder, ou seja, a nobreza. Logo, o povo
a quem se referia o direito de resistir era sempre uma parte, ou
seja, o estrato ao qual fora consentido participar da vida política37.
Essa concepção de povo, fortemente marcada pelas hierarquias
estratificatórias, permaneceu valendo até o final do século XVIII,
quando as revoluções eclodem com a pretensão de eliminar as

37 “Quando si parla di un diritto del popolo alla resistenza, come popolo


si consideranno praticamente soltanto i nobili e dal tardo medioevo anche
i notabili di altro tipo, sopratutto in quanto rappresentanti delle corpora-
zioni. Nel quadro di una società stratificata sono dunque soltanto piccole
parti della popolazione che possono agire come ‘populus’, come ‘cives’,
come ‘subditos’; ed è gente che ha da perdere qualcosa e che è disciplina-
ta in modo corrispondente” (LUHMANN, 1990a: 149).

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diferenças de graus. No final do século XVI, Junius Brutus insis-
te no fato de que a palavra peuple, que por tantas vezes aparece
em seu exaltado libelo a favor da resistência (Vindiciae contra
Tyrannos), não vem designar a populasse, cette beste qui porte un
million de testes, nem a multitude, assim como não indica um con-
junto de indivíduos. Brutus refere-se ao povo (numa direção
semelhante à de Marsílio) como universus populus, universi, corps
du peuple, ou seja, refere-se ao povo como uma comunidade do-
tada de personalidade jurídica e moral, distinta dos indivíduos
que a compõem e superior a estes38. É o “povo”, enquanto com-
preendido desta forma parcial e excludente, quem se arrogava o
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direito de decidir sobre o que é moralmente certo e errado, justo


e injusto. Portanto, “povo” significava, naquele período, tão so-
mente a parte a quem cabe o direito de resistir legitimamente (até
mesmo porque ela é a única em condições de se colocar como
rival do príncipe). Em Brutus, o povo, ou melhor, o corpo dos
súditos, é composto apenas de “irmãos do Rei”, ou seja, de se-
nhores39. Ora, os “irmãos do Rei” são, exatamente, aqueles em
condições de disputar o poder com o Rei.
A revolta da cidade de Bolonha no ano 1506 ilustra bem essa
situação em que resistência, tanto quanto razão de Estado, é um
tema ligado à rivalidade pelo poder, sendo um direito que, por-
tanto, é invocado por aqueles em condições de disputar o poder
com o governante. Naquele ano, a cidade de Bologna rebelou-se
contra o pontífice Giulio II, que ameaçava destruir as leis e liber-
dades, cuja manutenção era reclamada pelo “Estado” dos cidadãos.

38 É o que assinalam os autores da introdução à edição francesa do Vin-


diciae contra Tyrannos (in BRUTUS, 1979: XXVII).
39 Brutus, neste passo, dá ao termo “sujet” uma nova significação: “(...)
les sujets ne sont pas eſclaues ni ſerfs du Roy, comme on parle: veu que
ce ne ſont Seigneurs, auſsi chaſcun d’eux en particulier doiuent eſtre tenus
comme freres & parents du Roy” (BRUTUS, 1979: 154).

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Segundo os bolonheses, Giulio II encontrava-se obrigado a ob-
servar tais leis por força dos pactos que haviam sido celebrados
entre a cidade e o Estado da Igreja em 1503. Mediante esses
pactos (também chamados de conventiones ou capitula), esclarece-
-nos De Benedictis, a cidade renovava obediência, fidelidade e
sujeição a cada novo soberano. Tais pactos eram, portanto, con-
siderados pelos bolonheses a garantia de que estes pertenciam ao
Estado da Igreja por sua própria escolha (in FÖGEN, 1995: 18);
estes vinham sendo renovados já havia algum tempo e garantiam
a paz na cidade, que havia sido atormentada por mais de setenta
anos por revoltas e lutas. Mas em algum momento os Bentivoglio,

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que haviam gerido os acordos com os papas e eram considerados


senhores de fato sobre a cidade, passaram a ter um comporta-
mento considerado tirânico pelos demais cidadãos. Foi exatamen-
te a acusação de tirania o motivo que se deu o Papa para interdi-
tar Bolonha, marchando com suas tropas em direção à cidade. A
reação de Bolonha foi resistir, sob o argumento de que “se o papa
quer interditar e excomungar Bolonha, ‘com razão’ não pode
fazê-lo” (in FÖGEN, 1995: 22).
A este ponto a disputa manifestava-se, então, como uma dis-
puta sobre qual das duas partes rivais era aquela que “tinha razão”.
Tratava-se de saber, portanto, quem era o detentor, naquele caso,
da “razão”. Este é o cerne do problema. A razão, no contexto da
estratificação, não era uma qualidade passível de se generalizar,
estava sempre ou de um ou de outro lado, era representativa de
uma parte na disputa pelo poder que se alocava junto à outra
facção. Podia manifestar-se como direito de resistência, podia
apresentar-se como razão de Estado, mas encontrava-se sempre
concentrada em um dos polos da disputa. O texto de Brutus re-
vela mesmo a necessidade da disputa, da rivalidade, como con-
dição da possibilidade de se poder indicar quem estava certo ou
errado em determinada disputa: “É preciso necessariamente que
duas partes se encontrem em uma sedição, que elas se debatam

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uma contra a outra ordinariamente, até que se torne necessário
que o direito diga que uma está certa e a outra errada (...) Aque-
la que visa o bem público será lícita, aquela que tem em vista
apenas o bem privado será ilícita” (BRUTUS, 1979: 220). Sem
rivalidade não era possível que os valores do bem ou do mal, do
justo e do injusto, do certo e do errado fossem alocados. A razão
era, portanto, um atributo moral que poderia, a cada caso, ser
adjudicada apenas a uma das facções, fosse ela o imperador, o
papa, o príncipe ou o povo. Aquela disputa, que era portanto uma
disputa moral, facilmente se resolvia, a favor do papa, com base
nas doutrinas eclesiásticas medievais.
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A novidade que se verificou no episódio de Bolonha foi a


busca de recursos não mais teológicos, mas tendencialmente jurí-
dicos, para oferecer motivos justos para que ao papa, naquele caso,
fosse negada a razão. Segundo a interpretação que, mais tarde, o
jurista Crotto fez dos acontecimentos que então se sucederam, a
cidade detinha a razão, pois ao papa não era permitido derrogar
os pactos que este havia celebrado com o “povo” de Bolonha.
Contra a plenituto potestatis do papa e a favor da resistência da
cidade de Bolonha, Crotto invoca argumentos retirados da juris-
prudência de Bartolo, Baldo, Cino, Paolo di Castro, justificativas
estas que eram, na sua maioria, de natureza contratualista. Tais
justificativas foram bastante difundidas durante o tardo-medioe-
vo, em que a rivalidade e a luta pelo poder se acirravam, de modo
que novos fundamentos eram buscados para a instituição do go-
verno. O primeiro destes argumentos apoia-se, exatamente, na
tese da plenitudo potestatis como característica do poder “soberano”.
O período medieval já avançara a tese de que aquele era um atri-
buto do príncipe, fosse ele o papa, o imperador ou um outro se-
nhor. E, se soberania significava a delimitação da esfera de uma
autonomia, isso implicava então que todos podiam ser igualmen-
te soberanos, de modo que o princípio a ser respeitado era o do
respeito ao âmbito da soberania de cada um. No caso específico

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da resistência de Bolonha, explica Crotto que o modo no qual o
papa pretendia exercitar sua soberania retirava-lhe toda razão: è
cosa ingiusta (in FÖGEN, 1995: 34). Esta razão dizia respeito aos
princípios de justiça que um príncipe soberano deveria respeitar.
O problema, portanto, não era tanto o de estabelecer quem era
o titular do poder máximo quanto o de se avaliar o modo no qual
o poder se exercia, se em respeito ou não às “superioridades” pac-
tuadas. Naquele período, a razão dizia sobretudo respeito à obser-
vância do âmbito da autonomia – soberania – alheia: os pactos
devem ser respeitados. De forma que Crotto conclui que a justiça,
naquele caso específico, não estava ao lado do papa, mas de outra

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parte, “onde o povo e os magistrados consentem, onde é mantida


a fé que foi dada, onde o príncipe respeita os pactos e as convenções
feitas com o povo, onde se fazem respeitar os juramentos” (in FÖ-
GEN, 1995:34). O episódio de Bolonha ilustra como o direito de
resistência, que a princípio era um problema exclusivamente mo-
ral, progressivamente vai se revestindo de contornos propriamen-
te jurídicos, naquele tempo ainda plenamente morais. A defesa da
palavra empenhada através do contrato, profundamente arraigada
na mentalidade medieval, tendeu a fundamentar-se cada vez mais
em motivos jurídicos e menos na velha noção de lealdade feudal.
Isto parecia ir de encontro ao princípio da plenituto potestatis, mas,
na verdade, o que ali se delineava era uma possibilidade de fun-
dação propriamente jurídica do exercício do poder político. Di-
reito de resistência significava, então, diante da cada vez mais
visível afirmação do princeps legibus solutos, o único meio tido como
justo para que um príncipe considerasse seu poder limitado. Como
explica De Benedictis, “nenhum povo, nenhuma cidade, queria
ser rebelde. No interior das relações entre soberano e súditos,
concebidas ainda ao modo feudal, a resistência não era uma re-
belião ou uma revolução, mas a realização prática da ideia implí-
cita no contrato entre povo e soberano” (in FÖGEN, 1995: 41).
Assim, a resistência legítima do povo às ordens abusivas ou injus-

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tas do soberano fundar-se-á na concepção contratual deste víncu-
lo entre governados e governantes, fundamento da soberania, a
bem da verdade ainda “senhorial”, mas também popular40. Assim,
até meados do século XVI, o poder era visto, de acordo com aque-
la visão medieval germânica, como regulado e refreado pelas “boas
leis”, ordenanças e costumes. Neste quadro, o direito de resistir foi
tanto afirmado quanto negado, a partir de pressupostos que eram,
ainda, morais. E isso mesmo quando encontramos já naqueles
autores medievais defensores da soberania popular, como Ockam
e Gerson, argumentos baseados no Digesto favoráveis ao direito de
resistência. Segundo tais teses, os reis devem, por força da lei divi-
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na e da lei natural, justiça e proteção aos seus súditos, de forma


que, se faltam a este dever, deve-se aplicar a lei da natureza vim vi
repellere licet (in FÖGEN, 1995: 37).
Por outro lado, também sobre uma base moral, os primeiros
reformadores da Igreja irão condenar o direito de resistência. Para
Lutero, a insurreição nunca leva à melhoria que por meio dela
se busca alcançar, assim como a revolta jamais pode ser justa, por
mais justo que seja o motivo: “Deus prefere sofrer a autoridade
injusta a ver o povo sublevado por uma causa justa”41. Diante de

40 “O Estado era tido como uma comunidade superior em cujo seio


viviam inúmeras outras comunidades menores, com vida autônoma.
Entre essas e o rei estabelecia-se um contrato tácito, de que o segundo era
ao mesmo tempo proteção e garantia das primeiras. No caso de o contra-
to ser violado, extinguia-se a obrigação. O chamado direito de resistência,
derivava-se, assim, de uma relação contratual. O povo primitivamente
era o senhor. A autoridade do príncipe exercia-se em razão unicamente
do acordo celebrado entre ele e os súditos. Pelo contrato, estes puderam
fixar as condições de exercício da autoridade, reservando-se para si o
direito de dispor dela na hipótese especial de os governantes a empregarem
com abuso e perniciosidade” (MACHADO PAUPÉRIO, 1978: 73).
41 No Sermão das Boas Obras, diz Lutero que “se a injustiça procede do
poder temporal, é menos perigosa do que se procede do poder espiritual.

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um tirano, por mais cruel e injusto que este seja, não é possível
resistir, mas apenas suportar; afinal de contas, um tirano pode ser
um instrumento da cólera de Deus. Obviamente, o protestantismo
não pôde, por muito tempo, professar aquela convição. O perío-
do seguinte, do final dos quinhentos até o final do século XVII,
foi marcado, exatamente, pelas guerras de religião. Naquele pe-
ríodo, os huguenotes colocaram em questão o fundamento de
legitimidade do rei católico francês, pondo em discussão, com isto,
a justificação do tiranicídio, uma vez que por “tirano” entende-se
o rei com fé distinta da de seu povo. Observe-se que, neste pe-
ríodo, todas as questões políticas eram fixadas religiosamente, e

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todas as questões religiosas transformavam-se em problemas


políticos (STOLLEIS, 1993: 1). O problema da resistência, sob o
impacto das disputas “religiosas” da segunda metade dos quinhen-
tos, encontra desta forma outras soluções, adequadas à solução
daqueles problemas religiosos pela via da política ou, ainda, da-
queles problemas políticos pela via da religião. Primeiro, no seio
do próprio protestantismo e, depois, também por parte da outra
parte – ou seja, dos católicos.
Uma segunda geração de teóricos protestantes – Knox e Bu-
chanan na Escócia, Beza e Mornay na França, Ponet e Goodman
na Inglaterra – vai abordar novamente o tema da resistência, que
ganhará força e importância sobretudo após os acontecimentos

Porque o poder secular não pode prejudicar: não tem de se ocupar da


pregação e da fé. Ao contrário, para prejudicar, o poder espiritual não
precisa cometer injustiça; basta que negligencie seu ofício para se ocupar
de afazeres que não lhe concernem. Assim, é preciso levantar-se vigoro-
samente contra o governo espiritual se ele não é rigorosamente justo e
nada é preciso fazer contra o governo temporal, mesmo que seja injusto...
O poder secular é coisa bem pequena diante de Deus: justo ou injusto,
não merece que se lhe dê confiança de desobedecer-lhe e contradizê-lo”
(cf. MACHADO PAUPÉRIO, 1978: 79).

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de São Bartolomeu, em 1572. Do lado dos protestantes, o apelo
à resistência aparece nos autores ingleses e escoceses – nestes com
um toque de misoginia, já que, na outra parte, o soberano cató-
lico ao qual se resistia era uma mulher42 – mas ganha importân-
cia principalmente no pensamento de Calvino. No pensamento
calvinista43 primeiramente a defesa da resistência reveste-se de
um caráter fortemente religioso (veja-se, por exemplo, a teoria
revolucionária de John Knox, em sua Appellation de 1558), as-
sentando-se na verdade da fé protestante, contra a repressão
católica. Após o massacre de São Bartolomeu a defesa da resis-
tência vai adquirindo, cada vez mais, contornos propriamente
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jurídico-políticos, passando a apresentar-se como sinônimo de


soberania popular: e isto tanto da parte protestante quanto da
parte católica, tanto na Europa continental quanto na Inglaterra
e na Escócia. Na Escócia, depois de circular por um bom tempo
como manuscrito, é publicado em 1579 o texto de George Bu-
chanan De jure regni apud Scotos, uma defesa do direito de resis-
tência que invocava reminiscências da história clássica e opiniões
dos autores antigos. O apelo às ideias constitucionalistas e à so-
berania do povo desponta já quando Buchanan define o “rei”
como sendo aquele que adquiriu o poder pelo consentimento
popular, que governa segundo o direito, e que é submetido às leis
(BURNS, 1997: 197). Como as leis não são estáticas e precisam
ser interpretadas, os reis necessitam de um conselho de sábios,
pelo qual se devem deixar guiar. Contra o pensamento medieval

42 Isto é particularmente visível em Knox que, no período em que a


Inglaterra era governada por Mary Tudor, dedicou-se a preconizar a re-
sistência às mulheres e aos clérigos católicos, mas não aos governos em
geral (BURNS, 1997: 181).
43 Sobre o pensamento revolucionário calvinista dos seiscentos, ver
Quentin Skinner, The Origns of the Calvinist Theory of Revolution, in
MALAMENT, 1980.

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e aquilo que havia professado o luteranismo, Buchanan diz que
a obediência é devida de forma absoluta apenas diante de um
verdadeiro rei, não de um tirano44. A consequência que daí Bu-
chanan deriva é a de que, se o governo de um tirano não é um
governo legítimo, então aquele pode ser deposto45. Obras como
a Francogallia de Hotman (1573), Le Devoir des Magistrats de Bèze
(1574), Vindiciæ contra tyrannos de Brutus (1575) aparecem como
uma justificativa para a resistência naqueles casos em que um
príncipe legítimo persegue seus súditos por razões religiosas. Es-
tes autores, chamados de “monarcômacos”46, faziam parte do
mesmo círculo calvinista. Suas obras eram, na verdade, panfletos

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que se seguiram ao massacre de São Bartolomeu, de cunho for-


temente antimaquiaveliano47; uma clara resposta, portanto, ao
exercício da razão de Estado. Nestes autores protestantes despon-
ta, de maneira bastante semelhante, a tese segundo a qual um rei

44 A fórmula que fora proclamada por diversas vezes no continente


reaparece: “um rei governa visando o bem de seus súditos” (Cf. BURNS,
1997: 197).
45 “On peut écarter un tyran par une procédure légale conduisant à son
emprissionement ou à son exil. On peut lui résister par la force militaire.
On peut même assassiner un tyran, si c’est la seule façon de disposer de
lui ou d’ elle” (cf. BURNS, 1997: 197).
46 Assim chamados por Barclay, De regno et regali potestate ad versus,
Buchananum, Brutum, Boucherium e reliquos Monarchomachos, Paris,
1600 (cf. CROSA, 1915: 132).
47 No prefácio à Vindiciæ contra tyrannos, a defesa de Brutus do verda-
deiro direito e poder do princípe sobre o povo e deste sobre o príncipe é
apresentada como contrária “aux mauuaiſes pratiques, conſeils pernicieux,
ſauſſes & perſtiſeres maximes de Nicolas Machiauel Florentin” (BRUTUS,
1979: 5). No Prefácio ao texto de Brutus aparece, por muitas vezes, a
expressão “Machiavelliſtes”, também chamados de “escravos dos tiranos”
(“eſclaues des tyrans”). Pouco tempo depois, o antimaquiavelismo recebe
sua mais acabada formulação no Anti-Machiavel de Gentillet (1576).

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é rei apenas em decorrência da graça de Deus, cuja vontade se
exprime por meio do consentimento do povo. O pacto de funda-
ção aparece como uma aliança entre Deus, o Rei e o povo; me-
diante esta aliança os dois últimos obrigam-se a servir Deus sobre
todas as coisas48. Mas também aparece sob o prisma “protocons-
titucional” do respeito devido às leis fundamentais do Reino e,
sobretudo, do reconhecimento do papel constituinte desempe-
nhado pelas assembleias populares e, portanto, do poder destas,
enquanto soberanas, de “criar” e depor os reis49.
De uma maneira geral, todas estas teorias afirmavam que os
reis são criados para o proveito do povo: quando deixam de atuar
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em benefício deste, tornam-se tiranos 50. Neste ponto de vista


encontram-se, ainda, os resíduos da argumentação tradicional,
ou seja, a pressuposição de que a virtude é uma qualidade neces-
sária do príncipe. Mas, contemporanemente, nele aparecem
também os fundamentos modernos para a fundação da unidade
da diferença de direito e política: contrato e soberania. Contra a
tirania, tem o povo – enquanto titular da soberania – o direito de
resistir. Nesta direção, na sua Francogallia Hotman afirma o direi-
to e o poder dos Estados e do povo (ordinum ac populi ius potestas-

48 “Que le Roy regneroit tellement, qu’il laiſſeroit le peuple ſeruir à Dieu,


& le contiendroit en l’obeiſſance d’iceluy : Que le peuple obeiroit tellement
au Roy, que ce ſeroit pour s’aſſuiettir premierement à Dieu“ (BRUTUS,
1979: 25-26)
49 É assim que, ao afirmar que os reis encontram-se limitados pelas leis,
Hotman aponta como sendo a primeira dentre elas aquela que proíbe o
rei determinar medidas que afetem a república como um todo, sem o
consentimento do “Conselho Público” (HOTMAN, 1972: 459).
50 “Or il nous faut touſious ſouuuenir, que les Rois ont eſté creez pour
le profit du peuple : que ce qui procurent le bien du peuple ſont vrais Rois,
& que les autres qui n’ont ſoin que de leur particulier ſont vrais tyrains,
comme auſſi eſtime Ariſtote“ (BRUTUS, 1979: 158).

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quet) de constituir e manter os reis, bem como o summam potesta-
tem do povo em destituí-los. Em Brutus, este é um direito tanto
coletivo quanto individual, direito de legítima defesa, que se
manifesta através da insurreição. Assim, se um príncipe – seja ele
o papa ou um rei católico – pretendesse impor ao povo de Deus
a idolatria, deveria ele ser reprimido pelo povo ou por aqueles
particulares, precisamente, em cujas mãos Deus colocou a espada.
O direito de resistir autoriza a violência e, até mesmo, o tiranicí-
dio: quem resiste não pode ser acusado de crime de lesa-majes-
tade, crime que se verifica, apenas, quando o ataque é desferido
contra um príncipe legítimo, “que não é outra coisa que não uma

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Lei falante”. Fazendo alusão à figura do paradoxo em Cícero,


Brutus afirma, neste passo, que a República define-se pelas boas
leis, de forma que, onde as leis não são respeitadas e o tirano
engloutit o Estado a seu bel-prazer, já não se pode falar em Repú-
blica (BRUTUS, 1979: 221-222).
Do outro lado da disputa pela titularidade da razão, os autores
católicos também irão afirmar o direito de resistir, baseando-se
no argumento do poder da Igreja sobre os reis e o povo. No pe-
ríodo 1580-1620, a teoria católica da resistência ganha maior
expresssão e não deixa de ser uma ironia que, quando os autores
protestantes dispõem-se a sustentar a autoridade do rei, os cató-
licos passem a ocupar o terreno da resistência, abandonado por
seus adversários. Os autores católicos deste período são chamados,
neste passo, de “monarcômacos católicos”. No contexto francês,
a obra De justa Henrici Tertii abdicatione (1589), de Boucher, colo-
cava, no momento do regicídio de Henrique III, questões relativas
a deposição deste. A Igreja e o povo podem depor um rei na de-
fesa de uma causa justa? É legítima a tomada de armas para a
deposição de um rei? E finalmente: Henrique III deve ser depos-
to? Tais questões mereceram, na obra de Boucher, uma resposta
afirmativa, levando este em consideração argumentos inspirados,
ainda, nas teses teológicas da fundação do poder. A Igreja tem o

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poder de depor os reis, do mesmo modo que tem o poder de li-
berar o povo do dever de obediência que este lhe deve51. Esta
doutrina, assemelhada àquela do poder indireto dos papas, não
dispensava à figura mundana do contrato a mesma atenção que,
de outra parte, os huguenotes haviam cultuado. A ideia do pacto
estava presente, mas este era um pacto com Deus52. Já no pensa-
mento “ultramontes” dos jesuítas espanhóis, que se desenvolve
na passagem do século XVI para os setecentos, a noção de con-
trato reaparece, com ênfase na noção de status naturae, expressão
efetivamente utilizada por Molina para referir-se à ausência de
organização política após a queda. Aqui podemos observar como,
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na trama das teorias que constroem a semântica da política mo-


derna, os velhos conceitos adquirem novos sentidos, enquanto
novas sedimentações de sentido antecipam a evolução subsequen-
te. O conceito de status naturae, que enorme fortuna encontrará
mais tarde, nos séculos XVII e XVIII, foi precisamente o argumen-
to que permitiu a Molina estabelecer uma diferenciação entre a
sociedade política, criação mediata dos homens para fins exclu-
sivamente temporais e a Igreja, criação imediata de Deus, visan-
do fins espirituais mais elevados (BURNS, 1979: 215). Francisco
Suárez, no seu De legibus (1613), em direção semelhante susten-
tava que os homens haviam abandonado sua liberdade natural
para reunirem-se numa associação política única, por vontade
individual e por consentimento comum, tendo em vista ajudar-se
uns aos outros. A unidade desta comunidade política manifesta-

51 Bouchet insiste naquilo que se deve entender, então, por povo: não
“la populace indisciplinée et turbulente dans laquelle on reconnâit le
monstre à plusieurs têtes”, mas sim “une multitude prudente légitimement
rassemblée” (cf. BURNS, 1997: 204).
52 “(...) le roi fait partie du peuple, e non le peuple du roi, et [que] le roi
e le peuple ne doivent pas être considérés comme des entités séparées,
mais que le pacte avec Dieu les deux ensemble” (cf. BURNS, 1997: 205).

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-se tanto no fato de que esta tem um único fim – o bem comum
– mas tambénm no fato de que a unidade de tal associação exige
uma “cabeça única”: um soberano. O poder de governar que têm
os homens procede diretamente de Deus, quando se trata de um
poder espiritual, ou nasce diretamente dos homens, quando este
é um poder puramente temporal: “em ambos os casos, sem em-
bargo, a potestade é conferida primordialmente visando o bem
comun da sociedade” (SUÀREZ, 1971: 133). Os homens outorgam
poder ao príncipe, prossegue Suàrez, não para o proveito deste,
mas tendo em vista o bem comum (commune bonnum).
O ponto de partida da escolástica espanhola, para a elaboração

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das teses contratualistas da fundação do poder, quadro no qual é


depois invocado o direito de resistir, é a concepção tomista da lei53.
A diferença lei natural/lei positiva é central no De legibus de Fran-
cisco Suàrez. Nesta distinção reentra outra diferença, que distingue,
dentre as leis positivas, a lei divina e a lei humana. De acordo com
esta distinção, uma hierarquia das leis se constrói com base na
noção de necessidade, que se exprime como “natureza da lei”. A
lei eterna é, neste passo, a única absolutamente necessária, en-
quanto as outras leis são necessárias quando se dirigem a um fim
ou a um efeito. Isto porque “toda lei é algo criado ou pressupõe
realmente a existência de uma criatura em razão da qual se dá,
uma vez que Deus não pode estar sujeito à lei” (SUÀREZ, 1971:
37). Assim que uma lei humana é injusta quando fere a divina,
necessariamente boa e justa, pois tudo quanto de Deus vem é bem
ordenado (SUÀREZ, 1972: 6). O legislador humano pode ordenar
coisas injustas, mas tais ordens não obrigam, pois não podem ser
lei, faltando-lhes “força e virtualidade para obrigar”. Isto porque,

53 Assim se vê na abertura do primeiro capítulo do Livro I do De legibus


de Suàrez: “Santo Tomás explica así el significado del término ley: La ley
es cierta regla y medida que induce a uno a hacer algo o le retrae de ha-
cerlo” (SUÀREZ, 1971: 11).

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se todo poder provém de Deus, seu poder é superior ao do legis-
lador humano, e nenhum inferior pode estabelecer uma obrigação
contrária à lei e à vontade do superior. Os homens não podem
estar obrigados simultaneamente a obedecer e não obedecer a uma
mesma ação. Aquele rei que se afasta deste princípio, ou seja, que
não governa tendo em vista o bem da comunidade, “da qual e
para a qual” foi instituído o poder, é um tirano54.
Suàrez foi relativamente moderado em sua defesa da resis-
tência, admitindo este direito sob uma série de condições e res-
trições. Na obra Defensio fidei Catholicae (1613), Suàrez reforça a
posição de primazia do papa e discute com maior profundidade
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o problema da tirania, afirmando que um rei legítimo não pode


ser considerado tirano em virtude do fato de, ocasionalmente,
praticar atos injustos. Mas, quando tais atos ameaçam a unidade
da comunidade ou consistem em massacres contra os cidadãos,
então é possível, apenas através de uma autoridade pública, re-
sistir ao tirano. Isso significa que um particular não pode se an-
tecipar à autoridade pública na deposição do monarca ilegítimo,
ainda que o tirano possa, quando destronado ou formalmente
acusado de heresia, ser morto por um particular (que agiria, assim,
em nome da autoridade pública). Por outro lado, Suàrez salienta
que os papas têm poder sobre os governantes temporais, seja ele
direto ou indireto55. Neste quadro, pode toda a comunidade, sob

54 “De ahí la sabia afirmación de San Basilio de que el tirano se diferen-


cia del rey en que aquél busca su propio provecho y éste el de la comu-
nidad, criterio que nos transmite Aristóteles y hace suyo tambíen Santo
Tomás” (SUÀREZ, 1971: 133).
55 Suàrez afirma, neste passo, a subordinação do poder temporal ao
espiritual. “El Sumo Pontífice, en virtud de su poder o jurisdicción espi-
ritual, es superior a los reyes y príncipes temporales para dirigirlos en el
ejercicio del poder temporal en orden al fin espiritual; por razón de lo
cual, puede mandar tal ejercicio o prohibirlo, exigirlo o impedirlo cuanto
fuere conveniente para el bien espiritual de la Iglesia” (SUÀREZ, 326).

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a ordem do papa, revoltar-se contra o tirano; da mesma forma,
pode o papa ordenar a um povo que tenha prematuramente se
revoltado que retorne à obediência (BURNS, 1979:217). Mais
radical do que Suàrez na defesa do direito de resistência foi um
outro jesuíta espanhol, Juan de Mariana. Mariana, numa outra
variante do pensamento político jesuíta, colocava menos acento
na autoridade do papa sobre os governantes do que naquela que
tem o povo. Assim como Suàrez, Mariana partiu de uma noção
de estado de natureza, sendo que para Mariana neste estado
prevalece a bestialidade, e não o direito natural. Para sair desta
situação é que os homens se organizam politicamnte, escolhendo

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um governante. O problema da tirania, em Mariana, é um pro-


blema lógico: é impossível que um povo estabeleça um rei que
venha lhe oprimir. Mariana, mais do que prever a possibilidade
de deposição do tirano por uma autoridade pública, valorizou o
direito, a título individual, que têm os particulares de até mesmo
assassinarem um tirano quando este impossibilitasse o exercício
da soberania popular, isto é, quando este impedisse a reunião dos
“estados” ou “cortes” (BURNS, 1979: 218).
Direito de resistência, soberania popular, estado de natureza,
direitos naturais, contrato: ao longo do século XVII, estas ideias,
em circulação desde muito, vão se entrecruzando, se articulando
como solução de problemas político-religiosos em torno de uma
explicação não teológica para a origem do poder e da lei enquan-
to “obra do povo”. Esta explicação realizou-se, mais tarde, como
constituição. Aquela noção do pacto como fundador do poder,
que não era de todo nova, como vimos no capítulo anterior, ganha
cada vez mais importância para a moderna teoria do Estado ao
longo do século XVII. Tudo isto foi um produto das guerras de
religião do século XVI e XVII, que infringiram a velha ordem
medieval, dissolvendo os antigos fundamentos (que eram funda-
mentos exatamente porque antigos, isto é, alicerçados na tradição)
e mostrando que era necessária uma nova explicação, não tradi-

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cional, para a fundação do poder e do direito. A defesa da resis-
tência na contrarreforma marca, também, o fato de que contra a
violência da tirania a resistência pode responder, apenas, com
mais violência. Assim, o direito de resistência, que funcionava
como contraponto à noção de razão de Estado, paradoxalmente,
é uma reivindicação republicana que acaba servindo para o for-
talecimento do próprio Estado. Mais tarde, como veremos, em
nome da unidade do Estado, o direito de resistência deve, no
mínimo, ser limitado56.
Sob o imperativo da preservação do Estado, a semântica do
direito de resistência vai cedendo espaço ao discurso da soberania:
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“Se o arbítrio contrapõe-se ao arbítrio, então a única solução do


problema parece estar no concentrar-se o arbítrio em um ponto:
na soberania do monarca” (LUHMANN, 1996a: 150). As teorias
da resistência, ao enfrentarem a questão da unidade do direito e
da política, tenderam a abandonar as argumentações morais (e,
portanto, também parciais) que haviam sustentado as teses tra-
dicionais do direito de resistência. Assim, tanto quanto razão de
Estado foi um conceito que se difundiu sobretudo na segunda
metade do século XVI, dando curso à formulação das teses da
soberania absoluta, da mesma forma, no contexto das guerras de
religião e da Reforma, eventos de particular relevância para a
estabilização do Estado como forma moderna de organização da
política, a expressão “direito de resistência” encontrou grande

56 Nessa linha, um dos teóricos mais importantes da soberania estatal,


Suàrez, vai afirmar que, para ser legítima, a resistência passiva deve aten-
der a duas condições: “1ª) a injustiça da lei deve ser grave; do contrário
estaria sempre a sociedade ameaçada de contínuas perturbações; 2ª) a
injustiça da lei deve ser moralmente certa, pois, em caso de dúvida, a boa
presunção deve existir em benefício do legislador” (MACHADO PAUPÉ-
RIO, 1978: 30).

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sucesso, frutificando nas teses que afirmavam a unidade da fun-
dação de direito e política como “soberania popular”.
Soberania popular passou, desta forma, a ser o leitmotiv das
teorias a favor da resistência, exatamente por representar o pon-
to em que o direito vai de encontro à política. Na disputa pelo
poder, as facções também irão reivindicar para si a razão, aqui
apresentada como uma razão jurídica: “direito de resistir”. Isto
significou, também, um deslocamento temático mais decisivo na
direção de um fundamento jurídico para o poder, a ponto de a
noção de soberania como potestas suprema, elaborada em Bodin,
adquirir o contorno quase que exclusivo de um direito em outro

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autor, defensor da soberania popular e do direito de resistência,


Johannes Althusius. Pode-se mesmo dizer que, em Althusius, as
características de absolutez, supremacia e perpetuidade da sobe-
rania, que Bodin havia salientado como os traços marcantes
desta, manifestam-se enquanto a supremacia do direito sobre a
política, até os extremos da resistência. Se, como veremos, Althu-
sius nega a tese absolutista da soberania de Bodin, afirmando a
necessidade de uma submissão do soberano não apenas à lei
natural, mas também à lei civil (ALTHUSIUS, 1964: 66-67), sua
solução aponta para a supremacia do direito sobre a política, até
o ponto em que o direito de resistência pode ser praticado, de
uma forma que, também, apresenta características de absolutez.
Na obra Politica methodice digesta (1603), partindo da noção de
soberania popular e do princípio quase constitucionalista da sub-
missão do rei à lei (que mais adiante iremos discutir), o calvinis-
ta Althusius define o tirano como aquele que viola o direito,
traindo seu dever57. Essa noção estabelece, mesmo que sob o pano
de fundo da tradição, a tirania como um problema jurídico, pois

57 “Tyranny is the contrary of just and upright administration” (ALTHU-


SIUS, 1964: 185).

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que tirano é a autoridade, ainda que legitimamente constituída,
que viola os limites juridicamente fixados pelos pactos e leis fun-
damentais. O tirano pode ser tanto um monarca quanto um
poliarca, que com sua “avareza, orgulho e pérfida crueldade,
destrói os mais importantes bens do Estado, tais como a paz, vir-
tude, ordem, direito e nobreza...” (ALTHUSIUS, 1964: 185).
A tirania, ou a administração tirânica do Estado, para Althu-
sius pode se dar de duas formas. Uma, aquela que atenta contra
as leis fundamentais do reino58; outra, aquela que se dá quando
a administração das funções ou bens do corpo associado é con-
trária aos princípios de piedade e justiça. Esta última é chamada
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de “tirania geral”, porque nela o magistrado supremo perverte,


como um inimigo, a Igreja e o Estado. Aqui, podemos observar o
quanto a noção de tirania, ainda que tratada como um probema
jurídico, encontrava-se imersa em pressupostos tradicionais, ins-
crevendo-se numa constelação semântica de fortes tonalidades
morais: amigo e inimigo; virtude e perversão; nobreza e avareza;
orgulho; perfídia... Contra todos estes males, Althusius, no capí-
tulo XXXVIII da Politica, propõe um remédio. Esse “remédio” para
a tirania é, exatamente, o exercício do direito de resistência,
pertencente ao povo, enquanto titular do criar o governante
através do consenso. Althusius invoca Béze, Mariana, Daneau e
outros (além do próprio Digesto), para reafirmar a soberania po-
pular e seu corolário, o direito de resistência. Os motivos para o
apelo à resistência em Althusius, ainda que envoltos na morali-
dade, são apresentados como motivos jurídicos, e não mais morais.

58 Este primeiro tipo de tirania, por sua vez, também se manifesta de


duas diferentes formas. “One specie occurs when the supreme magistra-
te violates, changes, or overthrows the fundamental laws of the realm,
especially thoses that concern true religion. (…) The other occurs when
he breaks up the others and estates, or impedes them in the performance
of their offices…” (ALTHUSIUS, 1964: 186).

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Resistência é um direito. Este direito, no entanto, deve ser
praticado sob determinadas condições, de modo que “o remédio
não acabe sendo pior do que a doença”59. Assim, o direito de
resistência tem seu exercício limitado no tempo, devendo ser
praticado apenas ocasionalmente, quando a violação da lei for
clara e visível a todos os olhos e excepcionalmente, quando a
autoridade violadora do direito tenha sido notificada de sua falta
e nela permanecido, de forma a não restar outra solução para a
crise que não a resistência. Neste passo, Althusius afirma a exis-
tência de um direito de resistência ativa e de um direito de resis-
tência passiva, sendo este último aquele direito que tem cada

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súdito de resistir às ordens dos tiranos, pois que ninguém pode


ser obrigado a cumprir aquilo que é contrário a Deus. O direito
de resistência ativa consiste propriamente no jus resistentiae et
exauctorationis contra o monarca, e é uma prerrogativa convalida-
da pelos princípios que derivam da essência do contrato, do con-
ceito de soberania popular, do direito natural e da palavra de
Deus, com precedentes que são retirados da história sacra e pro-
fana (DE BENEDICTIS, 2000: 35). Este era aquele direito de re-
sistência que ao povo era consentido praticar apenas através, ou
sob o comando, de seus representantes.
A resistência ativa parece ser, para Althusius, a verdadeira
face do direito de resistência: ao definir resistência, Althusius a
apresenta como um direito que é concedido ao povo coletiva-
mente, mas que é praticado pelos éforas ou sob seu comando60.
Sob o comando dos éforas, a resistência, mais que um direito, é

59 “Wurde man es früher zulassen, sagt Althusius, dann wäre das Heil-
mittel schlimmer als die Krankheit“ (STOLLEIS; 1996: 19).
60 Definido por Althusius como “the process by which the ephors impe-
de the tyranny of the supreme magistrate by word and deed” (ALTHUSIUS,
1964: 187).

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também um dever do povo enquanto tal, sendo que aqueles sú-
ditos que se recussassem a resistir junto aos éforas são tratados
por Althusius como desertores, sob o argumento de que todos
deveriam atuar contra um tirano da mesma forma em que se atua
quando o fogo ameça queimar a cidade, com todos carregando
água e escalando os muros até fazerem cessar as chamas61. O
problema da resistência era, portanto, não só um fundamento
para uma limitada noção de soberania popular, marcando também
o limite desta. Observe-se, aqui, que a resistência funciona à
maneira de uma razão de Estado, de modo que o problema da
resistência é, afinal, o problema da preservação do Estado face à
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tirania e à rivalidade. Ora, se o conceito de direito de resistência


cumpre a função de apontar um limite, antes da invenção da ideia
de constituição, para o exercício do poder político, este é um li-
mite que nada limita: é apenas uma ratio última. A afirmação da
resistência, neste quadro, apenas indica a possibilidade de que,
do outro lado da disputa, a violência possa ser praticada. Aparen-
temente, a invocação da resistência apontava para um mecanismo
de controle do poder político através do direito, ainda que este
fosse concebido como um direito anterior ao próprio direito, ou
seja, como direito natural. Mas a “natureza” do direito de resis-
tência fazia deste um limite que, por sua vez, era ilimitado. E isso
mesmo quando este se fundava na chamada soberania popular.
Contra o arbítrio dos soberanos injustos, procura-se concentrar
a soberania naquele que não pode praticá-la, a não ser sob deter-
minadas condições: o povo. Na verdade, as condições da pratica-
bilidade da resistência em Althusius não diferem muito daqueles
condicionamentos que Bodin havia interposto à sua noção de

61 “Move quickly against a tyrant as against a common fire, and eargerly


carry water, scale the walls, and confine the flame so that the entire com-
monwealth does not burn” (ALTHUSIUS, 1964: 188).

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soberania que, como adiante examinaremos, faz desta um poder
ainda mais ilimitado, visto que aqueles são limites exteriores:
direito natural, leis fundamentais, pactos e convenções do reino,
colére publique...
Assim, se o sucesso da fórmula da resistência nos séculos XVI
e XVII expressou as tentativas de se encontrar novos fundamen-
tos para a esfacelada ordem jurídica medieval, o conceito de re-
sistência acabou por se revelar pouco adequado à estabilidade que
a nova ordem requeria. É claro que, no contexto da passagem da
estratificação à forma moderna de diferenciação da sociedade, a
diferença entre direito e política poderia ser concebida apenas

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como resistência justificada (legítima) contra o exercício político


do poder (LUHMANN, 1993a: 407). Mas o tipo de controle que
se possibilitou através da disponibilização da resistência, no en-
tanto, ainda não se manifestava como mediação, como acopla-
mento estrutural, mas sim como “supremacia”, como superiori-
dade do direito em relação à política. Era uma forma de controle
que partia, ainda, da indistinção entre política e direito sob o véu
da moralidade e da religiosidade. Por isso, tanto quanto o concei-
to de razão de Estado, a invocação da resistência gerou exatamen-
te o contrário do que a palavra Status sempre sugerira, isto é, o
contrário da paz. No período em que mais se clamou pelo direito
de resistência, a Europa encontrou a mais longa e sangrenta das
guerras. Como afirma Luhmann, exatamente porque cada parte
poderia referir-se à própria razão natural, procurando por uma
fundação no material jurídico que, através da imprensa, fora
colocado à disposição de todos, poder-se-ia destruir o próprio
pressuposto do direito, isto é, a paz.
Se observarmos a fórmula direito de resistência, podemos ver
que essa formulação, em nome da preservação da paz (e, portan-
to, do Estado), paradoxalmente vai de encontro à própria neces-
sidade de garantia da paz, uma vez que a resistência implicava,
também, violência. A resistência, ponto em que se manifesta a

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supremacia do direito sobre a política, de modo paradoxal não
poderia ser juridicamente admitida62, visto que isso significaria
uma “exceção” que não pode ser aceita pelo direito. Se existe uma
instância capaz de dispor da vida, do corpo e da propriedade in-
dependentemente do direito, ainda que esta seja uma única
instância, isto significa que não há direito, diz Luhmann. Diante
do paradoxo do direito de resistência, a solução constitucional se
impôs como uma forma de fundar o arbítrio no direito sem que,
com isso, o direito degenerasse em puro arbítrio. Em autores como
Althusius essa solução já despontara, com a ênfase no contrato e
na necessidade de preservação dos pactos e das leis fundamentais
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como sinônimo de preservação do Estado, mas estes eram limites


que, dada a ausência da noção de diferenciação entre direito e
política, eram ainda inspirados em argumentações religiosas e
morais, não limitando, portanto, o próprio direito de resistência.
A fórmula da soberania popular enquanto sinônimo de “re-
sistência”, defendida por Mariana, Molina, Suàrez, Buchanan,
Althusius e outros, que a princípio parecia inspirar uma solução
de tipo constitucional, na verdade ainda não significava aquele
“novo entrelaçamento” de direito e política que, depois, o con-
ceito de constituição do século XVIII pretendeu expressar. Desta
forma, o paradoxo do direito de resistir, que em nome da paz
produz a violência, foi apenas neutralizado mediante a noção, já
moderna, de soberania popular.
O apelo à resistência emergiu relacionado com a afirmação
de uma limitada soberania popular, porque limitado é o sentido
da expressão “povo”, neste contexto em que ainda está ausente
a ideia de uma cidadania generalizada. A nobreza ainda é um

62 E, por isso, no período seguinte, o direito de resistência vai ser subs-


tituído pela noção de direitos subjetivos, de “liberdades” (no sentido
moderno do termo).

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valor, um bem do Estado, como vimos em Althusius. A estabili-
dade da ordem exigiu, como mais tarde se verificou, exatamente
a exclusão de toda possibilidade de resistência. Tal fato tornou-se
visível nos séculos seguintes, quando a tensão entre indiferença/
diferença de política e direito foi “resolvida” mediante a fundação
simultânea do direito e da política como soberania popular. É
assim que, curiosamente, o desenvolvimento das teses da sobe-
rania popular que, num primeiro momento, haviam servido de
fundamento para o direito de resistir, acabam por imunizar o
Estado face a qualquer resistência. Neste passo, a “soberania po-
pular” é não apenas sucedâneo, mas também o artifício elimina-

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dor do direito de resistência nas constituições. Onde a teoria da


resistência pretendia apontar um vértice jurídico-moral para re-
solver a tensão entre direito e política no tardo-medievo, o con-
ceito de soberania aponta para a simultânea supremacia de direi-
to e política. Quando são abandonadas as fundamentações de tipo
moral, a resistência manifesta-se como a noção “plena” de sobe-
rania popular, sobre a qual se assentam as modernas constituições.
As constituições tornaram-se possível, como mais adiante
descreveremos, apenas no contexto da diferenciação funcional.
Neste passo, sua invenção reflete a modernidade da diferenciação
de direito e política, estabelecendo outra solução para o problema
da unidade da diferença entre direito e política, com a qual já não
é mais compatível a supremacia do direito sobre a política na
forma do direito de resistência. Nos espaços da supremacia da
soberania popular, organizada constitucionalmente, já não há
lugar para o direito de resistir. Assim, paradoxalmente, quando
as constituições passam a desempenhar o papel de limitar juridi-
camente o exercício do poder político, acoplando um sistema ao
outro e afirmando solenemente o povo como titular da soberania,
resistência deixa de ser um direito. Ou seja: uma vez que a sobe-
rania popular é consagrada como princípio fundante dos moder-
nos Estados constitucionais, simultânea e paradoxalmente impe-

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de-se qualquer ulterior possibilidade de resistência. O povo
soberano, após ter-se constituído como povo mediante uma
Constituição, é posteriormente impedido de se manifestar. Muito
depois, quando os extremos da soberania manifestaram-se, já em
meados do século XX, é que novamente os caminhos da resistên-
cia foram invocados63. A experiência trágica da violência organi-
zada como Estado mostrou toda a fragilidade do arcabouço cons-
titucional, enquanto instrumento capaz de “legalizar” o arbítrio.
Mas até o século que terminou, a semântica da soberania erigiu-se
de forma absoluta, como capaz de elidir toda tensão entre direito
e política e neutralizando, portanto, a antiga disputa entre razão
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de Estado e direito de resistência. A evolução deste processo de


ocultação do paradoxo da unidade da diferença de direito e polí-
tica pode ser observada, como aqui já foi dito, através da trajetó-
ria dos conceitos (nem sempre divergentes) de soberania absolu-
ta e soberania popular.

2.3  Soberania como unidade da diferença de direito e


política: o direito visto como ordem do soberano e a
política como sinônimo de Estado
A ideia humanista de liberdade, pano de fundo das elaborações
teóricas que serviram tanto para a afirmação do poder dos prín-
cipes (razão de Estado) quanto para a afirmação do direito do
povo (direito de resistência), é um conceito que não se prestava

63 É assim que se diz que “il processo di formazione dello Stato sovra-
no d’età moderna sembrava poi aver completamente sospeso la vitalità
e la legittimità del diritto di resistenza con le sue pretese di stabilire
nuove categorie più adeguate alla realtà politica dei tempi. Che la pra-
ticabilità e la pensabilità del diritto dir esistenza non fossero, però, stati
completamente cancellati era stata la sorprendente scoperta derivante
dall’esperienza della resistenza tedesca del 20 luglio 1944” (DE BENE-
DICTIS, 2000: 19).

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a uma descrição do direito e da política modernos. Como vimos,
nem direito de resistência, de um lado, nem razão de Estado, de
outro, estavam em condições de garantir a unidade do sistema
jurídico e a moderna unidade do sistema político. Por um lado,
era possível afirmar a supremacia da política sobre o direito, ou
do direito sobre a política, apenas enquanto estes dois sistemas
não se diferenciavam. Por outro lado, com a afirmação de um
sistema em detrimento do outro, na forma da contraposição en-
tre direito de resistência e razão de Estado, não se podia garantir
a unidade de direito e política como uma diferença, única forma
de se vincular estes dois sistemas no contexto da modernidade da

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sociedade moderna. Assim, aquela semântica da soberania como


autonomia, isto é, como liberdade de uma instância dispor livre-
mente da outra, exaure-se na medida em que, em cada lado da
diferença entre direito e política, ocultada como “soberania”, o
paradoxo reaparece, geralmente na forma de violência e, portan-
to, de destruição do “Estado de paz”.
Não é, portanto, um acaso que a defesa tanto da resistência
quanto da razão de Estado foram se enredando de tal forma a
cederem espaço, cada vez mais, ao conceito – moderno – de so-
berania. O sucesso da fórmula da soberania reflete o fato de que,
na modernidade, as funções política e jurídica tenderam, progres-
sivamente, a se especificarem. Neste processo de especificação,
também chamado de diferenciação, as hierarquias entre os cha-
mados sistemas sociais (direito, política, família, religião, educação
etc.) foram estruturalmente abolidas, a ponto de toda hierarquia
poder ser (re)construída, apenas, internamente aos sistemas. No
contexto do sistema da educação, por exemplo, pôde permanecer
uma diferença de “graus”, conferidos através de diplomas. No
caso do sistema do direito e do sistema da política, as hierarquias
foram reconstruídas na forma da supremacia de uma multiplici-
dade de Estados, vistos de um lado enquanto organização políti-
ca e, de outro, enquanto ordenamento jurídico estatal. Mas a

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sociedade, como um todo, já não lança mão da noção de hierar-
quia: os sistemas sociais da sociedade moderna, funcionalmente
diferenciados, são sistemas heterárquicos.
É assim que a política moderna segmenta-se em organizações
políticas que ocupam, entre si, uma igual posição de supremacia.
Isso significa que os Estados, enquanto expressão da moderna
forma de organização da política, exigem concentração de poder,
ou seja, internamente exigem uma posição não apenas de auto-
nomia, mas também de supremacia. Mas em relação aos outros
Estados, não há supremacia, apenas igualdade, isto é, liberdade.
Os Estados consolidam-se como a forma de organização da polí-
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tica moderna, buscando resolver problemas relacionados às rela-


ções dos Estados entre si e, também, aos conflitos internos aos
Estados, sobretudo aqueles oriundos das disputas religiosas. Esses
problemas foram enfrentados, pelas doutrinas político-jurídicas
do alvorecer da modernidade, como problemas de fundo religio-
so e moral. Mas depois, visto que num mundo sem hierarquias
já não há mais lugar para soluções morais ou religiosas de pro-
blemas políticos e jurídicos, a discussão teológica e moral e a se-
mântica do direito divino e natural esmorecem como mera retó-
rica da legitimação. Assim, aquelas questões relativas à fundação
do domínio político e jurídico encontraram uma nova solução
num só fundamento, não mais religioso, mas propriamente polí-
tico-jurídico. Este novo fundamento numa sociedade em crise com
seus fundamentos, este vértice comum de direito e política numa
sociedade que já não tem vértices, foi descrito como “soberania”.
Soberania, então, já não é mero suporte moral e teológico
para o exercício da razão de Estado ou da resistência. Ainda que
o termo tivesse uma história que remonta ao século XIII, este
conceito revestiu-se, a partir do século XVI, de novos conteúdos
de sentido. Qual é a novidade deste moderno conceito de sobe-
rania? Ou melhor: qual é a novidade da sociedade moderna que,
com este conceito, se pretende descrever? Antes de responder a

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estas questões, retomemos brevemente a linha de argumentação
que desenvolvemos no primeiro capítulo, quando vimos que o
conceito pré-moderno de soberania não estava relacionado com
o problema da unidade do direito e da política. O problema que
este conceito vinha resolver, no período tardo-medieval, era o da
necessidade da fundação e delimitação da autonomia das várias
ordens jurídicas e políticas que então coexistiam, tendo como
pressuposto a situação de “indiferença” entre direito e política.
Essa autonomia, muitas vezes tratada como sinônimo de “liber-
dade” era referida ao exercício do domínio, portanto ligada à
noção de propriedade de terras e de um poder “relativo” (GIER-

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KE, 1914: 275) do senhor de terras de fazer “leis” válidas naque-


les territórios. Logo, se à indiferença medieval entre direito e
política não correspondia uma concepção unitária do próprio
direito e uma visão da política como unidade, assim também
soberania não era um conceito hábil a descrever as relações que
política e direito poderiam estabelecer entre si. Mesmo com a
ênfase que sempre fora posta nos pressupostos jurídicos da con-
vivência social na tradição do direito civil romano, naquele con-
texto permanecia excluída a ideia de uma unidade de direito e
política (LUHMANN, 1993a: 407). A política e o direito pré-mo-
dernos, ainda que fortemente atrelados à religião e à moral, eram
“livres”, um em relação ao outro.
O moderno conceito de soberania veio caracterizar, ao con-
trário, exatamente a unidade tipicamente moderna da política,
assim como veio indicar a unidade tipicamente moderna do sis-
tema do direito, como a unidade de ambos os sistemas no con-
texto da sua diferença. Neste quadro, não é apenas a política que
vai descrever-se como um sistema unitário, reconhecendo-se
como Estado; da mesma forma, o direito se enxerga como algo
distinto da religião ou da moral, observando-se como direito
“positivo” e não mais “natural”. Esta unidade da diferença entre
direito e política, que faz aparecer ambos os sistemas como sinô-

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nimos de “Estado”, vai poder ser descrita e, portanto, consolida-
da, apenas mediante a introdução do conceito de soberania64. A
unidade política na forma do Estado vai exigir, neste quadro em
que o direito natural oferece ainda suporte à noção de “contrato
social”, uma nova visibilidade do direito como unidade: soberania
significa, aqui, a supremacia do Estado que se manifesta como
supremacia do direito do Estado por sobre todos os direitos par-
ticulares. Com o surgimento do Estado, as decisões jurídicas
deixam de fundar-se no arbítrio – seja da religião, seja da moral,
passando a buscar fundamento numa ordem normativa que,
graças ao surgimento da imprensa, torna-se reconhecível, visível
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e, portanto, passível de ser “consentida”. O direito moderno uti-


liza-se das organizações estatais, com pretensões de se impor de
forma unitária sobre um território estatal e referindo suas decisões
a uma particular organização do Estado, os tribunais. Apenas
como sistema unitário, funcionalmente diferenciado, pôde o di-
reito entrelaçar-se deste modo com a política, de modo tal a
desta emprestar sua forma de coercibilidade.
Obviamente, essa visão do direito como “direito estatal” é uma
construção tipicamente moderna, que não pode deixar dúvidas
quanto ao fato de que, antes da invenção do Estado moderno,
houvesse direito. Quando o Estado moderno começa a se conso-
lidar politicamente, é certo que já havia direito: direito dos feudos,
direito romano, direito canônico, direito do império, direito local
(ius proprium) etc. Ou seja, mesmo na ausência do Estado como
unidade política e jurídica (e não como unidade da política e do
direito), já existia direito. A jurisprudência medieval, como vimos,
ao conceber o domínio como fundado na propriedade privada,
uma vez que não havia disponível um direito público, tratara as
funções públicas como objetos de propriedade privada. Depois,

64 A este respeito, v. LUHMANN & DE GIORGI, 1993: 290 e s.

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com a crescente concentração do poder, começou a se desenvol-
ver na filosofia política medieval a ideia de que todo poder públi-
co de nível inferior é uma mera delegação do poder soberano. As
teses da soberania popular e da plenitudo potestatis do príncipe no
final da Idade Média simplesmente atestavam essa tendência65.
E, se não existia um “direito público” que correspondesse ao
momento em que surge o Estado moderno, no século XVI também
não havia um conceito unitário de direito (dominium, imperium,
iurisdictio)66 que pudesse espelhar a desejada unidade do poder
territorial. Ocorre que a ideia de que o direito é um “instrumen-
to de governo”, da qual os romanos foram bastante conscientes67

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e que havia sido esquecida no período medieval, reapareceu


quando do surgimento do Estado moderno, inspirando a progres-
siva positivação do direito a que este dá curso68. Como observa

65 Conforme observa Gierke, “c’est là aussi que se transforma l’idée que


le Moyen Age s’était faite des fonctions publiques: on considéra désormais
qu’une de ces fonctions représentait simplemente la charge d’exercer le
pouvoir de l’État qui, par essence même, était unique et intransmissible;
et le terme de cette transformation fut de faire considérer chaque fonc-
tionnaire comme l’instrument librement choisi de la volonté souveraine”
(GIERKE, 1914: 274).
66 A este respeito, ver WYDUCKEL, Dieter. Ius Publicum: Grundlagen und
Entwicklung des Öffentlichen Rechts und der deutschen Staatsrechtswissenschaft.
Berlin: Duncker & Humblot, 1984.
67 Observa Ullmann que “the Roman commonwealth were upon a final
analysis based on the ius publicum”, sendo isto particularmente visível
no período do Imperador Constantino: “In his function as sole emperor
he had quite evidently at his disposal the interpretation, manipulation,
application and modification of the ius publicum , and since the Christian
body had sacerdotes as administrators of the sacra, the emperor in his
governmental capacity clearly had the right to exercise jurisdiction over
them (…)” (ULLMANN, 1988: 38).
68 “Diante do rápido aumento da complexidade e da correlata incerteza
do direito, o Estado territorial da primeira época moderna considerava

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Walter Ullmann, o exercício do governo exige um direito através
do qual possa se efetivar69. À referência ao dominium, ao poder
exercido sobre um território, já presente no período medieval, foi
então somada a referência da ordem política e da estabilidade do
Estado ao território e ao direito ligado àquele território70. Assim,
surgiu um direito “público” que, pouco a pouco, se sobrepôs aos
vários direitos particulares, até o ponto em que o Estado acabou
por reivindicar a qualidade de estatal para todo o direito válido
em seu território71. As diferenças entre “ordenamentos” jurídicos
regionais começaram a ser mais evidentes, superando uma ho-
mogeneidade dada pelo velho direito comum europeu. Em alguns
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Estados verificou-se uma preferência pelo direito legislado, em


outros pelo direito dos professores, ou pelo direito dos juízes...

sua primeira tarefa a de reunificar o direito vigente no seu território, assim


como a organização da administração da justiça, conduzindo tal direito
sob um controle central e, consolidando, assim, a própria unidade estatal”
(LUHMANN, 1993a).
69 “(...) no government at any time could (and can) exist and function
without its being able to rely on public law as the vehicle through which
it could (and can) effectively direct, order and guide society under its
control” (ULLMANN, 1988: 37)
70 “A doutrina medieval do republicanismo cívico havia pensado de
forma pessoal e havia concebido o conjunto das pessoas a partir do direi-
to; isto é substituído agora pelo Estado territorial, o qual refere a ordem
e a irritabilidade política ao seu território estatal, com o impor-se de dis-
tinções como governante/governado e entre poder do Estado e território
do Estado, portanto, de uma perspectiva dotada de sensibilidade especi-
ficamente política. Deste modo, paz e justiça, paz e ordem, tornam-se fins
do Estado e a política é feita com apelo a estes fins” (LUHMANN, 1993:
411).
71 Esta situação é espelhada no desenvolvimento da ciência jurídica, que
adquire novas características. Sobre este desenvolvimento, v. ORESTANO,
Ricardo. Introduzione allo studio storico del diritto romano. Torino: Giappichel-
li, 1963.

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É assim que, desde o início, em nome da preservação da paz
e da justiça, o caráter unitário do Estado moderno manifestou-se
como a concentração, no vértice da política, de uma série de di-
reitos: o direito de taxar72, o direito de legislar, o direito de admi-
nistrar justiça e de dar investidura aos magistrados, pelo estabe-
lecimento de prerrogativas do rei (ou seja, direitos subjetivos que
pertencem apenas ao soberano enquanto tal). Este vértice políti-
co que pretendeu concentrar em si todos os direitos foi apontado
como “soberano”, e a qualidade que fez deste o ponto de concen-
tração do poder foi chamada de soberania. O Estado moderno
praticou seu poder soberano, em primeiro lugar, através da legis-

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lação, iniciando-se uma evolução (usualmente conhecida sob o


rótulo “positivação”) que conduziu séculos depois à compreensão
do direito como necessariamente legislado. Esse processo foi de-
flagrado, a partir do século XV, na maior parte da Europa ociden-
tal, quando as autoridades políticas ordenaram a redação dos
costumes. Ainda que naquele momento a doutrina afirmasse que
le Roi est Empereur en son Royaume, segundo a interpretação desta
máxima o rei não tinha poderes para modificar a obra do povo
– o costume. Progressivamente, ao rei não apenas foi consentido
alterar os costumes, como também este direito transformou-se
em poder de fazer leis, afirmando-se o rei como roi-législateur.
Depois, para além da legislação, o Estado buscará a sua unidade,
também, no nível da adjudicação. Já em Beaumanoir isso estava
implícito: ele não apenas assenta a noção de que o rei é legislador
em seus domínios como também afirma que “o rei deve observar

72 “E questo un diritto che molti contestano, opponendogli l’antico


principio che ogni sussidio há il carattere di un accordo tra i gruppi che
lo pagheranno e il sovrano che lo riceverà. Principio antico, principio
sorpassato. Il sovrano afferema il suo diritto di tassare. Ed è uma conquis-
ta definitiva, di cui beneficerà, a suo tempo, il sovrano democratico”
(JOUVENEL, 1971: 234).

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e fazer observar os costumes” (SUEUR, 1989: 40). O rei é, então,
considerado não apenas o guardião dos costumes, mas também
source de toute justice, garante do bom funcionamento do sistema
jurisdicional.
A partir da segunda metade do século XVI, a visão da sobera-
nia como solução para problemas “internos” passou a ocupar o
centro das discussões, dada a necessidade de se firmar a autori-
dade do monarca diante do exercício do direito de resistência,
visando à preservação da paz73. Neste período, o conceito nutriu-
-se das disputas religiosas e de suas construções correlatas, a
noção de resistência e razão de Estado. Soberania deixa de signi-
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ficar apenas uma posição do Estado em relação à ordem mundial,


ou seja, a relativa autonomia do Estado em relação aos outros
Estados também soberanos74 e, “a partir da segunda metade do

73 Um exemplo desta “construção da soberania” é trazido por Bertrand


de Jouvenel: “La costruzione della sovranità come un diritto di comando
concentrato, si nota in certe trasformazioni del diritto civile. Nel corso del
Medioevo, il suddito di un signore che uccideva il suo’sovrano’ si rende-
va colpevole bem più di un omicidio, di un ‘tradimento’ (petty treason),
Quando vediamo scomparire questa nozione di petty treason, e quando
il tradimento è riferibile solo nei confronti del re, allora la sovranità sarà
monopolizzata” (JOUVENEL, 1971: 221).
74 “Gli storici del diritto internazionale ne fanno risalire le prime formu-
lazioni, unitamente alla nascita del diritto internazionale moderno e ben
prima delle dottrine della sovranità di Bodin e di Hobbes, ai teologi spa-
nogli del XVI secolo: innanzitutto a Francisco de Vitoria, poi a Gabriel
Vazquez de Menchaca, a Balthazar de Ayala e a Francisco Suarez, che
anticiparono la rifelssione piú tarda di Ugo Grozio” (FERRAJOLI, 1997:
11). O emprego do termo em seu sentido moderno primeiro na discussão
do Direito das Gentes faz pensar numa espécie de translação do conceito
de soberania medieval para o contexto internacional, em que os Estados
são considerados “igualmente soberanos”, isto é, autônomos. Sobre o
desenvolvimento do Direito das Gentes com base no pressuposto da so-
berania estatal trataremos mais adiante.

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século XVI, soberania significa sobretudo controle politicamente
centralizado da jurisdição, com o dissolvimento das jurisdições
dos proprietários de terras, da Igreja, das corporações fundadas
sobre seu direito próprio” (LUHMANN, 1993: 410). Portanto,
embora apenas bem mais tarde os Estados tenham conhecido a
realidade da unidade do ordenamento jurídico estatal (para a qual
foram necessários as constituições e os códigos), ao final do sécu-
lo XVI a ideia de um direito comum costumeiro já era bastante
difundida, tornando-se evidente uma tendência à unificação do
direito e abrindo-se, desta forma, estrada para a definição do di-
reito como uma “ordem do soberano”.

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A noção de soberania afirma o caráter absoluto e de exclusi-


vidade do direito e do poder estatal. Mas isso em um contexto em
que, “desencantada” da religião75, a sociedade não conhece mais
um vértice76. Esta aporia leva Ferrajoli a concluir que a soberania
moderna é, na verdade, um traço de pré-modernidade, é “um
resíduo pré-moderno que está na origem da modernidade jurídi-
ca e, ao mesmo tempo, com esta virtualmente em contraste”
(FERRAJOLI, 1997: 8). De fato, a sociedade moderna já não co-
nhece a hierarquia tipicamente medieval, cujo vértice se encon-
trava na religião. É realmente contrastante com a modernidade
da sociedade moderna a formulação de um conceito que busque
apontar um vértice onde a estratificação fora, progressivamente,
ruindo. E, como vimos, a soberania medieval curiosamente não
tinha por função apontar um vértice para uma sociedade que, no
entanto, já dispunha de um vértice. A função da soberania me-
dieval era outra, enquanto esta era fundadora de uma posição de

75 O conceito de “desencantamento”é utilizado aqui no sentido de Max


Weber (Cfr. WEBER, 1992).
76 No sentido da Teoria della Società de Niklas Luhmann e Raffaele De
Giorgi.

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autonomia do sujeito soberano. Autonomia esta que, como vimos,
era relativa, dado o princípio estratificatório. A sociedade moder-
na abandona aquele princípio estruturante na medida em que
passa a caracterizar-se por ser funcionalmente diferenciada, isto
é, por estabelecer diferenças internas apenas em relação à função
cumprida pelos sistemas sociais. E esta diferenciação funcional,
como vimos, implicou exatamente a renúncia às estratificações,
às diferenças hierarquizadas e “hierarquizantes”77. Uma vez que a
religião não funcionava mais como princípio ordenador da socie-
dade “universal” medieval, nas teorias o lugar vazio do vértice
foi, num contexto que não comporta mais ideias desse tipo, “ocu-
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pado” ora pela política, ora pela economia e, mais recentemente,


por uma preponderância do direito. Em um primeiro momento,
antes que se pense em Economia Política, política e direito alter-
nar-se-ão na posição de primazia na sociedade, de “guia” da so-
ciedade.
O contraste a que se referira Ferrajoli vai manifestar-se exa-
tamente no antagonismo, ou na tensão, existente entre direito e
política, tal como este (re)aparece sobretudo na primeira época
moderna, embora este seja um problema ainda hoje não resolvi-
do. Como vimos, naquele período razão de Estado e direito de
resistência são princípios que traduzem ora a supremacia da po-
lítica, ora a supremacia do direito: essas duas soluções, no entan-
to, eram precárias, de forma que a distinção dos dois sistemas
sempre acabava por manifestar-se novamente, quase sempre de
maneira violenta. A tensão entre indiferença e diferenciação de
direito e política é, portanto, propulsora da formulação do con-
ceito de soberania, na medida em que a introdução do vértice da
soberania busca resolver este antagonismo com base em um

77 Discutiremos essa visão da modernidade como “diferenciação funcio-


nal”, em oposição às difundidas teses da secularização, no Capítulo 4.

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fundamento comum ao direito e à política. Ao mesmo tempo,
essa diferença manifestar-se-á, desde então, como o limite da
soberania. De um lado, o antagonismo é aparentemente resolvi-
do mediante a artificialidade da tese da unidade jusnaturalista
entre direito e política através do vértice da soberania. Mas, de
outro, a artificialidade desta solução não resolve o antagonismo,
que vem a ser um paradoxo78. Primeiro, porque não se pode in-
troduzir um vértice em uma sociedade que não pode mais ser
representada, em sua totalidade, nem através do sistema da po-
lítica nem através do sistema do direito. Depois, porque não se
pode afirmar simultaneamente uma supremacia do direito e da

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política, salvo se estes fossem um só sistema – o que correspon-


deria a afirmar que, se tudo é política, não há direito ou que, se
tudo é direito, não há política. Como a seguir descreveremos, este
antagonismo, esta tensão entre diferenciação e indiferença de
política e direito, irá (re)aparecer em todos os momentos da his-
tória semântica do conceito de soberania e, portanto, já nas ori-
gens da formulação moderna deste conceito.
Soberania é um conceito, portanto, que em sua origem mo-
derna já revela o entrelaçamento de direito e política. Diferen-
temente da soberania medieval, a soberania moderna construiu-
-se como um conceito político e jurídico a um só tempo: “O
conceito de soberania ou de ‘poder’ soberano (potestas) assina-
lava o fato de que estavam em jogo dois conceitos de poder
(político) muito diferentes, precisamente a ideia de uma capa-
cidade generalizada de se obter obediência aos comandos e a
ideia de um poder jurídico reconhecível no fato de que o poder

78 Paradoxo é uma figura da lógica clássica. No desenvolvimento desta


obra utilizamos a ideia de paradoxo constitutivo, elaborada por Luhmann.
Veja, a esse respeito, entre outras obras, Essays on self-reference (LUHMANN,
1990). O tema paradoxos será analisado detidamente no Capítulo 4.

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se apresentava e era imposto na forma do direito, portanto,
sempre de forma já especificada” (LUHMANN, 1993: 410). Poder
político e poder jurídico, administração e jurisdição, finalmente
fundiam-se na noção de Estado, sendo simultaneamente fun-
damentados mediante a noção de soberania. Essa concepção de
um poder absoluto, pois que concentra em si administração,
jurisdição e legislação, até o século XVI não existia na França.
A solução, então, além daquela da unidade de direito e política,
foi a de fundar a validade do direito no poder imposto politica-
mente que, para fins jurídicos, recebeu o nome de autorictas,
solução que foi apontada, ao longo dos séculos XVI e XVII, na
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França por autores como Hôspital, Bodin e Loyseau e, na Ingla-


terra, por Hobbes. Como fundamento do próprio direito, a so-
berania é vista como absoluta, isto é, como ilimitada. Aqui, a
tensão entre direito e política resolve-se pelo lado da política,
quando o soberano é visto como “juridicamente ilimitado”. Sob
o manto de uma concepção absoluta de soberania, o direito
coloca-se inteiramente à disposição da política, na mesma me-
dida em que esta desfruta infinitamente da possibilidade de
utilização do direito como instrumento de governo. Com esta
fórmula, afirmou-se que tanto a política quanto o direito en-
contram um só fundamento: a vontade do soberano.
A dualidade sempre presente na noção de soberania não de-
corre apenas do fato que com este conceito pretendeu-se apontar
um vértice para uma sociedade que havia renunciado à hierarquia
como seu princípio estruturante. O conceito é ambíguo também
na medida em que, ao se referir a diferentes problemas sociais,
comporta duas significaçãoes que são não apenas diversas, mas
também antagônicas. Soberania, no sentido moderno, ao mesmo
tempo que consente a afirmação da unidade do Estado como
unidade do direito estatal enquanto direito soberano, externa-
mente e politicamente não indica superioridade ou supremacia,
mas sim a independência dos modernos Estados em face dos

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outros Estados79. Externamente, portanto, o conceito de soberania
faz referência a problemas políticos, isto é, aos problemas da po-
lítica que passou a organizar-se com base em Estados, diferen-
ciando-se internamente em segmentos iguais, aos quais corres-
pondem os Estados igualmente soberanos. Assim, antes que a
moderna noção de soberania fosse formulada, em Bodin e Hobbes,
para indicar a posição de supremacia em relação àquilo que é
interno ao Estado, a escolástica espanhola, que também se preo-
cupava com as disputas internas, já afirmara uma noção de sobe-
rania “externa”, na busca de oferecer um fundamento jurídico à
conquista do Novo Mundo all’indomani della sua scoperta (FERRA-

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JOLI, 1997: 12). Os escolásticos espanhóis construíram a ideia de


que a ordem mundial configurava-se numa sociedade natural de
Estados soberanos, a comunitas orbis. Esta comunidade mundial
fundava-se no ius communicationis, no direito de os homens se
moverem livremente de um lugar a outro80, de forma que a socia-
bilidade humana culminaria em uma sociedade universal de todos
os homens e nações. Todos os Estados, cristãos ou não (como os
do Novo Mundo), portariam igualmente esse direito. Vitória,
Suàrez e, mais adiante no século XVII, Hugo Grócio, teorizaram
a sujeição de todo o gênero humano ao ius gentium, sendo que,
para estes autores, todos os Estados são igualmente soberanos,
ainda que subordinados a um só Direito das Gentes81. Inaugurou-

79 Num sentido próximo àquele de “ autonomia” medieval.


80 De onde decorre, de acordo com Francisco de Vitoria, que “Los es-
pañoles tienem derecho de recorrer aquellas provincias y de permanecer
allí, sin que puedan prohibírselo los barbaros, pero sin daño alguno de
ellos” (VITORIA, De indis prior, apud BOTELLA, CAÑEQUE, GONZALO,
1994: 150).
81 O que não significa que, já àquela época, alguns Estados fossem mais
soberanos que outros, como se vê num trecho de Vitoria. O autor afirma
que o direito das gentes, que é direito natural, prescreve que os espanhóis

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-se assim a tradição do Direito Internacional, possibilitada graças
à assunção do princípio da soberania como estruturante de uma
política segmentária: segmentada em Estados, todos igualmente
soberanos. No contexto da diferenciação segmentária interna ao
sistema da política, em que os Estados ocupam posições iguais,
esse Direito dos Povos (Volksrecht) foi concebido como direito de
“coordenação” das relações entre estes82.
Na construção de nossa hipótese da evolução do conceito de
soberania como um paradoxo das modernas teorias jurídicas e
políticas, veremos como a diferença entre direito e política, ocul-
tada sob o manto da soberania, acaba por reaparecer, tanto em
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podem navegar pelo Novo Mundo, sendo livres para comerciar com os
bárbaros. Estes últimos, por sua vez, não podem proibir aos espanhóis de
realizar seu comércio, ao passo que estes o podem fazer em relação a
outros povos cristãos: “Los principes están obligados por derecho natural
a amar a los españoles; luego no les es lícito, si puede hacerse sin el pro-
prio daño, prohibirles sin causa alguna disfrute de bienes de aquellas
regiones. (...) Porque parece que obráran contra aquel proverbio que dice:
‘no hagas a otro lo que quieres que no te hagan a ti’. Y en suma es cierto
que no pueden los barbaros prohibir a los españoles su comercio, más que
los cristianos lo puedan prohibir a otros cristianos” (BOTELLA, CAÑEQUE,
GONZALO, 1994: 152).
82 A doutrina escolástica, ao mesmo tempo, antecipou aquelas teses
contratualistas que nos séculos posteriores encontraram sua fortuna, já
naquele período também defendidas pelos monarcômacos franceses e
pelos protestantes da Inglaterra e Escócia, sob a inspiração do direito
germânico. Assim, em Francisco de Vitoria, a exemplo de outros jesuítas
espanhóis, como Suàrez e Molina, estão presentes tanto teses contratua-
listas quanto teses “constitucionalistas”: o poder é confiado ao rei pela
República da comunidade, e o rei, ainda que possua a faculdade de fazer
as leis, encontra-se vinculado por suas próprias leis: “como nos pactos;
cada um é livre para estipular um pacto, mas depois deve respeitar-se
aquilo que foi pactuado” (VITORIA, Relectio de potestate civili apud
FASSÒ, 1982: 59).

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uma como em outra vertente da soberania. “Razão de Estado” e
“direito de resistência” são construções que, latentes, acabam por
reentrar83 na semântica da soberania: no lado da soberania abso-
luta, que vem significar a vitória da razão de Estado, os autores
irão admitir um, ainda que limitado, “direito de resistência” (Bo-
din, Hobbes), ao passo que, da perspectiva do reconhecimento da
soberania popular, a “razão de Estado” exige uma rejeição da
própria noção de resistência (Pufendorf, Rousseau).

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83 Utilizamos, aqui, a noção de “re-entry” oferecida pela teoria dos sis-


temas.

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3 A tese da soberania absoluta: a coroa e
o círculo perfeito da soberania

3.1  A construção da tese da soberania absoluta


A soberania moderna despontou, primeiramente, em sua
formulação absolutista. No vértice da “soberania” concentraram-
se legislação, administração, jurisdição, ou seja, concentraram-se
direito e política. Pode-se dizer que o conceito de soberania ab-
soluta exprimiu o ponto máximo do poder, quando este se ma-
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nifestou como o direito que o soberano tem de “ser” o direito.


Sobre a soberania Le Bret chega mesmo a dizer, numa formulação
de gosto duvidoso – mas perfeitamente de acordo com o espírito
de sua época – que “de sa nature elle soit à la Royauté ce que la lumie-
re est au Soleil, & sa compagne inseparable” (LE BRET, 1635: 4-5).
Daí que a passagem para uma identificação da qualidade da so-
berania com a pessoa do soberano, denominado “rei-sol”, apenas
representa a concepção absolutista de soberania como uma con-
cepção extremamente personalista, voluntarista, tanto da políti-
ca quanto do direito.
De acordo com este conceito de soberania, a validade jurídica
funda-se no poder imposto politicamente. Esta ideia tem suas
raízes já na discussão medieval, em diferentes contextos e tradi-
ções jurídico-políticas1, e é um indício, junto com o aparecimen-
to do termo jus positivum, “de uma pretensão de poder de um novo
tipo, baseado na legislação e numa relação racional com o direito”
(STOLLEIS, 1998: 142). A noção do poder de fazer e anular leis

1 Para uma reconstrução destes vários percursos teóricos, v. MOH-


NHAUPT, Heinz. “Potestas legislatoria und Gesetzbegriff im Ancien Régi-
me“. In: Ius Communi, 4 (1972), p. 188-239.

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como uma prerrogativa real – uma regalia – consolidou-se no
século XVI e foi cultivada por todo os seiscentos, aparecendo nos
textos de Suàrez, Le Bret, D’Orléans, Ziegler, Barclay e, claro,
Bodin, Grócio e Hobbes2. A prerrogativa de fazer leis incluía tam-
bém a faculdade de corrigir e interpretar as leis, e os testemunhos
nesta direção se repetem nos autores daquele período. Veja-se,
por exemplo, Miguel de Hôspital (1507-1573), quando este indi-
ca o vértice da política e do direito na figura do rei legislador que,
como tal, não apenas legisla mas também administra a justiça,
respondendo à “necessidade de que as leis sejam superiores aos
juízes, e não os juízes à lei”. Em todos estes autores, a função

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legislativa é vista como prerrogativa exclusiva do rei, estando


subtraída aos parlamentos (que naquela época eram cortes judi-
ciais). Da mesma forma, é indicada também como uma prerro-
gativa real aquela de interpretar as leis nos casos duvidosos ou
difíceis3. Nesta direção D’Orléans, em 1584, defende a posição do
rei como fonte de toda justiça, ainda que a administração da jus-
tiça propriamente dita se desse no Parlamento, “car la Justice est
le manteau Royal des Rois” (D’ORLEANS, 1620: 34).

2 É de Hobbes a assertiva, no Leviathan, de que “the souveraign is the


sole Legislator. For the same reason, none can abrogate a Law made, but
the Souveraign … the Interpretation of all Laws dependeth on the Au-
thority Souveraign” (HOBBES, 1651).
3 “Il n’appartient aussi qu’aux Princes d’ expliquer le sens des Loix, &
de leur donner telle interpretation qu’ils veulent, lors qu’il arrive des
differents sur la signification des termes“ (LE BRET, 1635: 33). Esta era
uma prerrogativa real garantida pelos ordenamentos, como atesta a Nue-
va Recopilación espanhola do ano de 1567: “I mandamos, que quando
quier que alcuna duda ocurriere en la interpretacíon, i declaracion de las
dichas leyes de Ordenamientos, i Pragmaticas, i Fueros, ò de las Partidas,
que en tal caso recurran à Nos, i à los Reyes, que de Nos vinieren para la
interpretacion dellas; porque Nos, vistas las dichas dudas, declarèmos, i
interpretarémos las dichas leyes...” (cf. MOHNHAUPT, 1972: 221).

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Os autores deste período, de certa forma, dialogavam com
Jean Bodin (1529/30-1596), que ao longo dos séculos permane-
ceu sendo a referência para a conceitualização da moderna sobe-
rania como um conceito a um só tempo político e jurídico, cujo
cerne encontra-se no fato de que esta é poder jurídico ou, ainda,
um direito político, de fazer e anular leis. Em Bodin as discussões
dos séculos XV e XVI, entre razão de Estado e resistência, se con-
densam e se superam na solução inovadora de concentrar direito
e política no vértice da soberania. Assim é que, no célebre Les Six
Livres de la République, Bodin definiu a soberania como “o poder
absoluto e perpétuo de uma República”, invocando que “a pri-
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meira marca do príncipe soberano é o poder de dar lei a todos em


geral e à alguns em particular”, o que significava que o rei tinha
a faculdade de “cassar, ou mudar, ou corrigir as leis segundo as
exigências dos casos, dos tempos e das pessoas” (BODIN, 1578:
87). Em 1567, essa é a primeira definição moderna da noção de
soberania4, pedra de toque dos tratados sobre a República de
Bodin. Com esta definição, desponta uma nova concepção da lei,
em que esta é vista como uma ordem do soberano, ou seja, como
norma cuja validade não é uma decorrência da verdade ou da
autoridade do conteúdo, mas sim da vontade do rei5. Desponta,

4 Ennio Cortese diverge, tanto quanto Calasso, dessa afirmação. Para


Cortese, a definição de soberania como “summa legibusque soluta potes-
tas” não contém nada de novo: “d’altra parte il pensiero del francese,
malgrado le sue moderne propensione umanistiche, si discosta poco da
quello dei commentatori medievali nella scelta delle fonti giustinianee e,
tutto compreso, anche nei risultati della loro analisi” iv. verbete “Sovra-
nità”, Enciclopaedia del diritto, p. 221.
5 “Le espressioni leges condere, leges dare e leges iubere vengono usa-
te come sinonimi; la legge è infatti ordine sovrano che riceve la propria
validità non dalla verità o dalla autorevolezza del contenuto, bensì dalla
volontà del re: ‘Est enim lex nihil aliud quam summae potestatis iussum’

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simultaneamente, uma particular compreensão da política en-
quanto uma específica organização, a República ou o Estado, cuja
novidade consiste no fato de que essa não pode prescindir da lei
que, por sua vez, ela mesma produz.
Descrever o passo que Bodin dá na direção da moderna com-
preensão do poder e do direito requer um conhecimento, portan-
to, dos conceitos que a um só tempo forjam e são construídos
através da noção de soberania. O primeiro destes é, precisamen-
te, o conceito de Estado, ou “República”. O que Bodin entende
por República? Paradoxalmente, se a soberania foi definida como
o poder absoluto e perpétuo de uma República, esta por sua vez

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definiu-se tendo em vista a própria noção de soberania. Repúbli-


ca, escreve Bodin, é um reto governo de várias famílias e daqui-
lo que estas têm em comum, com poder soberano: “Un droit
gouvernement de plusieurs mesnages, & de ce qui leur est commun, auec
puissance souueraine” (BODIN, 1578: 1). O elemento “poder sobe-
rano” é a nota distintiva da República face às outras formas de
associação, como a família e os bandos de ladrões ou piratas.
Enquanto governo soberano, esclarece Bodin, a República distin-
gue-se da administração doméstica, governo de várias pessoas e
daquilo que lhes pertence, sob o comando do chefe da família. A
República é diversa da associação familiar porque significa o reto
governo de várias famílias e daquilo que lhes é comum (o que
pressupõe a separação e “distinção” dos bens) sob um poder so-
berano, ao passo que a família é o governo de várias pessoas, “e
do que lhes é próprio”, sob o comando do chefe de família. Con-
temporaneamente, a República é soberana, e aqui reside a nota
diferenciadora, por ser um “reto governo”, o que significa que,
enquanto mantida por princípios de justiça, ou seja, enquanto

ovvero – secondo la tradizionale dicitura usata più tardi da Coring – ‘ma-


jestas est causa efficiens legum’” (STOLLEIS, 1998: 140).

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associação bien fondée, esta se diferencia dos bandos de piratas e
ladrões6. Isto significa que, diferentemente daqueles outros tipos
de associações, a República encontra no direito um fundamento
que lhe confere reconhecimento e, portanto, legitimidade. É pre-
cisamente a noção de soberania que aponta para esta diferença.
O elemento novo e tipicamente moderno do conceito de Es-
tado (República) trazido por Bodin encontra-se, portanto, no
conceito de soberania ou, mais precisamente, na identificação do
poder com o direito através do vértice da soberania. É assim que
a novidade da soberania moderna manifesta-se como a invenção
de um fundamento a um só tempo jurídico e político para o di-
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reito e para o poder. Neste sentido, o Estado absoluto delineado


por Bodin é, também, “Estado de direito”7. Soberania, como

6 “Nous auons dit en premier lieu, droit gouuernement, pour la diffe-


rence qu’il y a entre les Republiques, & les troupes des voleurs & pirates,
auec lefquels on ne doibt auoir part, ny commerce, ny alliance: comme
il a toufiours efté gardé em toute Republique bien ordonnee, quand il a
efté queftion de donner foy,traitter la paix, denoncer la guerre, ccorder
ligues offenfies,ou defefiues, bourne les frontieres, & decider les differens
entre les princes & feigneurs fouuerains, on a jamais compris les vouleurs,
ny leur fuitte: fipeut eftre cela ne s’eft fait par neceffité forcee, qui n’ft
point fugete à la difcretion des loix humaines, lefquelles que toufiours
feparé les brigans & corfaires d’auec ceux que nous disonsdroits ennemis
en fait de guerre: qui maintiennent leus eftats e Republiques par voye de
iuftice, de laquelle les brigans & corfaires cherchent l’euerfion & ruine”
(BODIN, 1578: 1-2).
7 Aqui não utilizamos a expressão no sentido em que esta é empregada
a partir do século XIX. Nos quinhentos, obviamente, ainda se está longe
de uma ideia de “Estado de Direito”, no sentido de que não se apresenta,
ainda, a noção de que o poder possa encontrar uma vinculação especifi-
camente jurídica, e não mais natural ou divina. Mas é certo também que,
naquele período, já se vislumbrava o direito como produto da atividade
estatal e o Estado, portanto, como uma organização que não pode pres-
cindir do direito.

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poder “juridicizado” é, como vimos, sobretudo aquele poder de
fazer e anular leis. Aquela primeira qualidade da soberania, como
descreveu Bodin, veio marcar exatamente a passagem de uma
concepção do soberano como “senhor de terras” para uma visão
deste como o “senhor da lei”. E isto porque as faculdades do po-
der soberano estão compreendidas naquela de legislar e anular
leis: “Sob esse mesmo poder de fazer e anular as leis estão com-
preendidos todos os outros direitos e traços da soberania: de
forma que, propriamente dizendo, podemos afirmar que esta é a
única característica da soberania, pois todos os outros direitos
estão compreendidos naquele”8. Ao mesmo tempo, a lei é defini-

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da em termos positivistas como a manifestação da vontade do


soberano: ela nada mais é que o mandato do soberano9. Sobera-
nia é, neste passo, o fundamento do poder de fazer leis que, por
sua vez, nada mais são que os commands (para usar a expressão
de Hobbes) do soberano.

8 O trecho original merece reprodução integral: “Sus efte mefme puif-


fance de donner & caffer la loy, font compris tous les autres droits &
marques de fouuraineté: de forte qu’aparler proprement on peuft dire
qu’i n’y a que cefte feule marque de fouueraineté, atténdu que tous les
autres droits font compris en ceftui-à: comme decerner la guerre, ou
faire de la paix: coignoiftre en dernier effort des iugement de tous magisf-
trats, inftituer & deftituer les plus grans officiers: impofer ou exempter les
fugets de charges & fubflides: octroyer graces & difpenfes contre la rigueur
de la loix: hauffer ou baiffer le titre, valeur & pied des monyoes: faire
iurer les fuiets & hommes liges de garder fidelité fans execption à celuy
auquel eft deu le ferment, qui font les vrayes marques de fouuueraineté,
comprifes fous la puiffance de donner la loy à tous en general,& a chacun
en particulier, & ne la receuoir que de Dieu”(BODIN, 1578: 165-166).
9 “C’eft pouquoi la loy dit, que le prince eft abfous e la puiffance des
loix: & ce mot de loy emporte auffi en Latin le commandement de celuy
qui a la fuueraineté” (BODIN, 1578: 96). Essa é uma concepção que,
depois, irá aparecer no Leviatã de Thomas Hobbes (1651) e que informa-
rá toda a tradição do positivismo jurídico.

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A explicação de Bodin para o fundamento do direito e do
poder, isto é, para o próprio significado da soberania, é tautoló-
gica e, portanto, nada ensina tanto sobre as características do
Estado quanto sobre as faculdades do poder soberano. Esta é uma
formulação circular: soberania é o poder supremo e perpétuo de
uma República; República é igual a soberania, que é igual a Re-
pública. A soberania é o início e o fim da República. Como Bodin
sai deste círculo? E, neste quadro, em que República=lei=sobera-
nia=República, como é possível garantir um governo do direito,
isto é, o reto governo? O círculo é interrompido, primeiro, através
da absolutização da noção de soberania. A tese da soberania como
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soberania absoluta é, neste sentido, uma derivação do fato de que


o Estado soberano tornou-se uma referência comum para o di-
reito e para a política. A concentração dos dois problemas numa
só solução, do fundamento dos dois sistemas num só vértice,
exige a supremacia de um sobre o outro. E, se a lei é a vontade
do soberano, ou seja, se a soberania é a fonte da lei10, o soberano
não pode estar sujeito à lei, a nenhuma lei, nem de um superior,
nem de um igual, nem de um inferior. Em outros termos, não
pode estar sujeito a nada que mereça, propriamente, ser chama-
do de “lei”, neste sentido moderno que Bodin empresta à expres-
são. Assim é que Bodin constrói sua tese da soberania como so-
berania absoluta: como qualidade do poder de dizer o direito, ou
seja, de fazer e anular leis, poder este que é próprio da República,
a soberania pode ser, apenas, absoluta. Ou seja, esta não é limi-
tada nem em poder, nem em reponsabilidade, nem no tempo.
A favor deste caráter absoluto da soberania, Bodin argumen-
ta que, se a lei é a materialização da vontade do soberano, não

10 Nesta perspectiva, para os medievais era mais simples pensar-se numa


soberania limitada, ou seja, no lugar da soberania como o lugar do legis-
lador enquanto “superior” – acima dele havia Deus.

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pode sobreviver a esta. Para Bodin, as leis, ordenanças e privilégios
instituídos por um príncipe têm força apenas enquanto dura a
vida deste, devendo ser confirmadas por seu sucessor. A conclu-
são a que chega Bodin é que um soberano está isento de cumprir
as leis que foram criadas por seu predecessor, tanto quanto é
impossível que este possa submeter-se às leis que ele mesmo criou.
“Se, portanto, o príncipe soberano está isento de cumprir as leis
de seus predecessores, muito menos deve ele ater-se às leis e
ordenanças por ele feitas: porque podemos receber lei de outrem,
mas é por natureza impossível dar lei a si mesmo” (BODIN, 1578:
96-97)11. Esta é uma impossibilidade lógica, que decorre do fato

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de que o poder soberano reside na faculdade de fazer e anular


leis a absoluta não sujeição do soberano, por sua vez, às leis,
tanto àquelas que ele mesmo criou como, também, àquelas cria-
das por outro soberano. Numa palavra: o soberano não pode a
um só tempo ser senhor e súdito da lei, não pode, como já se
afirmava anteriormente, estar acima e abaixo da lei12.
O argumento central, portanto, no qual se apoia a tese origi-
nária da soberania absoluta do poder estatal é o que esta pode ser
apenas absoluta, pois um poder não pode limitar a si mesmo – o

11 “Si donc le Prince fouuerain eft exempt des loix de fes predeceffeurs,
beaucoup moins feroit il tenu aux oix & ordennaces qu’I fait: car on peut
bien receuoir loy d’autruy, mais il eft impoffible par nature de fe donner
loy, non plus que comander à foy mefme chofe qui defpéde de fa volon-
té, come dit la loy, Nulla obligatio confitere poteft, quae à voluntate promitten-
tis ftatum capit: qui eft vne raifon neceffaire, qui moftre euidemment que
le Roy ne peut eftre sujet a fes loix.”
12 “il faut que ceux-là qui font fouuerains, ne foient aucunement fugets
aux comandements d’autruy, & qu’ils puiffent donner loix aux fuets, &
caffet ou aneantir les loix inutiles, pour en faires d’autres: ce que ne peut
faire celuy qui eft fuget aux loix, ou à ceux qui ont commandement fur
luy” (BODIN, 1578: 96).

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que seria paradoxal: “o papa não ata jamais suas próprias mãos,
dizem os canonistas: assim também o Príncipe soberano não pode
atar suas próprias mãos, ainda que seja esta sua vontade” (BODIN,
1578: 97). No entanto, uma análise atenta da forma como Bodin
desenvolve aquilo que para ele é o pressusposto da soberania – sua
ilimitação – pode revelar que o recurso ao argumento lógico não
encerra o problema. A soberania, que pode ser apenas absoluta,
isto é, ilimitada, depois apresenta-se em Bodin como “estranha-
mente” limitada: como um poder ilimitado que tudo pode, menos
limitar a si mesmo. Se não pode limitar a si mesma, a soberania é
um poder que manifesta-se, paradoxalmente, limitado.
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Para escapar do círculo da tautologia (República=sobera-


nia=lei=República), criado como estratégia de assimetrização de
outro paradoxo (o rei senhor e sujeito da lei), Bodin vai ao en-
contro, novamente, de um paradoxo: a soberania que é ilimitada,
mas que não o é, pois não pode limitar a si mesma. E mais: a
soberania é ilimitada, exatamente, porque é limitada. O que sig-
nifica que, apenas sob a condição da limitação o soberano pode-
ria apresentar-se como fundador da lei e, portanto, como o fun-
dador originário, isto é, supremo e ilimitado. O caráter ilimitado
da soberania em Bodin, como vimos, decorre exatamente da
exigência de que a República seja fundada nas leis, o que exige
limitação: desta forma, o círculo reentra no círculo como estraté-
gia de ocultação da circularidade. Assim, se o soberano (contra-
riamente à máxima enunciada por Bracton na tradição medieval
inglesa) não pode estar a um só tempo acima e abaixo da lei, o
problema de Bodin é indicar como é possível a garantia de que a
República seja um “reto governo” (o que, desde Cícero, na tradi-
ção do direito romano, é entendido como um governo das leis).
Como se resolveu este paradoxo no quadro da teoria da soberania
de Jean Bodin?
Em Bodin, é ainda o recurso ao Direito Natural que torna
possível a interrupção do paradoxo. O Direito Natural funciona

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como uma referência não só para a fundação do poder e do di-
reito na soberania – uma fundação da fundação, mas também
como limitação desta. Uma interpretação bastante interessante
deste passo é aquela de Stephen Holmes, para quem, em que pese
o caráter voluntarista de suas teses, Bodin introduz corretivos
“tranquilizadores”, de modo que a soberania acaba por ser “con-
dicionada, limitada, responsável e surpreendentemente vincula-
da” (HOLMES, 1998: 156). A hipótese que aqui iremos desenvol-
ver é diferente desta de Holmes, na medida em que para nós
estes não são propriamente corretivos “tranquilizadores”, mas são
corretivos às eventuais “imperfeições” da tese da soberania abso-

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luta, consistindo numa estratégia de ocultação do paradoxo da


unidade da diferença de direito e política enquanto sistemas
autopoiéticos, ou seja, sistemas que fundam a si próprios. O cír-
culo da soberania deve ser de tal forma perfeito que não seja
possível observá-lo em sua circularidade. Esta é interrompida por
estratégias que “assimetrizam” o paradoxo, interrompem o con-
tínuo reenviar de um lado ao outro: soberania=lei=soberania. A
estratégia “assimetrizante” de Bodin consiste, exatamente, na
introdução da distinção direito natural/direito positivo, que reen-
tra no quadro da afirmação de todo direito como sendo produto
de uma decisão soberana e, portanto, positivo. Soberania=lei
positiva=soberania: mas acima deste círculo e, portanto, fora dele,
paira o manto do Direito Natural, que pode ser introduzido a
qualquer tempo.
Isto significa que, ainda que uma concepção “positivista” do
direito claramente seja delineada na obra de Bodin, o quadro de
referência a que este apela, em última instância, permance sendo
o do Direito Natural. É ao Direito Natural que se faz recurso
quando a concepção absolutista de soberania, que viera exata-
mente buscar uma fundação não mais natural ou teológica para
o direito e para a política, revela-se, por sua, vez, paradoxal. A
diferença de Bodin em relação aos autores do Direito Natural que

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o precederam consiste, exatamente, no tratamento dispensado
ao Direito Natural como não sendo, por sua vez, sinônimo de
“lei”. Daí que se pode afirmar que o soberano, em Bodin, é senhor
da lei, mas não é senhor do direito13. O direito natural é um cor-
retivo não exatamente “tranquilizador”, é antes um pano de
fundo para a construção da tese de que todo direito é direito
positivo e, portanto, obra e produto da vontade do soberano.
Esta é uma posição que, no século seguinte, foi reforçada por
outro autor frequentemente associado às teses absolutistas: Tho-
mas Hobbes. Segundo Hobbes, o verdadeiro direito é o direito
positivo, por ele indicado como “Civil Law”, direito este que
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consiste num command do soberano. O direito natural, diz Hobbes,


não é propriamente lei, sendo que só após instituído o Estado este
se torna lei14. Tanto em Bodin quanto em Hobbes, o direito natu-
ral, enquanto tal, é um vínculo externo ao poder, já que não é
propriamente direito: este argumento, no entanto, permite que
se continue a afirmar que o direito que tem o soberano de co-
mandar o direito – fazendo leis – é ilimitado.
Em Bodin, como vimos, o ponto de partida é a distinção lei
natural/lei humana: o soberano é ilimitado e limitado ao mesmo

13 “Der Souverän ist Herr der Gesetze, nicht Herr des Rechts“ (QUA-
RITSCH, 1986: 53).
14 O trecho de Hobbes é bastante conhecido, mas merece ser reproduzi-
do: “The Law of Nature, and the Civill Law, contain each other, and are
of equall extent. For the Lawes of Nature, which consist in Equity, Justi-
ce, Gratutude, and other morall Vertues on these depending, in the con-
dition of meer Nature (as I have said before in the end of the 15th Chap-
ter,) are not properly Lawes, but qualities that dispose men to peace, and
to obedience. When a Common-wealth is once fettled, then are they
actually Lawes, and not before as being then the commands of the Com-
mon-wealth, and not therefore also Civil Lawes: For it is the Soveraign
Power that obliges men to obey then” (HOBBES, 1651: 138).

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tempo, ele está simultaneamente acima da lei (humana) e abaixo
da lei (natural). Assim, as únicas leis que o príncipe não pode
derrogar são as de Deus e as da Natureza, além de algumas leis
fundamentais (loix fondamentales) do Estado. Neste quadro, um
primeiro vínculo consiste, exatamente, nas leis divinas e naturais:
se é na vontade de Deus que se funda a abolutez do poder sobe-
rano, uma vez que é o direito divino e natural a prescrever a
obediência àquele15, não pode o poder soberano ser tal a poder
derrogar aquelas leis que estão na sua origem: “o poder soberano
absoluto dos príncipes e das senhorias não se estende apenas às
leis de Deus e da natureza” (BODIN, 1578: 97). Isto significa que

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o príncipe se deixa limitar, apenas, por aquilo em que a não limi-


tação de seu poder encontra fundamento. O que equivale a dizer:
o poder humano limitado unicamente pela vontade divina per-
manece sendo um poder ilimitado, e tanto mais ilimitado é quan-
to mais “se deixa” limitar16. A soberania absoluta, dessa forma,
não sofre as limitações por parte da lei divina; antes, faz da lei
(“humana”) um instrumento para ser exercida enquanto poder
absoluto. O segundo tipo de limitação que Bodin interpõe ao
poder pode ser chamada de “protoconstitucional”. A soberania é

15 “(...) car c’eft vne loy diuine & naturelle, d’obeïr aux edits & ordon-
naces de celuy à qui Dieu a dóné la puiffance fur nous: si les edits n’eftoient
directement contaires à la loy de Dieu, qui eft par deffus tous les princes”
(BODIN, 1578: 111).
16 “Certo Bodin non assegna a nessuna autorità terrena il compito di far
valere la legge divina e naturale su un sovrano regnante ma la sua affer-
mazione della soggezione totale dei principi sovrani a una leggi superior
è troppo netta e decisa per poter essere trattata come marginale o secon-
daria. Leggi di Dio e leggi della natura sono essenziale alla sua teoria
della sovranità politica. Ma quali sono le leggi della natura? Come le ri-
conosceremo? Che forza vincolante possiedono? E perché mai un princi-
pe privo di ogni legame e svincolato da ogni autorità superiore dovrebbe
accettare dei vincoli cosí fastidiosi?” (HOLMES, 1998: 156).

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limitada pelas chamadas loix fondamentales, leis fundamentais do
reino, que Bodin identifica como sendo a lei sálica, no caso do
reino da França. Loix fondamentales é uma expressão que surge,
pela primeira vez, no contexto do pensamento antimaquiavelis-
ta, contemporaneamente à teorização da soberania por Bodin.
Em 1576 Gentillet utiliza-se pela primeira vez do termo que, em
Bodin aparece como sendo leges imperii; e ambos os autores, Bodin
e Gentillet, utilizam-se do exemplo da Lex salica francesa17. As leis
fundamentais eram a constituição do Antigo Regime, o funda-
mento do contrato entre o soberano e os cetos, consistindo em
leis que regulavam matérias tidas como fundamentais para o
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reino; tais eram as leis que ordenavam a sucessão ao trono, as leis


internas da dinastia, as estipulações de paz18. Bodin aponta, como
“corretivo” de suas teses absolutistas, a vinculação do soberano
em face das leges imperii ou lois royales, leis de caráter constitucio-
nal inteiramente seculares. A princípio pode parecer, mais uma

17 Como observa Mohnhaupt, a noção de leis fundamentais difundiu-se


por toda a Europa como um importante elemento de limitação do poder
dos príncipes. Assim, enquanto na Alemanha falava-se em “Reichsgrund-
gesetze” e “Landsgrundgesetze”, em França utilizava-se a expressão “lois
fondamentales”, em Portugal “leis fundamentais” e “lex status fundamen-
talis”, na Espanha “leyes fundamentales”, “fundamental laws” na Ingla-
terra, “prawa kardinalne” na Polônia, “decreta regni” na Hungria, “Fun-
damental Lag” na Suécia etc. (MOHNHAUPT, 1972: 195-196).
18 “Anche in questo caso si tratta di una formula innovativa che si dif-
fondeva con la stessa velocitá e alla stessa maniera della ragion di stato, ed
è facile intuire i motivi della sua fortuna: le Leges fondamentales sono,
come è stato detto, le costituzione dell’Ancien Régime, la base del contrat-
to tra sovrano e ceti, in virtù del fatto che esse regolavano il punto debole
della monarchia, vale a dire la sucessione al trono, ed erano l’unico docu-
mento giuridico scritto – oltre ai patti e agli accordi stipulati secondo le
esigenze del momento – a vincolare il principe, il quale sotto ogni altro
aspetto può considerarsi legibus solutus “ (STOLLEIS, 1998: 151).

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vez, que toda a construção da tese da soberania absoluta foi co-
locada por terra, aproximando-se as teses de Bodin, aparente-
mente, daquelas dos monarcômacos franceses, que tanta ênfase
haviam colocado no caráter popular da soberania e na necessida-
de de que o governante, enquanto representante do povo, atuas-
se nos limites daquilo que ele havia estipulado com o povo,
através dos pactos e convenções. Tanto quanto no caso dos mo-
narcômacos, também para Bodin o fundamento do dever de
obediência do príncipe às leis encontrava-se nas promessas, pac-
tos e convenções do reino que estes confirmaram entre si. Em-
bora o soberano não pudesse ser obrigado por suas próprias leis

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ou por aquelas elaboradas por seus predecessores – o que é im-


possível “por natureza”, diz Bodin –, poderia ele se autovincular
tão somente por meio de promessas e pactos. Assim, se um prín-
cipe jurasse perante si mesmo observar suas próprias leis, disso
resultava que ele não estaria obrigado seja por estas, seja por seu
juramento. Diferente era o caso em que o príncipe soberano pro-
metia a outro príncipe guardar as leis promulgadas por ele mesmo
ou por seus predecessores: se o príncipe a quem ele deu sua pa-
lavra tivesse, no cumprimento dessa promessa, interesse, o sobe-
rano era então obrigado a cumpri-la; se, ao contrário, o príncipe
a quem se fez a promessa não tivesse interesse algum no seu
cumprimento, o soberano não estava obrigado. O mesmo vale
para a promessa feita pelo soberano ao seu súdito. Mas, como o
próprio autor dos Six Livres de la Republique ressalva, isto não sig-
nifica que o princípe sujeita-se às leis ou à vontade de seus súdi-
tos, mas sim que este se obriga por seus pactos e promessas
“justos” tanto quanto obrigar-se-ia um particular. Com base
neste recurso ao direito privado, o que já consiste numa perspec-
tiva não mais patrimonislista mas sim contratualista, Bodin con-
clui que um soberano pode liberar-se se suas promessas são in-
justas, não razoáveis, excessivamente gravosas ou prestadas
mediante dolo, fraude, erro ou coação, tanto quanto pode ser

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destituído, pelas mesmas causas, quando isto signifique uma di-
minuição de sua majestade.
A interpretação que os autores fazem desta “aporia” do reco-
nhecimento das leis fundamentais como vínculos ao poder em
Bodin é bastante diversificada. Para Michael Stolleis, a necessi-
dade de se sobrepor limites ao poder aumenta concomitantemen-
te com a concentração deste, sendo esta a única forma de se ga-
rantir um “equilíbrio” de toda a construção (STOLLEIS, 1998:
151). As leis fundamentais, juntamente com o direito divino e o
direito natural, formavam a base sobre a qual se apoiava o Esta-
do absolutista. Como disse Hobbes, se as leis fundamentais da
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Common-wealth são retiradas, esta desaba, assim como um edifício


desaba sem sua fundação19. Uma opinião diversa é aquela de
Stephen Holmes, que reforça as semelhanças da noção de lois
fondamentales com as ideias caracterizadamente constitucionalistas
dos séculos seguintes. A este propósito, aponta para o fato de que
a distinção que Bodin faz entre “leis que concernem à adminis-
tração ordinária do Estado” e “leis superiores atinentes ao próprio
regime” leva à consideração destas últimas como absolutamente
imutáveis, a exemplo que dirá, mais tarde, a doutrina constitu-
cionalista (HOLMES, 1998: 156).
Uma coisa parece-nos evidente: mesmo em Bodin (assim
como mais tarde em Hobbes ou Grócio), o príncipe está “sujeito”
às leis fundamentais de seu País. Resta-nos investigar o signifi-
cado desta “limitação” no quadro de uma teoria que alicerçava-
-se na plena ilimitação da noção de soberania, plenitudo potesta-
tis. O direito natural, examinado acima, significava um vínculo
sobretudo filosófico, ou seja, um vínculo sobretudo com a au-

19 “For a Fundamentall Law in every Common-wealth is that, which


being taken away, the Common-wealth faileth, and is utterly dissolved;
as a building whose Foundation is destroyed” (HOBBES, 1651: 150).

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tocompreensão tradicional do direito. Mas quando se fala em loix
fondamentales, ainda que este fosse também um motivo tradicional,
coloca-se em cena a noção de povo e de contrato. Como o prin-
cípio do pacta sunt servanda pode conviver com a tese da soberania
absoluta? Estamos de acordo com Holmes quando este observa
que os vínculos ao poder soberano admitidos por Bodin são, na
verdade, instrumentos da autoridade soberana. Holmes interpre-
ta isto, no entanto, num sentido de limitação do poder pelas leis
fundamentais, indicando que a tese central de Bodin consiste,
exatamente, na ideia de que “um poder limitado é mais forte que
um poder sem limites”20. Para Holmes, esta é uma ideia constitu-

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cionalista, que reflete o gosto que o autor dos Six Livres de la


République nutria pela figura dos paradoxos21. A conclusão de
Stephen Holmes é a de que, ao admitir as convenções e leis fun-
damentais como uma possível forma de autovinculação do sobe-
rano, Bodin dá uma guinada em direção à teoria liberal de uma
soberania limitada. Subvertendo tudo aquilo que sempre se falou
sobre Bodin e sua obra, para Holmes o maior legado do autos dos
Six livres consiste, exatamente, na delimitação dos limites ao poder
político, levada depois a cabo pela idade liberal e pelo moderno
constitucionalismo22.

20 “Un re non può governare in modo efficace se non in presenza di


congegni atti a ritardare la sua azione. O, per dire la stessa cosa in termi-
ni un po’diversi, in certe circostanze le rigidità legali e istituzionali gene-
rano flessibilità politica e sociale” (HOLMES, 1998: 160).
21 Holmes cita o “gosto pelo paradoxo”, presente na obra de Bodin, que
tinha prazer em “jogar com as palavras”, como no seguinte exemplo: “gli
abitanti di una terra pingue e fertile sono spesso effeminati e cordadi; al
contrario i terreni aridi temprano gli uomini com il pungolo della neces-
sità, rendendoli guardinghi, vigili e industriosi” (HOLMES, 1998: 152).
22 Neste sentido, Stephen Holmes afirma que Bodin prestou grande
contribuição ao liberalismo dos séculos seguintes: “il contributo fonda-

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Importante em nossa opinião é, diversamente, distinguir o
significado das “leis fundamentais” no quadro do Antigo Regime
daquele que tiveram as constituições no contexto da sociedade
que emergiu das Revoluções. A diferença parece-nos bem colo-
cada por Mohnhaupt, em direção semelhante àquela de Stolleis,
quando este anota que, se observarmos a função das chamadas
leis fundamentais no contexto do Antigo Regime, veremos que
estas não cumprem propriamente o papel de limitar o poder ab-
soluto do monarca23. Nesta linha de pensamento, chegamos à
conclusão de que Bodin não é um antecipador do moderno cons-
titucionalismo, mas um autor consciente do fato de que “menos
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poder”, sob o pano de fundo do Direito Natural e da noção de


necessidade a ele conexa, significa “mais poder”. Neste quadro,
as leis fundamentais constituem a base de uma arquitetura abso-
lutista do Estado, e não os limites propriamente jurídicos ao poder
político que se apresentam, a partir do século XVIII, sob o rótulo
“Constituição”. Diferentemente de Stephen Holmes, não achamos
que os “corretivos” ao caráter ilimitado da soberania colocados
por Bodin consistam, na verdade, numa limitação desta. A sobe-
rania permanece sendo ilimitada, exatamente porque é, curiosa-
mente, limitada.

mentale di Bodin al liberalismo, lungi da ridursi all’enfatizzazione del tema


della tolleranza, consiste nell’elaborazione e nella diffusione di un argo-
mento pratico a favore della determinazione di limiti costituzionali al
potere” (HOLMES, 1998: 148).
23 Mohnhaupt refere-se à posição de um autor do século XVIII, Claude
Mey, segundo o qual: “La loi fondamentale de l’état forme une liaison
réciproque et éternelle, entre le prince et ses descendants d’une part, et
les sujets et leur descendants de l’ autre, par une espece de contrat qui
destine le souverain à régner, et les peuples à obéir ; nulle des parties ne
peut seule, et quand il lui plaît, se délivrer d’un engagement solemnel
dans lequel ils se sont donnés les uns aux autres pour s’entr’aider mut-
tuellement“ (Cf. MOHNHAUPT, 1998: 147).

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Em outros termos, a própria condição da absolutez da sobera-
nia, em Bodin, é dada pelo fato de que esta é limitada: o poder
soberano é ilimitado “porque” limitado. O paradoxo, aqui, não é
uma impossibilidade lógica, mas é constitutivo da forma como di-
reito e política encontram sua unidade sob o manto da noção de
soberania absoluta. Portanto, a formação paradoxal da tese da so-
berania absoluta, em Bodin, não é um mero reflexo do “gosto pelo
paradoxo” que nutre este autor. É uma exigência que decorre do
fato de que apenas com base num paradoxo é possível fundar-se
o direito na política e, ao mesmo tempo, a política no direito. O
conceito de soberania oculta e revela as várias faces do paradoxo

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da fundação do direito e da política que, como fundação, pode


apenas ser paradoxal: ilimitada “porque” limitada, direito positivo
“porque” natural, imposto “porque” consentido. Em matéria de
tributos, por exemplo, o paradoxo é mais uma vez revelado e ocul-
tado. Bodin parece quase abrir as portas para uma concepção de
soberania popular, ao observar a proibição de o soberano impor a
cobrança destes sem o consentimento de seus súditos, dado que,
mesmo para ele, nenhum príncipe tem o poder de estabelecer e
aumentar tributos ao arbítrio de seu povo. Esta concessão que
Bodin faz ao consentimento popular é, também, a única possibi-
lidade de se impor a tributação, obviamente indesejada pelo povo.
Neste passo, a teoria absoluta da soberania convive e necessita,
até mesmo, admitir o direito de resistência, naturalmente com
reservas, como faz Bodin no Les six Livres, Livro II, Capítulo V.
O paradoxo de uma soberania que é ilimitada porque é limi-
tada reflete, portanto, aquilo que o véu da soberania incobrira,
na forma de uma unidade que se manifestava como a vontade do
monarca: o fato de que direito e política são diferentes sistemas
sociais. A busca de um fundamento comum, de um só vértice
para direito e política exige a unidade, que na tese da soberania
absoluta manifestou-se como sendo supremacia da política sobre
o direito. Aqui, a limitação (que inclui o direito de resistência) é

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admitida em prol da “razão de Estado”24, num contexto em que
a política é capaz de se sobrepor ao direito enquanto lei, isto é,
enquanto poder “juridicizado”, isto é, não como uma razão moral,
mas como um fundamento jurídico: “soberania”. Pode-se mesmo
dizer que aquilo que significou a razão de Estado para a primeira
metade dos quinhentos, vem significar a noção de soberania ao
final daquele século, ainda que o tema razão de Estado mais que
nunca se fizesse presente e que, mesmo no quadro da discussão
jurídica, a discussão acerca da soberania ainda encontrasse apoio
em elementos do direito natural. Naquele contexto, os vínculos
tradicionais ao poder devem ser vistos como um instrumento de
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governo, um instrumentum regnum: tais são os pactos que o sobe-


rano firma com seus súditos, confiando-lhes direitos como, por
exemplo, o da existência de uma magistratura independente (que
incrementa a capacidade de governo do rei) e a liberdade de ex-
pressão do povo que, por isso, pode tornar-se menos controlável
mas, por outro lado, “também mais disposto a oferecer contribui-
ções voluntárias às soluções de problemas comuns” (HOLMES,
1998: 173). A “razão de Estado” exige a moderação; e esta é uma
virtude necessária ao soberano absoluto, no sentido de que o
poder necessita se impor limites para encontrar sua estabilidade,
protegendo-se, desta forma, das revoltas populares25. Daí a pres-

24 Sobre a noção de razão de Estado em Bodin, e suas proximidades e


diferenças em relação a Maquiavel, v. Quaritsch Helmut, “Sttatsraison in
Bodins’République’” (SCHNUR, 1975).
25 “Le meilleur conseil que les Roys puissent prendre pour eviter ces
desastres & ces cheutes honteuses, c’est de garder la moderation dans la
prosperitez, de ne point abusez des advantages que Dieu leur donne au
dessus de leurs ennemis, de se remettre devant les yeux, que l’abaissement
& le mépris vont toujours à la suitte de l’arrogance & de la superbe, qu’il
n’y a point de puissance si redoutable, ny d’Empire si bien asseuré, qui
puisse résister aux violences de la fortune (…) Que de mesme les Roys

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suposição do monarca como sendo, necessariamente, bom, vir-
tuoso, temente a Deus ... O paradoxo de um poder ilimitado que
não se pode limitar, ou de um soberano que não pode a um só
tempo ser senhor e sujeito da lei, é interrompido mediante a
introdução de vínculos morais e, portanto, externos ao poder;
limites estes que, na realidade, nada limitam. Tais vínculos não
são jurídicos, pois o domínio do direito pertence à esfera da von-
tade do soberano, mas são jurídicos, já que ainda são indicados
sob o rótulo “Direito Natural”.
O paradoxo é recorrente, de Bodin em diante, na literatura
que trata da soberania. A soberania é perfeita uma vez que não

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conhece superior poder “terreno” – o que a faz diferente da sobe-


rania medieval enquanto “escala de poderes”. Paradoxalmente, a
perfeição do poder soberano admite, e requer, algumas “imperfei-
ções”, visto que até mesmo o soberano conhece um superior:
Deus26. A noção de soberania absoluta significava a perfeição de
uma ordem que necessitava, ainda, representar-se como hierar-
quia, de forma que a circularidade não poderia, naquele contesto,
ser observada enquanto tal. O nome soberania indicava o vértice
desta hierarquia, acima da qual poderia estar apenas Deus. Perfei-
ta é, naquele contexto, a soberania que depende apenas de Deus,
como afirmou Le Bret: “Quanto a mim, reputo que devemos
atribuir o nome & a qualidade de uma soberania perfeita & com-

ne doivent point avoir d’autre but ny d’autres desseins en l’ esprit, que


de rendre leurs peuples heureux, & de les faire jouir de toutes sortes de
felicitez” (LE BRET, 1635: 332).
26 “Bien que nous ayons monstré par tous les discours de cet ouvrage,
que les Roys ont une souvveraine authorité sur les hommes, sur la terre,
sur la mer, & sur toutes les choses qui sont en cette plus basse partie de
l’univers: neantmoins ils ne laissent pas de dependre de Dieu, & d’estre
subiects à la souveraine puissance, comme tous les autres mortels (…)”
(LE BRET, 1635: 329).

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pleta apenas àquelas que dependem tão somente de Deus, & que
estão sujeitas apenas às suas leis” (LE BRET, 1635: 5).
Le Bret representa um tipo de argumentação que se difundiu
sobretudo na França, ao se fazer apelo ao chamado “poder divino
dos reis”, fundante do poder absoluto dos reis católicos franceses
na vontade divina. Ao longo do século XVII, ainda que sob o
manto do voluntarismo de fundo religioso, o conceito de sobera-
nia pouco a pouco deslocou-se na direção de um fundamento
que já não é religioso, mas que se pretende racional, e isso tanto
da parte dos defensores de uma soberania absoluta do monarca
quanto da parte dos defensores de uma soberania (muitas vezes
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também absoluta) do povo. Neste passo, autores absolutistas como


Barclay, mas também defensores da soberania popular como
Hotman e Althusius, negam a subordinação do poder temporal
ao poder espiritual, ou seja, negam a subordinação do soberano
em relação aos papas. O argumento de Barclay é o de que os reis
cristãos não têm soberania no poder temporal, já que é incom-
patível com um poder que seja soberano sua sujeição a outro,
direta ou indiretamente27. Em 1613, Suàrez, contra a direção de
ambas aquelas tradições a favor da separação das esferas política
e religiosa, continua a afirmar a supremacia do poder espiritual
sobre o temporal, afirmando que os reis temporais, como qualquer
outra ovelha do rebanho da Igreja conduzido pelo Pontífice, na-
quilo que diz respeito pelo menos ao espiritual, sujeitam-se aos
papas. Em decorrência da verdade de fé desta tese, Suàrez aduz
outra: a de que os reis sujeitam-se aos papas não apenas enquan-

27 “Confesaba Barclay que el Pontífice tenía la soberanía espiritual in-


cluso sobre los reyes y emperadores, y sin embargo negó la subordinación
del poder temporal al espiritual (...) El resumen de todo es que lor reyes
cristianos tienen la soberanía en lo temporal, y que es incompatible el que
un poder sea soberano y que esté sujeto a otro directa o indirectamente”
(SUÀREZ, Defensa,1970: 321).

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to pessoas, mas também no que diz respeito ao exercício do poder
real, “porque o poder do papa não é temporal mas sim espiritual,
o qual alcança as coisas temporais e trata delas indiretamente,
isto é, por causa das espirituais” (SUÀREZ, Defensa, 1970: 327). O
poder “indireto dos papas” é tal que o pontífice pode, tocando no
cerne da soberania, até mesmo corrigir as leis feitas pelos reis,
quando estas não estão de acordo com os bons costumes. Essa
tese do poder indireto dos papas, no pensamento católico do
início dos seiscentos, era plenamente aceita28, assim como a tese
de um poder divino dos reis estava presente naquelas argumen-
tações a favor dos monarcas absolutos, plenas de alegorias, como

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se viu em Le Bret e outros. Ambas as vertentes, com seu apelo


extremado a uma fundação de fundo religioso, denotam, ao con-
trário do que possa parecer à primeira vista, a progressiva dife-
renciação da política e do direito em face da religião e da moral:
num mundo que comporta duas religiões, Deus já não pode
oferecer grandes garantias para a permanência do poder político,
Deus já não pode produzir consenso.
Por isso, Deus ora exprime sua vontade “indiretamente” atra-
vés dos papas, ora precisa apresentar-se como uma qualidade do
poder que se revela no monarca absoluto. O pensamento posterior
dirá, então, que a natureza da soberania, tal como a natureza das
coisas, é racional (e, portanto, ainda necessária). Nestas teses, a
imagem da perfeição das coisas já não se manifesta à semelhança
de Deus, mas sim à semelhança de uma Natureza que, como tal,
pode ser apenas perfeita, como atestam as ciências da Matemáti-
ca, da Física e, também, a Lógica. Na medida em que se diferen-
ciam o direito e a política da religião e, depois, também da moral,

28 Suàrez afirma ser esta uma tese comum entre os teólogos, de acordo
com Santo Tomás, bem como entre os juristas, citando Bartolo e vários
outros (SUÀREZ, Defensa, 1970: 330).

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os testemunhos de um pensamento jurídico-político propriamen-
te moderno começam a ser colhidos. Esse jusnaturalismo moder-
no, que abandona a ideia de perfeição divina em prol da noção
de Natureza, tem em Hugo Grócio (1583-1645) seu primeiro
cultor, quando este proclama um direito natural que não é mais
a descoberta racional da lei divina, mas que é “ditado pela reta
razão”. No célebre De Jure Belli ac Pacis (1625), Grócio decreta o
fim do aristotelismo e inaugura uma nova forma de compreensão
da política e do direito, que prescinde das argumentações de fun-
do religioso, sem que isso significasse, todavia, uma “exclusão”
de Deus: permanece em Grócio um Deus “naturalizado”, autor e
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imagem da Natureza perfeita, na medida em que age sempre em


conformidade com a Natureza que ele mesmo criou. Para Grócio,
uma ação é proibida ou ordenada por Deus (autor da natureza),
por estar em desconformidade ou conformidade com a natureza
racional. No sistema filosófico-jurídico de Grócio, a “mãe do Di-
reito Natural” é a própria Natureza humana (GROTIUS, 1746:
12). O Direito Natural nada mais é do que alguns princípios da
Reta Razão, que emanam do interior dos Homens e que tornam
possível saber se uma ação é moralmente honesta ou desonesta,
estando em concordância ou não com a Natureza racional e social
e, consequentemente, com as ordens de Deus, que é o autor da
Natureza29. Deus é o autor da Natureza, mas por sua vez subor-
dina-se àquela Natureza que ele mesmo criou, de forma que o
Direito Natural é tão imutável quanto é a Natureza, não pode ser
modificado nem mesmo pelo Criador: “assim como nem Deus

29 Diz Grócio que o Direito Natural consiste em “dans certains principes


de la Droite Raison, qui nous sont connoitre qu’ une Action est morale-
ment honnête ou deshonnête, selon la convenance ou la disconvenance
nécessaire qu’elle a avec une Nature Raisonnable & Sociable, & par con-
séquent que Dieu, qui est l’ Auteur de la Nature, ordonne ou défend une
telle Action” (GROTIUS, 1746: 49).

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pode fazer que dois mais dois não sejam quatro, do mesmo modo
não pode fazer que aquilo que em sua essência é mau não seja
mau”30. Grócio afirma, em surpreendente formulação para aque-
la época, que não se devem confundir “os direitos de Deus, que
ele exerce algumas vezes para o ministério dos Homens, com os
direitos dos Homens uns em relação com os outros” (GROTIUS,
1746: 31). O Direito Divino, neste passo, equipara-se ao Direito
Humano enquanto Direito Voluntário, estando ambos subordi-
nados ao Direito Natural.
A noção de Direito Voluntário corresponde àquela, tipicamen-
te moderna, de direito positivo, direito que “retira sua origem da

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vontade de algum Ser inteligente”. O Direito Voluntário pode ser


tanto o Direito Divino quanto o Direito Humano (GROTIUS, 1746:
55), aos quais os Homens se submetem, sendo que ambos espe-
lham-se na natureza racional das coisas, ou seja, no Direito Na-
tural. Desse modo, apenas indiretamente a vontade de Deus co-
manda a dos Homens, visto que o que vem de Deus é,
necessariamente, racional31. O significado do passo de Grócio
encontra-se, portanto, no fato de que o direito natural moderno
coloca o sujeito como ativo na descoberta do direito, não mais
dado objetivamente pela Natureza ou pela vontade divina32. Com

30 “le Droit de ntuare étant immuable, Dieu n’a pu rien établir de con-
traire aux Maximes de cette sorte de Droit” (GROTIUS, 1746: 73).
31 “(…) une autre source du Droit, savoir la volontè livre de Dieu, à
laquelle nous devons nous soumettre, come notre Raison même le dicte
d’une manière à ne nous laisser aucun doutte là-dessus. Mais le Droit
même de Nature, que nous avons établis ci-dessus, tant celui qui consiste
dans l’entretien de la Societé, que celui qui est ainsi appellé dans un sens
plus étendu; ce Droit, dis-je, quoi qu’il émane des principes internes de l’
Homme, peut néanmoins, & avec raison, être attribué à Dieu, parce qu’ il
a voulu qu’ il y eut en nous de tels principes“ (GROTIUS, 1746: 10).
32 É a partir de Grócio que o direito natural “(...) va a ser como una

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base nestas premissas, Grócio afirma a imutabilidade do Direito
Natural, mas já reconhece a mutabilidade e contingência do
direito positivo, cujo conteúdo pode variar em diferentes tempos
e lugares33. Neste quadro, em que se tem plena consciência do
caráter de relativa contingência do direito particular de cada
Estado, é que Grócio delimita seu campo de estudo como sendo
o terreno daquilo que o Direito Natural prescreve e que é comum
a todos os povos. Grócio devota-se ao estudo da verdadeira
Justiça, “comum a todos os tempos e lugares”, deixando de lado
tudo aquilo que depende da vontade arbitrária. Seu tratado
sobre a Guerra e a Paz apoia-se na noção do Direito das Gentes
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como Direito Natural.


A discussão sobre o Direito das Gentes, já presente no pensa-
mento dos escolásticos espanhóis ao longo do século anterior, tem
em seu cerne a questão sobre o poder soberano do Estado. Isto
talvez explique por que Grócio, mais preocupado com as questões
externas ao Estado do que com os conflitos a ele internos, tenha
apoiado suas teses numa noção de soberania que apresenta as
características da absolutez, mas que se reconheçe, possivelmen-
te pela primeira vez, como também limitada. A noção de sobera-
nia, vista da perspectiva do Direito Internacional, como qualida-
de do Estado não indica “supremacia”, mas aponta para a posição

norma humana puesta por autonomía y la actividad del sujeto, libre de


todo presupuesto objetivo (y en particular teológico) y explicable median-
te la razón, esencial instrumento de la subjectividad humana” (FASSÒ,
1982: 79).
33 “Car les Loix Naturelles étant toujours les mêmes, peuvent aisément
être ramenées aux régles de l’Art: mais celles qui doivent leur origine à
quelque Etablissement Humain étant différentes selon les lieux, & chan-
geant souvent dans un même endroit, ne sont pas susceptibles de sistème
méthodique” (GROTIUS, 1746: 20-21).

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de independência, de igualdade, de autonomia dos Estados uns
em relação aos outros. O problema aqui é mais externo do que
interno, diz mais respeito à afirmação do Estado como um “igual”
em relação aos outros estados soberanos, do que como o vértice,
ou o poder supremo, no âmbito de um território. A ordem inter-
nacional é descrita, na doutrina internacionalista, da mesma
forma que fora descrita, também com a utilização da noção de
soberania, a ordem medieval: como um mundo de autonomias.
Isso coloca a questão de saber se seria possível, nessa igualdade,
nessa segmentarização da sociedade em Estados igualmente so-
beranos, reintroduzir-se a ideia de um direito ou de uma instân-

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cia política soberana34. A concepção de Ius Gentium, recolocada


por Grócio no século XVII, vem exatamente resolver este tipo de
problema, apresentando uma concepção de Direito Natural como
limitadora da soberania que, exatamente porque limitada, pode
permanecer sendo ilimitada. O Direito das Gentes é concebido
como a um só tempo natural e contratual: dado que os Estados
são, por natureza, Estados soberanos, estes podem livremente
estipular seus pactos que, de acordo com a regra do pacta sunt
servanda, devem ser cumpridos. Mas qual é o fundamento da
regra do pacta sunt servanda? Este é um princípio, por sua vez,
natural ou contratual? Na análise que Koselleck faz do direito
internacional, este pôde ser eficaz apenas porque conseguiu im-
por-se como uma ordem jurídica acima das religiões, pacificando
internamente os Estados e modelando, assim, a relação entre
estes. Este compromisso político foi, segundo Koselleck, análogo

34 Se pensarmos no contexto atual, a ONU e a doutrina dos Direitos


Humanos teriam a pretensão de servir de “vértice” nessa sociedade de
segmentos, assim como a Religião desempenhara este papel no mundo
medieval. Mas pode-se falar de uma “soberania” da ONU ou do Direito
Internacional?

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àquele do qual Hobbes deduziu o Estado, dando forma às relações
internacionais35.
O conceito de soberania revela, na dualidade dos problemas
que ele vem resolver na doutrina de Grócio, toda a sua ambigui-
dade. Enquanto no plano externo os Estados gozam de uma
posição de igualdade e independência, sendo coordenados por
um Ius Gentium de “natureza contratual”, no plano interno, Gró-
cio afirma a existência de um “poder soberano” cujos atos não
estão sujeitos a nenhum outro direito, de sorte que possam anu-
lar-se pelo arbítrio de outra vontade humana. A noção de sobe-
rania proposta por Grócio pretende reunir num só conceito a
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solução destes diferentes problemas, um externo e outro interno


aos Estados. As soluções são, também, diferentes, porque uma
aponta para a noção de igualdade e autonomia, ao passo que a
outra aponta para a noção de supremacia e subordinação. O
poder soberano, diz Grócio reunindo as duas soluções, é “aque-
le cujos atos são independentes de qualquer outro poder superior,
de forma que estes não podem ser anulados por nenhuma outra
vontade humana”, ou seja, por nenhuma outra vontade que não
aquela do próprio soberano, livre para mudar sua própria von-
tade, ou daquele que o suceder em todos seus poderes (GROTIUS,
1746: 120). Poder-se-ia ler a fórmula de Grócio também da se-
guinte forma: cujos atos não podem ser anulados por nenhuma
outra vontade não soberana. Daí por que, séculos mais tarde, foi
certeira a crítica de Kant, ao afirmar que o direito de paz é um
direito de (e para) a guerra.

35 “Apenas a separação rígida entre o espaço interno e externo tornou


possível retirar do campo das competências religiosas um espaço para a
política exterior, sob o pano de fundo teórico das paixões confessionais,
este fato significou, inevitavelmente, uma racionalização” (KOSELLECK,
1972: 40-41).

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Aquele poder soberano reside, para Grócio, em dois sujeitos,
um que é comum e outro que é próprio, “da mesma forma que o
sujeito comum da visão é o corpo humano, e o sujeito próprio é
o olho”. O paradoxo da soberania procura, neste passo, por novas
formas de assimetria. A imagem da perfeição da soberania já não
é Deus, mas a natureza racional que se exprime em algo capaz de
ser tão perfeito quanto Deus: o corpo humano. Assim, o Estado é
sujeito comum em que reside a soberania, definindo-se como um
corpo perfeito. Já o sujeito próprio da soberania, onde ela reside,
“é uma ou mais pessoas, segundo as leis e costumes de cada Nação:
em uma palavra, o Soberano” (GROTIUS, 1746: 120-121). Contra

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a tese de que a soberania reside necessariamente no povo36, con-


tra o direito de resistência deste, e contra o pensamento de que o
poder é estabelecido em favor daqueles que são governados, Gró-
cio proclama uma noção de soberania absoluta, porque “ou se
toma o bem com o mal que o acompanha, ou é preciso renunciar
tanto a um quanto a outro” (GROTIUS, 1746: 122).
Esta soberania absoluta merece também outro nome: proprie-
dade. Isto na medida em que a noção de soberania, em Grócio,
acaba por assumir os contornos de um direito privado do gover-
nante, que este pode incorporar a outro patrimônio ou delegar
em usufruto a outrem. Aqui, vê-se que, tanto em relação aos
escolásticos espanhóis quanto em relação a Bodin, a doutrina de
Grócio retrocede, tratando em termos patrimoniais aquilo que

36 A visão patrimonialista da soberania resulta no rechaço veemente,


portanto, também do direito de resistência: “Ici il faut d’abord rejetter l’
opinion de ceux qui prétendent, que la Puissance souveraine appartient
toujours & sans exeption au Peuple, en sorte qu’ il ait droit de reprimer
& punir les Rois, toutes les fois qu’ ils abusent de leur autorité. Il n’ y a
point de personne sage & éclairée qui ne voie, combien une telle pensée
a causé de amux, & en peut encore causer, si une fois les esprits en sont
bien persuadez” (GROTIUS, 1746: 121).

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Bodin (e também Loyseau) indicaram não como um direito pri-
vado (“senhorial”), mas como um poder – e sobretudo um direi-
to – público. A metáfora do corpo humano, de que depois também
lançará mão Hobbes para explicar a relação da cidade com o so-
berano, acena para a noção patrimonialista e individualista: o
corpo humano é a morada do Homem, assim como o Estado é o
lugar onde reside a soberania. Assim como o Homem é dono do
corpo em que mora, a metáfora acena para o soberano como
proprietário do Estado. A discussão sobre a propriedade permeia
todo o texto de Grócio, que compara a soberania a este direito. A
soberania pode ser alienada, pode ser cedida, é comparada a um
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fideicomisso, tem um início, tem um fim, a sucessão ao trono é


comparada à sucessão hereditária etc.
A consequência da assunção de uma visão patrimonialista da
soberania por Grócio é o reconhecimento de que, assim como a
propriedade é ilimitada, mas sobre ela podem recair alguns ônus,
também isto pode ocorrer com a soberania. O autor holandês dá
um passo importante ao assumir, provavelmente pela primeira vez,
a palavra “limitada” para se referir à soberania. Quando os prínci-
pes se dispõem a seguir determinadas regras de governo, estes têm
sua soberania “restrita e limitada” de algum modo, diz Grócio, seja
quando as obrigações afetem somente o exercício de seu poder,
seja quando elas recaiam diretamente sobre o próprio poder37. No
primeiro caso, o rei deve fazer jus à palavra empenhada e qualquer
ação sua a ela contrária é injusta, porque “toda verdadeira promes-
sa confere um direito em favor daquele a quem a promessa foi
feita”, enquanto no segundo caso, o ato “é injusto e nulo nos mes-

37 “Il faut avouer néanmoins, que, quand les Princes s’engagent à suivre
certaines régles de Gouvernement, leur Souveraineté est restreinte & li-
mitée en quelque manière, soit que les obligations où ils entrent regardent
seulement l’ exercice de leur Pouvoir, ou qu’ elles tombent directment
sur le Pouvoir même” (GROTIUS, 1746: 146).

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mos termos, por defeito de poder” (GROTIUS, 1746: 146). Mas se
o ato é nulo em si mesmo, isto se dá exatamente porque, não
obstante o príncipe deva respeitar aquelas limitações, este perma-
nece soberano, isto é, não conhece superior, de modo que tal ato
não é passível de ser anulado por nenhuma outra pessoa.
A soberania, em Grócio, é perfeita, mas tem início e fim; é ili-
mitada, mas conhece limitações. A soberania é perfeita ainda que
o governante encontre-se subordinado ao Direito Natural, ao Di-
reito Divino e ao Direito das Gentes, bem como às promessas que
ele fez a seus súditos ou a Deus: “a soberania não é menos sobera-
nia, ainda que o soberano, quando de sua instalação, obrigue-se

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solenemente, para com seus súditos, ou perante Deus, a certas


coisas que digam respeito até mesmo ao governo do Estado”, da
mesma forma que “um marido não perde nada de sua autoridade
sobre sua esposa por lhe ter prometido alguma coisa que ele não
pode se dispensar de cumprir” (GROTIUS, 1746: 145). A soberania
tem um início e um fim, e em Grócio já não apresenta a caracte-
rística da perpetuidade que, em Bodin, era íntrinseca ao conceito.
Assim como a propriedade, também a soberania tem fim
quando o sujeito ao qual “está ligada” falta, sem que haja qual-
quer disposição acerca da sucessão: na falta de seus proprietários,
sem ter quem lhes suceda, os escravos recuperam sua liberdade,
assim como os povos tornam-se novamente senhores de si mes-
mos quando lhes falta o monarca soberano, “a menos que algu-
ma lei impeça os primeiros ou que ambos renunciem volunta-
riamente à sua liberdade”38. Aqui, curiosamente, Grócio acaba

38 “Si donc un homme n’a point disposé en mourant de ce qui lui appar-
tenoit, & ne laisse d’ ailleurs aucun Parent; tous les droits qu’il avoit s’
éteignent avec lui, & tout ce qu’ il posseédoit est au premier occupant,
hormis le personnes. Ainsi les Esclaves recouvrent leur liberté, & les Peu-
ples, qui dépendoient de lui, redeviennent maîtres d’ eux mêmes: à moins

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por admitir uma liberdade originária tanto dos homens, numa
visão cínica da escravidão como ato voluntário de despojamen-
to desta liberdade, quanto dos povos, também eles passíveis de
serem escravizados por um monarca. Paradoxalmente, essa
liberdade originária, ou o “direito de mandar” do povo, acaba
sendo o fundamento de sua soberania absoluta, que exclui toda
possibilidade de resistência do povo diante das ordens de um
soberano que sejam injustas. O argumento é o de que, assim
como as pessoas podem escolher entre diversos modos de vida
(inclusive a escravidão!), também um povo pode escolher a
forma de governo que lhe aprouver, de forma que o direito que
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o soberano tem sobre seus súditos foi-lhe conferido por estes39,


podendo ser exercitado de forma absoluta. De forma que, ao
transferi-lo a um monarca ou até mesmo a outro Estado, o povo
despe-se inteiramente de seu poder soberano. O exemplo que
traz Grócio para ilustrar tal fato é a resposta que o Imperador
Valentino dá a seus soldados quando estes, depois de tê-lo fei-
to imperador, lhe pedem algo que este não aprova: “Dependia
de vocês, soldados, escolher-me como Imperador; mas, uma

qu’ il n´y aît quelque Loi qui en empêche les prémiers, ou que les uns
& les autres ne renoncent volontairement à leur liberté. Car ce n’est pas
une chose qui soit de nature à être au prémier occupant” (GROTIUS,
1746: 375).
39 “Comme donc, entre plusieurs genres de Vie les uns meilleurs que les
autres, il est libre à chaque personne d’ embrasser celui qui lui plaît: de
même un Peuple peut choisir telle forme de Gouvernement que bon lui
semble; & ce n’ est point par l’ excellence d’ une certaine forme de Gou-
vernement, sur quoi les opinions sont trés partagées, qu´il faut juger du
droit que le Souverain sur ses Sujets, mais par entendue de la volonté de
ceux qui lui conféré ce droit.Or il peut y avoir plusieur raisons qui portent
un Peuple à se dépouller entiérement de la Souverainité, & á la remettre
entre les mains de quelque Prince, ou d’ un autre État (...)” (GROTIUS,
1746: 122).

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vez que vocês elegeram-me, aquilo que vocês pedem depende
de mim, e não de vocês. A vocês cabe obedecer, como meus
súditos; a mim cabe ver aquilo que eu tenho a fazer” (GROTIUS,
1746: 129). O argumento de Grócio é de que, exatamente por-
que a soberania é transferível e alienável, é que ela nem sempre
pertence ao povo; o que a princípio equivaleria a dizer, contra-
rio sensu, que a soberania pertence sempre ao povo originaria-
mente, assim como originariamente todos os homens são pro-
prietários de seus próprios corpos. Mas o que Grócio diz,
reafirmando suas tendências absolutistas, é a fórmula segundo
a qual “aquele que estabelece está acima daquele que foi esta-

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belecido”, não é verdadeira quando se trata de um poder que


não pode ser revogado por aquele que o estabeleceu. A sobe-
rania pode ser transferida a outrem, assim como os homens
podem sujeitar-se, por vontade própria, à escravidão: “como
quando uma Mulher esposa um marido, a quem ela será para
sempre obrigada a obedecer, a partir do momento que ele ad-
quire autoridade sobre ela” (GROTIUS, 1746: 128)40. Mas, uma
vez transferida, aquele que a transferiu não pode revogá-la,
pois encontra-se despojado de qualquer poder. A resistência é
portanto um ilícito, pois se cada um conserva para si o direito
de resistir, o Estado já não é Estado, mas apenas um “multidão
sem união” (GROTIUS, 1746: 171).

40 “la Puissance Souveraine ne réside pas toujours dans le peuple (...)


On soutient prémiérement, que celui qui établi est au-dessus de celui qui
est établi. Mais cela n’ est vrai qu’ à l’ égard des Pouvoirs dont l’ effet
dépend toujours de la volonté de leur Auteur, & non pas quand il s’ agit
d’ un Pouvoir, qui, quoi qu’ il fût libre d’ abord de le conférer ou non, ne
peut pas être révoquer par celui qui l’a une fois conféré: comme quand
une Femme épouse un Mari, à qui elle est toujours indispensablement
tenue d’ obéir, du moment qu’ elle lui a donné autorité sur elle” (GRO-
TIUS, 1746: 128).

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A questão que em Grócio permanece aberta é aquela relativa
ao despojamento da soberania originária do povo em prol da
soberania do monarca. Como se dá este despojamento é um pro-
blema que ainda permanece aberto, na medida em que a solução
proposta por Grócio não consegue romper as correntes do velho
direito natural. Por um lado, a afirmação da subjetividade no
pensamento jusnaturalista de Grócio abre caminho para que a
velha forma do contrato, que já apareceu em toda a discussão
medieval, assuma o caráter constitutivo de um acordo de vonta-
des individuais para a tutela dos direitos subjetivos. Em Grócio,
no entanto, este individualismo ainda não assume tais contornos,
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pois o autor holandês considera a sociedade conatural ao homem


e o pacto imanente a esta. Grócio não pensa, ainda, em termos
de contrato social como um artifício constitutivo da sociedade e
do próprio Estado, mas lança mão de argumentos de utilidade
para fundar uma aceitação, por parte do povo, do domínio que
sobre ele se exerce. Alguns anos mais tarde, Hobbes trouxe uma
doutrina que “aperfeiçou” a de Grócio, em que concilia a neces-
sidade da preservação da vida – o critério utilitário que coloca na
base de sua “filosofia política” – com a noção de contrato social.

3.2  Hobbes: a preservação da vida como início e fim da


soberania
O círculo da soberania em Hobbes é interrompido mediante
a assunção da necessidade da “preservação da vida” como início
e fim do Estado. A conservação da vida – a designação que os
seiscentos deram para “paz” – tornou-se o tema central das teorias
políticas daquele tempo, marcado ainda pelas disputas religiosas
que haviam dilacerado a Europa no século precedente. Este con-
ceito é o ponto de partida e também de chegada da teoria hobbe-
siana da soberania, marcando e mascarando a circularidade que
este princípio encerra. Para Hobbes, o Direito Natural (Jus Natu-
rale) define-se tendo em vista a necessidade de preservação, pelo

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homem, de sua própria natureza41. A lei natural, consequente-
mente, é o preceito de razão que proíbe ao homem fazer tudo
quanto possa ser destrutivo à sua vida. A noção de lei, como
obrigação, aqui contrapõe-se a de direito natural: a natureza do
homem é a de um ser livre, no sentido de que a Liberdade, como
Jus (Right), significa a ausência de impedimentos para o homem
fazer aquilo que quer42. Essa é a liberdade hobbesiana, jurídica
porque é um direito natural, mas pré-jurídica porque anterior ao
Estado e, portanto, à lei. Essa é a liberdade que impera num Es-
tado de Natureza que Hobbes, na formulação que se tornou
universalmente conhecida, descreveu como aquele estado em

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que todos estão em guerra contra todos. Nesse estado de “guerra


de todos contra todos”, a instituição do Estado e do poder encon-
tra no direito anterior ao direito seu fundamento; a liberdade
natural é, sobretudo, liberdade que tem cada homem de preservar
a própria vida, consentindo na fundação da lei. Dada a situação
de guerra inerente ao Estado de Natureza, é absolutamente ne-
cessário à preservação da vida limitar-se a liberdade natural do
homem, o que só é possível na forma da lei, ordenada por quem
tem autoridade para tal, a saber, o soberano. O aspecto da autori-
dade desponta em Hobbes como a pedra de toque de sua concep-
ção acerca da necessidade da lei. Neste passo, a noção de autori-

41 “The Right of Nature, which Writers commonly call Jus Naturale , is


the Liberty each man hath to ufe his own power, as he will himselfe, for
the preservation of his own Nature, that is to fay, of his own Life, and
consequently, of doing any thing, which in his own Judgement, and
Reason, hee shall conceive to be the aptest means thereunto” (HOBBES,
1651: 64).
42 “Liberty, or Fredomme, signifieth (properly) the absence of Opposition;
(by Opposition, I mean externall Impediments of motion;) and may be
applyed no lesse to Irrational, and Inanimate creatures, than to Rationnal”
(HOBBES, 1651: 106).

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dade assume, no pensamento hobbesiano, proporções dramáticas,
ao se pressupor que no Estado de Natureza os homens vivem em
guerra de todos contra todos, e é apenas o temor (terrour) a uma
autoridade que pode fazer frente às paixões humanas. A nature-
za, portanto, dá o Jus, mas exige a Lex.
Aquilo que Hobbes chama de “lei fundamental da natureza”,
ou “lei geral da razão” exprime-se, portanto, tanto no direito
natural quanto na lei natural. A lei geral da natureza prescreve a
todos os homens buscarem a paz, no sentido de preservarem sua
própria vida43. A primeira parte desta lei, explica Hobbes, contém
a primeira e fundamental lei da natureza que é seek peace, and
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follow it, enquanto a segunda parte contém o direito natural su-


premo, qual seja, aquele de by all means we can, to defend our selves.
Essa prescrição da lei fundamental da natureza é a base de toda
a construção hobbesiana, particularmente interessada no motivo
de uma fundação comum para o direito e para a política. Dela
decorrem as demais leis da natureza, sempre imutáveis e eternas,
no sentido de que aquilo que elas proíbem nunca poderá ser
considerado lícito, assim como aquilo que elas ordenam não po-
derá ser tido como ilícito; elas são necessárias, uma vez que só
podem ser aquilo que são. As leis da natureza, no entanto, para
Hobbes não são ainda leis no sentido próprio do termo. A lei em
Hobbes define-se como sendo um comando, e aquilo que a natu-
reza prescreve não vem ordenado por ninguém, é necessário
porque racional, da mesma forma que é racional porque necessá-
rio. Apenas aquelas leis naturais que consistem nos mandamentos
de Deus contidos nas Sagradas Escrituras – “verbo de Deus man-
dando” – são, portanto, leis no sentido próprio do termo, enquanto

43 Prescreve que “every man, ought to endeavour Peace, as farre as he


has hope of obtaining it, and when he cannot obtain it, that he may seek
and use, all helps, and advantages of Warre” (HOBBES, 1651: 64).

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as demais são tão somente conclusões ou teoremas que conduzem
os homens à preservação de si mesmos. Estas não são leis no
sentido específico44, não são resultado nem de um mandamento
nem de um consenso dos homens, mas sim ditames da reta razão,
obrigando apenas em foro interno, ou seja, no “tribunal da cons-
ciência”.
Já a lei propriamente dita (Hobbes, pela primeira vez, faz essa
diferença), ou seja, a lei verdadeira e própria, é apenas a ordem
de quem tem poder sobre os outros45. A lei é em Hobbes nada
mais que “o discurso de quem tem o direito de mandar que façam
determinadas coisas”. A concepção positivista do direito em Hob-

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bes está plenamente delineada, o direito como lei é uma ordem,


um comando, mas não qualquer comando: é o comando de quem
tem o poder de mando último, ou seja, o comando do soberano.
Importante é observar, neste passo, como Hobbes articula a tese
decisionista do direito como produto da vontade e sua noção de
direito natural como expressão da natureza e, portanto, da ne-
cessidade; isto é, importante é compreender a relação entre o
direito legislado e aquele outro direito, que não merece propria-
mente ser chamado de lei, mas que permanece sendo, no entan-
to, direito: o direito natural. Certo é que a noção de lei positiva
ou civil, em Hobbes não pode, ainda, prescindir daquela de lei
natural. A relação que se estabelece entre as duas não é, tampou-
co, a de subordinação da vontade humana àquela de Deus, autor

44 As leis das natureza não são propriamente leis, dado que procedem
da natureza, “porém na medida em que são outorgadas por Deus nas
Sagradas Escrituras (...) é muito apropriado chamá-las pelo nome de leis:
pois a Sagrada Escritura é o verbo de Deus mandando, pelo maior de
todos os direitos, sobre todas as coisas” (HOBBES, 1998: I, III, 33).
45 “(...) Law in generall, is not Counsell, but Command; nor a Command
of any man to any man; but only of him, whose Command is addressed
to one formerly obliged to obey him” (HOBBES, 1651: 137).

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da Natureza. Pode-se observar, em Hobbes, como a relação entre
direito natural e direito positivo adquire, de modo cada vez mais
decisivo, a forma da circularidade: a lei natural e a lei civil contêm
uma à outra, no sentido que uma se funda na outra. Neste sen-
tido, a lei da natureza é parte da lei civil em todas os Estados, da
mesma forma que a lei civil é parte dos ditames da natureza46.
Assim que a lei natural e a lei civil não são, para o autor do Le-
viathan, diferentes tipos de direito, mas sim diferentes partes do
direito. Uma corresponde àquela parte do direito que não foi
escrita, estando antes inscrita nos ditames da razão, ao passo que
a lei civil, lei propriamente dita, foi escrita, sendo produto da
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vontade de alguém.
Neste quadro, aquela liberdade natural do homem, aquele
direito natural que consiste numa total ausência de impedimen-
tos no estado de natureza, deve ser tanto abrigada quanto restri-
ta pela lei civil. A finalidade de se fazer leis é, portanto, tão so-
mente a de restringir aquela situação inicial de liberdade
absoluta, no contexto da qual a paz não é possível47. Por isso, a
lei civil é sempre um produto da vontade daquele que tem poder
de mando, o soberano. E isso mesmo quando o direito manifesta-

46 “The Law of Nature therefore is a part of the Civill Law in all Com-
mon-wealths of the world. Reciprocally also, the Civill Law is a part of
the Dictates of Nature” (HOBBES, 1651: 138).
47 “Civill, and Naturall Law are not differents kinds, but differents parts
of Law; whereof one part being written, is called Civill, the others un-
written, Natural. But the Right of Nature, that is, the natural Liberty of
man, may by the Civill Law be abridged, and restrained: the end of making
Lawes, is no other, but such Restraint; without the which there cannot
possibly be any Peace. And Law was brought into the world for nothing
else, but to limit the naturall liberty of particular men, in such manner,
as they might not hurt, but assist one another, and joyn together against
a common Enemy” (HOBBES, 1651: 138).

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-se como costume. Hobbes afirma, contra toda a tradição do
Common Law, segundo a qual o direito inglês tem sua originalida-
de no fato de ser obra do povo inglês, que o silêncio é uma forma
de consentimento do soberano no que diz respeito aos costumes
do povo. Ou seja, mesmo sem decidir, o soberano decide sobre o
que é ou o que não é o direito, atribuindo com seu silêncio au-
toridade de lei a um antigo uso48. Mesmo sem comunicar o que
é direito e o que não é direito, estaria o soberano “dizendo” o
direito. O direito de mandar e, portanto, de fazer leis, é uma
prerrogativa do soberano, The Legislator, que tanto pode ser, numa
monarquia, um homem, como pode ser também uma assembleia

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de homens, numa democracia ou numa aristocracia. O soberano


é o único Legislador numa Common-wealth.
Se a potestas legislatoria do soberano aparece em Hobbes, tam-
bém, como a característica primeira da noção de soberania, tam-
bém aqui ela traz consigo todas suas decorrências marcadamente
absolutistas. A interpretação das leis é, também segundo Hobbes,
uma prerrogativa do soberano. E é precisamente aí que se pode
ver quanto as leis naturais não podem alcançar os atos que de-
pendam da vontade daquele, ou seja, não limitam em nada a
expressão da vontade do soberano na forma do direito positivo.
Hobbes observa que todas leis, escritas ou não escritas, têm ne-
cessidade de serem interpretadas: “todas as leis, escritas e não
escritas têm necessidade de interpretação” (HOBBES, 1651: 143).
A interpretação das leis requer, portanto, a autoridade do sobe-

48 “When long Use obtaineth the authority of a Law, it is not the Lenght
of Time that maketh the Authority, but the Will of the Soveraign signified
by his silence, (for Silence is sometimes an argument of Consent;) and it
is no longer Law, then the Soveraign shall have a question of Right grou-
nded, not upon his present Will, but upon the Lawes formerly made; the
Length of Time shall bring no prejudice to his Right; but the question shall
be judge by Equity” (HOBBES, 1651: 138).

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rano, pois apenas estes podem dizer aquilo que o direito diz. Isto
porque, se o soberano é o único que pode fazer as leis, ele é con-
temporaneamente o único que pode dar a palavra final sobre o
sentido do direito, escrito ou não, positivo ou natural49. O poder
soberano consiste, portanto, na autoridade que tem o soberano
de fazer – dizer – o direito. Exatamente porque o soberano tem
este poder de fazer a lei, bem como de interpretar o direito, ele
por sua vez não pode estar sujeito às leis civis. Assim, ele pode
repelir as leis que o disturbarem, fazendo novas leis. Porque ele
é livre, ele pode limitar inclusive a si mesmo, diz Hobbes. Mas
porque ele tudo pode, os limites que ele mesmo se coloca – assim
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como em Bodin e Grócio – não limitavam nada50.


Avançando em relação aos outros autores defensores das teses
absolutistas, o autor do Leviathan forja, de maneira acabada, a
noção de “pacto social” como constitutiva da sociedade e do Es-
tado51. A autoridade de que se reveste o poder soberano é cons-

49 “(…)the Interpretation of all Lawes dependenth on the Authority


Sovereign; and the Interpreters can be none but those, which the
­Sovereign, (to whom only the Subject oweth obedience) shall appoint.
For else, by the craft of an Interpreter, the Law may be made to beare a
sense, contrary to that of the Sovereign; by which means the Interpre-
ter becomes the Legislator” (HOBBES, 1651: 143 e 138).
50 “The Sovereign of a Common-wealth, be it an Assemblt, or one Man,
is not Subject to the Civill Lawes. For having power to make, and repea-
le Lawes, he may when he pleaseth, free himselfe from that subjection,
by repealing those Lawes that trouble him, and making of new; and
consenquently he was free before. For he is free, bound to himselfe; be-
cause he that can bind, can release; and therefore he that is bound to
himselfe onely, is not bound” (HOBBES, 1651: 138).
51 “But as men, for the atteyning of peace, and conservation of them-
selves thereby, have made an Artificiall man, which we call a Common-
wealth; so also have they made Artificiall Chains, called Civil Lawes ,
which they themselves, by mutuall covenants, have fastened at one end,

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tituída pelo pacto social, que se dá em duas etapas (e que pressu-
põe a proibição do direito natural de se quebrar os pactos); pactum
unionis e pactum subiectionis. Ao submeterem-se a uma autoridade
comum, os homens dão nascimento ao Estado, cuja fundação,
portanto, é uma decorrência da necessidade de preservação da
vida. O Estado é por Hobbes definido como “uma pessoa de cujos
atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com
os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela
poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que consi-
derar conveniente para assegurar a paz e a defesa comum”52. O
Estado é uma pessoa artificial e o soberano é, exatamente, aque-

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le que é o portador dessa pessoa, aquele que é, portanto, o “pos-


suidor” do Estado, enquanto os restantes associados são súditos53.
Curioso, aqui, é que o pacto, como instrumento jurídico anterior
ao próprio direito positivo, pois, nasce do direito de liberdade
natural, institui o poder que, como tal, é poder, sobretudo, de
instituição do direito. Nessa construção, em que aparece o para-
doxo da soberania, pode-se ver que a soberania em Hobbes é,
claramente, um conceito também jurídico. E isso mesmo – ou
precisamente por isso – que o direito, na teoria hobbesiana, tenha
seu fundamento na vontade soberana: o soberano tem “direitos”
(rights), e a soberania é um complexo desses direitos; o soberano

to the lips of that Man, or Assembly, to whom they have given the Sove-
raigne Power; and at the other end to their own Ears” (HOBBES, 1651:
109).
52 “One Person, of whole Acts a great Multitude, by muttual Covenants
one with another, have made themselves every one the Author, to the
end he may use the strength and means of them all, as he shall think
expedient, for their Peace and Common Defense” (HOBBES, 1651: 88).
53 “And he that carreyeth this Person, is called Soveraigne, and faid to
have Soveraigne Power, and every one besides, his Subject” (HOBBES,
1651: 88).

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cria o direito (law). A soberania, como auctoritas, é um conceito
a um só tempo jurídico e político, que pressupõe o direito, mas
que é contemporaneamente afirmada como a explicação da pró-
pria fundação do direito.
A origem da soberania pode se dar por via de sua instituição
(quando “os homens concordam entre si em se submeterem a um
homem, ou a uma assembleia de homens”) ou pela via da con-
quista (“como quando um homem obriga os seus filhos a subme-
terem-se e a submeterem os seus próprios filhos à sua autoridade,
na medida em que é capaz de os destruir em caso de recusa”)
(HOBBES, 1651: 90). No chamado Estado por instituição, quando
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os súditos atribuem ao soberano o direito de os representar, todo


súdito é autor dos atos e decisões do soberano por ele instituído
e, então, nada do que o soberano faça pode ser considerado como
injusto por qualquer um de seus súditos54. É assim que Hobbes
afirma o caráter absoluto do poder soberano, mesmo que este seja
um representante dos demais associados. O soberano não se obri-
ga a observar as leis do Estado, afirmando Hobbes que neste pon-
to havia cometido um erro Aristóteles, ao afirmar que num Esta-
do bem ordenado não são os homens que governam e sim as leis.
O soberano, tampouco, pode ser destituído, uma vez celebrado o
pacto, por aqueles que instituíram seu poder. Na expressão do
absolutismo político que marca a concepção jurídica de soberania
em Hobbes, o titular do complexo de direitos que recebe o nome
de soberania tem o direito de: 1) não estar obrigado por um pacto

54 “But by the this Institution of a Common-wealth, every particular man


is Author of all the Soveraigne doth; and consequently he that complaineth
of injury from his Soveraigne, complaineth of that whereof he himselfe is
Author, and therefore ought not to accuse anu man but himselfe; no nor
himselfe of injury; because to do injury to ones selfe, is impossible. It is true
that they have Soveraigne power, may commit Iniquity; but not Injustice,
or Injury in the proper signification” (HOBBES, 1651: 90).

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anterior a qualquer coisa que contradiga o atual; 2) não ter o
pacto quebrado, de modo que nenhum dos súditos pode libertar-se
da sujeição; 3) ter uma aceitação, por parte dos súditos, de qual-
quer ordem ou decisão que tomar; 4) não ter nenhum de seus
atos considerado uma injúria; 5) não poder ser “justamente mor-
to”, visto que cada súdito “estaria castigando outrem por actos
cometidos por si mesmo”; 6) “ser juiz de quais opiniões e doutri-
nas que são contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias”; 7)
ter “todo o poder de prescrever as regras através das quais todo
homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e quais as
ações que pode praticar, sem ser incomodado por qualquer de seus

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concidadãos: é a isso que os homens chamam de propriedade”55;


8) ter a autoridade judicial, “The Right of Judicature”, “quer dizer,
o direito de ouvir e julgar todas as controvérsias que possam sur-
gir com respeito às leis, tanto civis como naturais, ou com respei-
to aos factos”; 9) fazer a guerra e celebrar a paz com as outras
nações e Estados; 10) escolher conselheiros, ministros, magistrados
e funcionários, na paz ou na guerra; 11) recompensar e punir; e
12) por último, instituir títulos de honra, pelos quais “seja atribuí-
do um valor aos homens que bem serviram, ou que são capazes
de bem servir ao Estado” (HOBBES, 1651: 90-92).
Neste quadro, a figura do mandato ou da representação, in-
troduzida por Hobbes, desempenha uma função particularmente
interessante na arquitetura teórica do Leviathan. Ela faz uma
importante mediação entre soberania absoluta e popular, pacifi-
cando de certa forma as noções absolutistas hobbesianas com a

55 “Seventhly, is annexed to the Soveraigntie, the whole power of pres-


cribing the Rules, whereby every man may know, what Goods he may
enjoy, and what Actions he may doe, without being molested by any of
his fellow Subjects: And this is it men call Propriety . For before constitu-
tion of Soveraign Power, is the Act of that Power, in order to the publique
peace” (HOBBES, 1651: 91).

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tradição do common law inglês. Uma vez que ao soberano é con-
ferido o direito de representar a todos, mesmo aqueles que deste
tiverem discordado, a noção de consenso através do pacto forja,
também, a artificialidade do consenso posterior ao pacto. Através
daquela figura, considera-se que a vontade do soberano é, tam-
bém, a vontade de cada cidadão, ao lado da qual não subsiste
nenhuma outra pessoa, apenas um amontoado de indivíduos
isolados. Daí que, em hipótese alguma, a soberania pode ser con-
quistada pela rebelião 56, sendo a resistência admitida apenas
quando o fundamento mesmo de todos os pactos, a preservação
da vida, estiver ameaçado57. No Estado civil, ou seja, após o pac-
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to de união, apenas o soberano é verdadeiramente livre – no


sentido de que é não vinculado. Os súditos são “livres” enquanto
súditos do soberano, no sentido de que a cada súdito é consenti-
do ser livre apenas naquilo sobre o que o soberano não ditou
nenhuma regra. A liberdade dos súditos é dependente, portanto,
do silêncio da lei; não pode jamais ser praticada contra a lei. Dado

56 “Quanto à outra hipótese, de conquistar a soberania pela rebelião, é


evidente que a tentativa, mesmo que seja coroada de êxito, é contrária à
razão: por um lado porque não é razoável esperar que tenha êxito, antes
pelo contrário; por outro lado porque ao fazê-lo se ensina aos outros a
conquistar a soberania da mesma maneira. Portanto, a justiça, isto é, o
cumprimento dos pactos, é uma regra de razão, pela qual somos proibidos
de fazer todas as coisas que destroem a nossa vida, e por conseguinte é
uma lei da natureza” (HOBBES, 1995: I, XV).
57 “Neverthelesse, we are not to undestand, that by such Liberty, the
Souverain Power of life, and death, is either abolished, or limited. For it
has been already shewn, that nothing the Soveraign Representative can
doe to a Subject, on what pretence soever, can properly called Injustice,
or Injury; because every Subject is Author of every act the Soveraign doth;
so that he never wanteth Right to any thing, otherwife, than as he him-
self is the Subject of God, and bound thereby to observe the laws of Na-
ture” (HOBBES, 1651: 109).

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que a verdadeira liberdade, ou seja, a soberania, pertence exclu-
sivamente ao Estado, “ninguém tem a liberdade de resistir à es-
pada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente”.
Admitir a existência de uma liberdade desse tipo corresponderia
à negação da própria soberania (ou seja, da única liberdade exis-
tente no Estado civil), “porque essa liberdade priva a soberania
dos meios para nos proteger, sendo portanto destrutiva da própria
essência do Estado” (HOBBES, 1651). Dessa forma, no Estado
civil a única e verdadeira liberdade para Hobbes, no sentido de
ausência de leis, ou seja, ausência de vínculos, é a liberdade do
soberano. Em Hobbes, a soberania é a tradução da liberdade ili-

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mitada do Estado, na medida em que ela é a infinita e ilimitada


possibilidade de criação de leis. Só que essas leis não vinculam o
Estado, ou melhor, o soberano.
O único vínculo ao poder soberano admitido por Hobbes é,
precisamente, aquele princípio em que este se funda: a preserva-
ção da vida. O início da teoria da soberania em Hobbes, que é a
preservação da vida, é também seu fim. Ou seja: o fundamento
do poder soberano enquanto poder ilimitado é, também, aquilo
que exige que mesmo ao poder soberano sejam interpostos limi-
tes. Com a assunção de que a preservação da vida é a um só
tempo causa e fim da instituição do Estado civil, ou seja, sua
origem e seu limite, fecha-se o círculo hobbesiano: a soberania
tem fundamento e limitação na preservação da vida; a preserva-
ção da vida é causa e limite da liberdade “soberana”. Para usar a
metáfora de Charles Loyseau, este é um “círculo perfeito”, onde
a perfeição se expressa na forma de limites que nada limitam, que
apenas abrem espaço para a expressão da soberania como abso-
luta, isto é, como ilimitada. Porque ilimitada, a soberania é livre
de todo vínculo, é a única expressão possível da liberdade após a
celebração dos pactos.
É assim que todas as formas de limitação à soberania admiti-
das por Hobbes não a fazem menos “perfeita”, isto é, menos ili-

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mitada. Quando, por exemplo, formula a questão sobre a liber-
dade de um grande número de homens, que em conjunto tenham
já resistido injustamente ao poder soberano, ou tenham cometi-
do algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a
morte, unirem-se e lutarem para a preservação da própria vida,
Hobbes admite uma exceção à sua total condenação do direito de
resistência. A resposta que Hobbes dá àquela questão é positiva,
afirmando que aqueles homens, certamente, têm o direito de
preservar suas vidas, coisa que os culpados podem buscar tanto
quanto os inocentes. Nessa passagem resta evidente que, mesmo
no Estado civil, a liberdade natural de ação no sentido de se pre-
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servar a própria vida “reentra” como um limite ao exercício do


poder soberano. Também a resistência passiva, ou desobediência
civil, reentra no círculo da soberania hobbesiano, admitindo-se
em determinadas circunstâncias o não cumprimento de suas or-
dens e, até mesmo, sua deposição. O fim do dever de obediência
dos súditos para com o soberano é a proteção destes, de forma
que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto,
e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é
capaz de os proteger58. Ou seja, se o fim do Estado é a preservação
da vida, cessa a soberania quando o soberano já não cumpre este
que é seu primeiro e único dever para com os súditos. Isto faz da
soberania “mortal”, isto é, limitada no tempo: “Embora a sobera-
nia seja imortal, na intenção daqueles que a criaram, não apenas
ela se encontra, por sua própria natureza, sujeita à morte violen-

58 “ The Obligation of Subjects to the Soveraign, is undestoos to kast as


long, and no longer, than the power lasteth, by which he is able to protect
them. For the right men have by Nature to protect themselves, when
none else can protect them, can by no Covenant be relinquished. The
Soveraingty is the Soule of the Common-wealth; which once desparted
from the Body, the members doe no more receive their motion from it.
The end for Obedience is Protection (...)” (HOBBES, 1651: 114).

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ta através da guerra exterior, mas encerra também em si mesma,
devido à ignorância e às paixões dos homens, e a partir da própria
instituição, grande número de sementes de mortalidade natural,
através da discórdia intestina” (HOBBES, 1651: 118).
Os limites admitidos por Hobbes ao poder são pensados, à
semelhança de Bodin, como limites exteriores, na medida em que
a preservação da vida é aquilo que dá causa à soberania ou, ain-
da, é o primeiro “direito” do soberano. O início e o fim do poder
encontram-se na noção de necessidade da preservação da vida. Este
é o limite ao poder, fundamento de sua ilimitação. Nesta direção,
um primeiro défaut lógico da teoria de Hobbes diz respeito à pró-

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pria fundação dos direitos do soberano, ou seja, da soberania. Se


Hobbes define o direito como uma ordem do soberano, como
pode o soberano, por sua vez, ter tantos e ilimitados direitos? Da
mesma forma que este não pode se auto-obrigar, também não
pode ter direitos que ele mesmo cria e, principalmente, não pode
ter, por direito próprio, o direito de fazer leis. É claro que é exa-
tamente em virtude de tal paradoxo que Hobbes lançou mão do
artifício do caráter originário do pacto social, sob o pano de fun-
do da necesssidade, dada pela lei natural, de preservação da vida.
Em A Dialogue Between a Philosopher and a Student of the Common
Laws of England, Hobbes discutiu “postumamente” com Coke (e
com toda a tradição medieval inglesa, sobretudo Bracton) sua tese
positivista do direito como uma ordem do soberano. Aqui, temos
em Hobbes um exemplo de um autor que conjugou o pressupos-
to do contrato social com a defesa do absolutismo, no sentido de
que o contrato é utilizado para fundar “juridicamente” o poder,
porém com base num direito que não é reconhecido propriamen-
te como lei e, portanto, como limitação. A ambiguidade sobre o
caráter jurídico ou pré-jurídico do contrato se resolve com a in-
terposição da vontade soberana e permite interpretar esta como
juridicamente ilimitada. A noção de soberania absoluta, assim,
desloca o problema da unidade do direito e da política para uma

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superioridade, ou seja, para o vértice de uma política personifi-
cada na figura do soberano59. O resultado é uma supraordenação
do direito à política, o que é uma estratégia assimetrizante que
constrói, na pessoa do soberano, essa unidade. Dessa forma é
encontrado, a um só tempo, um fundamento para a organização
da política na forma do Estado e para a unidade do direito na
pessoa do soberano. Essa é uma unidade que é construída sob a
base da doutrina jusnaturalista e, portanto, tendo como pano de
fundo, ainda, a noção de um direito natural – aqui desprovido do
caráter de “lei” – que antecede toda forma de direito positivo.
Afastam-se, assim, quaisquer teorias de caráter constitucionalista.
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Mas o défaut lógico mostra-se, imediatamente, evidente. Se o


primeiro dentre todos os direitos naturais é o da preservação da
vida, este é um direito que, para realizar-se, necessita da sanção
estatal. Ou seja, o próprio fundamento natural, moral, extrajurí-
dico, da doutrina hobbesiana clama por legalidade para valer
enquanto tal. A descrição que Koselleck fez do pensamento hob-
besiano elucida exatamente esse ponto: “O medo da morte induz
o homem a refugiar-se no Estado. Por isso a obrigação suprema
deste Estado é a de fornecer proteção. O Estado pode absorver
essa obrigação, apenas, se todos os indivíduos particulares reco-
locam seus próprios direitos no soberano que a todos representa.
Mas, e nisto encontra-se a contrassegurança política desta dou-
trina moral, apenas quando o Estado garante a observância des-
te comando racional, a moral racional é legal” (KOSELLECK,
1972: 31-32). Para a preservação da vida, portanto, não basta o
desejo dos sujeitos de que exista paz; esse desejo, “antes de se
tornar ‘moral’ necessita da sanção estatal”. Em Hobbes reconhe-
ce-se o fundamento do direito como fundado, por sua vez, no

59 De acordo com Jürgen HABERMAS, isso faz de HOBBES “(...) non


tanto l’apologeta dell’assolutismo illimitato, quanto piuttosto il teorico di
un Stato borghese di diritto privo di democrazia” (HABERMAS, 1996: 112).

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próprio direito. O Estado e o direito estatal são uma reivindicação
da razão, na medida em que, apenas com o Estado, a razão pode
ser tanto política quanto moral. Na formulação de outro autor
acerca deste mesmo problema, “paradoxalmente, o instinto tem
necessidade da instituição para sobreviver, e a instituição deve
‘brimer et briser’ o instinto para assegurar a sobrevivência”
(ROUX, in HOBBES, 1973: 8). Instinto e razão, são, portanto, os
dois lados de uma diferença. Só há razão diante do instinto; só
há instinto em confronto com a razão. A unidade desta diferença,
entre guerra e paz, natureza e sociedade, Hobbes indica como
sendo o soberano absoluto. Por isso que, naquele contexto, o

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Estado era possível apenas como Leviathan60. A fórmula hobbesia-
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na aponta, mais uma vez, para o caráter paradoxal da construção


da tese da soberania absoluta. De um lado, pode-se observar aqui
quanto, nessas que consistem nas primeiras formulações da so-
berania moderna, encontram-se traços, ainda, de uma justificação
moral e religiosa para o exercício do poder absoluto. Este é um
poder que busca apoio numa moral que, no entanto, já não é
capaz de apoiar-se a si mesma. Ela requer, por sua vez, o poder.
Por isso, a argumentação de Hobbes, assim como as de Grócio e
Bodin, veio evidenciar, exatamente, a necessidade de se recorrer
a elementos novos na busca de uma fundação para o poder e para
o direito. Estes elementos são morais, são religiosos, são naturais;
mas, ao mesmo tempo, já não são morais, religiosos, e sim polí-
ticos e jurídicos.

60 “La ragione chiede lo Stato, ma soltanto quando lo Stato c’é questa


ragione è política quanto morale. Hobbes, che in primo tempo aveva
fatto discendere lo Stato da un patto per cosí dire preordinato nel tempo,
introduce lo Stato per rendere possibile questo patto. Il paradosso logico
consiste nel fatto che questo Stato deve la sua esistenza a un patto, ma
poi esiste come grandezza autonoma. Soltanto il Leviatano è in quanto
Stato allo stesso tempo effetto e origine della fondazione dello Stato”
(KOSELLECK, 1972: 31-32).

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Entre tentativas de ocultação dos paradoxos e construção de
novos paradoxos, a semântica da soberania evoluiu, buscando
novos motivos e explicações para o fundamento do poder de
fundar o direito, ou do direito de exercer o poder. Nesta evolução,
as teses da soberania progressivamente tentem a abandonar as
construções morais como estratégias assimetrizantes do círculo
da soberania. É assim que, nesta “espiral” evolutiva da semântica
da soberania, encontramos em Charles Loyseau uma estratégia
de assimetrização do paradoxo da soberania que é particularmen-
te curiosa. Loyseau recorre a uma ideia de Natureza que se ex-
pressa como perfeição geométrica, recorrendo à Geometria para
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fundamentar o caráter ilimitado da soberania61.


Depois de distinguir a senhoria privada da senhoria pública,
assentando a necessidade de que tanto o poder quanto o direito
sejam fundados e praticados pelo Estado, Charles Loyseau assen-
ta na direção da tradição inaugurada por Bodin – o conceito de
soberania na ideia de autorictas, ou seja, no direito que tem o
soberano de criar, dizer e aplicar o direito, descrevendo esta como
um “direito intelectual, e uma autoridade que se tem sobre as
pessoas livres e os bens dos outros” (LOYSEAU, 1660: Les Seig-
neuries, 1). O primeiro dos direitos do soberano, aquele de fazer
as leis, consiste no que Loyseau chama de “instrumento da sobe-
rania” (LOYSEAU, 1660: Les Seigneuries, 20). O direito de fazer
as leis é um instrumento da soberania porque reúne em si todos

61 Assim como Le Bret já havia procedido para fundamentar o caráter


indivisível da soberania e, portanto, a prerrogativa dos reis em “darem”
leis”: “Mais l’on demande, si le Roy peut faire et publier tous ces change-
ments de Loix et d’Ordonnances, de sa seule authorité, sans l’aduis de
son Conseil, ny de ses Cours souveraines. A quoi l’on respond, que cela
ne reçoit point de doute, pource que le Roy est seul Souverain dans son
Royaume; et que la souveraineté n’est point plus divisible, que le poinct
en la geometrie“ (LE BRET, 1635: 34).

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os outros direitos, no sentido de que todas as outras faculdades
da soberania se dispõem por força da lei, ou seja, das ordennances
do príncipe soberano. Revela-se então a fórmula da soberania em
toda sua circularidade, na qual o príncipe é aquele que cria a lei,
que por sua vez é obra do Príncipe62. O círculo, a tautologia que
já se encontrava em Bodin, retorna. E, se esta construção da so-
berania é uma construção circular, esta é, assim como o círculo,
perfeita. O círculo da soberania, em Loyseau, fecha-se com a
imagem da perfeição circular desta: enquanto “perfeita e intei-
ra em todos seus pontos” (LOYSEAU, 1660: Les Seigneuries,
13), a soberania é um poder absoluto. O círculo deve ser perfei-

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to, sem defeitos, pois “assim como a coroa não é perfeita se seu
círculo não é inteiro, também a soberania não o é, se tiver algum
defeito”63.
A simbologia da coroa, trazida por Loyseau, em nosso enten-
der revela mais do que vem sugerir: revela, na verdade, um des-
locamento argumentativo na construção das teses da soberania.
Se, no período anterior, de defesa de um “poder divino dos reis”,
como podemos observar nos textos de D’Orleans (1620), a coroa
simbolizava a ligação dos soberanos com Deus, aqui ela simboli-
za a perfeição da soberania enquanto qualidade do poder. O poder
soberano é absoluto, então, não apenas porque é contrário à
natureza que este possa criar limitações para si mesmo (Bodin),
mas também porque este poder para ser perfeito – supremo – deve
ser ilimitado. O recurso aos elementos do moderno jusraciona-
lismo aparecem: o caráter ilimitado da soberania é uma condição

62 “Aussi le Prince & la loy ƒont comme relatifs, estant le Prince celuy
qui fait les loix, & la loy l’œuuvre du Prince” (LOYSEAU, 1660: Les Seig-
neuries, 21).
63 “Et comme la couronne ne peut eſtre ſi ſon circle non eſt entier, auſſi
la Souueraineté neſt point, ſi quelque choſe y defaut” (LOYSEAU, 1660:
Les Seigneuries, 12).

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da perfeição desta, que, para Loyseau, é uma noção abstrata que
pode ser comparada à imagem de uma coroa. Mas, tal como na
coroa, se o círculo é ilimitado é, mais uma vez, porque este é li-
mitado. Assim, o recurso à figura do círculo, representado pela
coroa que pousa sobre as cabeças dos soberanos, revela novamen-
te o paradoxo da soberania. Mesmo o espaço perfeito e ilimitado
do círculo requer limites. Assim como o espaço de um círculo
perfeito é mensurável, o poder soberano, enquanto poder ilimi-
tado, é antes um cálculo racional. É assim que Loyseau, assim
como Hobbes, assim como Bodin, encontra “notáveis limites” na
soberania que, ele mesmo, concebe como sem defeito. Novamen-
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te, é a Deus que se apela enquanto limite garantidor da não limi-


tação do poder soberano. O poder dos homens não pode ser ab-
soluto, dado que apenas Deus é onipotente; de onde se conclui
que existem regras que limitam o poder do soberano, sem incidir
na soberania: as leis de Deus, as leis da Justiça natural e não po-
sitivas, bem como as loix fondamentales. Tais limites, no entanto,
não constituem uma “imperfeição” do “círculo” da soberania: na
verdade, diz Loyseau, a soberania só não é mais perfeita que Deus.
Fecha-se assim o círculo da soberania: ela é tão mais perfeita, vale
dizer, tão mais ilimitada, quanto mais encontra limites que, na
verdade, nada limitam. Ou ainda: o poder é tão mais ilimitado
quanto mais calculada for sua extensão.

3.3  O círculo e o paradoxo da soberania: um poder


ilimitado “porque” limitado
A soberania moderna manifestou-se, como vimos, primeira-
mente como soberania absoluta. Constatamos, em nossas obser-
vações, que a noção absolutista de soberania foi erguida sobre a
base de um paradoxo, que a imagem da perfeição do círculo in-
vocada por Loyseau bem ilustra: só é ilimitada porque limitada.
Sob o argumento de que seria logicamente impossível uma auto-
limitação do poder, autores como Bodin e Hobbes acabaram por

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estabelecer vínculos ainda externos ao poder, que, porque exter-
nos, não mereciam ser chamados jurídicos. Tal fato não é parado-
xal apenas no sentido de que é uma contradição lógica. Mais do
que uma contradição lógica (A = não A), pode-se aqui verificar
que este é um paradoxo no sentido em que, aqui, utilizamos esse
termo: as doutrinas jusnaturalistas que trataram da soberania como
soberania absoluta tiveram como seu pressuposto a paradoxal ideia
de que a soberania só pode ser ilimitada quando limitada (A por-
que não A). Esse paradoxo foi, reiteradamente, ocultado pelas
teorias dos séculos XVI e XVII, que se utilizaram do argumento do
paradoxo para assentar o conceito de soberania sobre uma base

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absolutista. Aparentemente, uma vez ocultado, o paradoxo estaria


resolvido pelas teorias absolutistas, que lançaram mão de estraté-
gias diversas: Bodin, por exemplo, tratou a limitação e a não limi-
tação a partir de uma diferença de níveis, ou seja, a partir de uma
interrupção dessa circularidade: a diferença entre lei natural e lei
humana. A diferença entre soberania interna como supremacia e
soberania externa como igualdade em Grócio, por sua vez, também
é uma estratégia desse tipo. Já Loyseau traz a concepção de lois
fondamentales, leis que são puramente positivas, que sancionam a
si mesmas, uma vez que um soberano que as desprezasse amea-
çaria seu próprio domínio (LUHMANN, 1996a: 150). Como diz
Gierke, os limites que são interpostos à soberania não consistiam
em “verdadeiros limites jurídicos, mas (n)os confins naturais de
qualquer força exterior, (n)os postulados de uma visão racional
do próprio interesse ou (n)os resultados necessários de uma orga-
nização regular do poder estatal” (cf. SOLON, 1997: 37).
Observemos, neste passo, a curiosa função que, àquele tem-
po, cumpriu a noção de lois fondamentales. Segundo Luhmann, a
existência das leis fundamentais do reino seriam perfeitamente
compatíveis com a noção de soberania absoluta e com a proibição
da resistência contra o direito em vigor (LUHMANN, 1996a: 151).
Essas eram regras fundamentais que não tinham, a contrário do

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que Holmes e outros defendem, caráter constitucional. Tais “leis”
eram bastante conhecidas, de modo que não havia dúvida de
que, na prática política concreta, o monarca respeitaria o direito,
dado que “lhe era lícito modificar o direito, ou derrogá-lo nos
casos particulares, e uma vez que a feroz retórica da soberania
lhe oferecia absolvição por tudo aquilo que fosse de seu prazer”
(LUHMANN, 1996b: 102-103). É assim que a concepção desses
limites exteriores e racionais ao exercício da soberania pode ser
interpretada como “uma autolimitação da força mediante a ra-
zão”, num contexto em que “a interpretação da razão poderá
muito bem depender unicamente do príncipe e tornar-se sinô-
nimo da Razão do Estado”64. No entanto, em que pese o caráter
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de “Razão de Estado” dessa noção de lois fondamentales, é de se


reconhecer, ainda que bastante precariamente, mas com algum
efeito prático, que nelas já se via aberto o caminho para o pro-
gressivo reconhecimento do direito, e não apenas do direito
natural, como um instrumento de limitação jurídica do exercício
do poder soberano que, desde sua origem, foi afirmado como a
um só tempo jurídico e político. Em Emer de Vattel, já despon-
tava essa vocação constitucionalista das leis fundamentais, quan-
do este afirma, em 1758, portanto às vésperas da invenção das
modernas constituições, que o poder soberano é regulamentado
e limitado pelas leis fundamentais, estando o príncipe obrigado
não apenas a respeitá-las, mas também a zelar pela sua manu-
tenção65. Aquelas leis fundamentais tratavam, sobretudo, de

64 “A razão, que antes era um fim em si mesma, converte-se num ins-


trumento do Estado e, na medida em que a Razão do Estado é colocada
em primeiro plano, qualquer ideia de um vínculo de direito natural im-
posto à sua atividade pode desaparecer” (SOLON: 1997, 36-37).
65 “Mais lorsque la puissance souveraine est limitée & reglée par les Lois
fondamentales de l’État; ses Lois marquent au Prince l’etendue & les
bornes de son pouvoir, & la manière dont il doit l’exercer. Le prince est
donce étroitment obbligé, non-seulement à les respecter, mais encore à

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questões relativas à sucessão do trono de forma que, para justifi-
car o caráter vinculante de tais leis até mesmo em face do sobe-
rano, os autores serviam-se “de um argumento autorreferencial,
isto é, que o Estado não pode negar aqueles princípios aos quais
deve sua própria existência” (LUHMANN, 1996b: 106).
Tudo isto revela quanto a soberania absoluta mostra-se para-
doxalmente frágil. Ela perde seu caráter “ilimitado”, ou seja, ab-
soluto, diante do absolutismo de uma concepção jusnaturalista da
unidade da política e do direito. Para que tudo isso funcionasse e
as pessoas fossem tementes ao soberano, devendo-lhe obediência,
era necessário pressupor que este, por sua vez, fosse temente a

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Deus. Na verdade, a soberania absoluta, por um lado, não é abso-


luta, pois encontra seus limites tanto no velho direito natural e na
preservação da vida como lei natural (ainda que não propriamen-
te jurídica) quanto nas chamadas lois fondamentales; por outro, é
absoluta, na medida em que pressupõe a unidade jusnaturalista
de direito e política, ou seja, a existência de um direito natural
que, como limite, não limita nada. Essa é uma solução evidente-
mente precária, na medida em que funciona apenas sob a base do
pressuposto de que o soberano é bom, justo, racional, temente a
Deus. Estes são os “limites” nos quais se buscou um fundamento
para o caráter ilimitado da soberania absoluta. Mas o que fazer se
o soberano não fosse bom e justo? O pressuposto é o de que o
soberano, necessariamente, não poderia violar o direito natural.
Partindo dessa pressuposição, a preservação da vida dos súditos é,
na visão do Estado como um corpo formado dos corpos de todos
os indivíduos, nada mais que a preservação da vida do Estado. Mas
isso significou, também, que os súditos poderiam ser mortos para
que fosse preservado o Estado.

les maintenir. La Constitution & les Loix fondamentales sont le plan sur
lequel la Nation a résolu de travailler à son bonheur: l’ exécution est
confiée au Prince” (VATTEL, 1758: 20).

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Sob esse fundo teórico, enquanto na Inglaterra a concepção
medieval de direito subsistiu e sobreviveu, adaptando-se aos no-
vos tempos (sem deixar de insistir na distinção da lei como norma
independente da vontade do príncipe e preexistente a ela), no
continente triunfou a concepção do príncipe desvinculado da lei
e único autor desta, de forma que o Estado moderno, como Es-
tado absoluto, afirmou-se como sucedâneo da ordem feudal. O
Estado absoluto superou a questão religiosa ao estabilizar-se como
uma esfera não religiosa, mas sim racional. Ao final dos seiscen-
tos, a convicção de que os assuntos de Estado sobrepunham-se à
consciência religiosa propagou-se por toda a Europa. Como es-
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creveu Jurieu, a propósito do direito que este reivindicava aos


soberanos de utilizarem de todos os meios para banir as religiões
“não verdadeiras”, não era necessário viver na mesma ilha de
Hobbes para ser seu discípulo, pois infelizmente, existiam liber-
tinos por toda parte66. De modo que as versões mais extremadas
do absolutismo acabaram por manifestar-se na forma de um
poder dos reis sobre a religião, o que incluía um poder dos reis
sobre os papas. Se a autoridade dos reis havia construído o papis-
mo, essa mesma autoridade o destruíra, escreve Jurieu, e tudo
isso será sempre conforme ao desenho de Deus e à sua vontade67.
Como “situação de partida” do Estado moderno, o Estado
absoluto teve que lidar com as tensões de uma sociedade estrati-
ficada que sentia as pressões de uma nova forma de diferenciação
social, característica da modernidade68. O Estado absoluto já dava

66 “pour être disciple de Hobbes, il n’est pas necessaire d’être né dans la


même Isle que lui; malheureusement il y a des libertins par tout” (JURIEU,
1687: 9).
67 “C’est la authotité des Rois de l’ Occident qui a bâti l’ Empire du Pa-
pisme, ce sera leur autorité qui le détruira. Et cela sera entiérement con-
forme ao dessein de Dieu & à sa volonté (…)” (JURIEU, 1687: 9).
68 KOSELLECK oferece uma interessante descrição desta situação: “Lo

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indícios da superação da estratificação, na medida em que o mo-
narca reivindicava para si uma responsabilidade absoluta pela
preservação do próprio Estado (isto é da paz): “O monopólio da
instituição da paz por parte do monarca impõe sua absoluta res-
ponsabilidade, que encontrou expressão típica daquela época na
tese da responsabilidade unicamente diante de Deus” (KOSEL-
LECK, 1972: 21). Em 1621, Barclay (defensor das teses absolu-
tistas) indicou, no romance Argenis, o modo pelo qual o monarca
deveria submeter seu país: a absoluta responsabilidade do mo-
narca na preservação da paz implica que este deve submeter a
todos, sob pena de que nenhum seja verdadeiramente submisso.

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Ou seja, apenas se todos os súditos fossem subordinados em igual


medida ao monarca, este podia incumbir-se de sua responsabili-
dade de manter a paz. Isso significa abolição da estratificação.
Aqui, vê-se a afirmação de uma igualdade, ainda que na submis-
são. Da mesma forma, o individualismo hobbesiano, “enquanto
pressuposto de um estado ordenado, é contemporaneamente
também a condição para o livre desenvolvimento do indivíduo”
(KOSELLECK, 1972: 26).
O argumento da razão de Estado, ainda que a expressão de-
sapareça em autores como Bodin, Grócio e Hobbes (de quem,

Stato monarchico, che si appoggia sui funzionari e sui militari, crea un


campo d’azione extra-religioso, razionale, che in contrasto con i suoi altri
atti fu determinato in senso político-statale. Sul piano sociale, i monarchi
rimasero talmente legati alla tradizionale stratificazione basata sui ceti,
che nella maggioranza dei casi si ingegneranno per conservala. Sul piano
político, invece, i monarchi cercarono di eliminare o di neutralizzare
tutte le istituzioni autonome. Anche il mercantilismo in quanto sistema
econômico è subordinato all’imperativo della pianificazione política e
della guida statale. Così, i problemi della religione e della Chiesa furono
trattati in riferimento alla loro utilità per lo Stato, sia nel quadro di una
Chiesa di Stato sia nel quadro di una adeguata tolleranza” (KOSELLECK,
1972: 18-19).

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justamente, depois Cumberland dirá tudo ter construído em prol
da razão de Estado69), continua sendo o pano de fundo da discus-
são da soberania absoluta, de modo que, apontando para uma
supremacia da política em face do direito, a unidade estatal ainda
não correspondia a uma verdadeira integração de política e direi-
to e sim, tão somente, a uma subordinação do segundo à primei-
ra, em nome da preservação do Estado (ou seja, da paz). Se
aqueles autores silenciaram em relação à expressão “razão de
Estado”, ao mesmo tempo que realizavam esta ideia como Real-
politik, ou seja, afirmando a potência da soberania em sua totali-
dade, o tema “direito de resitência” é, também, recorrente em
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todos esses autores, tanto no sentido de negação quanto, também,


de um reconhecimento ainda que limitado. Isso denota o fato de
que a noção de soberania absoluta não se apresentou capaz de
fazer frente àquele direito que era invocado quando era necessá-
rio rechaçar uma política praticada contrariamente ao direito. A
recorrência do tema “direito de resistência” (e a prova dessa afir-
mativa é que mesmo Bodin admitiu a resistência fundada) retira
o véu da soberania de que se cobrira a velha noção de “razão de
Estado”. Em primeiro lugar, porque ao direito de resistência já
não era possível opor-se uma razão de Estado que, em nome da
paz, destruía a própria paz e, portanto, também o Estado.
Da outra parte da diferença entre razão de Estado e direito de
resistência, isto é, do lado do direito, o mesmo problema perma-
necia latente. O direito de resistência, enquanto motivo jurídico
capaz de enfrentar os desmandos da política, levara à compreen-
são de que o direito, por si só, não poderia garantir a paz. A so-
lução da soberania concentrara num só vértice direito e política,
resistência e razão de Estado, anulando e sobrepondo-se àquelas

69 “Hobbes enseigne par-tout, que la Raison de l’État, ou du Souverain,


est la seule droite & véritable” (CUMBERLAND, 1757: 315).

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diferenças que, no entanto, permaneciam. Mas se, nas teses da
soberania absoluta, essa integração de direito e política fez pre-
valecer a última face ao primeiro, naquele período, à teoria ab-
solutista de Bodin opuseram-se aquelas teorias dos “monarcôma-
cos”, como Althusius e Hotman, abrindo caminho, no
continente, para a afirmação pós-revolucionária das teses da
soberania popular e para o constitucionalismo (princípios não
necessariamente coincidentes). Assim, o Estado absoluto fora,
como bem observa KOSELLECK, curiosamente “a plataforma de
partida do Iluminismo” (KOSELLECK, 1972: 19). Com as con-
quistas evolutivas que, nos séculos seguintes, tornaram possível

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um entrelaçamente de direito e política na forma das constitui-


ções, “a descrição do sistema é levada até o extremo do paradoxo
da soberania, isto é, um poder ilimitado de autolimitação”
(LUHMANN, 1996b: 103).

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4 Os paradoxos da modernidade e a
soberania

“There are paradoxes everewhere, wherever we look for foundations.”


Niklas Luhmann

Já no início dessa investigação sobre a história semântica do


conceito de soberania determinamos ser este um conceito tipica-
mente moderno. Mas o que este conceito tem de moderno? Qual
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é a modernidade do moderno conceito de soberania? Em nosso


estudo, partimos do reconhecimento de que este conceito, como
todo e qualquer “conceito”, encerra uma estrutura paradoxal. Em
nossa descrição do conceito de soberania procuramos evidenciar
como, ao longo desta tradição semântica, foi velada e desvelada
a sua estrutura paradoxal. Nesse percurso, seguindo as indicações
da teoria dos sistemas, assumimos o paradoxo como constitutivo
da realidade. Assumimos, também, a realidade da soberania como
paradoxal. Depois, em nossa descrição, observamos como a rea-
lidade do operar social acaba trazendo à tona antigos paradoxos,
aparentemente “resolvidos” quando travestidos de “conceitos”
(vimos isso especialmente no terceiro capítulo). Nosso intento foi
o de realizar uma observação de observações, ou seja, uma ob-
servação de como a sociedade, ao se auto-observar, constrói pa-
radoxos. O fio condutor de nossa investigação, ou seja, o nosso
problema foi saber, portanto, qual é a função da soberania.
Em 1920 Hans Kelsen escreveu um estudo sobre o conceito
de soberania que chamou Il Problema della Sovranità1. Ali Kelsen

1 Referimo-nos a esse texto e às teses ali desenvolvidas ao final do se-


gundo capítulo.

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descreveu o conceito de soberania como um dogma, como algo
a ser abandonado, visto que tal conceito serviu apenas para aten-
der à necessidades práticas, para servir às várias tendências polí-
ticas. O conceito de soberania, de fato, apresenta-se como um
conceito, da perspectiva de Kelsen, bastante problemático. Se,
para Kelsen, não há nada na realidade social que se possa chamar
por Estado, nessa realidade também não existe algo que mereça
o nome de soberania, enquanto manifestação do poder do Estado
e nota essencial deste. Kelsen conclui que, assim como a norma
fundamental cumpre o papel de, como um pressuposto hipotéti-
co, tornar possível “pensar logicamente” o direito desde sua po-

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sitividade, a soberania pode apenas desempenhar função seme-


lhante em relação ao Estado. Trata-se, portanto, de uma visão
que reconhece o fato de que a soberania não encontra correspon-
dência na realidade ontológica do Estado e do direito, no sentido
de que aqui há um reconhecimento de que o direito não é uma
ordem do soberano, assim como o Estado não é soberano. O
conceito de soberania existe apenas enquanto cumpre uma fun-
ção cognoscitiva e, portanto, teórica. Com isso, o que Kelsen faz
é descartar o conceito de soberania, tratando-o como mero dog-
ma, que vem cumprir uma função meramente cognoscitiva no
campo da política, não cumprindo sequer esse papel no campo
do direito. Mas dessa forma Kelsen não vê, desde sua perspectiva
neopositivista, que o problema do conhecimento também é um
problema social e que por detrás dele se esconde um outro pro-
blema, frequentemente descrito e ocultado sob o conceito de
soberania: o problema da fundação do direito e da política, que
ele mesmo ocultou sob a etiqueta “norma fundamental”.
O interessante, nesse estudo de Kelsen, é que nele podemos
observar como as teorias não podem ver aquilo que elas não
podem ver. Kelsen reconhece o caráter dogmático do conceito de
soberania, mas resolve esse problema através do recurso a uma
referência – a norma fundamental – que, ainda que não seja

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propriamente um dogma, representa uma estranha ontologia. A
norma fundamental realiza o fechamento do ordenamento jurí-
dico, é uma norma porque não é uma norma, é um pressuposto
lógico para pensar a unidade do ordenamento jurídico, mas, ao
mesmo tempo, representa o fato histórico que se autoconstitui
como origem lógico-histórica da validade do direito. Em resumo,
Kelsen rejeita com razão o dogma da soberania, e portanto trata
a soberania como um princípio dogmático que é destituído de
referências materiais; no entanto, deve admitir um princípio que
não tem uma função diferente daquela dogmática. Se olharmos
bem para a norma fundamental, veremos que este é um concei-
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to que vem cumprir, na teoria do direito, a mesma função que


nela desempenhou o princípio da soberania. Podemos ainda ver
que, por sua vez, a norma fundamental não é apenas contradi-
tória como se costuma dizer, mas sim, tal como o conceito de
soberania, é paradoxal2.
Se soberania é um “problema”, como diz Kelsen, seu caráter
problemático está no fato de que neste conceito são recolhidas
soluções problemáticas de outros problemas. Da perspectiva da
teoria dos sistemas, o problema da soberania não consiste na sua
dogmaticidade ou na sua não correspondência a uma realidade.
O problema da soberania decorre dos problemas sociais que,
com o conceito de soberania, pretende-se resolver. Numa palavra,
na função da soberania. Como as teorias clássicas do direito e da
política, enquanto modalidades da auto-observação do direito e

2 A característica da norma fundamental não é; é uma norma e não é


uma norma, mas sim é uma norma porque não é uma norma. É funda-
mental porque não é nenhum fundamento. Para falarmos brevemente de
Kelsen, a função da norma fundamental é aquela de ocultar o paradoxo
da autofundação do direito e esta é uma função correspondente àquela
de soberania.

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da política3, não podem observar desde o exterior do sistema a
função da soberania – em outras palavras, não podem resolver o
paradoxo – elas observam, reiteradamente, o paradoxo na fun-
dação da ideia de soberania que é dada por outra teoria. Deste
modo, a história das teorias nada mais é que uma história do
deslocamento do paradoxo através da determinação de novos
fundamentos. O paradoxo permanece. Considera-se como pro-
gresso teórico nada mais que a crítica de um fundamento efetua-
da através da determinação de outro fundamento. O progresso
das teorias, em outras palavras, seria um acúmulo de detritos. As
teorias descrevem o conceito de soberania, tal como este foi de-

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senvolvido por outras teorias, como confuso, ambíguo ou con-


traditório, exatamente porque elas não podem ver que o proble-
ma social a que este conceito vem responder – isto é, a questão
da fundação – é, por sua vez, paradoxal.
A função da soberania, como vimos, consiste em oferecer uma
resposta para um problema social que não pode ser resolvido
através da introdução de um conceito: o problema da fundação.
As teorias não podem ver que a unidade do direito e da política
podem ser descritas, apenas, como a unidade de uma diferença.
Nisso, exatamente, consiste o traço moderno do conceito de so-
berania, ou melhor, a característica da modernidade que vem a
ser descrita mediante a introdução da noção de soberania.
Essa tensão entre diferença e “indiferença” de direito e polí-
tica traz a característica da soberania moderna como algo distin-
to da chamada soberania medieval. Assim se explica por que, nas
investigações sobre as origens teológicas deste conceito, pode-se
observar como, na definição teológica da soberania, que quer
apontar a superioridade do poder divino, e na política, que quer
indicar a exclusividade do poder mundano soberano (porque

3 E, neste sentido, não apenas as teorias clássicas, mas todas as teorias.

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fundado na vontade de Deus), o recurso para a justificação dessas
características está, no campo da religião, no universo político e,
no campo político, no universo religioso. Tal fato reflete a indife-
renciação medieval entre política e religião e, consequentemente,
entre teologia e reflexão jurídico-política.
No período medieval, em que poder e direito eram relativa-
mente indiferentes um ao outro, já existia a necessidade de um
vínculo jurídico ao poder, ainda que, naquele contexto, nem
poder nem direito pudessem ser percebidos como uma unidade
“soberana”. Quando tornam-se, então, implausíveis as descrições
fundadas na teologia, ou fundadas na noção absolutista de um
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“direito divino dos reis”, a estratégia explicativa da sociedade


busca novos conceitos, novas “fundações”. A história semântica
do conceito de soberania, conforme vimos, segue essa evolução,
tornando-a possível.
O Estado moderno, e isso já no caso do moderno Estado ab-
solutista, conhece esta noção de unidade da política e do direito,
produzindo, de maneira cada vez mais decisiva, o direito ao qual
tenderá, gradualmente, a submeter-se. Para aqueles que pensam
que a moderna concepção de soberania seja o resultado de um
longo processo de secularização, é preciso dizer que a conclusão
desse processo não será outra coisa senão a definitiva submissão
do poder ao direito. Soberania, de fato (e pelo menos desde o
século XVI) é reconhecida como uma modalidade da autolimita-
ção do poder fundado no direito: a soberania do Estado moderno
será representada como qualidade de um poder absoluto e arbi-
trário para servir de fundamento ao sistema político de um Esta-
do que não será nem arbitrário, nem absoluto, nem exclusivo.
Mas é exatamente nisto que consiste, como vimos, o caráter
paradoxal da soberania estatal.
A última versão do paradoxo da soberania não é, sequer,
muito original. A ideia de soberania popular surgiu, como vimos,
já no período medieval e, desde sua origem, está ligada à noção

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de participação, ainda que não no sentido em que hoje interpre-
tamos este termo. O conceito de participação, naquela época,
vinha descrever a relação medieval das partes com o todo; é um
conceito que traduz pretensões morais, de acordo com as quais
todas as partes possuem direitos e podem participar (LUHMANN
& DE GIORGI, 1993: 349). Já, então, a relação que existe entre
o todo e as suas partes é uma relação de tensão, que é ocultada
com a interposição da distinção entre representação e participação.
Como dizem Luhmann e De Giorgi, é fácil ver, aqui, como forma
produz forma, produz forma, produz forma. No século XIV, a
estabilização de uma tal ideia de soberania popular indica a ne-

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cessidade de se universalizar aquilo que ainda não pode ser uni-


versalizado – o povo. Encontramo-nos diante daquilo que Parsons,
em um sentido bastante especial, e depois Luhmann e De Giorgi,
num sentido muito mais aproximado àquele que é aqui utilizado,
chamam preadaptive advances.
O recurso moderno à ideia de soberania oculta o paradoxo da
autofundação da política e do direito, e oferece uma referência
universal, e neste sentido democrática, externa aos sistemas que
operam sem referências externas. Neste sentido, soberania popu-
lar, com toda a semântica que se desenvolve acerca desse concei-
to, adquire a função de um pressuposto evolutivo – preadaptive
advances – que rompe os obstáculos à afirmação daquela forma da
diferenciação social que é a diferenciação funcional. Política e
direito, podem especificar-se cada um desde sua função, podem
diferenciar-se em base a esta função, podem operar sem funda-
mento, exatamente porque encontram uma fundação paradoxal
da sua fundação paradoxal. Soberania é este paradoxo constitu-
tivo que oculta paradoxos constitutivos. Soberania popular des-
creve o fundamento (paradoxal) da unidade da diferença entre
direito e política.
Este paradoxo do fundamento encerra em si, também, uma
estratégia de contenção das pressões que o ambiente da socieda-

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de exercita sobre os sistemas sociais da política e do direito. No
caso da chamada “soberania popular”, última versão do parado-
xo da soberania, tais pressões manifestam-se como pretensões de
inclusão na política e no direito de uma maneira que a diferen-
ciação funcional não pode mais garantir.
O paradoxo do paradoxo está nisso, que as teorias da sobera-
nia (os sistemas de reflexão do direito e da política) tratam a so-
berania como algo real e material. Desde o exterior destes siste-
mas, o povo espera que a sua soberania seja real e material. Na
realidade, a função do conceito, a função do fundamento, a
função do paradoxo da soberania consiste no fato que o real
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exercício da soberania legitima uma técnica de temporalização


das decisões políticas, das procedimentalizações jurídicas, das
expectativas do ambiente destes sistemas que é constituído por
aquilo que na linguagem da política e do direito se chama povo.
Decisões legítimas podem ser negadas por decisões legítimas,
vínculos legitimamente constituídos podem ser despedaçados por
outros vínculos legitimamente constituídos, expectativas legítimas
podem ser desiludidas por decisões legítimas, as quais, no futuro,
podem ser negadas por outras decisões, sempre legítimas, que
realizam outras expectativas, naturalmente legítimas. Essa é a
realidade funcional da fórmula “o povo governa o povo através
do povo”. É possível vermos como o povo pode exercitar plena-
mente a sua soberania apenas quando ele não tem nenhuma
soberania. Desta forma, a modernidade do poder consiste no fato
de que o poder moderno é um poder que não tem nenhum poder
(LUHMANN & DE GIORGI, 1993). Do mesmo modo, a moderni-
dade da soberania popular consiste no fato de que dessa é titular
o povo, “quem” não é nada mais que uma construção jurídica e
um referente externo do sistema político.
A soberania não é um círculo perfeito. Mesmo o espaço ilimi-
tado do círculo requer limites, conforme vimos ao analisarmos as
teses absolutistas da soberania, ao longo do segundo capítulo. A

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soberania poderia ser representada, mais adequadamente, pela
figura conhecida como “tira de Möebius”. Quando as duas pontas
da tira de Moebius se unem, aquele espaço limitado abre, apenas,
o espaço da ilimitação. Assim como a Matemática ainda não des-
cobriu como medir a tira de Möebius, o poder soberano perma-
nece incomensurável, embora todos saibamos que isto é uma
ilusão que, exatamente porque é real, funda a impossibilidade da
democracia como algo possível.

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