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Journal of African History, 54 (2013), pp.

53-77 (Cambridge University Press 2013)

SINCRETISMO AFRO-CRISTÃO NO REINO DO CONGO

JOHN K. THORNTON
Boston University

Resumo: Este artigo examina o modo como o Cristianismo e a religião do Congo se fundiram
para produzir um resultado sincrético. Após mostrar que o a igreja do Congo cresceu antes
sob a supervisão direta de autoridades do Congo do que dos missionários, rastreia como os
sistemas educacionais locais e as transformações linguísticas acomodaram as diferenças entre
as duas tradições religiosas. No Congo, muitas atividades associadas com a religião
tradicional foram atacadas como bruxaria sem atribuir qualquer parte da religião tradicional a
esta categoria. Também aborda como pensadores religiosos do Congo contornaram questões
sobre o fato da morte e virgindade de Maria quando harmonizá-los poderia ser difícil.

Palavras-chave: África Central, África Equatorial, Diáspora Africana, Cristianismo,


comparativo, religião.

A conversão do Reino do Congo, sua relação com a Europa e o seu papel no comércio
de escravos também fascinaram aqueles historiadores pioneiros do renascimento dos estudos
da história da África nos anos 1960. Basil Davidson escreveu sobre o Congo nos seus
primeiros trabalhos, assim como Jan Vansina, Georges Balandier, W. G. L. Randles e David
Birmingham na primeira década dos modernos estudos de história da África. Estes estudos
focaram na conversão do Congo primeiramente em termos políticos, como forma de os
governantes aumentarem o seu poder através de uma ligação a Portugal. Ann Hilton abriu um
novo terreno em seu ricamente documentado estudo de 1985 tentando focar cuidadosamente
na dimensão religiosa como na política. Enquanto se atentava para o papel das políticas reais
na promoção da nova religião, ela também investigava sistematicamente os modos com que o
Cristianismo poderia interagir com a religião original do Congo.1
Hilton fez extensivo uso da antropologia das pessoas falantes-kikongo, em larga
medida porque antropólogos, tanto ocidentais quanto do Congo estudaram o Congo
extensivamente desde fins do século XIX.

1
HILTON, Ann. The Kingdom of Kongo. Oxford, 1985, 9-19, 45-9, 52, 62, 89-98 e 186-208. MacGaffey
aprovou por seu método enquanto expressou sérias dúvidas sobre as especificidades de sua reconstrução da
cosmologia Congo; ver MACGAFFEY, Wyatt. Dialogues of the deaf: Europeans on the Atlantic cost of Africa.
In: SCHWARTS, Stuart B. (ed.). Implicit Understandings: Observing, Reporting, and Reflecting on the
Encourters between Europeans and Other Peoples in the Early Modern Era. Cambridge, 1994, p. 249-67, ver
suas reservas em 255, n. 19.

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Mais recentemente, problemas especificamente religiosos têm sido particularmente


importantes para pesquisadores da Diáspora Africana que tem investigado a conversão pelo
impacto que poderia ter tido nas Américas quando escravos cristãos do Congo foram para o
Brasil ou Carolina do Sul.2 O trabalho de Hilton e a antropologia moderna tem tido influência
sobre estes trabalhos de historiadores das Américas, assim como naqueles de historiadores da
arte que tem detectado elementos da cosmologia Congo nas Américas.3
Como a questão da conversão do Congo tem ganhado importância com o renovado
interesse de acadêmicos sobre a Diáspora Africana, a natureza da conversão é crescentemente
discutida. Todos os acadêmicos concordam que o resultado foi sincrético – que o Cristianismo
Congolês incorporou elementos da cosmologia original do Congo assim como adicionou
elementos cristãos. Richard Gray, talvez sozinho, alegou que no final do século XVII,
algumas partes do Congo tornaram-se verdadeiramente cristãs (ou seja, em alinhamento com
a teologia corrente na Europa da época), embora a maioria dos estudiosos não aceitem este
ponto de vista.4
Nos primeiros trabalhos, procurei expandir a ideia de sincretismo no Congo, sugerindo
que o status político era importante. Como o Kongo não era uma colônia europeia,
argumentei, os padres que se aproximavam da conversão adotaram o que eu chamei de
sincretismo “aberto”, permitindo que uma grande parte da religião original permanecesse e
aceitasse a mistura resultante como apropriadamente católica. O modelo aberto se opunha a
um modelo fechado, característico de algumas sociedades coloniais, que insistia no abandono
de antigas ideias religiosas.5
O trabalho desde aquele tempo tem focado mais nitidamente em precisamente como a
cosmologia do Congo e aquela do Cristianismo puderam ter interagido; o trabalho de

2
SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-
1770. Chapel Hill, NC, 2003, p. 104-15; YOUNG, J. R. Rituals of Resistance: African Atlantic Religion in
Kongo and the Lowcountry South in the Era of Slavery. Baton Rouge, LA, 2007, p. 47-59; BROWN, R. M.
African-Atlantic Cultures and the South Carolina Lowcountry. Cambridge, 2012, p. 90-138.
3
THOMPSON, R. F. Flash of the Spirit: African and Afro-American Art and Philosophy. New York, 1983;
THOMPSON, R. F., CORNET, R. The Four Moments of the Sun: Kongo Arte in Two Worlds. Washington,
D.C., 1981; FENNEL, C. C. Bakongo identitty and symbolic expression in the Americas. In: OGUNDIRAN, A.,
FALOLA, T. (eds.). Archaeology of Atlantic Africa and the African Diaspora. Bloomington, IN, 2007, p. 199-
232; FENNELL, C. C. Crossroads and Cosmologies: Diasporas and Ethnogenesis in the New World.
Gainesville, FL, 2007.
4
GRAY, Richard. Como vero Prencipe Catolico: the Capuchins and the rulers of Soyo in the late seventeenth
century. Africa: Journal of the International African Institute, 53:3 (1983), 39-54.
5
THORNTON, John K. The development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750.
Journal of African History, 25:2 (1984), 147-67. Eu desafiei a ideia de conversão e resistência forçada em
muitos casos americanos em A Cultural History of the Atlantic World, 1250-1820. Cambridge, 2012, p. 419-47.

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antropólogos, particularmente Wyatt MacGaffey, tem figurado muito em focar a imagem.6


Em geral, estes trabalhos, incluindo meus trabalhos recentes, têm focado largamente no grau
básico em que a cosmologia Congo dominou o sincretismo, tornando assim de certa forma
mais Congolesa e menos Cristã. Alguns, como James Sweet, expandiram a questão para
argumentar que a religião do Kongo mudou tão pouco que é provavelmente melhor não
chamá-los apenas cristãos, mas talvez birreligiosos, enfatizando a manutenção de uma
cosmologia central do Congo.7
Portanto, a questão do sincretismo tem sempre implicado que valores fundamentais da
religião são claramente definidos e que há uma ortodoxia discernível; sincretismo tem
geralmente sido visto como um fracasso para atender a esses padrões de ortodoxia. Essa
visão, no entanto, não levou inteiramente em consideração que as crenças religiosas mudam, e
que mecanismos de mudança dentro das tradições tornam isso possível: a ortodoxia central é
ela mesma mutável. Assim, a mudança ou conversão religiosa não é simplesmente uma
questão de igualar ou suprimir valores centrais, ou encontrar terreno entre eles de uma
maneira intelectual, mas de harmonizar os elementos mutáveis em ambas as tradições. Assim,
o cristianismo primitivo absorveu elementos helenísticos (entre outros) através do veículo da
profecia e da revelação divina, tanto quanto através de um processo de correspondência ou
troca de valores fundamentais: assim também o desenvolvimento do cristianismo medieval
em seu envolvimento com os religiosos da Europa norte-ocidental.
A questão, importante em particular para aqueles que estudam a Diáspora Congo para
as Américas, de se ou em que grau o Congo era cristão é, em última análise, realmente
sectária sobre o que constitui os princípios centrais do cristianismo. Ao longo de sua história
como religião mundial, o cristianismo incorporou crenças externas, desde suas origens como
um culto milenar judaico, até seu casamento com a filosofia grega, exigências do Estado
romano, costumes germânicos e assim por diante. Toda a história da Igreja envolveu
sincretismo de uma ou outra espécie, e fundamentalismos em todas as era têm procurado,
através de seus textos originais, localizar ou realocar o original, não-sincretizada religião.
Frequentemente estudiosos são inclinados, dando este sincretismo, a apresentar o Congo
como tendo sido influenciado por ou como tendo tido algum contato com Cristianismo,
enquanto não creditando Cristianismo como sendo a religião do país. Alternativamente eles

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O abrangente trabalho de MacGaffey é baseado em trabalho de campo sólido e uma leitura atenta de textos de
kikong da coleção de Laman: ver em particular MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa:
The Bakongo of Lower Zaire. Chicago, 1986, p. 189-216.
7
Sweet dirige suas críticas particularmente ao meu trabalho: SWEET, James. Recreating Africa, p. 104-113.

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têm sugerido que está é a religião da elite política, mas que não alcançou as pessoas
ordinárias, os mais propensos a serem escravizados.8
Aqui, eu quero explorar como exatamente foi possível o Cristianismo ter sido recebido
e disseminado no Congo, e como ele se encaixa no próprio sistema de crenças do Congo, mas
também salientar quão importante foi o papel que os intelectuais de elite do Congo tiveram no
desenvolvimento de sua teologia. Minha abordagem não assume que a cosmologia Congo é
uma identidade fixa que pode ser recuperada pelos métodos da Antropologia moderna e
aplicada para épocas anteriores, especialmente como a maior parte da Antropologia sobre o
Congo vem das populações falantes de kikongo que vivem fora dos limites primários do
Reino do Congo.9 Além disso, como Dunja Herzak apontou, hoje diferentes comunidades
dentro do mundo maior de língua kikongo têm diferentes versões de como a cosmologia é
definida e trabalhada, e em uma perspectiva antropológica, o sul do Reino do Congo é de fato
pouco estudado.10 Embora o trabalho moderno possa nos ajudar a entender textos mais
antigos, é importante tentar extrair o máximo possível dos textos originais antes de buscar o
trabalho moderno como um complemento interpretativo e não como um fundamento.
A maioria dos estudos, incluindo minhas próprias primeiras contribuições, assume que
o Cristianismo Congolês era uma religião missionária trazida, disseminada e mantida pelos
missionários europeus, e os altos e baixos percebidos do progresso da religião foram
correlacionados com a presença de missionários.11 De fato, uma leitura cuidadosa das fontes
originais mostra que os missionários desempenharam um papel relativamente pequeno na
definição do Cristianismo, e isso desde muito cedo em sua história, o Cristianismo Congolês
foi moldado pela educação das pessoas leigas do Congo. Muitos estudos tacitamente assumem
que os missionários portugueses e italianos que foram para o Congo nos séculos XVI e XVII
operaram no mesmo contexto como missionários coloniais modernos – que Georges
Balandier conhecidamente chamou a “situação colonial” – tentando conquistar uma

8
BROWN. African Atlantic Cultures, p. 200-10; BENNETT, H. L. Africans in Colonial Mexico: Absolutism,
Christianity, and Afro-Creole Consciousness, 1570-1640. Bloomington, IN, 2003, p. 33-50 e passim; BRISTOL,
J. C. Christians, Blasphemers, and Witches: Afro-Mexican Ritual Practice in the Seventeenth Century.
Albuquerque, NM, 2007, p. 68-70 e passim. Eu desafiei essa posição em THORNTON, John K. Rural people,
the church in Kongo and the Afroamerican diáspora (1491-1750). In: KOSCHORKE, K. (ed.). Transcontinental
Links in the History of Non-Western Christianity. Wiesbaden, 2002, p. 33-43.
9
KRIGER, C. E. The conundrum of culture in Atlantic history. In: CURTO, J. C., SOULODRE-LA FRANCE,
R. (ed.). Transcontinental Links in the History of Non-Western Christianity. Wiesbaden, 2002, p. 33-43.
10
HERSAK, D. The are many Kongo Worlds: particularities of magico-religious beliefs among the Vili and
Yombe of Congo-Brazzaville. Africa, 71:4 (2001), 614-40; BORTOLAMI, Gabriele. I Bakongo: Società,
tradizione e cambiamento in Angola (unpublished PhD thesis, Univeristà degli studi di Sassari, 2012).
11
HASTINGS, A. The Church in Africa, 1450-1950. Oxford, 1994, p. 79-118. Muitos historiadores dos
missionários têm também assumido este ponto de vista: ver SACCARDO, G. Congo e Angola: con la storia
dell’antica missione dei Cappuccini (3 vols, Venizia, 1982-3), mas também as muitas publicações de Louis
Jadin, François Bontinck e Carlo Toso.

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população não cristã através de argumentos, de recompensas como serviços médicos e


educacionais, e através da autoridade coercitiva do estado colonial. Neste cenário, os
missionários são aqueles que trouxeram a mensagem, tentando moldá-la para encaixar com o
cosmo existente, mas constantemente conscientes que eles estão trazendo uma nova religião e
ansiosos para substituir a antiga. Ideias fixas da religião existente, todavia, constantemente
resistiram também muito a mudança e o resultado é sincretismo.
Enquanto nos meus primeiros trabalhos, eu abordei o sincretismo da perspectiva dos
missionários, como trazendo ideias “abertas” ou “fechadas” sobre o quanto incluir das
religiões alvo, aqui eu quero adotar a perspectiva daqueles que as receberam. Então, nos
podemos dividir o sincretismo como sendo tanto “rejeitado” (rejecting) ou “incorporado”
(embracing). No “sincretismo rejeitado”, as pessoas da área cristianizada adotam apenas as
características superficiais da religião dos missionários a fim de continuar ou talvez esconder
a adesão à religião original. No fim e após os tempos coloniais, a reação africana ao
Cristianismo pode frequentemente ser o desenvolvimento de igrejas independentes, que se
encontram a meio termo entre sua versão do Cristianismo e a dos missionários. Tais igrejas
frequentemente se deparam com a desaprovação dos missionários. No período colonial,
missionários encontravam-se numa ocasião favorável para exercer sobre as igrejas
independentes a repressão do estado colonial, embora os estados pós-coloniais tenham
raramente feito a menos que as igrejas se tornassem politicamente opostas.
É digno de nota que o Congo não era uma colônia de Portugal, e o Cristianismo foi
abraçado virtualmente no início dos contatos.12 Porque sua própria elite tomou a liderança na
moldagem da nova religião, o Congo atualmente adotou o “sincretismo incorporado”
(embracing syncretism) – um sistema que procura um terreno comum com outra religião de
modo a incorporar suas características de um modo inteligível dentro de uma religião
existente. O trabalho desse sincretismo incorporado no Congo teve lugar no que Cécile
Fromont tem chamado o “espaço de correlação”.13
Missionários desempenharam um papel nas primeiras fases da conversão do Congo,
mas um maior papel, ainda maior, foi desempenhado pelas elites do Congo que estudaram a

12
O cronista português Rui de Pina documentou os primeiros contatos, baseando a sua narrativa sobre os
limitados registros da primeira viagem de Diogo Cão em 1483 e numa relação de batismos de 1491. Os registros
de batismos foram feitos num inquérito conduzido entre seis portugueses participantes após seus retornos, e é
referenciada na primeira versão da crônica de Pina, escrita em 1492, mas conhecida apenas na tradução italiana.
Uma versão portuguesa com um texto levemente diferente foi terminada em 1515. Ambas foram publicadas em
RADULET, C. M. O Cronista Rui de Pina e a ‘Relação do Reino do Congo’: Manuscrito inédito do ‘Códice
Riccardiano 1910’. Lisboa, 1992 [original italiano publicado em 1492].
13
FROMONT, Cécile. ‘Under the sign of the cross in the Kingdom of Kongo: religious conversion and visual
correlation in early modern Central Africa’, Res: Anthropology and Aesthetics, 59/60 (2011), 111-13.

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religião em Portugal e então a trouxeram para casa. Desde o início, a língua foi em elemento
crucial na moldagem do envolvimento do Congo com o Cristianismo através de sua própria
elite educada. Foram os nobres do Congo levados à Portugal por Diogo Cão em 1483 que
primeiro introduziram o Cristianismo a Nzinga a Nkuwu, o rei do Congo no tempo do
contato. Em Portugal, estas pessoas jovens foram instruídas nos “principais artigos da Fé
Sagrada, e bons costumes e língua [de Portugal]” e retornaram ao Congo em 1485. Então em
1488, após suas discussões com o rei, eles junto com congoleses de nível ainda mais alto
foram novamente para Portugal como embaixadores para transmitir os desejos de Nzinga a
Nkuwu de se tornar cristãos. Acho chegar em Portugal, os novos embaixadores
“imediatamente foram cristianizados e ensinados a falar Latim e a escrever na forma dos
caracteres latinos”, e eles foram instruídos nos “Mandamentos da Fé Católica”, e outros bons
costumes e atividades necessárias esperadas dos cristãos. De acordo com Rui de Pina, que
registrou estes eventos, o rei João II de Portugal pensou que quando eles retornassem ao seu
país, eles conheceriam uma e a outra língua”, a fim de ajudar o rei na expansão da fé.14
Assim, em última análise, os primeiros professores de Nzinga a Nkuwu eram falantes
nativos de kikong que aprenderam latim e português, e foram educados em ambas as tradições
religiosas.

14
PINA, Rui de. In: RADULET (ed.). Cronista, versão italiana, folha 86ra, 87va. O texto português equivalente
de 1515, capítulos LVII e LVIII, não contem muitos dos detalhes no italiano. João de Barros, que pode ter visto
este ou outros documentos em sua crônica escrita (publicada em 1552) fez ensinar alguns congoleses a falar
português como o motivo primário para trazer o primeiro congolês a Portugal. Decadas de Asia I. Lisboa, 1552,
livro III, capítulo III.

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