Você está na página 1de 16

O Conceito da Religião nos Kôngo: o Caso da Ñsîmba Vita (1684-1706)

Religion Concept between Kôngo People: Case of Ñsîmba Vita (1684-1706)


Patrício Batsîkama*
Resumo: A religião é um conceito em constante construção e servir-se-á aqui do caso de kimpasi na época
de Dona Beatriz Ñsîmba Vita (1684-1706) com objectivo de perceber como ela é entendida pelos Kôngo. Para
melhor compreensão, referenciar-se-á o Kimpasi que, no século XVIII, era tido como espaço religioso do sin-
cretismo. Entre os Kôngo, a religião tem cinco significações convergentes. Com isso, o presente artigo reflec-
te sobre os aportes da profetisa ética chamada Dona Beatriz Ñsîmba Vita e muito conhecida por “Kimpa Vita”.
Palavras-Chave: Ñsîmba Vita; Religião; Ancestralidade africana; Reino do Kôngo.

Considerações iniciais [alma/mwêla2] que é o centro independen-


Vamos aqui considerar cinco rela- te de terra/ar que integra a sociedade (ser
ções que definem concomitantemente a social). Pelo menos essa leitura orienta-
religião: (1) relação homem/indivíduo; (2) -nos melhor.
relação homem/natureza; (3) relação entre Mircea Eliade desenvolveu a filiação
mundo dos vivos e o Além; (4) relação en- entre ordem estrutural e eterno retorno ao
tre imaginação e realidade (face a interpre- separar dois espaços antagônicos: sagra-
tação racional); (5) relação entre energia do/profano. O ideal é questionar o sagrado
primitiva e a existência. É na base dessas na perspectiva da ética/respeito individual
cinco relações que nos interessa aqui olhar que reconhece o extraordinário (sobrena-
a religião, como uma plataforma que fun- tural). Com essa acepção, entende-se o
ciona consoante dois condicionantes sistê- propósito de Max Müller segundo o qual a
micos principais: (a) cultura; (b) programa. religião fundamenta-se na fé (uma faculda-
O primeiro sistema (cultura) é estrutural e de de espírito além da razão) para alcan-
propõe três domínios: sociedade histórica, çar o infinito. Existe uma revisão de alguns
símbolos percebidos e ordem. O segundo pensadores africanos sobre os conceitos
sistema (programa) é funcional e articula herdados desses autores3 que iremos aqui
as virtudes1, demência primitiva e eterno utilizar, relacionados com a religião e que
retorno. constroem a sua estrutura da práxis na
A relação homem/indivíduo versa-se base: (a) magia e tabus; (b) dogmas e mi-
na relação entre espírito e matéria e efe- tos; (c) culto e reverência (MONSENGWO,
tiva-se em três dimensões ontológicas: (i) 1977, p. 155, 161); (e) espírito superior e
corpo; (ii) vontade/alma; (iii) espírito/razão. seus antropomorfismos (MULAGO, 1968,
A fusão da matéria/corpo (terra) e espírito/ p. 23-64; MUTOMBO, 1996, p. 133-141); (f)
sopro (Ar) proporciona identidade/vontade totem e natura (MALENGU, 1967, p. 521-
522); (g) origem e destino (BIMWENYI,
1968, p. 143-145). Vamos obedecer a essa
* Historiador e antropólogo e autor de alguns artigos e
livros. É professor de História de Angola e Diretor do Cen-
tro de Estudos e Investigação Científica Aplicada (CEI- 2. O termo mwêla reverte-se no domínio racional. No
CA) do Instituto Superior Politécnico Tocoista em Luanda, domínio espiritual, é mpêve (sopro de Deus).
Angola.
3. Estamos nos referindo a sociologia da religião que
1. Olhar para o indivíduo como um programa biocultural: tem como autores mais citados: Durkheim, Muller, We-
piedade, dignidade, honra, coragem etc. ber, Eliade, Luckmann, entre outros.

DOI: 10.47209/2675-6862.v.2n.2.p.102-117
leitura para a nossa abordagem, em con- da são especialistas desta matéria, para
sonância com a escola de Kinsâsa que tra- garantir a harmonia de origem/destino do
tou desse assunto depois do Concílio Vati- espírito.
cano II (MALULA, 1965, p. 262). Ñsîmba Vita nasceu em Ngând’a
Talvez com essa base se perceba a Mbwêla, no vale de Mbidizi em Kimbângu.
construção ontológica do homem, enquan- Por ser gêmeos (ñsîmba) tinha acesso a
to indivíduo, para alcançar o fim da rela- masîmba e, tal como nos informa Bernar-
ção homem/indivíduo (MUJYNYA, 1975, do da Gallo, ela foi ñgânga marinda. Como
p. 148-149). Essa relação é cultural e pro- já vimos, deve tratar-se de ñgânga mayîn-
gramática (WAMBA-DYA-WAMBA, 1980, da. Por fim, ela pertencia a linhagem dos
p. 231; MULAGO, 1956, p. 135). O Ho- Nsaku’e Lawu. Estamos perante um capi-
mem transforma a natureza, experimenta tal religioso de grande peso na estrutura
uma autotransformação e cria um espaço social kôngo. Na cultura kôngo, os gêmeos
mentalmente construído (MULAGO, 1987, são oriundos dos Espíritos dos Heróis ci-
p. 277). Primeiro: é a composição do indi- vilizadores e fundadores das aldeias (VAN
víduo: espírito (alheio e soberano) que se WING, 1938) que protegem a sociedade:
precisa preservar (fôlego) mesmo quando o verbo ku-sîmba significa sustentar, pro-
se está inconsciente; o corpo (enquanto teger. A natureza oferece-lhes habilidades
manifesto da natureza) que é preciso edu- que lhes permitem comunicação com o
car e formatar, embora limitado (matéria). mundo dos espíritos. Diz o padre Bernar-
Desse modo, o verdadeiro indivíduo passa do da Gallo, Ñsîmba Vita “era iniciada na
a ser a sua própria vontade, a única entida- arte feiticeira”, quer dizer, magia no sentido
de mitológica livre. Porém, parece insegu- pejorativo. O que não corresponde com a
ra enquanto ser solitário, até porque como verdade. O padre descreve que, quando
acabamos de ver o indivíduo nunca está/é foi recebida pelo rei, Dona Beatriz girou à
só. Por depender do sopro (que pode eva- volta desse de uma maneira como se ela
porar sem avisar), o homem/vontade (liber- não tocasse o chão. A Tradição registrou-
dade) percorre um programa que elimina -o como levitação. Ñgânga mayînda tem,
as suas dúvidas, dominado pelas crenças entre outras capacidades sobrenaturais, a
lógicas e razões afetivas. Segundo: é a de levitar e de identificar os objetos sagra-
imensidão do Espírito, preso numa estru- dos por terem sido tocados pelo Espírito
tura padronizada e limitada sendo dirigida/ Primitivo (Ñzâmbi, Deus) ou os ñkita (Espí-
liderada pela vontade egoísta e ignorante. rito da Natureza) ou ainda os bisîmbi (Es-
Por isso, dá espaço às crenças. Des- pírito dos Heróis civilizadores) ou mesmo,
ta maneira, percebe-se o programa/cultura o que é comum, os Bakûlu (Espírito dos
cuja articulação consiste em: (i) estabe- ancestrais). Por último, era Nsaku’e Lawu.
lecer família; (ii) construir linhagens; (iii) Dito de outra forma, ñgânga kitômi que os
limitar o clã; (iv) construir unidade social; primeiros padres carmelitas compararam a
(v) padronizar anéis sociais ou políticos Sumo Pontífice Católico. Com esse capital
ou ainda econômicos. No plano individual, religioso, o povo tinha plena consciência
este programa/cultura sufoca o espírito e que ela domiciliava o Espírito de Ñzâmbi e
condiciona a sua liberdade. A morte é en- dela provinham as bênçãos e a fertilidade
tão, interpretada como uma autêntica liber- da sociedade. Foi por isso que profetizava
tação do espírito e, consequentemente, e curava todas as enfermidades. E isso em
nasce a ideia da vontade de se tornar alma nada tem com magia no sentido pejorativo.
ancestral que sobrevive quando cessa o Como se verá adiante, a religião é “ter boa
corpo. Para isso, são necessárias cerimô- saúde física e mental”.
nias específicas. Em kikôngo, o corpo é Por ser Vita Wânga (Nsaku’e Lawu)
nitu, espírito é mwânda e a vontade/alma é ela deveria ser, simultaneamente, ñgânga
mwêla. Ñgânga mvûmbi e ngânga mayîn- kitômi: maior sacerdotisa. Onde nasceu,
Afros & Amazônicos 103 vol. 2, n º 2, 2020
havia Ñzâmba Mbûdi, também chamado ar (fumo, térmitas com asas, LAMAN,
Ñzîmbu’a Mbûdi, local onde se curava os 1936, p. 993-994), levitar. O especialis-
doentes. Girolamo Merolla da Sorento con- ta era chamado de Ñtûmba Mvêmba.
siderou essa magia de diabólica (MERO- 2) Kitômi: (a) toma: ser bom, agradável,
LA, 1692, p. 37, 53, 88). Na verdade, trata- perfeito, útil, simpático, exacto; (b) es-
-se de um lugar sagrado, tal como o nome tar em perfeita saúde; (c) estar nas al-
descreve. Ñgând’a Mbwêla era o local dos turas, ser profundo, grande imensidão
Nsaku’e Lawu, fundado por sacerdotes (LAMAN, 1936, p. 981). O especialista
que tinham a capacidade de domiciliar os chamava-se ñgânga kitomi.
espíritos dos ancestrais: Mbwêla [mwêla],
local abençoado pelos espíritos dos an- 3) Dibûndu: (a) bûnda: unir, reunir, jun-
cestrais. Com esta capital, a sociedade tar, encapsular (o cadáver) num pano;
aceitou Ñsîmba Vita quer pela sua origem (b) iniciar alguém na magia (sobrena-
social, quer pelas suas obras assim como tural); (c) fazer algo de graça, sem es-
por ser iniciada ñgânga mayînda. perar retribuição; (d) bûnduka: cair por
terra, estar estendido na terra, sobres-
Daí vem a realização de kimpasi que sair da terra (LAMAN, 1936, p 74-75,
aceitava personalidades com esse capital 76-77). O especialista é chamado de
religioso, com dons especiais, e que legiti- ñgânga Ñzâmbi.
ma Ñsîmba Vita. Com isso, já estamos tra-
tando de: (i) relação homem/natureza; (ii) 4) Buñkîsi: (a) sikîsa: santificar, fortifi-
relação mundo físico/Além; homem/natu- car, tornar sólido; (b) sîka (de sa): deci-
reza é, parcialmente, uma questão indivisí- dir, decretar, fazer voto, secar, evapori-
vel, tanto pela inserção do homem na natu- zar-se; (c) sasa: ser abundante ou rico,
reza, como pelas propriedades partilhadas ultrapassar, aquitar-se de. Ñgânga ñkî-
entre ambos. O homem transforma a na- si é o especialista.
tureza (cultura), a natureza fornece arqué- 5) Lômbo lwa sîmbi: (a) lomba: pedir,
tipos das crenças e os códigos primitivos solicitar pediosamente; (b) rezar, cul-
(linguagens, metalinguagens). Ambos são tuar, homenagear ou reverenciar o Es-
condicionados pelos imperativos do espa- pírito; (c) observar tabus, cumprir com
ço/tempo. Já para a relação mundo físico/ as interdições; (d) comunicar com Es-
Além, o espírito é contrário ao corpo por pírito, conhecer os mistérios (LAMAN,
ser atemporal e intangível. Daí, representa 1936, p. 404-405). O especialista foi
a origem/destino do corpo que habita, com ñgâng’a ñgômbo (equivalente de sa-
símbolos em vários domínios da natureza/ cerdote). Em kikôngo, o termoki-lômbo
Espírito primitivo que não obedece ao es- é o nome de uma criança que tem o
paço/tempo. espírito de ñsîmbi e simboliza a abun-
Com isso, podemos analisar o que os dância (LAMAN, 1936, p. 405).
Kôngo compreendem como sendo religião. Pelas etimologias aqui referenciadas,
Antes de enquadrar ou, talvez, descons- a religião é – para os Kôngo – um siste-
truir os padrões de definição ocidental (re- ma que instituiu o equilíbrio no homem en-
ligere, relegere e re-elegere (McGAFFEY, quanto indivíduo no seu relacionamento
1986, p. 1-4), vamos procurar perceber o com os seus semelhantes na manutenção
seu modo de entendimento da religião. da ordem. Por outro lado, ela programa o
Existem cinco termos genéricos que bem-estar como exercício individual (antes
traduzem categorias de religião entre os de ser coletivo) com interdições e reverên-
Kôngo: cias ao Espírito primitivo. Ora, esse último
pode ser lei, enquanto ferramenta social,
1) Kiñtûmba: (a) tûmba, introduzir no; repartindo-se em: (a) relação individual
iniciar nos mistérios; (b) fazer ordena- da consciência (onde habita este Espírito
ção, coroar, abençoar; (c) elevar-se no primitivo) que articula virtudes e desejos;
Afros & Amazônicos 104 vol. 2, n º 2, 2020
(b) um sistema cultural assente nos símbo- (b) ministros do sagrado; (c) emissários do
los de integração identitária e nos valores Além. Esses últimos tinham as habilidades
da pertença; (c) uma plataforma dialógica com as quais nasceram e eram iniciados a
entre a realidade e a sua significação me- aperfeiçoá-las para sua profissão.
tafísica; (d) construção abstrata do mundo O discurso de Dom Jorge Nsaku Ne
primitivo (que teleguia o comportamento Vunda foi claro em relação à aceitação da
individual) como interpretação dos pres- Igreja Católica Romana, de maneira que –
supostos estruturantes da organização so- talvez pela grande revelação sobre a pedra
cioeconômica, sociopolítica etc. de lusûnzi – os padres católicos ficaram
Logo na estruturação social, os Kôn- convencidos das qualidades do sacerdote
go determinaram as funções sociais, re- ñgânga kitomi5. Ele ficou responsável pela
servando exclusivamente aos Nsaku a re- instalação das igrejas no Kôngo, em par-
ligião. Na primeira categoria, a religião é a ceria com a Igreja Católica. Nessa parce-
fonte da saúde espiritual e física do indiví- ria, os altos funcionários da Corte conver-
duo. Estar de saúde é indicador de estar teram-se como forma de integrar o Kôngo
em boa relação consigo mesmo e qualquer no concerto internacional. Apesar disso,
enfermidade é sinal de falta de virtude ou ainda acreditavam na religião local e priori-
consciência. Seguidamente, na segunda zavam os pontos convergentes no espaço
categoria, a desintegração simbólica (des- diplomático. A cultura local não desapare-
respeito, inveja, ódio etc.) faz com que se ceu, apesar das imposições católicas que
perca a bênção da natureza4 e torne-se in- chegaram a imiscuir-se com os assuntos
fértil. Por isso, Dona Beatriz Ñsîmba Vita públicos. Apesar de se converter, os digni-
acusa o padre Bernardo da Gallo de ter tários continuavam polígamos, por exem-
espírito malvado por conta de sua inveja plo, e não cessavam de realizar os cultos
e do desejo de atrofiar Apolónia Mafuta, a dos ancestrais, isto é, apesar da existência
fim de que essa não evolua. e instalação dos padres católicos, ainda
A terceira e quarta categorias fazem funcionavam plenamente os ngânga ñkîsi,
da religião uma profissão específica com ñgâng’a ñgômbo, ñgânga kitomi etc.
pessoas especiais (pela nascência, ori- Dibûndu designa a igreja no sentido
gem social etc.) que devem ser treinadas de coração, mbûndu6. Na medicina kôngo
na manutenção da ordem social pela sua o coração é ñkûmba dya mênga em duas
capacidade sobrenatural de domiciliar o perspectivas: bombeia o sangue de todo
Espírito primitivo e conhecer a natureza da corpo e purifica o sangue recebido. A ideia
energia de cada elemento orgânico, mine- de purificar o sangue é religiosamente
ral, botânico etc. aproveitada pelo facto de acreditar-se que
Pelos escritos do padre Bernardo da o Espírito primitivo reside no sangue e,
Gallo, sabemos que Ñsîmba Vita foi inicia- sobretudo, olhar o coração como símbolo
da na “arte feiticeira”, ñgânga mayînda. Ela, da piedade. Desta feita, dibûndu passou a
diz o padre, curou muita gente das suas designar a Igreja enquanto infra-estrutura
enfermidades. A medicina (boa saúde) (templo) com cultos e funções sacerdotais.
confunde-se com a religião nesse aspecto, Como coração, o dibûndu é a religião no
o qual acompanhou o messianismo. Con- campo privado do indivíduo e no olhar das
tudo, o sacerdócio é uma estrutura bem virtudes por cultivar e manter diálogo entre
padronizada e diferenciada e compõe-se a consciência e a conduta. Os ñsîku são
de: (a) administradores de cultos públicos; leis deixadas pelos ancestrais que servem

5. Quer dizer Dom Jorge Nsaku Ne Vunda.


4. Acredita-se que a natureza é regida pelo Espírito
primitivo consoante diversos domínios. O termo designa 6. A fé pressupõe o sentimento. O aparelho anatômico
uma criança que traz a bênção depois das aflições so- responsável para os sentimentos é o coração. Daí, a fé/
ciais. fé associa-se ao coração: mbûndu.

Afros & Amazônicos 105 vol. 2, n º 2, 2020


de termômetro e princípios na condução oração na práxis da submissão ao Espíri-
da sociedade. to primitivo (Ñzâmbi’a Mpûngu) e Espírito
Buñkîsi pressupõe “boa saúde” física criador (Mbûmba Kalûnga) reestabelece –
e espiritual segundo as leis dos homens, religare, Cícero – a ligação de ascendência
leis da natureza e preceitos dos ancestrais. do indivíduo. Continua a ser uma questão
As leis dos homens orientam os assuntos cultural, e não universalmente uniforme.
públicos, ao passo que as leis da natureza Dona Beatriz Ñsîmba Vita, conforme
constituem padrões primários da existên- Cuvelier (1953, p. 220, nota de rodapé), foi
cia7. Observar os cultos e rituais como pro- acusada de falsidade e o padre Colomban
porciona o conceito de buñkîsi – santidade, de Bolonha mencionou, na sua carta do
fortificação – alimenta a alma do indivíduo dia 15 de maio de 1706, alguns erros con-
e torna-o moralmente estável. Isto é, um denatórios no Catolicismo ortodoxo, que
complemento do bom cidadão tal como o aqui citamos:
diria Platão no que se segue: 1) Não se pode jejuar na Quaresma;
Ontem fui até Pireu com Gláucon8, filho
de Ariston, a fim de dirigir as minhas pre- 2) Para ser lavado dos seus pecados,
ces à deusa (Atena), e, ao mesmo tempo, basta expor-se na chuva;
com desejo de ver de que maneira cele-
bravam a festa… Depois de termos feito
3) Otakula, que é um tipo de madeira
preces e contemplado a cerimônia, íamos que dá a cor vermelha, esfregado no
regressar à cidade. (PLATÃO, 1972, p. 1) rosto é o sangue de Jesus Cristo;
É assim que Platão começa a sua 4) Deve se retirar todas cruzes e ima-
clássica República. Um bom cidadão traz gens do Crucifixo;
com ele o background de ser um indivíduo 5) No Kôngo, já não irão os religiosos;
moralmente estável9. Ora, é da religião que
se constrói tal indivíduo. Quer dizer que a 6) Ela proibe de recitarAve Maria e Sal-
cultura é base da cidadania. ve Regina. Ela ensina outras orações
que contêm obscenidades;
A conversão dos kôngo, em 1491,
seguiu uma vertente imaginação/símbolo 7) Ela disse, que a cada hora, ela fala
cultural na construção da realidade. Eles com Deus;
acreditam em três canais para perceber o 8) Ela disse que as pessoas podem ter
“fazer preces” (lômbo lwa sîmbi) e o “indi- tantas mulheres como quiserem.
víduo virtuoso” (buñkîsi): (a) sonho/revela-
Em relação às normas da Quaresma,
ção; (b) alucinação/psicose (esquizofrenia,
era orientada uma única refeição ao dia.
paranoia); (c) metalinguagem do possuído.
Ñsîmba Vita introduziu a dieta do kimpasi
Os católicos que pregavam na época de
com restrições. O sentido de pecado masû-
Ñsîmba Vita Dona Beatriz eram cultural-
mu, que deriva de sûmuka ou sumuna,
mente afiliados à cosmogonia grega, onde
é claro: sujeidade física e moral às leis. A
Zeus simboliza o céu, Poseidon o mar e
chuva, mvûla simboliza o perdão de masû-
Hades o “mundo baixo”. Em relação a lôm-
mu principalmente na religião e na socieda-
bo lwa sîmbi, a religião enquanto culto/
de secreta lêmba ou mayînda. Muito antes
de Ñsîmba Vita vir ao mundo, takula já era
7. Dobrar o braço ou o joelho obedece a um padrão pri- medicinal. Além de tratar inúmeras doen-
mário. Quem fizer o contrário, quebrará seu braço ou joe- ças, ele simboliza o espírito das origens. O
lho. Essa é a lei da natureza como percebiam os Kôngo.
termo takula é, na verdade “Ta kûlu”. Assim
8. Gláucon era o irmão mais velho de Platão. reza a Tradição, na puberdade, as crianças
9. A adoração e as festividades à Atena constituem dois devem ser revestidas do Espírito de Ñzâm-
símbolos da religião como base da cidadania: (i) indivíduo bi (simbolizado pelo pau takula). O termo
moral ou virtuoso (Aristóteles); (ii) respeito pelas normas.
Isto é, a cidadania tem a cultura como base para melhor “Ta” é um título honorífico que associa a
funcionamento da república na perspectiva do indivíduo. ideia de progenitor e a ideia de consagrador
Afros & Amazônicos 106 vol. 2, n º 2, 2020
(que introduz na vida). Atribuiu-se a Takula Colomban de Bolonha aponta isso, talvez
à Mbûmba Kalûnga (Deus criador). Aliás, o para a condenar como anticatólica. É uma
verbo ta quer dizer: executar, criar, cumprir possibilidade. O neo-antonismo não con-
algo como uma ação que deriva de uma denou a poligamia/poliandria por razões
responsabilidade obrigatória de um proge- morais paralelamente à sua permissibilida-
nitor a seu filho. O termo kûlu significa anti- de que a cultura bantu apresenta na ordem
go e deriva de kûla como “crescer”, mas so- sociopolítica e econômica. A noção da co-
bretudo de kûla para dizer: salvar, resgatar, lectividade das terras assenta-se na exo-
libertar (LAMAN, 1936, p. 327). Então, se o gamia simbólica, na base da poligamia por
sangue de Jesus Cristo liberta ou salva, o causa das relações uterinas de pertença
takula simboliza a mesma coisa. Cruz en- de cada cidadão/indivíduo.
quanto símbolo do sofrimento do Cristo foi Está claro que nascia uma linha teo-
banido por Dona Beatriz que mostrou que a lógica que introduzia a matriz cultural en-
cruz é ambígua (1 Corintios, 1: 23) mesmo dógena para melhor estruturação de uma
na visão bíblica: (1) Cruz simboliza a morte igreja compreendida pelos Kôngo. Por ou-
(Filipenses, 2: 8; Actos, 2: 23); (2) Cruz-so- tro lado, lutou categoricamente contra os
frimento (Marcos, 8: 34); (3) Mensagem da moldes estruturantes que a igreja católica
Cruz (1 Corintios, 1: 18). utilizava enquanto ferramenta de coloniza-
Em relação à sua profecia, segundo a ção e exploração em detrimento das forças
qual já não virão religiosos de fora, Bernar- sociais locais.
do da Gallo e Lorenzo da Lucca proporcio- Na realidade kôngo, a igreja (con-
nam aqui duas informações: (a) Igreja in- vencional) que os carmelitas, jesuítas e
dependente da autoridade do Vaticano; (b) capuchinhos trouxeram limitavam apenas
religiosos nacionais (kôngo) a desempe- no dibûndu, buñkîsi e lômbo lwa sîmbi. Na
nhar as mesmas funções que os religiosos visão de Ñsîmba Vita e seus seguidores,
europeus. Ainda na sua carta, o padre Co- os espaços da religião enquanto kiñtûm-
lomban de Bolonha riu-se dessa profecia ba e kitomi eram invioláveis e reservados
dizendo que ele próprio tinha enviado dois: para os nacionais. Ora, os capuchinhos já
padre Lorenzo de Lucca e o padre Jean os violavam, no caso, por exemplo, de ad-
Paul de Tivoli. Contudo, cabe realçar que ministração à coroação dos reis eleitos. A
nos debates com Bernardo da Gallo e nas ideia de kiñtûmba pressupõe as funções de
suas pregações, Ñsîmba Vita realçou que um Bispo que representa o Poder da Igreja
nos próximos tempos existiria uma igreja local, ao passo que a ideia de kitômi limita-
independente do Vaticano e não, como no -se à Santidade que representa o Espírito
passado, com um bispo nomeado e reco- primitivo ligado a terra/ancestrais. Naquela
nhecido a partir de fora-do-reino-do-Kôngo época, a Catedral de São Salvador estava
(FILESI, 1971). Com esta igreja indepen- em ruínas. A autoridade religiosa católica
dente, já não seria necessário “importar” máxima residia em Luanda. Percebe-se,
religiosos. Hoje é uma realidade com o porém, porque depois do primeiro julga-
messianismo e ainda oVaticano continua a mento, Dona Beatriz era tida como inocen-
nomear bispos para Angola. te e que Pedro IV foi orientado em remeter
Iremos analisar de forma breve Ave o julgamento – na base da lei canônica –
Antoniana que nos parece reapropriação ao bispo que residia em Luanda. O padre
cultural do valor escatológico da figura de Bernardo da Gallo impediu que isso acon-
Maria, mãe do Salvador. “Falar com Deus” tecesse, até que associou-se ao padre Lo-
era próprio dos ngânga mayînda quer den- renzo da Lucca para ambos condenarem
tro do kimpasi quer fora dele. Dona Beatriz Ñsîmba Vita.
Finalmente, a poligamia. É uma ten- Em relação a kiñtûmba importa real-
dência acusatória a forma como o padre çar o facto de Dom Antônio Emanuel Nsaku

Afros & Amazônicos 107 vol. 2, n º 2, 2020


Ne Vunda, um distinto professor que fora Embora os Kôngo considerassem a pos-
designado embaixador junto do Vaticano sessão11 como uma forma normal e acei-
tável de revelação, os padres católicos
para negociar o bispado em São Salvador europeus, como é o caso do padre Ber-
– fora de Portugal ou Espanha – como for- nardo, eram relutantes em aceitar isso e
ma de garantir a autonomia religiosa local. consideravam qualquer possessão como
Por ter sido ñgânga kitomi aceitava-se a diabólica. Muitas vezes, os padres católi-
ideia de que ele era Santidade com título cos estavam dispostos em achar revela-
ções por meio de uma variedade de prá-
igual ao Papa católico. ticas de adivinhação, assim como seus
O exercício dos capuchinhos era hie- colegas, os ñgânga kôngo. Eles liam as
rarquicamente inferior a um Nsaku’e Lawu estrelas (embora não como astrólogos),
procuravam sinais, prestavam atenção
que era Dona Beatriz Ñsîmba Vita a qual aos seus sonhos, comparavam os acon-
liderou kimpasi nacional. Com o padre Ber- tecimentos com os dias de festa dos san-
nardo da Gallo, ambos tiveram grandes tos. Os padres poderiam estar dispostos
debates, tanto públicos, como restritos. em aceitar a aparição da Virgem Maria a
Perante o padre capuchinho, a profetisa um nativo kôngo como sendo uma revela-
ção genuína. Os primeiros padres a virem
kôngo mostrava ter noção do catolicismo para o Kôngo tinham aceitado uma varie-
sobre alguns santos embora, deturpando dade de revelações, desde os sonhos, à
claramente a doutrina católica. Tratava-se pedra misteriosa [Trata-se aqui de lusûn-
de uma heresia, aos olhos dos padres ca- zi], bem como milagres. (THORNTON,
tólicos. Porém, não para os kôngo que a 1998, p. 123-124)
admiravam. John Thornton tenta justificá- Contudo, as tradições europeias não
-lo, dizendo que, para as populações lo- aceitavam a ideia de que as revelações
cais, tais conhecimentos eram interpreta- divinas viessem na forma de posse espi-
dos como revelação de Ñzâmbi, sobretudo ritual. Provavelmente porque a posses-
que esta era ñgânga mayînda. Foi, justamen- são por santos era incomum e suspeita
te por isso, que Bernardo da Gallo saiu de na Europa; mais frequentemente, a pos-
Kimbângu. A aceitação social de Ñsîmba sessão era pelo Diabo. A Igreja tinha todo
Vita foi de tal maneira vigorosa que a es- um rito de exorcismo destinado a acabar
posa do rei (Hipólita) aderiu e outros digni- com essas possessões maléficas e des-
tários da Corte também. controladas. Mesmo quando a possessão
Com essa explicação, faz sentido favorecia a obra missionária, era imprová-
que, desde a sua chegada, os capuchinhos vel que a vissem de uma maneira positiva
se tenham imposto em assumir a investi- (THORNTON, 1998, p. 124).
dura do rei: tarefa dos Ñtûmba Mvêmba. A Com essa observação, podemos
Tradição é clara: “Ñtûmba Mvêmba é o fio atra- agora entrar finalmente na última relação
vés do qual desce Deus Poderoso” (CUVELIER, entre força/existência que parte do pressu-
1934, p. 48-49). Era uma prorrogativa ex- posto que cada elemento existe – de for-
clusiva de Nsaku’e Lawu que comunica ma visível ou invisível, tangível ou intan-
com Deus (Espírito primitivo), ñkita, bisîmbi gível – possui uma força específica que o
e bakûlu. Por isso, Ñsîmba Vita aboliu a caracteriza consoante à temperatura (frio,
coroação do soberano pelos capuchinhos, calor), luz ou ausência da luz e duração. O
ainda que Dom João II se tenha recusa- concerto dos três constituiu um ecossiste-
do a entregar o Santíssimo Sacramento ma de existência primeira à partir da qual
(CUVELIER, 1953)10. buñkîsi se traduz por religião. Fukyawu
Vamos terminar esse ponto com a (2001) debruçou sobre cosmogonia kôngo,
possessão espiritual, começando por citar olhando a construção cultural de um pro-
a observação de John Thornton: grama racionalmente projetado para orga-
nizar a sociedade a partir do indivíduo.

10. Já citamos Lorenzo da Lucca sobre esse assunto. 11. Possessão de um Espírito superior.

Afros & Amazônicos 108 vol. 2, n º 2, 2020


Nas escritas de Bernardo da Gallo e lica. O Messias Jesus Cristo ensinou a orar
de Lorenzo da Lucca, há uma interpretação “Pai nosso que estás nos Céus…” (Mateus,
de comparação valorativa cujo catolicis- 6: 9-13). Pouco nos importa esmiuçar aqui
mo assume a hierarquia. Nessa ordem, a o conceito de “céu”. Está claro que não é
ideia de Deus católico é celeste, um Zeus Hades. Esse último simboliza o Inferno, lu-
grego. Ora, Ñzâmbi é Deus terrestre, isto gar de penitência, local das imundices etc.
é, Hades na cosmogonia grega que habita Associa-se a ele o local onde foi precipitado
as profundezas da terra. Segundo as escri- Lúcifer (Apocalipse, 12: 4), algures na terra
tas dos capuchinhos, de modo geral, esses e num sítio invisível e temporário das almas
equiparam Mbûmba Kalûnga12a Poseidon, perdidas dos infiéis antes de ir ao Inferno15.
Deus dos mares. Bernardo da Gallo falava Também essa acepção é bíblica (Mateus,
kikôngo e teve a ousadia de debater com 25: 41; Marcos, 9: 45-46). Numa só palavra,
Ñsîmba Vita nessa língua. Na sua visão, associa-se a Hades o sofrimento, lugar de
Ñzâmbi enquanto nzâ [ya]mbi pressupõe fogo e enxofre (Apocalipse, 19: 20; 20: 10).
deus da terra, ou melhor, do fundo da terra. Muitas descrições oferecidas, quer por Giro-
Ele sabia que o verbo yâmba do qual deriva lamo Merolla da Sorento, quer por Bernardo
Ñzâmbi significa: (a) cavar, desenraizar pro- da Gallo inclinam-se para tal. Não será por
fundamente, retirar a erva daninha (LAMAN, acaso que o professor e mestre de confe-
1936, p. 1114); abençoar; (b) yâmbika: ter rência Makisosila Mawete define Ñzâmbi
imunidade para resistir contra doença (le- como “gaiola de todas as maldades”16, pois
pra). Por outro lado, deriva de: (a) zâmba: essa corruptela está assente na descrição
colocar dentro de terra; (b) zâmba: costurar, dos capuchinhos sobre a religião local. Por
construir uma lareira. Em kikôngo, ma-zâm- isso, é sempre bom completar: Ñzâmbi’a
ba significa cemitério, local de sepultamen- Mpûngu Tulêndo, Ñzâmbi Kalûnga, Ñzâmbi
to (LAMAN, 1936, p. 1153), ou seja, Bernar- Mvângi etc.17.
do da Gallo e outros que falavam kikôngo Foi de forma literal que os padres que
sabiam que Ñzâmbi era Deus da terra que escreveram sobre Dona Beatriz Ñsîmba
rapidamente associaram a Hades. Daí, Vita desclassificaram os cultos dos ances-
construíram três ideias à volta do sagrado trais. Girolamo Merolla da Sorento descre-
kôngo: (a) a possessão pelo ñkita é asso- ve Ñzâmba Mbûdi (Ñzîmbu’a Mbûli) como
ciada a ideia da possessão diabólica13; (b) cúmulo das imundices associadas ao
os bisîmbi e bakûlu habitam no seio da ter- ñgâng’a kitome como forma de desqualifi-
ra,isto é, Hades. Logo, toda a manifestação car a religião local. Girolamo de Montesar-
religiosa kôngo passou a ser obra diabólica chio também diz a mesma coisa nas suas
e reprovada; (c) todo o clero local que valo- observações locais.
rizava a Tradição endógena era tido como
cúmplice das imundices (segundo Merolla). Noções básicas sobre Kimpasi
Está claro que os padres falsificaram cla-
Começamos com a pergunta: o que é
ramente o sagrado local pelo desrespeito
kimpasi? Joseph Van Wing responde-nos
desmedido que cometeram14. O Paraíso es-
avançando as razões que levam a convo-
taria no céu, provavelmente, na visão cató-
car um kimpasi, já no início do século XX,
que passamos a citar:
12. Na verdade, Mbûmba Kalûnga coincide dois domí-
nios de Deus/Ñzâmbi: ar [Mbûmba] e águas [Kalûnga].
15. Platão constrói a ideia clássica de Hades. Homero
13. Partilham essa acepção vários outros capuchinhos
ofereceu-nos as características de Hades nas suas obras
como Marcellino D’Atri, Bonaventura da Corella, Lucca
clássicas: Odisseia e Ilíada.
da Caltanisetta, Girolamo de Montesarchio, Girolamo
Merolla da Sorento, Giuseppe da Molena, Raimundo Di- 16. Nza ya mbi: mundo das maldades (MAWETE, 2018,
comano etc. p. 93, 112).
14. Lorenzo da Lucca chegou a martelar a pedra lusunzi 17. “Ñzâmbi’a Mpûngu tulêndo” significa “Deus poderoso
e obrigou seus seguidores cristãos a profaná-la (THORN- Espírito da Existência”. Nzâmbi Kalûnga significa”Deus
TON, 1998, p. 87). Imensidão” e Ñzâmbi Mvângi quer dizer Deus criador etc.

Afros & Amazônicos 109 vol. 2, n º 2, 2020


Nooutroclã, os mais velhos ficam impres- frequentado constantemente pelo Espírito
sionados pelo facto do aumento de abor- primitivo, pelos espíritos dos ñkita, bisîm-
tos, esterilidade e mortalidade infantil.
“Nossa aldeia está a desaparecer! Quem
bi e dos ancestrais. Por sua vez, deve-se
irá salvaguardar os interesses do clã? semear algumas plantas medicinais em lu-
O ngânga consultado dará o oráculo: “É gares próprios (com rituais simbólicos) que
imperioso estabelecer um kimpasi para servem para domiciliar esses espíritos. Al-
a juventude… A celebração de Kimpasi gumas destas plantas são: ñsangalavwa,
é, portanto, uma instituição considerada
um remédio para os males que atingem
ñkasa, lêmba-lemba etc. Esta equipe para
a comunidade, como a baixa taxa de na- escolha do espaço assegura-se de encon-
talidade ou uma mortalidade anormal. trar os sinais de 108 animais e 48 plantas
Isso explica por que, em certas regiões principais, citamos alguns:
ou cidades, cinco, dez ou até vinte anos
se passaram entre a convocação de dois 1) Animais do ar18: (i) ngo zûlu/águia; (ii)
Kimpasi. (VAN WING, 1938, p. 176) ñgêmbo/morcego [Rousettus aegyptia-
Define-se kimpasi como festival de cus]; (iii) ñkusu nsi/papagaio [Spermos-
aflições que, em tese, é um conjunto de ati- priza guttata]; (iv) ñkâtalakati, tipo de
vidades que procuram a solução face aos pássaro que passeia sempre em con-
principais problemas que afligem as pes- junto na margem do rio; (v) ngûmbi/pe-
soas. Quando se verifica, numa aldeia, au- driz [Francolinus squamatus]; (vi) ngûn-
mento da taxa de mortalidade infantil, insufi- du/rossinhol com caúda vermelha; etc.
ciência na produção agrícola ou infertilidade 2) Animais das águas e minerais (VAN
nos homens e mulheres, as anormalidades WING, 1938, p. 188): (i) ngo zûlu [mwên-
a nível social ou político, os “mais velhos” ge] que é ou peixe com dentes visivel-
convocam o Conselho para concertação mente expressivos chamado Hydro-
social [ñkûtama]. São convidados os prin- cyon vittatus ou Hydrocyon Goliath; (ii)
cipais chefes de aldeia, comunas e municí- ngêmbi, o peixe chamado Genymyrus
pios para tomar parte nas discussões. Cinco Donnyi; (iii) nkôdya, caracol do rio [Li-
religiosos são convidados, logo na primeira: micolaria pseudotrochus alabaster] que
(a) Ñgânga ñkîsi; (b) ñgâng’a kitome; (c) simboliza a observação das leis dos
ñgânga ñgômbo; (d) Ñtûmba Mvêmba; (e) biñsîmbi; (iv) nsâdi, um tipo de pedri-
Ñtinu Nsaku. Em concerto, avaliam as pos- nhas que servem para curar as feridas
sibilidades de realizar o kimpasi. Com essa (LAMAN, 1936, p. 752); (v) lusûnzi, pe-
decisão, esse colégio religioso convoca dez dra tocada pelo Espírito de Nzâmbi.
ñgânga de forma secreta, nomeadamente: 3) Animais da terra: (i) mbûmba mfîn-
(a) ñgânga mayînda; (b) ñgânga lêmba; (c) da: gato selvagem que representa as
ñgânga vûtuki; (d) ñgânga malûngu (será características do Espírito da Nature-
ñgânga ndûngu?); (e) ñgânga ñkûmbi; (f) za; (ii) ngôndo: macaco vermelho e
ñgânga mayâmba; (g) ñgânga ñzûmbi; (h) cinzento com longa cauda [Cercopi-
ñgânga malûndu; (i) mavûzi mbîla; (j) ñgân- thecus escanias] que simboliza nasci-
ga mafuta. Eles constituem o Conselho de mento (vermelho), morte (cinzento) e
Kimpasi. ressurreição (vermelho/cinzento); (iii)
A escolha do local é da responsabili- ngênde, um tipo de rato que quando
dade de ñgânga kitomi e Ñtînu Nsaku com morre o coração ainda bate [também
três ñgânga mayînda e três outros ñgâng’a chamado mbênde]; (iv) mbwa nzazi,
lôngo. Alguns aspectos são de necessida- cão-trovoada que se joga no fogo das
des básicas: deve haver nascentes, ma- queimadas para depois queimar as ca-
zûmbu (antigos cemitérios) e o espaço deve sas da aldeia. Os excrementos, pele e
ser naturalmente protegido dos animais fe-
rozes com barreiras naturais. Os ñgânga 18. Agradecemos a compreensão do leitor em não es-
mayînda devem certificar-se que o local é perar de nós a lista completa. Os iniciados não aceitam
citar.

Afros & Amazônicos 110 vol. 2, n º 2, 2020


ossos dele permitem controlar as tro- céu: chuvas com trovoadas, lua, arco-íris,
voadas e evitar desgraças na aldeia. lua, sol; (c) vento, sopro, brisas etc.
4) Plantas: (i) yuki ou ma-yûki, pequena Os domínios dos bakûlu são: elemen-
planta cujas folhas servem para curar tos da terra, a saber: minerais, pedras es-
as doenças de ouvidos. É chamada peciais, plantas, árvores (floresta). O kim-
“Árvore da Vida” [Briophyllum Calcy- pasi dá relevância aos ñkita, pois logo na
cinum] (LAMAN, 1936, p. 1144); (ii) primeira entrada, os antigos iniciados apa-
ngûmbi, planta cujas folhas ajudam a voram os recém-chegados sobre eles:
fezer lukobi lwa bakûlu e que são tidas Ao crepúsculo, escondem-se, os habitan-
como purificadoras; (iii) mbese planta tes da aldeia nas suas próprias casas; os
cujas frutas são jogadas como dados estrangeiros vão as casas dos amigos
para decifrar as mensagens dos espí- ou dos antigos iniciados. Lá, como é evi-
dente, as recomendações são feitas: ‘o
ritos da terra; (iv) ngêmba árvore Vero- ñkitavai te matar, mas não tenha medo,
nonia conferta que, acredita-se, apazi- ressuscitará para uma vida melhor. Você
gua os espíritos da natureza e facilita só tem uma coisa a fazer quando estiver
a comunicação coração/Espírito; (v) morto: calar a boca; deixar-se levar, e se
ñkasa, uma árvore-veneno; (vi) as fo- acontecer que ao jogar-vos à beira da
estrada ficares machucado, mantenha-te
lhas de lêmb’a-lêmba; (vii) etc. silêncio e não se mexa. Caso contrário,
O primeiro trabalho que essa peque- poderás ser morto para sempre. (VAN
na força tarefa faz, tem a ver com a orga- WING, 1938, p. 174)
nização do local onde vai se passar o kim- A hierarquia hagionímica serve de
pasi. Eles dão maior importância aos ñkita. orientação da equipe que irá construir
O padre Joseph Van Wing (1938, p. 292) doze mwêlo, casa onde reside o Espírito.
estudou kimpasi e segundo percebeu, os O mwêlo tem a seguinte característica: (a)
ñkita são as forças espirituais que Nzâmbi tem três portas: uma porta normal, seguin-
criou primeiro. Existem três tipos de ñkita: do o princípio de nascente como referência
(a) seres do começo do mundo; (b) an- habitacional; (b) mwêla’a nima: porta tra-
cestrais criadores da sociedade; (c) heróis seira; (c) mwêla ñteto, porta ao lado (LA-
civilizadores ou aqueles que morreram de MAN, 1936). Essas casas são construí-
forma violenta. das com materiais provenientes do reino
A seguir, na hierarquia, vêm os bakûlu vegetal específico, nomeadamente mbe-
que são os espíritos dos ancestrais subdi- se, ngêmba etc. Eram nessas casas que
vididos em três categorias: (a) aqueles que as pessoas chamadas ñtemoni morriam e
dirigiram os homens consoante a missão ressuscitavam. Joseph Van Wing chama-
do Espírito de Ñzâmbi e cumpriram rigoro- -nos a atenção nesses termos:
samente as suas funções de modo a não Sem dúvida, eles sabem que não se mor-
ter queixas contra eles; (b) aqueles que de- re no Kimpasi de uma morte comum. Mas
também estão profundamente conven-
sempenharam funções públicas com brio e cidos de que se morre e ressuscita-se
sem maldade; (c) aqueles que na sua vida numa outra esfera, neste mundo mágico
terrestre não cometeram crueldades nem de Espíritos que lhes é familiar, mas que
infringiram as leis ou normas estabeleci- nós (ocidentais), com a nossa mentali-
das pelas quais foram condenados. dade, não podemos nos imaginar. (VAN
WING, 1938, p. 209-210)
Os domínios dos ñkita são reparti-
Depois de identificar os índices dos
dos consoante os espaços de Deus19: (a)
animais sagrados e construídas as doze
águas: nascentes, lagoas, mar, rios; (b)
primeiras casas mwêlo, em forma cir-
cular, os primeiros rituais são fixados e
convidam-se os doze representantes dos
19. Águas/hidrografia, Ar, Fogo primitivo (sol)/astrografia especialistas acima mencionados, para
e Terra/geografia.

Afros & Amazônicos 111 vol. 2, n º 2, 2020


celebrar a paz com os ñkita. No fim des- p. 180), e deve ser gêmeos ou ter nascido
ses rituais, cabe ao sacerdote com título de forma especial. Porém, a morte e res-
de ngânga Kavêlakyañkîsiacender o fogo surreição têm lugar no mbôngi – também
que será apagado apenas no último dia do chamado de voka – onde há cemitério dos
kimpasi20. A duração mínima do kimpasi é ancestrais, com paisagem de palmeiras e
de um ano e meio21. Depois, serão aber- preparado para efeito. O diretor do kimpa-
tas as inscrições de novos sacerdotes. si Mfwa wansi’a Ñzâmbi24 – uma pessoa
Mas antes, constrói-se uma grande “casa” já de idade25 – coordena todas as ativida-
que chamam de mbôngi’a kimpasi situda- des, consoante as orientações de Ndûndu
da num dos mazûmbu (cemitérios) desde (Ñsîmba) e o Conselho de Kimpasi (VAN
que seja localizado numa zona superior no WING, 1938, p. 194).
conjunto do espaço de kimpasi22. À volta Para marcar o início dos ritos de Kimpasi,
deles constroem-se “casas de visitantes” o chefe máximo envia os seus homens a
que têm a forma retangular. De realçar, todas direções (seguindo as outras ruas),
também, o nzo’a lufûmba que é um hangar logo que se faz tiro. A esse sinal, os profa-
nos correm procurar um refúgio na mata
dividido em quatro compartimentos. Deve e os espíritos hostis fogem terrificados.
existir doze ruas que conduzem todas elas (VAN WING, 1938, p. 194)
até a casa/cemitério chamada de mbôngi’a
kimpasi. Na parte traseira dessa casa-ce- A duração da morte não estava fixa-
mitério, está o campo de iniciação, embora da. Joseph Van Wing recolheu informa-
estejamos tratando apenas de feitiços. ções diferentes. Há quem diga que levava
mais tempo:
Kimpasi tinha, também, um acampa-
A duração deste período (morte/ressur-
mento militar. Joseph Van Wing descreve reição) não é estritamente fixa. Poderia
como era constituído: prolongar-se até dois meses inteiros de
Em ambos os lados da porta da frente, acordo com o meu informante de maior
estão colocados de ñkîsi de altura de um confiança Mumbata, apenas um mês de-
homem, feitiços imponentes montando pois do outro, porque “eles morrem na
guarda em frente ao Kimpasi. Eles são lua negra (isto é, no último quarto) e
chamados de mpânzu: nkanya, que sig- ressuscitam em a segunda após a lua
nifica aqueles que têm poder e força para cheia”. Uma fonte de Kisantu acreditava
acorrentar. Armados com rifles, arcos e que a morte durava apenas alguns dias.
flechas, lanças e cutelos, essas sentine- O chefe Mbemba disse-me que esta “vida
las inspiram terror tanto nos adeptos dos na morte” pode durar até três meses.
Kimpasi quanto nos espíritos malignos e Esse período foi mais ou menos longo, ao
feiticeiros que eles são responsáveis por que parece, de acordo com as circunstân-
amarrar e tornar inofensivos. (VAN WING, cias; foi ampliado, por exemplo, quando
1938, p. 178) um grande número de candidatos ade-
riu após o dia oficial de inscrição. (VAN
À volta de cada escultura – que o WING, 1938, p. 200)
padre belga considera feitiço – havia ho- Ñsîmba Vita faleceu na sexta-feira,
mens armados. O local onde se instala o durante a lua cheia. No domingo era quar-
kimpasi é chamado de Vwêla ou “vata dia to linguante, que simboliza a ressurreição,
kimpasi”23. É uma ideia generalizada que quer no kimpasi, quer na crença social dos
toda kimpasi é dirigida por uma mulher kôngo em geral. Já nos debruçamos sobre
com nome de Ndûndu (VAN WING, 1938, a questão que justificou que todos os kôn-
go – até os aliados dos padres – procla-
20. Kavela: Ver Laman (1936, p. 1059). Vêla kya ñkîsi é o
local sagrado no campo de kimpasi.
24. “Morte de lepra”. Trata-se de uma doença que so-
21. Joseph Van Wing (1938, p. 177) fala-nos que a dura-
mente a intervenção de Ñzâmbi traz cura. O diretor do
ção é entre um a quatro anos.
kimpasi era chamado, também, de Na Kôngo.
22. John Janzen (1986, p. 132) apresenta um modelo de
25. Designa algum vivo cujo espírito de Deus habita nele.
Lêmba, que não difere muito.
Voltaremos no último capítulo, quando tratarmos de Si-
23. Vata dya kimpasi significa aldeia de kimpasi. mão Gonçalves Toco.

Afros & Amazônicos 112 vol. 2, n º 2, 2020


massem que a Santo António Dona Beatriz te… exaustos… tentando recuperar o fôle-
tinha ressuscitado dos mortos. go… com os olhos abatidos… com sono-
Interessa-nos aqui explicar a signifi- lência”, eles murmurram para Ndundu:
cação de morrer e ressuscitar. E essa velha bruxa de rosto careta, os
olhinhos diabólicos, o rosto enrugado, os
Começamos por morrer. Kimpasi dentes lascados que inspiram terror em
ensina a recolher-se no seu íntimo/espíri- toda essa juventude”… Ndundu amea-
to como forma de dialogar com os ñkita. ça-os de morte final. No entanto, ela não
admite nenhum castigo corporal”.
Esses últimos são atraídos pelo nsâdi, pó
avermelhado, que significa salvo dos mor- Daí, faz-se um interrogatório:
tos. Pintar-se de ñsâdi significa tornar o Pergunta: será que morreste realmente
seu corpo acessível aos espíritos mortos de ñkita?
(Espírito dos ancestrais) e, por conseguin- Resposta: Claro que sim!
te, o banho faz-se nas fontes habitadas
Pergunta: morte pela avó, a Poderosa
pelos ñkita. Expor-se ao sol e coberto de Ndûndu?
folha de bananeira simboliza a morte do
Resposta: Sim, pelas suas mãos.
corpo e os raios do sol propagam energia
(mwîni) e Ndûndu usa o takula para esfre- Pergunta: morte pela avó, Nzâmbi Ndûn-
du?
gar o corpo dos iniciados para que o ñkita
habite nas pessoas. Estendidos imóveis, Resposta: Sim, pelas mãos da mãe
os candidatos pintados de ñsadi, esfrega- Nzâmbi (Ñdûndu)] que, apesar de estéril,
deu-me a vida!
dos de takula e cobertos de folha de bana-
neira recebem dos raios do sol a posses- Pergunta: Qual é a tua casa?
são do Espírito primitivo. Os auxiliares da Resposta: Pela mãe Nzâmbi, a casa de
Madame Ndûndu e seu diretor do kimpasi Nzâmbi, juro! (VAN WING, 1938, p. 205)
(Nsûmbu) ajudam a organizar os candi- J. Van Wing manifestou as suas limi-
datos. Havia vários auxiliares, nomeada- tações quanto à exclusão da terminologia
mente: Mavûzi’a mbîla, que recolhe todas de Deus que, curiosamente, aqui está li-
provisões, Manzânza que prepara a comi- gada a Ndûndu. Para percebê-lo, convém
da sagrada etc. Os candidatos fazem uma reconsiderar os depoimentos que Ñsîmba
refeição única. Essa refeição é tida como Vita faz aos padres que a interrogam. Kim-
almoço com Espírito dos ñkita. Por isso, pasi é lugar sagrado, como já vimos. Trata-
Ñsîmba Vita afirma almoçar com Deus, tal -se do domínio de Deus. Os kôngo acredi-
como nos informam os padres que a entre- tavam que o Espírito de Deus habitava em
vistaram antes de a queimar viva. É per- Ndûndu, Dama de kimpasi sem o qual não
mitido durante a refeição conversar com seria possível realizar as atividades sagra-
a voz baixa, tal como convêm aos mortos. das. O próprio espaço é tido como domínio
Logo que terminam, os candidatos voltam de Deus. Quer dizer, Paraíso, Mbwêla. Eis
a dormir debaixo do sol até cinco ou seis a razão de Dona Beatriz afirmar resolu-
horas, no momento em que o “sol bebe o ta aos padres que almoçava com Deus26.
sangue”. Vão então tomar banho completo Para estar com Deus, o simbolismo da
e retiram o nsadi e revestem o pano. Ao morte dá relevância ao Espírito (mwêla),
regressar aos seus lares, começa a dança uma vez que na crença kôngo ninguém –
dos mortos. Os candidatos são dispostos enquanto vivo – pode ver Deus (MELLO E
em círculo ao redor da Mãe Ndundu, mo- SOUZA, 2006, p. 125).
vendo os ombros em ritmo da esquerda
para a direita. Trata-se de umadança parti- Passamos agora à ressurreição. Há
cularmente cansativa, visto que enfraque- dois ou três indicadores que anunciam a
ce os músculos e os nervos ao ponto dos
candidatos sentirem-se vazios. Diz o padre
26. Estar em coma pressupõe que o seu espírito esteja
belga, “tornam-sebana ba masa novamen- em diálogo com espíritos ou Deus/Ñzâmbi.

Afros & Amazônicos 113 vol. 2, n º 2, 2020


ressurreição: (1) flor da lemba-lemba27, (2) a sua força. Ele extrai parte dos ingredien-
árvores renascendo em poucos dias28; (3) tes, terra vermelha e branca, folhas de lu-
captura excessiva de alguns animais do rio sângu-ñsângu, um pedaço de pedra-ñki-
(ngo zûlu ou ngêmbi). A Tradição conside- ta, escamas de ovo, pedaços de madeira
ra mwâna ñkênto de kivumbuya kya Vulu- específicas… adiciona o pó de ñkula. Ele
lu. Em tese, vumbuya é o clima entre ju- mistura e, primeiro, tritura tudo cuidadosa-
lho e agosto (LAMAN, 1936, p. 1080). Faz mente em uma pedra e depois num pilão:
sentido que ela tenha sido queimada viva Os mortos são carregados pelos anciãos
em Julho e, segundo Lorenzo da Luca, os no local da execução e jogados ao lon-
antonianos multiplicaram-se. Contudo, a go de diferentes caminhos que levam até
Tradição considera ki-vumbuya por asso- lá. Eles devem permanecer lá, deitados
de costas. Depois de cobrir o rosto com
ciar a morte-ressurreição. O termo ki-vum- um pano de rafia, as vezes uma folha
buya é a flor-violeta de lemba-lemba que de bananeira, os carregadores fugiam, e
brota entre julho-setembro, sinônimo de abandonam os seus mortos. Logo, apare-
mvuma (LAMAN, 1936, p. 638, 1080). Isto ce o mestre do Kimpasi e a sua comitiva.
é, do verbo vûma (ou vûmba): florescer, Ele ajoelha-se próximo de cada cadáver
e descobre a cabeça, pega o tufo de fo-
prosperar depois de honrar os pais/avôs lhas de lusângu-ñsângu29 em chamas
(os ancestrais) etc. apresentado por um dos seus auxiliares e
Figura 01: Kivûmbuya kya lêmba-lêmba, Taubaté [no esfrega todo o corpo do cadáver. Depois
quintal de Tata Giamba] do joelho esquerdo até a cabeça, e com
cuidado ele sopra a fumaça nos olhos.
Ele então pega a mistura mágica que pre-
parou e passa nos olhos do cadáver. Este
último, excitado com essa mistura…, logo
esquece seu papel e é desembaraçado…
Os mais velhos o levantam e o morto
terá que correr com toda velocidade de
suas pernas em direção ao recinto. (VAN
WING, 1938, p. 206-207)

Depois, o mestre do kimpasi aparece


e, com o chifre de antílope, chama a aten-
ção de todos para escutar o cântico que
sustenta a promessa:
Foto: Rubens Pereira Tat’âmu, Tata Mfwa wasi
Em relação à ressurreição, o padre Ngûdi’amu, ngwa Ñdûndu,
Joseph Van Wing realça que no dia fixado Fwa mbila, Lwângu ndila nie
para essa, os auxiliares – homens e mu- Kilûmbu ibaka Toko30
lheres – e todos os antigos iniciados que
Toko di ngwa Ñdûndu. (VAN WING, 1938,
vivem na zona reúnem-se na hora indica-
p. 208)
da.. Por norma, realiza-se no crepúsculo,
na época da nova lua. Depois do banho ha- Vamos utilizar a tradução que os ini-
bitual, diz o padre, os mortos pintavam-se ciados (os ñlêmba, também) utilizam:
completamente de mpêmba, argila branca. “O meu pai é Papa Mfwa wansi31
Apenas uma parte da cabeça não é pinta-
da, mas fica manchada com as cinzas das
29. Geralmente, retira-se a flor (ñsângwa). Laman men-
folhas/flores de lusângu-ñsângu. O Mfwa ciona o termo nsangwa com sentido de flor.
wansi tira o amuleto kimpasi para renovar
30. Joseph Van Wing traduz: “no dia que irei celebrar o
matrimónio”. Esse sentido está correto, pois a ressurrei-
27. “Lêmba-lêma” é planta medicinal (LAMAN, 1936, p. ção é sinal de um matrimônio com um ñkita, de forma
391). geral.
28. Havia preparação permanente do campo e as árvo- 31. Essa personagem simboliza o Espírito de Ñzâmbi en-
res podadas regularmente. quanto médico que cura a lepra.

Afros & Amazônicos 114 vol. 2, n º 2, 2020


Minha mãe é Dama Ñdûndu 1491 e pragmatismo de uma Messias faci-
que morreu invocando e Lwângu lamen-
32 litaram-lhe o espaço de intervenção. Logo
tou33 que o povo aderiu, ela conseguiu realizar
no dia que ressuscitou o seu propósito. O kimpasi foi decisivo no
Toko, filho da Dama Ñdûndu”.
decurso dessa história.

A ressurreição termina com uma boa Em relação a kimpasi, sugerimos a


refeição extravagante, comparativamente consulta do texto de Joseph Van Wing para
às refeições anteriores. Joseph Van Wing ter pormenores de como se passava. Leo
faz observar que as cerimônias de Kimpasi Bittrémieux citou-o. Para completar esses
têm um significado real entre os Kôngo e dois textos, aconselhamos as contribuições
que o candidato morre e, realmente, volta que tratam da sua exploração etnográfica.
a vida, isto é, os próprios kôngo acreditam Kimpianga Mahaniah, por exemplo, realça
nessa morte e ressurreição, pelo menos os modos de cura que ainda perduram nos
até a época que ele recolheu essas infor- dias de hoje entre os Kôngo (MAHANIAH,
mações. 1982). Vamos sublinhar aqui alguns pontos
precisos que nos esclarecem a profecia de
Ocorre que, ao reconstruirmos a histó- Ñsîmba Vita que deu corpo ao messianis-
ria da pedra de Lusûnzi e da Dama bonita, o mo, pois mesmo depois da sua morte, os
cântico da promessa faz sentido, principal- seguidores não amoleceram.
mente, no que diz respeito à Dona Beatriz
Ñsîmba Vita. Tudo indica, baseando-se nas Bernardo da Gallo informa-nos que
informações de Bernardo da Gallo e Loren- Ñsîmba Vita se tinha casado duas vezes,
zo di Luca, que Ñsîmba Vita tenha desem- ou talvez mais34. Ela chegou a ter um fi-
penhado as funções de Ñdûndu. Este cân- lho que faleceu enquanto criança, mas
tico-promessa, como se verá, ter-se-á reali- importa não confundir com a criança que
zado com o messianismo em África Central ela transportava quando foi feita presa. Por
Ocidental. Voltaremos a tal adiante. sua vez, Joseph Van Wing informa-nos que
a chefe Ndundu deveria ser uma senhora
Era do nosso interesse tecer algumas de idade, tendo perdido uma criança em
ideias sobre kimpasi. Geralmente, realiza- tenra idade. A verdade é que Dona Bea-
-se esse concerto numa comuna que in- triz tinha apenas 20-22 anos e desempe-
tegra várias aldeias desde que se verifica nhou essas funções. Contudo, para a sua
a falta de paz, enfermidades incuráveis e eleição como Ndûndu era necessário que,
caos total. Na perspectiva que Dona Bea- além de ser gêmeos, deveria ter tido um
triz o fez, e tendo em conta a época das filho que tivesse falecido na meninice (VAN
grandes turbulências, o kimpasi realizado WING, 1938, p. 226). Daí, Ndûndu Ñsîm-
visava reestruturar o reino do Kôngo no ba terá várias crianças, como diz a Tradi-
seu todo. Três oportunidades estão logo à ção. O messianismo iniciado por ela realça
vista: (i) a guerra civil, rebeldias e comér- “Ngwa Ñdûndu… Ngwa di Toko” enquanto
cio dos escravizados que contribuíam no profecia cantada desde 149135. Contudo,
caos político, social e econômico; (ii) vivên- realçamos dois aspectos: (1) mesma tra-
cia paralela do catolicismo e religião local ma semântica entre ressurreição simbólica
o que proporcionou o desespero total; (iii) do kimpasi e morte real de Ñsîmba Vita;
desocupação de Mbânz’a Kôngo e efeitos (2) linguagens do Kimpasi e discursos dos
psicossociais. A sua personalidade de cor- padres.
porizar a profecia do Nsaku Ne Vunda em

32. A expressão fwa mbîla significa “morreu numa convo- 34. A região estava em constante guerra, e os homens
cação invocando”. Ver Laman (1936, p. 530). vão à guerra e muitos morrem lá.
33. Lwângu simboliza aqui o Conselho Judiciário com a 35. Efetivou-se com o profeta ético Simão Gonçalves
missão de fiscalizar a execução das leis. Toko, cujo mãe chamou-se em vida Ñdûndu Ñsîmba.

Afros & Amazônicos 115 vol. 2, n º 2, 2020


1) A ressurreição simbólica no Kimpasi tudo juntos | Que Nsîmbi veja o | Nsemi,
tem lugar, diz Joseph Van Wing, “no mãe, o ngânga |Havia dois deles, oh!”.
período da tarde, no crepúsculo, na Com isso, percebe a influência da
época da nova lua”. Dona Beatriz foi doutrina de Dona Beatriz no campo político
queimada viva no fim do dia, crepúscu- e judiciário. Essa oração (inclusive aquela
lo, e no terceiro dia havia lua (em quar- que recolhemos em 1994) refere-se a ini-
ta minguante). Também, Ñsîmba Vita ciação de uma autoridade executiva-judi-
foi queimada viva, até virar a cinza. ciária. Ora, era no passado duas funções
Ora, diz-se, J. Van Wing, Ñdûndu (che- dos Ñzînga (executivo) e Nsaku (tribunais).
fe de Kimpasi) besuntava os candida- A doutrina antoniana misturou-as, ao ponto
tos com cinza de lusângu-ñsangu36. de termos aqui esse cântico-código que es-
2) Uma nova teologia – assente na es- pelha a consciência histórica da profetisa.
catologia kôngo – introduziu o sagrado
local na nomenclatura católica, tendo Conclusão
por isso sido recusado pela ortodoxia Se a religião é uma manifestação cul-
que os capuchinhos adotam. Esse con- tural, temos a necessidade de olhá-la en-
flito de ordem técnica não envolveu os quanto afirmação identitária. A compreen-
crentes que, curiosamente, orgulham- são da religião pelos Kôngo face aos dog-
-se de um catolicismo local. No setor mas católicos desencadearam uma luta
político, os benefícios foram conside- cultural profunda. Será interessante rea-
ráveis pela retomada da normalidade. preciar a história da profetisa ética Dona
Em setembro de 1994, em Mbata Ku- Beatriz Ñsîmba Vita (Kimpa Vita) consoan-
luzu, recolhemos um hino (que na verdade te pressupostos da religião, tal como ela
era uma invocação) cantados pelos inicia- a entendia, para melhor perceber a luta
dos cujo teor é o seguinte: que lhe fez o padre Bernardo da Gallo. Por
outro lado, comparar os factos produzidos
Ku Mfu’a Kalûnga ngyêle ������Vou-me introduzir no mis-
tério de Deus como forma de perceber a consciência so-
cial manifestada pelos antonianos (segui-
Nkutama ngwa Mayînda �����������Vou ser elucidado pela
Mãe Mayînda
dores da Dona Beatriz).
Ngemba, Mbênza gwizanene ���Paz e Justiça juntar-se- Referências
-ão a mim
BALANDIER, G. Messianismes et nationa-
Nkita, Mfu ndômba bamangana �� Espíritos da terra juntar-
-se-ão a mim
lismes en Afrique noire. C. I. S., n.º 14, p.
41-65, 1953.
Ngwa Mayînda sema matoko ���Mãe Mayînda abençoa
os rescussitados BASTIDE, R. Les réligions africaines au
Nsemi mwêla, Mfu Nsemi ���������Sou (agora) o Espírito de
Brésil. Vers une sociologie des interpreta-
Nsemi tions des civilisations. Paris: P. U. F., 1960.
Pensamos tratar-se de reminiscên- BASTIDES, R. Le candomblé de Bahia.
cias da doutrina de Dona Beatriz Ñsîm- Rite Nagó. São Paulo: Companhia Editora
ba Vita. No Cahier n.º 225 (MacGAFFEY, Nacional, 1961).
2000, p. 160-162), Lutete apresenta o cân- BATSÎKAMA, P. Tokoismo. Teologia da li-
tico que recolheu (em 1910) a propósito do bertação. Luanda: Mayamba, 2018.
iniciador do Mbênza, que Wyatt MacGaffey BIMWENYI, O. Le muntu à la lumière de
apresenta a presente tradução:”Fui procu- ses croyances en l’Aud-delà. Cahiers des
rar ansiosamente | Nós nos vimos, mamãe religions africaines, n. 9, p. 59-112, 1968.
| Vimos o ngânga Mbênza | oh! Havia dois
BRÁSIO, A. História e missiologia. Inédi-
tos e esparsos. Luanda: Instituto de Inves-
36. Curiosamente, trata-se aqui das folhas e flores de al- tigação Científica de Angola, 1973.
godão.

Afros & Amazônicos 116 vol. 2, n º 2, 2020


CUVELIER, J. La rélation de Congo de MUJYNYA, E. La théorie du ‘Ntu’ ou la thé-
Laurent de Lucques. Bruxelas, 1953. orie de la nature des êtres: les lois de l’Uni-
CUVELIER, J. Nkutama mvila zamakan- vers. In: SMET, A. J. (ed.), Philosophie
da. Tumba: Diocèse de Matadi, 1934. africaine. Kinsâsa, 1975. p. 147-155.

ELIADE, M. O sagrado e o Profano. São MULAGO, V. C. M. L’union vitale bantu.


Paulo: Martins Fontes, 1992. Rhytmes du monde, vol. 4, nº 2-3, p. 43-
53, 1956.
FILESI, T. Nazionalismo e religione nel
Congo all’inizio del 1700: la secta degli MULAGO, V. C. M. La conception de Dieu
Antoniani. Roma: A.BE.TE, 1971. dans la Tradition bantu. Revue du Clergé
africain, n.º 22, p. 272-299, 1987.
FUKYAWU, K. B. African Cosmogony of
Bantu-Kongo: principles of life and living. PLATÃO, República. Lisboa: Fundação
New York: Atheleia Henrietta Press, 2001. Gulbenkian, 1972.

JANZEN, J. Lemba, 1650-1930: a Drum of SINDA, M. Le messianisme congolais et


Affliction in Africa and the New World. New ses incidences politiques Kimnaguis-
York, 1982. me, matsouanisme et autres mouve-
ments. Paris: Payot, 1972.
LAMAN, K.E. Le Dictionaire Kikoongo-
-français. Bruxellas: I. R. C. B., 1936. THORNTON, J. The Kongolese Saint An-
thony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the
MacGAFFEY, W. Religion and Society in Antonian Movement, 1684-1706. Cambrid-
Central Africa: the Bakongo of Lower Zai- ge: Cambridge University Press, 1998.
re, Chicago/Londres: University of Chicago
Press, 1986. VAN WING, J. Études Bakongo. I. Bruxe-
las: Desclé, 1938.
MAHANIAHN, K. Maladie et la guérison
en milieu kôngo. Essai sur Kimfumu, Kin- WAMBA DYA WAMBA, E. La philosophie
gunza et Kitobe. Kinsasa: Edições Centre en Afrique ou les défis de l’Africain philoso-
de Vulgarisation Agricole, 1982. phe, In: SCHWARZ, A. (ed.), Les faux pro-
fetes de l’Afrique ou Afr (eu) canisme.
MALENGU, J. C. Le Dieu des bantou est-il Québec: Les Presses Universitaires Laval,
un Dieu-Père?. Révue du Clergé Africain, 1980. p. 225-244.
n.º 22, p. 514-529, 1967.
WEBER, M. Sociologia das religiões.
MALULA, J. Culture africaine et message Lisboa: Relógio d’Água, 2006.
chrétien. Église du Tiers Monde, Paris, p.
259-269, 1965.
-----//-----
MAWETE, M. Dieu ma Mère. Le matriarcat
Abstract: The concept of Religion seems to be in
et féminisme. Paris: Papyruss Press, 2018. constant construction and, in this texto, we will use
MELLO E SOUZA, M. Religiões tradicio- case of kimpasi at time of Dona Beatriz Ñsîmba
nais e catequeses na África Central, sécu- Vita (1684-1706) in order to understand how it is
understood by the Kôngo Peolple. For better under-
lo XVII. Phronésis: Campinas, Vol. 8, n. º standing, we shall refer to the kimpasi that, in the
1, p. 121-138, 2006. 18th century, was considered a religious space of
MEROLLA, G. Breve e Succinta Rela- syncretism. Among the Kôngo People, the religion
has five converging meanings. Thus, this article re-
tione del viaggio ne Regno do Congo flects on the contributions of the ethical prophetess
nell’Africa Meridionale Fatta. Napoles, called Dona Beatriz Ñsîmba Vita and well-known as
1692. “Kimpa Vita”.
MONSENGWO, P. Interpretation de la Bi- Keywords: Ñsîmba Vita; Religion; African Ances-
trality; Kôngo kingdom.
ble, racine herméutique et biblique. Révue
Africaine de Théologie, n. º 2, p. 145-164,
1977.

Afros & Amazônicos 117 vol. 2, n º 2, 2020

Você também pode gostar