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DOI: 10.47209/2675-6862.v.2n.2.p.102-117
leitura para a nossa abordagem, em con- da são especialistas desta matéria, para
sonância com a escola de Kinsâsa que tra- garantir a harmonia de origem/destino do
tou desse assunto depois do Concílio Vati- espírito.
cano II (MALULA, 1965, p. 262). Ñsîmba Vita nasceu em Ngând’a
Talvez com essa base se perceba a Mbwêla, no vale de Mbidizi em Kimbângu.
construção ontológica do homem, enquan- Por ser gêmeos (ñsîmba) tinha acesso a
to indivíduo, para alcançar o fim da rela- masîmba e, tal como nos informa Bernar-
ção homem/indivíduo (MUJYNYA, 1975, do da Gallo, ela foi ñgânga marinda. Como
p. 148-149). Essa relação é cultural e pro- já vimos, deve tratar-se de ñgânga mayîn-
gramática (WAMBA-DYA-WAMBA, 1980, da. Por fim, ela pertencia a linhagem dos
p. 231; MULAGO, 1956, p. 135). O Ho- Nsaku’e Lawu. Estamos perante um capi-
mem transforma a natureza, experimenta tal religioso de grande peso na estrutura
uma autotransformação e cria um espaço social kôngo. Na cultura kôngo, os gêmeos
mentalmente construído (MULAGO, 1987, são oriundos dos Espíritos dos Heróis ci-
p. 277). Primeiro: é a composição do indi- vilizadores e fundadores das aldeias (VAN
víduo: espírito (alheio e soberano) que se WING, 1938) que protegem a sociedade:
precisa preservar (fôlego) mesmo quando o verbo ku-sîmba significa sustentar, pro-
se está inconsciente; o corpo (enquanto teger. A natureza oferece-lhes habilidades
manifesto da natureza) que é preciso edu- que lhes permitem comunicação com o
car e formatar, embora limitado (matéria). mundo dos espíritos. Diz o padre Bernar-
Desse modo, o verdadeiro indivíduo passa do da Gallo, Ñsîmba Vita “era iniciada na
a ser a sua própria vontade, a única entida- arte feiticeira”, quer dizer, magia no sentido
de mitológica livre. Porém, parece insegu- pejorativo. O que não corresponde com a
ra enquanto ser solitário, até porque como verdade. O padre descreve que, quando
acabamos de ver o indivíduo nunca está/é foi recebida pelo rei, Dona Beatriz girou à
só. Por depender do sopro (que pode eva- volta desse de uma maneira como se ela
porar sem avisar), o homem/vontade (liber- não tocasse o chão. A Tradição registrou-
dade) percorre um programa que elimina -o como levitação. Ñgânga mayînda tem,
as suas dúvidas, dominado pelas crenças entre outras capacidades sobrenaturais, a
lógicas e razões afetivas. Segundo: é a de levitar e de identificar os objetos sagra-
imensidão do Espírito, preso numa estru- dos por terem sido tocados pelo Espírito
tura padronizada e limitada sendo dirigida/ Primitivo (Ñzâmbi, Deus) ou os ñkita (Espí-
liderada pela vontade egoísta e ignorante. rito da Natureza) ou ainda os bisîmbi (Es-
Por isso, dá espaço às crenças. Des- pírito dos Heróis civilizadores) ou mesmo,
ta maneira, percebe-se o programa/cultura o que é comum, os Bakûlu (Espírito dos
cuja articulação consiste em: (i) estabe- ancestrais). Por último, era Nsaku’e Lawu.
lecer família; (ii) construir linhagens; (iii) Dito de outra forma, ñgânga kitômi que os
limitar o clã; (iv) construir unidade social; primeiros padres carmelitas compararam a
(v) padronizar anéis sociais ou políticos Sumo Pontífice Católico. Com esse capital
ou ainda econômicos. No plano individual, religioso, o povo tinha plena consciência
este programa/cultura sufoca o espírito e que ela domiciliava o Espírito de Ñzâmbi e
condiciona a sua liberdade. A morte é en- dela provinham as bênçãos e a fertilidade
tão, interpretada como uma autêntica liber- da sociedade. Foi por isso que profetizava
tação do espírito e, consequentemente, e curava todas as enfermidades. E isso em
nasce a ideia da vontade de se tornar alma nada tem com magia no sentido pejorativo.
ancestral que sobrevive quando cessa o Como se verá adiante, a religião é “ter boa
corpo. Para isso, são necessárias cerimô- saúde física e mental”.
nias específicas. Em kikôngo, o corpo é Por ser Vita Wânga (Nsaku’e Lawu)
nitu, espírito é mwânda e a vontade/alma é ela deveria ser, simultaneamente, ñgânga
mwêla. Ñgânga mvûmbi e ngânga mayîn- kitômi: maior sacerdotisa. Onde nasceu,
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havia Ñzâmba Mbûdi, também chamado ar (fumo, térmitas com asas, LAMAN,
Ñzîmbu’a Mbûdi, local onde se curava os 1936, p. 993-994), levitar. O especialis-
doentes. Girolamo Merolla da Sorento con- ta era chamado de Ñtûmba Mvêmba.
siderou essa magia de diabólica (MERO- 2) Kitômi: (a) toma: ser bom, agradável,
LA, 1692, p. 37, 53, 88). Na verdade, trata- perfeito, útil, simpático, exacto; (b) es-
-se de um lugar sagrado, tal como o nome tar em perfeita saúde; (c) estar nas al-
descreve. Ñgând’a Mbwêla era o local dos turas, ser profundo, grande imensidão
Nsaku’e Lawu, fundado por sacerdotes (LAMAN, 1936, p. 981). O especialista
que tinham a capacidade de domiciliar os chamava-se ñgânga kitomi.
espíritos dos ancestrais: Mbwêla [mwêla],
local abençoado pelos espíritos dos an- 3) Dibûndu: (a) bûnda: unir, reunir, jun-
cestrais. Com esta capital, a sociedade tar, encapsular (o cadáver) num pano;
aceitou Ñsîmba Vita quer pela sua origem (b) iniciar alguém na magia (sobrena-
social, quer pelas suas obras assim como tural); (c) fazer algo de graça, sem es-
por ser iniciada ñgânga mayînda. perar retribuição; (d) bûnduka: cair por
terra, estar estendido na terra, sobres-
Daí vem a realização de kimpasi que sair da terra (LAMAN, 1936, p 74-75,
aceitava personalidades com esse capital 76-77). O especialista é chamado de
religioso, com dons especiais, e que legiti- ñgânga Ñzâmbi.
ma Ñsîmba Vita. Com isso, já estamos tra-
tando de: (i) relação homem/natureza; (ii) 4) Buñkîsi: (a) sikîsa: santificar, fortifi-
relação mundo físico/Além; homem/natu- car, tornar sólido; (b) sîka (de sa): deci-
reza é, parcialmente, uma questão indivisí- dir, decretar, fazer voto, secar, evapori-
vel, tanto pela inserção do homem na natu- zar-se; (c) sasa: ser abundante ou rico,
reza, como pelas propriedades partilhadas ultrapassar, aquitar-se de. Ñgânga ñkî-
entre ambos. O homem transforma a na- si é o especialista.
tureza (cultura), a natureza fornece arqué- 5) Lômbo lwa sîmbi: (a) lomba: pedir,
tipos das crenças e os códigos primitivos solicitar pediosamente; (b) rezar, cul-
(linguagens, metalinguagens). Ambos são tuar, homenagear ou reverenciar o Es-
condicionados pelos imperativos do espa- pírito; (c) observar tabus, cumprir com
ço/tempo. Já para a relação mundo físico/ as interdições; (d) comunicar com Es-
Além, o espírito é contrário ao corpo por pírito, conhecer os mistérios (LAMAN,
ser atemporal e intangível. Daí, representa 1936, p. 404-405). O especialista foi
a origem/destino do corpo que habita, com ñgâng’a ñgômbo (equivalente de sa-
símbolos em vários domínios da natureza/ cerdote). Em kikôngo, o termoki-lômbo
Espírito primitivo que não obedece ao es- é o nome de uma criança que tem o
paço/tempo. espírito de ñsîmbi e simboliza a abun-
Com isso, podemos analisar o que os dância (LAMAN, 1936, p. 405).
Kôngo compreendem como sendo religião. Pelas etimologias aqui referenciadas,
Antes de enquadrar ou, talvez, descons- a religião é – para os Kôngo – um siste-
truir os padrões de definição ocidental (re- ma que instituiu o equilíbrio no homem en-
ligere, relegere e re-elegere (McGAFFEY, quanto indivíduo no seu relacionamento
1986, p. 1-4), vamos procurar perceber o com os seus semelhantes na manutenção
seu modo de entendimento da religião. da ordem. Por outro lado, ela programa o
Existem cinco termos genéricos que bem-estar como exercício individual (antes
traduzem categorias de religião entre os de ser coletivo) com interdições e reverên-
Kôngo: cias ao Espírito primitivo. Ora, esse último
pode ser lei, enquanto ferramenta social,
1) Kiñtûmba: (a) tûmba, introduzir no; repartindo-se em: (a) relação individual
iniciar nos mistérios; (b) fazer ordena- da consciência (onde habita este Espírito
ção, coroar, abençoar; (c) elevar-se no primitivo) que articula virtudes e desejos;
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(b) um sistema cultural assente nos símbo- (b) ministros do sagrado; (c) emissários do
los de integração identitária e nos valores Além. Esses últimos tinham as habilidades
da pertença; (c) uma plataforma dialógica com as quais nasceram e eram iniciados a
entre a realidade e a sua significação me- aperfeiçoá-las para sua profissão.
tafísica; (d) construção abstrata do mundo O discurso de Dom Jorge Nsaku Ne
primitivo (que teleguia o comportamento Vunda foi claro em relação à aceitação da
individual) como interpretação dos pres- Igreja Católica Romana, de maneira que –
supostos estruturantes da organização so- talvez pela grande revelação sobre a pedra
cioeconômica, sociopolítica etc. de lusûnzi – os padres católicos ficaram
Logo na estruturação social, os Kôn- convencidos das qualidades do sacerdote
go determinaram as funções sociais, re- ñgânga kitomi5. Ele ficou responsável pela
servando exclusivamente aos Nsaku a re- instalação das igrejas no Kôngo, em par-
ligião. Na primeira categoria, a religião é a ceria com a Igreja Católica. Nessa parce-
fonte da saúde espiritual e física do indiví- ria, os altos funcionários da Corte conver-
duo. Estar de saúde é indicador de estar teram-se como forma de integrar o Kôngo
em boa relação consigo mesmo e qualquer no concerto internacional. Apesar disso,
enfermidade é sinal de falta de virtude ou ainda acreditavam na religião local e priori-
consciência. Seguidamente, na segunda zavam os pontos convergentes no espaço
categoria, a desintegração simbólica (des- diplomático. A cultura local não desapare-
respeito, inveja, ódio etc.) faz com que se ceu, apesar das imposições católicas que
perca a bênção da natureza4 e torne-se in- chegaram a imiscuir-se com os assuntos
fértil. Por isso, Dona Beatriz Ñsîmba Vita públicos. Apesar de se converter, os digni-
acusa o padre Bernardo da Gallo de ter tários continuavam polígamos, por exem-
espírito malvado por conta de sua inveja plo, e não cessavam de realizar os cultos
e do desejo de atrofiar Apolónia Mafuta, a dos ancestrais, isto é, apesar da existência
fim de que essa não evolua. e instalação dos padres católicos, ainda
A terceira e quarta categorias fazem funcionavam plenamente os ngânga ñkîsi,
da religião uma profissão específica com ñgâng’a ñgômbo, ñgânga kitomi etc.
pessoas especiais (pela nascência, ori- Dibûndu designa a igreja no sentido
gem social etc.) que devem ser treinadas de coração, mbûndu6. Na medicina kôngo
na manutenção da ordem social pela sua o coração é ñkûmba dya mênga em duas
capacidade sobrenatural de domiciliar o perspectivas: bombeia o sangue de todo
Espírito primitivo e conhecer a natureza da corpo e purifica o sangue recebido. A ideia
energia de cada elemento orgânico, mine- de purificar o sangue é religiosamente
ral, botânico etc. aproveitada pelo facto de acreditar-se que
Pelos escritos do padre Bernardo da o Espírito primitivo reside no sangue e,
Gallo, sabemos que Ñsîmba Vita foi inicia- sobretudo, olhar o coração como símbolo
da na “arte feiticeira”, ñgânga mayînda. Ela, da piedade. Desta feita, dibûndu passou a
diz o padre, curou muita gente das suas designar a Igreja enquanto infra-estrutura
enfermidades. A medicina (boa saúde) (templo) com cultos e funções sacerdotais.
confunde-se com a religião nesse aspecto, Como coração, o dibûndu é a religião no
o qual acompanhou o messianismo. Con- campo privado do indivíduo e no olhar das
tudo, o sacerdócio é uma estrutura bem virtudes por cultivar e manter diálogo entre
padronizada e diferenciada e compõe-se a consciência e a conduta. Os ñsîku são
de: (a) administradores de cultos públicos; leis deixadas pelos ancestrais que servem
10. Já citamos Lorenzo da Lucca sobre esse assunto. 11. Possessão de um Espírito superior.
32. A expressão fwa mbîla significa “morreu numa convo- 34. A região estava em constante guerra, e os homens
cação invocando”. Ver Laman (1936, p. 530). vão à guerra e muitos morrem lá.
33. Lwângu simboliza aqui o Conselho Judiciário com a 35. Efetivou-se com o profeta ético Simão Gonçalves
missão de fiscalizar a execução das leis. Toko, cujo mãe chamou-se em vida Ñdûndu Ñsîmba.