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Disciplina

Teoria da Literatura I
Coordenador da Disciplina

Prof. Marcelo Peloggio

Edição 2014.1
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados desta edição ao Instituto UFC Virtual. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida,
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Créditos desta disciplina

Coordenação

Coordenador UAB
Prof. Mauro Pequeno
Coordenador Adjunto UAB
Prof. Henrique Pequeno
Coordenador do Curso
Profª. Yvanowik Dantas Valério
Coordenador de Tutoria
Profª. Claudete Lima
Coordenador da Disciplina
Prof. Marcelo Peloggio

Conteúdo

Autor da Disciplina
Prof. Prof. Cid Ottoni Bylaardt

Setor TecnologiasDigitais - STD

Coordenador do Setor
Prof. Henrique Sergio Lima Pequeno

Centro de Produção I - (Material Didático)


Gerente: Nídia Maria Barone
Subgerente: Paulo André Lima / José André Loureiro
Transição Didática Formatação Design, Impressão e 3D
Dayse Martins Pereira Camilo Cavalcante André Lima Vieira
Elen Cristina S. Bezerra Cícero Giovany Eduardo Ferreira
Elicélia Lima Gomes Elilia Rocha Fred Lima
Enoe Cristina Amorim Emerson Mendes Oliveira Gleilson dos Santos
Fátima Silva e Souza Francisco Ribeiro Iranilson Pereira
José Adriano de Oliveira Givanildo Pereira Luiz Fernando Soares
Karla Colares Sued de Deus Marllon Lima
Kamille de Oliveira Stephan Capistrano Onofre Paiva

Programação
Andrei Bosco
Damis Iuri Garcia

Publicação
João Ciro Saraiva

Gerentes
Audiovisual: Andréa Pinheiro
Desenvolvimento: Wellington Wagner Sarmento
Suporte: Paulo de Tarso Cavalcante
Sumário
Aula 01: Fundamentos do Texto Literário ............................................................................................. 01
Tópico 01: Subsídios para um conceito de literatura ............................................................................. 01
Tópico 02: O que torna literário um texto? ............................................................................................ 03
Tópico 03: O que dizem os autores-críticos ........................................................................................... 07

Aula 02: Conotação, Recepção, Autoria ................................................................................................. 11


Tópico 01: Denotação e conotação ........................................................................................................ 11
Tópico 02: Produção e recepção da obra literária .................................................................................. 14
Tópico 03: O autor e a intenção ............................................................................................................. 17

Aula 03: Literatura – O Que Diz, O Que Se Compreende, O Que Se Aprecia ................................... 20
Tópico 01: Como compreendemos um texto litarário? .......................................................................... 20
Tópico 02: A literatura, o mundo, a recepção ........................................................................................ 21
Tópico 03: Estilo e juízo de valor .......................................................................................................... 24

Aula 04: Metalinguagem e Intertextualidade ......................................................................................... 27


Tópico 01: Metalinguagem .................................................................................................................... 27
Tópico 02: Intertextualidade .................................................................................................................. 30
Tópico 03: Intertextualidade e originalidade ......................................................................................... 34

Aula 05: Gêneros Literários ..................................................................................................................... 37


Tópico 01: O gênero narrativo ............................................................................................................... 37
Tópico 02: O gênero dramático .............................................................................................................. 45
Tópico 03: O gênero lírico ..................................................................................................................... 49

Aula 06: Processos Essenciais de Linguagem Figurada ........................................................................ 53


Tópico 01: Conotação e denotação ........................................................................................................ 53
Tópico 02: Metáfora e Metonímia ......................................................................................................... 56
Tópico 03: Outras formas de linguagem figurada .................................................................................. 59
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 01: FUNDAMENTOS DO TEXTO LITERÁRIO

TÓPICO 01: SUBSÍDIOS PARA UM CONCEITO DE LITERATURA

As concepções de literatura se alteram conforme a época, o lugar ou o


grupo social. O chamado discurso literário já emprestou sua linguagem aos
deuses, à aristocracia e às elites em geral, e até aos miseráveis e excluídos.
Atualmente, parece predominar uma noção de que a literatura pertence mais
às artes do que às ciências, e essa noção nos concede algumas pistas sobre a
constituição do texto literário.

A explicação semântica do termo “literatura” teve lugar na segunda


metade do século XVIII:

Por um lado, o termo ‘ciência’ especializa-se fortemente, acompanhando o


desenvolvimento da ciência indutiva e experimental, de modo que deixa de ser
possível abranger na ‘literatura os escritos de caráter científico; por outro lado
assiste-se a um largo movimento de valorização de gêneros literários em prosa,
desde o romance até o jornalismo, tornando-se necessária, por conseguinte,
uma designação genérica capaz de abarcar todas as manifestações da arte de
escrever. Essa designação genérica foi literatura.

(AGUIAR E SILVA, 1968, p. 21)

LEITURA COMPLEMENTAR
“Sobre o significado da palavra ‘Literatura’” (BELINSKI, 1841). (Visite
a aula online para realizar download deste arquivo.)

Esse discurso sedutor dos que têm o poder de encantar as palavras,


ainda hoje, funciona como um jogo de signos que desafia nossa inteligência,
ou como um discurso de denúncia ou compromisso, ou como liberação ou
purificação de nossos sentimentos e emoções, ou como veículo de
conhecimentos os mais insuspeitados.

Embora sejam tantas as possibilidades de conceituação e abordagem do


texto literário, vamos tentar levantar aqui alguns elementos que nos
permitam ter uma noção contemporânea do que seja a literatura, lembrando
sempre que se trata de uma atividade artística. Iniciaremos com um esquema
do processo que envolve a produção e a recepção do texto literário em nosso
mundo:

O bosquejo acima permite a seguinte leitura: o autor, com sua cultura,


sua experiência de vida, sua ideologia, escreve uma obra, que será lida por

1
alguém cuja recepção estará também impregnada de uma cultura, uma
experiência e uma visão de mundo. Essa obra abrigará um mundo
descortinado pela imaginação do autor em seus momentos de criação. É
evidente que, para que ocorra alguma interação entre os elementos da tríade
autor-obra-leitor, é necessário que haja entre o emissor e o recebedor um
mínimo de elementos culturais comuns, a começar pelo código utilizado na
escrita, ou seja, o idioma. Se imaginarmos uma situação ideal em que não
haja a menor interseção entre o campo cultural do escritor com o do leitor,
não haverá comunicação literária. Alguma interseção é necessária, como
mostra a área hachurada do diagrama abaixo:

FÓRUM
Neste tópico, discute-se a constituição do texto literário. Observe que
no primeiro diagrama apresentado acima aparece a expressão “mundo
ficcional”. Discuta com os participantes deste fórum o que vem a ser o
universo representado por essa expressão, tente enumerar suas
características principais e confronte suas conclusões com a ideia de
“mundo” que aparece no vértice superior do triângulo apresentado.

FONTES DAS IMAGENS

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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TEORIA DA LITERATURA I
AULA 01: FUNDAMENTOS DO TEXTO LITERÁRIO

TÓPICO 02: O QUE TORNA LITERÁRIO UM TEXTO?

As várias abordagens e concepções que envolvem a determinação do


texto literário podem levar o estudante a uma certa confusão inicial sobre o
que é literário e o que não é, e essa confusão é normal e inevitável. Não
obstante, tentaremos proceder a um levantamento de algumas características
que se podem atualmente atribuir ao texto literário com certa segurança, e
que o distinguem de outros tipos de textos, quais sejam:

VERSÃO TEXTUAL

02 - Instauração de um mundo ficcional ou supra-realidade.

Esse mundo, que já foi discutido no fórum do tópico anterior, é a


criação de um universo próprio, de um mundo em princípio
autônomo. Esse universo, que tem existência no texto literário,
apresenta seres e coisas muito semelhantes ao mundo real, mas às
vezes esses habitantes extrapolam aquilo que em nosso mundo
chamamos de “normal”. O universo ficcional é infinito, ilimitado,
depende apenas da imaginação do criador, o escritor.

03 - Relação não-imediatista entre o leitor e a obra.

Diferentemente do texto não-literário, o discurso da literatura não


estabelece necessariamente entre o autor e o leitor uma relação de
efeito imediato. Um texto científico, jornalístico ou jurídico, por
exemplo, perde sua validade dependendo do tempo decorrido entre a
produção e a recepção. Isso não ocorre com a literatura; um texto de
vários séculos atrás pode suscitar o mesmo ou até maior interesse nos
leitores.

04 - Suspensão das convenções de significado corrente.

A literatura lida com o imprevisível e com o imponderável.


Enquanto a linguagem do dia-a-dia, ou a linguagem técnica, ou
científica, ou jornalística, ou publicitária, ou pedagógica têm que ser
relativamente previsíveis e conduzir a conclusões que satisfaçam e
deem segurança a seus usuários, o discurso literário simula, finge,
engana e seduz, não sendo, portanto, um discurso “confiável”,
considerando nossas necessidades cotidianas, porque tende a afastar-
se da previsibilidade das situações e usos característicos da linguagem
não-literária.

05 - Despreocupação com a sistematização e a transmissão de um


saber, de uma experiência.

Pode-se aprender muito com a literatura, sem dúvida; todavia, o


ensino não é um compromisso do texto literário, e o saber e a
experiência que ele eventualmente possa transmitir não são
inteiramente fidedignos. O aprendizado científico sobre a seca no

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Nordeste, por exemplo, será possibilitado com muito mais eficiência
numa obra de geografia ou de geopolítica do que num romance como
Vidas secas, de Graciliano Ramos.

06 - Irrelevância de provas documentais.

A falta de “confiabilidade científica” do discurso literário advém


exatamente do fato de que ele não tem que provar nada do que
apresenta. Os seres, os fatos e as coisas do mundo ficcional têm uma
existência própria, que independe de comprovação considerando as
verdades metafísicas do mundo em que vivemos.

07 - Inexistência de compromisso com o mundo real.

O compromisso a que nos referimos é o de verificação, de


comprovação dos acontecimentos da supra-realidade tendo como
referência a vida cotidiana. A literatura não tem que estar
necessariamente ligada a um tipo de ideologia ou de julgamento em
relação ao bom ou mau funcionamento do chamado mundo real.

08 - Criação de um mundo com regras próprias, o mundo do


possível, da ficção.

O mundo da literatura, portanto, constrói uma realidade própria,


que já chamamos de mundo ficcional, ou supra-realidade, que em
muitos aspectos é bastante semelhante ao mundo real, mas cujo
funcionamento obedece a regras que são suas, e não pode ser julgado
tendo como fundamento a realidade de nosso mundo.

09 - Diálogo com a realidade circindante e com a tradição


passada.

Embora o mundo criado pela literatura seja considerado


autônomo, ele não pode ser sempre independente do mundo real.
Afinal, ele é construído por seres humanos, e muitos de seus
elementos são recriações do que ocorre na realidade. Pode-se dizer
então que a literatura faz constantes referências ao mundo em que
vivemos, e a nossa tradição histórica, cultural, social etc. Além disso, o
texto literário remete frequentemente a outros textos, também
literários, ou mesmo não-literários, o que constitui importante recurso
de produção do texto ficcional, a intertextualidade, que será estudada
em um tópico à parte.

10 - Inexistência de uma utilidade prática.

Embora haja obras literárias que reivindiquem uma


“interferência” ideológica no mundo das condições, essas intromissões
via de regra não buscam produzir resultados práticos, embora o texto
literário apresente em geral uma interpretação da vida humana.

11 - Predomínio da linguagem conotativa.

Como a literatura não tem um compromisso de fidelidade ao


mundo real, como o texto ficcional não se assemelha a um manual de
instruções, em que as coisas têm que “dar certo”, têm que “funcionar”,

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ele pode dispensar a linguagem denotativa, ou literal, e privilegiar a
conotação, a polissemia, a ambiguidade, a plurissignificação, que serão
abordados na próxima aula.

Apresentamos acima, portanto, alguns traços que distinguem o discurso


literário dos textos não-literários. É necessário que tais traços sejam sempre
questionados na presença do que chamamos texto literário, para
confirmarmos ou não sua adequação a tal ou qual texto. Quando dizemos,
por exemplo, que não faz parte da obrigação da literatura transmitir um
saber, será essa característica presente em qualquer tipo de obra a que
chamamos literária, ou há exceções? Ou seria melhor modalizar a afirmação,
dizendo que “em geral as obras literárias despreocupam-se com a
transmissão de um saber”? Outra questão altamente controvertida é a da
“função” da literatura no seio da sociedade. Até que ponto a literatura é ou
não um artefato destinado a interferir na sociedade, como uma construção
ética, ideológica, política, ou até onde a presença de traços sociais e
ideológicos é apenas um cenário para o exercício da linguagem? Essas
questões deverão ser sempre discutidas e refletidas por quem estuda
literatura, e neste nosso curso veremos que a abordagem literária é uma
escolha do estudioso da literatura. No decorrer do século vinte,
principalmente, surgiram várias tendências de abordagens do texto literário,
como o formalismo, o new criticism, o estruturalismo, a literatura e a
psicanálise, a literatura e a sociedade, a crítica biográfica, a crítica
imanentista, os estudos culturais etc. O estudo da literatura, portanto, não
apresenta respostas fáceis e prontas, é necessário que o estudioso esteja
permanentemente fazendo suas críticas, suas autocríticas e suas
metacríticas. Para tanto, é necessário assumir uma posição diante do fato
literário e desenvolver seus argumentos em favor de sua crença.

OLHANDO DE PERTO
O texto abaixo, de Roland Barthes, coloca em evidência a questão do
saber relacionado à literatura. Leia-o atentamente e depois discuta com
seu grupo as questões propostas.

[...] Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas
as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a
disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão
presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que
a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se
declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é o real, isto é, o
próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente
enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza
nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso.
Por um lado, ele permite designar saberes possíveis — insuspeitos,
irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está
sempre atrasada ou adiantada em relação a esta, semelhante à pedra de
Bolonha, que irradia de noite o que aprovisionou durante o dia, e, por
esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que chega. A ciência é grosseira,
a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos

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importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza não é inteiro nem
derradeiro: a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de
alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas — que ela sabe
muito sobre os homens. O que ela conhece dos homens é o que se poderia
chamar de grande estrago da linguagem, que eles trabalham e que os
trabalha quer ela reproduza a diversidade dos socioletos, quer, a partir
dessa diversidade, cujo dilaceramento ela ressente, imagine e busque
elaborar uma linguagem-limite, que seria seu grau zero. Por que ela
encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, a literatura
engrena o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da
escritura, o saber reflete incessantemente sobre o saber, segundo um
discurso que não é mais epistemológico mas dramático.
(BARTHES, 2002, pp. 18-19)

EXERCITANDO
A respeito do texto acima, tente responder às seguintes questões.

1. Roland Barthes afirma a existência de todos os saberes no texto


literário. Como se comportam esses saberes?

2. Explique a metáfora da “pedra de Bolonha” que o autor utiliza para


relacionar saberes e literatura.

3. Qual é a diferença, no texto, entre “saber alguma coisa” e “saber de


alguma coisa”?

4. Por que, segundo Barthes, o discurso literário é “dramático” e não


“epistemológico”?

FONTES DAS IMAGENS


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Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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TEORIA DA LITERATURA I
AULA 01: FUNDAMENTOS DO TEXTO LITERÁRIO

TÓPICO 03: O QUE DIZEM OS AUTORES-CRÍTICOS

Acreditamos que é possível fundamentar uma teoria da literatura, uma poética,


ou ciência geral da literatura, que estude as estruturas genéricas da obra
literária, as categorias estético-literárias que condicionam a obra e permitem a
sua compreensão, que estabeleça um conjunto de métodos suscetíveis de
assegurar a análise rigorosa do fenômeno literário.

(AGUIAR E SILVA, 1968, p. 56-57)

É possível analisarmos uma obra literária em sua forma abstrata,


buscando determinar seus elementos fundamentais e, através do conjunto da
obra, identificar sua forma e conteúdo. Esses dois elementos existem de
modo interdependente, sendo passível de separação apenas na análise
teórica.

FORMA
Também denominada linguagem, é o elemento que fixa o conteúdo e
permite sua transmissão de um espírito para outro. A forma é abstrata
enquanto exclusivamente mental, mas pode materializar-se quando
expressa (linguagem falada, escrita, mímica). A forma, nos mais variados
aspectos, é o veículo do conteúdo.

CONTEÚDO
É a suprarrealidade concebida pelo artista, [...] é a imagem da
realidade, mas da realidade que o artista conseguiu captar. [...] O conteúdo
é o elemento imaterial da obra literária, pois que existe apenas na
imaginação do artista e na do leitor: as personagens de um romance
interessam-nos, empolgam-nos, e jamais poderemos vê-las em carne e
osso.

A partir da identificação da forma e do conteúdo da obra literária,


podemos chegar à compreensão dos gêneros [1], tipos de composição
literária ligadas à realidade ficcional e intuídos por um maior ou menor grau
de realidade ou irrealidade estética.

E a identificação e análise desses elementos, bem como de sua


correlação, está na base de nossos estudos em Teoria da Literatura. Segundo
Roberto Acízelo de Souza, a literatura sem uma problematização é apenas o
óbvio. Vejamos o que o autor diz sobre isso no primeiro capítulo de seu livro
Teoria da literatura (2007): “SEM UMA TEORIA, A LITERATURA É O
ÓBVIO (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)”.

Uma boa maneira de se familiarizar com as noções de literatura e, por


extensão, de arte é ouvir o que os escritores têm a dizer sobre ela, seja em
forma de poesia, seja em forma de prosa.

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VERSÃO TEXTUAL

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de


suas cores: é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que
aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos.
O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta,
como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o


máximo de matizes com um mínimo de elementos. De água e luz ele
faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. Considerei,
por fim, que assim é o amor, oh minha amada; de tudo que ele suscita
e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos
recebendo a luz do teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz
magnífico.

(BRAGA, 1996, p. 120)

COMENTANDO A CITAÇÃO
O autor do texto acima associa o esplendor do pavão à grandeza da obra
de arte, ampliando-a depois para o tema do amor. O “luxo imperial” do
pavão que exibe suas cores metaforiza a obra de arte, cujo trabalho tem no
arranjo um de seus componentes mais importantes, isto é, a seleção e
combinação de elementos que irão produzir a beleza da obra artística.
Estendendo o mesmo raciocínio à obra de arte literária, constata-se que ela
se faz de uma escolha e arranjo de palavras em que o escritor procura tirar o
máximo efeito de sua utilização da língua, produzindo o que Roland Barthes
chamou no texto do tópico 2 de encenação da linguagem.

Consideremos agora um pequeno poema da poeta Henriqueta Lisboa,


que também fala de literatura, porém de uma maneira mais hermética,
menos óbvia:

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COMENTANDO A POESIA
Que acidente terá sido esse, desagradável ou infeliz, ou
simplesmente fortuito e inesperado? Há aí duas figurações essenciais,
dois breves momentos poéticos determinantes: a quebra do púcaro e o
balbucio do vento entre os galhos das árvores.

O púcaro é um utensílio que desempenha uma função necessária


em nosso dia-a-dia. Esse implemento quebra-se contra uma superfície
dura e lisa. A quebra do púcaro produz sua inutilização como
instrumento útil, assim como a palavra, que só se torna poesia quando
deixa de ter valor de uso. Após a quebra dessa satisfação das
necessidades humanas, o púcaro torna-se um amontoado de “avelórios
feridos”: vidrilhos, ninharias, bagatelas. O acidente transforma o
utensílio em um monte de caquinhos irregulares sem utilidade.

Assim, o púcaro quebrado de Lisboa perde seu valor de uso,


certamente para inaugurar novas possibilidades. Estão estabelecidas
as relações entre as imagens do poema e a linguagem: no momento em
que as palavras da língua perdem sua função utilitária, elas se tornam
“avelórios feridos”, fragmentos que não servem mais para compor a
lógica ditada pela razão.

É notável ainda a semelhança fonética entre “avelório” e a


conhecida palavra “velório”; é impossível ler uma sem associá-la à
outra. A sugestão evidente aí é de perda, de sofrimento. Além dessa
conotação, exerce importante função o adjetivo “feridos”, que insinua
lesão na integridade de um ser.

Tem-se aí então a composição desse universo de privação, de


ausência, de desaparecimento: o acidente mata a integridade da
palavra, desviando-a para outras funções que não as usuais, tornando-
a poesia. Penetrar na poesia é invadir o tempo do desamparo, da
renúncia aos ídolos e à ordem, do desvio da palavra que edulcora e dá
segurança.

Na segunda parte do acidente, o vento entre os galhos das árvores


pronuncia sons sem sentido, imperfeitos, hesitantes, lembrando a fala
do oráculo, do sagrado, identificado aqui à palavra poética. Seu rumor
não edifica, não se liga à ruidosa necessidade das tarefas do mundo, à
impregnação histórica. Nessa palavra, o mundo recua, as metas
cessam, os seres se calam. Fica apenas o balbucio, o significante.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
São apresentados aqui (Visite a aula online para realizar download
deste arquivo.) textos poéticos sobre literatura e arte, do livro Caderno H,
do poeta Mário Quintana. Após cada um deles, faça uma interpretação do
texto, comentando a relação entre forma e conteúdo de cada fragmento. O
seu comentário deve ser enviado para o Portfólio Individual "AULA 01 -
FUNDAMENTOS DO TEXTO LITERÁRIO”, com o nome
"aula01_topico03.doc", e deve ter de sete a dez linhas aproximadamente.

9
REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra:
Livraria Almedina, 1968.

AMORA, Antonio Soares. Teoria da Literatura. 7. ed. São Paulo:


Editora Clássico-Científica, 1967.

BARTHES, Roland. Aula. 10 ed. Trad. Leyla-Perrone Moisés.SP:


Cultrix, 2002.

BELINSKI, Vissarion Grigoryevich. Sobre o significado da palavra


“Literatura”. In: SOUZA, Roberto Acízelo (org.). Uma ideia moderna
de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922).
Chapecó, SC: Argos, 2011.

BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. 13. ed. RJ: Record,1996.

LISBOA, Henriqueta. Flor da morte. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2004.

QUINTANA, Mário. Caderno H. São Paulo: Globo, 2001.

SOUZA, Roberto Acízelo. Teoria da Literatura. 10. ed. São Paulo:


Ática, 2007.

FONTES DAS IMAGENS


1. http://www.edtl.com.pt/index.php?
option=com_mtree&task=viewlink&link_id=106&Itemid=2
2. http://www.adobe.com/go/getflashplayer

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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TEORIA DA LITERATURA I
AULA 02: CONOTAÇÃO, RECEPÇÃO, AUTORIA

TÓPICO 01: DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO

Imagine-se na condição de ter que se dirigir a um lugar que você não


conhece em sua cidade. Você pede uma informação a um transeunte e toma o
ônibus e a direção indicada por ele para chegar aonde você deseja. Você
desce do ônibus e verifica que chegou exatamente aonde pretendia chegar.
Sua sensação é de alívio, pois a informação dada foi precisa, e você obteve o
que queria.

A linguagem que a pessoa utilizou para lhe dar a informação é a


denotativa, em que o significante (a palavra, escrita ou falada, imagem ou
som) propicia a maior aproximação possível entre o significado (a ideia
mental que fazemos quando lemos ou ouvimos um texto) e o referente (o
objeto real sobre o qual fala o discurso). Assim, todos os textos referenciais
se esforçam para que o leitor ou ouvinte tenha a noção mais clara possível,
de maneira mais aproximada, do fato acontecido. Isso ocorre com a
linguagem jornalística, técnico-científica, didática, jurídica etc. Embora elas
nem sempre sejam claras como deveriam, os seus produtores se esforçam
para ser o mais objetivos possível.

A linguagem literária, por outro lado, funciona de forma diferente. Veja,


por exemplo, os seguintes versos de Henriqueta Lisboa:

Esta é a graça dos pássaros:

cantam enquanto esperam.

E nem ao menos sabem o que esperam.

(“Esta é a graça”, in Flor da morte)

COMENTANDO A POESIA

No fragmento acima, o texto aparentemente nos fala de uma


característica dos pássaros, embora possa parecer estranho os
pássaros assumirem traços próprios dos seres humanos. Entretanto, o
sentido do cantar dos pássaros pode perfeitamente ser ampliado para
o “canto” da poesia e do poeta, por exemplo, e nos remeter à ideia do
fazer artístico. O pássaro seria então a representação do artista, e o
canto seria sua obra.

Temos aí uma linguagem propositalmente ambígua, polissêmica. Não


há, da parte da poeta, intenção de deixar as coisas bem claras. A indefinição é
que confere a esse tipo de linguagem uma dimensão de amplitude, que
desafia o leitor a buscar o significado, que acaba sendo produto de alguma
subjetividade do receptor. Essa é a linguagem conotativa.

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PARADA OBRIGATÓRIA
O texto abaixo é um verbete do Dicionário de termos literários, de
Massaud Moisés. Leia-o e compare-o com o texto de nossa aula, para
complementar sua compreensão do assunto. Procure o citado dicionário
na biblioteca de sua universidade, ou de sua cidade, e pesquise também
outros termos relacionados, como denotação, ambiguidade e metáfora.
Tire todas as dúvidas com o seu tutor.

CONOTAÇÃO POR MASSAUD MOISÉS

Com + notação; Latim cum + notatione (m), notação, marca, ação


de marcar conjuntamente.

Equivalente moderno de compreensão (soma de caracteres


abrangidos por um conceito), empregada pela filosofia escolástica, a
ideia de conotação somente se deixa esclarecer quando posta em
confronto com a denotação. Ambas, porém, constituem matéria ainda
não assente, quer na área da Linguística, quer da crítica literária.

De modo geral, a conotação, vocábulo largamente empregado


pelos linguistas e críticos modernos, designa os vários sentidos que um
signo linguístico adquire quando em contato com outros signos dentro
do texto: por contiguidade, o sentido primitivo ou literal (denotativo)
se altera e se amplifica, tornando-se plural ou multívoco. Ao mesmo
tempo, por associação mental, encadeiam-se imagens ou alusões que
remetem para significados fora do texto, sem contar a carga de
subjetividade naturalmente presente no ato de assinalar os múltiplos
sentidos das palavras. Em qualquer caso, a conotação se estabelece
pelo contexto: equivale, na perspectiva linguística de F. Saussure,
(Cours de linguistique general, 1962), ao plano da fala (parole), uma
vez que pressupõe a linguagem afetiva e individual; e na perspectiva
literária, ao plano do estilo.

Literariamente, pode-se distinguir a poesia da prosa tomando-se


por base a função e o alcance da conotação (ou conotações): a poesia é
por natureza conotativa, ao passo que a prosa narrativa típica (não-
poética) promove uma conciliação entre o processo conotativo e o
denotativo. Enquanto num texto poético cada palavra pode assumir
mais de um sentido, num texto prosístico o vocábulo isolado tende
para a denotação, e só adquire matiz conotativo quando se leva em
conta o conjunto da obra onde se inscreve.

Assim, nos dois versos seguintes de Murilo Mendes —


“Demoliram uma mulher / a sons de clarinete” (Poesias, 1959, p. 277)
—, o sentido literal das palavras nos conduziria à sensação de absurdo,
pois cada qual, graças à vizinhança das outras exibe uma variedade
praticamente indeterminada de significações. Por outro lado, uma
referência como a seguinte — “Quando Eugênio terminou de contar a
sua história, o doutor Seixas coçou a barba intonsa e fitou no amigo os

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seus olhos azuis de criança” (Érico Veríssimo, Olhai os lírios do
campo, 12ª. ed. , s.d., p. 190) —, apresenta à primeira vista um único
sentido, mas a totalidade da obra nos revelaria outra(s) camada(s)
semântica(s) por trás de cada pormenor referente ao Dr. Seixas
(“coçou a barba intonsa e fitou no amigo os seus olhos azuis de
criança”). V. AMBIGUIDADE E METÁFORA.

FONTES DAS IMAGENS

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13
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 02: CONOTAÇÃO, RECEPÇÃO, AUTORIA

TÓPICO 02: PRODUÇÃO E RECEPÇÃO DA OBRA LITERÁRIA

VERSÃO TEXTUAL

AUTOR -> OBRA -> LEITOR -> OBRA

Considerando o mundo encenado pelo texto literário, constatamos que


foi um ser humano que o construiu. A esse ser nós denominamos geralmente
escritor, ou autor, ou poeta, ou romancista, ou contista. Entretanto, quando
lemos um conto, ou um poema, ou um romance, escutamos uma voz que nos
fala, que não é necessariamente a locução do autor real. A essa voz, que é
fictícia, chamamos narrador, voz narrativa, locutor, voz poética, sujeito
poético, eu-lírico ou eu-poético. Ainda pode acontecer, às vezes, de termos
um escritor fictício, isto é, um personagem de uma obra, que é um ser de
ficção, atuando dentro da escrita como um escritor.

Do outro lado da obra, temos o recebedor do texto. Ele pode ser o leitor
ou o ouvinte, ou expectador, e pertence ao mundo real. Ele é o ser que entra
em contato com a obra, reflete sobre ela, recria o universo fictício a partir de
sua própria experiência de vida e sua cultura. Esse ser pode apresentar várias
denominações: leitor, recebedor, ouvinte, expectador, destinatário,
alocutário...

Às vezes, essa diversidade de seres que de alguma forma participam do


mundo literário pode levar a alguma confusão quanto a quem é quem, e a
que mundo este ou aquele ser pertence.

Vamos então exemplificar com uma obra que pode provocar uma
atrapalhação no reconhecimento dos seres e seus mundos. A obra em
questão é Beira-Mar, do escritor Pedro Nava. O autor identifica a obra como
memórias; é, portanto, um texto em que Pedro Nava, já mais velho, conta a
história de um jovem personagem chamado Pedro Nava, que passa sua
juventude em Belo Horizonte, nos anos em que cursou a Faculdade de
Medicina.

EXEMPLO
Considerando que a narrativa do autor Pedro Nava NÃO é sua vida,
mas a REPRESENTAÇÃO escrita daquilo que o Nava idoso lembrou e

14
escreveu sobre sua vida de jovem, podemos considerar aqui a existência de
pelo menos três seres que se envolvem com essa escrita.

Fonte [1]
Em primeiro lugar, temos o escritor, o autor Pedro Nava, que teve
uma existência real, histórica, que nasceu em 1902 e morreu em 1984,
vítima de uma profunda depressão que o levou a suicidar-se com uma bala
na cabeça. Esse autor criou um narrador, também chamado Pedro Nava,
QUE PERTENCE AO MUNDO DA FICÇÃO, e que relata a história do livro.
Esse Pedro Nava narrador nos conta os eventos ligados à juventude de um
personagem chamado Pedro Nava, também criado pelo autor Pedro Nava.
Temos aí, portanto, três seres que coincidentemente possuem o mesmo
nome, mas que têm existências próprias e diversas: há o Pedro Nava
autor, o Pedro Nava narrador e o Pedro Nava personagem. O primeiro
pertence ao mundo real, e os outros dois habitam o mundo ficcional.

FÓRUM
No início dos anos sessenta do século XX, surgiu no mercado editorial
brasileiro um livro no mínimo curioso: Quarto de despejo, de Carolina
Maria de Jesus, negra, favelada, rudemente alfabetizada. O livro, na época,
vendeu perto de um milhão de exemplares, um verdadeiro fenômeno
editorial. A narrativa é o diário de uma favelada, também chamada
Carolina Maria de Jesus, que relata momentos difíceis de sua vida
miserável, com dois filhos para criar, sem marido. A linguagem utilizada
por ela foi mantida na publicação do livro, e revela momentos de intensa
poeticidade, embora apresente desvios da norma culta, como se pode
comprovar no trecho abaixo:

1 de julho. Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar


muita gente. (...) Quando passei perto da fabrica vi varios tomates. Ia
pegar quando vi o gerente. Não aproximei porque ele não gosta que
pega. Quando descarregam os caminhões os tomates caem no solo e
quando os caminhões saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim.
Prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar.

Neste exercício, vamos refletir sobre a relação entre a obra e o mundo.


Procure identificar, na situação acima descrita, os seguintes elementos,
apontando alguns traços que os caracterizem:

a autora;
a narradora;
a personagem principal;

15
o mundo real;
o mundo fictício.

FONTES DAS IMAGENS


1. http://www.ufmg.br/boletim/bol1386/PedroNav.JPG

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TEORIA DA LITERATURA I
AULA 02: CONOTAÇÃO, RECEPÇÃO, AUTORIA

TÓPICO 03: O AUTOR E A INTENÇÃO

Como se viu no tópico anterior, o autor é o criador da obra literária. Na


moderna concepção do fato literário, porém, não se atribui ao escritor o
estatuto de senhor da obra, como se fosse um deus onipotente que cria seres
e faz deles o que quer.

A interferência da vida do autor no texto literário hoje é bastante


relativizada. Sua biografia, seu estilo de vida, suas crenças são elementos de
importância secundária na análise de uma obra. A compreensão do texto não
se subordina mais nem à vida do escritor nem a sua intenção, ao seu “querer
dizer”. Pode-se até admitir, como dizia Marcel Proust, importante escritor
francês do final do século XIX e início do XX, que haja uma intenção
existente no eu literário do escritor (um “outro eu”, um eu fictício), e não no
eu físico.

A obra literária, portanto, supera a intenção do autor — o texto


sobrevive sem ela. Mesmo admitindo-se a intenção do “outro eu”, a
significação de um texto nunca se esgota nesse propósito, o sentido do texto
não é determinado necessariamente pelo “querer dizer” de quem escreveu.

O abalo na autoridade do autor conforme a crítica literária atual derruba


um outro mito do passado: o “primado das primeiras recepções”. Como a
obra está cronologicamente mais próxima do autor, consideravam-se as
primeiras leituras como as mais “corretas”, por serem circunvizinhas do
autor e, portanto, de sua intenção ou de seu desejo. Atualmente, não se
considera mais a primazia da primeira recepção sobre as demais. Ao
contrário, as abordagens subsequentes tendem a enriquecer a obra, ou a
diversificar a sua compreensão. Compreender uma obra fora de sua época de
publicação significa compreendê-la diferente, e não pior ou melhor.

Para um melhor entendimento da autonomia do leitor perante a obra de


arte literária, leia o texto “A morte do autor (Visite a aula online para realizar
download deste arquivo.)”, de Roland Barthes.

Porém, há que se entender que a obra literária não paira absoluta sobre
um tempo e um espaço e sua origem é, muitas vezes, ponto de
enriquecimento para a interpretação, apesar de não ser obrigatória.

Alguns autores, como o brasileiro José de Alencar, ao buscar formar


uma identidade nacional na literatura brasileira, traçou um plano literário
bem delineado e suas obras apresentam uma espécie de guia de leitura que
vem a ser motivo de crítica por alguns pensadores contemporâneos. No
entanto, para um maior enriquecimento do trabalho do autor, podemos
entender que a interpretação de suas obras podem ser feitas de duas
maneiras:

17
1.excluindo-se a intencionalidade do autor.

2.considerando o seu projeto de nacionalização da literatura, em um


contexto histórico bem definido.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
A QUESTÃO DA INTENCIONALIDADE
A controvertida questão da intencionalidade do autor na obra
literária é discutida no texto “Intenção e recepção em Iracema, de José
de Alencar”, de Cid Ottoni Bylaardt, publicado na Revista de Literatura
SCRIPTA, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em
junho de 2008.

Nesse ensaio, o autor trabalha a ideia de que o sentido de um texto


supera sempre as intenções de seu autor, porque os intérpretes e
leitores futuros terão uma carga de acumulação histórica adicional em
relação a ele. Isso não significa que os intérpretes têm uma
compreensão melhor, em que pese sua superioridade histórica em
relação ao autor, mas uma compreensão diferente. É sob esse ponto de
vista que o autor investiga as relações entre o texto de Iracema, de José
de Alencar, as intenções de seu autor, e a recepção da obra no decorrer
do tempo e, principalmente, na era contemporânea. Alencar teve para
com seu texto cuidados especiais, tentando não permitir que ele
errasse pelo mundo ao sabor de variadas interpretações.

O que o ensaísta chama “cuidados especiais” são os textos


adicionais que normalmente acompanham o romance. São eles: o
“Prólogo da primeira edição”, o “Argumento histórico”, a “Carta ao Dr.
Jaguaribe”, publicada como posfácio à primeira edição, o “Pós-escrito
à segunda edição” e as 116 notas que acompanham os capítulos num
montante de textos que seguramente equivalem ao tamanho do
próprio romance, quase como se cada palavra da narrativa tivesse um
correspondente metalinguístico a explicar-lhe a existência. O que o
ensaio pretende demonstrar é que, apesar de tantos cuidados e
explicações, o autor não conseguiu evitar que o tempo trouxesse novas
visões e interpretações à obra.

Antes de fazer a atividade, é necessário que você leia o romance


Iracema, de José de Alencar, se ainda não o leu. Ele pode ser
encontrado em qualquer biblioteca, ou na internet, no site da
Biblioteca Nacional, que indicamos por apresentar o texto completo, e
com todas as notas e comentários do autor:

http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/iracema.pdf
[1] (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.)

Após a leitura da obra e do texto de Roland Barthes, “A morte do


autor”, reflita e elabore um texto de aproximadamente 30 linhas,

18
comentando as duas formas de abordagem de Iracema pelo leitor
contemporâneo.

1. O papel da teoria da literatura;


2. A atitude que o autor de Gargântua espera dos leitores de seu livro;
3. Como as circunstâncias de produção podem ser responsáveis pela
recepção da obra em “Pierre Ménard, autor do Quixote”;
4. Como Proust encara a questão de intenção na obra literária;
5. Como se colocam as relações entre texto e contexto na obra;
6. Qual a função do “querer dizer” do autor;
7. A concepção de hermenêutica de Gadamer;
8. A diferença entre “compreender diferente” e “trair” o texto;
9. O conceito de “história efeitual”;
10. Os “cuidados especiais” de José de Alencar com seu texto;
11. O conteúdo do “argumento histórico” de Iracema;
12. A preocupação de José de Alencar com a linguagem;
13. A língua “brasileira” de José de Alencar;
14. Alencar e a questão da verossimilhança;
15. As medidas de proteção ao “filho de minha alma”;
16. O primado da primeira recepção;
17. Mesmo com tantos cuidados, pode haver outras leituras de
Iracema?
18. A irresistível “visão européia” alencariana;
19. As passagens de Iracema que denunciam o eurocentrismo;
20. A concepção de Sílvio Romero sobre os índios e o Indianismo;
21. As relações entre o que o texto diz e o que o autor quis dizer.

Depois, baixe o texto “Intenção e recepção em Iracema", de José


de Alencar, clicando aqui (Visite a aula online para realizar download
deste arquivo.).

REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Iracema. Lenda do Ceará. Fortaleza: Edições
UFC, 1985.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,


2004.

FONTES DAS IMAGENS


1. http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/iracema.pdf

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TEORIA DA LITERATURA I
AULA 03: LITERATURA - O QUE DIZ, O QUE SE COMPREENDE, O QUE SE APRECIA

TÓPICO 01: COMO COMPREENDEMOS UM TEXTO LITERÁRIO?

A compreensão do texto literário é produto de uma interação entre o


leitor e a obra, que leva em consideração todo um acúmulo de experiências
passadas tanto do leitor atual quanto de várias outras leituras que a obra
sofreu. A ideia de compreensão está muito ligada à de apreciação. Vimos que
a compreensão do texto literário não está necessariamente ligada ao querer-
dizer do autor; por outro lado, como o discurso da literatura é rico em
conotações, haverá, por conseguinte, várias formas de compreendê-lo, ou de
apreciá-lo. Segundo T. S. Eliot [1].

Não amamos plenamente um poema se não o compreendemos; e, por outro


lado, é igualmente verdadeiro que não compreendemos plenamente um poema
se não o amamos.

(ELIOT, citado por COMPAGNON, 1999, p. 87)

Para o poeta Eliot, compreensão e amor são atitudes próximas quando


se trata de literatura.

Embora o texto em si seja a fonte privilegiada para a compreensão de


uma obra, outros fatores interferem na leitura. Entre eles, alinham-se as
circunstâncias da produção da obra, que podem ser importantes para sua
compreensão; e as circunstâncias de sua recepção (época, lugar, sociedade
etc.), que também podem determinar em grande parte sua compreensão e,
consequentemente, a paixão que o texto suscita.

É preciso, portanto, levar em conta que compreensão diferente não


significa traição ao texto. Não existe, assim, o verdadeiro sentido de um
texto; sua recepção certamente será influenciada pelo efeito de acumulação
histórica e pelas idiossincrasias do leitor.

FÓRUM
Vamos estender nossa discussão sobre a constituição do texto literário
fazendo uma leitura do conto “Cães, marinheiros”, do escritor português
Herbert Helder. O texto foi publicado no livro Os passos em volta, que
tem edição brasileira (v. bibliografia), mas pode também ser encontrado,
em sua íntegra, no seguinte endereço eletrônico:

http://silencio.weblog.com.pt/arquivo/021857.html [2]

O texto pode ser lido, numa abordagem social, como uma alegoria da
opressão, da falta de liberdade, ou pode ser lido enxergando os eventos
narrados como uma reflexão sobre a escrita. Exercite sua percepção do
texto literário, discutindo com os colegas as possibilidades de
interpretação desse texto. Envie seus comentários sobre a narrativa dos
cães e seu marinheiro para o Fórum e depois confira nossos comentários.

20
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 03: LITERATURA - O QUE DIZ, O QUE SE COMPREENDE, O QUE SE APRECIA

TÓPICO 02: A LITERATURA, O MUNDO, A RECEPÇÃO

A Poética [2], de Aristóteles, escrita no século IV a.C., é o primeiro texto


conhecido de teoria da literatura. Seu autor acreditava que as relações da
literatura com a realidade se processavam pela mimese [do gr. mimèsis,
'imitação'], termo mais geral que concebe essas relações. Segundo o
pensador grego, a literatura devia imitar o mundo real, representando os
homens e suas ações como seres melhores, piores ou iguais aos humanos
reais, dependendo da intenção do texto.

Até a segunda metade do século XIX, a concepção mimética da literatura


Fonte [1] predominou no pensamento ocidental, até que, a partir do século XX,
principalmente, algumas tendências da reflexão sobre a literatura passaram
a apresentar uma visão diferente, e preconizam a autonomia da literatura em
relação à realidade, ao referente, ao mundo.

O referente, ou assunto, portanto, passa, do ponto de vista dessas


tendências, a um segundo plano, ensejando novas relações do texto com a
realidade, e o surgimento de novas primazias, como a da forma sobre o
fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da
significação sobre a representação.

A teoria da literatura utiliza uma série de termos ligados à relação entre


o discurso literário e o mundo. O mito da referência, da mimese, entretanto,
ao ser problematizado, principalmente pelas teorias que defendem a
absolutização do discurso literário, perde-se na cadeia sem origem nem fim
das representações.

UMA SÉRIE DE TERMOS LIGADOS À RELAÇÃO ENTRE O DISCURSO LITERÁRIO E


O MUNDO.

“Imitação”, “representação”, “verossimilhança”, “ficção”, “ilusão”,


“mentira”, “realismo”, “referente” ou “referência”, “descrição”. Alguns
desses termos já foram usados várias vezes aqui neste estudo, e
reaparecerão durante todo o nosso curso.

A RELAÇÃO DA LITERATURA COM O MUNDO A PARTIR DE ANTOINE COMPAGNON

O crítico e teórico francês Antoine Compagnon, em seu livro O


demônio da teoria, assim se posiciona sobre a relação da literatura
com o mundo:

Assim, na ficção realizam-se os mesmos atos de linguagem que no mundo


real: perguntas e promessas são feitas, ordens são dadas. Mas são atos
fictícios, concebidos e combinados pelo autor para compor um único ato
de linguagem real: o poema. A literatura explora as propriedades
referenciais da linguagem; seus atos de linguagem são fictícios, mas,
uma vez que entramos na literatura, que nos instalamos nela, o

21
funcionamento dos atos de linguagem fictícios é exatamente o mesmo que
o dos atos de linguagem reais, fora da literatura.

(COMPAGNON, 1999, p. 135)

O mundo ficcional, portanto, passa a ser a referência do leitor quando


este se instala nele, suspendendo sua incredulidade e passando a
acompanhar a ação supra-real:

Os textos de ficção utilizam, pois, os mesmos mecanismos referenciais da


linguagem não-ficcional para referir-se a mundos ficcionais
considerados como mundos possíveis. Os leitores são colocados dentro do
mundo da ficção e, enquanto dura o jogo, consideram esse mundo
verdadeiro, até o momento em que o herói começa a desenhar círculos
quadrados, o que rompe o contrato de leitura, a famosa “suspensão
voluntária da incredulidade”.

(COMPAGNON, 1999, p. 137)

Fonte [3]
A expressão “suspensão voluntária de incredulidade” (willing
suspension of disbelief) foi cunhada pelo poeta inglês Samuel Taylor
Coleridge, no início do século XIX, para se referir à relação que se estabelece
entre o texto e sua recepção. Há, portanto, uma espécie de pacto entre a obra
e o leitor, que garante a credulidade deste, por mais estranho que seja o
mundo fictício, que normalmente estabelece uma relação de possibilidade
com o universo real, a menos que o texto literário subverta o contrato.

Considerando a recepção da obra, a literatura vem a ser aquilo que


acontece quando o leitor lê, isto é, os recebedores é que determinam a
recepção final do texto. Assim, pode-se considerar que os leitores recriam os
textos que lêem. Os textos terminam por ser a leitura que os leitores fazem
deles. A experiência da leitura é dual, ambígua, dividida, entre compreensão
e amor, entre liberdade e imposição, entre a atenção ao outro e a
preocupação consigo mesmo. Normalmente, o conjunto de recepções das
obras literárias formam as chamadas comunidades interpretativas, que
congregam experiências compartilhadas, tanto literárias como extra-
literárias (convenções, um código, uma ideologia etc.). No dizer de Antoine
Compagnon,

As significações não são propriedades nem de textos fixos e estáveis,


nem de leitores livres e independentes, mas de comunidades interpretativas,

22
responsáveis ao mesmo tempo pelas atividades dos leitores e dos textos que
essas atividades produzem. (COMPAGNON, 1999, p. 162)

CHAT
Após a leitura do texto da aula, do romance Iracema e revendo as
aulas anteriores, reflita e discuta com seus colegas e com o tutor de sua
turma, em Chat a ser marcado por ele, as seguintes questões, que vão
servir de base para seus comentários e suas perguntas, bem como de seus
colegas, durante a conversa:

1. Qual é a diferença entre compreender e apreciar um texto literário?

2. Além do texto em si, que outras circunstâncias podem influenciar


na compreensão de um texto literário?

3. No caso de um mesmo texto proporcionar diferentes interpretações


de diferentes receptores, poderemos considerar esse traço como uma
virtude ou um defeito do texto literário?

4. É possível atingir o verdadeiro sentido de um texto literário?

5. Qual é a concepção aristotélica de literatura e representação do


mundo?

6. Que relação se pode estabelecer entre a obra e a recepção?

FONTES DAS IMAGENS


1. http://www.livrariascuritiba.com.br/Imagens%5CLivros%5CNormal%
5CLV292418_N.jpg
2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Po%C3%A9tica_(Arist%C3%B3teles)
3. http://emporiodosucesso.com.br/wp-
content/uploads/2007/07/primeiro-passo.gif

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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23
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 03: LITERATURA - O QUE DIZ, O QUE SE COMPREENDE, O QUE SE APRECIA

TÓPICO 03: ESTILO E JUÍZO DE VALOR

O discurso literário é marcado por seu estilo. Mas o que é o estilo? Essa
palavra assume diversas conotações no decorrer da história da literatura:
pode ser a individualidade de um artista, a singularidade de uma obra, uma
escola literária, um gênero.

Desde Aristóteles (384 a 322 a.C.), a noção de estilo assume vários


aspectos, conforme as crenças de uma época em determinada sociedade:

ASPECTOS DO ESTILO LITERÁRIO


1 - O ESTILO É UMA NORMA.
Em certas épocas, como a clássica, considerava-se o “bom estilo” como
um modelo a ser imitado, um cânone, isto é, uma obra consagrada por sua
excelência. São autores dignos de imitação: Anacreonte, Sófocles, Dante
Alighieri, Shakespeare, Camões etc.

2 - O ESTILO É UM ORNAMENTO
Variação contra um fundo comum, efeito ou “toque especial” conferido
a uma determinada obra por um certo autor (a suspeita que plana sobre o
estilo: bajulação, hipocrisia, mentira, imperfeição moral).

3 - O ESTILO É UM DESVIO
Em relação ao uso corrente da língua (“há várias maneiras de dizer a
mesma coisa”). Essa concepção de estilo é que torna inconfundível, por
exemplo, a escrita de Machado de Assis ou de Guimarães Rosa, a escrita
que carrega a marca do gênio.

4 - O ESTILO É UM GÊNERO OU UM TIPO


Nesse caso, o estilo é ditado pela conveniência do discurso segundo a
necessidade da situação. Na retórica clássica, essas modalidades de
discurso eram as seguintes: stilus humilis (simples); stilus mediocris
(moderado); stilus gravis (elevado ou sublime). Conforme os objetivos do
locutor, os discursos tinham como finalidade probere (provar), delectare
(encantar) ou flectere (comover). Os estilos literários eram divididos desde
a Grécia clássica em épico (relato de uma história), lírico (expressão da
subjetividade e das emoções do locutor) e dramático (representação de um
história). Essas três últimas modalidades serão estudadas num capítulo à
parte, pela importância que assumem na teoria da literatura até os dias de
hoje.

5 - O ESTILO É UM SINTOMA, UMA ASSINATURA


Nesse caso, o estilo é considerado como a visão singular, a marca do
sujeito no discurso (a partir do século XVII, com a consolidação dos valores
burgueses), a determinação de um cânone, do valor de mercado, a
avaliação mensurável (a partir de fins do século XVIII).

24
6 - O ESTILO É UMA CULTURA
A alma de uma nação, de uma raça, a unidade da língua e as
manifestações simbólicas de um grupo ensejam o aparecimento de um
modelo global, um motivo dominante.

Ainda segundo Antoine Compagnon,

O estilo, pois, está longe de ser um conceito puro; é uma noção complexa, rica,
ambígua, múltipla. Em vez de ser despojada de suas acepções anteriores à
medida que adquiria outras, a palavra acumulou-as e hoje pode comportá-las
todas: norma, ornamento, desvio, tipo, sintoma, cultura, é tudo isso que
queremos dizer, separadamente ou simultaneamente, quando falamos de um
estilo.

(COMPAGNON, 1999, p. 173)

A linguística condena a noção tradicional de estilo, baseada no


dualismo, na noção de que determinada modalidade linguística é “boa” ou
“ruim”. De forma semelhante, a literatura contemporânea não mais
considera o julgamento de uma obra literária em termos de modelos ou de
certas formas mais ou menos consagradas de “bom gosto”.

Dizer de forma diferente uma coisa é dizer a mesma coisa? O estilo


implica uma escolha entre diferentes maneiras de dizer a mesma coisa
(tornando-as diferentes). A sinonímia, por exemplo, que é um rico recurso
das línguas que admite várias maneiras diferentes de se dizer coisas
semelhantes, pressupõe a referência (uma coisa a ser dita), e a intenção
(uma escolha entre diferentes maneiras de dizer). Uma revisão do conceito
de sinonímia pode salvar o estilo:

Em outros termos, para salvar o estilo, não se é obrigado a crer na


sinonímia exata e absoluta, mas somente admitir que há maneiras muito
diferentes de dizer coisas muito semelhantes e, inversamente, maneiras
muito semelhantes de dizer coisas muito diversas.

Excetuando-se sua concepção como norma, prescrição ou cânone, o


estilo continua vivo em três aspectos principais:

a) como variação formal de um referente mais ou menos estável;

b) como um conjunto de características de uma obra que permite a identificação


do autor;

c) como escolha entre várias escrituras.

A discussão acerca do estilo nos leva a uma outra questão: as avaliações


literárias podem ter um fundamento objetivo ou mesmo sensato? Em toda a
trajetória da arte e da literatura na chamada civilização ocidental, deparamo-
nos com conceitos ligados ao valor, tais como: cânone, tradição, clássicos,

25
grandes escritores, panteão, obra-prima, autoridade, originalidade, revisão,
reabilitação.

O cânone, por exemplo, é o patrimônio de uma literatura, que a


memória coletiva consolidou como uma classificação relativamente estável.

O valor literário, entretanto, é relativo, instável: as obras entram e saem


do cânone ao sabor das variações do gosto, cujo movimento não se faz
racionalmente. Conclui-se, portanto, que não há padrões definidos de
excelência para uma obra literária.

LEITURA COMPLEMENTAR
O texto, de Antoine Compagnon, coloca em evidência a questão do
valor relacionado à literatura. Clique aqui. (Visite a aula online para
realizar download deste arquivo.)

FÓRUM
Após ler atentamente o texto de Antoine Compagnon, discuta com seu
grupo as questões que seguem :

1. Por que não é possível racionalizar as hierarquias estéticas?

2. A expressão do latim Individuum est ineffabile significa “O


indivisível é inefável”. O que tem essa expressão a ver com a justificativa
racional do gosto?

3. Comente a seguinte afirmação: “A diversidade desordenada dos


valores não é uma consequência necessária e inevitável do relativismo do
julgamento”.

REFERÊNCIAS
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Edições Século XXI, 2000.

FONTES DAS IMAGENS

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26
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 04: METALINGUAGEM E INTERTEXTUALIDADE

TÓPICO 01: METALINGUAGEM

Metalinguagem é a linguagem utilizada para falar sobre outra


linguagem. Ela compreende todo discurso acerca de uma língua. Na
literatura, a metalinguagem é praticada por um crítico que investiga as
relações e estruturas presentes na obra literária, ou por um autor que explica
seu próprio fazer literário ou de outrem.

Temos, assim, basicamente dois tipos de metalinguagem: a


metalinguagem linguística (definições dos dicionários, regras gramaticais,
explicações de textos etc) e a metalinguagem literária, da qual nos
ocuparemos mais detidamente aqui. Essa última ainda pode ser subdividida
em metalinguagem literária ensaística (artigos e ensaios que falam sobre a
literatura e sobre obras literárias) e ficcional (obras literárias que falam
sobre a linguagem literária). Temos então a poesia que fala da poesia, ou a
narrativa sobre a narrativa, por exemplo. São termos relacionados:
metapoema, metanarrativa, metapoesia, metarromance.

OUTRA DEFINIÇÃO DE METALINGUAGEM

O exemplo abaixo consiste em um texto retirado do Dicionário


Houaiss, em que o verbete METALINGUAGEM é definido, sendo
portanto um texto metalinguístico, uma metalinguagem linguística.

METALINGUAGEM s.f. (sXX cf. AGC) LING linguagem (natural


ou formalizada) que serve para descrever ou falar sobre uma outra
linguagem, natural ou artificial [As línguas naturais podem ser us.
como sua própria metalinguagem.] <a m. gramatical e a m.
lexicográfica> ETIM met(a)- + linguagem, por infl. do fr.
Métalangage (1963) ‘id.’, voc. Us. por Roman Jakobson; no fr., o voc.
deve-se prov. à influência do pol. Metajezyk (1931) ‘id.’, voc.
Empregado por Tarski; o t. foi emprestado ao al. metasprache (1935) e
ao ing. Metalanguage (1936) ‘id.’ SIN/VAR metalíngua.

O ensaio que você leu na aula 2, chamado “Intenção e recepção em


Iracema, de José de Alencar”, é um exemplo de metalinguagem literária
27
ensaística. No caso, temos um discurso, produto de uma pesquisa e de uma
reflexão, que disserta sobre um outro discurso, o discurso literário de José de
Alencar.

A seguir, apresentamos dois poemas que falam sobre a poesia,


constituindo exemplos de metalinguagem literária ficcional.

VERSÃO TEXTUAL

02 - Desencanto

Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto...


Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente... Tristeza esparsa...


Remorso vão... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota,
do coração.

E nestes versos de angústia rouca Assim dos lábios a vida corre,


Deixando um acre sabor na boca.

─ Eu faço versos como quem morre.

(BANDEIRA, 1993, p. 43)

03 -

O texto ao lado apresenta uma concepção de poesia. Para o eu-


lírico, seus versos são altamente subjetivos, contêm alta dose de
emoção e são fruto do sofrimento do poeta.

Vejamos agora um outro texto que fala sobre o fazer poético, do


poeta português contemporâneo Herberto Helder.

04 - O poema

Um poema cresce inseguramente na confusão da carne. Sobe


ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou
sombra de sangue nos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de


uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos
genuínos e inalteráveis do nosso amor, rios, a grande paz exterior das
coisas, folhas dormindo o silêncio

— a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

05 -

E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade


as casas deitadas nas noites e as luzes e as trevas em volta da mesa e a
força sustida das coisas e a redonda e livre harmonia do mundo.

— Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

28
(HELDER, 2004, p.28)

No poema acima, Herberto Helder estabelece uma relação entre o


poema e o mundo. Ele nasce da carne, sua origem é humana, mas à
medida que se forma separa-se do mundo, com suas gêneses, suas
violências, seus amores e elementos naturais. O poema, em sua
trajetória, abarca o mundo, supera-o, torna-se infenso a seu poder,
diante do olhar perplexo de seu criador, que “ignora a espinha do
mistério”. O poema é imaterial e intemporal.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Você tem abaixo atividades relacionadas ao assunto metalinguagem.
Você deverá fazer as quatro, e enviar suas respostas para o Portfólio do
Ambiente Solar.

PARA VISUALIZAR A ATIVIDADE, CLIQUE AQUI (VISITE A AULA ONLINE PARA


REALIZAR DOWNLOAD DESTE ARQUIVO.)

1. Leia este poema abaixo, do poeta sul-mato-grossense Manoel


de Barros:

De primeiro as coisas só davam aspecto

Não davam ideias.

A língua era incorporante.

Mulheres não tinham caminho de criança sair

Era só concha.*

Depois é que fizeram o vaso da mulher com uma

abertura de cinco centímetros mais ou menos.

(E conforme o uso aumentava.)

Ao vaso da mulher passou-se mais tarde a chamar

com lítera elegância de urna consolata.

Esse nome não tinha nenhuma ciência brivante

Só que se pôs a provocar incêndio a dois.

Vindo ao vulgar mais tarde àquele vaso se deu o

nome de cona.

Que, afinal de contas, não passava de concha mesmo.

*
Era só concha: está nas lendas em Nheengatu e Português, na
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, v. 154
(BARROS, 1998, p. 85)

FONTES DAS IMAGENS


29
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 04: METALINGUAGEM E INTERTEXTUALIDADE

TÓPICO 02: INTERTEXTUALIDADE

VERSÃO TEXTUAL

A intertextualidade consiste na apropriação de um texto por


outro. Essa apropriação se dá por meio da citação, da epígrafe, da
alusão ou referência, da imitação (servil ou não) de um estilo, etc.

O processo intertextual está na percepção do leitor de relações entre um


texto e outros que o precederam, isto é, o reconhecimento num texto de
palavras, expressões, frases, versos, parágrafos, às vezes páginas inteiras de
outros textos. Esses “outros textos” podem ser outras obras de ficção ou não,
mitos, provérbios, escritos publicitários, orações, letras de canções
populares, histórias da tradição oral etc.

Atualmente, a literatura é vista muitas vezes como um mosaico de


citações, tal a intensidade com que os textos dialogam entre si. Assim, mais
do que estabelecer uma relação entre as palavras e as coisas, a escrita
estabelece muitas vezes relações entre um texto e outro texto, entre uma
palavra e outra palavra, entre um signo e outro signo. Nessa concepção, toda
escrita é intertextual, principalmente se considerarmos como
intertextualidade a própria reutilização de cada signo. A intertextualidade
conduz, então, à noção de dialogismo, às relações que todo enunciado
mantém com outros enunciados.

Há, evidentemente, determinados textos que nos mostram com mais


clareza a presença de outros discursos; conforme sua intenção, esses textos
podem ser chamados de paráfrase ou de paródia.

VERSÃO TEXTUAL

02 - DEFINIÇÂO

1. Paráfrase: A paráfrase consiste no diálogo com outros textos


conservando-lhes basicamente o sentido do escrito primitivo, como
uma homenagem ao texto original, ou com intenção didática.

1. Exemplo:

“Passando-me a mão pelos cabelos, falou o poeta irônico:

‘Mundo mundo vasto mundo


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.’

Com os olhos postos no céu, braços erguidos, o poeta místico


indagava:

‘─ Senhor, são os remos ou são as ondas o que dirige o meu barco?


─ Eu tenho as mãos cansadas
o barco voa dentro da noite.’
30
E, saltitando, cantarolava o poeta sem nome:

“Pirolito que bate, bate,


Pirolito que já bateu,
Quem gosta de mim é ela
Quem gosta dela sou eu...”

03 -

Depois, braços dados, volteando em redor de mim e


acompanhados pelo chefe de trem, que soprava um grande trombone,
cantavam a una voce:

‘Mundo mundo vasto mundo,


mais vasto é meu coração’.”

(ANJOS, 2000, p. 226)

Nesse exemplo, retirado do romance O amanuense Belmiro, de


Cyro dos Anjos, o narrador conta um sonho que teve, em que fazia
uma viagem de trem e três passageiros se apresentaram a ele como
poetas, recitando os trechos reproduzidos. No texto do amanuense, os
poemas, respectivamente de Carlos Drummond de Andrade, de Emílio
Moura, da cultura popular e novamente de Drummond, trazem para o
sonho do personagem o clima original das obras citadas, ou seja, a
ironia, o misticismo, o divertimento infantil. A mistura dos estados de
espírito dos textos compõe a atmosfera confusa e instável do sonho.

04 -

2. Paródia

A paródia é um recurso intertextual que produz uma


transformação, ou uma deformação das ideias do texto original, com a
intenção de ridicularizar, contestar, desafiar, ou simplesmente inverter
o sentido do texto parodiado.

TEXTO ORIGINAL:

CANÇÃO DO EXÍLIO

“Minha terra tem palmeiras


Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,


Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

31
05 -

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite
- Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras
Onde canta o Sabiá.”
(DIAS, 1998, p.15)

TEXTO PARODÍSTICO

CANÇÃO DO EXÍLIO

Minha terra tem madeiras da Califórnia


Onde canta gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
São pretos que vivem em torres de ametista,
Os sargentos do exército são monistas, cubistas,
Os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com oradores e pernilongos.
Os sururus em minha família têm por testemunha a Gioconda.

06 -

Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade


E ouvir um sabiá com certidão de idade!
(MENDES, 1988, p.21)

A “Canção do exílio” de Gonçalves Dias foi escrita em 1843,


quando o escritor se encontrava em Coimbra, Portugal. Aquele era um
momento de afirmação da nacionalidade brasileira, e o patriotismo
ufanista era uma temática constante; o poema, portanto, reflete essa
supervalorização da pátria por parte do poeta. A grandeza do Brasil é
aqui reafirmada pela utilização de signos de amor à pátria: palmeiras,
sabiá, estrelas, flores.

A referência ao poema de Gonçalves Dias é óbvia no texto de


Murilo Mendes, a começar pelo título homônimo. Aqui, o lugar
designado por minha terra é um mosaico de elementos locais

32
impregnados de cultura européia e norte-americana, a começar pelas
macieiras e pelos gaturamos.

07 -

À estabilidade dos símbolos pátrios citados por Gonçalves Dias,


opõem-se elementos diversificados que apontam para um identidade
cultural brasileira ainda bastante indefinida.

A diversidade étnica e cultural varia dos poetas pretos aos


filósofos polacos; militares são influenciados por teorias cientificistas
do século XIX - monismo - e por propostas estéticas futuristas -
cubismo. Os oradores constituem uma praga comparável à dos
pernilongos, e as brigas de família são emolduradas por obras de arte,
como a Gioconda. Ainda assim, o estrangeiro sufoca o poeta, que se
sente exilado em sua própria terra, e sonha em usufruir de uma pátria
verdadeira, com flora e fauna autênticas.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
1. Releia a canônica “Canção do exílio” de Gonçalves Dias. Clique aqui
(Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) para baixar o
poema de José Paulo Paes, que estabelece um diálogo intertextual com o
texto do poeta romântico. Redija um texto de aproximadamente dez
linhas, comentando como se dá essa intertextualidade, e se ela tem caráter
parodístico ou parafrásico, e por quê.

2. Com base nos poemas transcritos que você acabou de baixar, redija
um texto de aproximadamente dez linhas comentando a relação que se
estabelece entre um e outro, considerando a intertextualidade e poste no
Portfólio do nosso ambiente Solar.

FONTES DAS IMAGENS


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2. http://www.adobe.com/go/getflashplayer

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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33
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 04: METALINGUAGEM E INTERTEXTUALIDADE

TÓPICO 03: INTERTEXTUALIDADE E ORIGINALIDADE

Chamaremos intertextualidade esta inter-ação textual que se produz no interior


de um único texto. Para o sujeito cognoscente, a intertextualidade é uma noção
que será o indício do modo como um texto lê a história e nela se insere. O modo
concreto de realização da intertextualidade num texto preciso dará a
característica maior (‘social’, ‘estética’) de uma estrutura textual.

(AGUIAR E SILVA, 1968, p. 620).

FORMAS DE APRESENTAÇÃO DA INTERTEXTUALIDADE

Quanto à forma como a intertextualidade aparece em um texto,ela pode


se chamar...

CITAÇÃO
Citar um texto é transcrevê-lo tal como ele aparece em seu original.
Esse recurso é muito comum em trabalhos científicos, por exemplo, em
que outros autores concorrem para conferir autoridade a um determinado
estudo.

EPÍGRAFE
A epígrafe é um tipo de citação de outro autor que antecede um
poema, um conto, um capítulo de um livro, um romance etc. O texto que
aparece na epígrafe em geral guarda alguma relação com o texto que se vai
escrever.

ALUSÃO
Aludir é fazer referência a um texto, ao seu autor, a algum personagem
de outra obra, ou a algum acontecimento marcante que aparece em algum
livro.

BRICOLAGEM
A bricolagem é uma montagem feita de vários textos para produzir
outro.

PASTICHE
Fazer um pastiche é imitar o estilo de outro autor. Num sentido mais
antigo, o pastiche era considerado uma imitação de baixa qualidade,
subalterna, que um escritor “menor” fazia de um texto de um escritor
“maior”. Numa concepção contemporânea, a ideia de pastiche não envolve
juízo de valor.

É importante lembrar que as formas de intertextualidade comentadas


acima não devem ser confundidas com paráfrase e paródia, que
pertencem a outra categoria. Assim, podemos ter uma citação parafrásica
ou parodística, ou uma alusão idem, e assim por diante.

34
A QUESTÃO DA ORIGINALIDADE

O recurso à intertextualidade remete a uma questão polêmica na arte e


na literatura: a questão da cópia, do plágio, que contemporaneamente é
bastante relativizada. Um caso curioso de acusação de plágio é o que
aconteceu com o Macunaíma, de Mário de Andrade.

Em 20 de setembro de 1931, Mário de Andrade publicou no jornal


Diário Nacional uma carta pública dirigida ao antropólogo Raimundo de
Morais. Este, agindo com malícia dissimulada em ingenuidade defensora,
comenta, num verbete de seu Dicionário de Cousas da Amazônia, que
pessoas “maldizentes” insistiam em que o livro Macunaíma era plagiado da
obra do naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, Von Roraima zum
Orinoco. O dicionarista acata o boato, mas diz que duvida de sua veracidade,
pois acredita que o romancista paulista “possui talento e imaginação que
dispensam inspirações estranhas”.

Raimundo de Morais esperava, naturalmente, que Mário se defendesse,


mas o pai adotivo de Macunaíma surpreendeu os defensores da originalidade
intelectual declarando solenemente sua condição de plagiador (1999, p. 165):

Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só
copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mas ainda, na Carta pras
Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas
portugueses coloniais, e devastei a tão preciosa quão solene língua dos
colaboradores da Revista de Língua Portuguesa.

Neste mea culpa, Mário investe descaradamente sobre a noção de


propriedade textual, de autoria e de originalidade até então considerados,
pelos guardiães do texto sagrado, do texto peça de museu, elementos
fundamentais do processo de criação. Em sua exposição, o romancista de
Macunaíma revela a ignorância dos eruditos “maledizentes”, entre os quais
se inclui o próprio Raimundo de Morais, que não perceberam que o plágio
era de toda uma cultura, e não apenas de um livro, comparando-se aos
“rapsodos de todos os tempos”, que “transportam integral e primariamente
tudo o que escutam ou lêem para seus poemas” (1999, p. 164).

Mário, em Macunaíma, copia o Brasil, mostrando sua cara e satirizando


-o, mas não abre mão de sua autoria: “Meu nome está na capa de Macunaíma
e ninguém o poderá tirar”. Do livro do alemão, Macunaíma se libertou e
ampliou suas fronteiras inicialmente nortistas, agregando a si e a sua ação
“modismos, locuções, tradições ainda não registradas em livro, fórmulas
sintáticas, processos de pontuação oral, etc. de falas de índio, ou já
brasileiras, temidas e refugadas pelos geniais escritores brasileiros da
formosíssima língua portuguesa” (1999, p. 165).

Fica aí declarada a condição parodística da escrita, a escrita de segunda


mão, a apropriação dos enunciados, tantos e tão diversos que compõem um
patchwork linguístico proposital.

35
EXERCITANDO
Clique aqui (Visite a aula online para realizar download deste
arquivo.).

REFERÊNCIAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra:
Livraria Almedina, 1968.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo (inclui


Alguma poesia e Brejo das almas). Rio de Janeiro: Record, 2001

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. Madrid: Scipione Cultural, 1997.

ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Globo. Secretaria do


Estado da Cultura, 1990.

ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. Belo Horizonte: Livraria


Garnier, 2000.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira,1993.

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Nova


fronteira, 1984.

BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. 6 ed. Rio de Janeiro:


Record, 1998.

DIAS, Antônio Gonçalves. Primeiros cantos. Belo Horizonte: Itatiaia,


1998.

HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim,


2004.

LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. São Paulo: Brasiliense,


1995.

MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho. 21 ed. Rio de Janeiro:


Record, 1998.

MENDES, Murilo. Poemas e Bumba-meu-poeta. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1988.

PAES, José Paulo. Melhores poemas. São Paulo: Global, 2000.

PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993.

FONTES DAS IMAGENS

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

36
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 05: GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 01: O GÊNERO NARRATIVO

A divisão dos textos literários nos três gêneros hoje conhecidos foi
proposta na Renascença a partir das considerações do filósofo grego
Aristóteles, que viveu no século IV a. C. Os textos foram então divididos em
três grandes gêneros: épico, dramático e lírico. Em sua Poética, Aristóteles
descreveu os gêneros épico e dramático, mas não chegou a detalhar o gênero
lírico. Supõe-se que ele o tenha feito em outra obra, que se perdeu.

GÊNERO ÉPICO
ou narrativo, é o relato da história de um povo, representado por um
herói que vivencia um espírito de coletividade com seu povo. Tinha caráter
didático. Evoluiu da conceituação clássica para a contemporânea como
“narrativa”.

GÊNERO DRAMÁTICO
é a representação, a encenação de uma história de um herói nobre,
ainda ligado à coletividade, mas em uma luta individual. Atualmente
caracteriza os textos teatrais.

GÊNERO LÍRICO
Considerado pelos gregos como uma modalidade menor, por ser mais
condizente com o temperamento feminino, é a expressão da subjetividade,
das emoções.

Essa tripartição caracterizava-se pela pureza: os elementos definidores


de cada gênero deviam ser preservados de forma integral pelos bons autores.
A manutenção dessa pureza era uma das condições de excelência dos
escritores da época. Com a modernidade (século XVIII), inicia-se a violação
dos gêneros; atualmente, eles são questionados, transgredidos, mas não
estão mortos. Mesmo com a violação generalizada de hoje, percebe-se que a
noção de gêneros continua pertinente, ainda se consegue perceber uma
atitude predominante nos textos, ou seja, uma narrativa continua sendo uma
narrativa, um texto lírico apresenta características inconfundíveis, e a atitude
dramática predomina com evidência em determinadas obras. Há, entretanto,
obras quase inclassificáveis pela teoria clássica dos gêneros, pelo grau de
hibridismo de atitudes que apresentam, como o Romanceiro da
inconfidência, de Cecília Meireles, o “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias,
Eles eram muitos cavalos, de Luís Rufatto, Não entres tão depressa nesta
noite escura, de António Lobo Antunes, O livro das comunidades, de Maria
Gabriela Llansol e muitas outras.

O GÊNERO ÉPICO OU NARRATIVO

Podem-se identificar os seguintes elementos como característicos


da narrativa: o narrador, a ação, os personagens, o tempo e o espaço.
Tentemos perceber esses elementos nos textos abaixo.

O socorro

37
Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro -
era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu
que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o
olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou.
Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de
gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo
da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, veio o silêncio das horas
tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um
som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e
coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá
vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os
passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima,
perguntou o que havia: “O que é que há?”

O coveiro então gritou, desesperado: “Tire-me daqui, por favor.


Estou com um frio terrível!”

- “Mas, coitado!” - condoeu-se o bêbado - “Tem toda a razão de


estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre
mortinho!” E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo
cuidadosamente.

Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para


quem se apela
MILLÔR FERNANDES

O texto acima, de Millôr Fernandes, pode ser encontrado em um


dos seguintes sites:

http://www.lainsignia.org/2005/agosto/cul_004.htm [1]

http://citador.weblog.com.pt/arquivo/109176.html [2]

Comentário sobre o texto:

Percebe-se no texto de Millôr Fernandes a voz de alguém que nos


conta uma história. Esse alguém, que não pode ser identificado, é um
narrador de terceira pessoa. A impressão que se tem é que o ser que
narra presenciou os fatos relatados. Os fatos, por sua vez, constituem a
ação, ou o enredo, e apresentam uma progressão bastante lógica e
linear, o que favorece a surpresa humorística apresentada no desfecho.
Os personagens são seres simples, bem definidos: o coveiro e o
bêbado. O coveiro cava, enquanto o bêbado pratica atos típicos de
estados alterados de consciência. O tempo da narrativa é cronológico,
e pode ser estimado em algumas horas. Finalmente, o espaço do
cemitério também é bem determinado e torna-se importante fator de
suspense que conduzirá ao contraste com o humor do final.

Vejamos agora outro texto, em que esses elementos não aparecem


assim com tanta clareza:

De como não fui ministro d’Estado

..................

38
..................

..................

..................

..................
(ASSIS, 1961, p. 376)

O texto acima é um capítulo do romance Memórias póstumas de


Brás Cubas, de Machado de Assis. Graficamente, ele apresenta um
título e vários “pinguinhos” no lugar da narrativa propriamente dita.
Apesar de não propiciarem uma leitura convencional, os pontinhos
querem dizer algo, e esse sentido está em grande parte condicionado à
leitura do próprio romance. O autor-defunto, ou autor fictício, que
funciona como narrador, é Brás Cubas, um sujeito vaidoso que morreu
solteirão. Conhecendo o autor-personagem, percebemos que o título já
deixa entrever a frustração de Brás Cubas, para quem a honraria de ser
ministro de estado é algo de suma importância na vida social. A ação,
portanto, é a negação de uma ação, ou seja, ele “narra” o que não
aconteceu, mas que ele gostaria de que tivesse acontecido, e
evidentemente o que é negativo na vida do narrador não merece ser
relatado com profusão de detalhes. O leitor, se quiser, que adivinhe o
que não aconteceu. Quanto aos personagens, o único que aparece é o
próprio Brás Cubas, representado pelo pronome “eu” implícito na
forma verbal “fui”. O tempo é indefinido, obviamente porque a ação
não aconteceu, e o espaço, sabe-se que é o Rio de Janeiro da época do
império, cuja elite se caracterizava pela vaidade e pela busca de
honras, títulos e muito dinheiro.

VERSÃO TEXTUAL

Os Elementos da Narrativa

1 - NARRADOR

A voz que conta uma história é de importância fundamental no


gênero épico, visto que ela é que vai dar o tom ao relato, isto é, ela é
que vai determinar o foco narrativo, o ponto-de-vista sob o qual os
acontecimentos são veiculados ao leitor. Nas primeiras narrativas da
civilização ocidental, tínhamos a voz das musas, a voz dos deuses, nos
mitos e epopéias.

Atualmente, a voz no romance é a que exerce maior fascínio sobre


o leitor, o narrador é hoje um ser que não fala; ele escreve sobre si
mesmo (primeira pessoa) ou sobre outrem (terceira pessoa). Ele
apresenta uma visão de perto ou de longe, observação externa ou
interna, em que penetra na psicologia da personagem.

Essa voz é aparentemente poderosa, já que ela é que vai conduzir


a narrativa. Entretanto, nem sempre ela se apresenta como auto-
suficiente e autônoma, como ocorre geralmente com o narrador

39
alencariano. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo,
temos o narrador que não sabe mas quer saber, e questiona os que
acham que sabem, em Memorial de Aires, também de Machado de
Assis, há o narrador sem feitos e sem ambições, em Dom Casmurro,
ainda de Machado de Assis, há o narrador claudicante, atormentado,
que quer passar ao leitor a certeza de que foi traído e de que sua
vingança é legítima, mas não convence ninguém, desviando a simpatia
do leitor para a mulher supostamente adúltera; em Menino de
engenho, de José Lins do Rego, apresenta-se uma voz narrativa
vacilante entre menino e adulto; em Sargento Getúlio, de João Ubaldo
Ribeiro, temos o monólogo da missão e do destino inalterável.

2 - NARRADOR

Com relação à perspectiva sobre os fatos narrados, o narrador


pode ser de primeira ou de terceira pessoa. No primeiro caso, pode
haver variações: o personagem principal relata sua história, ou uma
personagem secundária relata a história do protagonista.

A atitude do narrador de terceira pessoa pode variar entre aquele


que sabe de tudo o que acontece e o que apenas observa os
acontecimentos. O primeiro é o narrador onisciente, conhece tudo
sobre a história e a intimidade (inclusive psicológica) das personagens.
Às vezes esse ser onisciente chega a interferir na história, dando
conselhos aos personagens e influenciando em seu comportamento:
esse é o narrador intruso.

No segundo caso, temos o narrador observador, que se limita a


observar e relatar os acontecimentos, comunicando apenas o que está
ao seu alcance.

Outra modalidade de apresentação do narrador é a que propicia


focos narrativos múltiplos. É um recurso que aparece na narrativa
moderna, e se torna mais frequente nos textos contemporâneos,
contemplando a presença de pontos de vista variados, com mistura ou
não de pessoa.

Em Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo, o


protagonista, na “Carta pras Icamiabas”, assume a narrativa, que até
então se fazia em terceira pessoa. Em Um copo de cólera, de Raduan
Nassar, o narrador masculino dos seis primeiros capítulos cede a
condução do texto no sétimo e último capítulo a uma voz feminina,
que encerra a novela e revela a fraqueza e a carência do narrador
masculino anterior. Em Nove noites, de Bernardo Carvalho, há a
presença de dois narradores que relatam os acontecimentos
relacionados ao suicídio do etnólogo norte-americano Buel Quain em
épocas e locais diferentes, assumindo, evidentemente, pontos-de-vista
também diferentes. Outro autor importante da literatura portuguesa
contemporânea, António Lobo Antunes, usa frequentemente o recurso
de narradores múltiplos, embaralhando as “verdades” ficcionais.

Quanto às atitudes do narrador, pode ser de envolvimento com o


leitor, com quem ele dialoga, como ocorre em Machado de Assis; de
40
autoridade em relação aos fatos narrados (ou mesmo de ausência de
autoridade narrativa); ele pode ser um narrador memorialista, cuja
atitude é de recordação; ele pode assumir uma postura crítica e
irônica, ou lírica e melancólica; pode apresentar maior ou menor grau
de subjetividade (introspecção) ou de objetividade (extroversão); pode
ser alguém otimista, ou pessimista.

3 - NARRADOR X AUTOR

Uma questão importante na narrativa é não se confundir autor


com narrador. Este pertence ao mundo ficcional, enquanto aquele tem
sua existência no chamado mundo real. Quando Brás Cubas declara,
por exemplo ser um “defunto autor” em Memórias póstumas de Brás
Cubas, ele é naturalmente um “autor ficcional”, e na narrativa em
questão ele faz as vezes de narrador. Nesse caso, o narrador chama-se
Brás Cubas e o autor chama-se Machado de Assis.

Sobre esse assunto, vamos relembrar aqui o Exercitando do tópico


2 da aula 2. Se você refletiu bem sobre o exercício na época, você deve
ter achado que a autora é a Carolina Maria de Jesus, uma favelada
negra e semi-analfabeta que viveu em São Paulo em meados do século
passado, um ser do mundo real que escreveu um livro chamado
Quarto de despejo.

A narradora também se chama Carolina Maria de Jesus, mas esta


é o ser de ficção que fala nas páginas do livro mencionado, a voz
ficcional que ouvimos ao ler a obra. A personagem principal é também
um ser chamado Carolina Maria de Jesus, mas esta é o ser fictício
sobre a qual a Carolina Maria 2 conta a história. Assim, a Carolina
Maria 1 acima mencionada pertence ao mundo real, enquanto as
Carolinas Marias 2 e 3 pertencem ao mundo ficcional. A prova disso é
que a primeira já morreu, e as outras duas não morrerão jamais. Para
terminar, o mundo real é a São Paulo verdadeira onde viveu a Carolina
Maria 1, enquanto que o mundo fictício é a São Paulo descrita nas
páginas do relato.

4 - AÇÃO OU ENREDO

Enredo, ou ação, ou trama é uma sequência de acontecimentos


ordenados de acordo com a vontade do escritor.

O enredo tradicionalmente se inicia com uma situação estável; no


decorrer da trama, ocorre um conflito, que conduz ao clímax, e
finalmente ao desfecho. A narrativa pós-moderna tende a subverter
essa fórmula, misturando esses elementos ou suprimindo algum (uns).

A ação pode ser externa ou interna. A ação externa refere-se aos


fatos palpáveis: uma viagem, uma luta, uma cena de amor, por
exemplo, e sua predominância é própria da ficção linear. A ação
interna compõe-se de reflexões, de introspecções, passando-se no
consciente ou no subconsciente das personagens. Não há a ação
interna ou externa em sua forma pura; podemos dizer que há em

41
determinada narrativa uma predominância maior ou menor desta ou
daquela.

Outra questão que se coloca em relação à ação é a da verdade


ficcional ou da verossimilhança. O universo ficcional possui leis
próprias, e supõe-se que o leitor concorde com as regras da ficção, por
mais absurdas que elas possam parecer; caso contrário, é melhor o
leitor fechar o livro e abrir uma revista, ou um jornal. Mesmo que a
obra não apresente uma correspondência de verdade com o mundo
real, espera-se que ela tenha uma verossimilhança interna, de acordo
com a proposta do escritor.

Leia o depoimento da escritora Lygia Bojunga Nunes a respeito


dessa liberdade de invenção do escritor:

“A liberdade de fazer uma cena, um parágrafo, um capítulo do


jeito que a minha imaginação pedia e não do jeito que esperavam de
mim.

Era só eu cismar que botava o Maracanã cheinho dentro de uma


cena. (...)

E era só querer, que eu fazia cena atrás de cena só com um gato-


pingado. Ou sem nenhum.

Eu podia fazer um capítulo de três linhas.

Ou de três páginas.

Ou de trinta.

Nossa!

Querendo, eu botava um barco dentro do livro.

Eu botava bicho.

E ainda por cima fazia ele falar.

E fazia o barco chorar, tá bem?

Puxa, eu podia tudo".

NUNES, 1988, p. 54

5 - PERSONAGENS

Personagens são seres inventados, fictícios, semelhante a seres


humanos, ou a animais, ou mesmo a seres inanimados (que adquirem
vida na narrativa). São classificados em dois grupos, conforme suas
características básicas:

Por um lado, há os personagens quadrados, bidimensionais,


dotados de altura e de largura, mas não de profundidade; geralmente
apresentam um só defeito ou qualidade. Em sua forma mais reduzida,
são meros tipos ou caricaturas. São também chamados planos, chatos,
rasos, superficiais ou simples.

42
Por outro lado, há os personagens redondos ou tridimensionais:
esses são dotados de profundidade, séries complexas de qualidades e
defeitos (caracteres). Designam-se também como profundos ou
complexos.

6 - APRESENTAÇÃO DOS DISCURSOS DOS PERSONAGENS

Normalmente, o “dono” da voz narrativa é, como se viu, o


narrador. Entretanto, o narrador concede eventualmente aos
personagens o poder de se expressar. Isso é feito de três maneiras
principais.

O discurso direto é a representação exata do discurso falado ou


pensado pela personagem. Geralmente o narrador apresenta a
personagem, antes de transcrever seu discurso, que geralmente vem
entre aspas ou precedido de travessão.

No discurso indireto, o narrador nos conta, de seu ponto de vista,


o que a personagem teria falado ou pensado.

O terceiro tipo, o discurso indireto livre, é um tanto ambíguo: a


fala da personagem se funde à do narrador, sem o auxílio de um verbo
dicendi (próprio do discurso indireto) nem de sinais gráficos como
aspas e travessões (próprios do discurso direto). Temos aí a
interferência da fala da personagem no plano do discurso do narrador.

Exemplos:

Discurso direto:

“ (...) mas mesmo assim eu fui em frente “que tanto você insiste
em me ensinar, hem jornalistinha de merda? que tanto você insiste em
me ensinar se o pouco que você aprendeu da vida foi comigo, comigo”
e eu batia no peito e já subia no grito, mas um “ó! honorável mestre!...”
ela disse (...)”

NASSAR, 1999, p.45

Discurso indireto:

“Foi nesse sertão primitivo e rude que Arinos me contou ter


sentido talvez a maior, a mais pura das sensações de arte.”

CUNHA, 1981, p.451

Discurso indireto livre:

“Não era a primeira vez que sucedia aquilo — o fiasco daquele


engano. Amanhã, seriam os comentários na rodinha do sura
antipático, sem rabo ainda, sem sem voz ainda, pescço pelado, e já
metido a galo. Na do sura e na do garnisé branco — esse, então, um
afeminado de marca, com aquela vozinha esganiçada e o passinho
miúdo.

João Fanhoso fechou os olhos, mal-humorado. A sola dos pés


doía, doía. Calo miserável!”

43
CUNHA, 1981, p.454

7 - TEMPO

O tempo em uma narrativa pode ser considerado sob três


perspectivas principais: o tempo da narrativa (ou tempo do
enunciado), o tempo da narração (ou tempo da enunciação), e o tempo
da recepção ou da leitura.

Com relação ao tempo da narrativa, ele pode ser histórico ou


psicológico. O tempo cronológico ou histórico é marcado em horas,
dias, meses, anos, estações etc. Ele pode apresentar digressões ou flash
-backs (quebra da linearidade para introdução de episódios mais
remotos ou reflexões). O tempo psicológico ou metafísico é o que flui
dentro das personagens, sem começo, meio ou fim.

ESPAÇO

O espaço é o cenário onde se desenvolve a ação. Em alguns casos


ele funciona como pano de fundo, sem muita interferência na
narrativa; em outros, pode-se tornar um prolongamento da psicologia
das personagens.

8 - TEMA

O tema é a proposição, a postura da voz literária diante do


assunto tratado, o objetivo do locutor, aquilo que ele pretende
desenvolver ou provar. Um possível tema para a narrativa do coveiro e
do bêbado lida neste capítulo, por exemplo, seria “quem se entrega
inteiramente ao trabalho arrisca a própria vida”, ou “é preciso ter
cuidado ao pedir socorro a alguém que você não conhece”.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Clique aqui (Visite a aula online para realizar download deste
arquivo.) para ler os textos, identifique e classifique os seguintes
elementos da narrativa: narrador, ação, personagens, tempo e espaço.
Suas respostas devem ser enviadas para o Portfólio.

FONTES DAS IMAGENS


1. http://www.lainsignia.org/2005/agosto/cul_004.htm
2. http://citador.weblog.com.pt/arquivo/109176.html
3. http://www.adobe.com/go/getflashplayer

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44
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 05: GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 02: O GÊNERO DRAMÁTICO

O texto dramático também apresenta características peculiares, a


começar pelo fato de que esse tipo de texto surgiu para ser representado, e
não propriamente para ser lido. Imaginemos o texto que segue sendo
representado em um palco por atores:

EXEMPLO

PADRE: Você faz tudo?

SACRISTÃO: Faço.

MULHER: Em latim?

SACRISTÃO: Em latim.

PADEIRO: E o acompanhamento?

JOÃO GRILO: Vamos eu e Chicó. Com o senhor e sua mulher,


acho que já dá um bom enterro.

PADEIRO: Você acha que está bem assim?

MULHER: Acho.

PADEIRO: Então eu também acho.

SACRISTÃO: Se é assim, vamos ao enterro. (João Grilo estende a


mão a Chicó que aperta-a calorosamente.) Como se chamava o
cachorro?

MULHER: Xaréu

SACRISTÃO, enquanto se encaminha para a direita,em tom de


canto gregoriano: Absolve, Domine, animas omnium fidelium
defunctorum ab oomni vinculi delictorum.

TODOS: Amém

Saem todos em procissão, atrás do sacristão, com exceção do


padre, que fica um momento silencioso, levando depois a mão à boca,
em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja. Aqui o
espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando
-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do
palhaço.
SUASSUNA, 1959, pp. 70-71

45
Esse texto é do final do primeiro ato da comédia Auto da compadecida,
de Ariano Suassuna [2], e trata do enterro do cachorro da esposa do padeiro.
A grande diferença desse tipo de texto para a narrativa é que ele não
apresenta narrador. Os próprios personagens, representados por atores, é
que conduzem a história, com suas falas e ações, que são presenciadas pelos
espectadores.

Fonte [1] Entre parênteses, e em itálico, observam-se algumas indicações


chamadas rubricas, sobre como os atores devem-se comportar. O texto que
vai ao público, no entanto, é veiculado pelos personagens em discurso direto.
O texto que segue é parte de um romance, Quincas Borba, de Machado de
Assis. Embora não seja uma peça teatral, o fragmento transcrito tem uma
estrutura dramática, com o predomínio do diálogo sobre a narração.

EXEMPLO

— Conhece? Disse Camacho apontando para o retrato.

― Não, senhor.

― Veja se conhece.

― Não posso saber. Nunes Machado?

― Não, acudiu o ex-deputado dando à cara um ar pesaroso. Não


pude obter um bom retrato dele. Vendem-se aí umas litografias que
me não parecem boas. Não; aquele é o marquês.

― De Barbacena?

― Não, de Paraná; é o grande marquês, meu particular amigo. (...)


leia a Atalaia, meu bom companheiro de lutas; recebê-la-á em casa...

― Não, senhor.

― Por que não?

Rubião baixou os olhos diante do nariz interrogativo de Camacho.

― Não, senhor; sou firme, desejo ajudar os amigos. Receber a


folha de graça...

(ASSIS, 1961, p. 129)

Os momentos em que o narrador faz ouvir sua voz nesse texto


assemelham-se à rubrica, como se fosse uma recomendação de
comportamento ao “ator”.

Com base nos fragmentos apresentados, vejamos as características


principais do texto dramático. Inicialmente, a atitude básica do público do
teatro é de expectativa, de tensão quanto ao futuro. O texto deve propiciar ao
expectador um sentimento de tensão imediata, que o fará manter sua
atenção à peça. A ação é toda conduzida pela presença de atores que
representam personagens, o discurso direto predomina, os diálogos veiculam

46
o sentido do texto. Não há a presença de narrador; eventualmente pode
aparecer uma voz externa à cena fazendo algum tipo de comentário.

O tempo no gênero dramático é reduzido, para que a tensão, o conflito


não decresça e mantenha a expectativa. A presença física dos atores faz com
que o efeito do texto sobre os expectadores seja de presentificação da ação.
Não importa que as cenas se passem num tempo passado ou remoto; para os
expectadores, a ação se desenrola diante de seus olhos.

Como o gênero dramático relaciona-se intimamente ao teatro, leia o que


diz Massaud Moisés sobre esse termo em seu Dicionário de termos literários.

APROFUNDAMENTO

TEATRO — Grego théatron, lugar onde se vê.

O vocábulo “teatro” apresenta as seguintes acepções: 1) local onde


se realizam determinados espetáculos, 2) os próprios espetáculos, 3)
conjunto de textos produzidos por um autor, nação, época etc. O
terceiro sentido se manifesta quando falamos em "teatro
shakespeareano", "teatro clássico", "teatro grego", etc. As três
acepções, reunidas, confluem para a ideia de que o teatro é a arte do
espetáculo, mas nem todo espetáculo é teatro: constituem imperativos
a pré-existência do texto e sua metamorfose em ação. Texto e ação
caracterizam o teatro.

Da perspectiva literária, interessa somente o texto, não a ação em


que se concretiza: porque produto da imaginação, a peça escrita se
inscreve nos quadrantes literários; no entanto, não se configura em
teatro, porquanto necessita do espetáculo, da presença humana,
cenários, etc., para se realizar completamente. Por outro lado, o exame
do texto pressupõe o destino que o seu autor lhe conferiu, ou seja, a
sua representatividade, o enredo, as personagens. E conforme seja o
conteúdo da ação, a peça se classificará em comédia ou tragédia, ou
apresentará hibridismos que conduzirão a tipos intermediários (V.
COMMEDIA DELL’ARTE, MELODRAMA, TRAGICOMÉDIA,
VAUDEVILLE).

Nascido na Grécia, o teatro foi levado para Roma e de lá para a


Europa e o resto do mundo. No Oriente, o Japão desenvolveu formas
autônomas e diferenciadas da atividade cênica (v. KABUKU, KIOGEN,
NÔ). Evoluindo através dos tempos de modo o mais variado possível, o
teatro continua a ser um espetáculo culturalmente válido e apreciado:
em nossos dias, são de notar o teatro épico, de Brecht, para quem a
representação pode compelir o espectador, pelo “distanciamento” da
ação, ou seja, pela certeza reiterada de que acompanha o desenrolar de
situações ilusórias ou fictícias, — a dar-se conta de um estado de coisas
que implica uma tomada de posição ideologicamente orientada no
rumo do marxismo (Petit organon pour le théatre, 1949); e o teatro do
absurdo, expressão cunhada pelo crítico norte-americano Martin
Esslin, para designar o moderno teatro de vanguarda, escrito por
Samuel Beckett, E. Ionesco e outros, caracterizado por toda sorte de
mudanças e liberdades em cena, dando a impressão de que o
47
nonsense, o sem-sentido, reina sobre os homens e as coisas, num
flagrante desrespeito a qualquer ordem, sistema ou noção de
verossimilhança (v. DRAMA).

― (MOISÉS, 2002, pp 490-491

FONTES DAS IMAGENS


1. http://arquivos.tribunadonorte.com.br/fotos/14812.jpg
2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

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48
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 05: GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 03: O GÊNERO LÍRICO

Enquanto os gêneros épico e dramático correspondem a um olhar para o


mundo exterior, a lírica lança um olhar para dentro, em que predomina a
subjetividade. Vejamos as características líricas no texto abaixo.

EXEMPLOS DE CARACTERÍSTICAS LÍRICAS NO TEXTO

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar

(Não sei se dura ou caroável),

Talvez eu tenha medo.

Talvez sorria, ou diga:

— Alô, iniludível!

O meu dia foi bom, pode a noite descer.

(A noite com os seus sortilégios.)

Encontrarás lavrado o campo, a casa limpa,

A mesa posta,

Com cada coisa em seu lugar.

(BANDEIRA, 1993, p. 223)

O texto acima não relata nem representa uma história. O que


temos aqui é a expressão de um sentimento, de uma emoção, ligada à
chegada da morte. O eu-lírico, ou seja, a voz que se apresenta no texto
lírico (equivalente ao narrador na épica), expressa um comportamento
hipotético relacionado ao momento final da vida. O poema é
perpassado de dúvida, de mistério, de ambiguidade.

Refere-se a uma “sonora ou silenciosa canção”. Será a arte? A


poesia? O discurso não é claro, mas há a sugestão de algum tipo de
manifestação que se opõe aos ”espetáculos infatigáveis”, que podem
ser compreendidos como representação da vida cotidiana, da labuta
diária das pessoas. Há sugestões, alusões, possibilidades, as coisas não
são estipuladas com objetividade e clareza, exatamente porque a
concepção expressa é subjetiva, individual.

Vamos examinar mais dois poemas, de Cecília Meireles:

Epigrama n° 1

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis

49
Uma sonora ou silenciosa canção:

Flor do espírito, desinteressada e efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão:

por ela, os tempos versáteis saberão

que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,

quando por ele andou teu coração.

(MEIRELES, 1982, p. 18)

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

― não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

― mais nada.

(MEIRELES, 1982, p. 14)

Já este poema trata do poeta e da poesia. O artista é o “irmão das


coisas fugidias”, das coisas indeterminadas e imponderáveis. O que
importa, afinal, não é o poeta: este passa, quem fica é sua obra, a
poesia, o lirismo.

Os textos apresentados veiculam, portanto, a expressão de um “eu”


muito particular. Ao invés de descrições e relatos objetivos, temos evocações
e projeções de emoções. A linguagem é predominantemente conotativa,
construída por imagens (“indesejada das gentes” por morte, por exemplo).

50
Os textos têm natureza não-narrativa, não-dialogada, de caráter estático.
Espaço, tempo e personagens, quando aparecem, são indefinidos, e servem
como pretexto para a expressão dos sentimentos.

FÓRUM
Leia o poema abaixo, de Manuel Bandeira, e procure dialogar com ele.
Faça a ele várias perguntas, tente dar algumas respostas, faça outras
perguntas, e dê um depoimento no fórum. Você deverá enviar pelo menos
duas postagens: uma com suas impressões iniciais sobre o poema, e mais
uma, ou mais outras, comentando a mensagem de algum colega.

MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.

(BANDEIRA, 1993, p. 155)

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1985.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo:


Jackson, 1961.

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Jackson, 1961.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1993.

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 9 ed. Rio de


Janeiro: Padrão, 1981.

51
JESUS, Maria Carolina de. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2000.

MEIRELES, Cecília. Viagem e Vaga música. Rio de Janeiro: Record,


1982.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo:


Cultrix, 2002.

MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das


Letras, 1999.

NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das


Letras, 1999.

NAVA, Pedro. Beira-mar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir


Editora, 1959.

FONTES DAS IMAGENS

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52
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 06: PROCESSOS ESSENCIAIS DE LINGUAGEM FIGURADA

TÓPICO 01: CONOTAÇÃO E DENOTAÇÃO

Na aula 2, nós já tivemos oportunidade de estudar a linguagem


conotativa. Vamos examinar os processos de CONOTAÇÃO ou de
LINGUAGEM FIGURADA que aparecem no fragmento de poema abaixo:

LINGUAGEM FIGURADA OU CONOTATIVA

A poesia é feita de figuras. Chama-se linguagem figurada, ou


conotativa, aquela que não significa exatamente o que parece dizer.
Degrau não é exatamente trono; pátria não é vento; mãe não é lua;
preguiça não é mulher. No caso do degrau das igrejas, o eu poético,
que se pretende um vagabundo, sugere que é o rei das ruas, que reina
no alto de um degrau; como vagabundo que se preza, não tem uma
pátria formalmente definida: o vento, o ar, a brisa lhe bastam como
pátria; nem de mãe verdadeira ele necessita: a lua vela por ele com um
cuidado maternal; seus desejos sensuais convergem para a curtição da
preguiça.

À linguagem que pretende significar exatamente o que diz costumamos


chamar linguagem denotativa, em oposição à linguagem conotativa. É
importante observar que existe uma gradação entre a linguagem mais
denotativa e referencial, como a linguagem científica — que mesmo assim
dificilmente vai significar a mesma coisa para todas as pessoas — e o outro
extremo, o da linguagem essencialmente conotativa, que vai apresentar uma
maior pluralidade de sentidos, mas terá ainda pontos comuns de
compreensão.

Consideremos os seguintes versos de Poema sujo, de Ferreira Gullar:

53
Nos fragmentos acima, o eu-lírico refere-se aos objetos da casa de seus
pais em São Luís, quando era menino. As palavras que compõem os cinco
versos traçam, de maneira bastante explícita, o destino das peças que
povoam nossa vida familiar, principalmente louças e talheres de baixa
qualidade, que tendem a se partir e a enferrujar, enfim, a se perder.
Poderíamos dizer, então, que todas as pessoas que lêem o trecho acima
enxergam as mesmas coisas, visto que as palavras compõem uma cena que
pode ser reconstituída sensorialmente. O texto seria, por consequência,
predominantemente denotativo.

Não obstante, podem-se extrair dos versos significações que estão “por
trás” das significações primeiras das palavras. Considerando que o texto está
inserido num contexto de recriação do passado pela memória, pode-se
perfeitamente associar a fragilidade das coisas e sua suscetibilidade ao
aniquilamento como uma característica da própria memória. Num sentido
conotativo, podemos dizer que a lembrança se perdeu, as reminiscências
perderam a nitidez. O destino das coisas não seria então o próprio
esquecimento, que nos dificulta o resgate intato do passado? O texto acima é
aparentemente mais referencial, mais “concreto”, mas mesmo assim ele nos
permite aprofundar em sua significação, desestabilizando a relação entre as
palavras e as coisas, o que, aliás, é prerrogativa da poesia.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Transcreveremos abaixo quatro pequenos textos literários para você
pensar sobre a linguagem conotativa e a denotativa. Para cada fragmento,
você vai escrever um comentário em torno de cinco linhas identificando
palavras, expressões ou frases que sejam predominantemente conotativas.
Disponibilize seus comentários no seu Portfólio.

LEIA OS TEXTOS AQUI

Texto 1:

Tudo era festa e ruído na vida deles. Acompanhados de grupos


irrequietos, corriam para a luz, refugiavam-se na penumbra. Vidros
e espelhos, tinham de sugar sofregamente o que a noite lhes
oferecia. Pela madrugada, insaciados, abrigavam-se em casa e
prosseguiam no ritual orgíaco até a explosão final do sexo. (O
cemitério de copos e garrafas.)”
(“AGLAIA”, RUBIÃO, 2000, p. 75)
Texto 2:

Palavras são feito gente, tem de todo jeito: bonitas, feias,


gordas, magras, simpáticas, antipáticas, sérias, engraçadas, alegres,
tristes; todo jeito. Beto diz que a gente pode aprender tudo com as
palavras, mas para isso é preciso a gente gostar delas feito a gente
gosta das pessoas. Eu também já pensei isso uma vez. Já reparou
como é engraçado uma palavra, se a gente fica olhando para ela
muito tempo e pensando nela? É engraçado, ela parece que começa
a mexer, a viver; parece uma coisa viva. Palavras parecem uma

54
porção de bichinhos brincando; brincando de serem palavras; já
reparou isso? Fale uma palavra que você ache bonita...
(“Françoise”, VILELA. 1998. p.84)
Texto 3:

“Meu desejo? Era ser o sapatinho


Que teu mimoso pé no baile encerra...
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra...”
(AZEVEDO, s/d, p. 145)
Texto 4:

O ÚLTIMO POEMA

Assim eu quereria o meu último poema


Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos
intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais
límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
(BANDEIRA, 1995, p.70)

FONTES DAS IMAGENS

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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TEORIA DA LITERATURA I
AULA 06: PROCESSOS ESSENCIAIS DE LINGUAGEM FIGURADA

TÓPICO 02: METÁFORA E METONÍMIA

METÁFORA
Ametáforaé tida tradicionalmente como a mais fundamental forma de
linguagem figurada, e é bastante utilizada no gênero lírico.

METÁFORA

A palavra metáfora vem do grego metaphora, derivada de


metaphero, ‘eu transporto’. Refere-se a um tipo de processo linguístico
por meio do qual aspectos de uma determinada realidade são
‘transportados’, ou transferidos, para outra realidade

VEJA O EXEMPLO

No trecho acima, o morto é um anjinho, cujas características se


transferem à “luz peregrina”, à “estrela divina”.

SÍMILE OU COMPARAÇÃO
Enquanto a metáfora assume que a transferência é possível ou já
aconteceu, asímile ou comparaçãoÉ mais óbvia do que a metáfora. O texto
abaixo apresenta uma série de símiles.

SÍMILE OU COMPARAÇÃO

(que também faz parte do processo metafórico) PROPÕE a


transferência e a EXPLICA utilizando-se de conetivos (‘como’, ‘tal qual’),
verbos (‘parece’, ‘assemelha-se’), ou adjetivos (‘parecido’, ‘semelhante’)

VEJA O EXEMPLO

56
Os elementos comparados são a noite e uma outra noite, uma
contendo a outra. O poeta desdobra uma série de elementos de
comparação, ressaltando o caráter erótico, sujo, estático, negro,
pecador da noite. Poderíamos apresentar o desdobramento da relação
noite/noite por meio da seguinte equação:

METONÍMIA
Outra imagem comumente utilizada na literatura, ao lado da metáfora e
da comparação, é a metonímia (o processo metonímico se baseia numa
contiguidade, ou extensão de uma realidade em relação a outra.) . Enquanto
o processo metafórico se fundamenta numa transferência de características
de uma realidade para outra de natureza completamente diferente (anjinho
= luz peregrina = estrela divina, por exemplo),

VEJA O EXEMPLO

No exemplo acima, a palavra armário funciona como uma


metonímia de casa, e pode ser desdobrada para cidade, país, mundo
etc. O poeta se refere inicialmente ao pequeno mundo de Bizuza,
personagem de sua infância, e em seguida amplia a ideia.

Por que metonímia? Voltemos ao exemplo anterior, em que armário é


relacionado a noite (processo metafórico). Observe-se que a associação é
absolutamente livre, porque as duas coisas têm naturezas completamente
diferentes. Já o armário da imagem acima se relaciona com casa, que é o
imóvel que contém o móvel, ou seja, existe uma relação de CONTIGUIDADE
entre as duas realidades. Outra característica da metonímia é que a realidade
a que ela conduz normalmente não é referida no contexto, dada sua
proximidade com ela, enquanto na metáfora ela geralmente é citada,
exatamente porque tem natureza diferente do ser com que ela se relaciona.

57
Um caso particular do processo metonímico é a sinédoque, que consiste
em tomar-se a parte pelo todo ou o todo pela parte. Muitas vezes o termo
sinédoque é tomado como sinônimo de metonímia.

VEJA O EXEMPLO

Nesse fragmento de poema, aparece a imagem das vozes que


criam o terror, ao descerem do morro. Rigorosamente, as vozes
representam as pessoas faveladas que descem do morro para
horrorizar as pessoas da cidade. Nesse caso, as vozes são o som
produzido pelas pessoas, ou seja, elas são algo que fazem parte dessas
pessoas; têm com elas, pois, uma relação de contiguidade.

Quando a metonímia incorpora-se à linguagem do dia-a-dia, designando


objetos por termos figurados por falta de termos próprios, denominamo-la
catacrese (pernas da mesa; mão de pilão; embarcar num trem).

CHAT
O chat desta aula relaciona-se à metáfora e à metonímia, e ao
confronto entre ambas. Seu professor-tutor vai marcar as datas e horários
da sessão de chat, e você deverá preparar-se levando conceitos, exemplos
de poemas e textos em prosa, comentários lidos em livros etc. Lembre-se
de que metáfora e metonímia são os dois grandes processos que presidem
todos os outros processos de linguagem figurada.

FONTES DAS IMAGENS

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


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58
TEORIA DA LITERATURA I
AULA 06: PROCESSOS ESSENCIAIS DE LINGUAGEM FIGURADA

TÓPICO 03: OUTRAS FORMAS DE LINGUAGEM FIGURADA

Oxímoro, paradoxo, antítese.

Elementos opostos ou contrastantes na escrita literária podem levar a


efeitos dissonantes

ASPECTOS DO ESTILO LITERÁRIO


1 - ANTÍTESE
2 - PARADOXO OU OXÍMORO
3 - SINESTESIA
4 - PERSONIFICAÇÃO OU PROSOPOPÉIA
5 - ANIMALIZAÇÃO
6 - HIPÉRBOLE

1. ANTÍTESE

DEFINIÇÃO

Consiste em se relacionarem oposições, como no fragmento de poema


abaixo, em que se opõem as ações de bendizer e fornicar.

EXEMPLO

"Há cinquenta anos passados,


Padre Olímpio bendizia,
Padre Júlio fornicava."
(C. D. Andrade)

“perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto dia”


(GULLAR, 1999, p.219)

2. PARADOXO OU OXÍMORO

DEFINIÇÃO

Estabelece uma confusão maior entre os elementos antitéticos,


evocando um conceito que é ou parece contrário ao senso comum: uma
contradição, um contra-senso, um absurdo, um disparate, instalando na
mente a ideia de fusão, de confusão.

O oxímoro é, portanto, a expressão de um paradoxo. Embora seja


construído por imagens antitéticas, o oxímoro representa uma intensificação
em relação à antítese porque, enquanto esta apenas apresenta, ou confronta
ideias contraditórias, aquela exprime uma contradição entre as partes
apresentadas: os termos que o constituem excluem-se mutuamente.

EXEMPLO

Porque o único sentido oculto das coisas

é elas não terem sentido oculto nenhum.

(F. Pessoa)

“escuro / mais que escuro: / claro” (GULLAR, 1999, p. 218)

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3. SINESTESIA

DEFINIÇÃO

A sinestesia é um recurso sensorial, isto é, um recurso que lida com os


sentidos, provocando uma fusão ou confusão entre dois ou mais entre eles
(visão, audição, olfato, tato, paladar). No exemplo abaixo, o poeta mistura,
nos dois primeiros versos, visão e olfato, e amplia a mescla sensorial no
último verso envolvendo audição, visão e olfato.

EXEMPLO

Nasce a manhã, a luz tem cheiro... Ei-la que assoma

Pelo ar sutil... Tem cheiro a luz, a manhã nasce...

Oh sonora audição colorida do aroma!

(Alphonsus de Guimaraens)

4. PERSONIFICAÇÃO OU PROSOPOPÉIA

DEFINIÇÃO

A personificação (ou prosopopéia) é a figura pela qual se dá vida e, pois,


ação, movimento e voz, a coisas inanimadas, e se empresta voz a pessoas
ausentes ou mortas e a animais, propiciando a integração de animais e coisas
ao mundo dos humanos, como em “água sonhando na tina” (GULLAR, 1999,
p.227).

EXEMPLO

Neste exemplo, de Álvares de Azevedo, os ventos e as noites praticam


ações próprias de seres humanos: suspirar, beijar, delirar:

E quando nas águas os ventos suspiram,


São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!
(AZEVEDO, s/d, p.22)

No trecho abaixo, o narrador empresta à cachorrinha Baleia,


personagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos, sentimentos e reflexões
humanas:

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não


atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que
estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno
coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam
andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas.

5. ANIMALIZAÇÃO

DEFINIÇÃO

Apresenta um efeito contrário à personificação. Nela os seres humanos


são guindados ou rebaixados à condição de animais, conforme a intenção
seja positiva ou negativa.

EXEMPLO:
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É o que acontece aos personagens humanos de Vidas secas:

Olharam os meninos que olhavam os montes distantes, onde havia seres


misteriosos. Em que estariam pensando? Zumbiu sinha Vitória. Fabiano
estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não
pensa.

(Graciliano Ramos)

6. HIPÉRBOLE

DEFINIÇÃO

A hipérbole é uma figura por meio da qual se exageram, para mais ou


para menos, as quantidades ou dimensões de um objeto, ou os efeitos de
uma ação.

EXEMPLO:

Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,

Que impudente na Gávea tripudia?!...

Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto...

(C. Alves)

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO
Identifique uma figura de linguagem que aparece em cada um dos
trechos abaixo.

CLIQUE AQUI

a) “Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul.”

b) “A vida é uma ópera e uma grande ópera.”

c) “Ao cabo tão bem chamado, por Camões, de Tormentório, os


portugueses apelidaram-no de Boa Esperança.”

d) “Uma talhada de melancia, com seus alegres caroços.”

e) “o mar se estendia,
como camisa ou lençol
sobre seus esqueletos (...)”

f) “Oh! Eu quero viver, beber perfumes


Na flor silvestre, que embalsama os ares.”

g) “A felicidade é como a pluma...”

h) “... as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar,


aquela claridade à larga...”

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i) “Mal comeu os doces, a marmelada, da terra, que se cortava
bonita, o perfume em açúcar e carne e flor.”

j) “Liso como o ventre


de uma cadela fecunda,
rio cresce (...)”

k) “Eu classifico São Paulo assim: O Palacio, é a sala de visita. A


prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o
quintal onde jogam os lixos.”

l) “Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom


brinquedo trabalhoso.”

m) “... a casa que ele fazia


Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.”

n) "De repente do riso fez-se o pranto".

o) “Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro (...)”

Oportunamente comunicaremos quando e onde encontrar as


respostas deste exercício.

VERSÃO TEXTUAL

Chegamos aqui ao término do curso de Teoria da Literatura I.


Esperamos que você tenha tido o melhor aproveitamento possível, e
que se saia bem nas avaliações. Antes da prova final, releia
cuidadosamente todas as aulas, e procure tirar suas dúvidas
conversando com seus colegas e com o professor-tutor de sua turma.
Felicidades!

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos plausíveis. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1985, p. 149.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. Rio de


Janeiro: Record, 2001, p. 75.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo:


Jackson, 1961, p. 376.

AZEVEDO, Manuel Antônio Álvares de . Lira dos vinte anos. Rio de


Janeiro: Garnier, s/d.

BANDEIRA, Manuel. Libertinagem & Estrela da manhã. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

62
CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 3 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978.

COELHO, Jacinto do Prado. Dicionário de literatura. 3 ed. Porto:


Figueirinhas, 1973.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo Horizonte: Ed.


UFMG, 1999.

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 1999

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 9 ed. Rio de


Janeiro: Padr]

FARACO, Carlos. Trabalhando com narrativa. São Paulo: Ática, 1992.

FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. São Paulo: Nórdica, s/d, p.


13.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,


1999.

LEMINSKI, Paulo. La vie en close. São Paulo, Brasiliense, 1991

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1999.

MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo: Companhia das


Letras, 1999, p. 236.

NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das


Letras, 1999.

NUNES, Lygia Bojunga. Livro – um encontro com Lygia B. Nunes. Rio


de Janeiro: Vozes, 1988.

RUBIÃO, Murilo. O convidado.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. 2 ed. Coimbra:


Livraria Almedina, 1969.

SÜSSEKIND, Flora. “Escalas e ventríloquos”. In Folha de São Paulo,


Caderno Mais!, 23/7/2000

VILELA, Luiz. de Tarde da noite.

FONTES DAS IMAGENS


1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer

Responsável: Prof. Marcelo Peloggio


Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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