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PESQUISAR: NOTAS INTRODUTÓRIAS

Maria Ignez Costa Moreirai

Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.


(Guimarães Rosa)

Os projetos de pesquisa nas áreas das ciências humanas e sociais,


especialmente, revelam a relação inseparável entre as motivações, os desejos e as
implicações do pesquisador e a construção do objeto de pesquisa e das perguntas que
orientam as pesquisas. Construímos nossos objetos e nossas perguntas com as nossas
lentes teóricas, mas também a partir de nossas implicações. Os fenômenos e, tomemos
aqui o sentido amplo dos dicionários, são um fato de interesse científico, suscetível de
descrição ou explicação, estes são no campo das ciências humanas e sociais construídos
pelo pesquisador e alterados pela ação dos pesquisadores.
O nosso Programa de Pós-graduação em Psicologia se organiza em torno de
uma área de concentração “Processos de Subjetivação”. A expressão “processos” nos
remete a uma noção de movimento, de construção, desconstrução e reconstrução. A
“subjetivação” permite pensar em uma construção permanente, não linear, aberta,
provisória.
Recorro aqui à literatura através de Saramago (2003) e à história através do
olhar de Ginzburg (1987) para ancorar estas ideias sobre a construção do conhecimento.
Galileu, segundo Brecht (1978) pode escapar da fogueira da inquisição ao deixar
de afirmar que a terra se movia, porque independentemente da declaração de Galileu “a
terra se move”. A declaração de Galileu não muda o fenômeno, no entanto a descoberta
de Galileu no campo da física altera e abala as relações de poder: a terra se move, não é
o centro do universo, assim como o trono de Pedro não é o centro do mundo. Galileu se
altera frente as suas descobertas e altera o seu contexto de relações e de vida de seus
contemporâneos.
A história de Galileu nos leva a refletir que a nossa atividade de pesquisa, uma
vez que construímos nossos objetos de pesquisa e que estes nos constroem, é
atravessada pelas nossas histórias e opções ideológicas e políticas e, por outro lado o
nosso fazer de pesquisadores transforma e modifica nossas posições no mundo.
Saramago (2003) em “O conto da ilha desconhecida” relata que um homem
enfrentou muitos obstáculos para pedir e conseguir do Rei um barco para partir em
viagem para a ilha desconhecida. Vocês vieram até aqui, igualmente vencendo
obstáculos, pedir ao Rei (no nosso caso a instituição da pós-graduação com seus ritos,
exigências e medidas) um barco que lhes possibilite partir para a ilha desconhecida. A ilha
desconhecida nos faz pensar que buscamos o novo, a invenção, o instituinte. E partimos
para a ilha desconhecida na ilusão de torná-la conhecida e catalogada no mapa, e um dia
imaginamos que todas as ilhas serão conhecidas e catalogadas no mapa e terminada a
viagem e vencida a necessidade de novas viagens, mas não e felizmente não! Bedran
(2003) trabalhando com a questão da produção do conhecimento na Universidade toma
este conto como exemplo da aprendizagem inventiva:

O problema de uma ilha desconhecida não existia do ponto de


vista de uma demanda de solução de problema, já que as ilhas
existentes eram suficientes. Sua existência imperativa colocou-se,
no entanto, do ponto de vista de uma problematização vital para o
protagonista do conto. O sonho do personagem recupera a força
da problematização: a Ilha Desconhecida procura a si mesma. O
aprendizado sai vitorioso: algo que difere de si mesmo é o motor
da busca. O barco (ele próprio, no sonho, evoluído para uma ilha)
é veículo/movimento da diferenciação, impulso vital em busca de
algo que já está ali, na virtualidade. (BEDRAN, 2003 p.77).

Para partirmos para a ilha desconhecida, além do barco, precisamos soltar as


nossas amarras e abrir mão de algumas certezas. As certezas absolutas nos impedem de
deixar a segurança do cais.
Já Ginzburg (1987) relata o caso do moleiro Menocchio, exemplar para nos levar
à reflexão sobre a questão da comunicação e da circulação do conhecimento. Menochio
– o moleiro – “é um herói ou um mártir da palavra” lembra Renato Janine Ribeiro no
posfácio do livro de Ginzburg, afinal ele defende suas idéias, atividade incomum para os
homens de seu grupo social. Ao contrário de seus iguais ele leu muito, pensou, e ousou
discordar da doutrina hegemônica de sua época, a doutrina dogmática da igreja católica.
Ele não podia compartilhar a sua experiência de pensamento, no entanto, com ninguém
em sua aldeia, nem com os homens cultos (o conde, o padre que por certo
representavam e defendiam o pensamento hegemônico), nem com os camponeses (como
ele próprio, aqueles considerados os incultos) e nem, sequer, com a sua família (esta
apreensiva com as loucuras de Menochio, prestes a cair no tribunal na Inquisição).

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Menochio sofria duplamente por suas idéias: de um lado a repressão oficial e de outro a
sua solidão.
A história de Menochio nos sugere que o pensamento, a elaboração das idéias
deve ser livre, e, além disto, é preciso que tenhamos territórios livres para a circulação e
exposição das idéias. Espaços para o debate democrático, afinal o conhecimento se
constrói também no diálogo. Portanto, é preciso estarmos atentos aos dogmas vigentes e
às “fogueiras” acesas por diversos “tribunais inquisitoriais” da atualidade.
Por outro lado, lembra Ginzburg (1987) “a impressionante convergência entre as
posições de um desconhecido moleiro friulano e as de grupos de intelectuais dos mais
refinados e conhecedores de seu tempo coloca com toda a força o problema da
circularidade da cultura formulado por Bakhtin” (Ginzburg, 1987: p.32). Isso quer dizer que
Menochio era um homem sensível atravessado pelas questões do seu tempo. Nossos
problemas de pesquisa são também frutos do nosso tempo, das nossas circunstâncias,
do nosso contexto sócio-histórico.
Ginzburg (1987) considera que dois grandes eventos históricos tornaram possível
a atividade pensante de Menocchio: a invenção da imprensa e a reforma. A imprensa
porque a publicação dos livros permitiu-lhe confrontar o texto escrito com a tradição oral
na qual havia se formado e, este confronto lhe forneceu as palavras para organizar as
idéias e as fantasias que o habitavam. O trabalho de um pesquisador exige dele que se
torne um observador das coisas de seu tempo e um leitor. É preciso prestar atenção no
conhecimento do senso comum, no cinema, nas artes, na literatura, na poesia, nas mais
diversas mídias, pois tudo isso revela o “zeitgeist”. E também é necessário ser um leitor
atento ao conhecimento que foi sistematizado por outros pesquisadores da comunidade
científica e também dialogar com eles.
Quanto à Reforma, Ginzburg (1987), considera que seu ideário encorajou o
moleiro a comunicar o que pensava ao padre do vilarejo, aos conterrâneos e até mesmo
aos inquisidores. A Reforma de algum modo inspirou e autorizou o moleiro a aventurar-se
no exercício de produzir uma interpretação única e própria do seu mundo. É preciso
também que tenhamos a coragem de problematizar, de discutir o conhecimento produzido
em nossa área de interesse, mas não podemos tomar o conhecimento instituído como
verdade dogmática e única, precisamos correr o risco da inventividade, da aprendizagem
criativa, da busca do conhecimento e não da verdade.
Os problemas de pesquisa que elaboramos não estão dissociados de posturas
teóricas e também as escolhas metodológicas, que indicam caminhos possíveis para o
enfrentamento dos problemas norteadores da pesquisa não estão dissociadas das
orientações teóricas, ao contrário estão articulados. Ou seja, a questão do método não
pode estar reduzida a um feixe de técnicas de coleta e análise de dados ou às normas
técnicas. Dessa forma, a escolha por procedimentos qualitativos, quantitativos ou mistos é
processual, iniciada na delimitação do problema, na formulação das perguntas e,
reconstruída ao longo de todo o processo da pesquisa.
É necessário que tanto a origem quanto a finalidade de nossas pesquisas sejam
tomadas como objeto de nossas reflexões, como nos ensina Sawaia (1995) “É preciso
entender que as ciências, especialmente as humanas, estão inseridas no reino da ética e
que o debate epistemológico e regulado por valores de vida, morte e poder” (p.48).
Portanto, também a discussão da ética na pesquisa não pode estar dissociada das
questões teórico-metodológicas.
Finalmente, as técnicas, os modos de operacionalizar uma pesquisa e,
posteriormente de comunicar as conclusões elaboradas, são necessárias para que o
conhecimento produzido possa ser compartilhado, compreensível e acessível a todos e
todas que desejarem. Neste sentido, os resultados de nossas pesquisas devem ser
tornados públicos, em diversas linguagens, para que possam ser tomadas como objetos
de reflexão e de debate. A comunicação em linguagem acadêmica é destinada aos pares,
e publicada na forma de artigos, de livros, de apresentação em eventos científicos, no
entanto, não podemos também negligenciar a restituição dos resultados de nossas
pesquisas em linguagem que possa ser compreendida por todos aqueles que
participaram do processo da investigação.

Referências
BEDRAN, Paula Maria. Produção na Universidade. Diário de uma micropolítica. Belo
Horizonte: PUC Minas, 2003.

BRECHT, Bretolt. Vida de Galileu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro


perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
2006.

SARAMAGO, José. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras,
2003
SAWAIA, Bader Burihan. Psicologia Social: Aspectos Epistemológicos e Éticos. In LANE,
Silvia T. Maurer e SAWAIA, Bader Burihan. Novas Veredas da Psicologia Social. São
Paulo: Brasiliense, 1995. (p.45-54).

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