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século XIX
Orientadora:
Profª Drª Maria Arisnete Câmara de Morais
NATAL/RN
2009
3
1.República - Tese. 2. Século XIX – Tese. 3. Professora - Tese. 4. Educação feminina - Tese. 5. Mãe-
esposa – Tese. I. Morais, Maria Arisnete Câmara de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
III. Título
século XIX
NATAL/RN
2009
5
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________________________________
Profª. Drª Maria Arisnete Câmara de Morais (UFRN - Orientadora)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Jane Soares de Almeida (UNESP- Titular externo)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ilane Ferreira Cavalcanti (IFET- Titular externo)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marlúcia Menezes de Paiva (UFRN- Titular interno)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª: Maria Inês Sucupira Stamatto (UFRN- Titular interno)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. João Maria Valença de Andrade (UFRN- Suplente interno)
______________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ligia Pereira dos Santos (UEPB- Suplente externo)
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AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas colaboraram para a execução deste projeto investigativo. A estes ilustres
anônimos os meus sinceros agradecimentos. No entanto, gostaria de destacar algumas
pessoas cujo coração e intelecto tencionou a dor com amor e me proporcionaram fazer
este trabalho com alegria e firmeza de propósito:
Minha mãe, Salete, por me fazer entender o amor incondicional e o cuidado materno
que se estende pelas gerações. Sem o seu cuidado para com Artur não teria a paz
necessária para fazer o que precisava ser feito.
Minha doce Prófi, Arisnete, minha mãe acadêmica, por ser o facho iluminador sempre
presente indicando-me o caminho das pedras e ensinando-me a conviver com elas como
parte da existência, sem atirá-las ou retirá-las. O seu cuidado para com suas orientandas
inspira-me cotidianamente.
Meu marido, Walter, de quem amo ser esposa, companheiro na jornada da vida que foi
meu interlocutor, meu faz-tudo, meu descanso, meu aconchego e minha alegria. “Beijo
de boca no fim do dia” transformou-se no bálsamo diário que me manteve firme no
propósito de dar existência às marcas femininas no século XIX.
Meu filho Artur, de quem adoro ser mãe, com quem aprendi a Ser mais com ele e com
os outros. Seu sorriso e suas tiradas inteligentes fazem tudo valer a pena no fim do dia.
Minha comadre, Jalmira, por agüentar meus delírios intelectuais e partilhar sonhos e
ideais de uma educação melhor para nosso país nestes 13 anos de convivência.
Meus irmãos e sobrinhos, que me fornecem dia a dia o sentido supremo de família no
carinho e nas preces.
Meu pai, Expedito, por me fazer entender muito cedo que disciplina e meta existencial
são quase tudo na nossa jornada terrena. A perda desse princípio é a perda de si mesmo.
Conce, irmanada no mesmo compromisso social de trazer a nossa história aos olhos do
mundo e das nossas alunas no curso de Pedagogia da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN).
Profª Marta Araújo, minha professora de História da Educação, através de quem pude
vislumbrar um universo teórico-metodológico que pudesse responder as minhas
constantes inquietações existenciais.
8
Profª. Rosanália Sá Leitão Pinheiro, por seus comentários, seu carinho e suas
contribuições em minha formação e, particularmente, por colocar seu conhecimento a
nossa disposição trabalhando conosco nesta produção.
Profª. Inês Stamatto pelas valiosas contribuições por ocasião do meu Seminário I
ajudando de maneira definitiva a organizar categorias, conceitos e recorte temporal,
elementos estruturais básicos para a continuação efetiva deste trabalho.
Profª Ilane Cavalcante por sua leitura valorosa no nosso Seminário II contribuindo de
forma definitiva para a melhoria do texto ora apresentado.
Naide e Sarynha, duas moças lindas, de almas nobres que com abraços energéticos e
uma infindável vontade de compartilhar, partilharam a existência dessa tese
contribuindo, mais do que quaisquer outras, com documentação importante em
momento decisivo desta investigação. Sem elas algumas elaborações não teriam sido
possíveis.
RESUMO
ABSTRACT
This text is organized through discussions undertaken in the area of the History of
Education in Rio Grande do Norte, circumscribed to the History of Women from the
first decades of the Brazilian Republic, and to the analysis of what was expected of this
education. We examined representations of women in Natal, between 1889 and 1914,
with the goal of configuring relations between the sexes with the emphasis on moral,
intellectual and pedagogical aspects required of these women. As documental sources
we utilized the educational, civil and criminal Legislation, on a National scope, as well
as on a State and Municipal scope. We circumscribed our search to the newspaper A
República, in which we found literature that circulated in Natal in the form of
pamphlets, short stories and poetry, as well as other texts by authors that were part of
the corpus of analysis of this study, located in public and private archives in Rio Grande
do Norte, such as the Historical and Geographic Institute of Rio Grande do Norte
(IHGRN) and the State Public Archive of Rio Grande do Norte (APE-RN). The use of
the indexing method and the propositions of Cultural History were the appropriate
theoretical-methodological framework to complete studies of this nature. This
operational perspective permitted us to elaborate nuances about this time of transition
from the 19th to the 20th Century, and to spotlight the fire of the women from this
period. The basis of the argument that related women to maternity and domesticity, and
within the ideals of abnegation and religious leadership, aligned to a demand coming
from the increase in the quantity of schools for women, allocated women as the most
appropriate for superior in educational performance in the country, based on its
foundations: primary education. Beyond the universe of formal education, the other side
of women appeared in republican politics. The mother-spouse and the
institutionalization of domestic education associated the female gender with the role of
educator at home as well. Be it in the public sphere, as a teacher, or in private, as
mother-spouse, female care is perceived in this configuration, as an educational base
that the Republic, and in transition, bequeathed to the Brazilian 20th Century.
RÉSUMÉ
Ce texte s’ oriente sur des discussions établies dans l’univers de l’histoire de l’éducation
du Rio Grande do Norte, circonscrite à l’histoire des femmes pendant les dix premières
années du Brésil républicain et sur l’analyse de se que l’on attend de cette éducation
dans le champ d’action de l’éducation féminine. Nous avons mis en évidence les
représentations féminines à Natal, entre 1889 et 1914, ayant comme objectif celui de
configurer les relations de genre, en priorisant les aspects moraux, intellectuels et
pédagogiques exigés de ces femmes. Nous avons utilisé comme sources documentales
la législation éducationnelle, civile et pénale, aussi bien du point de vue national, que
du point de vue de l’état et du municipe. Nous avons circonscrit notre recherche dans le
journal A Republica, dans lequel nous avons mis en évidence la littérature qui circulait à
Natal sous forme de feuillets, contes et poésies, aussi bien que dans les autres textes des
auteurs présents qui ont fait partie du corpus de l’analyse de cette étude, localisés dans
les archives publiques et privées du Rio Grande do Norte, comme l’institut historique et
géographique du Rio Grande do Norte(IHGRN) et les archives publiques de l’état du
Rio Grande do Norte(APE-RN). L’utilisation de la méthode indiquée ainsi que les
propositions de l’histoire culturelle ont été le support théorique et méthodologique
approprié pour la réalisation d’un travail de cette nature. Cette perspective
opérationnelle a permis d’élaborer des nuances sur ce temps de transition, entre le
XIXème et le XXème siècle, et de faire ainsi connaître la femme de cette période. La
base d’argumentation qui mettait en relation la femme avec la maternité et les travaux
domestiques, avec une idée d’abnégation et de sacerdoce, s’est alliée à une demande
dûe à l’augmentation de la quantité d’écoles féminines et a fait apparaître la femme
comme étant la plus appropriée pour le meilleur développement éducationnel dans le
pays, à partir de ses bases: l’éducation primaire. Au delà de l’univers scolaire, une autre
facette de la femme se présentait dans cet univers politique républicain. La mère-épouse
et l’institutionalisation de l’éducation domestique associaient également le genre
féminin à l’éducatrice du foyer. Que ce soit dans le publique, en tant que professeure, ou
dans le privé, en tant que mère-épouse, le soin féminin est perçu dans cette
configuration comme étant la base éducationnelle que la république et l’entre-deux
siècle ont léguée au XXème siècle brésilien.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
CAPA
§ Página do Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho (1934, p.12), “Júlia, a
boa mãe”.
CAPÍTULO II
§ Jornal A República: jan. a jun. de 1897 ......................................................................40
CAPÍTULO III
§ Guiomar de Vasconcelos entre as irmãs Calafange ....................................................57
§ Dolores Cavalcanti entre amigas ................................................................................58
§ Dolores Cavalcanti ......................................................................................................61
§ Júlia Medeiros .............................................................................................................62
§ Festa de Sant´ana em Caicó, RN – 1926 ....................................................................63
CAPÍTULO IV
§ Praça Augusto Severo .................................................................................................94
§ Melhoramentos na capital: A casa de detenção ..........................................................98
§ Melhoramentos da capital: Asilo de Mendicidade .....................................................99
§ Anúncio: Livraria Cosmopolita ................................................................................103
§ Programação Polytheama .........................................................................................106
§ Coreto da Praça Augusto Severo ..............................................................................107
§ Anúncios: Emulsão Scott e afinação de pianos ........................................................109
§ Anúncio: Segredo de beleza .....................................................................................110
CAPÍTULO V
§ Escola Doméstica de Natal .......................................................................................131
§ Prospecto com programa da Escola Doméstica de Natal .........................................138
§ Programa de ensino para a Escola Normal de Natal .................................................141
CAPÍTULO VI
§ Jornal A República (29 ago. 1908) ............................................................................150
CAPÍTULO VII
§ Lição 32 do Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho (1934, p.157).... 179
PALAVRAS FINAIS
§ La liberté guidant le peuple ......................................................................................200
13
SUMÁRIO
Capítulo I
De quando a idéia era apenas uma idéia ................................................... 17
Capítulo II
Notas do caminho .................................................................................... 31
Capítulo III
Perfis de educadoras no Rio Grande do Norte .......................................... 52
Capítulo IV
República, Modernidade e Civilização em Natal ...................................... 82
Capítulo V
Educação e educação feminina: fim de século, início de res-publica ..... 112
Capítulo VI
Marcas de um tempo, imagens de mulheres em Natal ............................144
Capítulo VII
Outras marcas, outras imagens: mãe-esposa e professora .......................174
Referências .............................................................................................205
14
Primeiras Palavras
Este texto de Duby nos ajuda a refletir sobre as idas e vindas de um pesquisador
na construção de um objeto de estudo, de uma investigação histotiográfica. Ajuda-nos a
perceber a importância de permitir falarem as fontes e deixar-se conduzir pelas marcas
históricas daqueles e daquelas que nos antecederam.
O presente trabalho é vinculado à Base de Pesquisa Gênero e Práticas culturais:
abordagens históricas, educativas e literárias e ao projeto integrado Gênero, Educação
e Práticas de Leitura/CNPq, através do qual o projeto inicial ganhou contornos de uma
tese no mosaico construído pelo conjunto de pesquisadores que constituem essa Base de
Pesquisa. Enquadra-se na linha de pesquisa Cultura e História da Educação do
Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que
reúne pesquisas sobre gênero e relações sociais, práticas institucionais e culturais.
O estudo em questão tem como objetivo identificar as representações femininas
em Natal, particularmente a mãe-esposa e a professora, buscando analisar as
características femininas exigidas às demandas sociais natalenses nas primeiras décadas
da República no Brasil. Busca configurar, ainda, as relações de gênero no âmbito da
educação feminina e as discussões entre educação escolar e doméstica na realidade
dada. Esta educação doméstica é também aqui pensada como a educação do espírito
social, que traz como mediador principal a própria formação social em que o individuo
se insere e, ao mesmo tempo em que espelha é por ela espelhada. Os discursos de
parlamentares, clérigos, literatos, jornalistas aparecem nas fontes analisadas como textos
educativo-instrucionais que colaboram com os processos formais de educação na forja
de modelos sociais, também de gênero.
O texto da tese está apresentado o feixe de sete capítulos que servem a este
trabalho como um condutor estrutural à tese que pretendemos demonstrar. Essa
disposição surgiu para nós como um fio condutor à pesquisa que, combinado com as
15
Capítulo I
De quando a ideia era apenas uma ideia
avolumavam, a solidão, apesar das alunas com quem ela vivia, a fizeram realizar o que
o jornal classificava como um “lamentável ato de desespero” (SUICÍDIO,1897, p.3).
Uma mulher, uma professora que se julgava digna, com um comportamento moral que
não justificava a punição da indiferença pelos seus vizinhos. A mudança de domicílio
estava relacionada à forma como estava sendo tratada por estes vizinhos em
conseqüência talvez de um amor por ela alimentado e que não era consoante com aquilo
que se esperava de uma professora. O momento histórico vivido por ela em Natal, no
fim do século XIX, não concebia um comportamento feminino que não se enquadrasse
na categoria mãe-esposa.
Maria Luiza era parte de um segmento social - as professoras - responsável por
um processo de educação feminina em Natal, sintonizado com um discurso corrente,
como o expresso na obra Educação Nacional de Veríssimo (1890 p. 47-52). Este autor
percebe a formação do caráter como um dos aspectos mais importantes para se
organizar a educação em todo o país. Advogava para a mulher uma educação que a
capacitasse para ser mãe de família e reguladora da economia doméstica, pois a mãe
brasileira com o seu “amor maternal, sem energia, deixa ver quão deficiente, senão
dissolvente, era a educação doméstica como educação do caráter”. Portanto, a educação
escolar deveria superar esta deficiência.
Esta professora ensinava particular, trabalhava todas as matérias exigidas pelos
Regulamentos de Instrução Pública Primária a meninos de ambos os sexos, mas isso
não bastava; era preciso que a mulher professora possuísse uma conduta social que
reforçasse o projeto social moralizador que se desejava construir nas primeiras décadas
do Brasil Republicano. A morte de Maria Luiza de França reforça a força do discurso da
virtude e da moralidade destinado à mulher dentro e fora do lar. A sua história retrata a
dificuldade de ser mulher e professora, nessa configuração. Reforça, para nós, a ideia de
um perfil construído em cima de valores morais, de um “fabrico” do “ser professora”,
do “ser mulher” e de instituições organizadas com base em um perfil de professora que
formaram as bases da profissão docente no Brasil.
Esta foi Maria Luiza ou o que me foi possível saber sobre ela. Existiram outras
que figuravam no jornal oferecendo seus serviços de educadoras, transitando entre a
escola privada e a pública, recebendo homenagens públicas pelo seu zelo, sendo
exortada a comparecerem com as notas das estudantes. As várias representações de
professora se relacionam com os vários perfis de mulher encontrados e sugerem um
mergulho nas nuanças de cada um desses perfis, nos rumos de uma representação
21
1
Acreditamos que tal dimensão talvez ocorra em todas as profissões. Limitamos-nos a falar da profissão
docente por ser aquela que nos caracteriza com também a este trabalho.
22
Esse discurso revela o sentido que a instrução assumia no século XIX, na cidade
de Natal. As ideias republicanas da década de 1870 até as primeiras décadas do século
2
Optamos nesse trabalho pela atualização da ortografia dos documentos e fontes encontrados.
24
Honra, amor, virtude, razão, família e verdade são palavras que carregam em si
uma trajetória histórica e que se materializam nessa configuração, sugerindo o modo de
ser e de viver das mulheres do fim do século XIX. Seu discurso condensa uma relação
político-social do período, como também uma relação entre os gêneros e a
representação da mulher republicana.
Apesar desta educação ocorrer, como pudemos perceber pela leitura das fontes,
prioritariamente com base nos espaços escolares, concordamos com Lopes e Galvão
(2001, p.24) que a educação nunca se restringiu apenas à escola. Outras práticas
educativas aconteceram “ao longo do tempo, fora dessa instituição e, às vezes, com
maior força do que se considera”. Em redor dessas práticas é que também focalizamos
nossa pesquisa. Para além da educação escolar, outros processos formativos interferiam
na organização do pensamento e da ação dos indivíduos em uma configuração dada.
Os contos e poesias registrados no período alimentavam o ideal de mulher
virtuosa e abnegada no exercício de sua missão de mulher junto aos filhos e ao marido.
Um desses contos, A partilha, publicado por Coelho Neto no jornal A República, de 10
de janeiro de 1897, retrata a história de uma viúva com dois filhos pequenos, tentando
superar a fome e a doença para cuidar deles. Seu sofrimento é identificado como parte
do dever de mãe que, enquanto embala o filho pequeno e tenta saciar a fome do outro,
esquece de sua precária saúde e segue na missão materna cantarolando passivamente.
como a legislação moderna relativa ao bem-estar social. Outras, nem tanto, como a
presença maciça das mulheres no magistério voltado às séries iniciais da educação
escolar.
Foi nesse momento histórico específico que, mesmo sendo educadas para o lar, as
mulheres eram professoras, escritoras e dividiam o espaço público com os homens na
pequena Natal do período ora em análise. O longo século XIX (HOBSBAWM, 2006)
termina no Brasil com a expansão do ensino pela interiorização da educação, a criação
de grupos escolares e a implementação das escolas normais em todo o país. Essa
demanda educacional se organizava em torno de uma figura cuja inserção é
gradativamente percebida em todas as dimensões sociais: a mulher (professora)
republicana.
O trabalho docente feminino se consolida num processo reconhecido como
“feminização do magistério”. Aqui associamos este processo também ao cuidado
materno como um vetor educacional que se coadunava a um projeto educacional,
político e econômico envolto em um ideário de civilidade e de modernidade. Voltava-se
a um país que tentava se organizar como Estado-Nação sob o lema da ordem e do
progresso. O enquadramento a esta nova ordem social somente seria possível pela
educação instrucional e moral da sociedade. E esta educação deveria ser executada pela
parte serena e angélica do gênero humano, ou seja, pela mulher. Mas não apenas na
educação escolar, pública. Também este cuidado educacional deveria estar nas casas, no
privado. Esta educação deveria estar nas mãos de uma mulher específica, ou melhor, de
certas facetas singulares de mulheres: a professora, na escola e a mãe-esposa, na casa.
Sempre cuidando dos futuros cidadãos da República.
Na tentativa de demonstrar isto, rumamos em duas direções: uma que busca a
configuração norte-rio-grandense e natalense no fim do século XIX e a outra, a
participação da mulher no espaço público e privado no universo das representações
femininas em Natal, entre os anos de 1889 e 1914.
31
Capítulo II
Notas do Caminho
Da relação deste com outros dois médicos - Freud e Doyle -, o autor analisa a
natureza indiciária da medicina. A medicina, por sua natureza experimental, foi se
desenvolvendo a partir do “olho clínico” do médico sobre seu paciente ou pela relação
humana com o doente. Os diagnósticos, antes do advento tecnológico dos exames
médicos, contavam com os indícios recolhidos pelo médico na observação dos sintomas
apresentados pelo enfermo.
Três médicos. Três estudiosos da natureza que utilizam seus conceitos biológicos
para compreender e interpretar os indícios da alma humana: Sigmund Freud se utiliza da
premissa de Delfos – “Conhece-te a ti mesmo” – para que os indivíduos busquem
indícios dentro de sua trajetória de vida e se expliquem a si mesmos; Arthur Conan
Doyle, literato inglês, nos apresenta um personagem – Sherlock Holmes – atento aos
detalhes, ao menos óbvio, para demonstrar a força dos indícios na base de uma
investigação criminal; e o crítico de arte italiano Morelli com sua técnica para
diagnosticar obras de arte originais.
As perspectivas metodológicas desses pensadores são os fios que motivam o
tapete indiciário de Ginzburg. E é a partir da metáfora do tapete que o autor apresenta o
método.
Chartier demonstra que este real é também uma narrativa construída a partir da
interpretação de um autor. A realidade (ou o real) é um tecido social construído onde
grupos diferenciados se interrelacionam, num equilibro de tensões permanentes do qual
nascem representações que esses grupos organizam sobre si e os outros. A
representação, portanto, é um conceito que permite compreender o funcionamento da
sociedade a partir da apreensão do real pelos indivíduos no Rio Grande do Norte do
final do século XIX, os autores desta configuração por excelência.
Dada a condição de não-presentidade da realidade em estudo, o conceito de
representação norteia toda a discussão desenvolvida neste trabalho. A representação é
uma construção que os grupos elaboram deles próprios e dos outros e se modelam a
partir das estratégias que se determinam pelo modo como um texto ou uma imagem é
apropriado, tanto em relação ao indivíduo como na relação com um grupo cultural
específico.
3
Durante a pesquisa e escrita de nossa dissertação de Mestrado (PINHEIRO, 2003) esta categoria
aparecia dividida em duas organizando-se no que convencionamos chamar “binômio feminino para os
oitocentos”. A pesquisa de doutorado reafirmou a presença dessas representações de mulher, mas não
mais como um binômio e sim como uma unidade representacional válida para a configuração pesquisada.
As duas tornaram-se uma na medida em que as fontes analisadas não concebiam uma esposa que não se
tornasse mãe ou uma mãe que não tivesse sido uma esposa.
39
focalizar nossa busca em encontrar a mulher professora em Natal, entre os anos de 1889
e 1914.
Estas categorias mantêm a direção da pesquisa. Quando analisamos textos como
Educação da mulher (CASTRICIANO, 1911) ou Costumes Locais (SOUZA, 1999) ou
ainda A partilha (COELHO NETO, 1897), buscamos palavras, contextos que envolvam
as categorias que emergiram das fontes escolhidas e dos documentos coletados no
projeto em curso, como mãe-esposa ou professora. Estas se apresentam nos documentos
envoltas em um ideário de virtude e moralidade, dentro de relações sociais específicas,
em um recorte temporal estabelecido.
Palavras, expressões, imagens recorrentes – como virtude e moralidade
relacionadas às figuras da esposa e da professora –, nos periódicos encontrados,
permitem vislumbrar um universo de categorias que, impostas pelas fontes, foram
determinadas pela relevância e até mesmo pela insistência com que aparecem nos
jornais da época.
Um exemplo é o jornal A República, que traz uma diversidade textual relevante,
apresenta tanto textos ficcionais como não-ficcionais e que circulou durante todo o
período pretendido. Circunscrevemos a nossa busca a este jornal, O sonho e a revista
Via-láctea, através da edição fac similar de Duarte e Macedo (2003), relativos ao
período das décadas de 1890 e 1900. A maior parte desses jornais se encontra em
péssimo estado de conservação, dificultando o acesso, a manipulação e,
consequentemente, coleta de informação4.
4
Particularmente, estamos aqui falando dos exemplares do jornal A República que se encontram no
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e no Arquivo Público do Estado. A manipulação
de muitos dos exemplares foi proibida por esses estabelecimentos a fim de preservá-los para uma
posterior restauração. Aguardamos este retorno dos exemplares ao acesso público para pesquisas
posteriores, impedidas no momento por esta política institucional de preservação.
40
5
Memória será tratada na perspectiva de Jacques Le Goff (1996), ou ainda como a conservação de
informações que, em última instância, são representações de um passado lembrado/selecionado e
registrado por grupos sociais específicos. Apesar de a memória impressa ter sido o ponto de partida para
esta pesquisa, esta não se restringe a informações conservadas apenas na forma verbal escrita. Na medida
do possível, utilizamos imagens para auxiliar na análise e compreensão dos objetivos e questões postas,
sejam fotografias de pessoas, objetos ou logradouros, ou mesmo de anúncios de jornal.
41
6
Figura de linguagem que expressa dois conceitos opostos criando um terceiro paradoxal como
“conseguir o impossível” ou “o nada é quase tudo”.
42
Em Isabel Gondim, uma nobre figura de mulher, Morais (2003b, p.23) configura
a participação dessa intelectual “na construção da sociedade letrada norte-rio-grandense,
em fins do século XIX e início do século XX.” Suas contribuições estão em áreas da
Educação, História, Dramaturgia e Literatura.
As contribuições da professora Isabel Gondim não se limitam ao aspecto prático
da educação, ou seja, ministrar aulas. O seu livro Reflexões às minhas alunas é um
exemplo da dedicação ao magistério e ao propósito de orientar a mocidade. O livro se
caracteriza por ser um manual de orientação ao sexo feminino, abordando temas que
tratam das fases da mulher, da menina escolar à mulher mãe. A relação de Isabel
Gondim com a educação é um elemento forte e constante em sua existência. “Dir-se-ia
que suas alunas são o seu próprio laboratório de análise e conclusão do que deve ou não
fazer em se tratando de educação, moral e civilidade, ingredientes básicos no convívio
social” (MORAIS, 2003b, p.67).
Ao trazer D. Sinhazinha Wanderley em Sinhazinha Wanderley: o cotidiano do
Assu em prosa e verso (1876-1954), Pinheiro (1997) mostra o cotidiano escolar da
cidade de Assu no início do século XX. A autora reconstitui as práticas da professora
Maria Carolina Wanderley Caldas que, em sua atividade docente de mais de quarenta
anos, contribuiu com o processo de transformação da sociedade assuense, formando
várias gerações de estudantes. Essa professora foi responsável pela introdução de novas
atividades no cotidiano das aulas, como jogos, música e poesia, em contraposição à
prática austera que imperava no período em que iniciou suas atividades docentes no
interior do Rio Grande Norte.
D. Sinhazinha tinha um modo de vida que se diferenciava das outras mulheres de
sua categoria social. Não se limitava ao espaço doméstico e à criação de numerosa
prole. Usando do aparato cultural que possuía, “a mestra saiu do anonimato doméstico e
se impôs enquanto profissional, conseguindo o respeito e reconhecimento da sociedade
assuense” (PINHEIRO, 1997, p. 19).
O texto de Silva (2002), Educação primária em Ponta Negra: professora Leonor
Barbosa de França (1923-1932), ao evidenciar a história e as práticas pedagógicas de
uma professora norte-rio-grandense, revela divergências entre o discurso oficial, contido
na legislação estadual e federal, e as práticas pedagógicas realizadas em comunidades
afastadas do centro urbano de Natal, como Ponta Negra. Essas práticas estavam na
contramão das políticas educacionais vigentes, mas em concordância com as
possibilidades e necessidades daquela povoação naquele momento. A mulher no espaço
43
As práticas cotidianas das mulheres e suas relações com o sexo oposto são temas
de diversas pesquisas históricas. No entanto, a escassez de vestígios acerca do passado
das mulheres, produzidos por elas próprias, constitui-se num dos problemas enfrentados
pelos historiadores. Em contrapartida, encontram-se mais facilmente representações que
tenham por base discursos masculinos determinando quem são as mulheres e o que
devem fazer. Nos arquivos públicos, sua presença é reduzida. Destinadas à esfera
privada, as mulheres estiveram durante muito tempo fora das atividades dignas de
registro (SOIHET, 1997, p. 295).
Nessa perspectiva, Falci (1997) analisa as Mulheres do sertão nordestino e utiliza
livros de cordel, inventários, livros de memória, buscando os vestígios dessas mulheres.
Ao buscar representações do mundo feminino, a autora traça um perfil das mulheres em
um período e lugar determinados. As mulheres são apresentadas em suas diversas
nuanças, atividades e aparência: a filha de fazendeiro, as apanhadeiras de água, as
quebradeiras de coco, as parteiras, as escravas e as ex-escravas. Suas diferenças ganham
visibilidade e expressam uma sociedade estratificada, fundamentada no patriarcalismo
com uma hierarquia rígida e papéis sociais definidos, no que concerne às relações de
gênero.
A autora demonstra na sua análise que, apesar das especificidades das três faces
de mulher apresentadas, as interdependências sociais desenharam e marcaram as
personalidades e a vida cotidiana dessas mulheres com alguns pontos em comum, como
a maneira submissa e sem perspectiva com que levavam sua existência. Ricas ou
pobres, livres ou escravas, a sobrevivência desse modelo de sociedade era o elo que as
amparava e as oprimia.
46
O texto era, nas mãos das incautas jovens, um instrumento perigoso. O auxílio em
favor dessas leitoras vinha através de profissionais socialmente autorizados, como
editores e mestres, que orientavam a melhor leitura para essas mulheres. Com o jogo de
poder instaurado, a leitura corre o risco de tornar-se “uma prática passiva, na qual o
escrito é o estabelecido”. E “o estabelecido” era velar pela ordem familiar de maneira
casta e discreta.
A pesquisa de Morais (2002), no entanto, revela que as mulheres do século XIX
reivindicavam mais que o reinado doméstico. Os jornais destinados ao público feminino
conclamavam as leitoras a não se limitarem ao papel de mães de família, enquanto as
incentivavam a enviarem seus textos para publicação. E essas publicações revelam,
taticamente, a maneira dessas mulheres verem e desejarem uma sociedade.
Heller (2002) analisou perfis femininos em textos escolares de 1800 a 1930.
Utiliza os textos As doutoras, de França Junior e A mulher, de Coelho Neto, cujas
tramas envolvem as alterações que a intelectualização da mulher pode provocar na
família. As personagens representadas nos textos passam a repudiar o conhecimento de
atividades fora do lar, por estas afetarem as relações familiares, especialmente o
casamento.
Luísa, personagem de As doutoras, após o nascimento do seu primeiro filho,
abandona o exercício da medicina ao perceber que a profissão não era mais importante
que o cuidado com o filho. Da mesma maneira, Leonor, personagem do livro A mulher,
deixa de lado os livros e os estudos para dedicar-se a atividades mais femininas que não
a condenassem a um celibato forçado, como cuidar da aparência física.
As atitudes das personagens analisadas pela autora revelam qual espaço é
destinado à mulher nesta sociedade.
Ser solteira podia ser também a marca desta contestação. Os escritos femininos
analisados pela autora revelam o celibato como uma opção pela liberdade. As mulheres
faziam desta escrita um “grito de revolta contra a clausura doméstica”. (p. 490)
O celibato feminino se tornou, no final do século XIX, uma bandeira política; a
figura da “solteirona” cedeu lugar à celibatária citadina. A emergência histórica das
‘mulheres sós’ pelo acaso e a necessidade no decurso do século XIX é um indício da
decadência desse modelo vitoriano e dessa moral religiosa que encerrava as mulheres na
casa e as limitava ao cuidado do marido e dos filhos, como também da conquista do
espaço público por elas.
No entanto, Lagrave (1991) chama a atenção para uma “emancipação sob tutela”
nas relações entre o espaço público e o privado, destinado às mulheres no início do
século XX. Uma emancipação sob tutela. Educação e trabalho das mulheres no século
XX destaca que, no início e até meados do século XX, as mulheres estavam
condicionadas ao trabalho ou ao matrimônio. Ela aponta o declínio da natalidade, o
crescimento no quantitativo de mulheres no trabalho e, após 1918, o regresso dos
homens aos campos e às fábricas como fator de causalidade no discurso que aloca as
mulheres no lar junto às atividades domésticas. A história das mulheres e sua
participação nas sociedades tem sido foco da atuação de historiadores educacionais que,
atuando em seus espaços de produção, contribuem para compor o mosaico
historiográfico brasileiro.
O trabalho de Villela (2000, p.119) traz, em O mestre-escola e a professora, o
processo de feminização do magistério na relação com a expansão da instrução pública
a partir da segunda metade do século XIX no Brasil. Nas décadas de 1870, as discussões
sobre a necessidade de formação do professor ganham maior destaque e a difusão das
Escolas Normais pelo país torna-se uma realidade crescente. Entre a criação da primeira
em 1835 até a consolidação dessa instituição formativa no fim do século XIX, “uma
profissão quase que exclusivamente masculina tornar-se-ia prioritariamente feminina”.
A autora registra que, mesmo sendo considerada como a mais apropriada aos
cuidados das crianças, o acesso das mulheres a um trabalho remunerado foi palco de
lutas, de conquistas e de concessões. O celibato pedagógico, os hábitos de reclusão das
mulheres dos espaços públicos e outros mecanismos ideológicos tornavam essas lutas
nem sempre bem sucedidas. A inserção gradativa e frequente das mulheres na docência
foi um espaço de conquista feminina em uma sociedade que percebia a mulher pública
50
numa linha limítrofe entre a mulher normal (mãe, esposa) da mulher marginal, ou seja,
“a louca, a prostituta e a preceptora.” (VILELLA, 2000, p. 119).
As práticas educacionais de Ina Von Binzer, uma preceptora alemã que veio
trabalhar no Brasil entre 1881 e 1883, são o foco de Canen e Xavier (2000, p.71). Essa
professora atuou nas regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e suas cartas
descrevem um quadro sócio-educacional do Brasil de fins do século XIX. As cartas
analisadas revelam o desejo dos pais, de extratos sociais mais elevados, de oferecerem
às suas filhas uma educação voltada para as línguas estrangeiras (alemão e inglês). Por
outro lado mostra a dificuldade das moças em assimilar e assumir posturas e culturas
tão diferentes das suas próprias. “As cartas da educadora assinalam o caráter privado e
ornamental da educação destinada aos filhos das elites brasileiras do período imperial,
demonstrando que nem sempre a educação formal se fazia nas escolas”. (CANEN;
XAVIER, 2000, p.71).
O nosso trabalho de investigação histórica se une, portanto, ao esforço dos
intelectuais aqui destacados, na tentativa de ser mais um estudo que contribua para a
historiografia da educação e sobre a mulher brasileira e, particularmente, a norte-rio-
grandense.
Certeau (2002) lembra que o estabelecimento das fontes, a eleição de categorias, a
organização de conceitos, o recorte temporal e espacial, a problematização e,
acrescento, as pesquisas da História da Educação são procedimentos de pesquisa que
fazem parte de uma operação técnica que também participa deste projeto de
investigação.
Capítulo III
Perfis de Educadoras7 no Rio Grande do Norte
7
Assumimos esta nomenclatura por não encontramos, à época em estudo, um termo único para o
conjunto de práticas educativas desenvolvidas pelas mulheres. Educação era instrução. E esta só era
ministrada em escolas e por professoras. Consideramos, no entanto, que existiam outros espaços para
além da escola, que educavam como livros, revistas e artigos de jornal e, nestes, as mulheres atuavam
como educadoras, sendo professoras ou não. E mesmo nas Igrejas, através das associações beneficentes
de que faziam parte, elas estavam educando outras mulheres e a si mesmas.
53
através dos discursos sobre o feminino produzidos por homens e mulheres em várias
configurações. E por meio dos trabalhos de pesquisa que trazem professoras, relações de
gênero e educação feminina, tentamos estabelecer um perfil das educadoras no Rio
Grande do Norte no final do século XIX.
Assim, chegamos ao nosso recorte. O ponto de partida foram as dissertações e
teses apresentadas ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, pela linha Cultura e História da Educação.
Escolhemos os trabalhos que traziam perfis de mulheres que nasceram ou viveram entre
a última década do século XIX até segunda do século XX. Considerando o período de
análise deste trabalho – 1889 – 1914 –, estas mulheres estariam imersas no mesmo jogo
de representação cultural e territorial. Nesse sentido, nosso segundo passo foi buscar as
monografias de Graduação que, nessa mesma linha, pudessem ampliar o escopo que
buscávamos, entre os anos de 1999 e 2008.
Ao final, optamos por oito trabalhos acadêmicos entre Monografias, Dissertações
e tese, que se caracterizaram pela focalização na história de mulheres que estiveram
presentes na organização e consolidação do projeto educacional republicano no Rio
Grande do Norte. Os perfis foram construídos a partir desses trabalhos que destacam
práticas de professoras, de escritoras e de jornalistas neste Estado e que se unem ao
nosso próprio trabalho em suas vertentes teóricas, metodológicas e temáticas, ligados à
base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas, educativas e
literárias.
A pujança do trabalho desta base de pesquisa encontra nos congressos de História
da Educação sua consolidação como um grupo atuante e socialmente relevante nesta
área de pesquisa e ensino. Quando nos debruçamos na produção dos três primeiros
Congressos Brasileiros de História da Educação, realizados no Rio de Janeiro em 2000,
Natal em 2002 e Curitiba em 2004, a categoria gênero – foco principal das pesquisas
deste grupo - apareceu enfeixando um dos eixos temáticos.
O aumento significativo na inserção de trabalhos de gênero no Rio Grande do
Norte chama a atenção sobre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
a base coordenada pela professora Maria Arisnete Câmara de Morais. A Base de
Pesquisa Gênero e Práticas culturais: abordagens históricas, educativas e literárias foi
responsável por um terço das comunicações publicadas no II Congresso Brasileiro de
História da Educação (CBHE).
54
Percebemos, pela leitura dos anais dos congressos citados, que a discussão sobre
gênero alargou as fronteiras do eixo em que vinha se limitando e marca presença em
outras temáticas, como profissão docente. Este fato configura um reconhecimento de
que a área de educação não apenas é densamente frequentada por mulheres, mas que
esta realidade acontece numa relação estrita com a outra parte do gênero humano. Sendo
gênero uma categoria relacional por excelência, compreendemos que entender a cultura
escolar passa pela percepção deste movimento relacional também a partir das
professoras e da feminização do magistério, desde meados do século XIX até hoje
Seguramente isto decorre do fato de que os estudos de educação vêm percebendo
que a supremacia feminina na profissão docente é algo que deva ser considerado como
relevante para as pesquisas sobre educação, particularmente educação escolar. Estuda-se
a mulher porque é de mulheres que tem sido feita nas últimas décadas a educação.
Acreditamos que um entendimento mais amplo sobre a cultura escolar está intimamente
ligado à compreensão da constituição desta profissional que impregna a instituição
educacional. Só se entenderá a mentalidade escolar quando entendermos a mentalidade
de quem nela atua: mulheres e homens e a relação entre ambos.
Não deixa de ser intrigante observar que as mulheres estejam mais bem sucedidas
que os homens no espaço escolar, seja apresentando permanência maior e progressão
mais regular nos bancos escolares, seja assumindo majoritariamente os postos no
magistério e na arena educacional. Isto convida a indagar sobre as especificidades dessa
cultura escolar, seu funcionamento, as relações de poder estabelecidas e os significados
de gênero aí constituídos. Sem esquecer que este espaço, hoje tão feminizado, é o lugar
de socialização de grande parcela da infância brasileira. Hoje, e desde fins do século
XIX, as mulheres estão à frente da educação dos futuros cidadãos. Há que se perguntar
sob qual modelo de profissional se organiza este pensamento educacional e o quanto
este intervém na prática docente atual.
8
A grafia correta do nome da professora referida é Rosanália de Sá Leitão Pinheiro.
55
Essas características da professora são tão lembradas por esses ex-alunos quanto
as informações acerca dos seus métodos de ensino e os materiais utilizados em sala de
aula. Isso demonstra que as práticas sociais (e morais) estavam interligadas com as
práticas pedagógicas. A representação de boa professora era condicionada tanto ao
conteúdo programático e à didática de sala de aula, como a um modo de vestir e de
portar-se.
Guiomar de Vasconcelos nasceu em Recife, em 1888, e fez o ensino primário no
Colégio Americano9, em Natal/RN. Permaneceu nesta escola durante quatro anos e teve
acesso a um modelo de educação alicerçado em princípios como cientificidade,
pragmatismo e moral cristã protestante. Privilegiava os processos intuitivos de ensino, a
co-educação dos sexos e disciplinas que elevavam a educação escolar para além do
aspecto instrucional.
A formação da mulher estava embasada em um modelo idealizado de filha, mãe,
esposa, moralmente digna, com condições intelectuais para contribuir de modo efetivo
na ordenação social, a partir do cuidado em princípios de liberdade, individualismo,
ordem e superação. Além das disciplinas notadamente escolares, os preceitos morais e
cristãos, as prendas domésticas, as línguas valorizavam o papel do sexo feminino na
família e na sociedade.
O pensamento progressista do Colégio Americano apontava para um modelo de
participação feminina, alicerçado em uma idéia cristã de companheira do marido,
auxiliando-o nas atividades da vida prática, para além do universo privado. A exemplo
da própria Katherine Porter, que ajudava na missão do marido de propagar a fé
evangélica através de ações educativas institucionais.
Para Costa (1995), a opinião dos americanos causava desconfiança na sociedade
local. Mas reconheciam que a concepção dos americanos sobre o papel das mulheres na
sociedade vinha contribuindo para melhorar a vida das moças e mudar a mentalidade
dos pais que ali matriculavam as filhas. O caráter modelador da educação se fazia
presente no modo de conceber o mundo de suas ex-alunas. Depois de concluir seus
estudos neste Colégio, Guiomar tornou-se normalista, de onde saiu professora em 1913.
9
Esta primeira escola evangélica do nordeste localizava-se no bairro da Cidade Alta e foi fundada por
Katherine Porter, esposa do Rev. Willian Calvin Porter, em 1895 (MATOS, 2008). Segundo Costa
(1995), coube naquele período à professora Rebecca Morrisette assumir a condução do Colégio, auxiliada
pela brasileira Sidrônia Carvalho, membro da Igreja Presbiteriana de Natal.
57
No ano seguinte assumiu a vaga de professora primária no Grupo Escolar Pedro Velho
em Canguaretama/RN.
Silva (2004, p.94) destaca que, ao ler e reler as entrevistas de seus informantes, as
imagens mais vívidas sobre esta professora eram o traje desprovido de excessos de
vaidade, o porte reservado e a moral destacável. Um exemplo de mulher e de
professora. “Vestida de vestido tubinho, bem acinturado e de mangas longas, ela lia alto
com toda a turma, diz Maria Alves Pessoa, ex-aluna de Guiomar”. O gosto pelas roupas
escuras, como o azul, o preto e o marrom, era um sinal de luto pela morte dos parentes e
de seu noivo. Na fotografia em que aparece entre duas amigas – as irmãs Calafange de
Canguaretma-RN –, não conseguimos perceber os tons escuros que ficaram impressos
na memória de suas ex-alunas.
10
Silva (2004) não traz em seu texto a data desta da foto. Mas se considerarmos que Guiomar de
Vasconcelos sempre residiu no solar Calafange no tempo em que residiu e lecionou em
Canguaretama/RN, estimamos a data entre 1914, data de sua chegada no município, e 1943, ano de sua
volta para Natal. Numa busca de imagens através da web, tomando como base as roupas e os penteados
das moças, podemos auferir esta data constituindo a década de 1920.
58
11
A data da fotografia não é precisada pela pesquisadora. Os modelos de roupas inserem possivelmente
Dolores e suas amigas no final do século XIX, na década de 1900.
59
Eis o modelo para imitarmos. Eis a Mãe de Deus, pura nos costumes,
paciente nas dores, nos dizendo sereis salvos se fordes meus devotos;
a vossa devoção vos salvará, se com a inocência no viver e a paciência
no sofrer, preparardes vossa imortal coroa (MELO, 2002, p. 44).
ministrou aulas até 1951, e se aposentou em Natal em 1960. Como outras professoras
no início do século, Dolores estava preocupada em formar as crianças para serem os
homens do amanhã. “Procurava garantir, através da transmissão de bens culturais e de
um conjunto de normas e valores, a prática de todas as virtudes, a obediência às leis, a
sujeição e a honra aos poderes constituídos, à dedicação ao país” (MELO, 2002, p.75).
Segundo Lima (1937, p. 346) além desse grupo, existiam vários outros semelhantes na
igreja de Ceará-Mirim. Este fato ocorria em muitas paróquias espalhadas pelo Rio
Grande do Norte, como é possível percebermos, tanto nos jornais do final do século
XIX como nos relatos de professoras do início do século XX.
Esses valores faziam parte de um universo simbólico que formava almas, no dizer
de Carvalho (2001). A versão positivista da República encontrou no Brasil um solo
fértil. A lei de três estados, evidenciada pelo sistema filosófico comteano, previa a
superação da Monarquia, enquanto um sistema político relacionado à fase teológico-
militar, pela República, melhor encarnação da fase positiva de um projeto
governamental. O progresso e o desenvolvimento da Nação são atrelados ao sentido da
República como a verdadeira democracia. E esta só seria possível através de um esforço
coletivo de uma educação balizada em um conjunto de normas e valores legítimos. Este
conjunto de valores encontrava nas professoras e na educação ofertada por elas este
mecanismo de difusão. Mas uma difusão que, longe de ser laica como pretendia a
educação constitucional, associava normas pátrias a valores religiosos.
Dolores, tal qual Guiomar, é lembrada por seus ex-alunos a partir de uma
formação que unia a instrução e a religiosidade: uma professora séria12 e exemplar.
Inácio Sena, entrevistado por Melo (2002, p.36), acrescenta a este perfil a amabilidade,
a docilidade, a simplicidade e a elegância no vestir.
12
Pelo que pudemos depreender dos trechos a que tivemos ter acesso através do trabalho lido, esta
seriedade era sinônimo de sisudez.
61
Dolores Cavalcanti13
(MELO, 2002, p. 96)
Seu sobrinho e filho adotivo, entrevistado por Melo (2002, p. 34), afirma que esta
elegância registrada na fotografia acima era buscada na França e chegava pelo porto de
Recife/PE. Uma elegância a serviço de um modo particular de ser e de viver. A
elegância atribuída a Dolores, por meio das memórias do seu filho/sobrinho, nós
podemos apreender na análise desta imagem. O mesmo cuidado com o vestir pode ser
percebida na fotografia abaixo, que traz a professora caicoense Júlia Medeiros. Ambas
trazem a moda de seu tempo, as preferências de seus modelos e a relação destas com o
meio social a que estavam expostas.
13
Utilizando os mesmos padrões de referência e busca das fotos anteriores vamos inserir Dolores a partir
desta foto no contexto da década de 1910.
62
Júlia Lopes Medeiros nasceu em Caicó, sertão do Rio Grande do Norte, em 1896.
Numa região conhecida como Seridó e vinda de uma família abastada, foi lhe permitida
uma educação mais completa, que incluía línguas, piano, canto, dança. Típica instrução
oitocentista para as meninas da elite brasileira.
64
14
Rocha Neto (2003) não especifica a data desta vinda. Vamos considerar alguns dados para tentar
aproximar a uma data deste evento na vida de Júlia Medeiros. Ela veio estudar em uma escola religiosa e
paga. Mesmo não sendo estatal, as escolas privadas sempre tenderam a seguir os Regulamentos da
Instrução Pública, entre outros motivos, para referendar e dar credibilidade às suas instituições. O
regulamento em voga trazia o primário composto de seis (06) anos, consistindo de quatro (04) anos do
primário e mais dois (02) de complementar. Terminado o primário fazia-se o Exame de Admissão para
cursar a Escola Normal de Natal. Rocha Neto aponta o ano de 1921 como a data de entrada de Júlia nesta
Escola. Sendo assim, estimamos a vinda de Júlia entre 1915, se considerarmos os seis anos de primário e
1919, se considerarmos os dois anos complementares para o Exame de Admissão.
65
15
Esta festa é a mais importante da região sendo objeto de devoção particular de duas cidades: Caicó e
Currais Novos. Sobre a tradição e a relação de pertencimento dos seridoenses a esta festa, ver ARAÚJO;
MEDEIROS (2003)
66
Ela lembra que sua turma no Normal iniciou com 34 alunos e terminou com 05.
Sobre essa evasão, Aquino (2007) deixa pistas: os anos na Escola Normal requeriam
disponibilidade e persistência. Os exames escolares tornavam difícil a ascensão das
alunas e dos alunos. Segundo o relato de Myrtilla Lobo, “os professores tinham energia
e moral, dirigiam bem a classe, os alunos obedeciam” (MORAIS, 2004, p.125).
Acreditamos que esta forma de tratamento pedagógico, ao mesmo tempo em que
cuidavam dos aspectos próprios de suas salas de aula, estabeleciam um padrão para as
práticas pedagógicas das futuras e dos futuros professores: trabalhariam com energia e
moral para que seus alunos os obedecessem e, dessa forma, adquirissem o saber escolar.
Depois de diplomada ela, foi trabalhar em São João do Sabugi. Era uma cidade
pequena e, apenas uma vez por mês um padre, vinha celebrar missa. Segundo a
professora, o padre era muito intransigente; para ele, fora do catolicismo, só existia
pecado e maldição. Myrtilla Lobo era protestante.
Com uma formação toda em escolas estatais, esta professora não teve “ensino
religioso nem no primário” (Ibid, p.126). Sua formação religiosa advinha da casa
materna. Ela atribui o preconceito ao fato dela ser da capital. Mas se bem nos
lembramos, no início da nossa travessia rumo aos perfis das educadoras, vimos que a
professora Guiomar de Vasconcellos tinha uma boa relação com os moradores da
também pequena Canguaretama. As pessoas talvez tivessem medo era de quem não
seguisse a religião tradicional do Brasil, a doutrina católica. Myrtilla se configura em
uma exceção do ponto de vista doutrinário religioso em nossas educadoras aqui
caracterizadas.
Uma tradição de duzentos e dez anos de jesuíta impregnou os fazeres educativos
dos preceitos e da moral cristã tomasina (AQUINO, Tomás, 2004). Estes preceitos
atravessam a Reforma Pombalina (SILVA, 2006), os projetos laicos republicanos e
encontram terreno fértil nos recônditos do sertão norte-rio-grandense. Mesmo depois da
expulsão dos jesuítas, mais um século foi vivenciado na escola brasileira sob a doutrina
67
parte do conteúdo oficial de suas aulas. Estes aspectos religiosos não eram apenas parte
de sua vida social ou uma re-ligação com o divino, como sugere o termo. Comportam
aspectos da relação social, de gênero e de poder estabelecida nos contextos pesquisados.
Floripes diz que
Ela começou seu trabalho em escolas como merendeira da Escola Dom Delgado.
Sua memória não alcança o ano em que isto aconteceu e para nós esta data ficou perdida
nas brumas do relato lacunar de uma memória octogenária. Considerando o período em
que nasceu, vamos pensar nesta atuação ocorrendo no início da década de 1940. Longe
dos oitocentos, mas ainda muito perto de alguns dos seus conceitos.
Ela conta que, certa vez em que o lanche a ser servido era rapadura, haviam se
formado duas filas: uma para meninos e outra para meninas. Uma menina tirou uma
bandinha da rapadura e ela a repreendeu duramente porque a regra era dar primeiro aos
meninos. A menina retrucou que estava com fome e por isso havia pegado o doce. Ela
ficou com pena da menina e não brigou mais. Mas era algo que não saía da lembrança o
fato dela ter repreendido a menina. No relato não é possível perceber por que o evento
marcara sua memória. Indica, no entanto, uma tendência feminina a priorizar o cuidado
com o masculino neste período. As razões para isto talvez estivessem em um discurso
maternal ou simplesmente uma categorização que supunha ser o sexo forte o primeiro
em qualquer ambiente e por qualquer coisa, ainda que fosse um pedaço de rapadura. A
segurança traduzida em confiança e depositada nos homens atravessa o século e
encontra Floripes Medeiros votando em um candidato homem porque ela não confia nas
mulheres para cargos políticos. Se tivermos como referência suas próprias existências,
elas são confiáveis apenas em assuntos de família, de igreja e de escola.
A conduta social era tão ou mais importante que o saber do conteúdo programado.
“O que contava no perfil da professora, além do conjunto de saberes que ela devia
dominar (matemática, leitura, escrita), era a decência, a moral, a fidelidade aos
costumes e à boa educação, as normas, regras e rituais da sociedade e da Igreja
Católica” (MORAIS, 2004, p.134).
As condutas no interior do Estado se repetiam na capital, como na atuação da
professora Leonor Barbosa de França. Esta mulher associou ao seu ofício de professora
o de mãe-esposa. Mais do que isto: o casamento lhe proporcionou a entrada no
magistério e este lhe deu o suporte financeiro para o sustento da família.
Leonor Barbosa de França nasceu em Natal em 1900, casou com o primeiro
marido, em 1919; tornou-se professora na Escola Isolada, em Ponta Negra, assumindo a
cadeira do marido quando este estava debilitado e não conseguia ministrar as aulas.
Com essa formação, conquistou a vaga de professora leiga na Escola Municipal
Rudimentar, depois na Escola Rudimentar Estadual. Em 1923 assumiu a Cadeira de
Ensino Misto da Escola Municipal Rudimentar e em 1932 assumiu como professora da
70
16
Arnaldo de Oliveira Barreto nasceu em Campinas em 1869 e morreu em São Paulo em 1925. Foi
redator da Revista de Ensino em 1902 e autor de obras pedagógicas como Cartilha Analytica, publicada
em 1909. Foi professor em São Paulo, entre os anos de 1892 e 1914 e diretor da Escola Normal da Praça
da República entre 1924 e 1925. De 1915 a 1925 organizou a Coleção Biblioteca Infantil, da Companhia
Melhoramentos de São Paulo (BERNARDES, 2008).
71
Os padrões morais por ela eleitos reserva à mulher o papel de coadjuvante, cuja
participação deve priorizar uma conduta social recatada. Dentro dessa linha de recato e
rigor, aconselha as mulheres através de sua obra a um comportamento moderado e
modesto, conforme ela conduz sua própria vida. Este modo de ser mulher está presente
no manual de conduta Reflexões às minhas alunas (1910). Publicado em 1874 este livro
foi destinado à instrução feminina na Província do Rio Grande do Norte. Teve mais
duas edições – 1879 e 1910 – e, com a segunda edição, teve uma tiragem de cinco mil
exemplares (MORAIS, 2003b, p.75). Se a conduta social era tão importante nesta
configuração, este manual conduzia as mulheres por essas sendas desde a infância até a
vida adulta.
Ciente do efeito educacional que tinham os meios impressos, parece ser também o
caso de Palmyra Wanderley. Sem formação pedagógica e mesmo quase nenhuma
experiência na docência de crianças ou jovens, seus textos apresentam aspectos
prescritivos, próprios da intenção educacional. Como jornalista, Palmyra Wanderley
também ofereceu a esta cidade contribuições à educação feminina. Talvez por ter tido
acesso à educação e talvez por perceber desde cedo o quanto pudesse se informar,
alimentar um ideal, legitimar formas, modelar pensamentos e, mesmo, assumir e
provocar novas posturas em um século que se iniciava. Sua família, reconhecidamente
de intelectuais atuantes no Estado com figuras como Sandoval Wanderley ou
73
muito azuis, pele muito branca e de face corada.” Era reservada, muito sofisticada e
nunca falava dela mesma ou demonstrava sentimentos. Fatos que ele atribui a um hábito
de família. Ressalta ainda que, embora devota a Deus, não era carola. Ela mesma o diz
numa das edições da Via Láctea que não fazia parte de nenhuma dessas organizações
pias, mas que contribuía sempre e com o que podia para a obra dos desvalidos
(CARVALHO, 2004).
Estas organizações eram muito comuns. Segundo Lima (1937), uma característica
entre as mulheres de sociedade era cuidar dessas instituições e as atividades que elas
desenvolviam. Os indícios dessas associações estão noticiados no jornal A República,
desde chás beneficentes às comissões para ajuda aos necessitados, organização de festas
de padroeira, beneficentes e novenários a santos de devoção.
Deste mesmo quadro de beneficiárias para a Igreja Católica participava
Magdalena Antunes. Talvez sua percepção quanto ao caráter educativo de seus escritos
não fosse tão intencionais como os de Isabel Gondim ou Palmyra Wanderley, mas ainda
assim é possível perceber como os escritos ressoavam nelas próprias e em suas
contemporâneas.
Sobre Magdalena, sua neta, Lucia Helena Pereira, diz como esta se configurou em
presença marcante na família.
No espaço público era vista por figuras como Câmara Cascudo, no final da década
de 1950, como mãe e avó, cuja existência evocava a vida doce e tranquila da sinhá moça
do início do século XX. “Criada em engenho de açúcar, com mãe preta, educada em
colégios do Recife, plantando sua casa nos ritos da aristocracia rural do Ceará - Mirim”.
Uma senhora afeita aos trabalhos domésticos, carregando em si a formação básica das
sinhás moças de outrora, quituteiras inigualáveis, fazedoras de bolo, de renda de
almofada de crivo. O romance memorialista desta escritora é tratado pelo seu sobrinho,
Nilo Pereira como uma
75
O Colégio São José foi fundado em 1866, pela Congregação de Santa Dorotéia,
destinado a educação de mulheres no Brasil. Foi fundado pela Irmã Paula Frassineti,
uma missionária italiana, hoje Santa da Igreja Católica. Funcionava em um prédio do
bairro da Soledade, em Recife/PE, e estava relacionado ao esforço missionário de várias
congregações e ordens religiosas de difundir o ideal mariano pela América (HISTÓRIA,
2008).
Esta relação continua pela vida toda e no seu relato ela deixa perceber que tinha o
desejo de se tornar religiosa católica. Aos dezesseis anos, ainda no Colégio São José,
entrou para a Congregação Mariana Filhas de Maria. Sobre essa entrada recebeu uma
carta de uma antiga mestra, Madre Portugal:
Uma de suas amigas de colégio, a quem ela se refere sempre com afeição, tornou-
se religiosa na Congregação de Santa Dorotéia. As escolas religiosas cumpriam seu
papel: formavam meninos e meninas para o sacerdócio, dentro e fora de suas ordens
religiosas.
As histórias dessas mulheres, os perfis que seus pesquisadores trazem, a
configuração em que viveram provocaram reflexões sobre seus modos de ser e de fazer
como educadoras no Rio Grande do Norte. Mesmo aquelas que não tiveram uma
instrução religiosa católica formal, como as que estudaram em escolas católicas ou
evangélicas, tinham sua orientação religiosa vinda de outra instituição: a Igreja. A “uma
escola verdadeira: o cristianismo” para a educação moral, retomando aqui a fala de
Ângela Marialva ou Palmyra Wanderley.
E esta Igreja cristã era, em sua maioria, de orientação Católica Apóstolica
Romana. Fomentadora de normas, hábitos e valores, ditava, particularmente nas cidades
pequenas, o teor instrutivo (e prescritivo) das escolas. E quem não se adequasse não
encontraria nela lugar, como no caso da professora Myrtila Lobo, vítima da
78
animosidade da cidade de São João do Sabugi, por ser protestante. De acordo com o
padre local, como ela não ministrava aulas de catecismo, qualquer um que a recebesse
estaria vivendo em pecado. No entanto, ela não o sabia, porque nunca havia estudado
em escola religiosa e nem seguia a doutrina católica. Ensinar o catecismo era premissa
para todas as professoras poderem lecionar, mesmo sendo o Estado laico e republicano.
Não bastava ser cristã, tinha que ser católica para corresponder ao perfil estabelecido
para uma educadora naquele momento histórico.
Dolores, Guiomar, Nathercia, Floripes e tantas outras difundiam os valores
republicanos e católicos apostólicos romanos em instituições educacionais, como as
escolas femininas, a imprensa ou a Igreja. Nos jornais e revistas femininos, manuscritos
ou não, as poesias e os artigos de jornal educavam outras mulheres no sentido de
ampliar seu universo intelectual e suas funções nesta sociedade.
Fazendo uma leitura dos perfis das educadoras, encontramos a tradição católica
como uma marca constante à vida pessoal das mulheres privilegiadas neste capitulo. À
exceção de Myrtilla Lobo, que era protestante, e de Guiomar, que estudou em uma
escola evangélica, todas tiveram uma formação doutrinária católica. Ainda assim, todas
assumiam o ideal de mulher cristã, católica ou não.
A submissão à doutrina religiosa, representada principalmente pela Igreja
Católica, e a figura da Virgem Maria, ressaltada e tomada como exemplo, instalou o
mito da mãe que redimia e perdoava. A mulher redentora, possuidora de pureza e
espírito de sacrifício, isenta de qualquer pecado (ALMEIDA, 1998, p.118). Maria, mãe
de Jesus, é exemplo de uma grande mulher. Ela se dispôs a dar de si mesma para servir
humildemente a Deus. De acordo com o Evangelho de Mateus, Maria recebeu a visita
de um anjo portador de uma mensagem divina. Esta mensagem enviada pelo Deus de
Abraão anunciava que ela seria a mãe do filho deste Deus.
17
As relações religiosas serão feitas sempre a partir do texto sagrado da Igreja Católica Apostólica
Romana por entender que as educadoras aqui elencadas seguiam estes preceitos, freqüentavam as missas
dominicais católicas e ensinavam o catecismo a partir desta doutrina.
18
Sobre as histórias dessas mulheres conferir Aviner (2004).
80
Capítulo IV
República, Modernidade e Civilização em Natal
A descrição feita por Cicco dimensiona a cidade no início do século XX, com os
bairros da Cidade Alta e da Ribeira como ponto de partida à expansão urbana da cidade.
A Ribeira era a cidade comercial. Separada dela por uma faixa alagadiça de terra de 400
metros, estava o bairro dos operários e pescadores. A Cidade Alta se estendia pela
Cidade Nova, que se desdobrava nos bairros de Tirol, Petrópolis e Alecrim. O bairro do
Alecrim se desdobrava em Boa Vista, Baixa da Beleza e Refoles. Este conjunto urbano
foi organizado com a Resolução n. 55, de 30 de dezembro de 1901, que criou o terceiro
bairro de Natal: Cidade Nova.
A ideia deste novo bairro, Cidade Nova, posta em execução no Governo Alberto
Maranhão (1900-1904), tinha sido idealizada ainda no Governo Pedro Velho (1892-
1896), mas não passou de um projeto (CASCUDO, 1999). Nossas análises nos
conduzem a pensar sobre os idealizadores deste bairro, suas características urbanísticas
ou o nome dado a ele. Dizem de gestores que deixavam a cidade antiga e toda a
representação que a palavra “antiga” trazia, como ultrapassado ou monárquico, para
apostar num futuro moderno e arrojado como as linhas que projetaram o novo bairro da
cidade.
Cidade Nova se expandia na direção leste da cidade, indo encontrar as dunas e o
Atlântico em ruas largas e projetadas. Era uma marca de modernidade na expansão
urbana de Natal. Partia da Rua Nova (hoje Av. Rio Branco) e ia até os arredores da
Praia do Meio. As medidas e todo o plano urbanístico apresentado na Resolução faziam
cumprir várias funções: um modelo de salubridade na estética urbana, um desenho
moderno e regular, o que sugeria ordenamento e civilidade, como também os anseios de
uma elite dominante que desejava exilar-se da parte antiga e insalubre da cidade.
O custo social das transformações da cidade é apresentado em reportagem do
Diário de Natal em 1904, em trecho transcrito por Ferreira (2008, p.65), sob o sugestivo
título “Cidade das Lágrimas”, parodiando o nome do novo bairro e caracterizando-o
como excludente e segregador nesse primeiro ciclo de reformas urbanas:
O papel dos impressos, ou dos intelectuais através dessa imprensa nesse período,
foi relevante para a difusão dos novos modelos culturais do mundo: o intelectual era o
cosmopolita, circulando entre os lugares e as ideias novas, funcionando como um filtro
que capta as sensações e as retransmitem em seus escritos, formando (ou tentando
formar) uma opinião coletiva (TOURAINE, 1995).
Henrique Castriciano também colaborou para que nossos olhos pudessem ver os
natalenses nesta Natal figurada que se apresentava pelo discurso de Januario Cicco ou
dos jornais do período. O papel de Castriciano nessa configuração é este indicado por
Touraine: difusor do ideal moderno de sociedade do mundo para Natal. Sua crítica dos
costumes da cidade traça uma radiografia do modelo cultural de Natal no fim do século
XIX, destacando as características culturais dos natalenses.
Sob o pseudônimo de José Braz, Castriciano descreve Natal a partir do olhar de
um viajante imaginário. Na metáfora em que ele elabora, um viajante, ao chegar à barra
do rio Potengi, ver uma paisagem com dunas à distância, branqueando o horizonte com
o mangue emoldurando as laterais do rio. A partir do perfil dos edifícios distanciados de
si, ele constrói a visão de uma aldeia pitoresca, cheia de graça e movimento.
Mas, ao aportar na cidade, a imagem apreendida por este viajante imaginário se
desfaz. Andando pelas ruas encontrara armazéns antigos de aspecto sinistro e insalubre;
habitantes sonolentos, mal trajados, de aspecto doentio de quem “não tem dinheiro para
comprar tônicos”; senhoras recolhidas às casas sem poder emprestar à cidade a beleza
dos vestidos claros e de coloridos para-sóis seguros por delicadas mãos femininas. Esse
passeio pelas ruas da cidade apresentava ao viajante um
85
Povo sem comércio, sem arte, sem literatura e, por conseguinte, sem
intuição clara da vida moderna, a nossa existência parece a de um
corpo sem cabeça, sem capacidades volitivas, sem órgãos de
sentimento, sem vontade (BRAZ, 1903).
Para este intelectual, a falta do gênero feminino no ambiente público, seus leques,
risos maliciosos e perfumes, candura alada e delicadeza inconsciente resulta na falta de
estética no meio natalense e na aversão às artes e normas de socialização. E sentencia:
“tais são os nossos costumes de povo que se presume civilizado”. O tom irônico dado
ao texto segreda em si a crença de que na mudança de mentalidade sobre a inserção
social da mulher estaria o elemento civilizador mais importante para a modernidade que
se almejava. Ao mesmo tempo em que busca esta modernidade, envida esforços no
sentido de fazer espelho aos seus leitores sobre como devem ser tais costumes
modernos.
O período entre a metade do século XIX até o início do século XX caracterizou-se
por mudanças econômicas, culturais e políticas engendradas pelo discurso da civilização
19
Nevrose significava
86
20
Seu sistema filosófico é publicado em 1822 na esteira de seu primeiro opúsculo Prospectos dos
trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade. Aproximava-se, portanto, dos anseios
daqueles que estavam pretendendo reorganizar a sociedade brasileira no final do século XIX.
88
Este espírito da civilização necessitava ser iluminado por leis específicas. E estas
leis precisavam estar ao alcance de todos para que a luz atingisse tanto aqueles que por
ela esperavam – abrindo caminhos – como os que dela fugiam – expulsando aqueles que
fossem contrários à nova ordem, como o Arraial de Canudos21.
Por este motivo, a Constituição do Governo Provisório é veiculada em
exemplares do jornal natalense A República a partir do dia primeiro de junho de 1890
até o dia doze de agosto do mesmo ano. Desta mesma forma são apresentados à
população o Projeto de Constituição do Rio Grande do Norte (A CONSTITUIÇÃO,
1890) e a Constituição Política do Estado do Rio Grande do Norte (1892), entre outros
documentos legais que orientam o Estado de Direito. O jornal se responsabilizava por se
constituir em um ambiente político e educativo que orientava o Estado.
Essa dimensão política e educativa do jornal encontra eco em proposições de
além-mar. O texto de Victor Hugo é publicado no jornal A República, na coluna Artes e
Letras, e indicia o sentido que a imprensa assumia para os seus colaboradores.
Mais uma vez, a luz do conhecimento surge como este farol que orienta o
navegante para a segurança de um futuro promissor. Este texto evidencia elementos
21
Este foi o primeiro grande conflito armado dos soldados republicanos. Com duração de cerca de um
ano, entre 1896 e 1897, levou mais de cinco mil soldados ao interior da Bahia. Tratado como “um antro
de fanatismo e de obsessão moral”, a matéria do jornal A República classificava o sucesso da empreitada
bélica como uma “vitória da República” (VITÓRIA DA REPÚBLICA, 1897).
90
22
Fizemos referência à fala desse deputado no primeiro capítulo desta tese.
101
MODISTA
Hermínia Mendonça oferece seus servcos de modista para filhas e
mães podendo ser procurada na R. 13 de maio n. 30 (MODISTA,
1914, p.4).
construção dessa cidade de fim de século. Aos domingos, as senhoras da mais fina
sociedade natalense, de corpinho e mantilhas com vestidos de caxemira azul seguiam
para o cinema. Em 1898 Nicolau Parente realizou a primeira exibição cinematográfica
do Estado, no interior de um depósito de açúcar à Rua do Comércio (atual Rua Chile),
na Ribeira.
23
Estes dados foram construídos a partir de alguns exemplares do jornal A República do ano de 1906 e do
ano de 1908 a que tivemos acesso e que dispunham das informações de que precisávamos. Alguns dados,
como o valor do ingresso, utilizamos o livro de Fernandes (2007). Utilizamos ainda a tabela de
vencimentos da Diretoria de Instrução Pública do ano de 1909 para criar um parâmetro para o leitor atual
na relação do custo de vida, com o lazer disponível à população e à categoria de professores, objeto de
nossas preocupações neste trabalho.
106
O aprendizado da música era parte da educação das meninas da elite das cidades
durante o século XIX. O fato delas estarem se apresentando em público difere da
concepção de uma educação estética voltada unicamente para o papel de anfitriã no lar
107
doméstico. Por outro lado, demonstrar seus dotes em locais públicos, como soirées ou
jantares, era uma maneira de a menina conseguir amealhar um bom casamento, pela
exposição de seus talentos. Não sabemos aqui qual o caso, mas decerto temos um
indício de que não só para o lar – seu ou de outros – servia a educação musical dessas
duas meninas.
Conviviam com o teatro Carlos Gomes, a casa de diversão Polytheama e o Royal
Cinema. Este último, inaugurado em 1913, foi o primeiro cinema da parte alta da
cidade, funcionando onde hoje se localiza a intersecção da rua Vigário Bartolomeu e da
Ulisses Caldas, no bairro Centro. Nem mesmo o espaço original existe mais desse
cinema que inspirou a valsa homônima do compositor seridoense Tonheca Dantas.
O perfil de espectadores e os preços dos ingressos sugerem que esta tecnologia em
forma de diversão era para poucos natalenses. As classes populares se divertiam
andando pelo corredor da Junqueira Ayres em direção a Rua do Comércio, baldeando
suas passadas pela Praça Augusto Severo, de onde emanava música do coreto da praça.
elas podemos destacar O Grêmio Lítero Natalense, do qual fazia parte Auta de Souza; a
associação Damas da Caridade, presidida por Amélia Barreto; o grupo religioso
católico As Filhas de Maria e a Liga para o Ensino do Rio Grande do Norte (LERN),
organizada por Henrique Castriciano de Souza.
A cidade de Natal tinha uma população de aproximadamente 20.000 habitantes,
em 1914. Viviam entre os bairros de Cidade Alta, Ribeira, Rocas, Passo da Pátria,
Alecrim, Tirol e Petrópolis. Enterravam-se no Cemitério do Alecrim e compravam na
rua do Comércio. Subiam e desciam as ladeiras do Baldo e da Junqueira Ayres.
Economizavam passadas indo do Centro ao Alecrim, Tirol e Petrópolis nos bondes à
tração animal da Empreza Melhoramentos de Natal e da Ferro Carril. Compravam
tecidos na Alfaiataria Brasil ou na Casa Londres. Para crescerem fortes, as mães davam
Ascaridil ou Emulsão Scott às crianças. Para se sentirem melhor, estas mulheres
tomavam Gotas Salvadoras; mas quem salvava mesmo era o médico Januário Cicco,
que cuidava das parturientes no fim do século XIX natalense e anunciava seus préstimos
nas páginas do jornal natalense, A República.
Natal foi se apresentando nesta pesquisa através de recortes temporais e
documentais. Como disse o viajante de Calvino, assim como Olívia ou Tamara, as
cidades não são os seus discursos, mas existe uma clara relação entre o discurso que a
descreve e a representação que temos dela em si. O projeto republicano de sociedade se
espelhava nos modos de fazer cotidianos dessa cidade. Se aqui pudemos vislumbrar as
ações sociais desse projeto republicano, uma dessas ações nos pareceu mais peculiar e
nos convidou a outra reflexão ao término deste capítulo: qual o projeto educacional
escolar da República que reverberava nas ruas da cidade de Natal no fim do século
XIX?
112
Capítulo V
Educação e educação feminina: fim de século, início
de res-publica
Por decreto de oito de fevereiro foi criada nesta Capital uma escola
normal organizada de conformidade com o respectivo regulamento
baseado na mesma dita (NOTICIAS DIVERSAS, 1890).
113
Com poucos recursos para viabilizar o ensino, a solução encontrada foi suprimir
cadeiras de Instrução Primárias e a transformação de algumas em cadeiras mistas. Em
termos econômicos a solução foi eficaz: menos cadeiras, menos recursos. O Decreto n.
15, de 03 de março de 1890, assim estava descrito:
I – Leitura e Escrita;
II – Aritmética Elementar;
III – Geometria Elementar e Desenho Linear;
IV – Lições de Coisas;
V – Noções de Geografia e História, especialmente do Brasil;
VI – Gramática Nacional;
VII – Educação Moral e Cívica;
VIII – Elementos da Música;
IX – Ginástica;
X – Trabalhos Manuais, compreendendo os trabalhos de agulha
para o sexo feminino (RIO GRANDE DO NORTE, 1895).
Convidam, pois seus cidadãos, que não souberem ler, nem escrever e
que, pelas suas ocupações diárias não possam cursar as aulas diurnas,
a comparecerem diariamente das 7 às 9 horas no edifício 8 à R.
senador João Alfredo, em Macayba (A REPÚBLICA, 1890, p.2).
Este Artigo traz duas importantes considerações. A primeira era o cuidado que o
legislativo educacional tinha em observar (e talvez absorver) modelos pedagógicos de
outros espaços sociais. Um aspecto relevante para uma sociedade que se queria
civilizada pela educação e que esta educação fosse ministrada em instituições
específicas, como a escola. O professor premiado não iria apenas observar progressos de
ensino em outras paragens, mas relataria – conforme decretado – estes progressos
quando de seu retorno de tais viagens. Era mais que um prêmio: era um instrumento
formativo para o professor (ou professora) e para o movimento educacional da cidade.
Um movimento de renovação educacional que se organizava em torno das
expectativas do governo republicano e de intelectuais como Pestalozzi e Fröbel. E esta é
nossa segunda observação: o referido Decreto erguia estes pensadores da educação
escolar como símbolo de professores “notáveis e célebres”, para usar as palavras do
texto do Artigo 43. Percebe-se, por este aspecto, que o modelo educacional proposto
pelos pensadores se estabelecia nessa configuração como um paradigma válido para a
educação moderna que se queria para o Rio Grande do Norte. Ao lado de Maria
Montessori, Herbart e Dewey formava um quadro teórico que os brasileiros e os norte-
rio-grandenses adotaram nos seus modos de fazer educação escolar, atribuindo a esta o
signo de civilidade e modernidade. Palavras como liberdade, experiência, amor e
pragmatismo forjaram modelos teóricos que atravessaram todo o século XIX e serviram
de base para o pensamento educacional nos primeiros anos do século XX no mundo e
no Brasil.
No cruzamento entre a educação da humanidade e o governo iluminado do
pensamento setecentista e a visão orgânica de sociedade, bem como o papel do
sentimento e da espiritualidade na formação do homem do romantismo alemão, as
125
idéias de Pestalozzi indiciam uma instrução que valorizasse o curso da natureza, que
integrasse coração, mente e mão e trabalhalhasse a partir de experiências concretas. A
pedagogia oitocentista de Pestalozzi se ancorava nesses princípios para organizar um
modelo pedagógico que priorizasse as necessidades do povo e os objetivos de uma
Nação. Harmonizando autoridade e liberdade, o ensino mútuo e o método intuitivo,
Pestalozzi configurava a escola e a família como os dois maiores agentes educacionais
da sociedade, capaz de formar, ao mesmo tempo, o homem e o cidadão.
Dessa forma, Pestalozzi resolve o dilema posto por Rousseau sobre qual deveria
ser a preocupação do educador: ao mesmo tempo em que opta, no Contrato Social
(ROUSSEAU, 1997) por formar o cidadão, este filósofo se dedica a fazer do seu
discípulo-personagem um homem em Emílio ou da educação (ROUSSEAU, 1995).
Pestalozzi, ao que parece, compartilha esta formação em duas instituições educativas
que deveriam ter diante de si o mesmo projeto social. A família e a escola seriam as
responsáveis por formar, então, este homem-cidadão. A relevância dada a educação
doméstica será enfatizada em sua obra Como Gertrude instrui seus filhos (CAMBI,
1999). Nesta obra, não apenas enfoca a importância da educação doméstica, na relação
com a educação escolar, como ressalta o cuidado materno e a atividade feminina nesse
mérito.
A escola seria, portanto, este prolongamento do lar materno e as crianças
pequenas seriam cuidadas objetivando seu desenvolvimento natural. Fröbel traduziu isto
em uma escola específica – os jardins de infância – que antecederiam a escola de
primeiras letras. Dentro desse modelo teórico, as crianças aparecem como plantinhas a
serem cuidadas por suas professoras para florescerem belas e sadias de corpo e de
espírito. Esta perspectiva pode ser percebida já na Didática Magna na qual Coménio
(1985) traz a figura do professor como o sol que ilumina a planta (o aluno) para que ela
cresça frondosa, de raízes profundas e com um tronco seguro e forte.
A partir das idéias de Rousseau e Pestalozzi, Fröbel traduz a pedagogia romântica
em uma didática específica para crianças. A organização dos jardins-de-infância e a
concepção da necessidade de uma formação pedagógica para professores e pais são os
marcos dessa teoria. A atividade lúdico-estética é central onde a brincadeira e o jogo
constituirão o foco principal no trabalho com as crianças. Pela primeira vez o brincar
infantil será percebido como elemento de formação no universo escolar.
É perceptível que, no curso do século XIX, as teorias pedagógicas assumem um
caráter mais científico acompanhando as teorias sociológicas e as novas ciências como
126
26
Ao lado de Montessori, um destaque para Decroly, que foi um dos educadores que traduziu com mais
efetividade o ideário de Férrière (CAMBI, 1999).
127
O ensino intuitivo estava inserido na Reforma Leôncio de Carvalho, ainda sob o Governo
de D. Pedro II, em 1879, como Noções de Coisas. Esta Reforma ensejou os Pareceres de Rui
Barbosa em 1882, particularmente o Parecer do ensino primário que já antecipa a crítica
explicitada no Lições de coisas sobre o ensino primário constituir-se de uma educação baseada
na leitura e repetição formal do livro sem que o aluno pudesse sentir “mais vivo apetite da
realidade” (BARBOSA, 1950, p.10).
As Reformas Republicanas mantiveram as marcas desse ideário. No Rio Grande do
Norte a Reforma de 1892 não deixava clara a orientação pedagógica a ser seguida; deveria estar
em conformidade com os princípios da Diretoria da Instrução Pública. Esta disposição é
mantida na Reforma de 1896, deixando-nos com uma lacuna na percepção das marcas teóricas
que a legislação propunha. A Reforma de 1892 tinha como Diretor de Instrução Pública,
Antonio José de Melo e Souza27; a de 1896 tinha como Diretor Manoel Dantas28. Talvez um
27
Antônio José de Melo e Souza nasceu em 1867, na Vila Imperial de Papari, atual município de Nísia
Floresta-RN. Foi Diretor-Geral de Instrução Pública (1892), Deputado Estadual (1892-1894), Procurador
da República (1895), Secretário de Governo (1900), Procurador Geral do Estado (1901) e foi eleito
Governador duas vezes, entre 1907 e 1908 e entre 1920 e 1924. Colaborava no jornal A República
utilizando também pseudônimos (Lulu Capeta, Francisco Macambira) e escreveu dois romances sob o
pseudônimo de Polycarpo Feitosa: Flor do Sertão, em 1928 e Gizinha, em 1930 (DIAS, 2003).
28
Manoel Gomes de Medeiros Dantas viveu entre 1867 e 1924. Foi Diretor-Geral de Instrução Pública do
Rio Grande do Norte duas vezes (1897-1905 e 1911-1924), além de Deputado Estadual (1907-1909) e
Procurador Geral do Estado (1908- 1910). Era colaborador em vários jornais do Estado, entre eles a
128
estudo ulterior sobre a vida desses indivíduos pudesse trazer à História da Educação do Rio
Grande do Norte informações que permitissem erigir o ideário pedagógico real do período.
Mas se a legislação não deixa claro, os jornais fornecem alguns indícios. Estes
colaboravam para a difusão e, talvez, a formação dos professores do Estado das novas
perspectivas educacionais. Uma coluna, no jornal A República, intitulada Pedagogia trazia os
princípios do ensino intuitivo em guias de orientação para a educação dos pequenos.
A primeira delas foi sobre Lições de Coisas, que aparecia como parte do programa
das escolas primárias. Trazia seu objetivo neste segmento de ensino, os tipos de
atividades a serem desenvolvidas, os materiais que poderiam ser utilizados e também os
desdobramentos do ensino, como “o ensino moral que deve ser como o fruto necessário
das lições de coisas”.
LIÇÕES DE COISAS
A expressão lições de coisas é genérica e vaga, mas conforme o uso a
tem recebido, designa uma das partes mais importantes do programa
das escolas primárias: lições orais feitas pelo professor ou professora
sobre objetos no meio dos quais vivem os meninos, sobre objetos de
que eles se servem e sobre fatos habituais da vida cotidiana. Por isso
que nos meninos a atenção do espírito tem a necessidade de ser
esclarecida e sustentada pela dos olhos, o mestre deve procurar fazer-
lhe ver, quer pela apresentação real quer por imagem ou figuras, os
objetos de que lhes fala, ou pelo menos os materiais que entram na
composição desses objetos. As lições de coisas têm por fim formar os
sentidos do menino fortificá-los, desenvolvê-los fisicamente, regulá-
los, e, pelo dizer assim, fazer-lhe a educação por exercícios metódicos
(INSTRUÇÃO PÚBLICA, 1895, p.2).
Esta coluna é revitalizada em 1911 por Nestor Lima, Diretor da Escola Normal
ainda com o mesmo objetivo de dez anos passados de orientar os professores do Estado
com modelos teóricos atualizados. E mais uma vez o ensino intuitivo, ao lado da Escola
República, no qual também utilizava o pseudônimo Braz Contente (CARDOSO, 2000). Encontramos nos
jornais pesquisados várias traduções suas de romances da literatura universal que traziam a sua assinatura
e se apresentavam sob a forma de folhetim, tais como Quo Vadis, Coração e Timom.
129
O sentido pragmático que esses modelos teóricos traziam era voltado a uma
educação escolar mais apropriada ao caráter moderno de individuo e sociedade. Os
relatos de Castriciano, Secretário Administrativo (1900-1910) e Procurador Geral do
Estado (1908-1914), deixam perceber o sentido sócio-cultural que o modelo
educacional atraía.
130
criação de escolas de meninas nas cidades e vilas mais populosas que julgassem
necessário este estabelecimento (LIMA, 1927, p. 7-9).
Estabeleceu os critérios trabalhistas para professores e mestras29,
profissionalizando, em certa medida, o fazer docente. Até então este fazer pedagógico
estava submetido a uma ordem religiosa – a Companhia de Jesus, entre 1549 e 1759 –
ou sujeito a volubilidade de ações políticas e econômicas, já que Mestres Régios eram
pagos através de um subsídio cuja cobrança não era eficaz em todos os lugares (2000).
Institucionalizou os conteúdos para meninos e meninas estatizando a educação
ofertada e criando um locus de trabalho feminino antes inexistente
29
A Lei-Geral trazia a diferença de gênero expressa nas categorias professores, para se referir aos
docentes masculinos e mestras, para se referir às mulheres professoras.
133
Norte dez femininas e oito mistas. Conviviam estas com trinta escolas masculinas de
primeiras letras em quatorze cidades do Estado (ARAÚJO, 1982). Este aumento na
educação escolar se ancorava em paradigmas conceituais que atribuíam à escolarização
o desenvolvimento pleno dos cidadãos e, consequentemente, das cidades.
A discussão sobre melhoria da educação, expansão das escolas e melhoria das
condições intelectuais dos professores encontrava respaldo nas discussões sociológicas
sobre nossa etnia ou a origem desta. Em que medida esta origem afetava os modos de
ser e de fazer do povo brasileiro foi analisada por muitos intelectuais brasileiros, como
Manoel Bomfim (2005) ou Silvio Romero (2001). Ao lado deles Euclides da Cunha
(2003), depois de analisar os principais elementos raciais do povo brasileiro, conclui
que,
30
Assumimos aqui o termo raça por ser este aquele que comumente encontramos nos escritos dos
intelectuais da época, Ainda que tenhamos clareza de que este não consegue abarcar a dimensão que etnia
encontra nas discussões posteriores.
135
Veríssimo (1889, p.35) atribuía essa responsabilidade a etnia negra – “uma raça
inferior”, segundo ele – mas acreditava que esta característica biológica poderia ser
suplantada pela educação, meio indispensável à civilização necessária ao progresso
deste povo. Antes e depois dele, muitos fizeram coro a essa crença. Imputaram a uma ou
outra etnia a responsabilidade pelo atraso e acreditando na promoção da educação
escolar e doméstica como uma possibilidade de reverter o plano natural a que estávamos
sujeitos. Veríssimo também era parte destes intelectuais.
Talvez por que lhe fizesse mal aos nervos o ruído do lápis anotador,
talvez por que lhe magoasse a vista o grosso vestuário da jovem, o
certo é que a senhora brasileira ergueu-se arrimada ao braço do
marido, de quem consertou o laço da gravata, e murmurou fazendo
beicinho. Que gente! Ele muito superior, aquiesceu em concordar que
aquele povo era realmente atrasado, com mulheres que andavam mal
vestidas, pesadamente, como se fossem pessoas de comércio –
acrescentou sibilante (CASTRICIANO, 1911, p.8).
A comparação serve de mote para uma discussão sobre a educação feminina para
o Rio Grande do Norte capitaneada pela Liga para o Ensino do Rio Grande do Norte
(LERN). O objetivo desta Liga, fundada em 1911, era prover as cidades do Estado de
escolas domésticas, nos moldes suíços, para as camadas populares da população
(RODRIGUES, 2007). O projeto percebia ainda as nuanças do país e do Estado a que se
destinava e as mulheres que buscava atender.
137
O projeto iniciado três anos antes com a fundação da Liga vinha na esteira de
outros projetos educacionais de reformas e mudanças estruturais da educação natalense.
Uma necessidade do próprio Regime Republicano.
funcionar de forma efetiva e sem interrupções até tornar-se Magistério por força de Lei
em 197131.
31
A Lei 5.692/71 modifica a nomenclatura Normal para Magistério; ao mesmo tempo em que extingue
com a nomenclatura, extingue também as representações e os sentidos que carregavam as normalistas e
coloca em seu lugar as professorandas, criando novos sentidos e novas representações.
142
Capítulo VI
Marcas de um tempo, imagens de mulheres em Natal
32
O Ser no sendo é este humano (ou o Ser-aí heideggeriano) configurado em um lugar (ou o estar-aí) no
seu fazer cotidiano. Uma realidade movente e nunca totalizada.
145
(01). Estes dados nos deram alguns elementos para refletir e dimensionar esta
investigação.
Além da diversidade de profissões masculinas em relação com as femininas, é
relevante notar os índices mais altos em um e outro gênero. Para os homens, o
empregado público e o militar são os mais mencionados; para as mulheres, são a
costureira e a criada. Tanto os primeiros diziam de um trabalho público, como os
segundos de um trabalho privado. Nesses dados podemos ver as mulheres nas relações
com o outro gênero exatamente onde a configuração as colocava: no ambiente
doméstico. Mesmo quando trabalhava “fora”, como criada, ou “para fora”, como
costureira, seu trabalho ainda era de fórum privado.
Em um recenseamento parcial, de seis ruas da Ribeira publicadas no jornal A
República nos dias quinze e vinte de janeiro e nove de fevereiro de 1897, podemos vê-
las pela cidade, ainda, como costureiras (346), rendeiras (98), lavadeiras (97),
engomadeiras (82), cozinheiras (29), tecedeiras (04), bordadeiras (02), modistas (02),
parteiras (02); na Cidade Alta, como costureiras (24), engomadeiras (19), cozinheiras
(08), modistas (02), professora (01), rendeira (01) e lavadeira (01).
Um dado que nos chamou a atenção foi a profissão de professora. Sabemos pelos
anúncios dos jornais, pelos resultados de exames ou pelas listas de professores públicos
que existia um contingente maior de mulheres professoras. No entanto, o recenseamento
traz uma única menção a esta profissão escrita no gênero feminino, na rua Senador José
Bonifácio, atual rua Câmara Cascudo. As outras ruas recenseadas tampouco trazem
maiores informações sobre esse quantitativo nos deixando à deriva desse conhecimento
no recorte analisado. Segundo Lima (1927), entre 1900 eram em número de três as
professoras públicas da cidade. O mesmo quadro é trazido por ele relativo a 1907.
Somente a partir da década de 1920 o quantitativo de escolas públicas e de professoras
aumentaria significativamente: em 1927 são 14 professoras ministrando aulas em
Grupos Escolares, Escolas Isolada, Rudimentar e Noturna para Adultos.
As mulheres circulavam em vários espaços públicos deixando suas imagens
impregnadas das marcas de um tempo. Em 08 de maio de 1890 o jornal A República
descreveu um Concerto realizado na Intendência Municipal de Natal. O auditório era o
mais seleto: “elegantes senhoras, o cidadão Governador e os altos funcionários de
administração, homens de Letras e homens de fortuna”. Durante uma “boa meia hora”
as damas comunicavam às outras mulheres o que haviam achado da apresentação,
enquanto os cavalheiros faziam o mesmo entre si (CONCERTO, 1898, p.1). Homens e
147
Este cenário é captado por Júlia Lopes de Almeida33 em seus romances, como A falência
(ALMEIDA, 2003) ou A Silveirinha (ALMEIDA, 1997). A Silveirinha, protagonista do
romance homônimo de Almeida, era do tipo esguia, de quadris chatos, possuía um semblante
misterioso que convidava a indagar sobre uma personalidade, que trazia, ao mesmo tempo, a
33
Júlia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1862. Publicou sua primeira crônica no Gazeta de
Campinas aos 21 anos. Foi colaboradora em diversos jornais do país, incluindo O País. Sua obra inclui
contos, crônicas, romances e textos teatrais. Faleceu em 1934, aos setenta e dois anos, cinqüenta e três
deles dedicado à escritura (ALMEIDA, 2007).
148
O seu traje de seda crua com bordaduras a torçal, seguro no peito por
um pequeno dragão de esmeraldas e diamantes, recendia a Paris;
assim como o chapéu, de um modelo novo e ousado de que irrompia,
em desesperado alvoroço, um feixe riquíssimo de penas cor de cobre
novo (ALMEIDA, 1997, p.75).
Neste livro os valores sociais da escritora ganham voz e corpo através de seus
personagens. A exemplo de outros intelectuais do período, como Olavo Bilac ou
Manoel Bonfim, Júlia Lopes de Almeida também estava engajada na consolidação dos
ideais republicanos e via a desarmonia familiar resultante da pouca educação ofertada às
mulheres e ao seu limitado mundo social, restrito ao ambiente doméstico e religioso.
Neste sentido, esta obra adquiria um caráter formativo na medida em que difundia
valores caros ao sistema que utilizou, como nenhum outro, o simbolismo e o conteúdo
ideológico para se afirmar.
Os positivistas foram os mais beligerantes e se envolveram em uma batalha
simbólica na tentativa de tornar o regime político aceito e amado por toda a população.
Suas armas foram os símbolos cívicos e a escrita (CARVALHO, 2001). Como símbolos
tinham a bandeira com sua faixa comandando ordem e progresso; a alegoria feminina
mariana em contraponto à imagem masculina do monarca, a instauração dos heróis
republicanos como Tiradentes e André de Albuquerque; o poderio armado no episódio
contra o arraial de Canudos. E todos esses símbolos assumiam a forma de discursos
patrióticos nas páginas escritas dos jornais pelo Brasil. Mas também se organizavam em
torno de palestras entre amigos, admoestações de professoras ou conselhos de mães nas
páginas ficcionais dos romances e peças teatrais do período, a exemplo de A Capital
Federal (2001) de Arthur Azevedo34.
Nossas análises se encaminharam a partir de um “objeto representado, nos textos
disponíveis” evocando “imagens de coisas que indicam metáforas de vida com a força
que o próprio texto possui” (MORAIS, 1996, p. 09). Tínhamos, ao mesmo tempo, o
homem e a mulher republicanos ao lado de seus personagens masculinos e femininos do
final do século XIX.
34
Arthur Azevedo nasceu em São Luís, mas passou a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro para onde
se mudou em 1873. Jornalista, contista, teatrólogo, tinha seus trabalhos publicados em diversos jornais do
país, incluindo o natalense A República. A Capital Federal, título de uma de suas peças teatrais, era o
cenário preferido do escritor. Sua obra registra o cotidiano e evolução da capital do país.
150
Jornal A República
(29 ago. 1908)
A escritora carioca aparecia não apenas através de sua arte ficcional, mas como
uma mulher escritora, colaboradora de reconhecimento nacional em jornais como O
Paiz, ou em revistas femininas, como A Mensageira.
151
Mas, salienta Morais (1996, p. 22), esses trabalhos eram realizados em torno de
uma coletividade feminina, “leitoras que, provavelmente se reuniam, discutiam, elegiam
suas representantes, tomavam posições”. E esta tomada de posição ao mesmo tempo em
que anunciava suas vozes ao debate público, espelhava e era espelhada por outras
mulheres. Estes nichos literários refletiam uma sociedade “em busca de letramento; se
percebe que a modernização dessa cidade passava também pela valorização da escrita”
(p.33). Tanto na cidade do Rio de Janeiro configurada por Morais, como nesta Natal que
ora apresentamos, e em todas as capitais brasileiras do fim do século XIX.
Este esforço intelectual, literário, ideológico, educativo traduzia-se em uma
diversidade de jornais e revistas femininos, alguns deles manuscritos, como A
esperança (GOMES, 1999) ou O Sonho (1908). Este último circulou na cidade de
Ceará-Mirim, a 30 km de Natal, no final do século XIX36. Fundado e organizado pela
professora Adelle Sobral de Oliveira anunciava-se como “periódico literário e
noticioso” (O SONHO, 1908, p.1). Os textos dispostos nos exemplares analisados entre
1908 e 1909 se organizavam em torno de poesias, notícias da cidade, cartas de leitoras e
respostas de suas redatoras, prosas poéticas e contos. Traduziam o esforço de uma
35
Áurea Pires nasceu em 1876 no Rio de Janeiro e também figurava como colaboradora de outros
periódicos femininos
36
Estamos considerando aqui o final do século XIX como sendo até o ano de 1914, conforme explicitado
no primeiro capítulo deste trabalho.
152
população feminina que se impunha no mundo das letras com seus limites e
possibilidades.
Embora sejam relativas as possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, as
táticas obedecem à lei do lugar, ou ainda à ordem imposta pelas estratégias
institucionais. Certeau (2002) define estratégia como a manipulação “das relações de
forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder”
pode ser isolado. As táticas “são “maneiras de fazer”, estilos de ação que intervêm num
campo que os regula e cria um segundo nível embricado no primeiro. Não tem por lugar
senão o do outro. “Uma ação calculada”, a tática é “a arte do fraco” que se desenvolve
no terreno que lhe é imposto. “Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende. O que ela ganha
não se conserva. Este não-lugar lhe permite mobilidade e também a capacidade de
assimilar e se adaptar rapidamente às mudanças ocorridas no terreno cultural. Os jornais
femininos manuscritos se inseriam no veio de um sistema que permitia sem estruturar,
que não proibia, mas não estimulava. Encontrar mecanismos táticos entre um universo
masculino já historicamente consolidado consistia em um processo complexo em que as
conquistas femininas vão ampliando seus espaços de ação e de voz. Como a primeira
revista feminina impressa de Natal.
A revista Via-láctea figura em Carvalho (2004) como o primeiro periódico
dirigido às moças natalenses. Diferenciava-se de seus antecessores manuscritos como O
Sonho e Esperança (GOMES, 1999) por ser impresso, como se faz notar ao rodapé das
capas na edição fac-similar publicada por Duarte e Macedo (2003).
Este periódico cumpria em Natal o que outros faziam em outras cidades e capitais
brasileiras: ampliava a oferta de leitura contribuindo para a constituição da leitora e da
escritora no fim do século XIX. Diz Fanette, um dos pseudônimos de Maria Carolina37
Wanderley, em artigo intitulado A primeira noite da Via-lactea, publicado
originalmente em novembro de 1914.
37
Maria Carolina Wanderley foi a primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Norte-rio-
grandense de Letras. Nasceu em Assu-RN em 1891 e faleceu em Natal em 1975. Concluiu a Escola
Normal em 1911 e foi professora no Grupo Escolar Frei Miguelinho de 1913 até sua aposentadoria.
Colaborou nos jornais A República e A cigarra. Em 1919 lançou o livro.
153
38
Ver página 112.
154
39
Passeio ou caminhada
40
Expressão idiomática que significa “mais informado” ou “acrescido de dados ou informações”
155
A revista trazia além das crônicas, poesias como o soneto de abertura do número
três deste jornal feminino, de dezembro de 1914: o poema Natal, de autoria de Auta de
Souza41. Esta poetisa, falecida no ano de 1901, foi colaboradora diária da coluna Artes e
Letras do jornal A República.
Auta de Sousa tinha 25 anos quando de seu falecimento e na sua curta existência
teve seu trabalho publicado em vários periódicos, como A Mensageira, de São Paulo
(TELLES, 1999), Oásis, Revista do Rio Grande Norte e A Tribuna do Rio Grande do
41
Auta Henriqueta de Souza nasceu em Macaíba-RN em 1876. Colaborou na revista Oásis em 1894 e a
partir de 1897 passou a colaborar com a revista carioca A República e com A Tribuna, Órgão do
Congresso Literário. Em 1897 Auta reuniu os versos feitos desde 1893 até aquela data numa coletânea
que intitulou Dhálias, mas não publicou. O único livro publicado em vida, Horto, em 1901, foi prefaciado
por Olavo Bilac.
156
Norte (CARDOSO, 1999). Seu prestígio nacional era evidenciado nas páginas do A
República, tanto noticiando o lugar que ela ocupava nos jornais do Brasil como
transcrevendo notícias sobre ela fora do Estado, a exemplo do o artigo sobre ela no A
Província do Pará ou o poema dela publicado no Paiz, do Rio de Janeiro.
Era uma publicação anual, com uma diversidade de textos, como receitas,
crônicas e poesias. Neste almanaque encontramos o poema de Auta de Souza, A minha
avó
Era comum vê-la, através dos seus poemas, presenteando mulheres em linhas
afetuosas com suas criações artísticas, a exemplo de Antônia Araújo (1896), Carlota
Valença (1897) e Inah (1898). Sem o saber ou sem ter esta intenção colocava no mapa
histórico não apenas a si, mas essas outras coadjuvantes da história que com ela
compartilharam tempos e espaços. Ao mesmo tempo em que este indício sugere um
grupo bem significativo de afetos, demonstra também um conjunto de poetas e poetisas
com os quais Auta de Sousa se relacionava. Intitulado Cantai, um poema é ofertado ao
“mavioso rouxinol”, “gentil e inspirada poetisa” a pernambucana Edwiges de Sá Pereira
Não foi possível saber, pelo acesso lacunar aos exemplares dos jornais, quando
finalizou esta colaboração. Mas encontramos poesias suas em jornais, como Esther em
1901 e Chorando em 1902.
Outras mulheres colaboravam numa aparição meteórica deixando um rastro tênue
apenas a nos indicar a presença de mulheres escritoras naquele instante de tempo. Maria
Amália (1898), Elva Serrão (1911), Maria Mendes, Leonete Oliveira, Carlinda
Fagundes (1911), Lucília Reis (1914) figuram como algumas dessas aparições.
As atividades dessas mulheres fornecem indícios de quais foram seus papéis no
período. Convidam-nos a uma reflexão mais profunda ao ler suas ações, como seus
textos na busca dessas representações. A beneficência é parte da vida de muitas delas
seja em ações isoladas como a de Guiomar de Vasconcellos (A REPÚBLICA, 1911)
arrecadando cupons da Empreza Melhoramentos de Natal, para subsidiar o Hospital da
Caridade, ao lado de meninas como Isaura, Marieta (A REPÚBLICA, 1911) ou Maria
Orione (A REPÚBLICA, 1911); e a de Júlia, quem sabe, estabelecendo o viés da
concorrência ao buscar os cupons da Ferro Carril.
Por vezes esta mulher beneficente aparecia em atividades coletivas como a
Associação das Damas de Caridade Chá das Damas, em 17 de agosto de 1908.
Talvez essas senhoras e senhoritas fossem filhas, irmãs e esposas dos nomes
citados pelo jornalista. Observamos na análise do texto como a presença feminina
permeia toda escrita, do título – Damas da Caridade – à conclusão do artigo, mas
apenas se anunciando como uma sombra, uma sutil presença em algo que,
aparentemente, é seu espaço de excelência. O relatório é apresentado pelo padre Moysés
Ferreira e a palestra pelo professor Raphael Garcia, em nome da Sociedade de S.
Vicente de Paula, beneficiária do esforço daquelas damas. Esta forma de representação
da mulher no espaço público estava relacionada com o ideal feminino de filha e esposa
posto em Natal e em todo o Brasil.
Podemos destacar o discurso sobre os modos de apresentação da mulher no
espaço público a partir de um artigo do Revista Illustrada. Em um texto de 1886 sobre a
ampliação dos espaços públicos profissionais femininos a revista retrata a ideologia da
época. Sob o título O eterno feminino e ao lado de palavras e expressões como “sexo
gentil”, “melhor metade do gênero humano” passa a representação do que não é
apropriado à mulher brasileira “que a esfera de ação do sexo gentil deve ser ampliada,
mas também nos parece que o círculo não pode ter um grande raio” (BUITONI, 1981,
p.16).
Encontramos notícias da associação nos anos subsequentes nos exemplares a que
tivemos acesso do jornal pesquisado. Em 18 de agosto de 1911 A República noticia o
quinto aniversário desta associação sob “os auspícios da Exma. Sra. Ignez Barreto, sua
digníssima presidente”. Em 22 de agosto o jornal noticiava a reunião com a celebração
do bispo diocesano D. Joaquim de Almeida. Em 10 de novembro daquele mesmo ano “a
ilustre senhora” aparece novamente neste jornal encimando a notícia de sua morte. Mas
as benesses dessa associação continuam e em 1914 elas estão lá promovendo uma festa
beneficente apelidada de Chá Five O’clock. O evento aconteceu no terrasse do monte
160
Juízas Protetoras
Exmas. esposas do desembargador Joaquim Ferreira Chaves, dos
coronéis João Tinôco, Aureliano Medeiros e Feliciano Lyra;
Juízas por Sorte
Exmas. esposas dos coronéis Avelino Freire, Francisco Casendo,
Jorge Barreto, Felinto Manso, Francisco de Paula Moreira, João Elísio
Freire e Antônio Gurgel (SOLICITADAS, p.2).
E a lista continua indicando os Escrivães por Sorte – ainda que todas sejam mulheres ou
pelo menos esposas destes homens, o jornal não publica a palavra no gênero feminino, escrivãs
–, os Noiteiros do bairro do Alecrim, dos militares e dos encarregados do comércio. Temos uma
referência nominal feminina na noite designada aos solteiros – Carmem Wanderley, Stella
161
Wanderley e Esther Pinto – e nos Escrivães por Devoção – Celina Fagundes, Rachel Pessoa de
Mello e Maria Orione.
As mulheres ocupam a função de organizadoras, mas os homens aparecem nominalmente.
Este aspecto cultural diz para nós das relações entre homens e mulheres nesse período. Com a
ampliação do feminino em suas bases conceituais e estruturais a relação público e privado fica
mais estreita, ainda que continuem esposas, filhas, irmãs são esposas, filhas, irmãs exercendo
seus papéis no espaço público.
As mulheres se movimentavam na sociedade natalense em outros papéis feminnos; alguns
bem diferentes das dimensões adotadas pela elite da cidade. Em outros espaços de Natal – o
teatro, o mercado, o baldo, o Passo da Pátria – podemos vê-las representadas a partir de outros
modos de ser e de fazer.
O Ginásio Dramático tem ensaiado para sua 2ª recita que terá lugar no
sábado próximo no Teatro Carlos Gomes, a peça em 3 atos intitulada
“O Sacrifício”, produção do escritor mineiro dr. Carlos Goés. Tomará
parte nesse espetáculo a aplaudida atriz Honória Reis (VIDA
SOCIAL, 1914a).
Honória Reis, nome artístico de Honória Santos, tinha 60 anos quando dessa
apresentação. Ela é descrita por Cascudo (1999) como uma “espécie matuta de Capitu, com
olhos de ressaca”. Era da Companhia de Teatro de Joaquim Fagundes atuando em sua
companhia como única figura feminina entre 1874 e 1877. Continuou atuando em diversas
companhias teatrais de Natal e foi vendo as palhoças se transformarem em pedra e cal, como o
Teatro Santa Cruz na última década do século XIX. Junto com a Sociedade Dramática, a
Companhia de Teatro de Segundo Wanderley encenou várias peças no Teatro Recreio Familiar.
O teatro aparecia ao lado do cinema e do jornal como aspecto educativo na perspectiva
da cidade educativa aristotélica retomada pela modernidade no que Cambi (1999, p.489)
denominou de “pedagogização da sociedade”. A imprensa divulgava a programação na forma
de anúncios ou editoriais ou mesmo notícias informativas de um observador crítico. Segundo
Othon (2006) a história do Rio Grande do Norte sob os primeiros anos do regime republicano
tornou-se a história do aperfeiçoamento cultural e educativo da população natalense. Em
particular pela ação política e intelectual dos governantes, da sociedade organizada em partidos,
órgãos de imprensa, ligas, associações, mas também de sociedades teatrais e, de modo geral,
pelo empenho de homens e mulheres, entre os quais se colocam atores, atrizes e autores
dramatúrgicos, como Luíz Carlos Lins Wanderley, Stella Wanderley, Isabel Gondim e Henrique
Castriciano.
A partir desse trabalho pedagógico-cultural da imprensa mostrando as atrizes ao lado da
sociedade ou companhia teatral a que estavam ligadas, tanto pudemos saber os modos de fazer
162
dessas mulheres no final do século XIX como tomar conhecimento das companhias teatrais,
circenses e musicais que por aqui passavam ou existiam, assim como dos dramaturgos e textos
conhecidos por esse público.
A imprensa servia como um canal de divulgação, mas também de instigação a um modelo
cultural de civilização que pressupunha nas artes um propulsor para ampliação da inteligência e
do progresso. Destacamos Lucília Silva, da Companhia de Operetas apresentando A Casa do
Diabo, no Teatro Carlos Gomes (VIDA SOCIAL, 03 de abr. de 1914b).
Outros gêneros também contavam com a participação de mulheres por vezes
protagonizando todo o espetáculo como Antoinette Villard, no Polytheama, apresentando
cançonetas como Ave Maria, de Gounot (POLYTHEAMA, 23 de dez. de 1911) ou ao lado de
um coletivo voltado ao entretenimento como Eliza Azevedo da Companhia Eqüestre, cuja
despedida de temporada na cidade lhe valeu cortejo e um embarque festejado.
Sobre Eliza Azevedo, não foi possível saber mais do que nos deu a conhecer o
jornal pesquisado. Estreou seu espetáculo junto com outros integrantes da companhia no
Circo Estrella (CIRCO, 18 de abr. de 1897) e encerrou sua temporada sob o entusiasmo
de torcidas organizadas em partidos: azul e encarnado. Seu sucesso, a despeito dos
outros artistas, pode ser mensurado pela descrição que faz o jornal da festa de despedida
feita em sua homenagem e das homenagens feitas pelo público por ocasião do seu
embarque no navio Yatch, de onde seguiu para a cidade de Macau (ELIZA AZEVEDO,
02 de mai. 1897).
Eliza seguiu para Macau e voltamos nossos olhares por sobre os jornais buscando
encontrar outras mulheres – e seus modos de ser – em outros espaços da cidade. Ao
fazermos isto nos deparamos com Maria Joaquina, sua mãe indigente e Lúcia Rosa.
Encontramo-las no Forte dos Reis Magos, na casa do Alferes Eurico Guilherme e pelas
ruas de Natal alienadas, a compor o mosaico feminino, numa nuança mais escura que o
usual cor-de-rosa atribuído ao belo sexo.
Lúcia Rosa se apresentou a esta pesquisadora como uma demente que vagava
pelas ruas de Natal no ano de 1899 “a quem o infortúnio conjugal sepultara em vida nas
trevas da morte moral” (E. de S., 1899, p.2). Em fevereiro daquele ano foi encontrada
163
Não foi possível perceber que providencias foram tomadas ou mesmo quais queriam esta
mãe. Mas a expressão da justiça ou pelo menos da busca desse Estado de Direito estava
representada na busca pública de mulheres e homens, mães e pais pelas páginas dos jornais
analisados.
Um outro perfil feminino que se destaca, desta vez, pela voz paterna é o caso de uma
garota deflorada. O pai chama a atenção das autoridades de Natal para o crime contra uma
menor de idade na intenção de que algo possa ser feito na capital. A história se passou na
povoação da Telha, em Macaíba.
individuo Domingos Garcia tome para si com relação à moça da Telha, na cidade de
Macaíba.
O defloramento constava como crime no Código Penal dos Estados Unidos do
Brazil de 1890, em seu Art. 267, do Capítulo 1 Da Violência Carnal (BRASIL, 2008),
desde que a cópula fosse com uma mulher virgem, mediante consentimento obtido por
sedução, engano ou fraude. Caso não houvesse cópula, o delito seria considerado
atentado ao pudor, de acordo com o Art. 282, e se fosse sem o consentimento – Art. 269
– seria enquadrado como estupro. O crime de rapto, também neste Título VII era
previsto como crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje
público ao pudor. Previsto no Art. 270 o crime de rapto consistiria em retirar do lar
doméstico a mulher honesta, através da violência ou sedução.
A regulamentação do convívio social e disciplina do comportamento dos cidadãos
buscavam neste amparo legal a legitimação desta nova mentalidade. O Decreto n. 201,
de 1913 criou os Gabinetes Médico-legal e de Assistência Policial e o de Identificação
talvez para facilitar as resoluções dos crimes que atentavam contra a honra das famílias
brasileiras, como são os casos acima descritos.
Ambas as meninas e suas famílias parecem ser de comunidades pobres e
dominadas por um policiamento que ainda não parecia se dar conta de que o Código
Penal existia e precisava ser validado. A sua validação viria com o tempo, como vimos,
com a criação de gabinetes e departamentos específicos.
Ademais, as mulheres pobres sempre precisavam provar que seu comportamento
era de uma mulher honesta – até para se enquadrarem na Lei que poderia lhes assistir. A
vítima era primeiramente julgada socialmente, antes de se admitir o abuso do indiciado.
A honestidade masculina estava ligada ao trabalho, mas a da mulher se ligava
essencialmente ao comportamento moral associado à sua sexualidade (CAULFIELD,
2000).
Na tentativa de se fazer Estado de Direito – dentro da construção do ideário de
Estado-nação associado à modernidade (HOBSBAWN, 2006) e à consolidação da
República (CARVALHO, 2001) os cidadãos entravam na mira das autoridades legais.
De certo modo, estes eram aspectos culturais que passaram a ser incorporados por estes
mesmo cidadãos, a ponto de pedir providências públicas42 e em público, colocando as
42
É bom lembrar que antes da instauração desse Estado de Direito os crimes de honra eram “lavados com
sangue” e quando (ou se) fossem a juízo a honra era usada como atenuante e o indiciado absolvido
mesmo de crime de homicídio. “Esta noção podia ser subvertida pela ideia de que o criminoso estava
166
privado da razão”, pois a traição ou a mancha social eram motivos para privar o indivíduo de sentidos e
inteligência levando-o a lavar com sangue a honra da família (BORELLI, 2008, p.07).
167
identificação da verdade – ainda havia lhe roubado o dinheiro que tinha em casa
enquanto este estava preso. Como se não bastasse,
Tu és Aurinha
Engraçada, mimosa flor bafejada
Pelas brisas matinais
Cheia de graça e ternura
És o encanto, a ventura
Dos teus carinhosos pais (DOMINGUES, 1895, p.3).
Os óbitos dessas mulheres também eram carregados desta áurea gentil e angelical.
Traziam constantemente o lamento pela perda da virtuosa mãe de família, da pranteada
esposa ou da nobilíssima professora ao lado de discursos que evidenciavam o papel
desempenhado pela mulher na cidade, como por exemplo a notícia da morte de Maria
Amélia, esposa do representante do Rio Grande do Norte no Congresso Federal,
Augusto Severo.
O fato de ter falecido no parto – missão sublime do seu sexo – ampliava ainda
mais esta caracterização divina ou este aspecto mitificado que colocou a mulher como
santa mãezinha desde a colônia.
Quando às seis horas da tarde, chegou o galã ela não quis acreditar
que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o
marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e
Sinhazinha dobrou-se a evidencia. Tinha diante de si um homem feio,
marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado a escovinha
e a cara inteiramente raspada...de véspera (AZEVEDO, 1995, p.93).
171
Com voz pausada e clara, Camila pediu que lhe dessem trabalho.
Olharam-na com espanto. – Mamãe quer mesmo fazer alguma coisa?!
– Sim, minha filha...Tudo acabou, devo começar vida nova! – Então
mande chamar as meninas e ensine-as a ler! Exclamou Ruth
(ALMEIDA, 2003, p.354).
172
Aqui a personagem feminina tem filhos, mas não tem mais o marido, como a
personagem de O Galã. O papel a ela atribuído aparece ao leitor a partir de suas
próprias ações no curso da narrativa. O sofrimento, a necessidade e a pobreza não
devem ser impedimentos para que ela dê a seus filhos a educação moral necessária e até
mesmo a educação instrucional que o dinheiro não pode pagar. O despreparo dessas
personagens mulheres ainda trazia uma discussão que permeia toda a obra de Júlia
Almeida: a importância da educação e do trabalho para as mulheres, mães de família.
Não se podia saber quando a existência de seus filhos iria depender exclusivamente
dessa mãe.
Uma situação invertida é evidenciada por Coelho Neto (1908) no conto O Rato
publicado na coluna Para Crianças, do jornal A República. A narrativa gira em torno de
um garoto de nove anos, cuja atitude desenvolvida para as tarefas de casa e da rua lhe
renderam o apelido de Rato, e sua mãe paralítica. Por considerar que o filho ainda é
muito pequeno para trabalhar, a mãe pede ao médico que lhe traga um atestado de sua
enfermidade para que o filho possa pedir auxílio às portas da igreja. Ao chegar em casa
à noite entrega a mãe as poucas moedas que conseguiu e desata num choro, que a mãe
vem a saber depois, causado pelos impropérios que escutou tomando-o como um vadio
e mentiroso. Mas no dia seguinte o garoto consegue trabalho como vendedor de jornal e
conclui que melhor que pedir é trabalhar: ganhara mais e não tinha sido mal tratado.
A atitude do garoto para com a mãe é de desvelo e de um cuidado protetor que
poderíamos qualificar de materno. O fato de antes de sair limpar o aposento em que
moravam, mudar a água das bilhas, deixar ao alcance da mãe a cafeteira e o pão dirigia
o leitor a um garoto exemplar e cuidadoso com aquela que lhe dera a vida.
Esta relação é percebida em vários contos, folhetins, poesias dos impressos
pesquisados. E essa relação mãe-filho é diretamente associada ao seu papel como
educadora moral dos filhos no lar, a exemplo do conto-folhetim Os cavaleiros do luar,
de Ponson du Terrail (28 de ago. 1911, p.4), especificamente o capítulo XL Aviso
materno; no conto O homem, de Olavo Bilac (25 de jul. de 1908, p.3), no romance-
folhetim Coração, de Edmundo Amicis (1911, p.4), ou A escola, de Júlia Almeida
(1908, p.3). Nestes dois últimos, além da relação materno-filial, a educação na forma de
instrução escolar também aparece como possibilidade de melhoria humana e material.
As marcas deixadas por essas mulheres e as imagens recuperadas através de
discursos em jornais antigos nos conduziram a pensar sobre essa representação de
173
Capítulo VII
Outras marcas, outras imagens: mãe-esposa e
professora
Nos tempos atuais e entre nós mesmos se poderia mais de uma que
recebeu a educação prática mais ou menos metódica. E eu explico: as
exigências da vida familiar trazem às vezes com a necessidade de
encontrar solução a um problema econômico úteis experiências. [...]
Estou certa de todas as senhoras brasileiras pensarem comigo sobre a
necessidade da instrução prática e quando algumas ainda jovens
precisam ser admitidas numa escola superior como esta que a nossa
capital possui, outras tem para seu especial um guia em cada
emergência, dessas que todos os dias ocorrem na vida familiar e não
se esquivariam proclamar a utilidade do dito ensino e fazer-lhe a
propaganda, caso a isto fossem convidadas (DUARTE; MACEDO,
2003, p.82).
A jornalista ainda traz uma definição de como ela percebia este ser mãe e este ser
dona de casa salientando que para ser “dona” não bastariam as escolas de “ensino
caseiro”; o fato dessas escolas formarem “verdadeiras donas”não significava dizer que
estas se tornariam por si sós “verdadeiras mães”. Logo a escola de Castriciano
necessitaria de um complemento de uma escola verdadeira, da moral ou do cristianismo.
177
Para ser mãe é preciso muito mais: estudar a ciência materna que
compreende a pedagogia, o estudo da índole humana, para saber
aplicar os calmantes e os cautérios de conformidade com a a
organização moral, isto é, aplicar a dose do carinho e da energia
convenientemente, para que depois, a médica do espírito, que deve ser
a mãe não vá inutilizá-lo. Ela é a buriladora do caráter, deve portanto
sabe incutir o bem fazendo evitar o mal. [...] Ser mãe “é renunciar a
todos os prazeres mundanos, os requintes do luxo e da elegância, é
deixar de aparecer no baile em que o espírito se cansa no gosto das
valsas; é passar as noites no cuidado incessante em sonos curtos e
leves com o pesamento sempre preso à criaturinha” que Deus lhe
confiou. [...] E assim dizendo, provo que o Cristianismo é a única
escola que ensina a mulher a renunciar os prazeres pelo dever, a se
sacrificar pelo amor tornando-a abnegada, virtuosa, sublime, perfeita
esposa e mãe como deve ser (DUARTE; MACEDO, 2003, p. 87).
Esta definição de mãe trazida por Palmyra Wanderley acompanha as imagens que
encontramos de mãe abnegada, como no conto A Partilha (1897), ou na poesia Mãe
(2008), ambos de Coelho Neto:
Nos livros, nos teatros, nos jornais, vemos todos os dias exemplos de
abnegação e de amor de mãe: aqui é uma que se lança sob um
automóvel para salvar o filho em perigo; ali é outra que se lança ao
rio, por imaginar que a sua vida possa tornar-se um óbice à felicidade
do filho; acolá é uma terceira que, numa região deserta, onde não
havia o que comer, é encontrada morta por ter aberto ela própria uma
veia, para ser sugada pelo filho pequenino que chorava de fome
(BARRETO, 1915, p.121).
Lição 32
Fonte: Segundo Livro de Leitura de Felisberto de Carvalho (1934)
Mas a ternura materna não era apenas privilégio das mulheres nos textos
ficcionais que tivemos a oportunidade de analisar. O pai dos protagonistas de Através
do Brasil de Bomfim e Bilac (2000) trazia essa marca; a marca da maternidade bondosa
e abnegada.
180
A escola é uma mãe, meu Henrique. Ela levou de meus braços uma
criança que balbuciava apenas e agora a restitui forte, robusta, boa e
estudiosa. Abençoada seja a escola, e tua não a esquecerás mais. [...]
Far-te-ás homem, viajarás o mundo, verás cidades imensas e
monumentos maravilhosos, e de muitos destes te esquecerás; mas
aquele modesto edifício branco, com aquelas persianas cerradas e
aquele pequeno jardim onde desabrochou a primeira flor de tua
inteligência, vê-lo-ás até o último dia da tua vida (AMICIS, 1949,
p.314).
- Os que dentre vós foram seus alunos, sabem quanto lhes queria bem:
era uma mãe para eles. [...] Ela deixou seus poucos livros aos seus
discípulos: a um, um tinteiro, a outro, um quadrinho, tudo aqui que
possuía; e dois dias antes de morrer disse ao diretor que não deixasse
ir os pequenos ao seu enterro, por que não queria que chorassem. Fez
tanto bem, sofreu tanto, e morreu (AMICIS, 1949, p.302)
43
Conferir página 14 do capítulo De quando a ideia era apenas uma ideia
183
O século XIX é apontado por Lyons (1999) como o século das mulheres e das
crianças na relação com a alfabetização e a leitura nas cidades da Europa. O incremento
na alfabetização feminina também é verificado nas Escolas Normais francesas. De
acordo com os dados trazidos pela autora, na França, as primeiras escolas normais de
professoras só foram fundadas em 1842, mas por volta de 1880 mais de dois milhões de
meninas francesas frequentavam a escola. A expansão das oportunidades de emprego
para as mulheres (por exemplo, como professoras, vendedoras nas lojas e assistentes
nos correios) e a modificação gradual das expectativas das mulheres foram fatores
adicionais no incremento da alfabetização feminina (LYONS, 1999, p.168)
Semelhante ao Brasil, cujas escolas normais começaram a aparecer na década de
1830, a profissão docente se torna a possibilidade de independência e vida pública para
muitas mulheres. A primeira escola é fundada em Niterói em 1835 e onde só eram
aceitas, inicialmente, inscrições masculinas (FREITAS, 2003). Aparentemente
contraditório um projeto de lei da Província de Sergipe, de 1830, indicava o gênero
feminino como o mais adequado a profissão. Se por um lado indicavam preferência às
mulheres para cuidar da educação nas escolas primárias, por outro não admitiam
mulheres nas instituições que deveriam formar estes professores. Talvez a educação
primária não necessitasse de habilidades intelectuais mais do que das morais. Os valores
aprendidos entre a igreja católica e a relação familiar seriam as bases sobre as quais ler,
escrever e contar se assentariam. Suas habilidades, supostamente inatas para o cuidado
infantil, ao lado de características pessoais como honestidade, boa conduta e respeito
aos padrões da época eram suficientes para habilitá-la ao serviço docente. “O ‘retrato’
da professora era socialmente construído em torno da mulher honesta, casada, boa mãe,
laboriosa, fiel e dessexualizada” (FREITAS, 2003, p.29).
As mulheres somente vão ocupar massivamente as Escolas Normais no final do
século XIX depois de instaurada a República. Em Sergipe, uma escola normal feminina
foi criada em 1877. O Curso Normal existia desde 1870 dentro do Atheneu Sergipano,
único estabelecimento público secundário. Em 1874 uma Escola Normal masculina é
criada independente do Atheneu, mas é indiretamente extinta pela Resolução n 1.326 de
1888 que determinava suspensas as aulas que não tivessem frequência mínima de 10
alunos. De acordo com os dados apresentado pela autora, mesmo depois de a Escola
Normal torna-se mista em 1901 não havia matrícula masculina e efetivamente, em suas
análises, ela conclui que somente na década de 1970 ela torna-se mista de fato com os
homens aparecendo para fazer o curso normal noturno. Em Sergipe, normalista era
185
É bom lembrar que se esse modelo é encontrado em verso e prosa nos escritos do
final do século XIX, ou que se referiam a este período, ele se antagonizava diretamente
com um modelo anterior, de cem anos passados, como atesta Badinter (1985). Esta
autora discute o instinto materno como um mito construído a partir de discursos
médicos, filosóficos, econômicos, no final do século XVIII. Ao percorrer a história das
atitudes maternas, este traço biológico vai surgindo como um aspecto cultural
importante à própria preservação e melhoria da espécie.
D. Thereza Christina
A inditosa senhora, cujas exemplares virtudes domésticas constituíram
o melhor e mais sólido amparo da numerosa família, cuja educação e
bem estar sempre cuidou com dedicação e zelo inexcedíveis (A
REPÚBLICA, 1899).
O cuidado com a família não se apresentava como algo que se pudesse fazer de
qualquer modo. Os discursos provocavam a busca por uma formação da mulher de fim
de século como administradora dos aspectos privados no interior do lar natalense. Os
textos jornalísticos indicavam o que se esperava delas e como deveriam buscar a
excelência neste campo.
188
Sofia foi preparada para ser educadora de seus filhos, mas foi se
tornando também um modelo de professora. Baseado em Rousseau
Napoleão Bonaparte criou escolas femininas onde se enfatizava o
papel materno. Em 1842, é aprovada na Franca uma lei que cria cinco
escolas normais para moças inspiradas em Pestalozzi. Este substitui o
preceptor de Rousseau por Gertrudes, uma mãe virtuosa, no papel de
educadora (STRECK, p.55).
Isto significava não tomar partido em lutas eleitorais, pedindo votos, formando
comitês ou mesmo patrocinando candidatos. A preocupação com o êxito de tais
empreendimentos a levaria “a encarar fatos passageiros, como acontecimentos
momentosos, aos quais seria um dever sacrificar o bom tempero do marido, e até os
vagidos desesperados do seu filhinho mais moço”.
O artigo A mulher, publicado no jornal A República de 26 de fevereiro de 1897,
escrito sob o pseudônimo H.S, demonstra esse conteúdo. Seu autor concebe a família
como um santuário reservado à mulher pela natureza.
Sobre tão alto pedestal deixa ela de ser o ente fisicamente fraco para
revelar toda a grandeza de seu espírito e de seu coração no variado
papel que representa e na importância da missão civilizadora para que
foi fadada. [...] A mulher, quer a consideremos na família, quer na
sociedade, exerce uma influência tão real e maravilhosa, que não cabe
num rápido esboço fazer-lhe a apologia. Mas o seu verdadeiro
santuário é a família, em que ela diretamente atua, abrindo o seu
escrínio de virtudes. Fora desse doce ambiente do lar, a sua missão
muitas vezes se deturpa e desvirtua (H.S., 1897).
Para H.S., a sociedade natalense deveria figurar como um espelho fiel ao espírito
feminino por ele preconizado. Ele convertia a família em um espaço de educação moral
e esta como uma influência civilizadora. O processo de naturalização da cultura
expresso no artigo citado através de frases como o “altar em que a natureza a colocou”,
era complementada por um discurso que enaltecia as qualidades espirituais da mulher.
Estas qualidades maternais se revelavam em atitudes que, de outro modo,
poderiam ser condenadas, mas que eram típicas do amor materno. Este aspecto se
associa as solicitações de uma mãe que, mesmo consciente de que seu filho não é vítima
do mal que lhe aflige, busca auxílio para seu filho. A matéria é assinada por Nemo,
pseudônimo de Pedro Velho.
O rapaz era culpado; pagava por seu crime e sua mãe o sabia, mas não
questionava o fato. O que ela pedia era a sua soltura, sem nenhuma justificativa senão a
de que era “uma pobre velha e minha salvação neste mundo é vê-lo livre”. Sabia que
seu filho teria fim semelhante; assume mesmo que desde criança revelava instintos
turbulentos.
Refere-se este trecho à análise de uma lenda árabe, A lenda do coração materno44,
na qual um homem mata a mãe por um capricho da namorada. Esta o incita a trazer o
coração da sua mãe, ainda morno, como prova de seu amor por ela. Ele realiza o desejo
44
O título da história não é dado pelo escritor. Nós a encontramos no livro Contos e lendas orientais de
Malba Tahan (2005)
193
da mulher amada e ao voltar correndo para seus braços leva um tombo e se machuca. É
nesse momento da narrativa que o personagem ouve uma voz doce e preocupada.
relatou sua visita a uma escola feminina de primeiras letras. Mantida pela Intendência
de Macaíba, a escola era gerenciada pela professora Maria Emília Botelho Lins.
A casa onde funcionavam as aulas estava em ordem, atendendo aos padrões de
higiene com uma boa circulação de ar e limpeza. Ministrando aulas para vinte e nove
alunos de ambos os sexos a sala pareceu, ao Delegado Escolar, pequena e inadequada,
no entanto com aulas que atendiam aos regulamentos do ensino, comprovando a
dedicação e competência da citada professora.
Palavras finais
A escritora Nísia Floresta, que abre estas palavras finais, nos faz pensar a quem se
destinam essas histórias, ou ainda, a História da Educação das mulheres quando, no
livro Opúsculo Humanitário, justifica a sua escrita. Quando resolvemos perscrutar as
ruas, as escolas, os discursos dos jornais em busca da professora, não tínhamos muita
certeza do que iríamos encontrar. Buscávamos, para além da professora, a mulher
199
Para além desta imagem, que mitifica o feminino no século XIX, a representação
de professora se confundia com a de mãe-esposa na medida em que ambas participavam
como educadoras dos futuros cidadãos da República nascente. O simbolismo feminino
da República sugeriu talvez uma nuança para o trabalho educativo a partir do final do
século XIX. Uma reestruturação enfocando o cuidado materno com elemento basilar
para um trabalho que se profissionalizava em Natal, na perspectiva do público associado
à Escola Normal e à profissionalização da professora e na perspectiva do privado,
relacionado à Escola Doméstica e à institucionalização da dona-de-casa. Para além de
um processo de feminização do magistério podemos pensar sobre o trabalho feminino e
a feminização da própria sociedade como um prenúncio de um novo século que se
anuncia. Se o magistério passa por um processo de feminização, a ampliação e expansão
45
A liberdade guiando o povo - Sítio do Museu do Louvre.
201
do sistema educacional já nasce com essas virtudes feminis, nas palavras de Pedro
Américo em 1891.
Ultrapassando a dimensão educacional, a própria sociedade se tendia feminina
através da reorganização de suas principais instituições educacionais – família e escola
– no fim do século XIX brasileiro. Ao mesmo tempo em que se construía República e
deixava para trás os modelos sociais que estabeleceram a mentalidade brasileira dos 400
anos até aqui. Vê-se, então, o fim de uma era: a era dos ignorantes e analfabetos. Os
próximos 100 anos sugerem uma transição: reorganizações metodológicas para modelos
educacionais explorados desde a Paidéia. A transição para outros tempos ainda se
existencia neste ano de 2009. A busca por uma nova mentalidade educacional distante
de tudo que conhecemos ou vivemos nos permite erigir como possibilidade um real
encontro das diferenças de gênero e classe social num futuro próximo.
Encontramos no material impresso pesquisado duas tendências que coexistiam.
Uma que alimentava a tradição da mãe-esposa, voltada aos cuidados domésticos
assumindo naturalmente suas funções de mulher, e a outra, mais progressista, voltada à
educação e à instrução dessa mesma mulher para o mundo moderno onde ela, inclusive,
tiraria seu sustento de um trabalho digno e remunerado, como o de professora. Em
quaisquer das duas pontas encontramos um elemento fundante para este novo século e
que as une: o cuidado como essência dessa educação. Por isso aqui, chamamos este
“cuidado” de cuidado materno, porque está ligado à ideia de mãe e se organizava tanto
em torno da mãe biológica e como da mãe social ou intelectual.
A mãe-esposa que encontramos era a mãe republicana de Rousseau, vestida com o
manto de Maria, respaldada num modelo que a indicava como a educadora dos futuros
republicanos; a professora tende a ser a versão pública dela. No florescimento da
República em Natal, da expansão do ensino no Rio Grande do Norte e das mudanças
sociais no mundo ocidental depois da Conflagração Européia em 1914, pudemos
finalmente vislumbrá-la: mater, educadora, republicana. Esta é a mulher por trás da
professora que buscávamos. Esta foi à representação feminina em Natal que
encontramos na transição do século XIX para o XX.
O que nós buscávamos? Às vezes eu acho que buscava a mim mesma; o que nos
fazia ser assim e não de outro modo. Somos as mulheres que nos antecederam e as
mulheres que antecederam as mulheres que nos antecederam. Uma afirmação óbvia,
mas, pelo que percebemos pouco percebida quando acionamos o nosso existenciar
cotidiano.
202
ativei o desconhecido de mim mesma. Busquei meus pares, minhas existências, meu
coletivo profissional.
A professora que buscávamos éramos nós mesmas; a mãe-esposa que
encontramos era apenas a versão doméstica desta. Essas representações eram parte de
um aprendizado, hoje sabemos, para algo que se organizava. Como acreditamos nos
dizeres de Saviani (2003, p.23), só poderíamos nos tornar uma educadora melhor na
medida em que nos enraizássemos na nossa própria história de formação docente; não
apenas individual, mas coletiva e histórica. E foi este enraizamento que buscamos aqui
consolidar.
“Finish”. E um sorriso brinca em meu rosto enquanto penso nessa palavra. Fim,
em bom português. Conheci uma freira australiana, Madre Michelle, há quatro anos
quando estava morando no Timor Leste. Viajamos juntas por mais de doze horas
montanha acima com meu marido e meu filho que, na época, tinha exatos três anos.
Meu inglês de mercado, o inexistente de Walter, meu marido, e a vontade de Artur, meu
filho, não foram suficientes para estabelecer uma comunicação mais ampla. Mas
acabamos ficando amigos. Ela inventou milhares de brincadeiras e jogos sonoros com
Artur: ela falava, ele repetia. Estávamos indo a um distrito chamado Suai a
aproximadamente 110 km de Dili, onde morávamos. Passamos por muitos distritos e
subdistritos. E cada um vencido, ela citava o nome e gritava animada “Bobonaro,
finish”. Em pouco tempo ela e Artur ficaram nesse jogo: ela gritava o nome da cidade e
Artur gritava “finish”. Durante muitos meses ele guardou aquele vocábulo que servia
para tudo que tinha terminado definitivamente, como o prato do almoço ou a arrumação
da caixa de brinquedo.
Curioso pensar nisso agora. Não penso que seja “finish” para qualquer daquelas
cidades. Vou voltar lá. E todos os dias o prato de Artur está cheio e a caixa de
brinquedos desarrumada. Então, pedindo licença a Madre Michelle, devo acrescentar ao
“finish” dela o meu “ for the moment” E até o próximo desdobramento desta pesquisa,
deixo assim: terminado... para o momento.
205
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