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Sumário

Apresentação p.10
Allan de Andrade Linhares p.14
Alessandra de Sá Mello da Costa p.586
Amanda Mendes Zerbinatti p.153
Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado p.24
Ana Cristina Bornhausen Cardoso p.355
Ana Maria Wertheimer p.36
Ana Paula Rodrigues Ferro p.44
Antonio Carlos Silva de Carvalho p.49
Antonio Iraildo Alves de Brito p.59
Audrey Castañón de Mattos p.70
Bárbara Baldarena Morais p.81
Carolina Toti p.93
Celso Figueiredo Neto p.102
Charles Borges Casemiro p.113
Clarisse Barbosa dos Santos p.129
Cleusa Kazue Sakamoto I p.153
Cleusa Kazue Sakamoto II p.380
Clemilton Pereira dos Santos p.140
Cristine Fickeslcherer de Mattos p.163
Daniele Aparecida Pereira Zaratin p.174
Dílson César Devides p.183
Dionéia Motta Monte-Serrat p.198
Eduardo Neves da Silva p.209
Elisângela Maria Ozório p.217
Elisangela Nogueira p.230
Ernani Terra p.242
Ester Anholeto Pirolo p.253
Felipe Pupo Pereira Protta p.264
Fernanda Cristina Araújo Batista p.267
Fernanda Isabel Bitazi p.278
Flavio Biasutti Valadares p.289
Gabriela Soares Balestero p.296
Graciene Silva de Siqueira p.312

6
Gustavo Lassala p.323
Hadna Teider Silva p.355
Hugo de Almeida Harris p.331
Isabel Orestes Silveira p.343
Isaura Maria Longo p.355
Ivelaine de Jesus Rodrigues p.366
Janaina Quintas Antunes p.380
João Manoel Quadros Barros p.163
Joana Junqueira Borges p.389
Joanna Durand Zwarg p.400
João Eduardo Ramos p.412
Jorge Ferreira Franco p.420
Juliana Pádua Silva Medeiros p.430
Juliana Zanco Leme da Silva p.440
Juliane Emiliano p.451
Letícia Cordeiro de Oliveira Bueno p.461
Letícia Pereira de Andrade p.473
Lilian Cristina Corrêa p.486
Lorena Maria Nobre Tomás p.498
Luciana Azevedo Pereira p.510
Luciana Duenha Dimitrov p.520
Luciana Ribeiro de Souza p.529
Luciana Uhren Meira Silva p.540
Luciano de Souza p.551
Luciano Magnoni Tocaia p.562
Ludmila Jones Arruda p.574
Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa I p.510
Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa II p.586
Maria de Lourdes Bacha p.102
Marco Antonio Palermo Moretto p.343
Mariza de Fátima Reis p.163
Manlio M. Speranzin p.595
Márcia Moreira Pereira p.605
Márcio Thamos p.615
Marcus Túlio Tomé Catunda p.624
Maria de Fátima Xavier da Anunciação de Almeida p.635
Maria do Rosário Abreu e Sousa p.646

7
Maria Eloísa de Souza Ivan p.657
Maria Enísia Soares de Souza p.668
Maria Júlia Santos Duarte p.680
Mariângela Alonso p.691
Marleide Santana Paes p.702
Marli Lobo Silva p.713
Marli Quadros Leite p.724
Mauro Dunder p.731
Mirtes de Moraes p.735
Natália Pedroni Carminatti p.746
Nicole Guim de Oliveira p.731
Patrícia A. Beraldo Romano p.753
Patricia Hradec p.762
Patricio Dugnani p.768
Paulo da Silva Lima p.779
Perrotti Pietrangelo Pasquale p.791
Rafael Fonseca Santos p.801
Rafael Kobata Kimura p.807
Raquel do Nascimento Marques p.724
Raul Ignacio V. Arriagada p.816
Regina Paula Ambrogi Avelar p.827
Regina Kohlrausch p.839
Renata Ferreira Munhoz p.850
Renata Nobre Tomás p.498
Renata Palumbo p.861
Rinaldo Pereira de Souza p.87
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos p.886
Rodrigo Prando p.102
Rodrigo de Freitas Faqueri p.893
Rogério Aparecido Martins p.904
Ronaldo de Oliveira Batista p.562
Rosinei Aparecida Naves p.921
Sandra Trabucco Valenzuela p.927
Sergio Manoel Rodrigues p.937
Sheila Darcy Antonio Rodrigues p.948
Silas Luiz de Souza p.962
Silas Daniel dos Santos p.801

8
Silvana Moreli Vicente Dias p.975
Solange Ugo Luques p.861
Tânia Regina Exposito Ferreira p.988
Telma Maria Vieira p.1000
Vanessa Maria da Silva p.1012
Wellington de Assis Silva p.1025
Yadir González Hernández p.1033
Roseli Gimenes p.1058
Alessandra de Castro Barros p.1045

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A CONSTRUÇÃO REFERENCIAL NO ENSINO DE LEITURA: ANÁLISE DE
ATIVIDADE DE COMPREENSÃO DE TEXTOS DE ALUNOS NO
4º CICLO DE EJA

Allan de Andrade Linhares1

Introdução

O homem vive inserido em práticas interacionais. Nesse envolvimento,


seleciona estratégias construídas, intersubjetivamente, a partir de atividades
cognitivas e discursivas, para nomear as coisas do mundo e, assim, atingir aos seus
propósitos argumentativos. Logo, o processo de produção textual, seja oral ou
escrito, é, essencialmente, marcado por estratégias referenciais. Nesse sentido,
esta produção tem por objetivo investigar as estratégias empregadas pelo professor
para o ensino de leitura. Esclarecemos que dirigimos o nosso olhar para como a
construção da referência foi tratada na discussão do texto na aula de leitura. Com o
intuito de alcançar o nosso objetivo, propusemos um questionamento norteador:
Como é tratada a referenciação no ensino de leitura na EJA?
Metodologicamente, analisamos os passos seguidos por uma professora da
modalidade EJA para trabalhar com a construção da referência na discussão de um
texto visando ao ensino de leitura/compreensão de texto. Nosso corpus é
constituído pela transcrição de uma aula gravada em áudio e notas de campo.
Este artigo está estruturado da seguinte maneira: inicialmente, apresentamos
os pressupostos teóricos. Procede-se, logo depois, às breves noções da
metodologia utilizada e à análise das estratégias adotadas pela professora para o
ensino de leitura a fim de perceber como é tratada a referenciação nessa atividade.
Acreditamos que este artigo colabora para inquietar os professores de EJA
sobre a importância de considerar, no ensino de leitura e produção de texto, as
contribuições da referenciação, já que, por meio das análises aqui empreendidas,
apresentamos reflexões sobre como essa área de pesquisa na Linguística do Texto
proporciona meios para se chegar, com mais facilidade, à unidade de sentido.

1
Doutorando em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

14
2 Referenciação e sociocognição: uma interface necessária para a construção
de sentidos por meio da leitura

Na esteira de uma visão sociocognitiva, emerge a perspectiva da


referenciação, que amplia sobremaneira as possibilidades de estudo do texto
voltadas para a construção dos sentidos.
Nos estudos da referenciação, por exemplo, ao produzir um texto, eu posso
aludir a um mesmo referente de maneiras bem diferentes (recategorizando-o)
considerando a evolução do discurso, ou seja, considerando o trabalho cognitivo
que o produtor desenvolve a fim de atender a um propósito discursivo. Os referentes
são construídos, portando, na interpretação e o contexto surge a partir da
interpretação que os sujeitos fazem sobre algo, partindo de seus modelos mentais,
mas, também das pistas linguísticas presentes na materialidade textual. Os modelos
mentais não servem para representar de forma objetiva os eventos de que trata o
discurso, mas caracterizam a maneira como os usuários da língua constroem a seu
modo esses eventos, partindo, por exemplo, de seus objetivos, de seus
conhecimentos prévios (VAN DIJK, 2012).

2.1 A Referenciação

Os fundamentos de cunho sociocognitivista concebem a referência como um


processo dinâmico que privilegia as relações intersubjetivas e sociais. Nesse
processo, as versões do mundo são publicamente construídas e avaliadas em
conformidade com as finalidades e ações dos enunciadores (MONDADA, 2005).
Conforme Mondada e Dubois (2003, p. 42), “os nomes enquanto rótulos
correspondem aos protótipos e colaboram para a sua estabilização ao curso de
diferentes processos”. Os protótipos são compartilhados pelos indivíduos através do
processo de interação e estabilizados socialmente. Esse protótipo compartilhado
lexicalmente evolui para o estereótipo, configurado como uma representação
coletiva. Essa evolução está fundamentada não mais em valores de verdade, mas
em convenções sociais sobre as formas de nomear o mundo.

15
As autoras explicam, ainda, que o processo de estabilização das categorias
discursivas ocorre, em nível linguístico, através da lexicalização e de sua ocorrência
no interior das práticas discursivas, por meio das anáforas nominais, as quais podem
ser concebidas, simultaneamente, como uma maneira de ilustrar a questão da
evolução dos referentes e como um modo de estabilizar ou focalizar uma
denominação particular. Além da estabilização das categorias do discurso em níveis
psicológicos e linguísticos, há a estabilização através dos processos de inscrição,
tais como a escrita, a imprensa e a imagem, as quais podem ser vistas como móveis,
uma vez que circulam em amplas redes, ou imóveis, visto que são fixas e não sofrem
modificações em seu movimento. Essas inscrições podem, ainda, ser reproduzidas,
o que permite não somente sua circulação, mas sua comparação no tempo e no
espaço.
Todas essas considerações reafirmam o caráter dinâmico do processo de
referenciação e, consequentemente, dos objetos de discursos, os quais são (re)
construídos no cerne das atividades cognitivas e interativas. Dessa forma, como
defendem os autores, esses objetos uma vez ativados podem ser alterados,
desativados, reativados, recategorizados, construindo-se ou reconstruindo-se, no
transcorrer da progressão textual, o sentido. Nesse contexto, segundo Koch (2007),
na constituição da memória discursiva fazem parte as seguintes operações:

a) construção/ativação (introdução de um referente textual, até então não


mencionado, passando a preencher um nódulo); b)
reconstrução/reativação (um nódulo é novamente ativado na memória); c)
desfocalização/desativação (ativação de um novo objeto de discurso,
deslocando a atenção para outro referente textual desativando aquele que
estava em foco anteriormente). Porém seu endereço cognitivo continua no
modelo textual, podendo ser reativado a qualquer momento. (Koch: 2007,
p. 62).

Essas estratégias operacionais podem ser acionadas durante a construção


textual. Isto é, se, por um lado, a ativação e reativação estabilizam o modelo textual,
por outro, ele sofre contínuas modificações, quando novas referenciações forem
realizadas. Isso porque, durante o processo, outros objetos são introduzidos ou
aqueles já presentes recebem outras informações ou avaliações. Assim, o objeto de
discurso é dinamicamente (re) construído à proporção que a ele vão sendo

16
atribuídas novas (re) categorizações ou formas subjetivas de designação desse
objeto.

3 Estratégias referenciais e compreensão leitora: uma análise

Guiados pelo objetivo de investigar as estratégias empregadas pelo professor


para o ensino de leitura, sobretudo no que se refere aos processos referenciais,
analisaremos como uma professora de 4º ciclo da modalidade EJA de uma escola
pública municipal de Parnaíba-PI intermedeia discussões sobre o texto-fonte Essa
mulher. Nosso corpus é, portanto, constituído por transcrição de uma aula gravada
em áudio e notas de campo. Esclarecemos que esses dados advêm de nossa
pesquisa de mestrado2, realizada em 2011, e que eles são inéditos, haja vista que
não foram utilizados como objeto de análises para os objetivos que tínhamos
naquele momento.
Nossa análise vai se organizar a fim de seguir as atividades desenvolvidas
pela professora durante a aula de leitura, ou seja, as estratégias eleitas com o foco
na leitura e compreensão do texto. Será possível perceber, portanto, se a reflexão
sobre as estratégias de referenciação é uma preocupação da professora no ensino
de leitura.
3.1 Leitura e discussão da música “Essa mulher”

O texto escolhido pela professora para iniciar a atividade estava no capítulo


5 do livro adotado pela escola: Educação e diversidade, 2º segmento do ensino
fundamental, 4ª etapa (7ª série), volume I. Esse capítulo tinha como foco o estudo
da coesão e coerência textual. O texto vai discutir, essencialmente, a (re) construção
do referente mulher. O objeto de discurso foi introduzido no título e, anaforicamente,
foi sendo recategorizado ao longo do texto. Apresentamos, abaixo, o texto estudado:

Quadro 1. Texto da música Essa Mulher

2 A pesquisa Concepções e práticas de leitura na EJA: uma experiência com professores de 4º ciclo,
vinculada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), foi concluída em 2012.

17
Essa mulher

De manhã cedo, essa senhora se conforma


Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos
Ah. como essa santa não se esquece de pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão
Depois sorri, meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo
Que a faz, assim, feliz
De tardezinha, essa menina se namora
Se enfeita, se decora, sabe tudo, não faz mal
Ah, como essa coisa é tão bonita
Ser cantora, ser artista
Isso tudo é muito bom
E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia, qualquer dia
Entender de ser feliz
De madrugada, essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar
Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquece
Nessa boca, nesse chão
Depois, parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz
Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro toda hora
No espelho casual
É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo natural.

Para iniciar o estudo do texto, a professora propôs que os alunos fizessem


uma leitura silenciosa e, posteriormente, uma leitura em grupo.
Vejamos a transcrição da discussão realizada, após a leitura:

Professora: Então, turma. Após terem lido aí o texto, o que


vocês conseguiram tirar dele? O que o texto diz para nós?
Aluno 1: Eu acho que essa mulher da música ... é SUBMISSA,
faz tudo o que o marido quer.
Aluno 2: Pra mim, é uma mulher confor:::mada com a rotina
dela. E, também, tá pronta só para servir a família: os filhos, a

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casa dela e o marido. Se não cuidar do marido, ele arruma
outra.
Professora: Todo mundo concorda com os colegas? Alguém
acrescenta mais alguma coisa? É bom perceber aí que essa
mulher passa por transformações no decorrer do dia e assume
novos papéis. O sentido do texto está bem aí.

Percebemos que a professora inicia a discussão com uma pergunta que limita
a produção de sentidos. Ao questionar Após terem lido aí o texto, o que vocês
conseguiram tirar dele? O que o texto diz para nós?, leva-nos a entender que parte
do princípio de que tudo está posto na superfície linguística. Não é necessário criar,
já que o texto traz uma mensagem pronta, a qual deve ser reconhecida pelos
leitores. Kleiman (2007) entende esse tipo de concepção como alienadora, pois o
leitor precisa apenas passar o olho sobre o material escrito e buscar trechos que
constituiriam um certo entendimento sobre ele. Marcuschi (1999, p. 96) é enfático
ao dizer que o sentido não está no texto, pois “embora o texto permaneça como o
ponto de partida para a sua compreensão, ele só se tornará uma unidade de sentido
na interação com o leitor”. A professora, então, uniformiza uma resposta e isso fica
claro ao afirmar que O sentido do texto está bem aí. Essa postura diverge do
entendimento de texto como um processo em que predominam atividades cognitivas
e discursivas. (MARCUSCHI, 2003). Assumindo tal postura para trabalhar com o
texto, podemos adiantar que a professora desconsidera um trabalho de construção
referencial, uma vez que os referentes são construídos, intersubjetivamente, a partir
de atividades cognitivas e discursivas socialmente situadas. A docente não deu a
devida liberdade para que os alunos construíssem suas próprias referências.
É importante perceber que os alunos foram assumindo diferentes
perspectivas para a construção da referência. O aluno A recategoriza o referente
mulher como submissa, já o aluno B a chama de conformada. Entende-se que essas
formas de nomear o referente “mulher” foram sendo construídas a partir de um
propósito que pretendem construir. A forma de nomear marca, referencialmente, a
argumentação que pretendem sustentar. Essas escolhas são feitas a partir do
entendimento de como o discurso vai se desenvolvendo, além dos modelos
cognitivos que cada um desses sujeitos dispõe e das pistas presentes no texto.

19
Cavalcante (2011, p. 183) pondera que os referentes são “[...] entidades que
representamos, cada um à sua maneira, portanto, em cada contexto enunciativo
específico”. Parece-nos, então, que a professora ao afirmar É bom perceber aí que
essa mulher passa por transformações no decorrer do dia e assume novos papéis.
O sentido do texto está bem aí., impõe sua construção para os alunos, direcionando-
os para uma determinada forma de construir a referência. É preciso que se tenha
clareza, portanto, que a construção referencial é uma construção particular. Assim,
os alunos poderiam construir um mesmo referente de forma diversa daquela feita
pela professora, já que os referentes são entidades que construímos e
reconstruímos no desenvolvimento de qualquer enunciação. (CAVALCANTE,
2011).
Reiteramos que os referentes são entidades instáveis, dinâmicas, logo, a
professora deveria ter dado aos alunos a possibilidade de assumir suas estratégias
referenciais. Os objetos de discurso são construídos durante as interações e, por
isso, não são iguais para todos os sujeitos. É uma construção intersubjetiva. Koch
e Elias (2010) pontuam que

[...] as formas de referenciação, longe de se confundirem com a realidade


extralinguística, são escolhas realizadas pelo produtor do texto orientadas
pelo princípio da intersubjetividade, razão pela qual os referentes são
construídos e reconstruídos ao longo do processo de escrita. (p. 134).

Assim, fica claro que os alunos agiram sobre o que leram e, diante da forma
como identificaram o projeto de dizer do autor do texto que analisaram, agiram,
construíram e reconstruíram o objeto de discurso segundo seu contexto
sociocognitivo.
A professora poderia ter discutido com os alunos a razão pela qual chamaram
(recategorizaram) o referente da maneira como o fizeram. Seria interessante,
também, questionar as escolhas que foram feitas pelos enunciadores da música a
fim de perceber como seu propósito comunicativo foi construído. Assim, poderiam
ser analisadas as marcas, as pistas selecionadas pelos alunos que autorizariam a
construção e reconstrução referencial, já que os sentidos são construídos,
intersubjetivamente, pelos leitores. Ao analisar o título, por exemplo, seria
importante sinalizar o referente mulher que já foi introduzido. A discussão poderia,

20
ainda, contemplar a maneira como o referente foi se recategorizando. Por exemplo,
no início da música, ao chamar a mulher de senhora, os enunciadores retomam o
referente e o recategorizam. O recurso para retomar o referente foi a anáfora direta.
Essa anáfora foi promovida e licenciada pelas pistas que estão no texto, ou seja, as
ações que a dona de casa executa em seu lar, razão pela qual foi chamada de
senhora. A professora precisaria atentar para a reconstrução que os alunos fizeram
da referência que foi construída no texto. É trabalho dos professores de Língua
Portuguesa chamar a atenção dos alunos para o modo como, somente através de
estratégias de referenciação, “é possível ir recuperando as ligações entre as
entidades que aparecem em um texto e que se relacionam a muitos de nossos
conhecimentos de mundo. É dessa maneira que se compreende o que o enunciador
de um texto quis (ou não) revelar”. (Cavalcante: 2007, p. 64).
Percebemos que, quando os alunos fizeram referência à entidade mulher,
reconstruíram esse referente e o denominaram como conformada e submissa. Fica
clara a interação que eles realizaram com o texto, o que entendemos como domínio
dos processos referenciais, mesmo não sabendo que os usam. Caberia, então, à
professora aproveitar essas escolhas feitas e chamar a atenção para as estratégias
de referenciação presentes no texto e as escolhidas pelos alunos, uma vez que isso
facilitaria a construção de sentidos. Porém, a maneira de nomear escolhida pelos
alunos não foi considerada pela professora, embora não tenha apontado nenhuma
pista linguística que os desautorizassem. Segundo Cavalcante (2011), “com base
em inúmeras pistas deixadas no conjunto do texto e nos conhecimentos que os
participantes da enunciação compartilham, o leitor, ou o receptor, ou, mais
apropriadamente ainda, o coenunciador, reelabora esses referentes [...]”. (p. 184).

Considerações finais

Ao escrever fazemos referências às entidades, ao modo como elas de


reconstroem no momento em que interagimos. Quando lemos e escrevemos,
inevitavelmente, lidamos como processos referenciais. Os sujeitos, ao se referirem
às entidades, constroem seus propósitos. Uma das maneiras de se verificar os

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propósitos ou intenções dos enunciadores de um texto é analisar a função discursiva
de elementos referenciais, considerando que as formas como esses são
apresentados ou (re) apresentados pressupõem o modo de manifestação do
enunciador diante do que está sendo exposto.
O corpus analisado neste trabalho mostrou-nos que a professora, na
condução da aula de leitura, não considera o trabalho com a construção referencial.
Assim, constatamos que não priorizou aspectos envolvidos na construção da
argumentação do aluno, as estratégias referenciais que ele selecionou para
construir seus propósitos, pelo contrário, os alunos não tiveram a devida liberdade
para construir suas referencias. Entende-se, porém, que, ao elaborarmos um texto,
guiamos os co-enunciadores por processos referenciais, para os objetivos que
desejamos alcançar, mas que eles alcançaram a seu modo, conforme suas
experiências e sua visão das coisas.
Acreditamos e defendemos, neste artigo, que o professor precisa retomar os
textos produzidos pelos alunos a fim de gerar um momento de reflexão sobre as
escolhas que eles fizeram, observando a ocorrência de emprego das expressões
referenciais, atentando para as estratégias referenciais utilizadas para atender a um
propósito comunicativo específico e de que forma foram cognitivamente sendo
construídas até chegarem a se expressarem no tento por meio de uma forma
linguística.

Referências bibliográficas

CAVALCANTE, M. M. Estudo dos processos referenciais como um meio de (re)


construir a coerência em atividades de compreensão e produção de textos.
Revista Um mundo de letras: práticas de leitura e escrita, São Paulo, Boletim 3,
p. 63-79, 2007.
______. Leitura, referenciação e coerência. In: ELIAS, V. M. (Org.). Ensino de
Língua Portuguesa: oralidade, escrita, leitura. São Paulo: Contexto, 2011.
KLEIMAN. A. Oficina de leitura: teoria e prática. 11. ed. Campinas, SP: Pontes,
2007.

22
KOCH, I. G. V. Introdução à Linguística Textual: trajetórias e grandes temas.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2.
ed. São Paulo: Contexto, 2010.
MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural-
cognitivo. In: BARZOTTO, V. H. (Org.). Estado de leitura. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 1999. Cap. 5, p. 95-124.
______. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: DIONÍSIO, A. P.;
BEZERRA, M. A. (Org.). O livro didático de português: múltiplos olhares. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lucerna, 2003. Cap. 3, p. 48-61.
MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização:
uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.;
RODRIGUES, B B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto,
2003. Cap. 01, p. 17-52.

23
BIA, BEL, BETA, DE ANA MARIA MACAHADO:
VOZES PLURAIS NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO

Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado 3

Ser significa comunicar-se pelo diálogo


Bakhtin
Introdução
O nome de Ana Maria Machado talvez seja mais facilmente associado à
Literatura Infantil e Juvenil, dada sua vasta produção para crianças e jovens, que
não deixa de encantar aos adultos também. Entretanto, em sua história de atuação
no universo cultural brasileiro inscrevem-se muitos outros eventos. Há livros para
adultos (pelo menos uma dezena deles, designados como “ficção”), há os mais
importantes prêmios e títulos, há ensaios, artigos, entrevistas, todos forjados ao
longo de mais de quarenta anos de dedicação, não somente à literatura, mas à
cultura brasileira.
Em todos os seus trabalhos, uma característica fundamental é o
posicionamento crítico e atuante, que se materializa em obras questionadoras de
valores e padrões pré-estabelecidos e pela constante atenção às minorias. Tal
posicionamento engendra uma escrita polissêmica, com várias camadas de
significação, que desafia todos os tipos de receptores porque sempre oferece novas
descobertas.
Pretende-se observar neste trabalho o processo de construção da
personagem Isabel, da obra Bisa Bia, Bisa Bel, que em 1981, ainda antes de seu
lançamento, recebeu o Prêmio Maioridade Crefisul, o primeiro de uma longa lista.
Para cumprir este objetivo, tomamos como apoio teórico os conceitos bakhtinianos
de dialogismo e polifonia, na tentativa de compreender a articulação de várias vozes
que trazem diferentes concepções de mundo em confronto. Mais especificamente,
focaliza-se o modo como o embate entre posicionamentos ideológicos distintos
permite e provoca na personagem a tomada de consciência de si mesma.
Para tanto, dividiu-se o texto em dois momentos. No primeiro busca-se
apresentar a fundamentação teórica, restrita àqueles conceitos mobilizados para

3 Mestra em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

24
este fim específico. Em seguida passa-se à análise do texto de Ana Maria Machado,
articulando os conceitos teóricos expostos anteriormente.

A construção da personagem, segundo Bakhtin – fundamentação teórica

Na obra Estética da criação verbal (2003, p. 373-374), ao refletir sobre a


constituição do sujeito nas obras literárias, Bakhtin afirma que tal ação se concretiza
apenas a partir da interação com o outro, ou seja, todas as informações que se
somam para a construção da autoimagem de um ser são dadas pelo mundo exterior,
pelas palavras do outro. Assim ocorre com qualquer noção de si mesmo, a começar
pelo nome, em geral definido por terceiros. A consciência individual se edifica
através da alteridade, pelas palavras, pela tonalidade valorativo-emocional dos
outros, fatores que provocam um posicionamento filosófico do sujeito, cujas reações
serão formuladas como resposta ao discurso alheio.
Daí a importância do embate de vozes, do dialogismo, aqui entendido como
fenômeno constitutivo da linguagem, o processo pelo qual o indivíduo elabora o seu
discurso, escolhe o que dizer, como fazê-lo, prevendo já a reação e a resposta de
seu interlocutor. Para Bakhtin,
O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado pelo
discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-a e
baseia-se nela. Ao se constituir na esfera do ‘já dito’, o discurso é orientado
ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso
porém que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo o
diálogo vivo. (BAKHTIN, 1988, p. 89)

Este processo de assimilação das palavras de outrem também é analisado


pelo filósofo em “A pessoa que fala no romance” (BAKHTIN, 1988, p. 134), e
indicado como motor da evolução ideológica do homem, uma vez que tais palavras
procuram definir as próprias bases da atitude ideológica do ser em relação ao
mundo e a seu comportamento. Para o autor, a palavra de outrem se constitui como
“palavra autoritária” e como “palavra interiormente persuasiva”. A primeira seria
aquela vinda do mundo exterior: religiosa, moral, política, dos pais, dos adultos
(Bakhtin, 1988, p. 143). Já a segunda contempla um posicionamento axiológico do
sujeito, sendo também formulada a partir do embate de distintos posicionamentos:

25
No fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior é comumente
metade nossa, metade de outrem. Sua produtividade criativa consiste
precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa nova
palavra autônoma, em que ela organiza do interior as massas de nossas
palavras, em vez de permanecer numa situação de isolamento e de
imobilidade. (BAKHTIN, 1988, p. 146)

São duas categorias geralmente em tensão, visto que aquela “carece de


persuasão interior para a consciência” e esta “carece de autoridade”. Para Bakhtin,
esta brusca divergência caracteriza o processo de formação ideológica individual,
determinando sua história.
Outra característica da palavra interiormente persuasiva é o inacabamento
de sentido, “sua possibilidade de prosseguir”, de engendrar novas significações, de
ser um dado criativo no contexto da consciência ideológica, a partir das relações
dialógicas que pressupõe. Ela se torna objeto de representação literária porque
permite “variações estilísticas livres da palavra do outro”, aplica o pensamento do
outro a um novo material, a um novo estilo, o da consciência em relação dialógica.
(BAKHTIN, 1988, p. 146- 147)
No segundo capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski, intitulado “A
personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski” (2013, p. 52-86),
Bakhtin sugere que este escritor russo articula uma nova posição artística do autor
em ralação ao herói no romance polifônico, baseada em “uma posição dialógica
seriamente aplicada e concretizada até o fim, que afirma a autonomia, a liberdade
interna, a falta de acabamento e de solução do heroi” (BAKHTIN, 2013, p. 71).
Um dos valores artísticos de Dostoiévski seria a capacidade de transformar
em matéria da autoconsciência da personagem a realidade que a circunda, o mundo
exterior, seus valores, seus costumes, transferindo para o campo de visão da
personagem o que antes era campo de visão do autor. (Bakhtin, 2013, p. 55). As
palavras do próprio crítico definem melhor este conceito:
Nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma
consciência de si mesma, a nossa visão artística já não se acha diante da
realidade da personagem, mas diante da função pura de tomada de
consciência dessa realidade pela própria personagem (BAKHTIN, 2013, p.
54). (destaque do autor)

26
Esta tomada de consciência é elaborada, como já foi dito, em função de sua
natureza dialógica, do posicionamento ideológico da consciência e de suas
respostas ao discurso do outro. Para Bakhtin, este método dialógico tem origem em
“dois gêneros do campo do sério-cômico: o diálogo socrático e a sátira menipeia”
(Bakhtin, 2013, p. 124). O primeiro define-se por breves narrações, compostas por
discípulos de Sócrates, baseadas nas anotações de palestras proferidas pelo
pensador, impregnadas de uma cosmovisão carnavalesca, cujo traço constitutivo
fundamental é a concepção da natureza dialógica da verdade e do pensamento
humano: “A verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem;
ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de comunicação
dialógica” (BAKHTIN, 2013, p. 125, grifo do autor). Derivada do diálogo socrático, a
sátira menipeia converte-se em importante veículo da cosmovisão carnavalesca na
literatura, graças à sua “grande plasticidade externa e uma capacidade excepcional
de absorver os pequenos gêneros cognatos e penetrar como componente nos
outros gêneros grandes” (BAKHTIN, 2013, p. 136).
Um dos gêneros cognatos, segundo o filósofo, é a diatribe, ao lado do
solilóquio e do simpósio, todos determinados pelo seu caráter dialógico interno e
externo no enfoque da vida e do pensamento humanos. O autor define diatribe como
“um gênero retórico interno dialogado, construído habitualmente em forma de
diálogo com um interlocutor ausente, fato que levou à dialogização do próprio
processo de discurso e pensamento” (BAKHTIN, 2013, p. 137).

O processo de autoconsciência de Isabel


Os conceitos explicitados acima, quando aplicados à análise da obra Bisa
Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, evidenciam um processo de escrita bastante
elaborado, cujo produto é um texto de riqueza ímpar, já analisado por inúmeros
trabalhos acadêmicos que exploram aspectos como: emancipação do sujeito leitor,
construção do sujeito infantil, fluxo de consciência, discursividade do delírio,
construção do sujeito histórico, trânsito entre realidade e fantasia.

27
Reproduz-se em seguida uma das diversas apresentações da obra que se
pretende analisar. A opção pela transcrição de um resumo alheio justifica-se porque
é possível perceber aí, num texto de apresentação editorial, que não pretende
analisar a obra da perspectiva dos conceitos bakhtinianos, a relevância do diálogo
entre as várias vozes articuladas na narrativa.
Certo dia, num dos raros momentos em que sua mãe, não muito
organizada, resolve arrumar a casa toda de uma só vez e remexer cantos
há muito esquecidos, Isabel descobre um pequeno retrato de uma menina
muito bem arrumada que se parece um pouco com ela: é Bisa Bia, delicada
como uma boneca, de vestido de renda. A partir da descoberta desse
retrato, que Bel passa a levar consigo para todo o canto, inicia-se uma
convivência íntima entre a menina e sua bisavó, que ela nunca chegou a
conhecer – como diz a garota, sua bisavó passa a morar “dentro dela”, num
canto escondido do seu corpo, invisível para os outros.
Essa convivência, porém, será menos harmônica do que a princípio
se poderia supor: Bisa Bia não consegue aceitar que Bel use calças
compridas e brinque de pega-pega junto com os meninos. Uma outra voz
dentro de Bel, porém, irá fazer frente às posições de Bisa Bia: a de Beta,
bisneta de Bel, que nascerá num momento ainda distante do futuro, para
quem ser mulher não significa de modo algum ser frágil e bem
comportada... caberá à menina do presente encontrar o ponto médio entre
as duas vozes que brigam dentro de si e fazer suas próprias
escolhas.4(grifos nossos)
Observa-se que a principal característica da obra é a articulação, por
excelência, do embate de vozes sociais que se apresentam entrecruzadas. Da luta
entre as três consciências ideológicas é que emerge o processo de
autoconhecimento da personagem central. Cada uma das personagens – a menina
Isabel, sua bisavó Beatriz e sua bisneta Beta - traz para a narrativa um
posicionamento ideológico distinto, o que fatalmente provocará a tensão que
mobiliza a narrativa e obriga Isabel a definir seu posicionamento.
A diatribe é eleita como recurso formal para a condução da história e se
propõe sobretudo através de orações interrogativas dirigidas a um interlocutor
(ausente) do diálogo que se estabelece desde o início da narrativa:

Sabe? Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. [...]
Sabe por quê? É que Bisa Bia mora comigo, mas não é do meu lado de
fora. (MACHADO, 1990, p. 5)

4(Disponível em: http://literatura.moderna.com.br/catalogo/encartes/9788516055622.pdf, acesso em


06/11/2013, às 9:45)

28
A narradora Bel, contando sua própria história, a partir de seu próprio ponto
de vista, com focalização interna, convoca o leitor na medida em que o trata como
um confidente. No decorrer do texto, estas provocações ao interlocutor/leitor se
repetem, sempre mobilizadas pelo recurso das orações interrogativas. Algumas
delas são: “[Bisa Bia] acha que isso é roupa de homem, já pensou?” (p. 12); “Bisa
Bia não conhecia armário embutido, já imaginou?” (p. 22); “Como é que eu podia
ser bisavó sem saber?” (p. 45); “Foi por isso que resolvi contar o segredo que
ninguém desconfia, sabe?” (p. 56).
Percebe-se que pelo recurso da diatribre, do diálogo com um interlocutor
ausente, a personagem-narradora busca despertar o interesse do seu
interlocutor/leitor, ao mesmo tempo em que vai explicando seu comportamento e as
atitudes tomadas em relação às outras personagens, como no episódio em que
assovia para abafar as outras vozes, que constantemente lhe dão conselhos:
Com a minha música cantada bem alto, a voz dela fica mais baixinha e dá
para eu ir em frente fazendo o que quero, sem que ela se intrometa muito.
Mas um dia, eu estava com dor de garganta, no começo de uma gripe que
depois virou uma tragédia. Em vez de cantar, assoviei. Aí, bem, foi outro
deus-nos-acuda! Sabe o que foi que Bisa Bia disse? Foi isto:
- Meninas que assoviam e galinhas que cantam nunca têm bom fim. [...]
- E que mal tem assoviar? – desafiei. [...]
Pronto! Pra que é que ela foi dizer isso? Bem nesse momento parecia que
tinha uma voz dentro de mim, bem fraquinha, mas bem nítida, me dizendo
assim:
- Faça o que você bem entender! Não deixe ninguém mandar em você
desse jeito.
Era justamente o que eu queria ouvir. Aí nem hesitei. Xinguei [...] e saí pela
rua assoviando [...] ” (p. 30)

A narradora Bel dialoga com seu interlocutor ao perguntar “sabe o que foi que
ela disse?”. Ao mesmo tempo expõe pontos de vista divergentes, modos de ser
diferentes do seu, revelando o embate axiológico. Estão em jogo ao menos dois
posicionamentos ideológicos: o da bisavó de Isabel e o de sua bisneta, ambos
postos como vozes interiores, como outras consciências constitutivas da
personalidade da menina, que revelam novas possibilidades sobre as quais ela deve
refletir e que precisa apaziguar para poder posicionar-se.
O discurso da bisavó surge como representante do status quo, como a
“palavra autoritária” bakhtiniana, vinda do mundo exterior, que dita regras de

29
comportamento. É a partir do segundo capítulo que Isabel estabelece um diálogo
vivo com a bisavó, já falecida, da qual ela tem apenas uma foto antiga, que levava
consigo. Tal diálogo apresenta-se verossímil porque se propõe como a brincadeira
do amiguinho imaginário, tão comum às crianças. Na correria do pátio da escola, o
retrato cai e é levado pelo vento, fato que a menina interpreta como sendo um
recado da bisa, uma espécie de interação divertida:

Até parecia que Bisa Bia estava fugindo de mim. Ficava no chão e quando
eu ia chegando perto para pegar, lá se ia ela de novo... Depois parava outra
vez, como se estivesse me esperando, e quando eu passava perto,
levantava no vento e voava de novo. (p. 16)

Ao atribuir a uma fotografia uma característica de ser vivo, que corre, para,
espera, voa, sugere a interação como algo possível e natural. Daí para o início da
conversa, basta um pouco mais de imaginação: o retrato, guardado junto ao corpo
de Isabel, incomodava durante as brincadeiras de rua, o que foi novamente
interpretado pela garota como tentativa da bisavó de travar um diálogo, projeto que
logo se torna realidade:
Era como se Bisa Bia ficasse de vez em quando me dando umas cutucadas
para me dizer alguma coisa. E o que dizia e, aos poucos eu ia aprendendo
a entender, era mais ou menos assim:
- Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito, pulando
assim nessas brincadeiras de menino. Acho muito melhor quando você fica
quieta e sossegada num canto, como uma mocinha bonita e bem
comportada. (p. 18)

Depois desta primeira conversa, a presença da bisavó se impõe. Isabel perde


o retrato, mas isso não impede a continuidade do relacionamento entre as duas,
uma vez que a menina, lançando mão da fantasia, contorna o problema dizendo que
a bisavó tinha passado para o lado de dentro dela, como parte de sua consciência.
Já nesta primeira fala de Bisa Bia revela-se uma visão de mundo bastante
conservadora quando diz que ela deveria ser uma “mocinha bonita e bem
comportada”, um posicionamento ideológico divergente em relação ao de Isabel que
preferia brincar na rua e usar calças jeans. A brincadeira que para Bel é natural,
para Bia é “coisa de menino”, num claro posicionamento machista comum à época
da bisa. Tal fato é justificado pela diferença temporal entre as duas gerações,

30
claramente marcada pela narradora: “Nada disso tinha no tempo dela [Bisa Bia]” (p.
25); “[...] o pessoal do seu tempo também complicava demais, cada palavra
esquisita, chega!”(p. 27).
Beta, a futura bisneta de Isabel, surge mais adiante na narrativa, no quinto
capítulo, posicionando-se contra a palavra autoritária posta por Bisa Bia. Sua
primeira fala aparece quando Isabel está aborrecida com Bisa Bia, por causa de
uma de suas intromissões. Isabel se aproxima de um menino por quem está
apaixonada e a bisavó sugere que ela se faça de menina delicada e frágil: “Finge
que se machuca, sua boba, assim ele te ajuda. Chora um pouco para ele cuidar de
você...”(p. 34). Neste momento surge uma voz diferente, trazendo valores
diametralmente opostos: “Não finge nada. Se ele não gosta de você do jeito que
você é, só pode ser porque ele é um bobo e não merece que você goste dele. Fica
firme” (p. 34). Mais adiante, esta nova voz se identifica como bisneta de Isabel, de
nome Beta, representante de um tempo futuro, no qual as mulheres conquistariam
mais liberdade e também igualdade.
Diante do conflito estabelecido por várias formações discursivas em
confronto, Isabel é obrigada a posicionar-se, a formular e mobilizar os seus próprios
valores para decidir como se comportar. Neste primeiro momento, apesar de não
compreender direito a interferência de uma outra voz, ela resolve acatar o novo
ponto de vista que surge. O importante é que se acentua, a partir de então, o
processo de autoconhecimento da personagem central, que vai analisando o peso
de cada uma das visões de mundo reveladas pelo processo dialógico para construir
sua identidade, como se pode exemplificar pelo seguinte fragmento:

Impossível saber qual o palpite melhor. Mesmo quando eu acho que minha
bisneta é que está certa, às vezes meu coração ainda quer-porque-quer
fazer as coisas que minha bisavó palpita, cutum-cutum-cutum, com ele...
Mas também tem horas que, apesar de saber que é tão mais fácil seguir
os conselhos de Bisa Bia, e que nesse caso todos vão ficar contentes com
o meu bom comportamento de mocinha, tenho uma gana lá de dentro me
empurrando para seguir Neta Beta, lutar com o mundo, mesmo sabendo
que ainda vão se passar muitas décadas até alguém me entender. Mas eu
já estou me entendendo um pouco – e às vezes isto me basta. (p. 48)

Aqui se explicita o recurso da “função pura de tomada de consciência da


realidade pela própria personagem”, apontado por Bakhtin, pois Bel mobiliza os

31
argumentos de duas consciências independentes e em relação conflituosa. A bisavó
defende o bom comportamento e a bisneta prega a contestação, a atitude
combativa. Estes posicionamentos ideológicos são as balizas que orientam as
ações de Bel uma vez que, não se identificando totalmente nem com uma nem com
a outra, é obrigada a compreender melhor seus sentimentos e buscar o seu próprio
modo de ver o mundo.
Também é possível identificar aí a presença da palavra interiormente
persuasiva, no sentido de que diante desse embate Isabel mobiliza seu pensamento
em direção a uma nova palavra autônoma, a partir da qual ela tenta organizar sua
identidade, sempre levando em consideração as outras vozes que a constituem.
Assim, a consciência de Isabel se constitui em contiguidade com as outras
consciências presentes na narrativa.
É importante mencionar ainda a utilização do diálogo socrático,
manifestando-se como processo de construção da consciência. A verdade de Isabel
não se estabelece exclusivamente pela voz de sua bisavó ou de sua bisneta, mas é
do confronto entre essas vozes, somada às suas próprias reflexões, que ela pode
elaborar seu posicionamento, como se pode perceber no trecho a seguir:
Eu ainda estava meio chateada com ela [Bisa Bia] e fiz de conta que nem
tinha ouvido. Ela pediu desculpas:
- Meu benzinho, não fique aborrecida com sua bisavó porque eu deixei cair
seus lenços na escola. [....]
Continuei sem dizer nada. Mas aí ouvi bem mais forte aquela outra voz que
de vez em quando me falava e, desta vez, prestei bastante atenção:
- Bisa Bia, a senhora me desculpe, mas não é nada disso. Bel não precisa
fingir para ele. Aliás, ninguém tem nada que fingir para ninguém. [...]
- Isso mesmo – concordei, animada.
A voz continuou, agora falando comigo:
- E você aí, deixe de ser boba, perdendo seu tempo, espetando agulha
num pano, só para agradar um bobalhão que ri de você, só para bancar a
menininha fina. Para que fingir? Tem horas que não dá mesmo para fingir.
Largue isso e vá fazer alguma coisa útil.
Foi a vez de me chatear com ela:
- Não se meta onde não é chamada. Nem sei quem você é, e fica aí dando
palpite na minha vida. Pois fique sabendo que não estou perdendo tempo
nenhum, estou descobrindo que gosto muito de bordar, como gosto de
patinar, de ler, de dançar, de ver televisão, de ir à praia, de brincar na
calçada, de fazer um monte de coisas... e não estou fazendo isto para
agradar a ninguém. Só a mim mesmo. (p. 44) (grifos nossos)

32
Se por um lado Bel se vê pressionada a decidir se “concorda” com Bia ou
com Bel, por outro acaba descobrindo a relatividade das opiniões, ou seja, concorda
em alguns aspectos e discorda em outros. Percebe que não precisa “fingir” como
sugere Bia, mas que gosta de atividades que Beta considera “bobas”. Mais do que
isso, vai “descobrindo” seu próprio modo de ver o mundo e estabelece o que é
fundamental: agradar a si mesma. O ponto culminante desse processo é a
autoconsciência: “Eu sou eu, vivo no meu tempo, e quero fazer tudo o que tenho
vontade, viver minha vida, sacou, Bisa Bia? Eu sou eu, ouviu?” (p. 40) (grifos
nossos)
Por fim, cabe assinalar outra característica da personagem, a sua
inconclusibilidade, também ligada ao processo de descoberta da autoconsciência,
na medida em que a polifonia implica também em constante questionamento e
mudança, resultado do diálogo interno. Nota-se nas reflexões de Isabel ao final da
obra que ela mesma vai construindo sua história e propondo mudanças em processo
contínuo:
Vou descobrindo que dentro de mim é uma verdadeira salada (p.”49)
Bisa Bia discutindo com Neta Beta e eu no meio, pra lá e pra cá. [...]
Mudanças que eu mesma vou fazendo, por isso é difícil, às vezes dá
vontade de chorar. Olhando pra trás e andando pra frente, tropeçando de
vez em quando, inventando moda.[...].(p. 56) (grifos nossos).

Para fecho de ouro, Ana Maria Machado nos presenteia com a poética
imagem da trança de gente. Três partes que vão se cruzando pra lá e pra cá: a parte
de Bia, a de Bel e a de Beta. Ao se cruzarem, tornam-se invencíveis.

Considerações Finais

O embate dialógico, elemento fundamental da narrativa, é o mecanismo a


partir do qual a personagem toma consciência do mundo, tornando-se este
procedimento uma via para o autoconhecimento. Assim, a narrativa compõe-se
como a proposição de forças centrífugas, com multiplicidade vozes e consciências
independentes, contra a monologização da existência humana (Bakhtin, 2013, p.4).

33
Estas vozes podem, num primeiro nível de significação, ser interpretadas
como pura fantasia, mas, como se trata de literatura, de elaboração estética, elas
permitem níveis mais profundos de significações, a começar pelo fato de que
engendram um processo de autoconsciência tanto da personagem quanto do leitor.
Este, ao perceber os caminhos pelos quais Isabel vai tomando consiência de si, por
extensão vai adquirindo elementos para enfrentar seus próprios processos de
autoconhecimento.
Isabel, a partir da consciência que tem do mundo e da diversidade de valores,
apresentados pelas vozes de Bia e Beta, bisavó e bisneta, respectivamente, vai
questionando seus caminhos, seu posicionamento diante do mundo, vai construindo
sua identidade, emancipando-se. Este é um dos motivos pelos quais Bisa Bia Bisa
Bel tem sido considerada um “modelo emancipatório e não apenas crítico ou até
mesmo eufórico de narrativa infanto-juvenil [...] o oposto de história de linha
comportamental e pedagógica” (CARVALHO, 2004, p. 83).
A existência de Bia e Beta são fundamentais para Bel definir seu modo de
“ser no mundo”, inserindo-se nele como mulher. A eleição da focalização interna e
o recurso da diatribe facilitam a aproximação com o público receptor e permitem a
adesão do interlocutor/leitor, sobretudo das leitoras, pela empatia.
Na obra, a emancipação feminina é discutida a partir dos embates axiológicos
entre vozes representantes de três momentos históricos distintos em relação à
atuação das mulheres na sociedade. Um primeiro momento de submissão, de
apagamento; o segundo caracterizado pela contestação, pelo protesto contra os
padrões impostos e pela luta por direitos e finalmente um terceiro momento, ainda
em construção, de afirmação, de autodescoberta, de consolidação da liberdade.

Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Prefácio e notas
Paulo Bezerra 5. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

______. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo:


Editora UNESP, HUCITEC, 1988.

34
BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 4:
Narrativa e resistência, p. 118-135.

CARVALHO, Neuza Ceciliato de. “A emancipação do sujeito infantil pela


discursividade do delírio”. In: PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves; ANTUNES,
Benedito. Trança de histórias: a criação literária de Ana Maria Machado. São Paulo:
Editora UNESP; Assis-SP: ANEP, 2004, p. 67-85.

MACHADO, Ana Maria. Bisa Bia, Bisa Bel. 8. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1990.

35
ASPECTOS DO CONTEMPORÂNEO NO LIVRO DE PHILIP ROTH,
O COMPLEXO DE PORTNOY

Ana Maria Wertheimer5

INTRODUÇÃO

Dentre as várias concepções do contemporâneo, as ideias do filósofo italiano


Giorgio Agamben e do antropólogo francês Marc Augé fundem-se em um mesmo
aspecto: para ambos, a contemporaneidade é estabelecida a partir da relação do
artista e seu tempo; só será contemporâneo aquele que conseguir romper com seu
tempo, aquele que estiver, simultaneamente, inserido e desvinculado do tempo
presente. O artista que coincide plenamente com sua época não pode ser
considerado contemporâneo, pois o contemporâneo exige uma desconexão, uma
dissociação do presente.
“O contemporâneo é intempestivo”, esta definição é atribuída a Roland
Barthes, e foi encontrada nas anotações do teórico francês a respeito de Nietzsche.
O termo ‘intempestivo’ foi originalmente utilizado por Nitzsche no texto
Considerações intempestivas, cujo objetivo era um acerto de contas com o seu
tempo: Nietzsche escreve para explicar seu trabalho O nascimento da tragédia, cuja
interpretação reduziu a obra a um elogio da música de Wagner. Nietzsche, segundo
Agamben (2010), é “verdadeiramente contemporâneo”, pois, embora perceba sua
dissociação, sua desconexão com o tempo presente, tem ciência de que “pertence
irrevogavelmente a seu tempo, sabe que não pode fugir a seu tempo” (AGAMBEN:
2010,59), o que justifica a necessidade de elucidar aos leitores alguns aspectos de
sua obra que não foram propriamente identificados.
Agamben (2010) recorre à ‘metáfora do escuro’ para explicar a dissociação
entre o artista contemporâneo e seu tempo: ser contemporâneo é olhar sobre o
tempo presente não para enxergar o que todos veem (as luzes do seu tempo), mas
para identificar o escuro, a obscuridade, as trevas do presente. Entretanto, para ser
contemporâneo, é preciso que haja uma relação entre um tempo presente e outros

5Doutoranda do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do


Rio Grande do Sul (PUCRS).

36
tempos, deve haver uma intersecção entre tempos. O contemporâneo implica, ao
mesmo tempo, uma distância e uma proximidade com a origem, uma confluência
entre o presente e o passado, em que o presente constitui a parte “ainda não-vivida”
de um passado “já vivido” (AGAMBEN: 2010, 66).
A pintura Olympia, de Edouard Manet, é o exemplo usado por Augé (2012)
para ilustrar o contemporâneo. Quando foi exibida em 1865, a obra gerou protestos
em Paris. Os conservadores classificaram-na como imoral e vulgar, embora
houvesse uma clara referência ao consagrado quadro de Ticiano, Vênus de Urbino,
de 1538. Contudo, a obra de Manet tinha seus defensores, aqueles que, como Émile
Zola6, enxergavam para além de seu tempo e apreciaram o nu austero, eloquente e
natural, apropriado à tendência impressionista nas artes da segunda metade do
século XIX.
Transpondo as reflexões do contemporâneo para o âmbito da literatura, há
que se falar de Dostoiévski (1821-1881) cujas obras, segundo o filósofo russo
Mikhail Bakhtin (1981), não se enquadravam nas normas da literatura de sua época.
Mesmo sem utilizar o termo ‘contemporâneo’ para referir-se ao genial escritor,
Bakhtin (1981) identifica na obra de Dostoievski, assim como na prosa literária
europeia da segunda metade do século XIX, o surgimento de um novo gênero: o
romance. A relação entre o passado e o presente ou, em outras palavras, a
identificação de elementos culturais da Idade Média na prosa de Dostoiévski,
constitui a base da argumentação de Bakhtin (1981) para a concepção de uma
Teoria do Romance.
A relação entre tempos sugerida por Agamben (2010) pode ser identificada
na teoria de Bakhtin (1981), porquanto que todo gênero literário é novo e velho ao
mesmo tempo; todo gênero literário conserva as tendências mais estáveis e
simultaneamente renasce e renova-se a cada etapa da evolução7 da literatura. Com
a análise da obra de Dostoiévski, Bakhtin (1981) ratifica a teoria e a história dos

6 Émile Zola, por defender o trabalho de Manet, mereceu, do pintor, seu retrato, uma distinção concedida
apenas aos nobres, numa época anterior ao surgimento da fotografia. O escritor francês é representado no
estúdio de Manet, com a obra Olympia ao fundo.
7 O termo ‘evolução’ é usado no sentido de progressão, de prosseguimento, sem significar que a fase posterior

seja mais elaborada, de melhor qualidade, que a fase que a precede.

37
gêneros literários: todo gênero é novo e velho ao mesmo tempo; o gênero conserva
e reflete as tendências mais estáveis, ao mesmo tempo em que renasce e se
atualiza em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura. Para Bakhtin (1981),
os gêneros não desaparecem, mas transformam-se e fundem-se em novos gêneros,
revelando a relação do passado com o presente, característica do contemporâneo.

O CONTEMPORÂNEO NO COMPLEXO DE PORTNOY

Publicado em 1969, o polêmico livro O complexo de Portnoy, do escritor


americano Philip Roth, não institui um novo gênero literário, ainda que a crítica
literária tenha tido dificuldades para classificá-la; é possível, porém, que esta obra
represente um contemporâneo de seu tempo. Resguardadas as proporções de
reconhecimento e de magnitude, a narrativa de Roth poderia ser comparada ao
quadro Olympia de Manet, uma vez que ambas as obras rompem com sua época,
ou, no mínimo, causam um desconforto, por questões semelhantes: o erotismo. O
propósito deste trabalho é, por meio da análise de passagens do livro O complexo
de Portnoy, hoje considerado um clássico da literatura norte-americana, identificar
aspectos, tanto na forma quanto no conteúdo, que caracterizem sua
contemporaneidade.
Sem a pretensão de equiparar Roth a Dostoiévski, nem as considerações
aqui apontadas à sólida argumentação de Bakhtin, o presente estudo tem o
propósito de responder a duas questões: a primeira, mais simples - Quais aspectos
d’O complexo de Portnoy podem ser considerados contemporâneos para o final da
década de 60? e a outra, mais complexa – Pode-se considerar O complexo de
Portnoy um romance contemporâneo ainda hoje?
Não há dúvidas de que é mais fácil, ou talvez menos arriscado, analisar-se
uma obra que já conta com mais de 45 anos de publicação. O complexo de Portnoy
é considerada a obra que impulsionou a carreira de Philip Roth, pois, apesar do
desconforto causado, a narrativa foi sucesso de vendas e de crítica. Trata-se um
narrador-protagonista, Alexander Portnoy, um homem solteiro, judeu, de 33 anos,
que relata sua vida em uma sessão de análise. Seu interlocutor, o Dr. Spielvogel,

38
pronuncia-se apenas no último capítulo e por uma única frase. Classificada como
humor tipicamente judeu, a história é narrada em primeira pessoa e chegou a ser
comparada a uma stand up comedy, por razão das piadas e dos testemunhos que
apresenta, principalmente os relacionados à superproteção materna e à obsessão
do personagem por sexo.
Na abertura do livro já se encontra o primeiro elemento inovador: um verbete
explica o conceito de ‘complexo de Portnoy’, uma síndrome descrita pelo Dr.
Spielvogel em uma revista científica de psicanálise. O verbete é, fundamentalmente,
um resumo, uma interpretação sucinta da narrativa, e levanta suspeitas sobre uma
possível veracidade do conceito. As coincidências entre o personagem Portnoy e o
autor Philip Roth, que não passam despercebidas aos que apreciam detectar fatos
verídicos na ficção, parecem ser mais um recurso do perspicaz escritor para garantir
a polêmica e a estranheza da obra. Ambos de família judia, criador e criatura
nasceram no mesmo ano, na mesma cidade, moraram no mesmo bairro e
frequentaram a mesma escola. É possível que haja outros pontos em comum, mas
esta aproximação ficção e realidade, ou os aspectos autobiográficos desta obra, se
é que existam, não serão significativos para a foco desta discussão.
A narrativa de Portnoy é dividida em sete capítulos de extensões distintas
que variam desde uma única frase, como já mencionado, a um texto de mais de 85
páginas. Essa aparente falta de cuidado com a forma pode ser explicada pelo
conteúdo de cada parte: embora não existam referências claras, cada capítulo (com
exceção do último) pode ser interpretado uma sessão de análise, o que também
explica desenvolvimento temporal da narrativa. O narrador relata fatos e
comentários sobre sua infância, adolescência e vida adulta, intercalando
comentários, e por vezes transgredindo uma ordem cronológica.
O tema do livro, porém, é o que aproxima esta obra literária à pintura de
Manet. Enquanto no livro Portnoy narra, de forma natural e desvelada, detalhes de
suas aventuras amorosas e da frequente prática do onanismo (ou masturbação),
este talvez o ponto mais arrojado (ou intempestivo) e censurado do livro, no quadro,
o pintor francês retrata a nudez de uma jovem prostituta numa atmosfera erótica,
incomum, e, por isso, considerada vulgar aos padrões da época. A abordagem do

39
erotismo pode não ser semelhante em ambas composições artísticas, mas o fato de
terem constrangido ou desacomodado a crítica é que une estas duas obras e que
pode assegurar o seu caráter contemporâneo.
No primeiro capítulo, ou na primeira sessão de análise, o narrador-
personagem apresenta a sua família: a mãe, Sophie, uma mulher determinada, o
pai, Jack, um homem submisso que tem problemas de constipação intestinal, e a
irmã mais velha Hannah, a quem Portnoy despreza, considerando-a inferior em
inteligência e beleza. Ao falar da infância, o narrador já apresenta testemunhos do
excesso de zelo de sua mãe, uma característica da mãe judia, o que justifica que o
livro tenha sido (ou ainda seja) interpretado por alguns como uma piada de judeu.
No segundo capítulo, ao narrar fatos de sua adolescência, Portnoy aborda o
tema masturbação, prática que inicia na puberdade e mantém-se até o momento
atual da vida do protagonista. Aludindo e comparando-se ao personagem
Raskolnikov, de Dostoiévski, Portnoy preocupa-se em não deixar rastros do ato que
considera criminoso: a masturbação. “Sou o Raskolnikov do autoerotismo – a
pegajosa prova do crime está em todos os lugares” (ROTH: 2013,23). Portnoy
contesta a forma repressora pela qual foi educado, temendo sempre a uma
represália divina ou cedendo às chantagens maternas.
A franqueza do personagem ao relatar episódios íntimos e suas relações
familiares, até mesmo questões edipianas ainda na infância e na pré-adolescência,
são pontos que podem ser estudados sob a ótica de Bakhtin (1981). Embora a
prática clínica da psicanálise, nos anos 60, já seja conhecida e estimada nos meios
intelectuais, os leitores que reprovam a obra de Roth fixam-se apenas nas partes
consideradas pornográficas ou cômicas, desprezando os aspectos inovadores da
narrativa: nos anos da contracultura e dos movimentos pela igualdade e liberdade
sexual, o personagem de Roth proporciona senão uma identificação, ao menos um
reconhecimento dos conflitos por que passa um jovem adulto de classe média,
dividido entre a influência dos pais e seus anseios em meio a uma recém-
conquistada liberdade por conta da idade e do movimento hippie.
Assim como no romance de aventura analisado por Bakhtin, em que o
elevado se funde com o grotesco, o herói (ou anti-herói) do livro de Philip Roth

40
apresenta, em meio a referências sobre Dostoieviski e Kafka, referências essas que
permitem um mapeamento das leituras do protagonista, os anseios sexuais de
Portnoy, que parecem reduzi-lo à escória humana. Alex Portnoy não está
engessado à imagem de jovem americano judeu bem-sucedido, mas esta roupagem
vincula-se e ele conforme a situação em que se encontra. Segundo Bakhtin (1981),
no romance, a roupagem deve adaptar-se ao herói, não havendo uma identidade
fixa ou uma posição sólida, porém várias roupagens de acordo com as diferentes
situações. Essas roupagens, ou representações, são desveladas nas sessões de
análise de Portnoy.
No terceiro capítulo, o personagem fala do relacionamento entre judeus e
não-judeus, e narra a história de um primo que, antes de ser morto na II Guerra,
apaixonara-se por uma gói o que provocou o descontentamento de toda a família.
“Quando Heshie morreu na guerra, a única coisa que as pessoas conseguiam dizer
a minha tia Clara e ao meu tio Hymie, para de algum modo atenuar o horror, para
consolá-los um pouco era: “Pelo menos não deixou filhos góis para vocês” (ROTH:
2013,56).
Neste capítulo, podem ser indicados vários exemplos do diálogo socrático ou
da sátira menipeia (carnavalização na literatura), dois elementos do gênero
romântico defendidos por Bakhtin (1981). Os métodos do diálogo socrático, a
síncrise e a anácrise, são usados pelo personagem principal, Alex Portnoy, que
reflete sobre seu comportamento, sobre a verdade de suas convicções e de seus
sentimentos. A provocação da palavra pela palavra que encadeia o discurso do
narrador (a anácrise) caracteriza o diálogo no limiar que leva o protagonista a revelar
questões profundas da personalidade e do pensamento. No entanto, é na raiz
carnavalesca, no elemento cômico, na aproximação entre o elevado e o grotesco,
que a obra de Philip Roth parece ter sido mais apreciada.
No capítulo quarto, o escritor utiliza pela primeira vez nesta obra um recurso
que será usado com mais frequência até o final da narrativa: letras maiúsculas como
marca de crítica, repulsa ou fúria. Dentre os vários comentários que faz sobre seus
pais, Portnoy aponta: “[...] além disso, o fato de que nada nunca era apenas nada,
mas sim sempre ALGUMA COISA, de que até mesmo o episódio mais corriqueiro,

41
podia se transformar, sem aviso prévio, em uma TERRÍVEL CRISE [...] (ROTH:
2013, 85).
Neste mesmo capítulo, o mais longo da obra, Portnoy conta sobre o suicídio
de um rapaz judeu, seu vizinho, e da incompreensão de todos, principalmente da
mãe repressora e dominadora do rapaz. Embora o protagonista critique os shows
de stand up comedy, nomeando o humoriata de vulgar palhaço de boate, Portnoy
não deixa de contar uma piada de judeu que representa o quanto os pais, mais
precisamente a mãe, orgulha-se de seu filho: “Socorro, meu filho médico está se
afogando!” (ROTH: 2013,98). A pressão dos pais para que Portnoy se case é mais
um dos conflitos do personagem, que neste capítulo quarto, revela sua aversão ao
casamento e introduz a personagem Mary Jane Reed, sua última namorada, motivo
que levou Portnoy a procurar um psicanalista.
No quinto capítulo, Portnoy conta que lê Freud e procura analisar seu
relacionamento com uma moça não-judia, muito sedutora, porém com um nível
intelectual muito inferior ao seu. A namorada também pressiona Portnoy a casar,
tendo em vista que o relacionamento já dura dez meses. O personagem conta
detalhes dos encontros com a namorada e fala sobre o rompimento da relação na
Europa, após o casal ter consumado uma fantasia sexual: uma relação a três. A
consequência deste rompimento, acredita Portnoy, é a causa de sua impotência,
provavelmente uma maldição da namorada.
No capítulo seis, o protagonista relata a sua ida a Israel, “onde todos são
judeus” (ROTH: 2013,219). Portnoy reflete sobre política e religião, mas sua grande
preocupação é não conseguir manter uma ereção na Terra Prometida. A narrativa
intensifica-se ao longo deste capítulo, o que pode ser visto pelo uso de letras
maiúsculas, bem como pela extensão das frases e pela seleção das palavras.
Portnoy relata sua tentativa frustrada de relacionamento com uma moça israelense
e representa (ficção dentro da ficção) seu julgamento no tribunal por ter rompido
com namorada. No final deste capítulo, ou desta sessão de psicanálise, Portnoy
finalmente vê-se curado e ejacula, o que é identificado pela fala inusitada:

42
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhh!!!!!
(ROTH: 2013, 233)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ultrapassados os tabus sexuais na literatura, é possível que hoje O complexo


de Portnoy já não surpreenda por seu conteúdo e, com relação à sua forma, há,
neste início de século, projetos bem mais arrojados e bem mais difíceis de serem
classificados como obras exclusivamente literárias. Retomando os conceitos de
Agamben, porém, no que se refere à ruptura de seu tempo, não há dúvidas de que
o polêmico livro de Philip Roth seja visto como um contemporâneo de sua época.
Assim como a nudez na obra de Manet, o erotismo em O complexo de
Portnoy pode ser considerado um elemento intempestivo e instigante, que revela,
para os apreciadores mais perspicazes, um tema profundamente humano,
determinado pela natureza humana: a busca da identidade que, nesta narrativa,
apresenta-se junto a temas como a autodepreciação e a crítica aos costumes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos,
2010.
AUGÉ, Marc. Para onde foi o futuro? São Paulo: Papirus, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras
de Dostoiévski. In: ______ Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro:
Forense Univ., 1981. P. 78-155.
ROTH, Philip. O complexo de Portnoy. Trad. Cezar Tozzi. 4. ed. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 1971.
ROTH, Philip. O complexo de Portnoy. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.

43
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARA DOCENTES E DISCENTES DO ENSINO
DE LÍNGUA ESTRANGEIRA, LITERATURA E CULTURA

Ana Paula Rodrigues Ferro8

Introdução

O artista americano Richard Outcault, é considerado o percursos das


histórias em quadrinhos, ao publicar em 1895, a tirinha intitulada “The Yellow Kid”.
A obra teve tamanha precursão, que acabou sendo disputada por jornais de renome.
No Brasil, o ítalo-brasileiro, Ângelo Agostini, em 1869 elaborou nossa primeira
tirinha, intitulada “As Aventuras de Nhô-Quim e Zé Caipora”, e publicadas na revista
Vida Fluminense, do Rio de Janeiro.

Figura 1 – Ciência hoje

Fonte: Ciência hoje Disponível em: < http://chc.cienciahoje.uol.com.br/a-longa-


historia-dos-quadrinhos/> Acessado em: 20/09/2015

Quanto sua relação com à educação, é importante destacar que as Histórias


em Quadrinhos foram excluídas do meio acadêmicos e portanto, da sala de aula,
por muito tempo, por serem classificadas como “arte inferior”, no entanto,
documento como os PCNs e importantes estudioso tais quais, Valdomiro Vergueiro,
Roberto Elísio, Paulo Ramos entre outros, afirmam que essa realidade vem
mudando, devido a sociedade perceber o seu poder de comunicação,
interdisciplinaridade e riqueza de significados.

8
Mestranda em Comunicação e Inovação - Universidade Municipal de São Caetano do Sul, doutoranda em
Educação Humanidades e Artes (Universidade Nacional de Rosário – UNR), Graduada em Letras Port-Esp,
Especialista em Língua Portuguesa e Literatura e Ensino de Espanhol para Brasileiro PUC/FCE. Professora do
Ensino fundamental e Médio no Colégio Cristo Rei e na Pós Graduação da Faculdade de Conchas – FACON.

44
Partilhando desse pensamento, Araújo, Costa e Costa (2008, p. 29)
destacam que:

[...] os quadrinhos podem ser utilizados na educação como instrumento


para a prática educativa, porque neles podemos encontrar elementos
composicionais que poderiam ser bastante úteis como meio de
alfabetização e leitura saudável, sem falar na presença de técnicas
artísticas como enquadramento, relação entre figura e fundo entre outras,
que são importantes nas Artes Visuais e que poderiam se relacionar
perfeitamente com a educação, induzindo os alunos que não sabem ler e
escrever a aprenderem a ler e escrever a partir de imagens, ou seja,
estariam se alfabetizando visualmente.

Por outro lado, da mesma forma que a arte, como o cinema, a música e a
literatura, as histórias em quadrinhos são expressões culturais populares capazes
de promover a cultura, comunicação e interação do indivíduo com o meios e com o
outro, devido seu caráter multilíngue. Nesse sentido, em se tratando do ensino de
línguas por meios das Histórias em Quadrinhos (HQs), é de suma importância que
o educador possibilite ao estudante o contato com os mais variados tipos de gêneros
textuais, bem como suas particularidades na língua (PCN - BRASIL, 1998). É
importante ademais, entender que os textos organizam-se sempre dentro de certas
restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam
como pertencentes a este ou àquele gênero. Desse modo, a noção de gênero,
constitutiva do texto precisa ser tomada como objeto de ensino, assim, o professor
pode explorar, dentre as diversas possibilidades de interpretação de uma mesma
obra clássica, o que mais lhe for pertinente, como:

*A prática leitora: Pode-se possibilitar o acesso à leitura no segundo idioma,


adaptando o nível de fluência do aluno, bem como o trabalho fonético;

* Escrita: Há a possibilidade de avaliar a escrita sobre a obra estudada;


podemos pontuar conhecimento de novos léxicos, interpretação textual, a fluência
na escrita, o domínio gramatical;

* Possibilidade de desenvolver a criatividade: Os alunos podem produzir com


o auxílio do professor suas próprias produções de HQs, sejam elas em formato de
fanzines, ou por meio de recursos tecnológicos, como os que muitos portais
educacionais e metodológicos possuem: Sistema Positivo de Ensino, Pixton,
Comiqs, Bitstrips, Go! Animate;

* Explorar conhecimento cultural e social: Trabalhar períodos literários,


históricos, costumes, valores, linguajar; Incentivo ao acesso aos clássicos literários:
Por meio de uma leitura singela e lúdica, as HQs nos permitem construir no aluno o
gosto pela leitura e pelos clássicos, de maneira a respeitar o nível de interpretação
e maturidade do aprendiz;

*Apresentações dramaturgas: Após uma leitura cuidadosa e interagida com


a sala, o professor pode organizar falas e papéis, para que os alunos encenem a

45
obra discutida. Essa atividade promove a interação e inibe a timidez, uma vez que
o educador pode intervir nos papeis que cada aluno representará.

*Decodificação e conhecimento dos signos linguísticos: Possibilita que o


aluno conheça e identifique os signos linguísticos que trazem em si todo um contexto
de comunicação. Por exemplo, para ser um cavalheiro andante, era necessário
trajar-se com armadura de proteção contra os golpes das espadas.
(FERRO, 2014)
Outra característica marcante das HQs, é a presença da linguagem (escrita
e visual), que carrega em si uma grande quantidade de aspectos culturais e mais
especificamente, os significados da língua cotidiana, como gírias, figuras de
linguagem, ditados populares etc.

Figura 2 – Página de divertido

Fonte: divertudo Disponível em: <http://www.divertudo.com.br/quadrinhos/quadrinhos-txt.html>


Acessado em: 20/09/2015

Além disso, por antecederem à leitura das palavras, as histórias em


quadrinhos podem promover a criatividade, criticidade e capacidade de
interpretação de diferentes signos linguísticos, como os visuais, gestuais e
simbólicos, mesmo dos receptores não letrados.
Conforme nos instrui Freire (1994), o processo de interpretação tem início a
partir da leitura e dos conhecimentos de mundo que cada ser possui, o que serve
de ponto de partida para a leitura da palavra escrita. Nesse sentido, cabe ao
professor recorrer aos mais diversos gêneros textuais para promover e facilitar o
acesso a língua alvo de estudo. Sob essa visão, Paiva (2013, p. 65), afirma que:
“Outro ponto positivo é que ‘ler’ uma HQ pode acontecer mesmo antes da
alfabetização, uma vez que os desenhos conduzem à ‘leitura’, em qualquer idioma,
estimulando a criatividade, a imaginação e a comunicação”.
Barbosa e Vergueiro (2004 p.22) também reforçam o pensamento acima,
aclarando que:

Palavras e imagens, juntos, ensinam de forma mais eficiente a interligação


do texto com a imagem, existente nas histórias em quadrinhos, ampliando
a compreensão de conceitos de uma forma que qualquer um dos códigos,
isoladamente, teria dificuldades para atingir.

46
Tal afirmação nos faz crer que o êxito do trabalho com HQs está ligado à
dedicação, organização e objetivo para colocar em prática o trabalho proposto. Por
essa razão, LIBÂNEO, (1994, p.33) enfatiza que “é tarefa do professor, preocupar-
se com metodologias, recursos e estratégias que, articulados com as atividades em
sala de aula tornem possível o crescente processo de aprendizagem dos alunos”.
Em outras palavras, é facultativo que o educador entenda que o ato de ensinar e
aprender caminham juntos, e são importantes para sua prática, por serem
promotores do saber.
Sob essa perspectiva, e devido as Histórias em Quadrinhos serem um meio
de comunicação multimodal, composta pelos signos visuais e linguísticos, estas
tornam-se excelentes recursos pedagógico, contribuindo para o desenvolvimento da
autonomia do aluno, incentivando o gosto pela leitura e cultura da nova língua.

O consagrado pesquisador da área de HQs, Vergueiro, afirma que:

A introdução das histórias em quadrinhos (HQs) no âmbito educativo


ocorreu de forma tímida e restrita. As HQs foram utilizadas, inicialmente,
nos manuais didáticos para ilustrar textos rebuscados. Contudo, com o
tempo, foi sendo observada a boa aceitação entre os alunos e as pesquisas
mostraram benefícios de sua utilização nas salas de aula como apoio
pedagógico as diversas disciplinas (VERGUEIRO, 2010).

Os fatores culturais e linguísticos atrelados ao ensino de línguas e literatura,


podem ser explorados por meios dos quadrinhos, de maneira interdisciplinar, dentro
e fora da sala de aula, através da mediação do professor.
Sobre os elementos culturais e competência cultural, Thanasoulas (2001, p.
1-2), afirma que: “ensinar uma língua estrangeira não é apenas dar estruturas
sintáticas ou aprender um novo vocabulário e expressões, mas principalmente,
deveria incorporar elementos culturais que são relacionados com a própria língua”.
Reiterando a importância dos conceitos de pragmática e estudo do uso da língua,
que está relacionado a importantes áreas do mesmo campo (filosofia, sociologia,
literatura e etc.).
Vale recordar por fim, que tanto a literatura, quanto a história em quadrinhos
são artes capazes de representar momentos sócio-históricos, nos quais foram
produzidas. Nesse sentido, cabe ao professor, ter o cuidado de analisar a obras
adaptadas, seus termos e linguajares, bem como o cenário e outros elementos que
representam a obra fonte, possibilitando assim maior acessibilidade à compreensão
de sua linguagem e aproximando o receptor à leitura.

Conclusão

Conclui-se que as HQs, por meio de seus elementos linguísticos, visuais e


icônicos são de grande valia às aulas de línguas, literatura e cultura, propiciando ao
educador meios de explorar as possibilidades de inserir o estudante no mundo da
língua em estudo, seja por meio da interação com a cultura, história, arte, ludicidade
e o idioma, em seus preceitos norteadores.

47
Levando-se em consideração o perfil do atual aluno, em meio a facilidade de
se comunicar ou interagir com as diversas mídias, cabe ao professor recorrer à
novas propostas de ensino e aprendizagem, para despertar no estudante o
interesse pelo conhecimento, de maneira que este possa explorar as destrezas
comunicativas do novo idioma, através da proposta com as HQs. Nesse sentido, o
presente escrito aponta que o universo dos quadrinhos é extenso e rico em
possibilidades de trabalho ligados ao ensino, contudo, faz-se necessário despertar
a criticidade do professor-aluno, objetivando prepará-los para recorrer as múltiplas
linguagens das HQs, explorar a interdisciplinaridade, a literatura, as tipologias
textuais propostas, além de questões ligadas à cultura e normas da língua em
estudo.

Referências

ARAÚJO, Gustavo Cunho; COSTA, Mauricio Alves; COSTA, Evânio Bezerra. As


historias em quadrinhos na educação: possibilidades de um recurso
DidáticoPedagógico. Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Uberlândia, n. 2, p. 26-27. Julho/dezembro 2008. Disponível em:
<http://www.mel.ileel.ufu.br/pet/amargem/amargem2/estudos/MARGEM1-
E31.pdf.> acesso em Out de 2015

BARBOSA, Alexandre; VERGUEIRO, Waldomiro (orgs.). Como usar as histórias


em quadrinhos em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.

BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília. MEC/SEF.
1998.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

LIBANEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

PAIVA, Fábio da Silva. Educação e Violência nas Histórias em Quadrinhos de


Batman. Recife, Ed. Universitária UFPE, 2013.

THANASOULAS, Dimitrios. The Importance of Teaching Culture in The Foreign


Language Classroom. Radical Pedagogy. CAAP, 2001. p. 20-36.

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino In: RAMA, Angela.;


VERGUEIRO, Waldomiro. (Org.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de
aula. São Paulo: Contexto, 2010.

48
GRAMMATICA ANALYTICA E GRAMMATICA DESCRIPTIVA, DE MAXIMINO
DE ARAÚJO MACIEL: UMA ABORDAGEM DE RECURSOS EXPRESSIVOS
(SEMIOLOGIA)

Antonio Carlos Silva de Carvalho9

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Corpus de textos Gramaticais
da Língua Portuguesa (CTGLP), que tem como objetivo estabelecer nova
representação da história da terminologia linguística portuguesa e brasileira, tanto
sob um ângulo conceitual e terminológico quanto lexical e etimológico. Assim, sob
coordenação da Profa. Dra. Marli Quadros Leite, apresentamos a descrição das
duas gramáticas de Maximino de Araújo Maciel, a Grammatica Analytica, cuja
primeira edição — com a qual trabalhamos —, publicada no Rio de Janeiro em 1887,
foi muito modificada e recebeu uma segunda edição, publicada em 1894,
denominada Grammatica Descriptiva — e que pode ser considerada uma outra
gramática —, uma “terceira em 1904, aumentada com muitas notas e resumos
sinóticos; a quarta em 1910, com um ‘Breve retrospecto sobre o ensino da Língua
Portuguesa’, no final do volume, que continuou a aparecer nas demais edições”
(MORAES, 1977, 165); aqui, utilizamos a edição de 1931, a décima segunda.
Devido à natureza do projeto, seguimos nas Fichas a grafia tal qual aparece
nos textos originais. Também, é mister dizer que nem todos os Tópicos das Fichas
foram transcritos, inclusive porque o trabalho não está concluído, e que, por se tratar
de obras do mesmo autor, sempre que possível, procuramos não repetir Tópicos.

9
Pesquisador da CAPES e Pós-doutorando pela Universidade Cruzeiro do Sul vinculado ao Grupo de Estudos
Estilísticos, Doutor em Letras Clássicas pela FFLCH-USP, Graduado em Letras-Português/Latim pela FFLCH-
USP, Licenciado em Letras-Português pela FE-USP. Membro do GT Gramáticas: história, descrição e discurso.
Parecerista da Revista Estudos Linguísticos do GEL (SP), da Revista Guavira Letras (MS) e da Revista
Eletrônica Simbiótica (ES).

49
2. GRAMMATICA ANALYTICA
Tópicos da Ficha:
2.1 Biografia do autor: Sergipano de Rosário do Catete, onde nasceu em 20 de abril
de 1866, Maximino de Araújo Maciel faleceu no Rio de Janeiro em 2 de maio de
1923. Filho de João Paulo dos Santos e Maria Clara dos Santos de Araújo Maciel,
fez os estudos preparatórios no Ateneu Sergipense; na Faculdade de Direito do Rio
de Janeiro (1890 a 1894) e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1896 a
1901), graduou-se em Direito e Medicina respectivamente; filósofo, poeta e
pedagogo, exerceu a medicina e lecionou no Colégio Militar, para o qual foi
nomeado catedrático de Português em 1893; escreveu sobre botânica, agronomia,
medicina, zoologia, química, filologia. São obras do autor: Philologia Portugueza –
ensaios descriptivos e históricos; Grammatica Descriptiva; A Taxinomia social e seu
autor (collecção de artigos publicados no Debate); Lições de Botanica geral,
professadas no Gymnasio Nacional; Noções de Agronomia – Lições
complementares ao estudo de Botanica; As proporções do individuo humano –
These inaugural aprovada com distincção; Lições elementares de Lingua
Portugueza; Discurso na distribuição de prêmios aos alunos do Collegio Militar em
1903; Valeur des diferentes méthodes de traitement dans la tuberculose – Mémoire
présenté au Congrés International de Paris; La médication urique dans la
tuberculose (Revista Medico-Cirurgica do Brasil); L’illusion des arsénicaux dans la
tuberculose (Revista Medico-Cirurgica do Brasil); Elementos de Chimica geral;
Elementos de Zoologia, de acordo com a fauna brasileira (GUIMARÃES, 1996),
(LEITE, 2012), (MACIEL, 1931).
2.2 Título da obra: Grammatica Analytica – baseada nas doutrinas modernas.
2.3 Edição utilizada: 1. edição, 1887, Rio de Janeiro: Typ. Central.
2.4 Volumetria: 316 páginas [1.480 caracteres por página] acrescidas de: fólio
contendo título; fólio, folha de rosto; fólio, dedicatória; fólio, dedicatória; 6 páginas
de Introdução; fólio contendo plano synoptico; fólio, Errata.
2.5 Número de caracteres: 476.000 caracteres, aproximadamente.
2.6 Metalinguagem: Português com forte propensão ao grego para nomear os
fenômenos linguísticos — nomeação que se dá sob o contato do autor com as

50
ciências naturais, a partir das quais muitos nomes de sua terminologia são tomados
de empréstimo às ciências biológicas.

3. GRAMMATICA DESCRIPTIVA
Tópicos da Ficha:
3.1 Acesso ao texto: Bibliotecas; Dedalus – Banco de Dados Bibliográficos da USP.
3.2 Título da obra: Grammatica Descriptiva – baseada nas doutrinas modernas.
3.3 Anotações sobre o título: Maximino fez muitas modificações desde a 1ª edição,
mais sucinta, da gramática; aqui, faremos alguns apontamentos que demonstram
essas mudanças. Os assuntos tratados tanto naquela quanto nesta — phonologia,
lexiologia, syntaxologia — foram abordados com mais extensão no segundo livro,
mais informações, mais tópicos sobre o mesmo assunto, exemplos: acentuação,
pronomes, adjetivos, verbos; vários termos são grafados de modo diferente: naquela
“lexeologia”, “taxéonomia”, nesta “lexiologia”, “taxinomia”; termos diferentes para
tratar do mesmo assunto: naquela “distribuição das raizes”, nesta “estructura das
raizes”; naquela, adjetivos aparece como “palavras modificativas”, nesta como
“adjectivos”; naquela, ao discorrer sobre “taxéonomia” o autor trata da
“kampenomia”, termo a que não faz menção quando discorre sobre os verbos nesta
edição.
Algumas outras diferenças: na 1ª edição, o tópico Phonologia é discutido em
31 itens (phoneticas e phonemas são tratados juntos), nesta, em 46 (tratados
separadamente); Lexeologia, na 1ª, 100 itens, nesta, Lexiologia e suas subdivisões,
154; Syntaxologia, naquela, 55 itens, nesta, Syntaxologia e suas subdivisões, 106
itens; esta edição apresenta o tópico ‘Modelos de analyse syntactica’, discutido em
4 itens, que a 1ª edição não traz; o mesmo se pode dizer do Appendice ‘Breve
retrospecto sobre o ensino da Lingua Portugueza’.
Nesse ‘Breve retrospecto...’, “encontramos um elucidativo panorama sobre o
ensino de Língua Portuguesa, com os principais estudiosos do século XIX, cujas
obras muito auxiliaram nosso processo de gramatização” (FÁVERO; MOLINA, 2006,
183). PLANO SYNOPTICO – GRAMMATICA: Phonologia (Phonetica,
Phonographia, Prosodia, Orthographia), Lexiologia (Morphologia, Taxinomia,

51
Ptoseonomia, Etymologia), Syntaxilogia (Relacional, Phraseologica, Literaria),
Semiologia (Semantica, Tropologia).
3.4 Tipo da obra: Analítica, descritiva ou expositiva, prescritiva.
3.5 Título indexado: Gramática descritiva, geral, particular.
3.6 Edição utilizada: 1931, Rio de Janeiro, 1º milheiro da 12ª edição, augmentada e
refundida.
3.7 Volumetria: 498 páginas [1.600 caracteres por página aproximadamente]
acrescidas de: fólio título da obra e Obras do Autor [I-II]; fólio folha de rosto e
assinatura do autor [III-IV]; fólio Prologo da 2ª edição [V-VI]; fólio Algumas palavras
sobre a 3ª edição [VII-IX]; fólio Continuação e Plano Synoptico [IX-X]; 10 páginas de
Appendice, 5 páginas de Indice das materias.
A folha de rosto apresenta o nome Lingua Portugueza seguido do título
Grammatica Descriptiva, baseada nas doutrinas modernas pelo Dr. Maximino
Maciel, natural de Sergipe, formado em medicina e direito, professor cathedratico
do Collegio Militar, membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro,
do Instituto Histórico e Geographico de Sergipe. “Lex sum sermonis, linguarum
regula certa, qui me non dedicit, caetera nulla petat.” Bacon. Prologo da 2ª edição
[V], Algumas palavras sobre a 3ª edição [VII-IX] [e sobre edições subsequentes].
3.8 Número de caracteres: 837.200 caracteres aproximadamente.
3.9 Edições e difusão: A primeira edição desta gramática foi publicada no Rio de
Janeiro em 1887 com o título Grammatica Analytica; foi muito modificada e recebeu
a segunda edição “em 1894; a terceira em 1904, aumentada com muitas notas e
resumos sinóticos; a quarta em 1910, com um ‘Breve retrospecto sobre o ensino da
Língua Portuguesa’, no final do volume, que continuou a aparecer nas demais
edições; a quinta, sem data; a sexta, aumentada e refundida, em 1916; a sétima,
em 1918; a oitava, última em vida do autor, em 1922; e sucessivamente, edições
póstumas, a nona em 1925, a décima em 1926, a décima primeira em 1928 e a
décima segunda, provavelmente a última, em 1931.” (MORAES, 1977, 165)
3.10 Sumário da obra: Noções PROPEDEUTICAS [I], Phonologia e sua
subdivisão. Phonetica [5], Phonemas [6], Phonographia [22], Historico das letras
[31], Prosodia [33], Quantidade prosodica [33], Accentuação prosodica [35],

52
Accentuação tonica [36], Accentuação dupla [41], Accentuação perispoména ou
circumflexa [41], Metaplasmos [44], Systema etymologico [56], Systema phonetico
[57], Systema mixto [58], Regras orthographicas [72], O Aspecto graphico do
vocabulo [74], Lexiologia e sua subdivisão. Lexiologia [79], Morphologia: raiz e
affixos [80], Formulas dos themas [81], Estructura das raizes [82], Estructura do
vocabulo [85], Funcção dos prefixos [93], Prefixos latinos [94], Prefixos gregos [ 97],
Fórmas cognatas [98], Raizes latinas [99], Fórmas analogas [102], Homonymos:
homographos, homophonos [102-103], Taxinomia [116], As categorias
grammaticaes: substantivo [116], Expressão substantiva [121], Expressão
personativa [122], Adjectivo [123], Pronome [131], Verbo [135], Personalidade do
verbo [138], Pronominalidade do verbo [140], Verbos irregulares: fortes, fracos e
graphicos [142], Auxiliares participaes [144], Verbo redundante [145], Preposição
[149], Adverbio [150], Conjuncção [152], Interjeição [156], Ptoseonomia [157],
Genero dos nomes [158], Genero por heteronymia [162], Flexão numerica [168],
Pluraes divergentes [170], Fórmas sigmaticas [172], Augmentativo organico [176],
Augmentativo personativo [177], Augmentativo inorganico [177], Diminutivos
organicos [178], Diminutivos eruditos [179], Diminutivos personativos [180], Funcção
dos grãos [180], Comparativos inorganicos [182], Comparativos organicos [183],
Superlativos [183], Superlativos relativo [184], Superlativos organicos [184],
Superlativos divergentes e convergentes [186-187], Verbos depoentes [193], As
conjugações anomalas: Haver, ser, ir [200], As conjugações anomalas: ter, vir, estar
[204], Irregulares graphicos e suas leis [208], Irregulares fracos e suas leis [210],
Irregulares fortes e suas leis [212], Etymologia [214], O caso lexiogenico [224], O
sigmatismo do plural [224], Fórmas divergentes [225], Divergentes estrangeiras
[229], Divergentes personativas [231], Fórmas convergentes [232], Formação
vernacula [233], Derivação vernacula [234], Derivação organica [235], Derivação
inorganica [236], Lexiologia dos substantivos proprios. A onomastica externa
[242], A onomastica interna [243], Lexiogenia dos adjectivos [243], Lexiogenia dos
pronomes [245], Lexiogenia das preposições [246], Lexiogenia dos adverbios [247],
Lexiogenia das conjuncções [247], Lexiogenia da conjugação [248], Lexiogenia dos
verbos ser e ir [255], Constituição do lexico [257], Linguas subsidiarias da

53
portugueza [258], Linguas subsidiarias [259], Alterações lexicas: neologismos [261],
Arcaismos irreversiveis [267], Arcaismos reversiveis [269]. Syntaxologia e sua
subdivisão. Syntaxe relacional [275], Concordancia semiotica [316], Artigo definito
[318], Artigo indefinito [319], Syntaxe do verbo [345], Syntaxe de preposição [349],
Syntaxe do adverbio [350], Syntaxe das conjuncções [352], Syntaxe da interjeição
[353], Syntaxe phraseologica [354], Phraseologia [354], Proposição interferente
[374], A transpredicação do verbo [407], Syntaxe literaria ou estylistica [420], Figuras
de syntaxe [423], Polysyndeto, partículas decorativas ou hypersyntacticas [430],
Semiologia. Semantica [468], Tropologia [477], Technica. Notações syntacticas
[485], Notações objectivas [486], Notações subjectivas [488], Notações distintivas
[489], Modelos de analyse syntactica. Proposições simples [491], Analyse integral
[496].
3.11 Objetivos do autor: Impregnado pelo espírito positivista característico do século
XIX, o Dr. Maximino Maciel, colocando em prática sua experiência como professor
catedrático de Português no Colégio Militar, participa do movimento de
gramatização brasileira iniciado por um grupo de linguistas do Colégio Pedro II que
atuava no sentido de distanciar o Brasil de Portugal, ao considerar a dinamicidade
da língua portuguesa daqui à luz das doutrinas modernas. Movido por esse espírito
e sobejamente influenciado pelos estudos de ciências naturais — note-se que
Maximino escreveu “quatro títulos de língua portuguesa e sete de ciências naturais,
indo de botânica geral, agronomia, zoologia e química a artigos sobre o tratamento
da tuberculose (MORAES, 1997, 166) — o autor busca aplicar à análise linguística
o rigor de métodos dessas ciências. Pode-se observar facilmente o empenho do
autor em seu propósito quando se constatam as diferenças nas edições que se
seguem.
3.12 Partes do discurso: Substantivo, adjectivo, pronome, verbo, preposição,
adverbio, conjuncção, interjeição, artigo. Há que se observar o fato de que o
‘numeral’ aparece como uma subclasse do adjetivo: Adjectivos numeraes.
3.13 Inovações terminológicas: Com frequência, Maximino Maciel recorre a radicais
gregos para criar termos com os quais nomeia os fenômenos linguísticos que visa
a classificar, por exemplo: perispómenos, properispmenos, syntaxologia, lexiologia,

54
ptoseonomia, sigmatismo, hypersyntactica etc., além de termos em português:
expressão personativa, auxiliares participaes, augmentativo organico, augmentativo
personativo, derivação inorganica, concordancia semiotica, transpedicação do
verbo etc. Maximino dá o nome de Technica ao tópico em que discorre sobre
‘pontuação’.
3.14 Corpus ilustrativo: Alguns exemplos são literários, como Garret, Camões,
Bernardes, G. Dias, P. Vieira etc., outros são tomados da doutrina, por exemplo
quando, ao falar da ‘Concordancia semiotica’, cita João de Barros (MACIEL, 1931,
316). Noutras passagens, não há indicação de quem sejam, o que sugere serem de
cunho próprio. Nesta edição, diferentemente do que ocorre na 1ª, os autores são
citados no rodapé.
3.15 Indicações complementares: Maximino Maciel antecipa critérios que a moderna
linguística iria usar, por exemplo, quando aponta “‘conjunção é a palavra conectiva
destinada a estabelecer uma relação entre duas proposições completas ou
incompletas’ (1887, p. 103) e ‘conjunções coordenativas são aquelas que apenas
conjunctam e relacionam orações, aproximando-as mutuamente’ (1887, p. 104), que
altera depois para ‘conjunção é uma palavra invariável que liga duas proposições e
às vezes duas palavras.’ (1922, p. 153) [...] ‘Insistimos em admitir a ligação de
palavras por algumas conjunções coordenativas, pois a definição deve abranger o
todo definido.’ O que significa que para ele a primeira definição é insatisfatória,
porque traz implícita a idéia de que mesmo a coordenação entre palavras pressupõe
o desdobramento da oração em que haja termos coordenados, vistos como
representantes de uma estrutura elíptica, como fazia a gramática tradicional
inspirada na lógica e como propõe hoje a gramática gerativa” (MORAES, 1997, 170).
Com efeito, é possível notar por essas passagens — e por outras mais —
que Maximino Maciel, já na primeira edição de sua gramática, não se mostra
satisfeito com a definição de conjunção — insatisfação que persiste nas edições
subsequentes —, revelando grande lucidez em suas observações. Essa lucidez é
percebida por Módolo (2004, 55) quando, ao discorrer sobre ‘correlação’ em Oiticica
(1952), faz o seguinte comentário “Segundo ainda comunicação pessoal feita pelo
Prof. Bechara, Oiticica foi discípulo do gramático Maximino Maciel. Assim, haveria

55
um compartilhamento de algumas análises linguísticas entre Maciel > Oiticica >
Rocha Lima — a este propósito, também em comunicação pessoal, o Prof. Ricardo
Cavaliere assevera que tal compartilhamento seria entre Maciel > Otoniel Mota >
Rocha Lima. Seria a correlação sintática uma delas?”. Em suma, a percepção aguda
de Maximino Maciel sobre o problema da ‘correlação’ permitiu-lhe elaborar
questionamentos que hoje, mais de cem anos depois, ainda não foram totalmente
dirimidos.
3.16 Influências de obras anteriores: A influência de outros autores revela-se tanto
nas homenagens feitas pelo autor na dedicatória quanto nas citações feitas ao longo
da obra. Na dedicatória: Sylvio Romero, Pacheco Junior, Alfredo Gomes, Castro
Lopes, Júlio Ribeiro, João Ribeiro, Fausto Barreto, Carlos de Laet, Adolpho Coelho,
Theophilo Braga. No texto: Augusto Freire da Silva (1906), Max Müller (1879); Franz
Bopp (1833,1852), Michel Bréal (1904); Arsène Darmesteter (1891-1897, 1885),
Abel Hovelacque (1882); Victor Henry (1894); Émile Egger (1880).
Algumas passagens — extraídas de Fávero & Molina, 2006 — que confirmam
influências recebidas: “Como já mostrou Cavaliere [2000, 242], a influência de
Darmesteter é marcante entre os gramáticos da época (Maximino Maciel, João
Ribeiro, Alfredo Gomes, Eduardo Carlos Pereira e outros) e é citado freqüentemente
por Maximino” (178); “Maximino não consegue desligar-se completamente da
herança logicista; assim, divide a gramática em geral e particular” (178); “Que a
fonologia seja apresentada como autônoma não causa estranheza porque assim já
estava em Adolfo Coelho e em Epifânio. O que é digno de nota é a semiologia,
‘tratado da significação das palavras em todas as suas manifestações’ (p. 467), pois,
se, contemporaneamente a Bréal, Pacheco da Silva já havia escrito ‘Noções de
Semântica’, obra publicada postumamente em 1903, é a primeira vez que ela
aparece minuciosamente tratada” (179); “Chama a atenção a atribuição das funções
ao pronome ‘se’ em que, exemplificando com Rodrigues Lobo, considera poder
exercer o ‘se’ a função de sujeito indeterminado, isto numa época de purismo
exacerbado, provocador de debates, réplicas e tréplicas” (183).
3.17 Influência exercida: A primeira edição da obra foi muito criticada, razão por que
o autor a reformulou completamente e a reeditou em 1904. A edição reformulada

56
teve grande aceitação e foi adotada em colégios importantes pelo Brasil. Além disso,
é de se notar o fato de que, por exemplo, sistematizou os estudos do significado das
palavras, conferindo caráter de doutrina à sistematização da semiologia. Maximino
tem seu lugar na história da gramaticografia novecentista com uma nota de
individualidade, graças a sua minuciosa partição dos estudos gramaticais
influenciados pelas ciências biológicas (FÁVERO; MOLINA, 2006).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Naturalmente, as versões das Fichas que apresentamos são abreviadas, mas
suficientes para que se tenha uma ideia aproximada das obras; de fato, o simples
cotejo da Volumetria de uma e de outra gramática, por exemplo, já sinaliza quão
diferentes elas são. Também, vale mencionar que o formato em Tópicos e o caráter
informativo das Fichas, por vezes, limitam nossa explanação, todavia, acreditamos
que os resultados vêm sendo bem satisfatórios e que, por conseguinte, o Projeto
tende a prosperar.
Maximino era um homem do seu tempo, razão por que os estudos
gramaticais que desenvolveu são muito influenciados pelas ciências naturais,
graças ao cientificismo do século XIX — a forte propensão ao grego e o empréstimo
às ciências biológicas para nomear os fenômenos linguísticos comprovam isso. Na
busca por aplicar à análise linguística o rigor de métodos dessas ciências, acabou
por ser o pioneiro na ordenação dos estudos do significado das palavras, conferindo
caráter de doutrina à sistematização da semiologia, que define como sendo “o
tratado da significação das palavras em todas as suas manifestações” (MACIEL,
1931, 467) e divide em semântica e tropológica, entrando nos domínios da Retórica
Clássica e, por conseguinte, da Estilística.

5. REFERÊNCIAS
BASTOS, Neusa Barbosa; PALMA, Dieli Vesaro (Org.). História entrelaçada 2: a
construção de gramáticas e o ensino de língua portuguesa na primeira metade do
século XX. São Paulo: IP-PUC; Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

FÁVERO, Leonor Lopes; MOLINA, Márcia A. G. As concepções lingüísticas no


século XIX: a gramática no Brasil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

57
GUIMARÃES, E. História das idéias lingüísticas no Brasil. Campinas, 1996.
Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/hil/publica/relatos_03.html

LEITE, Geraldo. Médicos ilustres da Bahia e de Sergipe. “Maximino de Araújo


Maciel”. 17 de agosto de 2012. Blog disponível em:
http://medicosilustresdabahia.blogspot.com.br/2012/08/maximino-de-araujo-maciel-
geraldo-leite_17.html

MACIEL, Maximino. Grammatica analytica – baseada nas doutrinas modernas. 1ª


edição. Rio de Janeiro: Typ. Central, 1887, 316 p.

_____. Grammatica descriptiva ‒ baseada nas doutrinas modernas. 1º milheiro da


12ª edição augmentada e refundida. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Paulo
de Azevedo & Cia, 1931, 513 p.

MÓDOLO, Marcelo. Gramaticalização das conjunções correlativas no


português. 2004. 144 p. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP). Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2004.

MORAES, Lygia Corrêa Dias de. “A grammatica descriptiva de Maximino Maciel”.


Filologia e Lingüística Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 1,
p. 165-173, 1997. Disponível em: http://revistas.usp.br/flp/article/view/59651/62747

58
A PROPAGAÇÃO DO SERTÃO:
A VOZ E A LETRA EM PATATIVA DO ASSARÉ

Antonio Iraildo Alves de Brito10

Introdução

Seu nome é Antônio Gonçalves da Silva, conhecido e afamado por Patativa,


uma ave canora do sertão. Nome apropriado para um poeta que durante toda a vida
(1909-2002) preferiu declamar seus versos ao invés de simplesmente lê-los. Isso
porque sua poesia, mesmo a escrita, parece reclamar a presença da voz.
A poética do vate cearense, impreterivelmente, passa pela voz e nela tem
seu lugar essencial. Nele atualiza-se, por assim dizer, a tradição dos cantadores e
aboiadores de todos os tempos, desde os gregos, os bardos celtas, os profetas
bíblicos e outros. Usando uma expressão de Zumthor (1993, 73), referindo-se aos
intérpretes medievais, um “eco de um tempo poético muito vivo”. Isso para dizer que
Patativa tem por trás de si uma tradição de poetas cantadores que fizeram da voz e
do corpo a expressão da palavra e do gesto.
O tema da letra, por sua vez, em Patativa seria tão-somente mediação
(MARTÍN-BARBERO, 2003). Ao poeta bastaria a voz e os aspectos constitutivos da
performance. Neste artigo, tendo a voz como primazia, discorre-se sobre a
convergência entre voz e letra, especificamente a partir da primeira obra escrita do
poeta, Inspiração Nordestina. Por meio de sua voz o poeta propagou um sertão
bonito, para além dos estereótipos. Sabe-se que na literatura, por muito tempo,
escritores e intelectuais afeitos às modas europeias ofereciam o exotismo que seus
leitores desejavam ler; por vezes, reduzindo “os problemas humanos a elemento
pitoresco” (CÂNDIDO, 2006).

10
Doutorando em Comunicação e Semiótica Pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bolsista
CAPES.

59
O Poeta e a Memória

Para uma consideração breve da voz no tempo, vale uma referência à


Antiga Grécia (séculos XII-VIII a.C.). Ali a voz exercia o papel principal na cena
social e cultural. Mesmo com o advento da escrita, a voz tinha o seu primado.
Enquanto a escrita ocupava tão-somente função coadjuvante. Os poetas
constituíam figuras centrais na transmissão de valores, ou como informa Vernant
(1973, 76), eles “eram os arquivos de uma sociedade que nasceu sem escrita”.
Nesse ambiente de oralidade, o verso era o meio de se preservar qualquer
texto até que obras em prosa começassem a ser escritas, o que só vai ocorrer por
volta do final do século VI a.C. (THOMAS, 2005, 159). O verso era, portanto, o modo
de guardar a memória coletiva, e o responsável direto por isso era o poeta. Havelock
informa que,
na Grécia sem escrita, e nas culturas pré-gregas onde só peritos-letrados
dominavam a escrita, as condições de preservação eram mnemônicas,
envolvendo o uso de ritmo verbal e musical, pois cada pronunciamento
tinha de ser lembrado e repetido (HAVELOCK,1996, 85).

Isso para dizer do papel da voz e do seu aspecto expansivo, seu caráter
portador de memória. “A memória, em primeiro lugar, pela presença de alguns textos
constantes e, em segundo lugar, pela unidade dos códigos ou por sua invariância
ou pelo caráter ininterrupto e regular de sua transformação” (LOTMAN, 1996, 157).
Memória que tem que ver com o tecido e patrimônio da cultura, que por sua vez é
entendida não como um depósito de informações, mas “um mecanismo organizado,
de modo extremamente complexo, que conserva as informações, elaborando
continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatíveis. Recebe as coisas
novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-as para outros sistemas de
signos” (Cf. FERREIRA, 2004, 73)
Considerando o lugar da voz ou de uma relação de complementaridade
entre oral e escrito, convém também se referir à Idade Média, longo período, que
Zumthor denomina de oralidade predominante: estender-se-ia do século IV d.C. até
aos começos da Era Industrial ou Idade Moderna, por volta do século XV, quando
se passa de uma vivência mais espontânea e comunitária, isto é, movida pela voz,

60
a uma vida mais voltada ao indivíduo, justamente porque a letra vai aos poucos se
tornando hegemônica.
Embora esse período seja uma época fortemente regida pela escritura, o
que ainda contava era a palavra vocalizada. Por exemplo, a lei era a palavra do rei,
dita em “viva voz” pelos agentes régios, os arautos, porta-vozes encarregados de
tornar a palavra real declarada em praça pública.
Zumthor informa que no século XIV ou XV, qualquer corte de alguma
importância tinha seus menestréis: “Ainda por volta de 1500, a rainha Ana, o rei
Carlos VIII mantêm perto de si rhétoriqueus célebres, Jean Lemaire, André de La
Vigne. Esses poetas designam a si próprios pelo termo orador, com o qual,
aparentemente, evocam a função tradicional de porta-voz” (ZUMTHOR, 1993, 64).
De igual modo, mesmo entre os dignitários eclesiásticos, de acordo com
Zumthor, havia quem contratasse poetas e cantores para o encargo da publicidade
da igreja junto aos peregrinos. “Na região de Santiago de Compostela (e mais de
uma dúzia de pequenos santuários locais), devemos a esse costume os cantos de
romaria que foram conservados por alguns cancioneiros ibéricos” ( ZUMTHOR,
1993, 64).
De acordo com Zumthor, todo texto escrito cobra a presença da voz:
“acontece-nos frequentemente perceber no texto o rumor, vibrante ou confuso, de
um discurso que fala da própria voz que o carrega” (ZUMTHOR, 1993, 35). É como
se no interior de cada texto, nalgum momento de sua existência, houvesse o indício
da intervenção da voz humana. Para o autor, o texto foi um acontecimento oral,
existiu antes de tudo na atenção e memória dos indivíduos. De maneira que todo
texto é, de algum modo, essencialmente oral. Nessa mesma perspectiva, Palmer
defende que toda linguagem escrita apela para uma reconversão na forma falada;
apela para um poder perdido.
As palavras orais parecem ter o poder quase mágico, mas ao tornarem-se
imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura usa palavras de
modo a tirar o máximo partido da sua “eficácia”, mas, no entanto, muito do
seu poder se esgota quando a audição se converte num processo visual
de leitura (PALMER, 2006, 26-27).

61
Para Palmer, a linguagem oral tem a vantagem de ser mais facilmente
“compreendida” do que a linguagem escrita. Segundo ele, mesmo romances e
poemas compostos para serem lidos em silêncio, à medida que são lidos é possível
que o leitor imagine sons, como se a letra ao alcance dos olhos cobrasse a
participação do ouvido. E mais que isso, nos dizeres de Palmer, “toda a leitura
silenciosa de um texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral”
(PALMER, 2006, 28). Dessa forma, a escrita em sua forma visual encontraria sua
plenitude, recorrendo à sua forma originária, isto é, à sua dimensão oral.

A Voz e a Letra

O poeta Patativa do Assaré foi batizado com o nome de Antônio Gonçalves


da Silva, depois “crismado” como Patativa, uma ave canora do sertão. Essa
representação icônica da ave pequenina, de canto mavioso deu ao vate ainda mais
a marca da oralidade, da musicalidade. Isso para dizer que a poética patativana é
antes de tudo um acontecimento oral, e ao passar para a letra, deixa em si, como
lembra Zumthor, os “índices de oralidade”.
Assim, considera-se aqui sua primeira coletânea de poemas que da voz
passaram à letra: muitos poemas o poeta ditava para que outros os datilografassem.
E é graça a esse material impresso ou à sua voz gravada que se pode estudar hoje
a complexidade de sua poética. O objeto formal neste item é, portanto, o texto
escrito. Lembra-se, a modo de esclarecimento, que enquanto se apresenta
fragmentos da antologia, também se procura destacar alguns temas específicos,
partindo do fragmento e expandindo seu sentido, naquilo em que Amálio insiste: “as
partes de um texto podem e devem pertencer também a outros textos” (AMÁLIO,
2013, 28). Trata-se de considerar o texto do poeta em sua possibilidade de interação
e complexidade, para além de um rótulo de popular:
aquilo que foi tecido junto. De fato, há complexidade quando elementos
diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o
político, o sociológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido
interdepedente, interativo e introativo entre o objeto de conhecimento e seu
contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso
a complexidade é a união entre a unidade e a mutiplicidade ( MORIN, 2003,
38).

62
Do pequeno, do cotidiano o poeta faz chover rimas, tornando a vida irrigada
de poesia, sedimentada de infinitas possibilidades, fugindo das regularidades
impostas pelo pensamento binário (MORIN, 2011). A partir da voz o poeta extrai a
“obra” do texto. Obra no sentido em que entende Zumthor: aquilo que é
poeticamente comunicado aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos
visuais, isto é, as partes constitutivas da performance. Poesia e corpo em
apresentação teatral. Essa teatralidade, que tem a voz como primado.

A verdade nas folhas

A primeira obra escrita de Patativa, Inspiração Nordestina, foi publicada em


1956 por Borsi Editor, Rio de Janeiro. O poeta tinha 48 anos de idade. A iniciativa
partiu de José Arraes de Alencar, cearense radicado no Rio de Janeiro, filólogo e
apreciador de poesia. Estando de férias na cidade de Crato, sua terra natal, ouviu
Patativa recitando através da emissora local, Rádio Araripe. Fascinado e
percebendo que se tratava de uma poesia digna de apreciação e divulgação,
procurou o poeta e o incentivou a publicar.
Num primeiro momento o poeta teria hesitado por não ter condições
financeiras para custear a publicação. Mas Arraes insistiu e prontificou-se a cuidar
inicialmente da parte financeira. Um amigo seu, Moacir Mota, datilografou os
poemas ditados por Patativa que os tinha todos “arquivados” na mente. Com a
venda dos exemplares o poeta quitou o investimento, e a partir dessa publicação
sua poética tomou dimensões mais alargadas, superando as fronteiras da Região
do Cariri, no Ceará. O sucesso possibilitou uma segunda edição em 1966, com
acréscimo de novos textos e o título Cantos de Patativa. Sobre a edição do primeiro
livro o poeta expressou: “Aquilo foi um sonho realizado que eu nem sequer esperava
na minha vida!” (CARVALHO, 2002, 66-67).
Em 2006, quarenta anos depois, portanto, esta obra foi relançada com o
selo da editora Hedra de São Paulo. A coletânea contém 351 páginas, com 82
composições. O livro traz, logo nas primeiras páginas, uma autobiografia de Patativa

63
escrita em 1955 para a primeira edição; constitui importante relato da vida do poeta.
Não contempla, porém, o prefácio de José Arraes de Alencar, escrito também para
aquela edição. Segundo informa Andrade (2003), naquele prefácio Arraes enfatiza
a importância cultural da obra de Patativa, tanto pela sua forma de linguagem
“cabloca”, quanto pela escrita em “norma culta”. Assim o prefaciante expressou:
Recitando-me inúmeras poesias de sua lavra e declamando ágeis
improvisos e repentes, impressionou-me imediatamente, pela delicadeza e
arrojo das imagens, pela suavidade lírica de muitos temas, pela
mordacidade cortante de algumas composições, pela filosofia que
ressumbra de quase toda a sua obra e, ainda, pelo fenomenal poder de
sua memória (ALENCAR, apud ANDRADE, 2003, 45).

Esse testemunho de quem acompanhou e incentivou o poeta em sua


primeira publicação é de suma importância. É como se indicasse ter achado um
“objeto” precioso que deveria a partir de então ser guardado com apreço, justamente
por sua qualidade. De fato, a edição de Inspiração Nordestina marca um novo rumo
na arte de Patativa.
O livro também apresenta o texto de José Carvalho de Brito a respeito do
poeta, publicado pela primeira vez em 1930, no livro O Matuto Cearense e o Caboclo
do Pará. Esse texto foi outro material de considerável relevância para a divulgação
inicial de Patativa e de sua poesia. Quanto ao Inspiração Nordestina em si, no
primeiro poema, intitulado Ao leitor, o poeta assim se expressa:
Leitô, caro amigo, te juro, não nego,
Meu livro te entrego bastante acanhado,
Por isso te aviso, me escute o que digo,
Leitô, caro amigo, não leia enganado.
(...)
Tu nele não acha tarvez, com agrado
Um trecho engraçado que faça uma escôia,
Mas ele te mostra com gosto e vontade,
A luz da verdade gravada nas fôia. 11

O tema da verdade é recorrente em Patativa, e como tal está muito presente


em sua primeira obra escrita. Daí a advertência ao leitor quanto à simplicidade de
sua lira, no entanto essa teria a marca da verdade. A verdade na perspectiva do
poeta tem que ver com sua missão de “escolhido de Deus” para defender o sertão

11
As citações dos fragmentos referem-se à ASSARÉ, 2006.

64
e sua gente. Como herdeiro de um “saber natural”, de uma dádiva divina, seu
encargo seria cantar os valores constituintes desse povo e denunciar as possíveis
interferências destrutivas desses valores. Nesse sentido, não é custoso perceber
que o livro está permeado de composições que ressaltam as tradições e costumes
sertanejos, com suas festas, crenças, ritos e celebrações comunitárias. Poemas
como: Eu e o sertão, Vida sertaneja, A foguêra de São João, O puxadô de roda
dentre outros, se expressam nessa direção. Para tanto, o poeta antes de tudo se
apresenta como O poeta da roça.
Sou fio da mata, cantô da mão grossa,
(...)
Só canto o buliço da vida apertada,
(...)
Eu canto o cabôco com suas caçadas,
(...)
Eu canto o mendigo de sujo farrapo.

Sendo poeta da roça, canta na “linguagem matuta”, isto é, nos códigos


comuns a seus pares, companheiros na lida, no sofrimento, nos sonhos e na
esperança. Canta ainda o mendigo, sinalizando seu olhar também para o mundo
urbano. Um traço marcante em Inspiração Nordestina é o ensinamento para a vida:
há uma “lição de moral” em praticamente todas as composições. É como se o poeta
se sentisse no papel de animador e guia de sua comunidade ouvinte/leitora. Em A
escrava do dinheiro, por exemplo, ele apresenta os “estragos” que o dinheiro pode
causar na vida de uma pessoa, se essa não souber fazer bom uso dele. A narrativa
trata de uma sertaneja muita bela, de nome Regina.
Regina era minha noiva,
Meu amô, minha inlusão.
A morena mais bonita
Do meu querido sertão.
Seus grandes óia prefeito
Fazia quarqué sujeito
Tropeçá no brocotó,
Era vê no mês de maio
Dois grande pingo de orváio
Tremendo na luz do só.

A moça, porém tinha um grave defeito: era escrava do dinheiro, só queria


saber de luxo, de pulseiras, de colares. O namorado, por sua vez, era “um cabôco
dos matos”, só possuía a roça e o cavalo de corrida. Sentia-se chateado com a

65
obsessão da noiva, mas não tinha iniciativa para acabar o noivado porque “estava
louco de amor” e queria muito se casar com ela. Já tinha preparado a casa e a data
do casório estava até marcada, seria na festa do mártir Sebastião, em 20 de janeiro:
data tradicional no sertão, propícia para um abençoado casamento. Porém, nas
vésperas de Natal, quando todos celebravam a festa do nascimento do Filho de
Deus e se divertiam, chega ao povoado um homem que,
Pelo jeito parecia
Que o sujeito era ricaço,
Tinha um relojo no peito
E ôto na cana do braço.
E mais ôtas fantasias,
Na hora que ele se ria
A bôca12 era oro só,
E além dos ôro dos dentes
Uma bonita corrente
Na gola do palitó.

Pela descrição da aparência do sujeito e a tendência da bela Regina para o


dinheiro, pode-se antever o desfecho da narrativa. Aos poucos a alegria que
preenchia o coração daquele sertanejo apaixonado vai se transformando em
amargura, pois o forasteiro não demorou a perceber o olhar ambicioso da moça para
seus anéis e correntes de ouro, e fez questão de abrir a carteira abarrotada de notas
de dinheiro. Foi a “gota d’água”:
Regina se transformou
E com inveja sem fim
Piscava os óio pra cara,
Sem querê sabê de mim.

Enfeitiçada pelo dinheiro a moça “perde o juízo”, a capacidade de julgar e


ter a liberdade de dizer: “isto eu devo fazer, isto eu não devo fazer”. Apenas vê as
aparências e sem o mínimo de consideração pelo outro, neste caso seu noivo, ela
vai embora com o forasteiro, deixando para trás uma história de afeto, aconchego
familiar e comunitário. Parte para o desconhecido sem perspectiva alguma,
interessa apenas a contingência ao alcance de seus olhos, age sem a razão porque
é escrava do dinheiro. Assim, sua atitude não poderia ser considerada um ato livre,

12
No livro está escrito “bôra”, provavelmente seja erro de grafia. Pelo sentido é mais provável que seja boca.

66
porque condicionada pela ambição de possuir; ela era serva da “grana” e do luxo.
Desse modo o cantador conclui seu relato com uma lição de moral:
Dinhêro é um fogo ardente
Que faz munto coração
Se derretê como a cera
Na quentura do tição.
Dinhêro tresforma tudo,
Faz de um alegre um sisudo,
Dá nó e desmancha nó,
E finalmente o dinhêro
É o maió feiticêro,
É o Reis do Catimbó.

O dinheiro pode ser interpretado aqui como metáfora de tudo o que


escraviza a pessoa e tira a harmonia da comunidade. Nesse sentido, Regina é o
protótipo de alguém muito condicionado, que tem os olhos turvados pelas
influências exteriores, ou seja, ela preferiu as riquezas materiais vindas de fora ao
valor local e à riqueza imaterial que seriam, dentre outros, os laços de amizade
construídos ali na aldeia: o caráter do moço da roça, o tempo de namoro com ele, o
carinho e suor com os quais ele e a família tinham preparado casa, marcado a data
e planejado a festa do casamento.
Além disso, o texto poderia ser visto numa perspectiva de tensão no que se
refere às influências globais numa cultura local. O rapaz rico que chega ao povoado
vem aparentemente muito “enfeitado”, mas suas intenções não são outras senão
tirar a harmonia de uma cultura baseada no respeito e nas relações
desinteressadas. O dinheiro, portanto, é o grande desestabilizador. O cantador, que
é a vítima, sente-se no dever de contar sua história para que ela sirva de lição. Na
antepenúltima estrofe ele sinaliza que já “está velho e cansado”, mas essa dor
experimentada na juventude ainda o faz padecer. Isso ressalta a dimensão do
estrago e a gravidade de uma atitude que leva em conta apenas o dinheiro e não o
amor, ou por outra, o valor da pessoa e do espírito comunitário.

Considerações finais

Para este artigo, pautou-se em apresentar o poeta Patativa do Assaré em


seu estado “original”, considerando sua primeira obra tirada da voz para a letra. A

67
escrita, como se pode notar nos fragmentos, preserva o som, a vocalização, as
entonações da variedade linguística peculiar do homem da roça, do sertão.
Inspiração Nordestina caracteriza-se pela defesa dos valores locais em
tensão com outros valores externos. A tensão se dá, sobretudo, quando esses
valores de fora chegam para escravizar o sertanejo. Tanto o escravizar
materialmente, pela exploração do trabalho, quanto pela “colonização da mente”,
isto é, pelas interferências de ideias contrárias à tradição local.
“Dizer a verdade”, expressão cara e gratuita do poeta logo na poesia que
introduz a coletânea, é mostrar um sertão que, embora sofrido, é belo. Pode até ser
pobre, mas tem em si a potência de assegurar aos seus a garantia de felicidade,
sem as pretensões grandiosas de riqueza fruto da exploração do outro. “Dizer a
verdade” ainda é propagar um grito de denúncia a um modelo de política que prefere
fechar os olhos às potencialidades do sertão e à força e resistência do sertanejo.
Por isso, diz-se que seu livro é a “verdade gravada nas folhas”, é o registro de um
canto que se entoa em nome da aldeia e daí encontrar brechas para o mundo.

REFERÊNCIAS
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(capítulo de uma poética sertaneja). Fortaleza: UFC/São Paulo: Nankim Editorial,
2003.
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração nordestina. São Paulo: Hedra, 2006.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa Poeta Pássaro do Assaré. 2 ed. Fortaleza: Omni
Editora Associados Ltda, 2002.
CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Azul, 2006.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória e outros ensaios. Cotia, SP:
Ateliê Editorial, 2004.
HAVELOCK, Éric A. A musa aprende a escrever. Lisboa/Portugal: Gradiva, 1996.
__________. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências. São
Paulo: UNESP/Paz e Terra, 1996.
LÓTMAN, Iuri, La semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto. Tradução de
Desiderio Navarro. Valência: Frónesis Catedra, 1996.

68
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação e
hegemonia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 2013.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8ª ed. São
Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2003.
__________. Introdução ao Pensamento Complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto
Alegre: Sulina, 2011.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Trad. Maria Luisa Ribeiro Ferreira. Lisboa:
Edições 70, 2006.
PINHEIRO, Amálio. América Latina. Barroco, cidade, jornal. Intermeios: SP,
2013.
THOMAS, Rosalind. Letramento e Oralidade na Grécia Antiga. São Paulo:
Odysseus, 2005.
VERNANT, J. P., Mito e Pensamento entre os gregos. São Paulo: Difel, 1973.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Cosacnaify: São Paulo, 2009.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amalio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
__________. ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Trad. Jerusa Pires
Ferreira, Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.

69
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES: O CONTROVERSO DIÁRIO DE
TEOLINDA GERSÃO
Audrey Castañón de Mattos13

Introdução

O romance que ora analisamos tem um título impactante que atrai pela
imagem, ao mesmo tempo poética e mágica, que enseja: Os guarda-chuvas
cintilantes. E um subtítulo que surpreende ao mesmo tempo em que cria
expectativas: diário. O primeiro contato do leitor com o livro, quando lê seu título e
abre a capa a fim de espreitá-lo, se faz por antíteses – impacta, mas atrai,
surpreende, mas remete ao esperado. Esse jogo de contrários, de que se pode
afirmar que é a tônica do livro, segue, até a última página, seduzindo e repudiando
o leitor que envida esforços para vencer a barreira de silêncio que o discurso
incomum lhe impõe.
Graças ao seu discurso desconexo, que se oferece em registros caóticos que
beiram o surrealismo e à designação de diário, o terceiro livro de Teolinda Gersão
é de difícil classificação quanto ao gênero. A essa discussão outros críticos já se
dedicaram, sem, no entanto, chegarem a uma posição definitiva:

Maria Alzira Seixo admite ser este um livro “estranho e algo furtivo”, mas defende que, ainda
assim, se lhe deve chamar “‘diário’ como faz a autora”. Rogério Miguel Puga opta pela
designação de “diário ficcional”, argumentando que não poderia tratar-se de um romance-
diário. Maria de Jesus Galrão Matias classifica-o como “diário ficcionado”. Clara Rocha adota
a designação de “diário heterodoxo”, acentuando a vertente da paródia da forma diarística.
Maria de Fátima Marinho considera este livro como um “caso sui generis de diário” que versa
sobre a “reflexão, a vários níveis, sobre a escrita e a construção de enredos (imaginários ou
não), através dessa mesma escrita.” É importante salientar que dos vários comentários da
autora se deduz que o texto se situa entre os géneros do “romance” e do “diário”. (CUNHA:
2013, 322).
A própria Teolinda Gersão reflete sobre o mesmo ponto, em seu As águas
livres, publicado em 2013:

Houve quem, apesar de tudo, chamasse romance aos Guarda-chuvas. Julgo que poderia
ser talvez um romance ao contrário, sem uma história dentro, embora muitas histórias
possam assomar à superfície para logo desaparecerem, porque não quero contar nenhuma,
e onde não há um narrador, mas apenas as sombras que ele deixa na parede. (GERSÃO:
2013, 13).

13
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP

70
Essa escrita que se nega ao modelo paradigmático do romance e chama para
si a definição de diário, para, entretanto, subvertê-la em seus princípios mais
elementares, assenta-se, iniludivelmente, numa forma de não dizer que, analisada
à luz da filosofia tractatiana, se oferece como tentativa de mostrar.
O uso do diário como “molde conformador da ficção” (CUNHA: 2013, 10)
relaciona-se com o que se convencionou chamar de literatura intimista, cuja base é
a escrita do eu. O conceito de literatura intimista foi sintetizado por Philippe Lejeune
em seu Le pacte autobiographique como um “discurso retrospectivo em prosa que
uma pessoa real faz de sua vida, enfatizando aspectos individuais e, em particular,
aspectos de sua personalidade” (LEJEUNE apud CUNHA: 2013, 13) 14. A despeito
dessa afirmação, a descoincidência entre o autor real e aquele que escreve o diário
é comum e caracteriza, entre outros elementos, o romance-diário.
O romance-diário, segundo Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha (2013,
11), é um subgênero literário sob o qual se encontram obras de ficção realizadas
integralmente em forma de diário. É importante distingui-lo do diário ficcional, que
se refere a inserções ficcionais, redigidas em forma de diário, no interior de outra
obra de ficção, um romance, por exemplo. Por esse motivo, explica Sílvia Cunha,
citando H. Porter Abbot, todos os romances-diários são diários ficcionais, porém, o
oposto não é sempre verdadeiro. Como se pode depreender das discussões acerca
de sua classificação tipológica, Os guarda-chuvas cintilantes não se enquadram em
nenhum dos dois tipos. Mesmo a descoincidência entre a autora real e a mulher
que escreve o diário não é suficiente para enquadrá-lo nos moldes do romance-
diário. Permanece, portanto, sua relação com o diário em sua acepção primeira15,

14
“Récit rétrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa proper existence, lorsqu’elle met l’accent sur sa
vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité”. Tradução livre nossa.
15
Além de se constituir pelo registro do dia-a-dia, com preeminência do tempo presente sobre o passado ou o
futuro, o diário também se caracteriza, de acordo com Alain Girard, pela “presença assídua do autor que escreve
aquilo que vê, ouve e vive, pelo que é preferencialmente usado o pronome pessoal de primeira pessoa”.
(CUNHA, 2013, p. 19)
Além disso, tematiza a vida privada do autor mais do que acontecimentos externos: “Même s’il evoque des
événements extérieurs, même s’il s’anime à propos de la rencontre d’une autre personne, ou d’une conversation,
ou de toute circonstance qui met en cause autrui, ce n’est pas l’événement, ni l’autre, en eux-mêmes, qui
intéressent le rédacteur, mais seulement leur résonance, ou encore leur réfraction dans sa conscience. (GIRARD
apud CUNHA, 2013, p. 20). (“Ainda que evoque eventos externos, ou fale sobre o encontro com outra pessoa,
ou sobre uma conversa ou qualquer circunstância que implique outros, não é o evento nem o outro, em si

71
isto é, fora do campo literário, e sobressai o fato de que é na transgressão desse
gênero que a obra se realiza.
Em termos formais o livro em pouco, ou em quase nada, afronta o diário, que
se caracteriza por uma escrita feita na forma de entradas cronológicas,
fragmentárias e não hierarquizadas, isto é, cada entrada se inicia e se fecha em si
mesma, consubstanciando-se como micronarrativa; seu objetivo não é o de contar
uma história, mas o de registrar os dias, por essa razão, o diário possui duração
indeterminada, não possui começo, meio ou fim (CUNHA: 2013, 20). Nesse sentido,
ainda que a última página do livro de Teolinda Gersão seja demarcada pela
inesperada palavra “fim”, em todo o resto segue a estrutura diarística, apresentando
pequenos fragmentos de discurso datados e não hierarquizados.
No plano do discurso, entretanto, a obra surpreende e causa desconforto,
pois, para além da quase inexistência de nexo entre os diversos fragmentos, há “o
registo quase surrealizante dos episódios que conta e das personagens que cria”
(CUNHA: 2013, 299).

O diário, caixa de silêncio

Sei que o “eu” é um poço sem fundo, e que a escrita é a perseguição infinita
de um objecto que fica sempre além do alcançável. (GERSÃO: 2013, 13).

O eixo da escrita, em torno do qual a diarista ficcional se movimenta, é a ideia


de que não se pode captar o eu e descrevê-lo de modo inequívoco, pois o que existe
é uma multiplicidade de “eus” em um ser apenas aparentemente uno. Interiormente,
esses muitos “eus” de que se compõe a personalidade que o indivíduo se esforça
por apresentar como sua (e única) estão permanentemente em conflito, de modo
que é impossível, até mesmo para o próprio indivíduo, captar-se e descrever-se
como forma íntegra e unívoca. Se o ser é indizível, isto é, se nada se pode dizer
dele de forma definitiva porque é impossível expressar pela língua a sua
multiplicidade, é preciso, então, mostrar ou essa impossibilidade de dizer ou a
multiplicidade que compõe o indivíduo. Quaisquer dessas tentativas implicam em

mesmos, que interessam ao escritor do diário, mas o eco ou refração desses assuntos em sua própria
consciência.” Tradução livre, nossa.)

72
recorrer a algo fora da língua. Pensando com Wittgenstein, para quem o limite para
a expressão do pensamento humano circunscreve-se ao interior da língua
(WITTGENSTEIN: 1968, 53), a tentativa da diarista de Os guarda-chuvas cintilantes
só pode recair naquilo que o filósofo considera “simplesmente absurdo”
(WITTGENSTEIN: 1968, 53). Assim, é o paratexto “diário” que, paradoxalmente,
reveste de sentido a escrita absurda do livro; sem essa indicação, o livro seria uma
reunião de microcontos surreais que pouco dizem; entretanto, por causa dela, cria-
se no leitor, apoiado nas convicções sobre o gênero diarístico, a expectativa de
encontrar um “eu” integral e sinceramente transcrito correspondente ao autor da
escrita (ainda que esse autor seja um ente ficcional) e é esse contrato que dá sentido
à leitura. Todavia, ao frustrar-se essa expectativa, chega-se à percepção daquilo
que a escrita deseja mostrar.
Seguindo um princípio similar ao da escada de Wittgenstein, a qual é preciso
ser abandonada depois de galgada16, a diarista se serve do diário para mostrar a
sua inutilidade como forma de projeção de um eu: “Os diários assentavam no
equívoco de que o eu, o real e o tempo existiam e eram definíveis e fixáveis – mas
a verdade era outra, para quem tivesse olhos suficientemente corrosivos para vê-la,
suspeitou.” (GERSÃO: 1984, 33). Comparando o excerto à proposição tractatiana
de número 6.5417, nota-se a coincidência de raciocínio entre ambas, pois, assim
como as proposições são absurdas por tentarem dizer o indizível – mas, a despeito
disso, mostram algo – o diário também é absurdo se considerado como meio para
que nele o indivíduo se mostre de forma íntegra e verdadeira. Entretanto, o diário é
capaz de mostrar uma verdade outra a quem puder entender (quem tiver “olhos
suficientemente corrosivos”): que é preciso vencê-lo, ou melhor, o conceito que dele
se tem cristalizado, para entender o “eu” em sua multiplicidade.
Nesse sentido, o diário (não literário) é desmascarado como sendo uma caixa
de silêncio e não de segredos do “eu”. Para Sílviaa Cunha o diário “contém uma

16
Proposição 6.54 do Tractatus logico-philosophicus (1968, p. 129).
17
Proposição 6.54: “Minhas proposições se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as
reconhecerá como absurdas, quando graças a elas – por elas – tiver escalado para além delas. (É preciso por
assim dizer jogar fora a escada depois de ter subido por ela.) Deve-se vencer essas proposições para ver o mundo
corretamente.” (WITTGENSTEIN, 1968, p. 129).

73
imagem vazia e sem sentido, destituída de correspondência com o [indivíduo] real”,
pois os fragmentos de que se compõe necessitam da reordenação do leitor, a qual
projeta uma “unidade ilusória”. (CUNHA: 2013, 315). Em Os guarda-chuvas
cintilantes essa ilusão é negada, em consonância com os rumos da arte moderna
que renega, ou põe em xeque, segundo Anatol Rosenfeld (2009, 79), “a visão de
mundo que se desenvolveu a partir do Renascimento 18”, decretando, entre outras
coisas, o fim do retrato com a eliminação ou deformação do ser humano, da
realidade dos fenômenos projetados e da “perspectiva ilusionista”. Segundo
Rosenfeld tudo isso é parte do processo de desmascaramento do espaço, do tempo
e da causalidade como “meras aparências exteriores, como formas epidérmicas por
meio das quais o senso comum procura impor uma ordem fictícia à realidade”.
Nesse processo, prossegue ele, “foi envolvido também o ser humano. Eliminado ou
deformado na pintura, também se fragmenta e decompõe no romance. Este, não
podendo demiti-lo por inteiro, deixa de apresentar o retrato de indivíduos íntegros.”
(ROSENFELD: 2009, 85).
Assim, a diarista de Os guarda-chuvas cintilantes, que permanece sempre
inominada, negando a si e ao leitor esse traço individualizante, vai procurando
mostrar não só a inutilidade do diário como depositário de um sujeito que se queira
uníssono, como também o estilhaçamento desse sujeito:

Iria pintando em cada dia o seu retrato, decidiu, deixaria retratos sucessivos no tempo,
multiplicando-se para aumentar as suas hipóteses de escapar à morte. Porque a morte
levaria muito mais tempo a apagar todos esses eus do que apenas um só.
E quando ela estivesse morta e não escrevesse ficariam pelo menos os retratos dela
escrevendo, e seria como se a vida que ela escrevia pudesse continuar a voltar as páginas.
(GERSÃO: 1984, 28).

Como se nota, a escrita, metaforizada pelo retrato, é incapaz de projetar um


ser indiviso. Esse fato, além de mencionado textualmente – “todos esses eus” – é
incorporado à própria estrutura, na oscilação entre a primeira e a terceira pessoas.

18
“O mundo é relativizado, visto em relação a uma consciência individual e constituído a partir dela; mas essa
relatividade reveste-se da ilusão do absoluto. [...] Na filosofia ocidental, essa constituição do mundo a partir da
consciência humana surge com os sofistas: ‘o homem é a medida de todas as coisas’ [...], ressurge depois na
filosofia pós-renascentista com Descarte [que supõe] como única certeza inabalável a do eu existente [e]
encontrou sua expressão máxima em Kant que projeta o mundo dos ‘fenômenos’ – isto é, o mundo como nos
aparece, único a que teríamos acesso – a partir da consciência [...]” (ROSENFELD, 2009, p. 78).

74
No excerto acima a diarista refere-se a si mesma pelo pronome “ela”, patenteando
sua cisão e a impossibilidade de falar de si mesma. Para Michel Butor, que retoma
a metáfora do retrato ao abordar a oscilação entre a primeira e a terceira pessoa
gramatical no romance, a personagem que assim procede “não sabe dizer-nos o
que sabe de si mesma.” (BUTOR apud CUNHA: 2013, 306) 19. Tanto é assim que
falham todas as tentativas da diarista de captar-se a si própria:

Olhou-se ao espelho, para ver como ficaria no retrato. Mas a imagem que viu não lhe pareceu
exacta. Procurou debalde em todos os espelhos, no espelho oval do quarto, no espelho
escuro da entrada, no espelho envelhecido da sala, nos pequenos espelhos da carteira, no
interior das caixas de pó-de-arroz e de ‘make-up’. Mas a imagem pareceu-lhe cada vez mais
inexacta. (GERSÃO: 1984, 29).
Então foi ao fotógrafo, tirar o retrato.
[...] (o tempo parado, o instante preso, ficarás assim pela eternidade adiante – as fotografias
eram uma imagem da morte, o seu rosto sem vida, uma máscara de cera, fixa, fria) não havia
exactidão e tudo era manipulável, viu enquanto ele levantava e baixava os guarda-chuvas
luminosos, a máquina deveria ser imparcial e exacta, mas de algum modo ele fazia-a mentir,
e também ela própria era um objecto, assim exposta, à mercê da luz e da objectiva.
De tão manipulada e de tão morta, também não se reconheceu nesse retrato. (GERSÃO:
1984, 30).
Esse questionamento que duvida “da posição absoluta da ‘consciência
central’”, embora tenha revolucionado a arte moderna, é “corriqueiro na ciência e na
filosofia” (ROSENFELD: 2009, 81). Quase meio século antes, Wittgenstein também
o afirmava, embora por outras palavras, em seu tratado lógico-filosófico. De sua
proposição 3.02, que estabelece que “[o] pensamento contém a possibilidade da
situação que ele pensa. O que é pensável também é possível” (WITTGENSTEIN:
1968, 61) depreende-se o quanto a apreensão do mundo a partir da consciência é
limitada, uma vez que a expressão do que é pensável circunscreve-se aos limites
da língua. Em 3.031, ao salientar que “[j]á foi dito que Deus poderia criar tudo, salvo
o que contrariasse as leis lógicas. Isto porque não podemos dizer como pareceria
um mundo ‘ilógico’” (WITTGENSTEIN: 1968, 61, grifo do autor), o filósofo
desmascara a fragilidade dessa consciência que, desejando-se absoluta, projeta o
próprio Deus, porém o submete aos mesmos limites que a cerceiam.

19“Le «il» nous laisse à l’extérieur, le «je» nous fait entrer à l’intérieur fermé comme le cabinet noir dans lequel
un photographe développe ses clichés. Ce personnage ne peut nous dire ce qu’il sait de lui-même.” (O “ele”
conduz-nos ao exterior, o “eu” nos faz adentrar o interior fechado como a cabine escura onde um fotógrafo faz
suas fotos. Esse personagem é incapaz de dizer-nos o que sabe de si mesmo.) Tradução livre, nossa.

75
A diarista de Os guarda-chuvas cintilantes constata esse poder limitador e o
mundo artificial que projeta, debatendo-se entre submeter-se a essa consciência ou
subjugá-la:

[...] o rigor, por exemplo, com que domava ou desmanchava os sonhos, obrigando-se a
lembrá-los, obrigando-os a saltar por dentro de arcos incendiados, as flores imaginadas
formando finalmente um ramo, as flores de sombra, de sol, de areia, domar o vento, aprender
a cavalgar o vento, pôr um risco de azul a contornar o mar, a dura acrobacia do seu corpo,
ao mesmo tempo solto e geométrico, os difíceis exercícios interiores, os saltos mortais de
olhos vendados, sobre um fio de arame estendido entre possível e impossível.” (GERSÃO:
1984, 9).

Voltando a Wittgenstein, para quem “o mundo é determinado pelos fatos e


por isso consiste em todos os fatos” (WITTGENSTEIN: 1968, 55, grifo do autor),
tem-se que a consciência somente pode projetar um mundo lógico, único sobre o
qual a língua é capaz de dizer. Constatada, porém, a artificialidade dessa projeção
consciente, que procura ordenar de modo ilusório a realidade, é ao inconsciente que
se recorre em busca da “visão de uma realidade mais profunda, mais real que a do
senso comum” (ROSENFELD: 2009, 81). Entretanto, as imagens do inconsciente
esbarram na insuficiência da língua para dizer delas. De acordo com a proposição
3.032 do filósofo austríaco, “representar na linguagem algo que ‘contrarie as leis
lógicas’ é tão pouco possível como representar, na geometria, por meio de suas
coordenadas, uma figura que contrarie as leis do espaço; ou, então, dar as
coordenadas de um ponto inexistente.” (WITTGENSTEIN: 1968, 61).
Entretanto, expressionistas, surrealistas, cubistas, valendo-se do insólito e da
deformação da imagem, negaram-se a essa ditadura do realismo e produziram
obras que expressam “emoções e visões subjetivas”, ou a “imagem onírica de um
mundo dissociado e absurdo” ou, ainda, reduzem a realidade “a suas configurações
geométricas subjacentes”. (ROSENFELD: 2009, 76). A exemplo do pintor holandês
Escher, que incorpora à sua obra estruturas irrealizáveis como a do cubo ou do
triângulo impossível, para subverter, por meio da ilusão de ótica, a realidade
projetada pela consciência20, a redatora de Os guarda-chuvas cintilantes também

20 “Escher oferece, com os jogos de perspectiva, um meio de visualização da relatividade que se contrapõe ao
absoluto. Conceitos do cotidiano como em cima e em baixo, dentro e fora, são relativos e alterados; relações

76
integra ao seu diário o impossível e o absurdo para delatar “a limitação da nossa
percepção da realidade diante da impossibilidade de apreender a coexistência do
diverso” (OLIVEIRA; FONSECA: 2006, 35). Como não consegue exprimir por
palavras sua própria multiplicidade nem sua dificuldade – quase incapacidade – de
captar de si mesma algo que possa defini-la enquanto indivíduo, ela recorre ao
absurdo:

São os óculos que estão mal graduados, pensou. Tirou os óculos, e depois os olhos, pôs
duas folhas no buraco dos olhos, duas pedras, dois pássaros, duas nuvens, duas gotas de
água, duas algas verdes, duas âncoras, dois barcos, dois peixes, dois sóis, e teve a visão
das pedras, das folhas, dos pássaros, dos peixes, variou e depois formou todas as
combinações possíveis, no lugar dos olhos, uma folha e um peixe, uma nuvem e um barco,
uma alga e um pássaro, um peixe e uma nuvem, uma pedra e um sol, uma âncora e um
pássaro, variou e combinou até cair de cansaço. Mas a imagem do espelho continuava a não
se parecer com ela. (GERSÃO: 1984, 29).

Considerações finais

Pretendo, portanto, estabelecer um limite ao pensar, ou melhor, não ao


pensar mas à expressão do pensamento porquanto para traçar um limite
ao pensar deveríamos poder pensar ambos os lados desse limite (de sorte
que deveríamos pensar o que não pode ser pensado). O limite será, pois,
traçado unicamente no interior da língua; tudo o que fica além dele será
simplesmente absurdo. (WITTGENSTEIN: 1968, 53).

O único romance que valeria a pena escrever seria aquele em que a


personagem procurava desesperadamente uma saída, e um dia tropeçava
efetivamente nela, e caía para fora, pensou. Mas esse romance era
impossível, porque o que caía para fora não era pensável. A própria
linguagem também ficava dentro do sistema. (GERSÃO: 1984, 91).

Os guarda-chuvas cintilantes, livro em que o tênue nexo entre os episódios


fragmentados e quase surreais precisa ser perseguido pelo leitor, poderia ser um
livro de contos, ou um romance:

Apenas um fio mais, atando as coisas, e seria um romance,


e se ela não cedesse à tentação e não atasse o fio seria talvez o universo, a possibilidade
de todos os romances, excluindo a realidade de nenhum, (GERSÃO: 1984, 90).
Não é, portanto, um romance. Não só porque sua redatora inominada não
cede à tentação e não ata o fio, mas porque, sob seu título, a palavra “diário” impõe
outro contrato de leitura que não o do romance. Conhecido como espaço onde um

absolutamente novas a partir de elementos habituais apresentam mundos, ao mesmo tempo, estranhos e
possíveis” (OLIVEIRA; FONSECA: 2006, 35).

77
“eu” se confessa sem pudores ou receios, espaço para onde se vertem os episódios
cotidianos observados pela perspectiva de quem o escreve, o diário se vende como
caixa de segredos e repositório de um “eu” verdadeiro. É com essa expectativa que
o leitor vai às suas páginas, movido pela curiosidade voyeurista pela intimidade
alheia. Ao deparar-se, entretanto, com os fragmentos a que não só falta o fio atador,
mas o próprio “eu” da escrita, o leitor resta confuso e incomodado.
O diário, que alcançou grande repercussão “com o surto do individualismo
romântico” (CUNHA: 2009, 15), revela-se, na contemporaneidade, vazio de sentido,
uma vez que o sujeito moderno tem consciência de sua fragmentação e instabilidade
no mundo. “O sentimento dessa ‘consciência infeliz’ – diz Anatol Rosenfeld – suscita
uma verdadeira angústia [e] o desejo de fugir para um mundo ou uma época em que
o homem, fundido com a vida universal, ainda não conquistara os contornos
definitivos do eu” (ROSENFELD: 2009, 88).
No campo das artes, essa angústia induz às técnicas de pesquisa e
experimentação. No romance, desfaz-se a personalidade individual, que se torna
abstrata “para que se revelem tanto melhor as configurações arquetípicas do ser
humano.” (ROSENFELD: 2009, 89). Esse percurso que vai do auge da individuação
até a busca de ressignificação do “eu” é abordado pela diarista de Os guarda-chuvas
cintilantes:

Sou lindíssimo, disse o autor fascinado. Lindíssimo, lindíssimo, lindíssimo. De tal modo que
não posso despegar os olhos do espelho. E tudo o que existe, sou tentado a converter em
‘eu’. Porque só tenho olhos para mim.
Sentou-se na cadeira, cruzou as pernas e começou a devorar o mundo. Engolia, engolia,
engordava sem medida e a inflação do eu era tão grande que a certa altura rebentava e caía
numa chuva de estilhaços.
E então pacientemente, de gatas, ia procurando os pedaços, aqui e ali, e começava a colá-
los outra vez com Araldite. (GERSÃO: 1984, 25).
Neste excerto, que constitui a entrada do diário de “quarta, 5”, a diarista
encontra a metáfora adequada para falar do indivíduo centrado em si mesmo, que
projeta o mundo a partir de sua própria consciência. À medida que seu mundo
ordenado começa a perder sentido e ele toma consciência de sua instabilidade, a
metáfora assume contornos alegóricos, denunciando a dificuldade de falar desse
(novo) indivíduo. Finalmente, ao buscar uma expressão desse novo homem que já
não se encontra integrado ao mundo, a diarista esbarra no indizível. “Existe com

78
certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico”, diz Wittgenstein (1968, 129)
em seu aforismo 6.522. É preciso, então, mostrá-lo, mas “o que pode ser mostrado
não pode ser dito”, assevera ainda o filósofo (1968, 78) em sua proposição 4.1212.
Assim, a diarista recorre ao discurso absurdo – o homem de gatas a colar-se com
Araldite – para oferecer dele uma imagem que se aproxime do que ela não consegue
dizer sobre sua desintegração.
O diário, que em sua acepção não literária já é uma forma silenciosa de
escrita, na medida em que nada diz daquilo que promete, isto é, oferece apenas
uma imagem ilusória de sujeito unívoco, é subvertido nesse trabalho de Teolinda
Gersão, pois rompe o silêncio original denunciando a falácia, mas o aprofunda ao
esbarrar na insuficiência da língua para dar conta de um “eu” multifacetado. Ao final
da leitura nada se pode dizer de sua autora que a defina de forma individualizada,
entretanto, sua multiplicidade foi escancarada e mostrou-se a precariedade e
efemeridade da personalidade.

Referências

CUNHA, S. M. S. A. Dias inventados: o romance-diário na ficção portuguesa


contemporânea. 2013. 373 f. Tese (Doutorado em Literatura) – Departamento de
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Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 5-16.

GERSÃO, T. As águas livres: cadernos II. Porto: Sextante Editora, 2013.

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OLIVEIRA, A. M.; FONSECA, T. M. G. Conversas entre Escher e Deleuze: tecendo


percursos para se pensar a subjetivação. Psicologia e sociedade. São Paulo. v.
18, n. 3, p. 34-38, set. dez. 2006. Disponível em
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PINTO, P. R. M. O Tractatus de Wittgenstein como obra de iniciação. Filosofia


Unisinos. São Leopoldo/RS, v. 5, n. 8, p. 81-104, jan. jun. 2004. Disponível em
<http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/view/6540>. Acesso em: 19
nov. 2014.

ROSENFELD, A. Texto/Contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2009. Capítulo s/n:


Reflexões sobre o romance moderno. p. 75-97. (Debates).

79
SONTAG, S. A vontade radical: estilos. Tradução de João Roberto Martins Filho.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Capítulo s/n: A estética do silêncio, p. 11-
40.

WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus. Tradução e apresentação


de José Arthur Giannotti. São Paulo: Nacional, 1968.

80
ENSINO DO ESPANHOL E OS GÊNEROS TEXTUAIS: UM CAMINHO A
SEGUIR? PERSPECTIVAS PARA UMA INVESTIGAÇÃO ENTRE
DOCUMENTAÇÃO, LIVRO DIDÁTICO E DOCENTES

Bárbara Baldarena Morais21

A partir de nossas pesquisas feitas ao longo desse estudo e de acordo com estudos
iniciados na década de 1970, consideramos que o ensino de língua estrangeira deve
buscar contextualização e situações em sala de aula semelhantes a contextos fora
dessa sala.

Deste modo, a aprendizagem de Língua Estrangeira (LE) contribui para o processo


educacional como um todo, indo muito além da aquisição de um conjunto de
habilidades linguísticas. Ao mesmo tempo, promove a percepção dos costumes e
valores de outras culturas contribuindo, diretamente, no desenvolvimento da
percepção da própria cultura do discente por meio da compreensão da cultura
estrangeira.

Tendo isso em vista, em uma das perspectivas do ensino em língua estrangeira


prioriza-se a utilização de textos autênticos, evitando os que são artificialmente
produzidos para a situação de aprendizagem, como se fazia antes da abordagem
comunicativa se tornar mais conhecida. Sob essa perspectiva, poderá ser utilizada
uma seleção diversificada de gêneros textuais como anúncios publicitários, cartas,
histórias em quadrinhos, artigos, entre outros, retirados de suportes diversos, como
jornais, revistas, livros, internet. O objetivo é preparar o aluno para as práticas de
leitura fora dos limites da sala de aula.

Nossos questionamentos iniciam-se da importância do entendimento e da avaliação


dos métodos de ensino de língua estrangeira no Brasil, especificamente o ensino

21 Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

81
de língua espanhola, para a formação do aluno e a contextualização que é usada
para esse fim, que é o trabalho com gêneros textuais.

Deste modo, as teorias relacionadas à proposta são discutidas nas proposições das
obras de autores como Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz, Luiz Antônio Marcuschi
e Anna Cristina Bentes, no que se refere à questão dos gêneros textuais; Irandé
Antunes, Maria Helena de Moura Neves, C. Faraco, M. Bagno, no que se refere às
questões de sistematização; Marta Baralo, Isabel Gargallo, Neide González, H.
Brown, L. Selinker, relacionados ao ensino de língua estrangeira; entre muitos
outros estudiosos e pesquisadores.

Os documentos oficiais e o ensino do espanhol no Brasil

A atual LDB22 foi sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 20


de dezembro de 1996 e se baseia no princípio do direito universal à educação para
todos. Dentre as diversas mudanças no ensino registradas, as Línguas Estrangeiras
Modernas recuperam, de alguma forma, a importância que, durante muito tempo,
lhes foi tirada.

O § 5º do artigo 26, da LDB, deixa bem claro a necessidade da língua estrangeira


no ensino: "Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a
partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja
escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da
instituição". E, em relação ao ensino médio, o § 3º do artigo 36 dispõe que "será
incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela
comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das
disponibilidades da instituição".

Complementando a nova LDB, se publicou os Parâmetros Curriculares Nacionais


de Línguas Estrangeiras23 – PCN – onde os temas centrais nesta proposta são a

22Lei de Diretrizes e Bases (lei 9394/96)


23Documentos de apoio às discussões e ao desenvolvimento do projeto educativo de sua escola, à reflexão
sobre a prática pedagógica, ao planejamento de suas aulas, à análise e seleção de materiais didáticos e de

82
cidadania, a consciência crítica em relação à linguagem e os aspectos sociopolíticos
da aprendizagem de LE unindo-se aos temas transversais24.

Neste documento, elaborado por professores brasileiros das mais conceituadas


universidades do país, as Línguas Estrangeiras são integradas à área de
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e assumem a condição de parte
indissolúvel do conjunto de conhecimentos essenciais que permitem ao estudante
aproximar-se de várias culturas e, consequentemente, propiciam sua integração
num mundo globalizado (BRASIL, 1999).

A democratização do acesso à LE está ligada, diretamente, ao tema da diversidade


cultural que vem adquirindo crescente importância na atualidade. A professora
Cristiana Tramonte (2002) afirma que os conflitos mundiais têm recuperado o tema
da diversidade cultural como uma prática prioritária em nível de práticas globais e,
assim, a necessidade na determinação das políticas de ensino de língua
estrangeira.

Na temática de aspectos sociopolíticos referentes à aprendizagem de uma língua


estrangeira, a crescente ascensão do espanhol se explica pela criação do
Mercosul25 e pelo processo de globalização, tornando-se fundamental aos
profissionais brasileiros com ambição de fazer carreira em multinacionais, em
companhias de exportação ou de trabalhar com relações internacionais.

Na inclusão nos currículos escolares, principalmente nos estados fronteiriços com


países onde o espanhol é falado, esse se encontra ora como língua de contato, ora

recursos tecnológicos e, em especial, que possam contribuir para sua formação e atualização profissional
(BRASIL, 1998).
24 O currículo ganha em flexibilidade e abertura, uma vez que os temas podem ser priorizados e

contextualizados de acordo com as diferentes realidades locais e regionais e que novos temas sempre podem
ser incluídos. O conjunto de temas propostos recebeu o título geral de Temas Transversais, indicando a
metodologia proposta para sua inclusão no currículo e seu tratamento didático (BRASIL, 1998).
25 União aduaneira - livre comércio intrazona e política comercial comum - de cinco países da América do Sul

(Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela).

83
como língua estrangeira. Nas zonas de fronteira com os países sul-americanos, o
espanhol é a língua de maior contato com o Brasil.

As relações existentes entre o Brasil e as nações de língua espanhola nos revelam


a necessidade de repensar o lugar que esta língua ocupa no nosso país, bem como
sua importância para ampliar as relações políticas, comerciais e, sobretudo,
culturais com o Brasil.

A aprendizagem do espanhol no Brasil e do português nos países de língua


espanhola na América, conforme os PCN:

É também um meio de fortalecimento da América Latina, pois seus


habitantes passam a se (re)conhecerem não só como uma força cultural
expressiva e múltipla, mas também política (um bloco de nações que
podem influenciar a política internacional) (BRASIL, 1998, p.50).

O interesse cada vez maior pela aprendizagem do espanhol pode contribuir na


relativização do inglês como língua estrangeira hegemônica no Brasil. Para Reatto
e Bissaco (2007), esse panorama da língua espanhola difere da hegemonia do
inglês, que se impõe pelo poderio econômico ou da hegemonia do mandarim, com
o acelerado crescimento no volume populacional.

Os gêneros textuais

26
As Orientações Curriculares do Ensino Médio (MEC/SEB, 2006) revelam que o
conhecimento de Línguas Estrangeiras é muito valorizado no âmbito profissional,
porém, no caso do Ensino Médio, mais do que encarar o novo idioma apenas como
uma simples ferramenta ou um instrumento que pode levar à ascensão, é preciso
entendê-lo como um meio de integrar-se e agir como cidadão, como já
mencionamos.

26 Orientações Curriculares do Ensino Médio a partir de agora, OCEM.

84
Nesse sentido, o foco do ensino não deve ser exclusivo e predominante na
preparação para o trabalho ou para a superação de provas seletivas, como o
vestibular (MEC/SEB, 2006).

Os professores de línguas precisam, entre outras coisas, produzir o seu


ensino e buscar explicar por que procedem das maneiras como o fazem.
Para dar conta desse duplo desafio, o movimento comunicativo tem
sugerido alçarmos a posição mais alta, o nível de abstração das crenças e
pressupostos guias. Isso equivale a elevar a abstração do nível do método
(materialidade de ensino, fórmula estável de ação pedagógica) para
abordagem (conjunto de conceitos nucleados sobre aspectos cruciais do
aprender e ensinar uma nova língua) (ALMEIDA FILHO, 2001, p.19).

Uma abordagem de ensino se estabelece a partir da reflexão e concretização de


concepções a partir das experiências, crenças e pressupostos de cada docente. O
que não podemos deixar de lado é que o conhecimento de uma língua estrangeira
deve levar o aluno a ver-se e constituir-se como sujeito a partir do contato e da
exposição ao outro, à diferença e ao reconhecimento da diversidade.

O trabalho com a linguagem (tanto em língua materna como em línguas


estrangeiras) desenvolve as maneiras de ver, relatar, explicar, portar, entre muitas
outras coisas e, no que diz respeito à leitura - nosso foco de análise - ilustram-se
várias modalidades, segundo as OCEM (MEC/SEB, 2006):

- a visual (mídia, cinema);

- a informática (digital);

- a multicultural;

- a crítica (presente em todas as modalidades).

Deste modo, a fim de aperfeiçoar o processo de interação entre leitor e texto, o


trabalho com gêneros textuais em sala de aula pode ser motivador, fácil e agradável,
por serem diretamente relacionados à vida e à cultura de uma sociedade.

Com o intuito de promover o ensino de uma língua estrangeira mais significativo, os


PCN (BRASIL, 2000) propõem uma reflexão sobre os gêneros, a fim de direcionar

85
os currículos para um ensino mais eficaz. O objetivo principal é levar o conhecimento
ao aluno por meio de usos autênticos.

Todo o texto se organiza dentro de determinado gênero em função das


intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos
discursos, os quais geram usos sociais que os determinam (BRASIL, 1998,
p.21).

O ensino/aprendizagem de língua estrangeira, para o Ensino Médio, deve ter


mobilidade, ação e não ser de forma estática, pois sendo “a língua o veículo de
comunicação de um povo, é através de sua forma de expressar-se que esse povo
transmite sua cultura, suas tradições, seus conhecimentos” (BRASIL, 2000, p.61).

É essencial que o ensino de uma língua estrangeira introduza a comunicação real


ou a mais autêntica possível, pois, dessa forma, os diferentes elementos que a
compõem estarão presentes, produzindo sentido à realidade.

Os estudos relacionados à noção de gêneros textuais mostram como é proveitosa


sua utilização no processo de ensino/aprendizagem de línguas, visto que há uma
preocupação em relacionar o ensino em sala de aula com as situações reais de uso
da língua estrangeira propriamente dita.

Fortemente atrelados à vida cultural e social humana, os gêneros são atividades


discursivas socialmente estabilizadas (BRONCKART, 1999). Jean Paul Bronckart
enfatiza a questão do gênero, sob o prisma de gêneros de texto, os quais são
facilmente reconhecidos nas práticas sociais de linguagem.

Chamamos de texto toda a unidade de produção de linguagem situada,


acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação).
Na medida em que todo texto se inscreve, necessariamente, em um
conjunto de textos ou em um gênero, adotamos a expressão gênero de
texto (BRONCKART, 1999, p.75).

Marcuschi (2002), com essa mesma percepção, define gêneros textuais (de textos)
como uma noção vaga para os textos materializados encontrados no dia-a-dia e que
apresentam características sociocomunicativas definidas pelos conteúdos,
propriedades funcionais, estilo e composição característica.

86
A linguagem, como prática social, é proposta por Bronckart (1999) como
interacionismo social, onde o comportamento humano se materializa através de
ações de linguagem, que se concretizam discursivamente dentro de um gênero.

No interacionismo social há a dependência da história das relações do indivíduo


com sua sociedade e a utilização da linguagem. Schneuwly e Dolz (2011) explicam
que o fato de pertencer a uma comunidade de interpretação das unidades de
representação já permite a compreensão e a antecipação das atividades de outros
membros deste lugar, permitindo a modificação do seu próprio comportamento,
levando em consideração o ponto de vista do outro.

Deste modo, segundo os autores, há duas maneiras de interação entre o aprendiz


e o texto: a primeira seria a construção direta, “o objetivo primeiro é instrumentalizar
o aprendiz para que ele possa descobrir, com seus camaradas, as determinações
sociais das situações de comunicação” (BRONCKART, 1999, p.40); a segunda
maneira seria as “intervenções sistemáticas do professor que desempenham papel
central para a transformação das interações entre o aprendiz e o texto” (idem).

Apesar dessas elucidações, há algumas críticas feitas por estudiosos pela maneira
que se é trabalhada, metodologicamente, a língua em sala de aula. Dúvidas sobre
como adaptar um determinado conjunto de pressupostos teóricos a um grupo
específico e, dentro deste grupo específico, como lidar com as diferenças individuais
parecem apontar para uma necessidade de se olhar com cuidado para modelos
tidos como pacotes prontos para serem usados.

O professor, com um leque de decisões a serem tomadas a todo o momento de sua


prática, vai optar por decisões muitas vezes baseadas em sua experiência, sua
vivência com o grupo, o contexto cultural, social e valores pessoais.

Nesse contexto, quais são as oportunidades que o professor tem para seguir uma
ou outra abordagem? Em vista das diferentes realidades e da verificação de
necessidades específicas será que o professor acaba por mesclar diferentes
abordagens? Qual o resultado dessa adaptação?

87
Língua: o processo de gramaticalização

As categorias gramaticais são debatidas por estudiosos há tempos. Embora estudos


sobre gramaticalização tenham se iniciado no século XVIII com os trabalhos de
filósofos franceses e britânicos, o termo gramaticalização foi utilizado pela primeira
vez por Meillet (RODRIGUES, 2006).

É evidente, há um bom tempo, que o caráter da gramática permeia por caminhos


de grandes conflitos. Os equívocos no ensino vão desde o se dizer que para garantir
a eficácia do ensino se deve estudar só gramática, até o pensamento de que um
ensino efetivo é o que não se ensina nada sobre gramática.

Nesse meio conturbado, do ensino de gramática nos moldes tradicionais, existem


políticas de ensino, programas de intervenção ou orientação para os professores,
que tentam auxiliar no trabalho de sala de aula, mostrando um caminho para quem
se encontra diante dessa situação.

O processo de gramaticalização é um processo de regularização do uso da língua,


relacionado à variação e à mudança linguísticas. Revela o caráter não estático da
gramática, evidencia as constantes mudanças que as línguas estão submetidas em
função das influências externas. Assim, a gramática está imersa num constante
fazer-se, o que nos permite ponderar sobre uma relativa instabilidade da estrutura
linguística. (CUNHA et al. 2003).

É nesse contexto que nasce a gramática tradicional, inicialmente pautada numa


reflexão sobre o funcionamento da linguagem e posteriormente, com vistas à
preservação, sistematizada num ensino que culmina em finalidades prescritivo-
normativas.

No entanto, Antunes (2007, p. 25) apresenta o seguinte posicionamento quando se


pode estar falando de gramática:

a) das regras que definem o funcionamento de determinada língua,


como em: “gramática do português”; nessa acepção, a gramática

88
corresponde ao saber intuitivo que todo falante tem de sua própria língua,
a qual tem sido chamada de “gramática internalizada”;
b) das regras que definem o funcionamento de determinada norma,
como em: “a gramática da norma culta”, por exemplo;
c) de uma perspectiva de estudo, como em: “a gramática gerativa”, a
“gramática estruturalista”, a “gramática funcionalista” ou de uma tendência
histórica de abordagem, como em “a gramática tradicional”;
d) de uma disciplina escolar, como em “aulas de gramática”;
e) de um livro, como em “a Gramática de Celso Cunha”.

Cada uma dessas definições se refere a algo diferente, mas coexistem. Para Neves
(1997), a gramática tradicional, que o atual ensino tem como referência, é resultado
do movimento reflexivo sobre o funcionamento da língua e que posteriormente
passou a ser uma obra composta por modelos normativos de comportamentos
linguísticos, perdeu seu espaço e sentido.

Abrindo espaço para contraposições entre o ensino tradicional, pautado em


prescrições gramaticais, e o ensino pautado em reflexões sobre uma gramática que
está exposta às pressões do uso, portanto submetida a inevitáveis variações e
mudanças linguísticas. O processo de gramaticalização possibilita reflexões sobre
restrições impostas pela gramática tradicional, como as noções de correto e
incorreto.

Nesse contexto, Hopper (1987 apud RODRIGUES, 2006) propõe tratar o processo
de gramaticalização como quase sinônima de gramática emergente, pois, ambas
dizem respeito às estratégias que são usadas na construção do discurso e envolve
um movimento contínuo em direção à estrutura.

Ora, a gramática da língua tem funções. Antunes (2007, p.41) apresenta que a ela
(gramática) “cabe especificar, desde a formação de palavras até a formação de
frases, determinando quais combinações de palavras impostas ou opcionais, qual a
ordem possível para cada função dos termos”. A gramática regula, mas não tudo.
Para conseguir a eficácia na comunicação, saber unicamente a gramática (as regras
específicas) não basta.

89
Ressaltamos, novamente, o que enfrentamos no ensino atual: o questionamento,
ou melhor, a relutância de ensinar a gramática nos moldes tradicionais e, a partir
desse princípio, assumir a postura sóciointeracionista, com os gêneros textuais,
como o caminho a se seguir na educação. No entanto, que caminho devemos
seguir? O ensino exclusivo de gramática não abarca a totalidade do ensino de uma
língua, porém a solução é priorizar os gêneros textuais?

Cabe-nos, neste contexto, procurar saber que grau de importância o professor de


língua espanhola dá a gramática dentro do ensino e se isso faz com que o aluno
tenha êxito.

BIBLIOGRAFIA

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interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999.

CUNHA, M. A. F. da; COSTA, M. A.; CEZARIO, M. M. Pressupostos teóricos


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(orgs.) Linguística Funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003.

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Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Lingüística e Literatura - Ano 04 n.07
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RODRIGUES, A. T. C. "Eu fui e fiz esta tese" As construções do tipo foi fez no
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SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas:


Mercado de Letras, 2011.

91
TRAMONTE, Cristina. Ensino de língua estrangeira e socialização do saber: abrindo
caminhos para a cidadania. In: Congresso Virtual de Antropología y Arqueología.
Naya, n° 3, 2002.

92
MELANCOLIA E GÊNIO: DA ANTIGUIDADE AO RENASCIMENTO

Carolina Toti27
Introdução
Desde O Homem de Gênio e a Melancolia, O Problema XXX, I, tratado
atribuído a Aristóteles, estabeleceu-se um laço entre o sofrimento e a criatividade.
Neste texto o autor questiona por que todos os seres de exceção, aqueles que se
destacam em arte, filosofia e política são melancólicos. A capacidade de sofrer é
entendida como condição da capacidade de criar, a melancolia é concebida como
parte da identidade e requisito indispensável do gênio. Da Antiguidade ao
Renascimento, o humor melancólico foi considerado como doença, temperamento
e sentimento, até ser na Renascença elevado à acepção de força intelectual. No
século XV, passou-se da ideia comum de melancolia como um mero mal para o
sentido de potência criativa. Aproximando a melancolia aristotélica do furor
platônico, comparação jamais explicitamente feita pelos autores da Antiguidade, a
Modernidade atribui novos significados a ideias antigas, dando origem à concepção
moderna de gênio. Feita pela primeira vez por Marsílio Ficino, esta aproximação
identifica a melancolia dos indivíduos criativos e intelectualmente proeminentes com
o furor divino de Platão. Baseando-se fundamentalmente na cultura da Antiguidade
clássica, Ficino foi o principal responsável por consolidar e disseminar pela Europa
a ideia de gênio melancólico. Ao mesmo tempo em que a melancolia predispõe ao
trabalho intelectual, este último conduz à primeira. Assim, todos os estudiosos estão
fadados à melancolia. Pretende-se no presente trabalho esclarecer a ligação entre
as noções de melancolia e genialidade na Antiguidade, e o modo como este vínculo
se estreita no Renascimento, dando origem à ideia moderna de gênio. Para isto,
retomam-se antes de tudo as considerações antigas sobre o humor melancólico, o
vínculo estabelecido pelo tratado aristotélico entre melancolia e gênio, e o modo
como esta ligação é apropriada e ressignificada por autores do Renascimento, para
então compreender a origem da noção moderna de genialidade.

27
UEL

93
A Melancolia Antiga

Na Antiguidade clássica, entre o fim do século V a. C. e o século I d. C.,


definem-se os rumos da história da melancolia. Até a nosografia de Pinel, no fim do
século XVIII, são as definições clássicas que prevalecem nos estudos sobre este
tema. Surgida no século V a. C, a teoria dos quatro humores se estabelece com os
textos hipocráticos, datados da segunda metade do século I a. C. A crítica em geral
atribui ao aforismo 23 do VI livro dos Aforismos de Hipócrates um estatuto fundador
das bases do sentido da melancolia no ocidente. Nesse aforismo, a melancolia ou
bile negra é definida como um estado de longa duração de tristeza e temor. O
aforismo hipocrático articula dois sentimentos a um humor. A causa é indefinida:
não se sabe se a bile negra causa o medo e a tristeza, ou se estes sentimentos
originam o humor.
Tanto a medicina antiga quanto a filologia moderna são incertas sobre a
definição de bile negra ou atrabile. A teoria antiga explica a saúde e a doença pelo
equilíbrio e desnaturação dos quatro humores: o sangue, a pituíta ou fleuma, a bile
amarela e a bile negra. De todos estes, esta última é considerada a mais perigosa
por ser a mais instável. Trata-se de uma substância espessa, pesada, corrosiva e
sombria, características que denominam o sentido literal da melancolia. Todos
esses humores podem se alterar, mudar de lugar, exceder, inflamar e se decompor.
Quando isto acontece, as doenças aparecem. Se a bile negra é produzida em
excesso, ou então sua condição se altera, o indivíduo pode ficar ou se tornar
melancólico e também ficar ou se tornar louco. Mas uma vez que os sintomas do
desarranjo da atrabile concernem, dentre outras coisas, à inteligência, ao
melancólico é concedida a vantagem da excelência, da exceção, da superioridade
do espírito. Assim, a melancolia toma parte no gênio poético, filosófico e também
nos atos heroicos. Esta relação entre melancolia, loucura e genialidade é expressa
em O Homem de Gênio e a Melancolia – O Problema XXX, 1, de Aristóteles, e ainda
se faz presente na cultura ocidental.
Esse tratado de Aristóteles estabelece as características comuns do
melancólico, destacando-se principalmente pela associação feita entre genialidade

94
e loucura. Da Antiguidade clássica até o século XIX, este texto é referência
constante em estudos críticos sobre estes temas. O filósofo questiona por que todos
os seres de exceção, os que se destacam em poesia, filosofia e política são
melancólicos. Para Aristóteles, nem todos os melancólicos são gênios, mas todos
os gênios são melancólicos, isto é, a bile negra é o humor que predomina nos seres
de exceção. Mas a atrabile também é considerada a responsável pela loucura. Ou
seja, a antiga crença nos humores atribui à genialidade e à loucura uma mesma
causa. Tanto o gênio quanto o louco devem sua condição à bile negra. A diferença
seria apenas de grau: a loucura resultaria do excesso do humor. O gênio não é
fatalmente louco, mas a loucura lhe é uma ameaça constante. O melancólico e o a
gênio não são necessariamente doentes, mas devido à natureza inconstante da
atrabile, a saúde de ambos é extremamente vulnerável. Assim, Aristóteles diz que
o melancólico é instável, frágil, sempre ameaçado por doenças graves, devendo,
portanto, se tratar e se cuidar continuamente. O melancólico não é doente, mas
doentio, isto é, adoece com facilidade.
As cartas atribuídas a Hipócrates e O Problema XXX, 1, de Aristóteles,
estabelecem as bases do imaginário da Antiguidade clássica sobre a melancolia e
acabam por determinar as direções que essa noção assumiu na história da cultura
ocidental.

A Melancolia Medieval

A partir do século III, muitos cristãos cortam os vínculos com a sociedade e


se isolam em regiões desérticas. Neste retiro, sofrem delírios e tentações que os
deixam extenuados. Este abatimento recebe o nome de acedia. Ela conduz à
indiferença do coração. Em teologia foi considerada como um dos pecados capitais.
É o que hoje se denomina apatia. A acedia é descrita como um estado de torpor,
falta de ação ou energia física, indiferença ou inércia moral, peso, fastio, grande
tristeza que emudece, melancolia profunda em que a alma perde a voz, afasia do
espírito. O indivíduo perde a faculdade da fala e se consentir neste estado, incorre
em um pecado mortal.

95
A partir da Idade Média, a imagem do eremita se torna emblemática nas mais
diversas representações da melancolia. Eles aparecem sempre aplicados em lidas
manuais. Isto porque a Igreja incentiva o trabalho como uma maneira de afastar o
temperamento melancólico que ameaça sobretudo os que levam uma existência
solitária. Não se trata de visar o lucro que o trabalho produz, nem de modificar a
natureza pela técnica, mas sim de tratar e curar a melancolia, manter a saúde do
espírito por meio de alguma atividade. O trabalho é recusa da ociosidade. O
exercício material e intelectual afasta o tédio do ócio. O cansaço do esforço garante
o sono, o alívio da fadiga. A melancolia tem a vantagem de dispor o indivíduo ao
trabalho intelectual e à contemplação, mas o estado contemplativo tem a
desvantagem de deixar o indivíduo vulnerável à acedia. Esta ataca sobretudo os
ociosos.
Comparado à contemplação, o trabalho pode ser até mesmo uma diversão.
Pode distrair, afastar os pensamentos incontroláveis e fazer esquecer tentações
como a vontade de fugir do retiro. Ele faz passar o tempo e, como acaba com o
ócio, veda a influência do diabo. Quando se executa alguma tarefa, a imaginação
errante se concentra e se estabiliza. O delírio, a fantasia, o monólogo interior
desenfreado e o torvelinho do pensamento cessam com a aplicação em uma
atividade. Enquanto se aplica, o melancólico pode não se lembrar do tédio e do
desgosto da vida. O trabalho “(...) interrompe o vertiginoso diálogo da consciência
com seu próprio vazio, ele interpõe resistências e obstáculos, ao contato dos quais
a alma pode esquecer sua insatisfação (...)”. (STAROBINSKI: 2012, 55).

A Melancolia Renascentista e a Noção Moderna de Gênio

Época melancólica por excelência, a Renascença conhece a primavera


desse estado doloroso. Devido à influência dos platônicos de Florença e sobretudo
à publicação, em 1489, de Três livros sobre a vida, de Marsílio Ficino, a melancolia
é mais do que nunca vista como condição própria de poetas, artistas e
principalmente filósofos. Em sua obra, Ficino instrui intelectuais sobre as vantagens
da melancolia, os modos de tirar proveito desse estado e os modos de evitar os

96
riscos aos quais esse humor expõe. Trata-se de um compêndio de diversos meios
de se conservar e promover a saúde do intelectual.
Amparado na tradição platônica, Ficino considera que o exercício intelectual
é uma ameaça, pois esta atividade gasta o espírito que serve de intermediário entre
o corpo e a alma. Se trabalhar em excesso, o intelectual pode ser privado de espírito.
Este consumo prejudica o temperamento e causa uma melancolia bastante nociva.
Em se tratando dos que por nascença são regidos por Saturno, este esgotamento
pode ser especialmente funesto. Conforme a tradição, Ficino entende que a
despeito destes riscos, este astro também é responsável pela habilidade
contemplativa própria de poetas e filósofos. Eis aí a ambiguidade da melancolia.
Pessoas regidas por Saturno se distinguem ao mesmo tempo pelo privilégio da
excelência e pelo risco de ruína. Assim, os melancólicos podem se tornar tanto
gênios quanto doentes.
Ao publicar a obra Três livros sobre a vida, inteiramente focada na ideia de
gênio melancólico, Ficino se faz o responsável por engendrar e difundir essa noção
pela Europa. Sendo ele próprio melancólico, o texto se distingue pelo tom
marcadamente subjetivo. A experiência pessoal de uma acentuada melancolia se
evidencia pelo entendimento desse estado como um triste destino, e pela visão de
Saturno como uma influência necessariamente prejudicial. Daí um livro todo
dedicado aos modos médicos, mágicos e astrológicos de se livrar da melancolia e
da força maligna do astro, e também de usufruir das vantagens garantidas tanto
pelo humor quanto pela regência do planeta.
Antes de qualquer outro autor, Ficino assimila a teoria de Aristóteles sobre a
melancolia dos homens de exceção à ideia platônica de furor divino. O italiano
afirma que devido à relação da bile negra com o núcleo da terra e com o mais alto
dos planetas, o melancólico tem pensamentos ao mesmo tempo profundos e
elevados. Isto explica por que quanto maior a densidade intelectual, maior a
melancolia. Saturno leva o intelectual ao extremo da reflexão, gerando pensadores
excepcionais, tão desligados da existência mundana que servem de meio para
expressões divinas. Porém, a experiência pessoal da melancolia e a familiaridade
com teorias médicas e astrológicas fazem com que estas especulações sejam

97
insuficientes para Ficino. Ele entende que, além dos saturninos, quaisquer
indivíduos dedicados à atividade intelectual sofrem a má influência de Saturno. Se
a regência desse astro não é determinada pelo momento do nascimento, pode vir a
ser pelo trabalho. Os estudiosos estão fadados à melancolia e a viver sob a sombra
desse planeta:

Pelas inclinações e desejos de nossa mente e pela mera capacidade de


nosso ‘espírito’ podemos entrar fácil e rapidamente sob a influência
daqueles astros que denotam essas inclinações, desejos e capacidades;
em consequência, pelo apartamento das coisas terrenas, pelo ócio, a
solidão, a constância, a teologia e filosofia esotérica, pela superstição, a
magia, a agricultura e a dor entramos sob a influência de Saturno.
(KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL: 2012, 256 Apud FICINO).

A formação da noção de melancolia como sentimento se distingue da ideia


de melancolia como requisito da criatividade. Um estado afetivo é evidentemente
diferente de uma potência criativa, mas não são compreensões incompatíveis, pelo
contrário, a situação emocional pode se valorizar com a força intelectual e artística.
Ambas as noções são recuperadas pelos ideais do Humanismo italiano que,
retomando aspirações da Antiguidade clássica, valoriza a contemplação e o
exercício das potencialidades humanas como um modo de vida distinto. A
realização plena das forças intelectuais parece perfeitamente possível, pois a vida
especulativa se basta, é autossuficiente, a ação reflexiva vale por si mesma.
Tomando por modelo o filósofo clássico, o humanista renascentista procura
distinguir o próprio estilo de vida do modo de viver do religioso medieval. Para isto,
evita a expressão vida contemplativa, adotando a expressão vida especulativa que
remete ao tempo anterior ao medievo e reforça a noção antiga sobre a reflexão
como atividade autossuficiente. O ideal humanista se materializa no chamado
homem literato que, conscientemente distinto do homem religioso da Idade Média,
procura em todas as dimensões da vida se comprometer apenas consigo mesmo.
O surgimento da visão humanista de mundo ocorre em um contexto marcado
por ideias contraditórias. O literato se vê entre a afirmação veemente de
autossuficiência e a dúvida extrema de si. A consciência desta polaridade leva à
reflexão sobre a acepção moderna de gênio. Depreende-se daí que a compreensão
de gênio moderno não se desenvolve senão a partir das representações de

98
melancolia e Saturno, ideias doravante retomadas e renovadas. Este dualismo
aparentemente subentendido n’O Problema XXX, 1, de Aristóteles, é trazido à tona
pela interpretação do humanismo italiano sobre Saturno e melancolia. Não se trata
apenas de consciência, mas também de valorização dessa contradição devido ao
reconhecimento desta como atributo do gênio. Trata-se, assim, de um entendimento
duplo, pois por um lado há a ideia neoplatônica de Saturno como o astro mais alto
que personifica e rege as capacidades elevadas e distintas da alma, a razão e a
indagação, e por outro lado as considerações aristotélicas sobre a melancolia como
atributo de indivíduos geniais.
Essa consciência renovada da ambiguidade da melancolia permite uma
apreciação mais positiva do que nunca desse estado:

[..]) este novo reconhecimento de uma visão favorável de Saturno e da


melancolia vinha acompanhado – ou, como temos visto, condicionado –
por uma consciência sem precedentes de sua polaridade, que dava uma
cor trágica à visão otimista, e com isto colocava uma tensão característica
no sentimento da vida que experimentavam os homens do Renascimento.
(KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL: 2012, 244).

Somente após o século XV, a melancolia aristotélica é relacionada ao furor


platônico. A comparação entre estas noções jamais foi explicitamente feita na
Antiguidade. A partir daí se formula a noção moderna de gênio, acepção que retoma,
sob uma nova perspectiva, pensamentos antigos.
Porém, no Renascimento, o vínculo entre melancolia e genialidade não
consiste apenas em uma herança da Antiguidade clássica. Trata-se de uma
percepção anterior às representações humanistas e literárias. Os autores do
Humanismo renascentista procuram enaltecer a melancolia e Saturno a partir de
argumentos baseados na experiência pessoal. A conexão entre o estado
melancólico e a disposição para a criatividade se assenta na vivência do próprio
escritor. A afirmação desse vínculo é ainda um modo preservar a própria atividade
intelectual. Uma vez experimentados pessoalmente, o sentimento da própria
inconstância, a consciência da própria fraqueza e da capacidade criativa fazem com
que as teorias aristotélica e platônica sobre a melancolia e o furor, até então vistas

99
como especulações teóricas, sejam reconhecidas e vinculadas à noção de
melancolia como sentimento.
A nova ideia de melancolia não se restringe às reflexões de Aristóteles sobre
esta. Saturno também é entendido sob um novo aspecto. Conforme se considera a
superioridade dos atributos afiançados por Saturno, bem como os riscos aí
implicados, os letrados passam a ver o próprio humor melancólico como uma
vantagem a ser preservada. As mais diversas características de Saturno acabam se
restringindo à oposição entre perturbação intelectual excessiva e ordenação
intelectual excessiva.
Em pouco tempo se vulgariza o pensamento de que os saturninos, os
indivíduos que nascem sob a regência desse astro se distinguem pela antítese
própria do mais alto dos planetas: “Saturno rara vez denota caráteres e destinos
ordinários, antes ao contrário pessoas que se distinguem dos demais, divinas ou
bestiais, felizes ou oprimidas pela dor mais profunda”. (KLIBANSKY; PANOFSKY;
SAXL, APUD FICINO, 2012, p. 249). Este pensamento leva os intelectuais da Itália
a se interessar pela imagem de Saturno. O perigo da ambiguidade da disposição do
melancólico e do saturnino, esta caminhada à beira do abismo é vista como uma
posição notável, uma distinção privilegiada em relação ao indivíduo comum. É nesta
atmosfera de conflito intelectual na qual se opõem a afirmação de autossuficiência
e a incerteza de si mesmo que se forma a noção moderna de gênio, ideia que
reivindica a desobrigação dos valores vigentes, o distanciamento dos costumes e
dos preceitos artísticos em voga, uma compreensão intimamente ligada às
considerações sobre a ambiguidade da melancolia.

Da situação do intelectual do humanismo – isto é, da consciência de


liberdade experimentada com uma sensação de tragédia – surgiu a ideia
de um gênio que reclamava, cada vez com maior urgência, emancipar-se
em sua vida e obras dos critérios da moralidade ‘normal’ e das regras
comuns da arte. Esta ideia surgiu em estreita combinação com a ideia de
uma melancolia que ao mesmo tempo agraciava e afligia o ‘sacerdote das
musas’ (do mesmo modo que, segundo a crença antiga, o raio ao mesmo
tempo destruía e santificava); (...). (KLIBANSKY; PANOFSKY; SAXL:
2012, 249).

100
Relacionando tratamentos medicinais e mágicos com o neoplatonismo,
Ficino elabora um sistema suficiente para supersticiosos, literatos e pensadores
porque envolve, para além de práticas mágicas, o exercício do livre pensamento.

Referências

ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia. Trad. Jackie Pigeaud. Rio de


Janeiro: Lacerda, 1998.

FICINO, M. Tres libros sobre la vida. Madrid: Asociación Española de


Neuropsiquiatría, 2006.

KLIBANSKY, R. PANOFSKY, G. SAXL, H. Saturno y la melancolía. Madrid: Alianza


Editorial, 2012.

STAROBINSKI, J. L’Encre de la mélancolie. France: Éditions du Seuil, 2012.

101
CRISE HÍDRICA, RACIONAMENTO DE ÁGUA E COMUNICAÇÃO DE CRISE E
DE RISCO, 2014: O CASO SABESP 28

Celso Figueiredo Neto29


Maria de Lourdes Bacha30
Rodrigo Prando31

Introdução
O atual cenário de “crise hídrica”, no jargão da mídia e dos Governos
estaduais e federais, para designar “falta d´água” e “racionamento” na fala de parte
substancial da população, reclama uma discussão capaz de ultrapassar os aspectos
atinentes aos fenômenos naturais, da escassez de chuva. Pode-se – a partir de uma
ampla gama de perspectivas – escolher uma ou várias chaves explicativas para o
momento que presenciamos. Há, por exemplo: uma dimensão natural, discussões
acerca de uma histórica falta de chuva ou de chuvas insuficientes; ou a dimensão
social, de como se relaciona e usa os recursos naturais, mormente a água; e, por
fim, uma dimensão propriamente política, da ausência de planejamento dos poderes
públicos, em suas distintas esferas.
A sociedade – cidadãos, governos, empresariado, produtores rurais,
universidades, terceiro setor – poderiam, na verdade deveriam, ter se preparado
para enfrentar a situação em voga. Cabe, então, questionar o porquê termos
chegado até este ponto, inclusive, pelo fato de se aventar que tenhamos cinco dias
sem água e dois dias com água na cidade de São Paulo, como veiculado no auge
da seca.
O presente trabalho tem seu foco centrado não na crise ou nas políticas
públicas que envolvem o tema, mas no esforço de controle da opinião pública, uma
vez eclodida a crise. A água, como bem essencial à vida, tornou mais dramáticas
as coberturas midiáticas que pulularam na imprensa, no momento em que se
evidenciou sua escassez. Vimos ao longo do ano de 2014 – ano que teve com

28
Esse trabalho contou com o apoio da pesquisadora Beatriz Amorim, bolsista do MackPesquisa.
29
Professor Doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
30
Professora Doutora da Universidade Presbiteriana Mackenzie
31
Professor Doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

102
eleições gerais, um embate no campo das comunicações que colocou em corners
opostos a imprensa, majoritariamente detratora do governo do Estado (PSDB) e a
empresa de saneamento, Sabesp, em seu empenho publicitário e de relações
públicas para reverter a imagem negativa de si e do governo com a crescente
ameaça de escassez de água.
Retrocedendo ao documento inaugurador da literatura brasileira, a carta do
“achamento” do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, enviada a Dom Manuel I, Rei de
Portugal, datada de 1500 poderemos vislumbrar alguns índices do comportamento
da sociedade que levou a essa situação. Na carta, o escrivão dá conta ao Rei da
viagem e do “descobrimento” do Brasil, do contato com os índios, de sua fauna e
flora. Na carta de Caminha, na impossibilidade de indicar ao Rei a existência de
riquezas minerais, um trecho merece atenção:
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de
metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares
frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste
tempo d´agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas;
infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á
nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA, 1500).

Depreende-se, pois, do trecho acima, o deslumbramento de Caminha: “Águas são


muitas; infinitas”. E, aqui, as plantações vingariam, dado a abundância de água à
disposição. Há, ainda, na conhecida música “País Tropical”, de Jorge Ben Jor, o
seguinte trecho: “Moro num país tropical, abençoado por Deus/E bonito por
natureza, mas que beleza”. Some-se, também, o famoso chiste que sempre usamos
em nossas cotidianas conversas de que “Deus é brasileiro”. Por isso, essa natureza
exuberante num país continental só poderia, em nossa cultura de forte presença
católica, ser obra de Deus. Até o Papa Francisco, em encontro com jornalistas no
Rio de Janeiro em 21 de julho de 2013 brincou “Deus é brasileiro, vocês queriam
um papa?” (FOLHA DE SÃO PAULO, 2013).

Seja no discurso de autoridades governamentais ou na fala do homem comum, são


reiteradas as seguintes afirmações: “Deus é brasileiro” e “ Se Deus quiser, e Ele há
de querer, teremos chuva”. A hipótese, aqui, é simples: nossa mentalidade, ou, nas
premissas durkheimianas, nossa “consciência coletiva”, ainda permanece ligada à

103
noção de abundância, de recursos inesgotáveis, como descritas no paraíso. No
fundo, usamos a água como se, realmente, não fosse um recurso escasso. Não
temos nevascas, não temos terremotos, nunca tivemos uma guerra de grandes
proporções em nosso território e a nossa natureza é “abençoada por Deus”. Isso,
tudo, nos leva a uma atitude de pouca preocupação com nossos recursos naturais.

Referencial Teórico
O quadro teórico se apoia na conceituação de comunicação de crise e de risco
(KAPLAN; SCHWARTZ, 1975; SLOVIC, 1978, 2003, ANGER, 2012; (PALTTALA,
VOS, 2012, DIGIULIO et al, 2012).
De um lado, a comunicação de crise envolve o envio e recebimento de mensagens
de ''para prevenir ou diminuir os resultados negativos de uma crise e, assim,
proteger organização, as partes interessadas, e/ou a indústria de danos ''
(COOMBS, 1999, P. 4). Fearn-Banks (2002, p.480) sugere que ''comunicação de
crise é verbal, visual e / ou interação escrito entre a organização e seus stakeholders
(muitas vezes através da mídia) antes, durante e depois de uma ocorrência
negativa''. Estes processos de comunicação seriam projetados para reduzir e conter
o dano, prestação de informações específicas para os interessados, iniciar e
melhorar a recuperação, gerir imagem e percepção de culpa e responsabilidade,
reparação legitimidade, gerar apoio e assistência, explicar e justificar as ações, pedir
desculpas, e promover a cura, aprendizagem, e alteração (SEEGER et al., 2003).
De outro lado, a comunicação de risco analisa elementos de risco, que sejam
toleráveis ou não, e suas consequências. A comunicação de risco seria a troca de
informações entre as partes interessadas sobre a natureza, magnitude, importância,
ou o controle de um risco, um processo interativo de troca de informações e opiniões
entre indivíduos, grupos e instituições, intimamente associada com a detecção e
avaliação de ameaças.
Na prática, a comunicação de risco envolve a produção de mensagens públicas
sobre os riscos à saúde e riscos ambientais, através de mensagens que usam o
recurso do medo como um dispositivo persuasivo. Essas mensagens visam induzir
a mudança de comportamento, apresentando uma ameaça e descrevendo um
comportamento ou a mudança de comportamento que podem aliviar a ameaça, sua

104
eficácia ou a viabilidade da mudança de comportamento refere-se à crença de que
a recomendação pode ser realizada. A comunicação de risco também se baseia na
suposição de que o público tem o direito generalizado de saber sobre os perigos e
riscos. A disponibilidade de informações permite que o público a fazer escolhas
informadas sobre o risco (REYNOLDS, 2002, REYNOLDS, SEEGER, 2005).

Procedimentos metodológicos

A metodologia escolhida foi qualitativa. Inicialmente foi desenvolvida pesquisa


qualitativa exploratória com de revisão da literatura sobre comunicação de crise de
risco, a partir de livros e trabalhos apresentados em periódicos em bases de dados
assinadas pela instituição como também anais de congresso. A definição do corpus
deste trabalho e do tipo de analise foi feita de qualitativamente, dentro de um
universo de peças veiculadas pela empresa em diversas mídias. Para
contextualização do tema, foi feito levantamento de reportagens e sobre a empresa
envolvida, definindo-se uma linha do tempo para auxiliar a compreensão e análise
deste trabalho. Foram excluídas peças exclusivamente institucionais, sem relação
com o tema, além daquelas de conteúdo repetido, ou com mesma linguagem,
apenas adaptada para outras mídias.

Peças analisadas
Em janeiro de 2014, iniciou-se a campanha publicitária emergencial para
conscientizar a população acerca da escassez de água. Essa peça inicial, veiculada
em TV aberta era da maior simplicidade, com fundo azul e texto correndo pela tela
(GC – gerador de caracteres no jargão publicitário). A mensagem centrada na
informação das condições dos reservatórios deu início à comunicação de crise,
seguida de dicas de economia de água que iriam se repetir por dezenas de peças
publicitárias publicadas ao longo do ano.

105
Figura 1 - Programa de Incentivo à Redução de Consumo, janeiro 2014
Fonte: Saneamento Sabesp

Em paralelo à campanha de economia de água, foi criado um sistema de


bonificação, no qual o usuário que economizasse 20% de água obteria 30% de
desconto na conta de água. Esse esforço para fazer a economia “compensar” para
o próprio consumidor foi bem aceito pela sociedade e muitos usuários passaram a
economizar.
Logo se notou a necessidade de produção de peças mais persuasivas – não
meramente informativas. Foi contratado o garoto propaganda Rodrigo Faro, um
ídolo popular, apresentador de um programa de entretenimento líder de audiência.
Diversos filmes com esse “ator” foram produzidos e veiculados. A seguir alguns
extratos desses comerciais.

Figura 2 e Figura 3 – Rodrigo Faro, fevereiro 2014


Fonte: youtube/saneamentosabesp

106
Como ao mesmo tempo a grande mídia começou a criticar a Sabesp, seja pela
necessidade de proteção de mananciais, necessidade de redução de desperdício
ou das perdas na rede, ou pela perda de água no sistema devido a encanamentos
antigos sem manutenção, o esforço voltou-se para demonstrar as obras que a
empresa vinha fazendo para coletar mais água. No corner oposto verificou-se o
empenho crítico da imprensa contra o processo de administração das reservas de
água da Sabesp. Diversas matérias foram publicadas na grande mídia de fontes
diversas em um esforço coletivo para buscar culpados e apontar inconsistências na
administração dos recursos hídricos paulistas.
Centenas de outras matérias foram publicadas nos meses seguintes com dois tipos
de enfoque, um primeiro apontava as falhas da companhia e os momentos em que
seus procedimentos eram conflitantes com a legislação. Outro tipo de matéria que
vigeu por todo ano de 2014 foram os textos que apontavam para os baixos níveis
dos reservatórios e a ausência de chuva. Foi então criado o selo “eu sou guardião
das águas” que passou a ser utilizado em todas as peças publicitárias de economia
de água.

Figura 5 – Selo Guardião das águas


Fonte: Guardião das águas, 2014
Mas não foi apenas na TV que o esforço publicitário ocorreu, peças de internet foram
divulgadas para apoiar o empenho na economia:

107
Figura 6 – webbanner 1
Fonte: Sabesp, 2014

Figura 7 – webbanner 2
Fonte: Sabesp, 2014

O esforço publicitário seguiu com peças para rádio e jornal, além da criação e
distribuição de posters para serem distribuídos às empresas e afixados em
banheiros e demais locais públicos.

Análise e principais resultados

Conforme pode ser observado pela análise das peças publicitarias, a Sabesp
utilizou anto a comunicação de crise como a comunicação de risco.
Como recurso em sua comunicação, a redução das contas por meio de um
programa de bônus, na esperança de que houvesse uma mudança no
comportamento dos consumidores. Segundo a empresa, 76% dos consumidores
diminuíram seu consumo. Pode-se dizer, portanto, que a empresa optou por uma
estratégia que focava em ganhos sociais e individuais, ao mesmo tempo em que
tinha como pano de fundo um apelo emocionalmente forte, que é a possibilidade de
racionamento de água, a principio negada, mas atualmente admitida pela empresa.

108
Também se pode destacar na comunicação da Sabesp um esforço para transformar
o ganho individual - a redução da conta de água em ganho social, ou seja, o esforço
individual se transforma em benefício para todos, a estratégia voltada para o objetivo
final, de forma a assegurar ao indivíduo que vale a pena participar em prol da
coletividade.
Esse, em largas pinceladas, é o quadro da guerra de propaganda instaurada na
mídia paulista ao longo de todo o ano de 2014. Com a iminência das eleições – em
que o governador Geraldo Alckmin concorria à reeleição (foi reeleito em primeiro
turno), o embate extrapolou a questão hídrica e tornou-se tema central nas
acaloradas discussões políticas que opuseram PSDB e PT nas instâncias municipal,
estadual e federal. A guerra de propaganda pró e contra a administração da Sabesp
deu munição para apoiadores e detratores do governo de São Paulo, do PSDB.
Não obstante o aspecto da competição eleitoral, o cidadão foi instado a economizar
água, mudar seus hábitos, reformar suas casas instalando mais caixas d´água.
Grande parte da população aderiu ao apelo do estado e alterou seu consumo
obtendo descontos significativos em sua conta de água e contribuindo para o
esforço coletivo de economia.
Considerando-se os o aumento da economia de água e a preocupação com o tema,
que passou a ser presente em conversas entre amigos, encontros profissionais e
reuniões escolares podemos afirmar que ambos os esforços foram bem sucedidos
no intuito de trazer para a população a discussão e reflexão acerca dos usos e
hábitos associados ao consumo de água. Questões antes irrelevantes como tempo
de banho, hábitos de lavagem de carros, louça, descarga, escovação de dentes e
mesmo de reuso da água passaram a ser assunto cotidiano e não foram poucas as
famílias que, conscientes, mudaram seus hábitos. Contribuiu para isso, claro, a
redução da pressão da água que, na prática, fez com que a água deixasse de chegar
a regiões da cidade que se encontravam distantes das distribuidoras.
Do ponto de vista da comunicação, há que se considerar que, não obstante o tiroteio
da grande imprensa contra a Sabesp as respostas da empresa foram eficientes,
tanto do ponto de vista da economia atingida tanto, no viés político, pela reeleição
do governador.

109
Contudo a crise que enfrentamos tem uma dimensão social e política. Socialmente,
há a crença arraigada na abundância e inesgotabilidade dos recursos naturais – a
água, especialmente - e isso nos torna ótimos consumidores, bons compradores,
mas péssimos cidadãos. Nosso individualismo e consumismo não são e nem serão,
jamais, sustentáveis. Tínhamos muito (água, comida, espaço, terras) e, por isso,
nunca nos preocupamos em poupar, em racionalizar. A expressão “em se
plantando, tudo dá” surgida no primeiro documento oficial escrito no Brasil, a carta
de Caminha ao rei de Portugal plasmou a crença de que esta era a terra da
abundância. Crença que vige até hoje e contra a qual, em última instância, precisa
lutar a comunicação de risco de desabastecimento de água em São Paulo.
Esse comportamento social está diluído nas mais diversas classes e categorias
sociais. Pode-se até, indicar que essa atitude de desperdício é uma variante de
nosso “jeitinho”, tão bem indicado por Roberto DaMatta (2003) (formulador do
conceito) e Barbosa (1992).
Nossa classe política não deu a devida atenção ao uso racional da água. A
população (nesse caso não se pode usar cidadãos, já que estes são conscientes de
direitos e deveres) tampouco se preocupou. A efetividade de qualquer mudança de
valores em relação aos nossos recursos naturais pode, até, ser conseguida à base
de multas ou de bônus para quem gastar mais ou economizar, respectivamente. No
entanto, há que se definir como prioridade uma educação para a sustentabilidade,
dentro das escolas, no seio da família, na cotidiana convivência social.

Considerações finais

Felizmente, momentos de crise são, como foi visto, tempos de separação e de


rompimentos. Na crise, o “velho” parece não mais comandar e o “novo” principia e
apresenta suas possibilidades de direcionamento social. O atual modelo de uso da
água e dos demais recursos naturais já é “velho”. Há que se esforçar para um novo
entendimento de que a natureza não é uma dádiva divina, mas parte de um amplo
ecossistema. Há que se educar, desde cedo, para sermos responsáveis pelo uso
destes recursos e responsáveis pelo nosso consumo e pelo lixo que produzimos.

110
Não adianta esperar do Estado, de nossos governantes, seriedade e planejamento.
Nossa cultura política pouco se preocupa com esses termos. Há que se cobrar a
seriedade e o planejamento, bem como transparência republicana. Mas, só pode
cobrar quem está envolvido, quem se coloca como parte do problema e da solução.
O cidadão deve, antes e acima de tudo, compreender que todas as atitudes
individuais têm consequências sociais. Ou a solução é coletiva ou não há solução.
Fórmulas mágicas e pensamento mítico não trarão resolução alguma para o
problema que vivenciamos. Hoje, falta água; amanhã não teremos locais para
destinar o volume de lixo produzido. O Brasil não é um reino de abundância, de
natureza inesgotável. O Brasil não é de um partido, de um político, de um governo.
A sociedade – em suas mais diversas esferas – deve reposicionar sua relação não
só com a água, mas com todos os recursos naturais. Que a difícil situação que nos
encontramos permita, ao menos, que as mistificações sejam superadas pela real
compreensão de que problemas coletivos exigem soluções coletivas, sem mágica e
nem demagogia.

Referências

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casos brasileiros em racionamento de água e energia elétrica. Dissertação
(mestrado em ciências da comunicação), São Paulo, ECA, Universidade de São
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CARTA CAPITAL, 2014, Erro! A referência de hiperlink não é válida.
http://www.cartacapital.com.br/politica/perguntas-e-respostas-sobre-a-crise-de-
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Responding, Thousand Oaks, CA: Sage.1999.

111
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ainda, em: DAMATTA, R. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
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https://www.youtube.com/user/SaneamentoSabesp, acessado em marco de 2015.

112
CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS: IDENTIDADES EM TRÂNSITO

Charles Borges Casemiro32


INTRODUÇÃO

A Literatura Portuguesa de Autoria Feminina – mais especialmente aquela


que se tem produzido após a publicação das NOVAS CARTAS PORTUGUESAS
(1972), de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – tem
permitido tecer, no contexto do pós-salazarismo e pós-colonialismo português, uma
nova história das demandas identitárias portuguesas, no sentido de se compreender
e de se poder reconstruir, tanto uma história das identidades culturais lusitanas,
quanto, mais singularmente, uma história da mulher portuguesa para o mundo
contemporâneo.
Nesse novo contexto econômico, político, social e cultural, em que têm tanto
valor as ressignificações literárias, as formas e os conteúdos da memória
portuguesa e também os problemas do pertencimento português se apresentam
como conteúdos culturais e, ao mesmo tempo, como formações e lugares
discursivos indispensáveis para a elaboração de um novo discurso estético
português, não somente como autenticação estética de uma vontade de nova
consciência social das identidades culturais portuguesas, mas também, como
proposição de uma revisão histórica dos cânones da literatura portuguesa, no
sentido da ampliação de seu campo de visão e de seu campo de atuação social. É
o que se pode surpreender em narrativas como A COSTA DOS MURMÚRIOS
(1988), de Lídia Jorge, O RETORNO (2012), de Dulce Maria Cardoso, ou
CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS (2011), de Isabela Figueiredo.
Desse modo, ao nos debruçarmos sobre este tipo de discurso literário
português contemporâneo, a partir do viés da Análise do Discurso e dos seus

32
Docente do IFSP – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - Doutorando do
Programa de Literatura Portuguesa – USP / FFLCH

113
dispositivos de análise, podemos surpreender um entrecruzamento de diferentes
discursos sociais portugueses a respeito das subjetividades, dos tempos e dos
espaços lusos, figurados, esteticamente, como um espaço-tempo de intersecções
entre memórias e problemas de pertencimento portugueses; de um lado, como
imaginação individual, subjetiva e autobiográfica, de outro, como observação
coletiva, histórica, objetiva, que permitem, simultaneamente, discursar a respeito da
construção e desconstrução do Império Colonial Português e a respeito da
desconstrução e reconstrução das identidades portuguesas, como espaço-tempo
de transição, marcado, sobremaneira, pelas decorrências sociais e psicológicas das
construções, desconstruções e reconstruções históricas de Portugal.
Considerada, portanto, nesse bojo da natureza dialógica dos discursos e do
contexto pós-colonial português, a literatura portuguesa contemporânea de autoria
feminina, como discurso narrativo, tem se configurado, de fato, como um discurso
patenteado por uma “estética da transição”, em que se surpreende a fratura dos
seus elementos de composição, a composição oscilante de seus conteúdos, a
oscilação ideológica entre imagens de memórias e de pertencimentos do europeu
colonizador e imagens de memórias e de pertencimentos de americanos, africanos
e orientais colonizados, todavia, amalgamados, em um espaço-tempo de discursos
coloniais e, ao mesmo tempo, pós-coloniais, entre os Portugais, portanto, do Além-
mar e os Portugais do Aquém-mar: identidades, sem dúvida, portuguesas, porém,
em trânsito, cambiantes entre o imaginário do Próspero Europeu e o imaginário do
Caliban Colonizado, conforme a metáfora shakespeariana, recuperada por
Boaventura de Sousa Santos, ao interpretar, justamente, as relações econômicas,
políticas, sociais e ideológicas entre o Velho e o Novo Mundo, no mesmo contexto
da colonização, da descolonização e da autonomização do Mundo Colonial
(Boaventura Sousa Santos, p. 227), sobremodo, no contexto das relações entre
Portugal e suas ex-colônias africanas.
Desse modo, atentando mais detidamente para O CADERNO DE
MEMÓRIAS COLONIAIS (2011), de Isabela Figueiredo, como expressão dessa
Literatura Portuguesa Contemporânea de Autoria Feminina, percebemos que se
apresenta discursivamente, de um lado, como uma memória estilhaçada do Velho

114
Mundo, uma memória de discursos identitários adormecidos e/ou silenciados;
apresenta-se como um questionamento a respeito do pertencimento e a respeito
das identidades portuguesas, “...como uma poética de restos (...) onde o resgate
das contramemórias mais marginalizadas ou singulares de experiências coletivas
traumáticas resiste à amnésia do mundo da técnica...” [Vecchi e Ribeiro, p. 102], e
assim sendo, se articula como retrato fraturado de um mundo português fraturado,
o que se atesta na homologia estabelecida entre sua estética fragmentária e
multifacetada e a história de dissolução, de estilhaçamento e desconstrução do
Império Ultramarino Português e das identidades portuguesas, mas, ao mesmo
tempo, na homologia entre este seu experimentalismo estético e a história de
reelaboração dos resíduos, dos restos, das ruínas que conformam – em uma
multiplicidade de vozes e de silêncios, de recordações e de esquecimentos – uma
memória suspensa, uma memória que transita entre Portugal e África, entre o
passado e o presente, entre o indivíduo e a coletividade, entre os ditos e os interditos
da Colonização e da Descolonização, transformados, nesse sentido, em uma
espécie de memorial e de espaço-tempo discursivo para a recomposição e
redefinição das identidades e do pertencimento portugueses.
Nesse sentido, gostaríamos, então, de tecer algumas considerações a
respeito de uma das instâncias discursivas da narrativa de Isabela Figueiredo, a
propósito de melhor situá-la no contexto destas narrativas portuguesas
contemporâneas de autoria feminina, focadas, antes de tudo, numa demanda
identitária.

Narrativa de formação: vozes do silêncio e da memória

Gostaríamos, portanto, de apresentar o CADERNO DE MEMÓRIAS


COLONAIS, de Isabela Figueiredo, como uma espécie de narrativa de formação,
analisando aspectos do seu memorialismo narrativo.
Nessa esteira do memorialismo, o CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS
pode ser lido, lato sensu, como uma narrativa de formação, ou seja, como uma
possibilidade narrativa nova, forjada pela segunda metade do século XX,

115
necessariamente dialogada e fragmentária, em que o narrador, neste caso, uma
narradora, em primeira pessoa, reelabora discursivamente o seu passado, a partir
das tensões discursivas constitutivas de seu presente, dando voz e fazendo ecoar,
em seu discurso, todas as memórias e contramemórias, todos os restos e retalhos
discursivos, todas as subjetividades – individuais e coletivas –, todos os espaços-
tempo que foram silenciados na história de sua própria formação como sujeito de
um discurso. É isto mesmo, o que se pode surpreender, já insinuado pelas epígrafes
da narrativa, que caracterizam o memorialismo como uma espécie de violação, uma
espécie de intrusão no passado, mas, ao mesmo tempo, como uma possibilidade
de reconstrução e ressignificação tanto do passado quanto do presente:

De cada vez que abria uma gaveta ou espreitava para


dentro de um armário, sentia-me como um intruso, um ladrão
devassando os locais secretos da mente de um homem. A todo o
momento esperava que o meu pai entrasse, parasse incrédulo a
olhar para mim e me perguntasse que raio é que eu pensava que
estava a fazer. Não me parecia justo que ele não pudesse
protestar. Eu não tinha o direito de invadir a sua privacidade.
(PAUL AUSTER, Inventar a Solidão)

A memória humana é um instrumento maravilhoso, mas


falível. [...]. As recordações que fazem dentro de nós são gravadas
em pedra; não só têm a tendência para se apagarem com os anos,
como também é frequente modificarem-se, ou inclusivamente
aumentarem, incorporando delineamentos estranhos. (PRIMO
LEVI, Os Que Sucumbem e Os Que Se Salvam)

Desse modo, a narradora se propõe a reconstituir e ressignificar a história de


formação de seu próprio discurso, evidenciando o caráter histórico e dialógico dessa
formação, recorrendo aos restos, aos retalhos de discursos de diferentes sujeitos
com quem já contracenou antes ou com quem contracena no presente de sua
história. Pai e mãe portugueses, outros familiares e vizinhos, amigas e amigos,
amores e desafetos, mulheres africanas e portuguesas, homens africanos e
portugueses, colonizadores e colonizados, patrões e empregados, militares e civis,

116
indivíduos e grupos, pessoas e instituições... filtrados pelo olhar da narradora, que
de se fia e se tece na relação com os espaços e com os tempos lusos.
Desse vasto painel dialógico de restos discursivos, todavia, desse rol de
subjetividades individuais e coletivas, silenciado pelo tempo, pelo espaço e pela
morte, na memória discursiva da narradora, destacam-se, entretanto, os restos
discursivos e a subjetividade de seu pai. É, sobretudo, a partir do diálogo entre uma
memória fragmentária da narradora – que se concretiza em sua narrativa de
fragmentos – e uma memória de seu pai já falecido – figurado como constante
interdiscurso – que se constitui, ou se reconstitui, mais especialmente, a própria
identidade discursiva da narradora, tanto como fato e exercício, quanto como
potencialidade e virtualidade.

Disse alto, com voz forte e jovial, muito perto da minha


cabeça:
- Olá!
Era um olá grande, impositivo, ao qual me seria impossível
não responder. Reconheci a sua voz, e, ainda no sono, pensei, não
podes ser tu; tu já morreste.
E abri os olhos (p. 09).

É partir do reavivamento dos discursos do pai – memória reencontrada nos


sonhos, memória dos mortos, memórias de memórias, restos discursivos – que a
narradora pode acessar uma vasta teia de discursos formadores de sua própria
subjetividade e de seu lugar no mundo. Uma vasta teia formada por diversas
subjetividades, lugares e tempos, muitas vezes, conflitantes, que evidencia um
paralelo entre a construção e dissolução das identidades portuguesas e a
construção e dissolução do Império Ultramarino Português, bem como, um paralelo
entre a construção da própria subjetividade, espaço tempo e identidade da
narradora e a construção de um Portugal no mundo Pós-colonial.
É a memória do pai que permite a narradora revisitar fragmentos de discursos
de sua infância e da primeira adolescência em Maputo (Lourenço Marques),

117
Moçambique, entre 1960 e 1970, e, a partir deles, construa uma história pós-
colonial.
Do tempo em Moçambique, a maior parte das imagens formadoras que são
evocadas, nessa espécie de memorialismo, pela narradora, diz respeito à própria
descoberta de sua sexualidade, ou seja, a descoberta do sexo como imagem de
poder e como identidade constituída em um percurso de prazer e de castração, em
um sentido psicanalítico.
Por isso mesmo, a narrativa de Isabela Figueiredo se afigura como uma
narrativa de descobrimento, como tomada de posse e exploração do próprio corpo,
especialmente, seu corpo de mulher, lugar do prazer e da castração: imagens
recuperadas, a partir da ambiguidade necessária, para poderem significar, não
somente um percurso subjetivo, individual de intimismo e autoconhecimento, mas
também um percurso social e histórico, que metaforizasse a própria colonização
portuguesa, em Moçambique, bem como o traumático processo de descolonização.
Desse modo, todas as imagens da narrativa são ampliadas de seu sentido intimista
e subjetivo estritos para um sentido histórico e objetivo latos. É do centro desse
processo metonímico, que a imagem do pai da narradora surge, portanto, para
significar, também, a imagem do colonizador português e o caráter intrusivo, violento
e camuflado da colonização, em África, e, desse modo, a figura da mulher –
sobretudo a mulher africana – com quem a narradora, a princípio, se identifica –,
para significar o colonizado e a África colonizada.

Os brancos iam às pretas. As pretas eram todas iguais e


eles não distinguiam a Madalena Xinguile da Emília Cachamba, a
não ser pela cor da capulana ou pelo feitio da teta, mas os brancos
metiam-se lá para os fundos do caniço, com caminho certo ou não,
para ir à cona das pretas. Eram uns aventureiros. Uns fura-vidas.
[...] (p. 13).

Foder. O meu pai gostava de foder. Eu nunca vi, mas via-


se. Uma pessoa que observasse bem o meu pai, os olhos a sorrir
simultaneamente com a boca, a sensualidade viril das mãos,
braços, pés, pernas... uma pessoa que o escutasse a maliciosa

118
rapidez da sua resposta, o sentido de humor permanente e dúbio
desse gigante perceberia que aquele homem gostava de foder. Eu
não sabia, mas sabia. [...]
Eu nunca percebi nada disso de foder até aos meus sete
anos, ou melhor, conscientemente nunca percebi. Desconhecia a
existência e depois o significado do verbo e não fazia qualquer
ideia sobre como se realizava a procriação. Mesmo muito depois
dessa idade, pensava que as crianças nasciam porque os homens
e as mulheres se casavam e, nesse momento, Deus punha as
mulheres de “bebé. Não dizia “grávidas”. Também não conhecia
essa palavra, e a primeira vez que a disse, a minha mãe deu-me
uma bofetada para eu aprender a não dizer palavrões (p. 17)

Neste trecho, a descoberta da sexualidade própria e desregrada do pai, bem


como a descoberta do corpo da mulher, como objeto e lugar de exploração sexual
do homem, realçam uma história de violação, de violência e de castração imposta
pelo homem à mulher, sobretudo, à mulher africana, e, por extensão da imagem,
configura também uma história de violação, de violência, e de castração imposta
pelo Império Colonial Português às, até então, Colônias Portuguesas em África.
Particularmente, entretanto, para a narradora, a primeira relação concreta
com o sexo – essa imagem e símbolo de poder e de prazer – se deu aos oito anos,
com um vizinho branco, em um episódio carregado de significações.

Numa das raras ocasiões em que pude brincar fora do meu quintal,
– o meu pai não estava em casa e a minha mãe deve ter-se querido
livrar do empecilho – lembro que voava num baloiço improvisado
num ramo de cajueiro, empurrada por um rapazito da vizinhança,
mais ou menos da minha idade. O cajueiro situava-se junto aos
caboucos e paredes semierguidas de uma nova casa de colonos
– e nunca de lá saiu, mesmo depois de concluída a construção.
Ironicamente, era a casa da Dona Prazeres. O miúdo era
obviamente branco, filho de vizinhos de confiança, gente boa da
metrópole; havia convivência. Perguntou-me, “Queres jogar de
foder?” Jogar de foder?!” Ora aí estava uma brincadeira que eu
não conhecia, nunca tinha jogado e não sabia mesmo como era.

119
Devo dizer que o Luisinho tinha apenas uma vaga ideia, embora
soubesse mais do que eu. Era curiosa, portanto não me passou
pela cabeça recusar tal brincadeira. Perguntei-lhe como se fazia e
ele esclareceu-me resumidamente, “despimo-nos e eu ponho-me
em cima de ti”. A coisa não me pareceu muito ortodoxa, “despimo-
nos”, “em cima de”, mas aceitei sem problemas. Tinha curiosidade,
e não só. Pressenti ser algo que não se podia fazer, portanto devia
ser bestial e queria experimentar. Era curiosa, aventureira, era
uma miúda sozinha que brincava com as formigas. (...) despimo-
nos completamente, eu deitei-me sobre a terra, exatamente como
nos ensinavam na escola que se devia dormir, e ali ficamos alguns
minutos, nessa posição de difícil equilíbrio, conversando e
“fodendo”. Eu estava por baixo e podia ver a abertura já existente
onde se situariam as janelas. E, num ápice de segundo, apercebo-
me da figura do meu pai, oh, meu Deus, o meu pai, estou a vê-lo
ainda hoje, debruçado nesse vago, com os antebraços pousados
nos tijolos, olhando para baixo, observando a cena, apercebendo-
se da situação e desaparecendo rapidamente. Percebi tudo.
Nessa fração de segundo levantei-me, derrubando o Luisinho, e
agarrando a minha roupa. No momento em que o meu pai deu a
volta ao exterior da casa, entrou pela porta e me arrebatou pelo
braço, estava o Luisinho ainda em pelota e eu já meia vestida.
Segundos antes da pancada, tinha já a certeza absoluta que foder
era proibidíssimo (pp. 29 à 31).

Apesar da vastidão de significações da cena, gostaríamos de nos ater a sua


ambiguidade mais explícita, que se coloca, de um lado, como uma imagem mais
psicanalítica – que se pode ler como símbolo da ingênua descoberta do corpo, da
posse do corpo e do prazer, encontrando limite, todavia, numa espécie de
extroversão avessa à visão freudiana sobre a Electra, justamente, na voz castradora
do pai –; e, de outro lado, como uma imagem mais sociológica, que se pode ler
como imagem da participação e ação histórica de Portugal no processo colonizador,
encontrando limite, todavia, na voz dos diversos centros de poder do capitalismo
colonizador (a voz do Próspero), a submeter Portugal (nesse caso, no papel da
“menina europeia ingênua” a vislumbrar a participar do poder e do prazer) a um

120
papel subalterno (a voz do Caliban), no processo de expropriação do mundo colonial
(este sim, o Caliban mais propriamente).
Corroborando estas imagens, a narradora, então aos 10 anos de idade, se
coloca em uma segunda aventura de descoberta do sexo com outro vizinho, este,
porém, negro.

Quase engravidei do filho do vizinho preto. Tinha dez anos e o


medo pôs-me de cama. Foi por pouco. Deus protegeu-me. O
negrito, vendo-me no telhado da garagem, subia à sua manfurreira
para falar comigo às escondidas da minha mãe. Foi o único com
quem me relacionei profundamente. Chegámo-nos a tocar-nos nas
mãos, quando ele transferia para meus braços os gatos que tinham
fugido para o seu quintal. Tinha mãos iguais às minhas, rosa-
amarelo-beje nas palmas, mas de preto. Falávamos de escola. De
jogos. De bichos, sobretudo de cobras, porque havia inúmeras no
mato do seu quintal, e ele gostava de me meter medo com isso. E
mostrava-mas já cadáveres. Lembro-me do dia em eu lhe disse, “a
minha mãe não me deixa falar contigo”. Também me lembro de lhe
dizer “tenho de me ir embora, que ela está a chamar”. Chamava-
me furiosamente, muito zangada por não ter acesso ao telhado, e
não poder desancar-me à chinelada. Ela tinha medo das minhas
conversas com o negro. Eu tinha medo do filho mulato que já devia
estar a crescer na minha barriga, de certezinha. Agradava-me o
rapaz, e já tinha percebido eu quando um homem e uma mulher
gostavam um do outro, nascia uma criança. Se eu tivesse grávida
do preto, o meu pai podia matar-me, se quisesse. Podia espancar-
me até ao aviltamento, até não ter conserto. Podia expulsar-me de
casa e eu não seria jamais uma mulher aceite por ninguém. Havia
de ser a mulher dos pretos. E eu tinha medo do meu pai. Desse
poder do meu pai (pp. 43-44).

O componente especial desta segunda cena é o fato de o companheiro e


coadjuvante da descoberta do corpo e do sexo da narradora, em sua ingenuidade
infantil, ser um africano. Essa proximidade entre uma menina branca portuguesa e
um menino negro moçambicano era então de todo reprimível, conforme as

121
formações discursivas que deram sustentação aos processos colonizadores mais
agudos em África, aqueles vincados nos modelos nórdicos europeus (discursos do
Próspero), segundo os quais, a miscigenação constituiria uma aberração dentro do
processo colonial, sobretudo, quando vivenciada por mulheres europeias.
Como colonizador, Portugal nunca se enquadrara inteiramente no modelo
colonizador nórdico, todavia, diante das imposições históricas de sustentação do
colonialismo – primeiro, por conta das limitações portuguesas em seu papel de
“Próspero colonizador”, depois, por conta do “Ultimatum Inglês”, e, por fim, por conta
das mazelas do Salazarismo –, o Império Colonial Português passou a comungar
do conjunto de discursos naturalistas e positivistas dos colonizadores nórdicos –
sobretudo, franceses e ingleses – que conferiram ao discurso colonizador português
facetas étnicas, segregacionistas e machistas, novas, estranhas à índole
portuguesa, contudo, mais agudas.
É nesse sentido que os limites frouxos do contato sexual da narradora com
um menino africano – neste caso, simbolizado pela castração displicente da mãe
portuguesa – acrescidos da consciência ingênua que tem a narradora do imaginário
do pai, aparecem como indicadores explícitos de uma transformação histórica do
relacionamento entre Portugal e suas Colônias Africanas, durante o século XX,
muito mais que da própria transformação da experiência sexual da narradora, que
se resume a uma troca de parceiros entre os que mais se avizinham. Tal
consciência, entretanto, remonta, ainda, a uma consciência machista de gênero,
invocada pelo colonizador de modelo nórdico: um homem branco pode violar uma
mulher negra, mas um homem negro não pode violar uma mulher branca, o que,
ampliado, da situação subjetiva da narradora, poderia, mais uma vez, apontar para
o universo ideológico da colonização, neste ponto, em que se configura em sua face
mais aguda de violência, de racismo e de machismo, orquestrados pelo discurso
civilizador naturalista do Próspero, como heranças do Positivismo e do
Evolucionismo do século XIX.
Subjaz, nesse sentido, a estas imagens – tanto do ponto de vista subjetivo,
do plano individual, portanto, da narradora, quanto do ponto de vista da construção
das identidades culturais e do processo colonizador – que o prazer-poder e o poder-

122
prazer – aqui representados por descobertas e por possibilidades do sexo e do
corpo – são eventos inseridos em tempos e espaços que a Europa Próspera – aos
olhos da narradora ou de seu pai – não poderia partilhar, em hipótese alguma, com
a África colonizada.
Essas imagens, entretanto, do corpo, do prazer, do sexo e da partilha – como
questões essenciais da constituição da identidade discursiva da narradora e da
identificação do processo de construção e manutenção do Império Colonial
Português –, ressurgirá, entretanto, no decorrer da narrativa, como uma imagem de
ruptura, de dissolução dessa consciência, a fim de apontar, pelo avesso, para um
caminho traumático de libertação e de autonomização, tanto no plano individual,
quanto no plano histórico-social, configurando novas temporalidades e novos
espaços, novas possibilidades econômicas, políticas, sociais, culturais e identitárias
para a narradora, para Portugal e para África.
Para a narradora, a cena em que sua liberdade e sua autonomia sobre corpo,
prazer e partilha se estabelecem, é a que, em sua memória, remete às relações de
amizade com a personagem Domingas.

A Domingas era mais velha que eu. Tomávamos banho de imersão


juntas. Eu achava-a grande, e bonita, porque já tinha mamas e
pelos púbicos, mas na verdade ela era apenas grande.
A Domingas foi quem me masturbou pela primeira vez. Logo pela
manhã, com a banheira cheia de água morna, estendeu a sua
perna entre as minhas, e procurou, com o pé, a entrada da minha
vulva, que esfregou devagar, fitando-me trocista e rindo-se. Sabia-
a toda. E eu fitei-a, e ri-me, e deixei-me ficar a olhar para ela, rindo
e gozando, igualmente. [...]
Quanto a nós duas, a guerra roubou-nos o prazer. Rouba sempre
(pp. 94-96).

A realização do prazer, nesta cena, de modo efetivo, aponta para uma real
consciência sobre o próprio corpo, um corpo miúdo e alternativo – africano ou
português –, mas nem por isso menos afeito e menos propício ao prazer e à

123
aceitação de seus próprios contornos e limites, nem por isso menos afeito e propício
ao prazer e à partilha com outro corpo, seu igual.
A despeito de constituir um momento de amadurecimento da narradora, a
cena, todavia, pelo avesso, remete também a um trauma, por conta das mazelas
históricas. É exatamente nesse momento em que o corpo, o prazer e a partilha se
realizam para a narradora entre seres iguais – figurada na relação homoafetiva com
Domingas –, que a relação subjetiva e a relação entre Portugal e Moçambique se
arruínam, à mercê da história, à mercê da inserção do corpo individual, da
subjetividade e do intimismo em um mundo de corpo coletivo, mundo da objetividade
e da materialidade da história da colonização e da descolonização, recalcitrante em
suas bases econômicas, políticas, sociais e culturais capitalistas.
É nesse sentido que a posse do corpo, do prazer e do poder do prazer do
corpo se instauravam para a narradora, a partir dessa relação – afetiva, mas efetiva
– entre seu corpo e outro corpo sendo seu igual – o corpo da narradora e o corpo
de Domingas, que essa realização precisava ser interrompida, ainda enquanto se
conformava, já que, mais amplamente, poderia simbolizar uma espécie de solução
e de acomodação das relações entre colonos e colonizados.
As circunstâncias econômicas, políticas e sociais da Descolonização e da
Guerra Colonial em África transcendiam, portanto, e engolfaram o corpo, o prazer e
a partilha estabelecendo, naquele momento histórico, relações de ruptura, de
fratura, de dissolução que castravam aquela situação de acomodação histórica das
relações. Para marcar tal ruptura, delineia-se no imaginário da narradora, a
imposição de sua mudança (fuga!) para Portugal, no bojo da vontade do pai
português e no bojo das transformações históricas, de que a cena se constitui – o
Marcelismo, o 25 de Abril, a FRELIMO, a Guerra Colonial, Os Tribunais
Revolucionários, a crise das relações entre colonos e colonizados, o fim do
colonialismo, a situação dos retornados a Portugal etc...
É efetivamente a fuga da narradora de Moçambique para Portugal,
separando-se, assim, de Domingas, que identifica esse processo de ruptura, de
fragmentação do corpo, que tanto pode remeter, estritamente, à subjetividade da
narradora e ao rompimento de sua relação afetiva com Domingas, quanto, lato

124
sensu, pode remeter à objetividade do processo histórico e ao rompimento da
relação de Portugal com Moçambique, no corpo do esfacelamento do Império
Colonial.

Era África, inflamante África, sensual e livre. Sentia-se crescer por


debaixo dos pés. Era vermelha. Cheirava a terra molhada, a terra
mexida, a terra queimada, e cheirava sempre. [...].
Também nos meus sonhos os caminhos ainda são de terra
vermelha batida (pp. 33-34).

Nesse momento de ruptura, finalmente, evidencia-se mais claramente que o


esforço discursivo da narradora por ressignificar o percurso de construção de sua
consciência sobre o corpo e sobre o sexo – sobre o prazer-poder, sobre o poder-
prazer e sobre a castração – parece construir, de fato, uma memória esfacelada,
composta também por incompletudes e indefinições, por restos, por fragmentos de
vivências e de história, povoada por fantasmas portugueses e africanos, todos,
entretanto, orquestrados pelos restos discursivos da relação da narradora com o
pai; o pai como memória em Portugal, o pai como contramemória em África, ou vive-
versa, já que ele é o espelho português africanizado ou africano aportuguesado, em
que, ela, a narradora, em trapos discursivos, paradoxalmente, se espelha, como
uma portuguesa-africana ou uma africana portuguesa, procurando se identificar no
mundo pós-colonial.
A propósito desta situação de desterro e de crise de pertencimento vividos
pela narradora e pelo português – aquele que perdeu a África e perdeu também,
portanto, o corpo de Portugal – e já não nos referimos, portanto, somente ao
português retornado, mas a todo luso que se aventurou, ainda que de modo
imaginário, pela aventura do Quinto Império, um dia – salienta, por fim, a narradora
do CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS, a partir da reflexão e relato sobre sua
própria tragédia, entrelaçando a sua história íntima – a sua subjetividade – à história
objetiva e coletiva de Portugal:

125
A minha terra nunca veio, depois disso, a ser um metro de chão
preciso – um talhão do qual se pudesse dizer “pertenço aqui”. Ou,
“veem aquela janela do 4º andar, foi ali”, “onde está agora aquele
prédio, a minha mãe...”.
A minha terra havia de ser qualquer coisa de cultura e memória,
um não pertencer a nada nem a ninguém por muito tempo, e ao
mesmo tempo poder ser tudo, e de todos, se me quisessem, para
que merecesse ser amada; quanto custava o amor? (p. 87).

Os desterrados, como eu, são pessoas que não puderam


regressar ao local onde nasceram, que com ele cortaram os
vínculos legais, não os afetivos. São indesejados nas terras onde
nasceram, porque a sua presença traz más recordações.
Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono. Haveria sobre
mim essa mácula. A mais provável retaliação. Mas a terra onde
nasci existe em mim como uma mácula impossível de apagar.
Persigo oficiais marinheiros que trazem escrita, na manga do
casaco, a palavra Moçambique! (p. 133).

O corpo do pai e os discursos do pai, os restos discursivos do pai, presentes,


assim, na memória, e os restos mortais do pai, presentes no Cemitério do Feijó, bem
como a perda do corpo de Domingas e o vazio que se instaurou em lugar de tudo,
dão, desse modo, o tom do sentimento de desterro e, nesse sentido, da indefinição,
do estado de trânsito, de interstício, que marca a identidade da narradora e dos
portugueses. Como portuguesa, a narradora se vê como africana; como africana, a
narradora se vê como portuguesa, ou seja, uma identidade em trânsito, entre as
naus do passado e do presente, sejam lá quais forem os sentidos e os cais que
demandam essas embarcações imaginárias.
No entanto, por um esforço de superação, como mulher forte, tal qual Helen
Keller, a narradora se impõe ao tempo-espaço contemporâneos, livre e capaz, para
experimentar seu discurso estético cambiante e fraturado, inventando um universo
de pertencimento fragmentário e oscilante, em que os restos de espaços, restos de
temporalidades, restos de discursos, restos de traumas, restos de memória se
mesclam para compor uma imagem estética de seu tempo presente, mas, ao

126
mesmo tempo, uma imagem estética de um presente para os portugueses, um lugar
discursivo, de onde se possa olhar para o passado e ressignificá-lo, como memorial,
que possibilite um espaço-tempo de pertencimento futuro para o português e para
a mulher que fazem das impossibilidades e limitações históricas, um inusitado e
simbólico império ultramarino para se tornarem reais.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Maria Paulo Nascimento e SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. História,
Memória e Esquecimento: Implicações Políticas. In: Revista Crítica de Ciências
Sociais, v. 79, dezembro de 2007, pp. 95-111.
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Memória Cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Unicamp, 2011.
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127
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Guerra Colonial. Porto: Afrontamento, 2007, pp. 13-33.
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VECCHI, Roberto e RIBEIRO, Margarida Calafate. A Memória Poética Colonial de
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SEDLMAYER, Sabrina e GINZBURG, Jaime. Walter Benjamin: Rastro, Aura e
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128
A AVALIAÇÃO SOCIAL EM DOIS MOMENTOS DA TEORIA
SOCIOLINGUÍSTICA: ABORDAGENS POSSÍVEIS
Clarisse Barbosa dos Santos33

INTRODUÇÃO
O ponto de partida desta análise é o interesse particular que o conhecimento
das especificidades da Sociolinguística apresenta para um profissional da área de
Letras, docente de línguas estrangeiras. O trabalho docente nessa área tem
fundamentos teóricos na disciplina Sociolinguística, que remete, já desde o senso
comum, ao papel da língua no contexto social.
Pensamos que desde as primeiras publicações conhecidas sobre variação
linguística estavam explícitos os pressupostos, conceitos, critérios e demais
instrumentais teórico- metodológicos que, atualmente, constituem o instrumental
teórico-prático minimante necessário para uma abordagem profissional dessa
disciplina. Esse referencial permite traçar uma trajetória que pode ser
compreendida em suas especificidades e foi com esse objetivo que realizamos a
leitura atenta de dois capítulos de obras publicadas com quase três décadas de
diferença. Referimo-nos a Trudgill (1974) e a Chambers, Trudgill e Schiling-Estes
(2002), com o interesse de observar, qualitativamente, como o instrumental teórico-
metodológico da variação linguística foi abordado nos dois momentos em que o
mesmo assunto, a variação linguística, foi tratado por esses pesquisadores que
constituem referência nessa área. Esperamos contrastar esses dois momentos,
procurando pensar se o aspecto conceitual, apresentado no primeiro texto se
mantém, modifica ou acrescenta itens no segundo, em que a Sociolinguística já se
encontra estabelecida como ciência linguístico-social e, dentro dela, os estudos
sobre a variação linguística.
Essa análise está, assim, organizada em cinco seções. A esta primeira,
introdutória, com objetivos, metodologia e pressupostos, seguem-se outras quatro.
Na segunda, trataremos da primeira publicação de Trudgill (1974), momento em
que se apresentava o estudo da Sociolinguística como um campo autônomo e não

33
Doutoranda em Estudos Linguísticos pela FALE-UFMG – E-mail: clarisse@juramentada.net.br

129
mais especificamente ligado aos estudos da Linguística. Buscaremos descrever
como eram delimitados, naquele momento, o objeto, os conceitos e pressupostos
da variação linguística em sua inserção em contextos sociais. Na terceira seção,
continuaremos com essa reflexão, tratando então da publicação de 2002
(CHAMBERS; TRUDGILL; SCHILLING-ESTES), momento em que o instrumental
teórico abordado no texto de 1974 já se encontra difundido por inúmeras pesquisas,
em vários países. Na quinta seção, faremos um estudo comparativo, em que
procuraremos confrontar os dois capítulos, em seus quase trinta anos de separação,
para compreender se o quadro teórico-metodológico dos estudos da variação
linguística se manteve ou se modificou e de que maneira esse estado da arte pode
ser constatado, a partir do contraste analítico dos modos de dizer um mesmo
assunto, em dois momentos diferentes.

Sociolinguística – uma ciência incipiente


A publicação de Sociolinguistic (TRUDGILL, 1974) nos remete aos anos
iniciais desse campo de estudos, com alguns autores que são lembrados como os
pioneiros de pesquisas nessa área. Referimo-nos aqui somente a um dos nomes,
Labov (1972), associado com o fato inovador, para a época, de se assumir a língua
enquanto interação social. O objeto de estudo da Sociolinguística – a variedade –
passava a ser pesquisado com métodos específicos, tais como o registro, a análise
e a descrição sistemática de diferentes falares, enfocando a variedade linguística.34
É importante lembrar que a abordagem da variedade linguística passava também a
ser feita a partir de dois pontos de vista: o diacrônico (muito comum na linguística
histórica) e o sincrônico, que, por sua vez, permitiu enfocar o objeto de estudo sob
um ou mais dos pontos de vista: geográfico (diatópico), social (diastrático) e
estilístico (contextual ou diafásico). Cada um desses três pontos de vista demandou,
metodologicamente, elementos conceituais que instrumentalizaram o fazer da
Sociolinguística e que hoje soam familiares por terem adquirido um uso estendido
nas pesquisas sobre variação linguística.

34
E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia, disponível em:
http://www.edtl.com.pt/?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=294&Itemid=2. Acesso: 18/10/2013

130
O domínio conceitual e o uso, com propriedade, desses termos é o que
vamos buscar, a partir desse ponto, no primeiro dos capítulos que são nosso objeto
de análise. Apesar de ter sido publicado em 1974, acreditamos que já nesse
capítulo, que introduz o estudo da Sociolinguística, vamos encontrar informações
claras e explícitas sobre elementos chave para compreender essa disciplina e seu
campo de atuação, a saber: hipóteses, postulados, objetivos, construtos e critérios,
todos usados para definir em que consiste esse campo de estudos e seu
instrumental teórico-metodológico.
A partir desse ponto, vamos focar nossos comentários na configuração do
capítulo 1 de Trudgill (1974). O estilo utilizado pelo autor parece ser, em princípio, o
de um artigo de opinião, pois tem marcas explícitas de texto argumentativo-
descritivo e se inicia com a narração de um fato corriqueiro de determinada cultura
– falantes de inglês que se encontram num trem e iniciam uma conversa sobre o
tempo. Esse cenário se transforma no mote para introduzir o objetivo do capítulo,
que apesar de não ser mencionado nesses termos, é o desencadeador das
implicações sociais da conversa no trem: “Probably the most important thing about
the conversation between our two English people is not the words they are using,
but the fact that they are talking at all” (ibidem, p. 1). Em nossa interpretação, o fato
de descrever uma conversa num trem abre caminho para o objetivo principal de
explicitar duas importantes funções sociais da linguagem no dia a dia de
determinada cultura: estabelecer e manter relacionamentos e fornecer informações
aos interlocutores sobre eles mesmos. Trudgill (1974) se posiciona como
autoridade, bom conhecedor do assunto, ao retomar a visão do senso comum sobre
alguns conceitos específicos, como dialeto e sotaque (ibidem); na sequência,
aproveita para introduzir sua visão do conceito de dialeto, assim como critérios que
permitem delimitá-lo conceitualmente e desfazer a confusão entre dialeto e língua
(ibidem); junto a esses conceitos, Trudgill (ibidem) vai apresentando determinados
postulados da Sociolinguística, sempre com o cuidado de contextualizá-los a partir
de fatos ocorridos em comunidades específicas ou estudos de caso realizados por
linguistas interessados na área da variação. A organização discursiva desse
capítulo, que se inicia de modo semelhante a um artigo de opinião e depois vai

131
apresentando todo um instrumental teórico, nos chamou a atenção. Pensamos,
neste momento, que talvez esse fato se deva a dois motivos: de um lado, porque a
Sociolinguística estava em seus anos iniciais; de outro lado e como consequência
direta, o pequeno número de pesquisas dessa natureza. Há ainda um terceiro
motivo que nos parece bastante razoável: o de que no capítulo introdutório o objetivo
principal fosse traçar um panorama amplo do assunto.
A modo de resumo, faremos agora uma amostragem descritiva de pelo
menos um exemplo de cada de hipóteses, postulados, critérios e conceitos
encontrados nesse capítulo em questão, agrupados tematicamente. Nosso
interesse está no estabelecimento de avaliações e julgamentos de valor, que
incidem diretamente sobre o reconhecimento e aceitação de determinada variante
no conjunto de sistemas lingüísticos de uma sociedade qualquer. Ao final desse
levantamento, faremos algumas observações a respeito do modo como essa parte
conceitual foi apresentada.

Pág. Tipo Descrição


5 Postulado “[...] we shall be employing variety as a neutral term to aplly to
any ‘kind of language’…”
[…] empregaremos variedade como um termo neutro, para
aplicar a qualquer tipo de linguagem…”
5 Critérios “Standar English is that variety of English which is usually used
in print, and which is normally taught in scholls and to no-native
speakers learning the language”.
“O ingles estândar é aquela variante do inglês que é
geralmente usada na imprensa, que normalmente se ensina
nas escolas e que é ensinada aos estrangeiros que estudam a
língua”.
8 Postulado “[...] all languages, and correspondingly all dialects, are equally
‘good’ as linguistic systems.”
“[…] todas as linguagens e em correspondência todos os
dialetos são igualmente ‘bons’ como sistemas lingüísticos.”
8 Hipótese “Judgements concerning the correctness and purity of linguistic
varieties are social rather than linguistic.”
“Julgamentos de valor sobre pureza e correção das formas
linguísticas são mais sociais que lingüísticos”.
20 Conceito “[...]‘idiolect’–the speech of one person at one time in one style
-”
“[...]‘idioleto’–a fala de uma pessoa num momento, em um
estilo - ”
Obs.: Todas as traduções são nossas.

132
O primeiro aspecto, segundo o quadro anterior, é relativo ao uso do conceito
de “variedade” como um termo neutro, que se choca com uma visão construída
acerca de modalidades (ou variedades) que seriam melhores que outras. Falamos
em especial da variedade padrão, contrapondo-a a outras que são vistas como
típicas de coletividades menos prestigiadas econômica e socialmente. A asserção
de Trudgill (1974) nos leva, por inferência, aos rótulos de desvios da norma,
remetendo a uma postura segundo a qual a variedade estândar consiste em um
modelo a ser seguido, visão que o autor combate ao definir o termo variedade por
sua neutralidade intrínseca. O segundo item do quadro, ao descrever a
institucionalização da variante estândar, no caso do inglês, leva-nos diretamente
aos critérios – puramente sociais – que permitem estabelecer uma variante como
um padrão. Nesse ponto, estão implícitas as relações de poder que dão visibilidade
a essa mesma variante e que respondem a fatores externos ao aspecto linguístico.
No terceiro item do quadro, o autor reforça sua hipótese de que as relações entre
língua e sociedade são determinantes no estabelecimento e uso dos sistemas
linguísticos, ao afirmar que tanto línguas como dialetos são igualmente bons para
cumprir as duas primordiais funções sociais da linguagem no quotidiano. Essa
hipótese está intimamente relacionada com o item seguinte do quadro anterior, em
que se reforça que são os fatores externos que interferem primordialmente nos
julgamentos de valor imbuídos a determinados traços. No último item do quadro, ao
definir idioleto, leva-se o leitor principiante a inferir alguns conhecimentos básicos
do conceito: que a fala (o vernáculo) em determinado momento mantém traços que
a distinguem, pelo uso recorrente desses mesmos traços em outros contextos.
Retomamos nesse ponto a configuração discursiva do autor para abordar o
tema que nos interessa nesse estudo contrastivo: a questão da avaliação social da
linguagem. A hipótese de Trudgill (ib.), segundo a qual os julgamentos de valor são
fatores externos à linguagem, fundamenta-se no princípio de que todas as
variedades são igualmente boas como sistemas linguísticos para as comunidades
que as compartilham e de que variedade é em si um termo neutro; essa é a base
argumentativa para apresentar os critérios – puramente sociais - usados no caso do
inglês, para elevar uma modalidade ao status de padrão, em detrimento de outras,

133
que seriam estigmatizadas; ao mesmo tempo, essa argumentação apresenta um
conceito importante para compreender o funcionamento da variedade linguística: o
de idioleto. O que nos chamou a atenção nessa organização discursiva foi a
configuração de uma espécie de rede de argumentos, em que numa prosa
semelhante à de artigos de opinião, o autor construiu um pensamento teórico sobre
uma área de estudos incipiente, a Sociolinguística.

A metodologia científica nas pesquisas sobre variação: a avaliação


difundida no senso comum

Passamos, neste momento, a refletir sobre o segundo capítulo, outro texto


fundador da pesquisa em variação linguística, voltado explicitamente para a
epistemologia dessa área das ciências humanas. O capítulo objeto da análise nesta
terceira seção está assinado por Chambers (2002) que divide com Trudgill e
Schilling-Estes (ib.) o livro como um todo. Nessa segunda parte da análise,
procuraremos observar, também, como foi o tratamento dado ao aspecto da
avaliação sobre a variedade, tentando identificar hipóteses, princípios, critérios e
conceitos utilizados pelo autor com relação a esse aspecto da teoria.
O primeiro fator que nos chama a atenção é a proposta do capítulo, que se
inicia pela seguinte configuração: premissa, estado da arte e objetivos/distribuição
dos temas no capítulo, nos dois primeiros parágrafos da página 4 (ib.). A premissa
é que a Sociolinguística é o estudo dos usos sociais da linguagem; a ela se segue
a apresentação da natureza das últimas quatro décadas de pesquisa
sociolinguística, e o autor chama a atenção do leitor para os instrumentos de
pesquisa utilizados e para o fato de que os estudos mais produtivos foram os
relacionados à avaliação social da variantes linguísticas. Em seguida, ele continua
pela descrição sucinta da orientação metodológica presente na evolução dos
estudos de variação, que primou pela observação da linguagem em cenários sociais
naturais (ou seja, em contextos específicos de uso) e pela classificação das
variantes linguísticas de acordo com sua distribuição social. O assunto que nos
interessa é o primeiro dos objetivos, correspondendo assim à seção que inaugura o

134
capítulo, já que nela será mostrado que a avaliação social de variantes
linguisticamente equivalentes pertence à experiência comum de todos.
Esse objetivo, apresentado sob a forma de outra premissa, constitui para nós
também a hipótese de Chambers (ib.) a respeito da avaliação social: a de ser uma
experiência comum a todos os falantes. Na primeira seção do capítulo, o autor se
ocupa especificamente de explicitar outra premissa: “variantes que concorrem no
dia a dia são linguisticamente insignificantes, mas socialmente significantes” (ib., p.
3)35; a ela seguem-se dois exemplos em que duas formas do inglês, que
apresentam semelhança morfológica e identidade sintática concorrem,
apresentando no entanto significação sociolinguística, ou seja, identificam os
falantes como pertencentes a determinada classe social com um grau de
escolarização específico, entre baixo ou alto. Esse é um critério para identificar as
variáveis sociais (ou fatores externos) que incidem sobre duas formas concorrentes.
A esse critério relaciona-se, na argumentação, outro princípio: o de que as formas”
variantes são mantidas não por seu conteúdo linguístico, mas pela sua função
social” (ib. p. 4)36, o que remete diretamente à forma como a avaliação é feita, ou
seja, segundo o uso social da linguagem, já que avaliações do tipo que o autor
descreve nessa seção são feitas sem considerar o conteúdo lingüístico dos
enunciados. As instâncias responsáveis pela continuidade da avaliação linguística
através dos estratos sociais também são mencionadas: professores, pais, editores
e demais figuras vinculadas às autoridades. O autor ressalta ainda o fato de que
todas as sociedades desenvolvidas parecem tolerar julgamentos de performance
linguística e atribuem esses julgamentos a determinadas instituições, como escolas,
órgãos governamentais e sociedades profissionais. O tratamento dado ao tema da
avaliação, por esse autor, é bastante elucidativo sobre a trajetória histórico-
epistemológica da Sociolinguística. É possível observar que o contexto teórico
metodológico está definido com mais clareza, há ainda a menção de trabalhos de
pesquisa e a configuração discursiva é bastante apropriada a um texto acadêmico-

35
“[...] the variants that occur in everyday speech are linguistically insignificant but socially significant.”
36
“[...] variants […] are sustained not for their linguistic content but for their social function.”

135
científico, considerando que esse segundo capítulo é também o primeiro de um livro.
E agora, podemos passar à quarta seção, em que vamos contrastar o modo como
os dois capítulos, com quase trinta anos de distância, trataram do tema da avaliação
social das variantes.
A avaliação sob duas concepções metodológicas

Esta parte dessas reflexões tem como ponto de partida a finalidade proposta
para a leitura dos dois capítulos que constituem nosso objeto de estudo: a de
oferecer aos estudiosos iniciantes na pesquisa sobre variação linguística
informações sobre o histórico, o objeto, os conceitos e os pressupostos dessa área
de conhecimento. Nossa abordagem aqui será diacrônica, por ser a mais adequada
para pensar como o histórico da Sociolinguística pode ser delimitado,
qualitativamente, usando um dos princípios que norteiam a pesquisa nessa área: o
de que a maneira como um discurso é articulado diz muito acerca não só do falante,
mas da argumentação em si mesma. Em nosso caso, escolhemos refletir sobre a
maneira como os dois capítulos foram redigidos, lembrando que estão
intrinsecamente vinculadas a seus contextos de produção (histórico, geográfico e
social).
O capítulo escrito por Trudgill (1974), como já dissemos na seção dois, foi
escrito de forma semelhante à do gênero artigo de opinião jornalístico. Com relação
a esse formato, o autor se aproxima e se distancia em determinados aspectos. A
proximidade está em utilizar referências explícitas a opiniões, que em seu texto
assumem a forma de constatações do senso comum, que se transformam em
pretextos para introduzir aspectos do estudo da variação linguística utilizando-se da
epistemologia das ciências da linguagem e sociais. Essa abordagem tem uma
finalidade clara: estabelecer o lugar da disciplina da variação linguística como uma
ciência do conhecimento, com suas propriedades, metodologia e instrumental
teórico-prático. Ao se distanciar, o autor continua marcando o lugar da disciplina,
ao se apropriar de resultados de pesquisas feitas principalmente pela linguística,
uma ciência já estabelecida, e mostrando como esses resultados e demais aspectos

136
de um conhecimento gerado pelo viés estritamente linguístico podem ser
reinterpretados à luz do aspecto social da linguagem.
No segundo capítulo, o de Chambers (2002), essa preocupação por marcar
o território já não se nota. As quase três décadas que separam as duas publicações
são bem significativas sobre a trajetória e crescimento desse campo de estudos e
se notam também na configuração discursiva. Esse capítulo, dedicado à
epistemologia informal - o inventário de algumas das possibilidades para o estudo
da variação na linguagem, está, assim, organizado metodologicamente em cinco
seções, cada uma com informações claras e visíveis sobre os pressupostos que
são, para esse autor, indicadores que nortearam as últimas quatro décadas (em
relação à 2002) de pesquisa variacionista. Pareceu-nos interessante o
posicionamento do estudioso, pois o que que assume como um postulado – “A
base social da variação lingüístic”a (CHAMBERS, 2002, p. 3)37 – o primeiro autor
colocava como uma hipótese – “o fato de haver uma relação estreita entre
linguagem e sociedade” (TRUDGILL, 1974, p. 2)38.
Com relação ao assunto que orientou nossa leitura contrastiva dos dois
autores, ou seja, a avaliação social da linguagem, pode-se notar uma diferença
teórico metodológica na abordagem desse aspecto entre os dois autores.
Retomamos aqui o que já dissemos na seção dois, com relação a Trudgill (1974):
esse autor explica a questão da avaliação pelo recurso ao critério dos julgamentos
de valor atribuídos a uma variante ou a seus traços pela sociedade, para estabelecer
o que seria padrão ou estigmatizado. Já o segundo, Chambers (2002), utiliza o
conceito de Competência Comunicativa (ib. p. 8) para introduzir outro conceito, que
lhe permite demonstrar como essa habilidade se incorpora ao dia a dia dos falantes,
o de Competência Comunicativa na Performance (ib. p. 11).

37
“1 – The Social Basis for Linguistic Variation”
38
“[...] the fact that there is a close interrelationship between language and society.”

137
Considerações finais

Nosso estudo se iniciou com a busca de quais seriam os pressupostos,


conceitos, critérios e demais instrumentais teórico- metodológicos adequados para
a pesquisa da variação linguística. No primeiro texto, o de 1974, essa disciplina
estava ainda em relação estreita com os estudos da linguística, mas já mostrava um
interesse explícito em estabelecer o que lhe era distintivo: inserir os estudos da
linguagem não como um objeto autônomo, e sim como integrado aos contextos de
uso, por falantes específicos. Naquele momento, em que se estabeleciam as
hipóteses, pressupostos e conceitos norteadores da pesquisa variacionista, alguns
dos dados utilizados por Trudgill (1974) eram tomados de empréstimo das
pesquisas da Linguística.
Esse quadro mudou significativamente no capítulo de Chambers (2002), pois
a Sociolinguística Variacionista já se encontrava estabelecida como disciplina
científica para o estudo das linguagens, fato que se mostrou na configuração
discursiva desse capítulo. O objeto que buscávamos, o instrumental teórico
metodológico, estava melhor delimitado e foi possível observar que uma das
hipóteses do capítulo de 1974 em 2002 assumiu a formulação de pressuposto.
pesquisas que foram efetuadas.
O tratamento dado nos dois capítulos ao aspecto da avaliação social das
variantes também mudou. No primeiro texto, foi preciso identificar, selecionar e fazer
associações entre hipóteses, pressupostos, critérios e conceitos para chegar a uma
interpretação daquele conceito para esse o autor (TRUDGILL, 1974). Já no segundo
capítulo, (CHAMBERS, 2002), a avaliação social deixa de ser um conceito e assume
o papel de pressuposto para a pesquisa variacionista.

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CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Sociolinguística.


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Acesso: 17/10/2013.

138
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Dicionário de Termos Linguísticos.


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omain&val=Sociolingu%C3%ADstica>

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TILIO, Rogerio. Revisitando a Análise Crítica do Discurso: um instrumental teórico-


metodológico. In: e-escrita Revista do Curso de Letras da Uniabeu. V.1, No. 2, 2010.
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TRUDGILL, Peter. Sociolinguistic: an introduction to language and society. Great


Britain: Penguin Books, 1974.

139
A IDENTIDADE CULTURAL LATINA EM MANUAL DE LÍNGUA LATINA E
LÍNGUA PORTUGUESA ANTES E DEPOIS DO ACORDO MEC-USAID

Clemilton Pereira dos Santos 39


Introdução

O presente trabalho compõe-se de um recorte das discussões referentes à


pesquisa de doutoramento em Letras que se encontra em fase inicial de
desenvolvimento pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie o qual visa desenvolver reflexão acerca da identidade
cultural latina veiculada em material didático de língua portuguesa em dois
períodos: anterior aos acordos MEC/USAID assinado pelo governo brasileiro e a
Agency for International Development (AID) em 1965, num contraponto com material
didático intitulado Texto e Contexto, de Lídio Tesoto e Norma Discini, publicado
pela editora do Brasil na década de 80, apogeu da globalização, com intuito de
verificar que aspectos culturais permeavam os manuais de ensino e de que forma
contribuíram para construção do imaginário cultural latino adotados para o ensino
de língua portuguesa.

Sabemos que, pela linguagem, o ser humano cria significados,


representações e mediante jogos sociais “lança-se no esquecimento” de suas
individualidades a fim de não ser considerado louco pelos membros de uma
sociedade na qual ele quer e precisa estar inserido. Segundo Bauman ( 2008) a
receita para viver em sociedade é concordar, compartilhar com os acordos, cujos
costumes que outrora eram considerados loucura deixam de ser assim
considerados, a partir do momento em que são reiterados pela sociedade civil –
grande aparelho que certifica, aceita e compartilha acordos francos e tácitos de
respeitar o que é compartilhado, que tem o poder de dignificar ações e classificar o
sujeito enquanto alguém pertencente a determinado grupo social.
Ao abordar a composição do imaginário partilhado em tempos de
modernidade, Hall (2005) tece considerações em torno da formação da identidade

39 PG-UPM

140
nacional considerada a somatória de valores culturais resultantes da vivência em
comum.
Conforme Fiorin (2010), o imaginário cultural de uma pessoa é “Uma história
que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos, uma série de
heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua; um folclore” [...] mas que vive
pela adesão coletiva” ( FIORIN, 2010, p. 16). O que somos hoje, nossa identidade
compõe-se de tudo aquilo que temos armazenado em nossos itinerários históricos”,
de um tempo e de um espaço, de nossas ações trilhadas e a trilhar, de forma
dinâmica e interativa, ou seja, daquilo que Hall menciona ser o cruzamento entre o
root, nossas raízes e os caminhos os quais percorreremos ou pretendemos
percorrer no futuro, route:

Identities are about questions of using the resources of history,


language and culture in the process of becoming rather then being: not
‘who we are’ or ‘where we came from’, so much as what we might
become, how we have been represented and how that bears on how
we might represent ourselves. They relate to the invention of the
tradition as much as to the tradition itself, which they oblige as to read
not as an endless reiteration but as ‘the changing same’: not the so-
called return to the roots but a coming to terms with our routes (HALL,
1996: 4).

Além das raízes, dos caminhos, da tradição e das opções que fazemos, Hall
(1996) destaca a importância do contexto político, nos jogos de poder mediante
linguagem, já que a linguagem constitui o sujeito e este sujeito é representado
mediante a linguagem nos momentos de interação.

Segundo Becker apud Bauman (2008), a sociedade é um mito vivo do


significado da vida humana, que modifica culturas, hábitos e os considera
adequados ou não, numa desafiadora criação de verdades, de loucuras que
embora sejam perseguidas incansavelmente nunca nos satisfazem, numa alusão
a filosofia de shopenhauer tendo em vista que sempre vivemos na ânsia por realizar
algo que nos traga o sentimento de completude, o qual nunca será alcançado,
principalmente quando o assunto se desenvolve em tempos de globalização cujas
consequências são a desintegração das identidades nacionais.

141
A história de imperialismo e colonialismo de outrora se repete e estamos por
tabela no jogo, não mais apenas do colonialismo, da posse material de bens,
propriedades, mas da “colonialidade do saber e do ser” que nos ocasiona lacunas.
Um sujeitar-se aos moldes capitalistas tornando-nos, ao mesmo tempo, um
mercado consumidor e produtor de mão de obra barata que a cada dia mais
favorece as grandes potências.

A importância do Latim, suas influências e os ranços materializados nos mais


diversos discursos relativos à negação de sua função na interface Latim/Português,
no viés dos Estudos Culturais, passa pelo histórico de colonialismo, o qual
aparentemente sendo antigo, revisita-nos frente às denominações de modernidade
e colonialidade.

Faces da mesma moeda, a modernidade corresponde a uma estratégia, um


simulacro de heróis e de caminhos a serem seguidos adotados pelo colonizador
para com o colonizado e a colonialidade uma “estrutura lógica de domínio” (cf.
MIGNOLO, 2005) uma estratégia imprescindível para os ideais da modernidade.

Nas palavras de Giddens (1991) o capitalismo modela a modernidade,


submetendo muitos seres humanos a um labor maçante e a legislações que geram
ilusão de vantagens quando implicitamente resiste à concessão de melhorias
trabalhistas a serem ofertadas aos trabalhadores para, em contrapartida, conceder
privilégios a uma pequena elite que deve ser mantida a fim de que os produtos
possam ser consumidos o mais próximo possível da indústria com intuito de não
agregar grandes custos à produção.

Segundo Mignolo, a modernidade é um conjunto de valores impostos, um


estilo de vida, a princípio imperialista e europeu, tendo em vista terem sido a
Inglaterra e a Espanha expoentes do colonialismo e posteriormente os Estados
Unidos que “ funciono como modelo del progresso de la humanidad” (2005, p. 32).

Por intermédio deste estudo propomos defender a ideia de que a passagem


de nossa origem latinoeuropeia para latinoamericana tendo em vista os processos
de colonialismo e posteriormente colonialidade/ modernidade determina nossa

142
identidade cultural a qual se configura hoje mais americana que latina em relação
aos costumes e ao conhecimento acerca das raízes culturais tão imprescindíveis à
nossa formação humanitária e cidadã em tempos de identidade globalizada.

Estamos imersos e submissos a um “modelo” de ser e de saber


euroamericano partilhado coletivamente e considerado perfeito e ideal que nos
classificou/classifica e nos enquadrou/enquadra enquanto seres com história ou não
a partir desse “modelo imaginário partilhado”. Tal estratégia de dominação e
submissão enquanto colônias do ser e do saber gera o que Mignolo chama de
“herida colonial”, pois fomos levados a crer em nossa formação identitária deficiente
“ el sentimento de inferioridad impuesto em los seres humanos que no encajam em
el modelo predeterminado por los relatos euroamericanos.” (MIGNOLO, 2005, p.
17), O que e como se reproduz e se representa mediante o discurso nossa
dependência e nossa negatividade em relação ao ato de pertencer aos países
latino-americanos, ex-colônias europeia e quais consequências tais atitudes podem
causar a nossa formação identitária.

Temos ciência de que cada sociedade recebe traços e características novas,


sem, no entanto, eximir-se de suas tradições, podendo transformá-las e atualizá-las
conforme suas necessidades e usos diários, no entanto, estas atualizações tendem
a nos identificar culturalmente enquanto cidadãos do século XXI mais latinos, ou
mais americanos? Qual imaginário coletivo tem sido cultivado por intermédio dos
livros didáticos adotados nas escolas no período da república velha até os anos 80
do século XX?

Conforme Hall (2005, p.50), a identidade nacional é um conjunto de hábitos,


costumes, significados que constroem nosso sistema de identidade, lealdade e de
representação que nos identificam como pertencentes aquela “tribo” e sendo
materializadas por meio do discurso – um modo de construir sentidos que influencia
e organiza tanto nossas ações, quanto a concepção que temos de nós mesmos.
Podemos dizer que nossa identidade cultural está relacionada com o imaginário
coletivo, ou seja, o que somos, nossa identidade se constrói a partir do imaginário
cultural coletivo que pode ser reforçado mediante o discurso.

143
Adotando das palavras de Silva ( 2006) quem tem o poder de representar,
de atribuir sentidos tem o poder de definir e determinar a identidade e a diferença
na sociedade moderna, tendo em vista a performatividade da linguagem, pois
citando Austin (1998) “a linguagem tem a preposição de, ao serem pronunciadas,
fazer com que algo se efetive, se realize” – atos de fala de Austin “sua repetida
enunciação pode acabar produzindo o fato.” Ao nos manifestarmos estamos
reproduzindo, e, em muitos casos, inconscientemente, contribuindo para reforçar
ideais que nos podem parecer alheios a nossas vontades, cumprindo os anseios da
colonização que enquanto um sistema de dominação caracterizado por processo de
colonialidade seja ele do ser ou do saber.

Este conjunto de normas se materializa por intermédio do Estado e de seus


Aparelhos Ideológicos (igreja, polícia e escola). Conforme menciona Freitag

A escola atua no interesse da estrutura de dominação estatal e, em última


instância, no interesse da dominação de classe. Essa dominação não se
dá por via direta, através da aplicação explícita da violência, mas de
maneira disfarçada, com o consentimento dos indivíduos que sofrem a
violência da ação pedagógica (FREITAG, 1980, p. 35).

Vale salientar o fato de que a escola não atua enquanto único fator de
promoção desta falsa consciência tão necessária às elites para perpetuação da
colonização do ser e do saber, no entanto, cabe-nos destacar alguns momentos da
história da educação cujas ações evidenciam a colonialidade do ser e do saber.
Dentre os mais diversos períodos da história da educação no Brasil,
começamos pela República Velha, tendo em vista a criação da Associação
Brasileira de Educação e estarmos vivenciando um momento de perpetuação de um
ensino seletista, excludente e seguidor dos moldes tayloristas em voga nos
Estados Unidos e na Europa. Segundo Veiga em meio a discussões em torno de
gratuidade, laicidade, obrigatoriedade do estado para com a educação, esbarra-se
no modelo de organização política norteamericana a qual visava reformar a
educação a partir dos moldes tayloristas. Temos neste momento uma educação que

144
se dividia entre aquela oferecida aos que deveriam ser educados para pensar e
serem bem pagos aos quais oportunizava-se um leque de disciplinas da área das
humanas e àquela que se ofertava às massas populares, ou a uma pequena parcela
desta massa que tinha acesso ao sistema educacional, mas que precisavam ser
educados para executar tarefas, sendo mal pagos.
Em tempos de “República dos Estados Unidos do Brasil”, alguns daqueles
que pensavam o sistema educacional brasileiro também impunham os ideais de
colonialidade do ser e do saber mediante higienização e eugenia a fim de “incutir
novos hábitos à sociedade, pois alguns acreditavam que a população mestiça e
pobre causava certa anormalidade social, ou seja, a situação social determinava
uma situação moral degenerada” (VEIGA, 2007, p. 260). Uma das inúmeras
tentativas de moldar o imaginário cultural coletivo dos brasileiros, ao reforçar a
concepção de que a nossa população era degenerada tendo em vista a
miscigenação de raças e culturas.

Essa estrutura de dominação, em exercício, há alguns séculos, faz-nos


pensar as palavras de Mignolo (2012), acerca das invenções construídas por
intermédio dos discursos as quais fomos e estamos submetidos, o que contribui
para o aceitar de algumas concepções a exemplo da caracterização de sujeitos,
latinos de 2ª classe inventada pelos impérios (Espanha, Inglaterra e França) outrora
expoentes imperialistas anteriores a 2ª Guerra Mundial acerca da concepção de
América latina

Segundo Carvalho (2000) apud Costa (2010) na década de 20 a grande


massa populacional que migrava para os grandes centros não compartilhavam do
mesmo código comportamental que regiam o quotidiano na vida urbana, podendo
ocasionar o caos. “Moralizar esses costumes era o núcleo do programa
modernizador acionado nas campanhas cívicas da década de 20”

Com a reforma Francisco Campos e a carta ditatorial de 1937, o sistema


educacional brasileiro tem poucas mudanças. Percebe-se ainda a forte presença do
caráter seletista do modelo de educação norteamericano – taylorismo e a tentativa
do estado de eximir-se do papel de mantenedor financeiro da educação, pois o

145
poder público passou a atuar caso as instituições particulares não atendessem.
Seguindo, ainda, estes pressupostos que podemos caracterizar enquanto
colonialidade, fazemos alusão a Piletti (2012), o qual menciona que o ensino
primário articulava-se com cursos voltados ao artesanato ou aprendizado industrial
e agrícola tendo assim um caráter pré-vocacional às classes menos favorecidas.
Ora o cidadão pertencente a uma família pobre poderia cursar o primário, o
complementar ou até o técnico profissional, mas dificilmente poderia ingressar no
ensino superior, pois possivelmente não atenderia às exigências peculiares à
matrícula.

Em resumo, durante todo o ensino secundário era possível ao estudante


pertencente às classes mais privilegiadas ter acesso a 07 ( sete) anos de latim, 04(
quatro ) anos de História Geral, 03 ( três) de História do Brasil, e um ano de Filosofia
tendo acesso também ao estudo do grego e de línguas neolatinas (espanhol e
francês), ou seja, uma formação humanística ofertada no ensino secundário, porém
tendo em vista os exaustivos exames de admissão e as exigências sociais para
ingresso no colegial impossibilitava o acesso das crianças oriundas das camadas
populares. Aqueles que estivessem em curso profissionalizante os quais eram
considerados cursos de 2ª categoria, tendo enquanto função aumentar a eficiência
e a produtividade, não poderiam dar continuidade a seus estudos ao ingressar no
ensino superior sem antes passar pelo colegial científico ou clássico.

Em 1961, a Lei das Diretrizes e Bases da educação, que estava sendo gerada
desde a constituição de 1948 acena para melhorias educacionais, oportunizando o
acesso dos pobres ao ensino secundário. O número de escolas públicas
secundárias se amplia. A União, os Estados e Municípios “assumem” a
responsabilidade de gerenciar e manter financeiramente o ensino, o qual passa no
ensino médio a incluir o ginasial, colegial, técnico. “Qualquer ramo do 1ºciclo passou
a dar direito à matrícula em qualquer modalidade do 2º ciclo concluído – secundário,
técnico ou normal – passou a permitir o ingresso no ensino superior” ( PILETTI,
2012, p. 194) . Neste período também se tem uma abertura em relação aos
currículos diferenciados tendo em vista as realidades regionais, os contextos de

146
aprendizado. A cultura passa a ser pensada enquanto princípio norteador do
processo de ensino aprendizagem, alfabetização. Momento em que se destaca
Paulo Freire ao revolucionar os métodos de ensino, num país que boa parte da
população ainda se encontrava analfabeta.

Esse momento de euforia que perpassa os governos de J.K, João Goulart,


Jânio Quadros termina com a intervenção militar ocorrida em 1964, o que conforme
Jelvéz (2012, p. 127) “ um dos objetivos do Comando Supremo era desarticular
todas as organizações sociais que pensassem no desenvolvimento das camadas
menos favorecidas interditando o processo de democratização que vinha sendo
ampliado”. Mediante tortura, censura e repressão o governo ditatorial, por meio do
Ministério da Educação procura “reorganizar o sistema educacional brasileiro”
implantando os acordos denominados Acordos MEC- USAID- United States Agency
for International Development - USAID, conhecido por aliança para o progresso
buscando trazer para o Brasil técnicos norte-americanos com o objetivo de
assessorar e treinar professores e agricultores para o exercícios de atividades.
Dentre os diversos acordos que se configuram enquanto estratégias de
colonialidade norteamericana podemos destacar, conforme Romanelli (1989) e
Jelvéz ( 2012)

Acordo Ministério da Agricultura/Contap/Usaid, assinado em 24 de junho


de 1966 com o objetivo de treinar técnicos e professores do ensino médio
brasileiros mediante contratação de técnicos norte-americanos que
ofereceriam treinamento aos brasileiros.

Segundo Jelvéz, (2012) este acordo também previa reformular as faculdades


de filosofia no Brasil, a fim de desfalcar os universitários, semestralizando disciplinas
e instituindo os departamentos a fim de que os acadêmicos não tivessem espaço e
tempo para se envolver em questões políticas. Mediante assinatura destes acordos
temos a retirada dos estudos da língua latina da grade curricular da educação
básica, bem como a redução da carga horária das disciplinas de História, Filosofia
e Sociologia.

147
Quanto aos manuais de ensino ou livros didáticos, muitas vezes, o único
material impresso que o aluno do ensino primário e secundário dispunha ou
atualmente dispõe para o desenvolvimento de suas leituras e consequentemente
para a formação de seu imaginário coletivo, o acordo assinado para fins de
publicação de livros didáticos chama nossa atenção. Conforme Jelvéz o

Acordo Mec/Sindicato Nacional dos Editores de Livros( SNEL)/Usaid com


fins a publicação técnica, científica e educacional de 51 milhões de livros
nas escolas, no prazo de 3 anos a começar por 1967. Os técnicos tinham
todo o controle sobre a produção dos livros – desde os detalhes técnicos
de fabricação, ilustração, editoração, distribuição e orientação quanto a
compra de direitos autorais de editores norte-americanos” (JELVEZ, 2012,
p.130 - 131).

A partir deste acordo celebrado entre os Estados Unidos e o Brasil


questionamos: Que aspectos culturais latinos permearam material didático antes da
ditadura militar no Brasil. Como se formava nosso imaginário cultural latino nos
tempos de educação seletista, oligárquica e burguesa?

Há um bom estudo a ser desenvolvido adiante, no entanto, ousamos deduzir


a partir deste breve percurso de nossa caminhada que os ideais de
dominação/colonização norteamericana visavam reduzir custos e moldar o sistema
educacional brasileiro ao interesse capitalista norte-americano, modelo tecnicista
voltado para a formação imediata de mão de obra para fins específicos, num
momento em que as empresas norte-americanas se instalavam no Brasil e tinham
enquanto uma das exigências para sua permanência em território brasileiro mão de
obra a baixo custo e aumento do consumo de seus produtos por parte de um
pequeno grupo, as elites. Para por em prática tais interesses estrangeiros o governo
congelou salários dos operários e estimulou consumo das classes privilegiadas
exigindo uma “reordenação das formas de controle social e político”.

Hoje somos o reflexo de políticas passadas e nos tornamos profissionais


com pouca ou quase nenhuma formação nas áreas das culturas clássicas, desde
as séries iniciais até o ensino superior tendo em vista a ausência de tais disciplinas

148
nas grades curriculares, pois sua oferta fica condicionada às sugestões dos
documentos oficiais ou às possibilidades de inserção enquanto componente
curricular não constando nos Parâmetros Curriculares Nacionais ( documento que
substitui os currículos mínimos federais) nenhuma menção à língua e cultura greco-
latina.

Formavam-se gerentes e técnicos capazes de aplicar know-how importado e


produzir produtos conforme o modelo pré-estabelecido, tornando-nos soldados dos
senhores da guerra, mas não éramos convidados a participar do planejamento
global de cidadania. Tínhamos inglês e Educação Moral e Cívica, mas não nos era
possível mediante educação escolar o acesso a estudo de valorização da história e
cultura nacional.

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152
GESTÃO DE MARCAS E EXPERIÊNCIA EMOCIONAL - OS SENTIDOS E A
FIDELIZAÇÃO DO CONSUMIDOR

Cleusa Kazue Sakamoto40


Amanda Mendes Zerbinatti41

INTRODUÇÃO

O Branding Sensorial é uma nova área na gestão de marcas que busca


aprimorar a comunicação com o consumidor de modo inovador, com o objetivo de
despertar experiências e fortalecer a identificação de marcas por meio de emoções
associadas a produtos e serviços através dos sentidos. Introduzido recentemente
no mercado brasileiro, possui estudos escassos no âmbito internacional; seu
objetivo é atingir a construção e/ou fortalecimento de marcas com a fidelização dos
consumidores pelo acumulo de experiências positivas por eles vividas, tendo em
vista que muitas vezes o consumo resulta de decisões inconscientes decorrentes
de estímulos sensoriais e cofatores psicológicos, como significados e lembranças.
O presente artigo expõe uma discussão teórica a respeito do Branding
Sensorial, gestão de marcas com foco no estímulo aos cinco sentidos, que faz uso
de estratégias que visam à construção de um vínculo emocional com os
consumidores, com o intuito de proporcionar diferenciação frente à concorrência e
promover a fidelização de marcas.
A origem do Branding Sensorial é apresentada no cenário atual cujas
necessidades de fortalecimento de marcas provocaram seu aparecimento no
mercado, tornando-o uma ferramenta arrojada para uma comunicação eficaz com
os consumidores.
A discussão proposta no artigo se inicia com uma apresentação da estratégia
do Branding Sensorial para em seguida abordar aspectos relevantes dos processos
de percepção e sua influência na comunicação, que podem ser apreciadas de modo
associado à fidelização de marcas; ao final, o artigo traz questionamentos sobre a

40
Professora universitária, pesquisadora, possui Doutorado pela Universidade de São Paulo na área do Desenvolvimento
Humano, é autora de inúmeros artigos científicos e capítulo de livros. Contato: cleusa.sakamoto@geniocriador.com.br
41 Estudante de Publicidade com Trabalho de Conclusão de Curso sobre Branding Sensorial. Contato:

amandamendeszerbinatti@hotmail.com

153
construção de marcas no futuro, fazendo um convite à reflexão sobre peculiaridades
atuais do mercado consumidor e suas tendências.

MARCAS, BRANDING E EXPERIÊNCIA EMOCIONAL

Segundo a American Marketing Association – AMA, conforme mencionam


Keller e Machado (2006, p. 2): “marca é um nome, termo, símbolo, desenho, ou uma
combinação desses elementos que deve identificar os bens ou serviços de um
fornecedor ou grupo de fornecedores e diferenciá-los da concorrência”.
Marca ou seu equivalente “brand (em inglês) deriva do nórdico antigo brandr,
que significa ‘queimar’” (KELLER; MACHADO, 2006, p. 2) relativo à prática dos
proprietários de gado, que para identificarem seus animais, faziam marcas a fogo.
Identificação e diferenciação estão entre as funções que a marca exerce no mercado
atualmente, porém sua atuação é mais abrangente, pois segundo Kotler e Pfoertsch
(2008, p. 25), a marca é uma promessa, “é uma totalidade de percepções” associada
a “um produto, serviço ou negócio”, ou seja, é a “posição diferenciadora na mente
dos consumidores a partir das experiências anteriores, de associação e
experiências futuras”, portanto, “é o conjunto de atributos, benefícios, convicções e
valores que diferenciam, reduzem a complexidade e simplificam o processo
decisório” (KOTLER, PFOERTSCH, 2008, p. 25).
Além de representar um bem, produto ou serviço, a marca também é todo o
conjunto de ações que proporcionam experiências, boas ou ruins, para seus
consumidores, que influenciam diretamente o processo decisório de compra. Em
caso de êxito, as marcas constroem um vínculo emocional de aliança com seu
target, possibilitando a fidelização. Em caso de fracasso na escolha de compra, as
possíveis consequências variam da eliminação de preferência até o adiamento de
uma futura, embora remota, experiência de compra.
Para potencializar os resultados positivos de relacionamento com a marca
surge o branding ou a gestão de marcas, que “nada mais é que uma postura
empresarial, ou uma filosofia de gestão que coloca a marca no centro de todas as
decisões da empresa” (HILLER, 2012, p. 55). Nas palavras de Machado (2006, s.p.)

154
“É o conjunto de atividades que visa otimizar a gestão de marcas de uma
organização como diferencial competitivo”.
A gestão de marcas visa o cuidado na abordagem do relacionamento com o
consumidor, para tornar a marca presente e importante na preferência de compra
valorizando-a para manter seu ciclo de vida. Sua meta maior consiste em alcançar
a fidelização de consumidores que passem a identificá-la em suas características
principais e a julgá-la insubstituível em decorrência do vínculo estabelecido de
satisfação. Uma marca nestas condições atende a uma necessidade de consumo e
goza de um laço afetivo com o consumidor que a torna parte de sua vida cotidiana,
o que traduz a fidelização da marca.
A fidelização de uma marca é definida pelo acúmulo de experiências positivas
vividas pelos consumidores no relacionamento com produtos ou serviços; é
decorrente, portanto, de um processo de experimentações, percepções e
julgamentos, em uma sucessão de experiências satisfatórias propiciadas pelo
produto ou serviço.
As experiências satisfatórias com as marcas constituem um referencial
vivencial que determinam decisões inconscientes pautadas em fatores sensoriais
presentes neste relacionamento que são capazes de despertar memórias ou evocar
sensações agradáveis. Afirma Strunck (2011, p. 90) que “Na verdade, mais de 80%
das decisões que tomamos em nosso dia a dia são determinadas pelo nosso
inconsciente, ou seja, oito em cada dez produtos que compramos são escolhidos
por um processo que podemos chamar de irracional”.
Se de um lado, é fundamental ter em vista que aspectos inconscientes
participam de nossa apreciação e escolha de marcas, também é relevante
considerar que processos perceptivos estão intrinsecamente implicados na escolha
de consumo; sendo assim, é necessário considerar que “o estímulo sensorial não
apenas nos faz agir de maneiras irracionais, como também nos ajuda diferenciar um
produto do outro. Os estímulos sensoriais se incorporam na memória a longo prazo,
eles se tornam parte de nosso processo decisório.” (LINDSTROM, 2012, p.18).
“O fato é que experimentamos praticamente toda a nossa compreensão do
mundo através dos sentidos. São nossa ligação com a memória. Tocam nossas

155
emoções, passadas e presentes” (LINDSTROM, 2012, p. 13). Isto porque o corpo
por meio dos sentidos é um receptor de informações no contato com o meio, é ele
que oferece informações ao nosso entendimento do que se passa por meio dos
sentidos; são os sentidos em todo e qualquer relacionamento com o ambiente que
captam dados e constituem a percepção. Contudo, na medida em que outras
dimensões da experiência se colocam ao lado do físico compondo nosso Eu, é
importante considerar que aspectos relativos a estruturas mentais, a esfera
emocional de nossa subjetividade e os fatores complexos da vida social, participam
da situação de comunicação entre marca e consumidor. Senso assim, os dados
oriundos do ambiente são interpretados de modo próprio a cada pessoa,
transformando a situação sensorial vivida em experiências afetivas, dotadas de
significado intelectual e sociocultural.
O ato de perceber depende da captação de estímulos do ambiente e da
interpretação dada a este conjunto de informações pelo indivíduo, sendo assim,
remete à bagagem acumulada de experiências daquele que percebe, de seu
processo de incorporação de códigos, da assimilação de hábitos e costumes, do
acesso e interpretação de simbolismos culturais.
Perceber implica interagir com fatores que geram reações emocionais e
repercussões afetivas vinculadas aos objetos e eventos percebidos, que são
revestidos de significados segundo a singularidade pessoal e os parâmetros sociais
daquele que percebe e, neste sentido, deflagram os processos comunicacionais.
Situações que envolvem estímulos perceptivos com qualidade afetiva e emocional,
notadamente provocam um processo diferenciado de relacionamento e
interpretação sobre o percebido. A afetividade humana participa da função
discriminatória da percepção do ser humano, pois ela investe de significado a
situação que a desperta.
“Segundo Vigotski (1987), qualquer que seja a forma do pensamento:
representações afetivas, imaginação, fantasia ou o pensamento lógico, ele tem em
sua base uma emoção.” (CAMARGO, 1999, p. 17).
O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto
é, por nossos desejos e necessidade, nossos interesses e
emoções. Por trás de cada pensamento há uma tendência

156
afetivo-volitiva, que traz em si a resposta ao último “por que”
de nossa análise do pensamento. Uma compreensão plena e
verdadeira do pensamento de outrem só é possível quando
entendemos sua base afetivo-volitiva (VIGOTSKI, 1987, p. 129
apud CAMARGO, 1999, p. 18).

Marcas que despertam reações emocionais em seu target estabelecem


naturalmente um vínculo com o público e acionam o início de uma construção da
imagem do produto ou serviço com suas particularidades. O afeto impede a
indiferença, ele dá contornos de identificação e funcionalidade a produtos e
serviços, bem como permite identificar e categorizar os vínculos com eles
estabelecidos.
Gobé (2002) ao debater o conceito de Marca Emocional ressalta que o elo
emocional de produtos e serviços com seus consumidores constitui o modelo de
comunicação eficaz quando valoriza o relacionamento, a imaginação e as
experiências sensoriais geradoras de registro de memória que estimulam a
preferência e a fidelidade.
A gestão de marcas na ótica das relações afetivas entre o consumidor e o
produto ou serviço pode representar ganhos ao conhecimento e desenvolvimento
do processo de valorização do produto ou serviço e uma possível fidelização nas
relações de procura e escolha de consumo.

CENÁRIO MERCADOLÓGICO ATUAL E MARCAS

Impulsionado pelas tecnologias, o mercado está em constante


desenvolvimento, caracterizado pelo excesso de estímulos visuais e auditivos;
mostra-se saturado de informações que frequentemente passam despercebidas e
impactam fortemente a comunicação e o relacionamento entre marca e consumidor.
A propagação da tecnologia, bem como, a popularização da internet
impulsionou o desenvolvimento do perfil dos consumidores, que agora são:
exigentes, informados e participativos, alterando o modelo clássico de comunicação;
sendo assim, o

157
receptor não é mais um mero receptor, pois ele não só reduziu
sua capacidade de recepção como também se transformou em
um emissor com as mesmas prerrogativas de emissor
clássico. Com a avassaladora revolução tecnológica, que
presenciamos hoje, o nosso antigo receptor agora produz
informação, gera conteúdo e planeja mensagens, canais,
frequência, buzz. (HILLER, 2012, p. 25)

Diante deste cenário o grande desafio das marcas é destacar sua presença
e construir um vínculo com consumidores exigentes e pouco fiéis, considerando o
aumento constante da competitividade; o atual mercado apresenta fatores que
exigem uma nova postura das empresas que querem estabelecer uma comunicação
eficaz com seu público e conquistar a fidelização.
Fazer uso de estímulos visuais e auditivos não são mais suficientes para
alcançar uma comunicação satisfatória com os consumidores, que são
bombardeados de informações a todo o momento; surge assim, a necessidade de
inovar e buscar formas de comunicação que mostrem a potencialidade de atender
demandas atuais e possam superar o desafio da grande quantidade de ofertas de
produtos e serviços. Desta realidade emerge a necessidade de constituir uma nova
forma de comunicação que inclua fatores capazes de auxiliar a diferenciação de
produtos e serviços, como as emoções por exemplo. Uma comunicação que
desperta emoções e desencadeia uma experiência com qualidades afetivas conecta
e traz à lembrança memórias significativas do passado que fortalecem os vínculos
do presente e estabelecem perspectivas de relacionamento duradouro no futuro.
Assim, surge o Branding Sensorial para atender a demanda de uma comunicação
mais próxima e afetiva com o consumidor por meio do envolvimento dos cinco
sentidos.
Segundo o artigo: Emoções e sentidos no mobile marketing: Resgatando
caminhos para a lealdade da marca, publicado no site do IBOPE (Instituto Brasileiro
de Opinião Pública e Estatística), a comunicação entre marca e consumidor no
cenário atual, está associada a dois conceitos que podem ser potencializados, são
eles: 1- a conexão emocional, 2- o envolvimento utilizando os sentidos que
provocam uma experiência inesquecível para o consumidor. Ou seja, as marcas
necessitam “se transformar em uma experiência sensorial que vai muito além do

158
que vemos” (LINDSTROM, 2012, p.8), para não passar despercebida e sobreviver
no imaginário dos consumidores.
Branding Sensorial é uma abordagem de gestão de marcas que caminha
nesta exata direção, a de envolver os cinco sentidos que podem deflagrar uma
experiência marcante que possui repercussões emocionais para o consumidor. É
uma modalidade de gestão de marcas que se alicerça na ideia de que “a marca é o
sentimento que os consumidores têm pela sua empresa” (HILLER, 2012 p.55).
O mundo contemporâneo que reinventou a vida de relacionamentos
interpessoais no ciberespaço e em rede, também introduziu a conexão em tempo
real e modificou os paradigmas de compreensão sobre o que deve ser uma
comunicação eficaz e a experiência de satisfação nas escolhas de consumo. Não
basta constatarmos qualidades técnicas satisfatórias nos produtos e serviços, é
desejável que eles estabeleçam uma relação de proximidade com o consumidor que
possa oferecer uma experiência relevante, já que mais que satisfazer o produto ou
serviço precisa surpreender e permitir um ganho excedente, o de personalizar a
experiência de consumo. O Branding Sensorial propõe atender esta demanda ao
oferecer – vivência, experimentação, emoção, surpresa e capacidade de interação
subjetiva pautado em um relacionamento personalizado de experiência emocional.
O Branding Sensorial surge da necessidade de construir vínculos emocionais
com os consumidores estabelecendo um campo novo de comunicação que possui
potencial para fortalecer os processos de fidelização.
Na medida em que na vida dos seres humanos a afetividade é parte inerente
da construção da subjetividade e determinante da definição da identidade e de suas
escolhas peculiares em relação a toda situação significativa, o Branding Sensorial
representa uma abordagem eficaz que inaugura um fértil campo de estudo e de
compreensão sobre o consumidor nos dias atuais e o papel da publicidade no
mundo contemporâneo.

159
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os seres humanos possuem cinco sentidos (visão, audição, tato, paladar e


olfato), que participam de sua relação com o ambiente, no entanto, a comunicação
comercial utilizada nas veiculações de produtos e serviços é predominantemente
voltada para a visão, desprezando via de regra outros sentidos que podem destacar
a personalização da marca e suas diferenciações.
A associação de vários sentidos na experiência sensorial imersiva que o
Branding Sensorial projeta, têm o objetivo de conquistar a atenção dos
consumidores em um mercado saturado, por meio do estímulo de emoções e de
lembranças impulsionadas pelos fatores sensoriais a fim de construir uma conexão
emocional com a marca.
Considerando que a marca é um conjunto de percepções que se vinculam a
expectativas e lembranças que demonstram compromisso, atitudes e valores em
sua atuação no mercado, a gestão de marcas pressupõe a construção de um perfil
diferenciado que permita ao consumidor uma avaliação clara e decisiva de escolha.
Neste prisma, o Branding Sensorial deve auxiliar com a sinergia dos sentidos para
que seja estabelecida uma melhoria do relacionamento e comunicação entre marca
e consumidor. Fragrâncias, texturas, sons, cores e sabores podem se reunir para
transmitirem aos consumidores uma mensagem que identifique a marca de modo
amplo e ao mesmo tempo específico, provocando uma experiência singular e
marcante de entendimento da mensagem comunicacional e satisfação com o
produto ou serviço. O Branding Sensorial pode ser uma resposta ao desafio da
competitividade atual no consumo de bens e serviços, na medida em que trabalha
com a identidade das marcas promovendo experiências que seguramente
representam um registro mnêmico incomparável por suas conexões emocionais.
Além do sucesso na veiculação da marca com uma participação competitiva
do produto ou serviço no mercado, o Branding Sensorial pode garantir a fidelização
do consumidor na medida em que amplia a percepção de características do produto
ou serviço e o reconhecimento de seus diferenciais.
Por sua proposta de buscar oferecer uma experiência marcante e memorável,
a gestão de marcas por meio da participação dos cinco sentidos mostra-se como

160
campo promissor de estudo para o entendimento das marcas no futuro. Com a
globalização e a internacionalização de mercados que acentua o acirramento da
concorrência entre as empresas, descortina-se um horizonte sobre o futuro das
marcas em que será necessário introduzir mecanismos de melhor visibilidade
massiva que promova a exaltação de peculiaridades de cada produto ou serviço,
exacerbando em quantidade e qualidade a publicidade mercadológica.
Provavelmente neste século de intensa variedade de ofertas de produtos e
serviços, inclusive com grande número de inovações, constataremos um curioso
paradoxo: de um lado um apelo comunicativo cada vez mais amplificado envolvendo
os cinco sentidos e uma experiência imersiva de relacionamento com os produtos e
serviços que gera o empoderamento da fidelização, e de outro lado, o enrijecimento
de costumes como o descarte, que é o comportamento padrão da realidade
consumista praticada mundialmente.
A discussão na contemporaneidade sobre a experiência de fidelização de
marcas pelo consumidor introduz de maneira sutil um olhar acerca de valores
humanos no contexto dos hábitos capitalistas, que pode determinar de modo
transversal o legítimo tempo de vida de produtos e serviços. É valido supor que o
Branding Sensorial possa contribuir para a permanência no mercado, de marcas
que enalteçam a oferta de produtos e serviços com qualidades reais que possam
atender as demandas de consumidores exigentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOBÉ, Marc. A Emoção das Marcas – conectando marcas às pessoas. Tradução
de Fulvio Lubisco. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
HILLER, Marcos. Branding: a arte de construir marcas. São Paulo: Trevisan Editora
Universitária, 2012.
IBOPE. Emoções e sentidos no mobile marketing: Resgatando caminhos para
lealdade da marca. Disponível em: <http://www.ibope.com.br/pt-
br/conhecimento/artigospapers/Paginas/Emocao-e-sentidos-no-mobile-marketing-
resgatando-caminhos-para-a-lealdade-da-marca.aspx
> Acesso em: 18 mai. 2015.
KELLER, Kevin Lane; MACHADO, Marcos. Gestão estratégica de marcas. São
Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006.

161
KOTLER, Philip; PFOERTSCH, Waldemar. Gestão de marcas em mercados B2B.
Porto Alegre: Bookman, 2008.
LINDSTROM, Martin. Brandsense: segredos sensoriais por trás das coisas que
compramos. Bookman, 2011.
STRUNCK, Gilberto. Compras por impulso! Trade marketing, merchandising e o
poder da comunicação e do design no varejo. Rio de Janeiro: 2AB, 2011.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e Linguagem. Tradução de Jefferson Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1987.
CAMARGO, Denise de. Emoção, primeira forma de comunicação. InterAÇÃO em
Psicologia. Curitiba: v.3, p. 09-20, 1999. Disponível em: <
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/psicologia/article/view/7657/5460 >. Acesso em:
18 ago. 2015.

162
NARRATIVAS E METANARRATIVAS EM GAMES

Profa Dra Cristine Fickeslcherer de Mattos42


João Manoel Quadros Barros43
Mariza de Fátima Reis44

Introdução
O mercado de jogos eletrônicos ampliou-se espantosamente nas últimas
décadas. A constatação desse fato, através de números mercadológicos ou da
simples observação do crescimento de jogadores e da frequência com que jogam à
nossa volta, levou à formação de um grupo de estudos no Centro de Comunicação
e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie com a finalidade de pesquisar
tanto a conformação desse mercado, no que diz respeito à circulação e valorização
dos produtos, como a caracterização dos produtos em si. Para tal, reuniram-se
professores das áreas de Publicidade e Propaganda, Computação e Letras, com
pesquisa acadêmica nos âmbitos da semiótica, do desenvolvimento de softwares e
da narrativa. Ao grupo de professores, aliaram-se, como peças fundamentais,
alunos com o importante conhecimento empírico de jogos digitais e a familiaridade
com o universo hodierno, habitado cotidianamente pelos mesmos. 45 Os estudos
concentraram-se especificamente, num primeiro momento, no jogo chamado
League of Legends.
A necessidade de desenvolver pesquisas acadêmicas a respeito dos jogos
digitais se deve a alguns fatores relativos à situação em que se encontravam até
bem pouco tempo: por um lado, havia ressalvas tradicionalistas à atribuição de valor
acadêmico aos games e, por outro, a produção crítico-teórica achava-se
fragmentada em diversas perspectivas e âmbitos científicos, o que não permitia um
enfoque integrado e, consequentemente, obstruía uma compreensão mais global
dos mesmos. Embora esse cenário venha gradualmente mudando nos últimos

42Professora Doutora da Universidade Presbiteriana Mackenzie


43 Professor Mestre da Universidade Presbiteriana Mackenzie
44 Professora Doutora da Universidade Presbiteriana Mackenzie
45
Participaram dessa etapa de pesquisas do grupo os alunos do curso de Publicidade e Propaganda da
Universidade Presbiteriana Mackenzie: Giovanna Pieroni, Carlos Eduardo Sisnando e Vinícius Saes de Souza.

163
tempos, a produção de estudos sobre jogos eletrônicos é ainda incipiente no
contexto acadêmico brasileiro. Nesse sentido, nosso grupo tem por objetivo
colaborar, em nosso país, com a construção do olhar acadêmico sobre os games
de maneira integrada, contando para tal com o benefício da configuração
institucional em que nos encontramos (estamos em um Centro de Comunicação e
Letras).
Das pesquisas do grupo surgiu a indagação geradora do presente trabalho:
seria o aspecto narrativo dos games, cujo poder de sedução vem articulado pelas
construções tecnológicas eletrônico-digitais, um dos fatores decisivos para o
meteórico crescimento de sua penetração na sociedade atual? O texto que segue
procura apontar elementos importantes para a construção de uma resposta a essa
pergunta, embora o trabalho do grupo, ainda no começo, mantenha-nos conscientes
de ser ela apenas uma provisória e incompleta etapa em um processo de
aprofundamento em curso.

Breve história da teoria


Um dos alicerces reflexivos sobre os quais giram as indagações a respeito
do universo dos games preocupa-se em definir se a atividade nele implicada está
dominada pelo jogo ou pela narrativa e se, por conseguinte, pode ser caracterizada
em termos daquele ou desta. As perspectivas de ambos os lados, contudo,
mostram-se insuficientes, pois embora seja evidente que os jogos eletrônicos
utilizam narrativas de forma estrutural, não há como negar que não se trata de uma
narrativa como a literária, devido, justamente, à presença preponderante dos fatores
intrínsecos ao gênero jogo.
No que diz respeito à primeira perspectiva, pode-se afirmar que a existência
de elementos narrativos fundamentais em outros âmbitos que não o literário não
constitui nenhuma novidade, visto que territórios audiovisuais, por exemplo, como o
cinema ou a publicidade, além de reconhecer sua importância, já possuem
teorização narrativa de enfoque específico como é o caso das conceitualizações
sobre Roteiro. A esfera dos videogames, no entanto, requer ainda uma abordagem
mais específica que direcione o enfoque narrativo para o contexto jogo. Essa

164
carência, todavia, não é exclusiva da incidência do ato de narrar em games, mas
talvez se deva à dispersante multiplicidade de meios em que às narrativas podem
manifestar-se hoje em dia. Diante da falta de perspectivas teóricas pontuais, os
muitos usos da narrativa geraram reflexões acadêmicas no rumo oposto: o da
abrangência.
A fim de abarcar as mais diferentes formas de incidência da narrativa, criou-
se o termo Narratologia como proposta de estudos para as mais diversas áreas. A
narratividade hoje propõe-se como teoria abrangente, aplicável tanto aos mitos
como à literatura, à publicidade ou aos mundos virtuais e lúdicos dos videogames,
bem como a qualquer domínio ou meio que faça uso sistemático da narrativa 46.
Embora os acadêmicos advoguem o apartidarismo da teoria da narratividade, para
muitos estudiosos dos jogos eletrônicos abordá-los pelo viés narrativo significa
ainda uma subordinação a outras áreas com estatuto epistemológico próprio e uma
tradição – como a literária – insuperáveis. Em função disso, Gonzalo Frasca, em
1997 propôs a criação de um termo novo – Ludologia – para referir “the yet non-
existent ‘discipline that studies game and play activities’”. E na sequência, fez a
ressalva: “Just like narratology, ludology should also be independent from the
medium that supports the activity” (FRASCA: 1997). No mesmo ano, Espen Aarseth
foi responsável por outro trabalho de esforço semelhante em que procurava criar
um espaço crítico-teórico específico para a realidade dos videogames através da
proposição conceitual do que chamou de ergodic literature, definida em
contraposição com a literatura convencional:
In ergodic literature, nontrivial effort is required to allow the reader to traverse the
text. If ergodic literature is to make sense as a concept, there must also be
nonergodic literature, where the effort to traverse the text is trivial, with no
extranoematic responsibilities placed on the reader except (for example) eye
movement and the periodic or arbitrary turning of pages. (AARSETH: 1997, 1-2)

46
O termo Narratologia possui histórico e aplicações variadas. Em termos gerais, sua definição e seu uso
podem ser divididos em dois momentos: a era dos precursores de extração francesa – de raízes formalistas e
estruturais – e a era das produções de expressão anglo-saxã – de enfoque multidisciplinar e orientação teórica
diversificada. (MEISTER, 2003; PIER, 2008).

165
Na esteira dessas iniciativas, 2001 foi declarado o Ano Um dos estudos de
games, que passavam a apresentar-se como uma nova cadeira/disciplina dentro
das universidades (AARSETH: 2001).

Caracterizando o protagonismo
A pesquisa sobre produções teóricas posteriores na área recém-criada
mostrou-nos que, apesar de todo o empenho de acadêmicos como os pioneiros
Frasca e Aarseth em separar os estudos sobre jogos eletrônicos dos estudos sobre
a narrativa, as definições e os conceitos diferenciadores apresentados sempre
recorrem à narrativa para desenhar seus contornos e sua aplicabilidade, como
pudemos verificar nos escassos dois exemplos acima. O que aqui postulamos,
dentro da indagação inicial que nos moveu a produzir essa comunicação, é o
protagonismo da narrativa dentro do discurso dos jogos eletrônicos, configurada de
uma forma distinta, logo, estruturalmente não-tradicional, mas ainda assim,
alicerçada sobre os princípios fundamentais que conformam as narrativas em geral.
Teorizações de variadas extrações costumam destacar como elemento
essencial inerente à narrativa: a disposição de eventos em cadeia cronológica e
espacialmente submetida a leis de causa e efeito 47. A forma de transmissão desse
material, contudo, pode variar conforme a linguagem, o discurso e os meios
adotados para tal. Vejam-se, por exemplo, as familiares circunstâncias em torno do
teatro e do cinema: em ambos os componentes fundamentais da narrativa acima
destacados estão presentes, mas as linguagens envolvidas, diferentemente do que
ocorre na literatura, incluem o ingrediente não-verbal, possuem dimensão discursiva
de recepção/interação distinta (em geral sem narrador) e lançam mão de recursos
técnicos adicionais fornecidos pelo meio (linguagens cênica e audiovisual). A
despeito das especificidades, o caráter predominantemente narrativo do teatro não
costuma ser questionado. Já no caso do cinema, embora se reconheça a
preeminência do narrar, houve quem questionasse teoricamente a existência de

47
Devido ao exíguo espaço de discussão do presente trabalho, não nos propusemos a um aprofundamento nas
questões definitórias sobre narrativa. Tomamos aqui como base a definição mais atual, geral e funcional de
Gérard Prince de que um objeto é uma narrativa “if it is taken to be the logically consistent representation of
at least two asynchronous events that do not presupose or imply each other” (PRINCE: 2008).

166
uma instância narrativa em filmes, devido à dificuldade de aplicação dos parâmetros
de narração literária ao texto fílmico (CHATMAN: 1980).
O protagonismo da narrativa também foi defendido por um dos trabalhos mais
divulgados sobre o assunto games: Hamlet on the Holodeck (1997), em que a autora
Janet H. Murray defende serem os videogames mais uma forma de materialização
da narrativa, com características próprias, mas, ainda assim, narrativa. Dentre as
especificidades apontadas por Murray, encontra-se o papel não passivo ou
contemplativo do receptor, consequência da natureza participativa da narrativa dos
games, que inclui: imersão, agenciamento da história e a percepção caleidoscópica
do universo ficcional.
As narrativas assim caracterizadas, destacam outros autores, estruturam-se
através de uma hierarquia construtiva e funcional de dois níveis narrativos: o nível
embutido e o nível emergente.
“Embedded narrative is pre-generated narrative content that exists prior to a
player’s interaction with the game. Designed to provide motivation for the events
and actions of the game, players experience embedded narrative as a story
context. […] Unlike embedded narrative, emergent narrative elements arise during
play from the complex system of the game, often in unexpected ways. Most
moment-to-moment narrative play in a game is emergent, as player choice leads
to unpredictable narrative experiences.” (SALEN & ZIMMERMAN: 2003: 383)

Entrando no jogo
As relações qualitativas e quantitativas entre os níveis embutido e emergente
variam de jogo para jogo e estão parametrizadas pela jogabilidade estabelecida. No
caso de League of Legends – game criado em 2009 e hoje um dos mais populares
-, predomina o elemento emergente, subordinado à jogabilidade do subgênero
Multiplayer online battle arena (MOBA), um tipo de jogo de competição / estratégia
em tempo real para vários jogadores online48.
O sucesso desse jogo levou muitos a se perguntarem quais os ingredientes
responsáveis pelos números astronômicos oficialmente divulgados em 2014: 67

48
O termo MOBA é utilizado pela produtora de videogames Riot Games, enquanto que o termo ARTS,
abreviação de Action Real-Time Strategy, é utilizada pela produtora Valve, ambas para descreverem jogos do
mesmo tipo.

167
milhões de usuários até 2013 (com crescimento anual de 109%), atingindo o número
de 27 milhões de jogadores diários no mesmo ano (crescimento de 125%)49. No
Brasil, o jogo conta com muitos adeptos, a ponto de abrigar um Campeonato
Brasileiro que levou, em abril de 2015, 12 mil espectadores presencias ao estádio
Allianz Parque (estádio do Palmeiras), somados a outros 10 mil que acompanharam
as partidas em 44 salas de cinema espalhadas pelo país (acrescidos do número não
computado de espectadores que assistiram via internet mundo afora)50.
Dois elementos foram identificados pelo grupo, em discussões internas e em
coletas de opiniões informais entre jogadores, como determinantes para o
engajamento de tantos aficionados: o caráter competitivo multiplayer e online da sua
jogabilidade e a relevância da narrativa emergente na configuração do jogo, que
torna possível a cada equipe a construção da sua própria “história”, através da
conjugação de escolhas estratégicas com as habilidades pessoais dos jogadores
nos confrontos das batalhas.
Ser a narrativa um componente essencial para a adesão a esse jogo em
particular ou aos jogos eletrônicos em geral é ainda afirmação pendente de
pesquisas complementares que vêm sendo encaminhadas pelo nosso grupo de
estudos, através de indagações teóricas adicionais e de enquetes junto ao público
(como, por exemplo, por meio de entrevista já agendada com membros de equipe
campeã nas competições).
Contudo, alguns fatores podem desde já ser indicativos da primazia narrativa:
cenários, personagens e enredos em League of Legends recontextualizam
elementos épicos cuja popularidade, embora possua oscilações de tempos para
tempos, nunca foi abandonada, como o aponta Joseph Campbell ao analisar
diversas narrativas com destaque para seus recursos mítico-heroicos (CAMPBELL:
1949 e 1985). Ao lado do potencial cativante dos componentes épicos – mais

49Últimos números oficiais da produtora, divulgados na imprensa brasileira como, por exemplo, no portal G1,
disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/games/noticia/2014/01/league-legends-alcanca-67-milhoes-de-
jogadores.html. Consulta em 20/09/2015.

50 Elementos divulgados pela imprensa como, por exemplo no portal Tech Tudo, disponível em:
http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/08/league-legends-reune-12-mil-fas-no-estadio-do-
palmeiras-para-final-do-cblol.html. Consulta em 20/09/2015.

168
associados à narrativa embutida que à emergente, mas não exclusivos dela -, está
o fator que nos parece sobrepujar vários motores da adesão aos jogos: o caráter
imersivo-participativo do narrar. O desejo de “viver” uma fantasia originada num
âmbito ficcional na pele de um de seus personagens manifesta-se há tempos na
literatura, como bem o aponta Murray ao mencionar Dom Quixote:

Ele [Dom Quixote] representa aquela parte de cada um de nós que anseia saltar
desta vida diária para dentro das páginas de nosso livro predileto ou (...) “entrar
na tela” de um filme emocionante. (...) desejo ancestral (...) [que] foi intensificado
por um meio participativo e imersivo que promete satisfazê-lo de um modo mais
complexo do que jamais foi possível. (MURRAY: 1997, 101)

A possibilidade de adentrar o universo ficcional e vestir a pele de um de seus


personagens constitui, no nosso entender, fator tão ou mais importante para o triunfo
dos jogos eletrônicos quanto qualquer outro possível estímulo mercadológico. A ele,
entretanto, sobrepõe-se um atrativo ainda mais poderoso: a possibilidade de alterar
o universo ficcional em que o jogador mergulha, acompanhada da sensação de
comando do mesmo e da aspiração de atingir aquilo que Murray chama de “o êxtase
do rizoma” (MURRAY: 1997,132).
A autora toma a figuração feita por Deleuze e Guattari de uma rede infinita
de conexões imprevisíveis – demonstrativa, para os dois filósofos, de uma
concepção epistemológica - para referir as construções eletrônico-digitais que,
privilegiando o aspecto emergente, estariam configuradas da forma mais aberta
possível. Assim, no jogo “rizomático” o jogador supostamente “viveria” uma história
sem final pré-estabelecido ao qual chegar, pois seu aspecto dinâmico reconfiguraria
o contexto e, com ele, as alternativas de final a cada ramificação encontrada e a
cada possibilidade de avanço escolhida. Murray observa que, à época em que
escreveu o seu livro – 1997 -, os programas de computador estavam longe de
conferir maiores poderes ao leitor (MURRAY: 1997, 132). Hoje, os avanços nessa
área já permitem jogos muitos mais “abertos”, sem ainda, contudo, alcançar o êxtase
rizomático de uma história que nos permita percorrer todos os caminhos e alcançar
todos os finais, a exemplo do livro-labirinto escrito pelo personagem de Borges em
seu conto “O Jardim dos sendeiros que se bifurcam”.

169
Se o livro total e o game total existem apenas na ideia, o desenvolvimento
tecnológico procura aproximar-se dele a cada novo avanço e alimenta, com isso, o
anseio de jogadores em todo o mundo em aderir mais e mais a esse tipo de
comunicação e, por que não dizer, a esse tipo de leitura de narrativas.
A utopia do rizoma pleno inclui o desejo demiúrgico de um mundo
subordinado ao arbítrio humano através do exercício da autoria dentro de universos
ficcionais cuja primorosa construção digital os faz muito parecidos com a realidade
(a exemplo do que vemos em Matrix). O jogador, por meio de suas escolhas e
encarnando seu personagem, parece ser o dono de seu destino e, se jogar bem,
parecerá ser aquele que determina o destino de outros personagens do mesmo
universo ficcional; o herói que construirá o final da história. A sensação de autoria
dos jogadores, nos ambientes dos jogos digitais, devido aos recursos audiovisuais
e às condições de imersão e agenciamento crescente (pois as produtoras investem
em jogos cada vez mais emergentes ou abertos), parece-nos um fator decisivo no
contato com esse meio.
Murray distingue as noções de “autor” e “interator” para os jogos digitais, com
o segundo definindo o jogador e o primeiro definindo apenas o designer-
programador. Para ela o jogador não pode ser identificado com qualquer função de
autoria, pois age limitada e controladamente dentro dos ambientes lúdico-digitais,
ao contrário do que afirmam outros teóricos que defendem a atribuição de graus de
autoria àquele que controla o mouse em todos os ambientes virtuais, do hipertexto
aos jogos eletrônicos (MURRAY: 1997, 149-150).
Para o nosso trabalho, interessa observar que a existência de discussões
sobre a presença ou não de um exercício de autoria nas práticas dos videogames
certamente é indicativa de que a relação caracteristicamente passiva do receptor
das mensagens narrativas tradicionais – na literatura – encontra-se aí fortemente
alterada. Alguns teóricos relacionam o exercício do jogador de games à posição
menos passiva de outras mensagens narrativas diferentes daquela do leitor de livros
impressos como no teatro, no cinema e até mesmo na dança, pois aí o ator ou
bailarino constrói sua performance e é, assim, em parte autor do resultado que
chega à plateia. Gostaríamos de observar, contudo, que nesses meios a recepção

170
da narrativa está vinculada a dois sujeitos: o ator/bailarino e o espectador, que
assiste duplamente à performance daquele e à elaboração do diretor/coreógrafo.
Nos jogos eletrônicos, quem joga acumula as funções desses dois sujeitos e talvez
seja isso que lhe confira mais fortemente a sensação de autoria, devido à maior
proximidade que o meio lhe permite com o trabalho autoral do
dramaturgo/roteirista/compositor51. Acreditamos ser esse mais um fator associado
ao importante papel das narrativas para a penetração dos jogos na atualidade.
Além da proximidade com a autoria, outro motor que nos parece conduzir ao
êxito dos games é o seu caráter metaficcional. Devido aos dois níveis de narrativa
presentes nos jogos – embutidas e emergentes -, e em virtude de os jogadores
atuarem apenas no nível emergente - ao jogar e tomar decisões construtivas nas
bifurcações do caminho narrativo do jogo-, esses jogadores realizam um trabalho
metaficional: elaboram uma ficção sobre a ficção embutida previamente fornecida.
O texto metaficcional pode ser definido como aquele que comunica autoconsciência
ficcional da narrativa como construto, mas que, simultânea e paradoxalmente, não
destrói a ilusão ficcional. Nela, aquele que recebe a narrativa vive a fantasia e, ao
mesmo tempo, sente que participa da produção do universo ficcional (acompanha /
fabrica) (HUTCHEON: 1980).
O jogador de videogames não realiza apenas um trabalho de preencher
lacunas de uma narrativa prévia (embutida) ou de complementá-la, usando-a como
mero ponto de partida. Faz mais: elabora seu personagem, em muitos casos, como
em League of Legends, seleciona cenários; descarta ações, escolhe e refaz
caminhos, reelaborando trechos da sua narrativa que não tenham tido bom
resultado (usa suas “vidas” para tal). Embora não seja frequente a presença de
partes do enredo dos videogames em que figure o autor do jogo ou a origem da
narrativa, como nos canônicos recursos de verossimilhança consagrados pela
metaficção na literatura (narradores-autores, cartas, diários ou manuscritos
encontrados, por exemplo), nos videogames a sobreposição das narrativas e a sua

51Embora nas competições haja espectadores das batalhas de League of Legends, podemos afirmar sem medo
de errar que esses espectadores são jogadores assíduos e seu interesse nos Campeonatos se deve à sua
experiência como praticantes do jogo e não a um interesse passivo, pois a compreensão passiva de uma batalha,
por parte de não-jogadores, é bastante limitada.

171
natureza participativa produzem uma consciência do fazer narrativo paradoxalmente
imersiva. Diferente da autoconsciência dos textos metaficcionais literários, nos jogos
eletrônicos a dinâmica participativa das duas camadas narrativas ressalta o próprio
meio em suas qualidades construtivas. Dito em outras palavras: o jogador sabe todo
o tempo que se trata de um construto, pois participa de sua construção, mas está
tão imerso, em função do agenciamento em suas mãos, que se sente incapaz, por
exemplo, de referir-se aos elementos desse construto conjugando os verbos de
maneira distanciada em 3a pessoa: diz sempre Eu (“eu morri”, “eu matei”). Está
dentro e fora; sente e vive; analisa e constrói. Pode experimentar uma narrativa com
a sensação de ser um leitor com mais poderes e, ao mesmo tempo, um autor com
menos encargos.

Concluindo
Como resultado das indagações iniciais de nosso grupo de estudos, podemos
concluir que, a despeito da necessidade de desenvolvimento de pesquisas
específicas dedicadas aos jogos eletrônicos como meio, linguagem e discurso, a
presença inelutável da narrativa nos mesmos impõe a urgência de reflexões
intermidiáticas para a ponderação a respeito do que há de universal ou particular
nessas histórias digitais. O protagonismo da narrativa para a construção dos games,
bem como para a sua dinâmica de comunicação/leitura, junto aos jogadores, já foi
destacado por algumas ponderações consideradas hoje canônicas dentro do jovem
terreno acadêmico a eles dedicado. No caso do material analisado pelo grupo –
League of Legends -, o protagonismo do nível emergente, combinado com a
configuração competitiva, parece-nos determinante de grande parte do seu sucesso
junto ao público. Para tal, contribuem ingredientes épicos, de invariável poder
atrativo e enorme capacidade de adaptação aos mais diferentes meios e linguagens,
assim como as crescentes possibilidades de imersão e agenciamento dentro do
universo ficcional. Vestindo a pele de um personagem, o jogador aspira ao aberto e
rizomático controle desse universo, em inédita proximidade com a perspectiva da
autoria, acumulando as funções de criação e performance de grande parte da
narrativa desenvolvida. Por fim, a dinâmica metaficcional resultante da atuação do

172
jogador, que trabalha autoconscientemente sobre essa narrativa, destaca seu teor
construtivo, especialmente no que diz respeito às determinações do meio sobre as
possibilidades de expressão e interação. A percepção de aspectos metaficcionais
nos games nos leva, assim, a concluir mais uma vez sobre a inerente necessidade
de considerações intermidiáticas para uma melhor compreensão não só do papel
das narrativas na crescente presença dos mesmos em nossa sociedade, mas
também para um maior entendimento dessa forma de expressão em geral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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& London: The Johns Hopkins University Press, 1997.
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SALEN & ZIMMERMAN, (2003) Rules of Play: Game Design Fundamentals.
Massachusetts Institute of Technology, 2004.

173
O FANTÁSTICO NA OBRA DE CARLOS FUENTES:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Daniele Aparecida Pereira Zaratin52

Introdução

Siempre hay algún elemento de distorsión. Y siempre


trato,
aun en los más realistas de mis cuentos, de introducir
ese elemento perturbador o deformante.
(Carlos Fuentes)53

Carlos Fuentes é considerado, ainda hoje, um dos mais importantes


expoentes da intelectualidade latino-americana do século XX. Por meio de
romances, contos, novelas, peças de teatro, ensaios e roteiros de filme, o mexicano
buscou refletir sobre sua época privilegiando o exercício criativo de interpretar a
experiência humana ao expandir as fronteiras do pensamento, utilizando para isso,
muitas vezes, o Fantástico, gênero literário que, na linha do que preconizou
Tzevetan Todorov, prima pela irrupção do sobrenatural na realidade cotidiana,
fazendo com que personagem e leitor hesitem diante do evento insólito.
De Los Días Enmascarados (1954), sua obra de estreia, até Inquieta
Companhia (2004), uma de suas últimas publicações, o autor mexicano demonstra
sua inclinação por enredos que descortinam o insólito, elemento que suscita não
somente a reflexão sobre o texto mas também sobre o seu contexto, colocando em
xeque determinada noção racionalista de realidade.
Dessa forma, tendo em vista esta vasta produção do escritor mexicano, este
trabalho tem como objetivo traçar um breve panorama sobre o conjunto da obra
fantástica do escritor, cujo intuito é o de tentar delinear quais seriam as possíveis
características que se reiteram em seus escritos ao longo das décadas e buscar

52 Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

53
Declaração feita durante entrevista a Ricardo C. Gally. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 262.

174
entender de que maneira essas reiterações contribuem para significar o conjunto da
obra do mexicano. Almejamos ainda refletir sobre de que maneira essas reiterações
dialogam com um Fantástico considerado mais tradicional, ou seja, aquele
produzido por autores do século XIX. Para tanto, trataremos de uma obra que
consideramos seminal dentro do conjunto literário de Carlos Fuentes: Los días
enmascarados (1954), buscando jogar luz sobre as temáticas apresentadas em
suas narrativas que também surgem em textos posteriores do autor, aqueles
incluídos dentro do ciclo “El mal del tiempo”. Como referencial teórico, lançaremos
mão, quando julgarmos necessário, de autores como Filipe Furtado, por exemplo.
Esperamos com isso contribuir para uma análise mais abrangente e polissêmica da
obra de Carlos Fuentes.

O Fantástico na obra de Carlos Fuentes: a origem da inquietação

Obra inaugural do repertório de Carlos Fuentes, Los días Enmascarados, de


1954, funciona como uma espécie de norteador para os escritos posteriores do
autor. Trata-se de um volume de contos, seis no total, no qual Fuentes arquiteta
narrativas complexas e inquietantes, que revelam outra percepção de mundo ao
apresentar o elemento insólito como descortinador de uma outra realidade.
Carlos Fuentes foi muito criticado por escolher, para sua primeira obra, o
Fantástico como gênero para suas narrativas. Os críticos diziam que ele se refutava
a tratar dos problemas da realidade ao produzir uma “literatura evasiva y, por tanto,
nada americana [...]. El autor no da un paso si no pone sus ojos en la decrépita
literatura inglesa”54. Afirmação esta que corrobora a nossa hipótese, a de que o
autor mexicano sempre buscou um diálogo com as literaturas fantásticas do século
XIX, o que se confirma a partir da análise dos textos.
Em sua defesa, Carlos Fuentes argumenta enfatizando que o seu
compromisso era, antes, com a criação literária, já que “la literatura o crea una

54
Afirma Alfredo Hurtado: “El número 2 [“Los Presentes”] correspondió al título Los días enmascarados, de
Carlos Fuentes. Libro de prosa bien cuidada: literatura evasiva y, por tanto, nada americana, aunque bastante
elogiada por sus amigos. El autor no da un paso si no pone sus ojos en la decrépita literatura inglesa”. Apud
OLEA FRANCO, 2004, p. 139.

175
realidad o no es literatura”55. Rafael Olea Franco completa: “Los Días enmascarados
inventa un mundo fantástico que posee fuertes nexos con el México contemporáneo,
con el cual y desde el cual discute [Carlos Fuentes]” (2004, p. 144). Por essa
perspectiva, percebe-se que, para o autor, deve-se conjugar, num texto literário, a
imaginação e a linguagem, elementos fundamentais que, quando bem arquitetados,
são capazes de levar o leitor a fazer reflexões que transcendam o próprio texto.
Assim, em sua primeira publicação, Carlos Fuentes, utiliza-se do gênero
fantástico para descortinar “novas” realidades e questionar a noção de discurso
unívoco ao criar histórias que apresentam intrincados jogos narrativos que tratam
de questões referentes à formação da identidade mexicana, assim como da História
do México e da diversidade cultural deste país. “Chac Mool”, “Tlactocatzine, del
jardín de Flandes” e “Por boca de los dioses” são exemplos disso.
Após a publicação de Los días enmascarados, Carlos Fuentes segue
escrevendo suas narrativas e, em determinado momento, num esforço criativo de
tentar significar as suas obras dentro do conjunto de sua produção, ele as agrupa
em ciclos. Para aquelas em que surge o insólito, ele reservou o ciclo chamado de
“El mal del tiempo”, do qual trataremos a seguir.

Algumas considerações sobre “el mal del tiempo”, o ciclo Fantástico de


Carlos Fuentes:

Baseado em Dom Quixote, obra maestra de Miguel de Cervantes, e na


experiência estética e ideológica de Los días enmascarados, Carlos Fuentes
arquiteta seus enredos pertencentes ao ciclo “El mal del tiempo”. Segundo o autor,
formam parte desse ciclo todas as narrativas da tradição “Quixotesca” ou de “La
Mancha”. São textos que se caracterizam como “abiertos” e “ambiguos”, que
privilegiam a imaginação e o aprimoramento do uso da linguagem em detrimento de
um certo racionalismo burguês. Compõem esse ciclo: Aura (1962), Cumpleaños
(1969), Una familia lejana (1980), Constancia y otras novelas para vírgenes (1990),
Instinto de Inez (2001).

55
Entrevista concedida a Alfred MacAdam e Charles Ruas. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 47.

176
Existe ainda o volume de contos Inquieta Compañía (2004), que embora não
pertença ao ciclo, exerce papel fundamental dentro do conjunto da obra fantástica
do autor, pois nele o autor utiliza-se dos mesmos recursos e temas encontrados em
Los días enmascarados e nas narrativas do “El mal del tiempo”, dando especial
destaque ao surgimento do insólito.
Nos textos de “El mal del tiempo”, Fuentes, por meio da conjunção linguagem-
imaginação, descortina realidades e histórias que fogem a explicações racionais. Ao
desvendar essas novas realidades, o autor parece almejar que seus leitores reflitam
sobre o conceito de História no qual está ancorada uma sociedade. Nesse sentido,
em seus relatos, é como se o mexicano quisesse renovar os fatos históricos por
meio do ato da criação literária, fazendo com que o passado “oficial” seja visto
apenas como uma parte da História, podendo ser reatualizado por meio da literatura,
por meio do Fantástico. Por essa perspectiva, a opção do autor pela temática do
insólito para suas narrativas demonstra algo que vai além de uma simples
preferência estético-literária: revela, antes, o seu engajamento ideológico, conforme
mostram as seguintes palavras do mexicano:
Nuestras obras deben ser de desorden: es decir, de un orden posible,
contrario al actual. […] Nuestra literatura es verdaderamente revolucionaria
en cuanto le niega al orden establecido el léxico que éste quisiera y le
opone el lenguaje de la alarma, la renovación, el desorden y el humor. El
lenguaje, en suma, de la ambigüedad: de la pluralidad de significados, de
la constelación de alusiones: de la apertura (FUENTES, 1976, p. 32) 56.

Dessa forma, ao produzir esses textos que contribuem para a


desestabilização de certa concepção lógica de realidade, Carlos Fuentes assume
uma postura de vanguarda ao se rebelar, ficcionalmente, contra as amarras
racionalistas de compreensão da literatura e da realidade.
Dentro desse grande conjunto de obras, é possível observar a recorrência de
algumas temáticas. Abaixo, destacamos algumas.

56
Carlos Fuentes se refere a seus textos e ao conjunto de textos produzido pelos escritores latino-americanos de
sua época, como J. Cortázar e G. G. Márquez, por exemplo.

177
Algumas reiterações temáticas encontradas na obra fantástica de Carlos
Fuentes:

Desde Los días enmascarados até o ciclo “El mal del tiempo”, é possível
perceber que o autor utiliza-se de determinadas continuidades temáticas, que
dialogam diretamente com a tradição fantástica do século XIX. Na esteira de
escritores como E. T. A. Hoffman, Prosper Mérimée, Bram Stoker, entre outros,
Carlos Fuentes escreve suas narrativas buscando retomar essa tradição fantástica
mais universal, sem, no entanto, abrir mão de fazer reflexões sobre o seu contexto
latino-americano. Dentre essas continuidades, sublinhamos quatro57. São elas:

1) A Escolha por personagens que pertencem tradicionalmente ao Fantástico:

Servindo-se dos clássicos fantásticos do século XIX, Carlos Fuentes constrói


seus enredos trazendo certos tipos de personagens muito utilizados pelos escritores
dessa tradição. Dessa forma, nos textos do mexicano, encontramos, por exemplo,
estátuas e bonecas animadas (“Chac Mool” e “La Desdichada”), anjos (Miguel
Asmá), fantasmas (Constancia e Plotnikov de Constancia, Alex de “Buena
Compañía”, Lupe e Florencio de “La gata de mi madre”, Alberta e Caballero de “La
bella durmiente”), divindades (Chac Mool e o menino Jesus de “Gente de razón”), e
até mesmo o vampiro Conde Drácula, de “Vlad”, que, na conto de Carlos Fuentes,
não vive mais na Europa mas sim na Cidade do México, o que nos confirma a ideia
mencionada antes: a de que o autor buscava um diálogo literário universal, sem,
contudo, desconsiderar o seu contexto nacional.

2) Personagens femininas centrais e reveladoras do insólito:

Mais uma vez na esteira do Fantástico produzido no século XIX, Carlos


Fuentes traz para seus textos figuras femininas protagonistas que transitam entre
os diferentes universos e conseguem extinguir as mais diversas fronteiras,

57Para um estudo mais detalhado sobre o tema, ver: ZARATIN, D. A. P. “Carlos Fuentes e a Literatura
Fantástica: continuidades e revelações em Constancia”. (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana
Mackenzie. São Paulo, 2012.

178
revelando aos demais personagens o insólito. “Ambivalentes”, essas “brujas o
hechiceras” se destacam dentro do universo simbólico da narrativa fantástica ao
despertarem nas demais personagens (em sua maioria homens racionalistas, como
médicos, historiadores, arquitetos, etc) a consciência da existência de outras
“realidades”, inexplicáveis e ocultas até então.
Sobre esse protagonismo feminino, Carlos Fuentes declara sobre uma de suas
personagens: “Es una figura central y los hombres no permiten que las mujeres sean
figuras centrales; se les destierra a los extremos, pues México es un país en donde
las mujeres están condenadas a ser monjas o putas” 58
. Considerando essa
afirmação e tendo em vista a ideia de que o mexicano se caracteriza por ser um
intelectual crítico ao seu contexto, poderíamos afirmar ele utiliza a literatura para se
opor a certo machismo presente na sociedade mexicana ao criar personagens que
ganham força ao unir características antagônicas, que, desde o ponto de vista da
lógica, seria inconcebível: sagrado/profano e a vida/morte, por exemplo. Nesse
sentido, destacamos as personagens Carlota de “Tlactocatzine, del jardín de
Flandes” (1954), Consuelo-Aura de Aura (1962), Nuncia de Cumpleños (1969), a
boneca humanizada de La desdichada (1990), Constancia de Constancia (1990),
Inez de Instinto de Inez (2001), Ofelia de “El amante del teatro” e Alberta Simmons
de “La bella durmiente”, somente para mencionar alguns exemplos.

3) O duplo:
Outra reiteração temática presente nas obras de Carlos Fuentes que dialoga
com a tradição do século XIX é o surgimento do duplo. O autor emprega esse
recurso das mais distintas maneiras, cujo objetivo é o de intensificar a ambiguidade
dentro da narrativa.

58
Carlos Fuentes refere-se à Claudia Nervo, personagem do texto considerado realista Zona Sagrada (1967).
Apesar disso, essa fala do autor ajuda-nos a compreender melhor o pensamento do mexicano sobre o tema,
iluminando perspectivas interpretativas sobre a construção de suas personagens femininas, de suas obras
fantásticas ou não.

179
Assim, existem diversos tipos de duplos. Há o duplo personificado no
desdobramento físico das personagens Consuelo-Aura (Aura) e Rubén Oliva e
Pedro Romero (“Viva mi fama”); há o duplo representado na dúplice vida de
Constancia e Plotnikov (Constancia); há a dupla oscilação narrativa entre os dois
tempos e universos (pré-história-sonho e século XX-realidade) em Instinto de Inez;
há a dupla e frequente polarização entre as personagens, divididas em racionais e
não-racionais: Chac Mool-Filiberto (“Chac Mool”), Consuelo-Felipe (Aura),
Constancia-Hull (Constancia), Carlos e José-operários (“Gente de razón”), Serena
e Zenaida-Alex (“Buena Compañía”).
Há ainda o duplo encontrado nas diversas bifurcações estruturais dos textos,
como a manifestação dos distintos pontos de vista dos dois narradores de “La
Desdichada”, Bernardo e Toño; a mudança no foco narrativo da 3ª para a 2ª pessoa
em Instinto de Inez, e o uso da 2ª pessoa do singular (tú) em Aura, que suscita um
duplo espelhamento: o da personagem Felipe Monteiro e do leitor.

4) O Espaço ficcional que se configura como uma verdadeira topografia


do fantástico:

A construção de uma ambientação que favorece o surgimento do insólito faz


parte das narrativas fantásticas de Carlos Fuentes, reiteração que também retoma
a tradição fantástica do século XIX.
Em suas obras, o autor mexicano prima pela construção de espaços que
trazem a mescla de elementos “realistas” e “alucinantes”, para retomar Felipe
Furtado, por meio de um jogo narrativo que se ancora em palavras e frases
ambíguas, geradoras de múltiplos significados para o enredo. Os aspectos
considerados realistas são pensados de modo a induzir o leitor a acreditar em uma
possível normalidade, aproximá-lo desse universo ficcional e envolvê-lo em um
grande labirinto. Os elementos alucinantes são revelados sutil e conjuntamente com
os realistas, lançando pistas que ora mostram e ora ocultam o insólito, porém sem
descortiná-lo completamente.

180
Esse recurso é fundamental para que, quando se revele o insólito, o impacto
produzido seja maior e provoque no leitor a sensação de que também a sua noção
de concretude era parcial e equivocada, sendo preciso, portanto, reconsiderá-la.
Como exemplo dessa topografia do insólito, citamos a ambientação dos casarões
de: “Tlactocatzine del jardín de Flandes”, Aura, Constancia, “La gata mi madre”,
“Vlad”, entre outros.

Considerações finais

Debruçar-se sobre a obra de Carlos Fuentes é sempre um grande desafio.


Como intelectual multifacetado, o autor mexicano transitava pelos diferentes
universos, o que lhe permitiu construir uma vasta, plural e complexa obra, que prima
pelo exímio trabalho com a linguagem.
Nos escritos do autor mexicano, pode-se encontrar algumas reiterações
temáticas, tais como: 1) A escolha por personagens que pertencem tradicionalmente
ao Fantástico; 2) Personagens femininas centrais e reveladoras do insólito; 3) O
duplo; 4) O Espaço ficcional que se configura como uma verdadeira topografia do
fantástico. Ou seja: Fuentes retoma a tradição fantástica do século XIX, dialoga com
essa literatura mais universal, mas não deixa de considerar questões relacionadas
ao nacional, como em “Vlad”, por exemplo.
Observa-se, assim, que as obras fantásticas de Carlos Fuentes privilegiam o
constante diálogo, com o universal, com o nacional e, acima de tudo, com o leitor,
quem dificilmente consegue se desprender da realidade, já que ela é o lugar onde
o autor se fixa e de onde ele procura contemplar os diversos universos narrados.

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181
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territorios sin fronteras. Lima: CELACP, 2011 (p. 132-139). 1 CD-ROM.
_________. “Carlos Fuentes e a Literatura Fantástica: continuidades e revelações
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Paulo, 2012. Disponível em:
http://tede.mackenzie.com.br/tde_arquivos/8/TDE-2013-10-29T171409Z-
1760/Publico/Daniele%20Aparecida%20Pereira%20Zaratin.pdf. Acesso em: 10 de
outubro de 2015.

182
DOIS CARAMURUS: UM ESTUDO DE ADAPTAÇÃO LITERÁRIA

Dílson César Devides59

SOBRE ADAPTAÇÕES
Obras adaptadas não são, normalmente, vistas com bons olhos por aqueles que
defendem a primazia do original. Claro que se uma obra literária foi concebida para
ser uma novela, ela deve ser lida, criticada, apreciada como tal. O que levaria então
alguém a ler uma adaptação? Um dos motivos poderia ser o fato de que tal obra foi
escrita em uma língua que o leitor não domina e não havendo uma tradução (que
conservasse o gênero textual, a estrutura narrativa etc.) restou-lhe a adaptação.
Vendo por este prisma, a adaptação seria, de fato, algo menor. Mas se pensar que
a adaptação foi concebida para o público infantil, por exemplo, que não teria como
ter acesso ao original mesmo que fosse escrito no mesmo idioma das crianças em
questão, e que não teria competência para lidar com o linguajar mais denso e
elaborado de um texto para adultos, possibilitando assim que leitores em formação,
já cedo em sua vida literária, tomassem contato com textos fundamentais da
literatura, a adaptação passa a ser um instrumento de valor inestimável. “O ato de
adaptar uma obra para determinado público não deve caracterizar um procedimento
condenável em si mesmo” (FARIA, 2008, p.36).
Possibilitar que crianças em início de alfabetização possam ter contato com texto
como Dom Quixote ou a Odisseia, que jovens desinteressados por livros possam
apaixonar-se por Machado de Assis depois de ler algum de seus contos
transformados em história em quadrinhos, que obras esquecidas voltem a ter o
merecido destaque depois de serem transpostas para a televisão em uma minissérie
ou que escolares em véspera de exames possam compreender um pouco do enredo
de uma obra ao jogar sua adaptação para videogame; são aspectos louváveis das
adaptações em suas mais variadas realizações. “Assim, a adaptação de obras ao
gosto dos jovens seria a solução ideal para resolver o problema deles em relação à
falta de interesse e preparo intelectual” (FARIA, 2008, p.38).

59
IBILCE/UNESP – FATEC LINS/BAURU

183
É um erro já bastante discutido, imaginar que o adaptador é alguma espécie de
usurpador da obra alheia, que rouba uma ideia e tira vantagem dela. Seria
ignorarmos aquilo que Borges nos dizia em relação aos precursores. Em outras
palavras, para muitos a adaptação seria precursora da obra original, uma vez que
foi por meio dela que tomaram conhecimento do texto que, cronologicamente, veio
primeiro. “Cabe ao adaptador o papel de mediador entre o leitor [...] e a obra literária
original” (VIEIRA, 2010, p.29).
A adaptação objeto deste estudo se dá de texto literário para texto literário, não
envolvendo as diferentes mídias hodiernas, as quais Linda Hutcheon faz referência
em seu Uma Teoria da Adaptação, destacando os diversos modos pelos quais se
dá a transcodificação de um texto quando é adaptado para o teatro, cinema, tv,
jogos digitais e afins, ou mesmo se o caminho for inverso, um jogo é adaptado para
literatura, por exemplo. A isso ela chama de intersemiótico uma vez que “[...] essa
transcodificação implica uma mudança de mídia” (2013, p.61), já que se mudaria o
meio de expressão pelo qual a adaptação teria suporte. No texto em questão não
há tal transcodificação uma vez que tanto o original quanto o adaptado permanecem
no âmbito da literatura impressa. As alterações que se dão se explicam, dentre
outros motivos, pela ideia “[...] de que a adaptação não precisa ser rígida em seus
moldes. Pode-se mudá-la em sua totalidade e gênero, desde que se mantenha sua
essência, com a finalidade de aproximar o leitor iniciante do universo literário [...]”
(VIEIRA, 2010, p.30).
A adaptação é, portanto, um trabalho autoral, no qual se vê as marcas do adaptador.
É também um trabalho importantíssimo se pensar em suas aplicações didático-
pedagógicas. Em suma, as adaptações precisam e devem ser valoradas como
produto da cultura letrada, que amplia os horizontes culturais para os mais diversos
suportes midiáticos, possibilitando assim, uma convergência cultural bem o gosto
de Martín-Barbero e Henry Jenkins.
Se uma obra é rotulada de adaptação, é evidente que tenha se pautado em outra
que seria a original. Faz-se então necessário recorrer a esta que foi, de alguma
forma, geradora da segunda, a adaptada, e cotejá-la suficientemente para se ter os

184
subsídios necessários ao posterior exame da adaptação. Portanto, passo ao épico
de Durão.

O CARAMURU, de Santa Rita Durão

Estudar a história da literatura de um país é uma forma muito válida de ser ter um
amplo panorama do modo pelo qual aquela pátria registrou pela arte da palavra os
diversos momentos pelos quais passou. Nesse estudo depara-se com obras e
escritores conhecidos, estudados e lidos com frequência e com outros que por
algum motivo caíram no esquecimento. Basta folhear a História concisa da literatura
brasileira, de Alfredo Bosi, para encontrar autores tidos como canônicos (Machado
de Assis, José de Alencar, Carlos Drummond de Andrade, para ficar apenas em três
exemplos) e outros que praticamente sumiram das prateleiras das livrarias, dos
bancos escolares e dos estudos acadêmicos como o barroco Diogo Grasson Tinoco,
o árcade Francisco de Melo Franco, o romântico Aureliano Lessa. Outros ainda
lograram algum destaque por terem desempenhado importante papel histórico,
como Bento Teixeira, autor de Prosopopeia obra inaugural do Barroco brasileiro, e
de Teixeira e Souza, autor de O filho do pescador (1843), primeiro romance
romântico brasileiro.
O Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, é uma obra de valor e
reconhecimento controversos. Alguns críticos veem nela apenas valor histórico,
como Waltersin Dutra ao afirmar que “[...] o Caramuru sobrevive ainda apenas pela
sua posição histórica: foi o primeiro a tomar como motivo uma lenda local, a falar no
índio brasileiro e a descrever seus costumes” (1968, p.349). Outros, como Antonio
Candido, acreditam que o épico de Durão é pouco estudado e, pior, mal estudado.
No entanto, parece haver consenso quanto ao aspecto indianista da obra. Durão
conseguiu mostrar o indígena brasileiro mais real que seu contemporâneo Basílio
da Gama.
Os costumes das tribos brasileiras, a fauna e a flora são retratados com algum rigor,
possibilitando uma visão razoável da realidade. As informações de que se vale
Durão são atribuídas principalmente à História da américa portuguesa, de Rocha

185
Pita. Encontra-se pelo épico boas descrições de plantas, animais e de ritos
indígenas, que elucidam muito claramente o que era o Brasil. É o que se vê no Canto
VII quando Diogo Álvares relata ao rei da França as maravilhas do Novo mundo:
XXXIII
D’ervas medicinais sópia tão rara
Tem no mato o Brasil e na campina,
Que quem toda a virtude lhe explora,
Por demais recorrem à medicina.
Nasce a gelapa ali, a sene amara,
O filopódio, a malva, o pau da China,
A caroba, a capeba, e mil que agora
Conhece a bruta gente e a nossa ignora.

XXXIV
Tem mimosos legumes, que não cedem
Aos que usamos na Europa mais prezados,
Gengibre, gergelim, que os mais excedem,
Mendubim, mangaló, que usam guisados:
Alguns medicinais, com que despedem
Do peito estilicídios radicados;
Tem o cará, o inhame, e em cópia grata
Mangarás, mangaritos e batata. (2008, p.554)

Embora reconheçam o esforço de Durão com informações botânicas e históricas


com base em estudos, os críticos veem em passagens como a transcrita
anteriormente um amontoado de palavras desnecessárias, em que se perde o vigor
narrativo e evidencia mais a habilidade de metrificador que a de poeta do frei, como
nos diz Candido: “[...] seu trabalho consistia principalmente em metrificar com mais
ou menos habilidade as informações e sugestões colhidas nas fontes” (1959, p.178).
Quando traça as características dos autóctones nacionais, Durão pinta-os com
cores exageradas. Melhor dizendo, carrega-os de características que fogem à
realidade. O principal exemplo é Paraguaçu que pouco lembra uma indígena
brasileira:
LXXVIII
Paraguaçu gentil (tal nome teve),
Bem diversa de gente tão nojosa,
D cor tão alva como a branca neve,
E donde não é neve, era de rosa:
O nariz natural, boca mui breve,
Olhos de bela luz, testa espaçosa,
[...]. (Canto II, 2008, p 421)

Nessa descrição, Paraguaçu é retratada como uma europeia em trajes tupiniquins.


Uma caraterística que antecipa a idealização que marcará o indianismo romântico.

186
No entanto, nem mesmo Iracema, ícone romântico, foi tão artificialmente construída.
Talvez a idealização estivesse circunscrita ao físico, os críticos pudessem atenuar
as palavras, mas a necessidade de mostrar que nosso indígena era digno de
representar e dar origem ao futuro povo brasileiro, fez com que o poeta exagerasse
também em suas características morais e psicológicas. Seria verossímil que
Jararaca movido por ciúme organizasse uma guerra contra Diogo Álvares,
Paraguaçu e seus aliados, se sabemos que as tribos nacionais não tinham a
monogamia como prática? Por que Paraguaçu “[...] rejeitava espontaneamente a
nudez das outras, cobrindo-se com um manto espesso de algodão”? (CANDIDO,
1976, p.181). Nas palavras de Durão: “De algodão tudo o mais, com manto
espesso,/Quanto honesta encobriu, fez ver-lhe o preço” (Canto VII). Percebe-se
claramente o esforço de Durão em mostrar que seus personagens têm valores
exacerbados muito mais latentes que os observáveis naturalmente.
Problema maior se dá com Diogo Álvares. Como herói de uma epopeia ele deveria
representar um povo, mesmo que para isso fosse necessário que aparecessem
alguns desvios morais, até mesmo porque o herói não está acima dos demais, ele
é como os demais. No entanto, Diogo, um jovem de pouco mais de vinte anos
mostra-se extremamente maduro ao rejeitar deitar-se com as índias, ao apenas
casar-se com Paraguaçu e, consequentemente, consumar o casamento, após seu
batismo cristão. Ele não fraqueja em momento algum, sempre senhor das situações,
sempre ciente do que e como fazer. “Este comportamento exemplar acentua a sua
mediocridade como personagem, isento de erros normais em heróis de epopeia [...]”
(CANDIDO, 1976, p.175). Alfredo Bosi foi ainda mais enfático:
Domando a “fera gente” e as próprias paixões, Diogo é misto de colono
português e missionário jesuíta, síntese que não convence os
conhecedores da história, mas que dá a medida justa dos valores de Frei
José de Santa Rita Durão. Na medida em que o herói encarna, aliás
ossifica, tais valores, ele se enrijece e acaba perdendo toda capacidade de
ativar a trama épica. (2000, p.70).

Já outro estudioso, Carlos de Assis Pereira, vê no comportamento e nas atitudes de


Diogo, a figura de um bom cristão, de um exemplo a ser seguido, assim como
deveria ser todo e qualquer líder, pois “a admiração ao herói piedoso, justo e

187
humanizador dos silvícolas há de sobrepor-se à que, por ventura, se tenha a algum
chefe militar tiranizador de povos” (1971, p.22).
Para os críticos mais severos, o Caramuru tem uma vocação muito mais livresca
que lírica, em outras palavras, faltaria ao épico brasileiro profundidade dramática e
poética. Waltersin Dutra, tratando também do Uraguai diz que as duas obras “[...] se
ressentem da pretensão heroica. Perdem espontaneidade do romance, sem
conseguir a grandeza do épico [...]” (1968, p.341). Em outras palavras, o Brasil não
teria material para uma composição épica tal qual a Europa produziu. O mesmo
autor chega a afirmar que no Arcadismo brasileiro houve narrativa e não épica.
Vale ressaltar que para Durão era imperioso valorizar a empreitada religiosa em
terras tropicais e para isso seu herói deveria ser um homem de Deus preparado
para evangelizar, para levar os ensinamentos bíblicos para aqueles desgraçados
que não tinham noção da grandiosidade da Igreja. Por isso, provavelmente, dá tanta
ênfase à figura evangelizadora de Diogo e a seus feitos catequéticos, como inibir o
canibalismo, por exemplo. Deixando a imagem de guerreiro em segundo plano, o
autor nos dá “menos um herói de luta do que herói cultural, ele é o fundador, o
homem providencial que ensinou ao bárbaro as virtudes e as leis do alto” (BOSI,
2000, p.70). Do canto III em que se dá a altercação a respeito dos aspectos
religiosos dos indígenas e dos cristãos culminando na conversão de Gupeva, ao
canto X com o clímax do cristianismo e da colonização lusitana, evidencia-se as
pretensões de Durão com o poema: “[...] justificar e louvar a colonização como
empresa religiosa desinteressada, trazendo a catequese ao primeiro plano e com
ela cobrindo os aspectos materiais básicos” (CANDIDO, 1959, p.181).
Vê-se que a fortuna crítica do Caramuru não é unânime. Ela enumera os defeitos
do poema, mas não ignora suas qualidades, como deveria ser, na verdade, toda
crítica. Trazer este épico nacional de volta às discussões acadêmicas forçará que
sejam jogadas sobre ele novas luzes que, possivelmente, iluminarão as sobras
deixadas pelos críticos de outros tempos. Quiçá, aparelhados de outros escopos
teóricos, os estudiosos atuais consigam ver no poema de Durão aspectos que não
eram valorizados em outros tempos, ou cheguem a conclusões semelhantes às dos
mais antigos. Independente das conclusões a que cheguem, uma obra tão

188
importante, seja do ponto de vista literário seja do histórico, não deveria permanecer
alijada das discussões intelectuais nas terras que a produziu. Para dar uma
contribuição aos estudos acerca do Caramuru, tratarei de uma adaptação feita em
Portugal por João de Barros.

ADAPTAÇÃO DE JOÃO DE BARROS

Desde sua primeira edição em 1781, o Caramuru vem tendo novas edições e
adaptações. Edna Castilho Peres, em sua tese de doutoramento intitulada
Caramuru de Santa Rita Durão: edição adaptada em prosa e anotada, fez um
levantamento sobre as edições e adaptações e chegou ao seguinte dado:
Revendo, agora, a história da recepção em forma de novas edições e
adaptações do nosso épico, sintetizo-a em quatro séculos: no século XVIII,
uma vez; no século XIX, provavelmente seis vezes; no século XX, cinco
vezes; no século XXI, quatro vezes. (2006, p.66).

Podemos ainda acrescentar a adaptação feita para a TV Globo, por conta dos 500
anos do descobrimento do Brasil, dirigida por Guel Arraes e roteirizada por ele
juntamente com Jorge Furtado, que recebeu o nome de Caramuru: a invenção do
Brasil. Foi exibida inicialmente na televisão e depois condensada para o cinema.
O passar dos anos trouxe às novas edições do Caramuru essencialmente
atualizações de ordem linguística (ortográficas principalmente) e editorial, como a
omissão de anotações e comentários em algumas, ou o acréscimo de estudos
prévios em outras. As adaptações partiram para uma atualização da narrativa
privilegiando o público infantil ou infanto-juvenil. Duas delas tendo pretensões
escolares podem ser chamadas paradidáticas. São as adaptações de Paula Adriana
Ribeiro, de 2002, pela editora Rideel e de Cecília Casas, de 2003, pela editora
Landy. Ambas vertem o poema em prosa enxugando-o ao essencial do enredo,
possibilitando tão-somente um conhecimento superficial da obra de Durão, repletos
de ilustrações para agradar o público-alvo. Já a adaptação do português João de
Barros, de 1935, por ser a primeira e, a meu ver, a mais bem-acabada, merece um
destaque.

189
João de Barros nasceu em 1881, em Figueira da Foz, Portugal. Filho do Visconde
da Mirinha Grande, desde pequeno esteve a voltas com pessoas influentes, depois
de formado em Direito pela Universidade de Coimbra, tornou-se professor e exerceu
importantes cargos ligados ao Ministério da Instrução Pública e outros de
administração escolar. Sua atividade intelectual nos relegou diversas obras que vão
desde a Educação à Literatura. Em seus últimos anos de vida dedicou-se a adaptar
clássicos da literatura universal para o público jovem, dentre os quais, Os Lusíadas,
A Odisseia, A Ilíada, A Eneida, As viagens de Gulliver e O Caramuru. Faleceu em
1960, em Lisboa.
Barros deu a sua obra o título de O Caramuru: aventuras prodigiosas dum português
colonizador do Brasil, bastante diferente do subtítulo do original de Durão, poema
épico do descobrimento da Bahia. Já é possível notar por esta simples mudança de
subtítulo que Barros tem em mente o povo lusitano como público específico, uma
vez que dá mais destaque ao fato de um português colonizar o Brasil do que o
descobrimento em si como inspira o subtítulo de Durão. A condição de náufrago de
Diogo perde importância ante o papel nobre de agente português.
A capa da adaptação traz a representação de um homem trajando armadura
completa tendo aos pés um indígena subjugado em uma mata esplendorosa de
onde se vê outros indígenas assustados com a figura de Diogo. A imagem tem a
assinatura de Martins Barata que ilustra a obra. Logo abaixo os dizeres Adaptação
em prosa do poema épico de Frei José de Santa Rita Durão, por João de Barros.
Informação que não deve passar incautamente, pois ao deparar-se com o livro, o
leitor tem plena consciência de que é um texto adaptado e sabe quem é o adaptador
e o autor do original. Pode hoje parecer óbvio, mas tais informações não eram
comuns em textos adaptados ou traduzidos até finais do século XIX. Era hábito
omitir-se o nome do tradutor e/ou adaptador como se tal atividade fosse considerada
de menor valia ante o original. Já há algum tempo, entretanto, a atividade do tradutor
e do adaptador vem ganhando mais respeito e destaque, sendo os nomes de alguns
desses profissionais estampados como garantia de um trabalho digno que confere
a edição ainda mais valor. São os casos da adaptação feita por Monteiro Lobato do
romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe; da tradução realizada por Eça de

190
Queirós do romance As minas de Salomão, de Henry Rider Haggard; ainda hoje
facilmente encontradas nas livrarias. A adaptação de Barros do Caramuru também
é encontrada ainda hoje em Portugal, provavelmente por ser a única feita por lá,
assim como outros textos que adaptou, mostrando assim que seu trabalho de
adaptador tem méritos que lhe garantem espaço editorial mesmo tendo passado
quase cem anos.
Ainda sobre os paratextos da adaptação em estudo, faz-se imperioso destacar a
produção de Martins Barata e suas ilustrações. Se houve tempo que se omitia o
nome dos tradutores e adaptadores, o que se pensar dos ilustradores? Por vezes
tendo seu trabalho considerado como acessório, como meio de distração durante a
leitura, o ilustrador tem papel fundamental para uma obra, principalmente quando é
para jovens e crianças. São as imagens que prendem a atenção dos pequenos
leitores antes mesmo de começarem a decifrar as marcas de tinta que formam as
palavras. Não é necessário recorrer a fontes precisas para saber que, dependendo
da idade, quanto mais colorida for a ilustração, quanto mais atrativos lúdicos trouxer
um livro (os pop-up ou livros com dobraduras em 3D), mais agradará ao leitor
iniciante. Assim, Barata, que nasceu em Santo Antônio das Areias no ano de 1899
(falecendo em 1970), teve destaque em sua carreira de professor, ilustrador, pintor
e desenhista; sendo responsável por desenhar moedas para o governo lusitano,
assinando pinturas em palácios, trabalhando junto a Almada Negreiros em
publicações governamentais, sendo consultor artístico e colaborando com
exposições sobre a história de seu país; foi, portanto, figura de respeito em sua área
de atuação. Para o Caramuru fez treze ilustrações que abrem cada um dos capítulos
encimando seus títulos. São representações que sintetizam o capítulo, ou servem
como epígrafe, uma vez que retratam o ponto fulcral de cada tópico. Trazem em
escala de cinza imagens que muito bem cumprem com seu papel em um livro para
jovens, não sendo extremante realistas permitem que o púbere leitor preencha as
sombras deixadas com sua imaginação e com as descrições da narrativa. Na falsa
folha de rosto a mais bela gravura, para a que é considerada por muitos a passagem
mais lírica do poema de Durão, a morte de Moema. Ali Barata retrata com traços
bem definidos e cores vibrantes o fatídico episódio do afogamento, praticamente um

191
suicídio, de Moema que fora preterida por Diogo. Interessante que esta gravura é a
única que recebe nome, A despedida de Moema, e colocando-se antes mesmo do
início da narração, cumpre valioso papel de instigar a curiosidade no leitor além de
forçá-lo a descobrir, se posso dizer assim, quem é Moema e porque teria merecido
tão grande destaque do ilustrador.
Antes ainda do texto literário de Barros, há em sua obra uma apresentação, um
prefácio, em que exalta as qualidades da obra original e sua importância para o leitor
hodierno, assim como para a união entre Portugal e Brasil. Fazendo parte de uma
série chamada Grandes Livros da Humanidade, editada pela livraria Sá da Costa, a
adaptação do Caramuru figura, portanto, entre os maiores livros produzidos pelo
Homem e é assim que Barros quer que se pense ao dizer:
A natureza pródiga e rica do Brasil e os três elementos étnicos formadores
de sua população, surgem no «Caramuru» em irresistível e perfeita
simbiose, uns aos outros ligados e entrelaçados no próprio momento em
que essa união, fecundíssima e brilhante para o futuro do país fraterno, se
operava e realizava. Tanto basta, pois, para justificar e explicar a inclusão
do poema célebre e celebrado no rol dos «Grandes Livros da
Humanidade». (BARROS, 1953, p.8).

Entretanto, não se mostra ingênuo a ponto colocar o épico brasileiro no mesmo


patamar que os europeus: “E embora [...] não deva nem possa comparar-se aos
«Lusíadas» ou à «Odisseia», numa cousa se lhes assemelha e irmana: - em
constituir o cântico anunciador da alvorada duma Pátria [...]” (BARROS, 1953, p10).
Mais adiante, com o claro intuito de mostrar que o Caramuru é importante também
aos lusitanos e a relação entre eles e os brasileiros diz: “Contentes nos sentiremos
se deste modo algum serviço prestarmos ao melhor carinho de Portugal pelo Brasil,
à melhor e mais estreita intimidade do Brasil e de Portugal” (BARROS, 1953, p.10).
Ao final do livro, Barros nos dá uma panorâmica da vida de Santa Rita Durão, em
que, apoiado em Ronald de Carvalho, Sílvio Romero e Pinheiro Chagas, faz uma
rápida abordagem dos principais momentos da vida de Durão e uma pequena
análise de sua obra, cotejando-a com O Uraguai, mas claramente tentando mostrar
mais qualidades que defeitos tanto na obra quanto no autor. No último parágrafo de
seu ensaio, Barros mostra não ignorar que alguns críticos não são entusiastas do
épico duraniano e cita Agripino Grieco como exemplo, mesmo assim não deixa de
fechar seu texto com palavras elogiosas:

192
Do conjunto, porém, de tantos critérios, na maioria lisonjeiros, depois de
passados ao crivo da imparcialidade mais exigente, conclui-se, em suma,
que o poema de Frei José de Santa Durão merece, de facto, louvor,
respeito, admiração carinhosa e simpatia sempre renovada. (1953, p.188).

Outro aspecto a mencionar relaciona-se com os capítulos. Sabe-se que Durão


seguindo o exemplo de Camões dividiu o Caramuru em dez cantos, o adaptador o
fez em onze. Respeitando a divisão dos cantos, Barros faz sua obra parcelada em
capítulos que trazem o mesmo conteúdo essencial dos cantos, mas ao invés de
individualizá-los por numerais romanos, o faz com títulos que facilitam a
identificação do teor de que trata cada trecho além de tornar mais simples a leitura
e a compreensão dos leitores. Exceção feita ao 11º que foi resultado do
desmembramento do canto X. Neste item, Barros tão somente dedica um capítulo
ao epílogo que já existe no poema, o que resultou para sua adaptação um desfecho,
um final estruturalmente mais bem-acabado, uma vez que conseguiu separar do
assunto do tópico anterior aquela imagem pueril do felizes para sempre com a qual
termina sua adaptação: “Acabaram assim as aventuras de Diogo Álvares, que viveu
ainda longos anos na companhia da fiel Paraguassu” (BARROS, 1958. p. 157).
No tocante ao texto literário de Barros, tem-se o tempo e o espaço inalterados, assim
como o enredo, as mudanças se dão basicamente no arranjo dos fatos. Melhor
dizendo, o autor atém-se ao que é essencial para a compreensão do enredo,
ocultando fatos menores e narrando-os na sequência que torne sua adaptação mais
istigante ao leitor. Aquele que, menos atento aos detalhes, findar a leitura não
perceberá o que falta em relação ao original. Por outro lado, uma leitura com mínimo
rigor perceberá que Barros retira de sua adaptação a matiz eclesiástica, atenuando
as passagens exageradamente cristãs, cujo discurso perde-se em moralizações
católicas e evangelizações catequéticas, sem perder com isso, entretanto, o apelo
mítico de algumas célebres passagens como a do delírio de Paraguaçu e sua
premunição sobre o futuro do Brasil.
Não é só do literário que se faz uma adaptação deste tipo. Existem outros fatores
que se devem ter em conta para dar cabo da tarefa. Em uma adaptação “[...]
devemos ressaltar a responsabilidade de quem realiza as reescrituras, uma vez que
essa atividade garante a sobrevivência e assegura a recepção das obras literárias

193
no sistema alvo” (GOMES, 2008. p.77). Ou seja, para se ter uma visão geral do
processo adaptativo, é importante saber quem é o adaptador, porque está
adaptando tal obra, em qual circunstância e para quem o faz. Respondendo as
essas questões é possível ter um panorama que explique os motivos e causas das
adaptações, assim como, o porquê sofreram as alterações que sofreram.
João de Barros, como dito anteriormente, foi uma figura de relevante destaque no
cenário educacional e político de Portugal no início do século XX, seu papel de
professor e de pessoa preocupada com a cultura são aspectos que poderiam indicar
que ao adaptar o Caramuru estivesse preocupado apenas com a cultura letrada,
mas ao saber que fez esta adaptação a pedido de uma editora como parte de uma
coleção maior de clássicos e que foi, evidentemente, remunerado por isso, mostra
que não foi escolha de Barros adaptar o épico nacional e sim um empenho
profissional que tinha um público específico a ser atingido. A importância de se
relevar tais aspecto se dá a medida que sendo outras as circunstâncias, muito
provavelmente, Barros produziria um outro tipo de adaptação.
Assim, sabe-se que o texto deveria privilegiar um público leitor ainda não maduro e
para tanto a adaptação deveria ser escrita em uma linguagem mais acessível, “[...]
correntia e fácil, que à gente moça e ao leitor mais ou menos culto prenda e cative
[...]” (BARROS, 1958. p. 9). Saem os versos, entra a prosa; sai a epopeia, entra uma
forma romanceada. Livre das características comuns do poema como as inversões
sintagmáticas, o texto adaptado ganha fluidez mais próxima da fala cotidiana, o que
propicia ao leitor menos preparado maior facilidade na leitura; soma-se a isso, a
óbvia atualização vocabular, usando termos mais simples e conhecidos pelos jovens
lusitanos dos anos 1935.
Ao optar em sua adaptação pela prosa, Barros está pensando em seu leitor da
primeira metade do século XX e tendo em mente que na época em questão o texto
seria recebido de maneira diversa àquela que o foi no século XVIII. Pensando como
Jauss poderia dizer que o texto original tendo sido publicado em 1781 foi pensado
para sua época, deste modo, é compreensível um poema épico aos moldes
clássicos camoniano, sua linguagem empolada, sua preocupação com a descrição
da fauna e da flora brasileira, seu tom ufanista e teológico que oscila ora entre o

194
discurso histórico bastante fiel aos fatos, ora pelo discurso religioso aceitável por vir
de um teólogo. Estes aspectos precisam receber as devidas atualizações para se
enquadrarem ao público-alvo da adaptação. Ainda segundo Jauss “[...] a análise da
experiência do leitor ou da ‘sociedade de leitores’ de um tempo histórico
determinado, necessita-se diferenciar, colocar e estabelecer a comunicação entre
os dois lados da relação texto leitor” (2002, p.73). Portanto, adaptar uma obra sem
considerar a época e o público que a receberá é prestar serviço no mínimo duvidoso
para a sobrevivência do original no panorama literário.
O bom adaptador é aquele que consegue ser original, sem tirar a qualidade
da primeira obra; oferece uma releitura sensível e particular, preocupando-
se com o público-alvo. O perfil do leitor é de fundamental importância já
que será este público que norteará a sua confecção, que auxiliará o
autor/adaptador a traçar métodos a serem adotados para a elaboração da
obra adaptada. (VIEIRA, 2010, p.33).

Outro item a se considerar são os personagens. Não há mudanças substanciais em


relação ao original, muda, contudo, a intensidade das caracterizações. O épico
duraniano é mais exagerado ao retratar os aspectos físicos e, embora tenha se
baseado em estudos, Durão abusa nos traços. Barros, por sua vez, atenua-os,
marcando-os apenas com o necessário para a caracterização do personagem,
preservando, entretanto, os aspectos que conferem certa mistificação a eles. Para
Diogo Álvares, seu herói, é na personalidade que ficam mais evidentes as
alterações. Enquanto no poema de Durão, Diogo Álvares é pintado como uma
criatura acima de qualquer outra, pleno das mais altas virtudes; na adaptação ele
não perde tais características mas elas são apresentadas como típicas do povo
português, como se Barros quisesse mostrar o quanto os lusitanos contribuíram,
também nos aspectos morais, para a formação do brasileiro. Sempre que possível,
Barros evidencia as qualidades de Diogo Álvares: “Diogo Álvares, o Caramuru, o
filho do Trovão, o Dragão do Mar, heróico português que pela inteligência dominara
a bárbara ferocidade dos selvagens [...]” (p. 56).
O tom ufanista não chega a ser estranho nem na adaptação, muito menos no
original. Pois, “quando se fala em epopeia, é imprescindível que se atente para a
nacionalidade do texto, uma vez que a produção épica, acima de outros tipos de
produções literárias, possui um caráter ou uma feição nacionalista mais evidente”

195
(SILVA; RAMALHO, 2007, p.285). Escrevendo para portugueses, nada mais natural
que exaltá-los.
Adaptador experiente e homem de cultura, João de Barros mostra nesta versão do
Caramuru que conhece os meandros e percalços para se transpor uma obra de
nacionalidade e época distintas. Teve todo o tempo em vista quem era seu público-
alvo e as intenções com a obra, podendo atualizar a linguagem e a narrativa do
épico duraniano para atender tais preocupações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A texto de Barros, portanto, é um bom exemplo de uma adaptação bem realizada.
Atualizou o original, garantindo sua sobrevida no cenário literário, conseguiu
alcançar o público-alvo a que se destinava e ainda pode ser encontrado em
reedições até hoje, evidenciando sua importância.
Para além disso, ter o Caramuru adaptado para outros formatos literários e para
outros públicos, assim como para o cinema e para a tevê, mostram a relevância da
obra e dão indicativos de que mereça ser revisitada pelos críticos hodiernos. Além,
evidentemente, de voltar aos bancos escolares de todos os níveis de ensino.
Ainda que alguns insistam em ver com maus olhos a imbricação da literatura com
outras mídias, o fato é que tal fenômeno, longe de ser recente, auxilia
consideravelmente a que a literatura atinja públicos que talvez não fosse possível
apenas pelas aulas de literatura nas escolas. O interesse pode se dar de várias
maneiras e a utilização das novas mídias, como os games e a internet, pode
despertar em jovens e adultos não muito afeitos aos livros, o interesse em ler
algumas obras despertado pela curiosidade. Talvez não fosse uma adaptação,
aquele leitor em potencial continuaria sem conhecer o original que foi transformado
em outro produto cultural.
Faz-se, então, necessário que obras esquecidas voltem a lume, seja por uma
adaptação, seja por estudos acadêmicos e que recebam a devida atenção dos
estudiosos atentos às tendências mais atuais dos estudos literários e culturais.

196
REFERÊNCIAS

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do Brasil. Lisboa: Sá da Costa – Editora, 1958. 3 ed.

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TEIXEIRA, Ivan. (Org.). Épicos. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
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VIEIRA, Gabriela de Oliveira. Adaptação para novos leitores: como a literatura


clássica adaptada fornecida às escolas de ensino público e utilizada pelos
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Monografia (Bacharelado em Biblioteconomia) – Universidade Federal do Rio
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WALTESIN, Dutra. O Arcadismo na poesia lírica, épica e satírica. In.: COUTINHO,


Afrânio (Dir.). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro, 1968. vol.1.

197
O CONCEITO DE AUTORIA NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA
– NEUROLINGUÍSTICA, LINGUAGEM E SUJEITO60

Dionéia Motta Monte-Serrat61


Introdução
Este trabalho foi desenvolvido a partir da preocupação de que as normas de
educação mudam e, apesar disso, os problemas de marginalização na educação
linguística não têm mudado ao longo dos anos. Reunimos o conhecimento teórico
da Neurolinguística, da teoria do Discurso (PÊCHEUX:1988) e da teoria do
Letramento (TFOUNI:1992, 2005) para propor que o conceito de autoria sirva de
base na construção de um olhar contemporâneo sobre a educação linguística, de
maneira que esse olhar se torne mais responsivo à complexidade que envolve o
tema.
Essa articulação teórica complexa e interdisciplinar é necessária para
desconstruir o olhar sistemático de processos de avaliação educacional
burocráticos, que não cumprem seu papel político na sociedade e que não estão
implicados com os sujeitos marginalizados.
Em nossa pesquisa de pós-doutorado, estudamos aspectos da educação
linguística de indivíduos com lesão cerebral. Esses indivíduos localizam-se numa
das extremidades do continuum discursivo (o qual vai desde o primeiro contato com
a escrita até a forma sofisticada do raciocínio silogístico) (Tfouni:2005): a
extremidade dos menos letrados.
O sujeito da linguagem ou do pensamento, seja ele portador ou não de lesão
ou disfunção cerebral, não pode ser observado de maneira sistemática, de maneira
isolada das operações que o estruturam. Em cada indivíduo desenvolvem-se,
diferentemente, processos e relações prévios, os quais são necessários à aquisição

60
Trabalho apresentado no 2° Congresso Nacional Letras em Rede – Mackenzie, agosto 2015.
61
Pesquisadora Colaboradora do IEL-UNICAMP, Doutorado Direto em Psicologia pela FFCLRP-USP,
Doutorado Sanduíche (CAPES-BEX 4394/10-0) na Université Sorbonne-Nouvelle, Paris (set/dez 2010, co-
orientador Prof. Jean-Jacques Courtine), Estágio na EHESS, Paris (fev. 2012, orientador Prof. Marcello
Carastro) (FAPESP 09/54417-4), Professora da Universidade de Ribeirão Preto, e-mail :
di_motta61@yahoo.com.br.

198
da linguagem e que com esta não se confundem. São nessas práticas
translinguísticas que a linguagem e o sujeito vão configurar apenas momentos.
Todos os processos e relações pré-signo e pré-sintáticos, estudados pela
Neurolinguística, se mesclam em um continuum que diz respeito à constituição do
sujeito; funcionam de modo sincrônico dentro do processo de significação do sujeito.
Esses processos (reforçamos: diferentes para cada sujeito) são impulsionados
dentro do campo da prática social, no qual o corpo é entendido como parte do
processo: impulsos de ordens distintas se conjugam indistintamente na prática que
envolve a significação.
O estudo desses elementos juntamente com as práticas de linguagem
(discurso oral e escrito) de crianças com hidrocefalia62, nos leva a considerar a
escrita e a fala delineando o modo como essas crianças percebem a realidade. Em
razão de sua afecção, elas são afetadas em sua capacidade de compreensão e de
expressão.
Uma avaliação abrangente da educação linguística deve comportar todos os
indivíduos, até mesmo aqueles que apresentam lesão cerebral. A inclusão social faz
parte de nossa preocupação e, como já afirmamos (Monte-Serrat: 2013), as
avaliações baseadas em sujeitos idealizados descartam aqueles que não se
encaixam em um padrão. Trazemos à discussão conceitos discursivos (Pêcheux:
1988) para tratarmos desse assunto de modo diferente da prática tradicional,
porque, nas palavras de Silva (2001), a escrita alfabética é um lugar culturalmente
instituinte de funções discursivas do sujeito.
Em lugar da abordagem quantitativa de dados, de testes baseados em um
indivíduo ideal, padronizado, impossível de corresponder à realidade, propomos a
observação do sujeito e vamos mais além: observamos sujeitos cujo corpo carrega
a afecção da hidrocefalia, que não é, portanto, um corpo idealizado. Esses sujeitos,
portadores de cérebro danificado, sentem, pensam e têm emoções, elementos que
podem e devem ser considerados na pesquisa e na avaliação da educação

62
Condição em que há acúmulo anormal do líquido cefalorraquidiano dentro da cabeça, provocando vários
sintomas e até mesmo lesão cerebral.

199
linguística. A abordagem discursiva63 dos dados de nossa pesquisa, além de não
higienizar os caminhos e desejos dos sujeitos observados, sustenta as pluralidades:
essa prática deixa para trás aquela avaliação quantitativa morta e transforma-se em
trabalho social efetivo. Essa perspectiva, denominada “avaliação qualitativa de
quarta geração” (CAMPOS&FURTADO: 2011) reforça a
importância de pensar as avaliações como atos de transformação do
mundo, práticas implicadas em descobrir para transformar, refutando os
estudos de prateleira em razão de seu sentido resfriador, silenciador e
paralisante para os sujeitos e as organizações (PATTON: 1997 apud
SILVA&BRANDÃO: 2011, 143).

Sujeito e sentido nas falas de crianças com dificuldades de aprendizado

O estudo discursivo recai sobre os processos de significação que se


constituem durante a enunciação do sujeito que, em razão da disfunção cerebral
que o afeta, tem dificuldade em fazer arranjos que selecionam e combinam palavras.
Quando se observa o dizer do sujeito, observa-se o modo particular com que ele
produz a significação, como ele se apropria da realidade e produz uma consciência
de si mesmo, de sua inserção no mundo e de suas relações com o outro. Esse
processo se dá de modo diferente no caso de nossa pesquisa64, em que
acompanhamos crianças hidrocéfalas. Mudam-se algumas condições de produção,
como, por exemplo, o fato de a criança com hidrocefalia não desenvolver o
raciocínio abstrato, não ter coordenação motora, não ter capacidade de avaliar o
decurso temporal etc. A discussão da aprendizagem dessa criança requer a
discussão sobre sua possibilidade de simbolização, pois aprender é interpretar,
produzir modos de significação, modos de conceber o mundo, as coisas e as
pessoas; aprender é entrar na realidade simbólica (PADILHA: 2000).

63
Abordagem discursiva diz respeito à prática regular de produção de texto oral ou escrito (Orlandi, 2008). Essa
prática envolve, de um lado, a dimensão jurídica da língua e sua efetividade social (Edelman, 1980, 15) e, de
outro, pode evidenciar o acontecimento (Pêcheux, 2002), ou seja, o deslocamento na estrutura discursiva que
faz vislumbrar um sujeito resistente à formação ideológica dominante (Monte-Serrat&Tfouni, 2012).
64
MONTE-SERRAT, D., Neurolinguística Discursiva e Letramento na inclusão social de crianças com afecção
denominada hidrocefalia, Pós-Doutorado, Linguística, IEL-UNICAMP, supervisão de Maria Irma Hadler
Coudry, 2015.

200
O que se observa, até o momento, é a prevalência de pesquisas na área das
dificuldades de aprendizagem que seguem um “saber-fazer”, ou seja, um modelo
ligado à antecipação metódica de projeto que tem a finalidade de gerar uma
realização técnica elaborada. Os resultados desse tipo de pesquisas têm caminhado
no sentido da marginalização no contexto escolar: em algumas vezes essa
marginalização pode ser verificada; em outras, surge sob o paradoxo da inclusão
dos excluídos (GUIMARÃES: 2002).
Esse “saber-fazer” como método de ensino linguístico baseia-se na lógica e
na razão; opera na forma de compreender as coisas estabelecendo proporções,
esquemas, fases de evolução. Trata-se de perspectiva de aprendizagem impositiva,
que exclui aquilo que é da ordem pessoal, e leva o olhar do pesquisador a recair
estritamente sobre o que é mensurável e verificável, colocando-o a observar apenas
condutas e desempenhos. Nesse caso, os modos particulares de produção de
significação são descartados.
A teoria da Análise do Discurso, de Michel Pêcheux, destaca que essa
posição de investigação cria uma descontinuidade no “saber” desenvolvido sob a
continuidade (PÊCHEUX&FICHANT: 1971, 9-10) e cria um novo espaço de
problemas “aperfeiçoado”, livre das questões não mensuráveis.

A avaliação linguística sob a perspectiva discursiva: neurolinguística,


linguagem e sujeito

Segundo as teorias da Análise do Discurso (PÊCHEUX: 1988) e do


Letramento (TFOUNI: 1992, 2005), propomos que a observação do pesquisador
tenha origem na perspectiva do “fazer saber” em lugar do “saber-fazer”. A
observação do pesquisador sob esse “fazer-saber” provoca a conexão de diversos
saberes em um olhar conjunto de discussão. Assim, em vez de se limitar a descrever
ou quantificar uma sintomatologia sobre as dificuldades na aprendizagem da língua,
o pesquisador coloca o foco sobre o sujeito, um a um, ao enunciar. Isso pode dizer
muito mais sobre o sujeito em sua relação com a língua: nesse momento é possível
observar o sujeito autor em constituição na cadeia discursiva.

201
A perspectiva discursiva proporciona um trabalho competente sobre a
linguagem da criança com deficiência no aprendizado: de um lado, permite a
compreensão de que modificações na linguagem provocam modificações no sujeito,
em sua relação com o corpo, com os seus semelhantes, com os objetos; de outro
lado, é capaz de considerar as lesões ou disfunções cerebrais como fatores que
provocam dificuldades no aprendizado da linguagem desse mesmo sujeito. Essa
inter-relação ocorre devido à articulação entre o processo de significação (que
envolve o corpo), a materialidade externa e a linguagem propriamente dita. A falta
de um cuidado atento à linguagem do indivíduo com disfunção nessa área faz com
que o corpo seja levado a um deslocamento o qual, por sua vez, provoca bloqueios
e, até mesmo, paralisação de funções. O investimento na educação linguística de
indivíduo com hidrocefalia 65 pode ser observado nos dados colhidos: se para essas
crianças, que se situam em um nível máximo de dificuldade de aprendizagem da
língua em razão de lesão cerebral, há sucesso na aprendizagem da escrita, esse
sucesso poderá ser estendido para todos os que têm demonstrado dificuldade na
educação linguística.
Por que trazemos a neurolinguística para discutir educação linguística? A
neurolinguística não pode ser ignorada nesse processo, justamente pelo fato de
abranger as relações pré-signo nas quais a linguagem e o sujeito configuram apenas
momentos. O corpo deve ser entendido como parte do processo de educação
linguística: é nele (carregue ou não disfunção) que impulsos de ordens distintas se
conjugam indistintamente numa prática que envolve a significação. Assim, sintomas
físicos (vômitos, irritabilidade, incapacidade de compreensão de conceitos abstratos
etc.) e sintomas psíquicos (comportamento antissocial e dificuldades no
aprendizado da língua) não podem ser desconsiderados do tema educação
linguística.

65
Fizemos, ao longo de dois anos, pesquisa de Pós-Doutorado com acompanhamento de crianças hidrocéfalas
no IEL-UNICAMP (supervisão da Profa. Dra. Maria Irma Coudry); no Departamento de Neurocirurgia
Pediátrica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP (colaboração do Prof. Dr. Hélio Rubens
Machado) e no Centro de Reabilitação do HC Criança, da FMRP-USP (colaboração da Dra. Carla Andréa
Tanuri Caldas).

202
A inter-relação de sujeito, linguagem e corpo para o estudo da educação
linguística dá abertura à observação de indivíduos não-idealizados, com disfunções
cerebrais ou, até mesmo, lesões cerebrais. Esses indivíduos passam a ser
observados não no que diz respeito a aspectos de “erro” e “acerto” em testes
abstratos, mas na articulação que fazem entre o processo de significação neles
constituído (o qual envolve o corpo com disfunção), a materialidade externa e a
linguagem propriamente dita. A ausência de atenção dos pais, cuidadores,
educadores e pesquisadores para aspectos da disfunção linguística, pode fazer com
que o corpo desses indivíduos seja levado a um deslocamento, que acarretará
bloqueios ou paralisação de funções.
Essas consequências danosas surgem porque algo da ordem da realidade (e
aqui nos referimos ao corpo que carrega disfunções) em que o indivíduo se insere,
interfere em seu desenvolvimento. Assim, particularidades do sujeito e de seu
contexto não podem ser ignoradas na educação linguística.
O problema de uma metodologia ideal (“saber-fazer”) para o aprendizado
linguístico é o de que, no caso de o sujeito sofrer de disfunção cerebral, este último
não alcançará a funcionalidade da letra, ficando impedido de se reconhecer no
espelho oferecido pela letra (BIARNÈS:1998). Nesse caso, não podemos prever de
qual estratégia o indivíduo se servirá para “ligar grafemas, fonemas e sentidos”
(BIARNÈS: 1998, 11). Como professores ou formadores, devemos resignar-nos a
não saber como o aluno chega à aprendizagem; devemos ter por missão a função
de criar espaços de aprendizagem, na qualidade de mediadores: é o mundo das
palavras que vai criar o mundo das coisas para esses sujeitos (LACAN: [1953]1998).

Autoria: encontrando um caminho para a viabilidade de ser

Na aprendizagem linguística, a ligação de fonemas, grafemas e sentidos,


realizada nos processos metafóricos e metonímicos, não remete a um movimento
autônomo da língua sobre si mesma, mas, sim, a um sujeito que emerge na cadeia
significante. A língua tem a função de captura do sujeito (Lemos: [2002]2012). É
nesse sentido que compreendemos o funcionamento discursivo dos eixos

203
metafórico e metonímico da linguagem como lugar de constituição do sujeito,
permitindo que ele signifique outra coisa para além do que [o] significou. É sob esse
processo de autoria que propomos a observação da educação linguística do sujeito
com disfunção cerebral. Embora possa haver dificuldade na aprendizagem,
conseguimos colocar nossa atenção no sujeito que se constitui e, não, no que ele
fez de “certo” ou “errado”.
Esse caminho de observação está na contramão daquilo que regularmente se
faz em termos de pesquisa, pois estas últimas partem de um sujeito como causa,
origem da articulação escrita ou oral de um enunciado.
A perspectiva discursiva por nós utilizada faz com que descartemos o sujeito
como causa (lugar que dá sentido a algo) e observemos a função enunciativa do
sujeito, apreendida em sua relação com o corpo que carrega uma disfunção e com
um campo de objetos. Essa perspectiva, segundo ensina Foucault [(1969)1983],
abre um conjunto de posições subjetivas possíveis (autoria), em vez de fixar seus
limites.
Os enunciados carregam um valor singular do sujeito que enunciou, como uma
assinatura que traz unicidade e coerência de seu criador (FOUCAULT:
[(1969)1983]).
Vejamos agora um texto de R., menina de 13 anos com má formação no corpo
caloso e hidrocefalia. R. aprendeu a ler e escrever no CCAzinho, IEL-UNICAMP.
Acompanhamos R. ao longo de dois anos.

204
No texto acima R. faz um texto solicitado pela professora da escola que
frequenta. A tarefa é a de que o aluno escreva sobre seu sonho. Podemos observar
na imagem que a professora coloca “ok” no início do texto e acrescenta a frase de
que é “bacana seu sonho”. No entanto, manda R. refazer a tarefa, baseando-se
numa suposta transparência da palavra “sonho”, que remeteria ao sonho que temos
quando dormimos. O enunciado de R. diz respeito ao sonho como desejo, àquilo
que almeja no sentido de sentir-se incluída, sonhando aquilo que as crianças de sua
idade sonhariam. Avaliada segundo critério de sujeito idealizado, R. deve refazer a
tarefa. Por que não avaliá-la segundo o critério de autoria, em que enunciações
parceladas fazem rede produzindo sentido? Segundo lição de Tfouni (2005), quando
existe autoria perde-se a ilusão de transparência da linguagem; há controle da
dispersão e da deriva; novos sentidos são instalados com o recorte do fluxo de
significantes em outros lugares que não os previstos pelas normas da língua.

205
Conclusão
A educação linguística não pode ser avaliada somente por meio de testes
abstratos. Ela deve abarcar a relação da linguagem com o funcionamento do
sistema nervoso interagindo com um corpo que não se reduz ao biológico, já que a
linguagem também é corpo (LACAN: [1953]1998).
A linguagem materializa, torna observável, o processo pelo qual o indivíduo
organiza os significantes e interpreta o mundo à sua volta. Mesmo que esse
indivíduo apresente disfunção cerebral e dificuldades na utilização da linguagem,
não pode ser marginalizado. Devemos investir na sua educação linguística, o que
impedirá um “estilhaçamento” desse sujeito.
O acompanhamento linguístico sob a articulação da neurolinguística à teoria
discursiva será capaz de promover modificações rítmicas, lexicais, sintáticas, a fim
de que se coloque em ordem a cadeia significante na produção oral ou escrita dos
sujeitos com disfunção cerebral. Como a interação linguística bem sucedida atua na
estruturação da subjetividade, há estímulo do funcionamento discursivo, que, por
sua vez, desencadeará função protetora em relação a patologias.
A atenção dispensada a aspectos neurolinguísticos da criança com disfunção
cerebral refletirá sobre o funcionamento do processo de significação, de maneira
que possa desenvolver características de autoria tanto no aspecto de apropriação
da língua (escrevendo e falando dentro das normas), como no aspecto subjetivo
(escrevendo e falando de modo a não haver dispersão nem deriva, uma vez que a
criança se compreende como sujeito no contexto em que está inserida). Desse
modo poderá haver a unidade do sujeito de que fala Foucault [(1969)1983], sob a
forma de uma coerência e, não, de mera avaliação de regras da língua: é a
imaginação criativa do sujeito que se impõe, ordenando e coordenando o conteúdo
expressado, sem se dispersar em regras impostas de fora para dentro. O sujeito,
nesse processo, condensa significados que fazem parte de sua experiência, num
movimento que funde categorias que fazem parte da sensibilidade (OSTROWER:
2013).

206
Referências
BIARNÈS, J., O ser e as letras: da voz à letra, um caminho que construímos todos,
In Revista da Faculdade de Educação- USP, vol. 24, n. 2, jul/dez, São Paulo, 1998.

CAMPOS, R&FURTADO,J., Desafios da avaliação de programas e serviços em


saúde, Ed. Unicamp, 2011

FOUCAULT, M., Qu’est-ce qu’un auteur?, conferência pronunciada na “Sociedade


Francesa de Filosofia” em 22 de fevereiro de 1969, publicada na revista francesa
Littoral, n. 9, Paris: Eres, tradução de Márcia Gatto e Clarice Gatto, 1983.

GUIMARÃES, E., Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da


designação. Campinas, SP: Pontes, 2002.

LACAN, J., Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953), In


______, Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LEMOS, C., Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação, In Cadernos


de Estudos Linguísticos, v. 42, 2002, IEL-UNICAMP. Acesso em 13 de outubro de
2012. Disponível em

http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/cel/article/view/1599/1178

MONTE-SERRAT, D., Letramento e discurso jurídico, Biblioteca Digital de Teses e


Dissertações da Universidade de São Paulo:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/59/59137/tde-14032013-104350/

OSTROWER, F., Acasos e criação artística, Ed. Unicamp, 2013.

PADILHA, A.M., Bianca. O ser simbólico: para além dos limites da deficiência
mental. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, UNICAMP, 2000. Acesso em
03 de março de 2014. Disponível em

http://www.vigotski.net/ditebras/padilha.pdf

PATTON, M.Q., Utilizaton-focused evaluation: the new century text, 3ª Ed.


Thousand Oaks, Sage Publications, 1997.

PÊCHEUX, M., Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio,


Campinas: Ed. Unicamp, 1988.

207
PÊCHEUX, M.; FICHANT, M., Sur l’histoire des sciences, Paris: Maspero, 1971.

SILVA, M., Alfabetização, escrita e colonização, In História das ideias linguísticas,


Ed. Unemat, 2001

SILVA, R.&BRANDÃO, D., Nas rodas da avaliação educadora, In CAMPOS,


R&FURTADO,J., Desafios da avaliação de programas e serviços em saúde, Ed.
Unicamp, 2011

TFOUNI, L. V. Letramento e analfabetismo. Tese de Livre-Docência, FFCLRP-USP,


Ribeirão Preto, 1992.

_____, Letramento e alfabetização, São Paulo: Ed. Cortez, 2005.

208
DO TRÁGICO AO TRAGICÔMICO: AS MEDEIAS DE CALDERÓN DE LA
BARCA, FRANCISCO DE ROJAS ZORRILA E ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA

Eduardo Neves da Silva66

Não foram poucos os autores que retomaram, dentro de suas


particularidades estéticas e estilísticas, o mito de Medeia e Jasão. Entre tais autores
encontram-se os nomes de Apolônio de Rodes, no século III a. C, Píndaro e
Eurípedes, no século V a.C, na Grécia; além de Lucius Annaeus Sêneca, século I
d.C, no mundo latino. Entre os séculos XVII e XVIII, o francês Pierre Corneille
(1635), os espanhóis Lope de Vega (1622), Calderón de La Barca (1636), Francisco
de Rojas Zorrilla (1645) e o luso-brasileiro Antônio José da Silva (1735) também
recuperaram, a seu modo, as peripécias do mito medeico. Cabe destacar aqui,
porém, que os três últimos dramaturgos supracitados — principalmente Antônio
José da Silva — destoam dos demais autores, entre outros aspectos, no que se
refere à inserção do elemento cômico na reconstituição da matéria fabular. Na
“Jornada Primeira” de Los tres mayores prodigios, de Calderón, a personagem
Sabañon é a responsável pelos lances cômicos da peça; em Los encantos de
Medea, de Rojas Zorrilla, o mesmo ocorre em relação ao gracioso Mosquete; e em
Os encantos de Medeia, de Antônio José da Silva, o mesmo se dá com o
personagem Sacatrapo. Partindo especialmente do da análise das três obras
supracitadas e com o cotejo entre estas e a tradição clássica, realizamos um
inventário e uma interpretação crítica a respeito das alterações temáticas e formais
operadas pelos autores ibéricos, as quais permitiram a transformação do registro
trágico para o registro tragicômico do referido mito.
Concorrem para essa transformação, entretanto, não apenas a adição da
comicidade, restrita fundamentalmente aos graciosos, mas também o uso
inflacionado dos recursos espetaculares, isto é, efeitos visuais tais como nuvens,
dragões que cospem fogo e montes movediços. Esses recursos espetaculares são
típicos do universo sociocultural do Barroco, do qual fazem parte Calderón de La

66 Doutorando em literatura portuguesa pela FFLCH-USP

209
Barca, Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva, ensejando, desse modo, novas e
enriquecedoras releituras de mitos greco-latinos, as quais contribuíram
sobremaneira para a evolução da comunicação teatral.
Se nos dramaturgos da antiguidade greco-romana, nomeadamente,
Eurípedes e Sêneca, as peripécias de Jasão e Medeia pertenciam exclusivamente
à esfera do trágico; nas peças dos autores barrocos mencionados, o
reaproveitamento do mesmo mito se dará em chave tragicômica. Lembremos que,
enquanto na tragédia antiga tinha-se a representação da ação de personagens
superiores (reis, nobres, deuses, semideuses), e na comédia, a representação de
ações cotidianas levadas a efeito por personagens inferiores, tais como criados e
servos; na tragicomédia ocorre, como o próprio nome sugere, o acoplamento do
trágico e do cômico, burlando-se, desse modo, a fixidez das normas aristotélicas. A
tragicomédia mais antiga de que se tem notícia é a peça Anfitrião (século II a.C), de
Plauto, cujo prólogo forneceria as bases teóricas do novo gênero. Diz o autor latino
na voz do personagem Mercúrio: “não creio que seja justo fazer uma comédia de fio
a pavio quando nela intervêm reis e deuses. Pois quê?! Já que há nela, também,
um papel de escravo, vou fazer tal e qual como disse: uma tragicomédia” (PLAUTO,
1986, p.20).
A tragicomédia, no entanto, seria mais desenvolvida na teoria e na prática
apenas a partir do século XVI. Dentro do contexto ibérico, pode-se citar dois
importantes textos que versam sobre o tragicômico: Filosofia antigua poética
(Epístola Nona), de 1526, de Alonso Lopéz Pinciano, de influência aristotélica e
horaciana; e, já no século XVII, Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, de
1609, de autoria do dramaturgo espanhol Lope de Veja (1562-1635), o qual, se
distanciando das preceptivas clássicas, pregava também a mistura entre os
gêneros: “Lo trágico e cómico mezclado/y Terencio con Séneca, aunque sea/como
otro Minotauro de Pasife/harán grave una parte, otra ridícula, que aquesta variedad
deleita mucho” (VEGA, 2006). Neste famoso texto, Lope de Vega admite que a
mistura entre o elevado e o vulgar tem em vista o agrado ao público, porque é este
quem financia a arte teatral.

210
No caso da recriação do mito de Medeia por parte de Calderón de la Barca,
Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva, é importante notar que a especificidade da
obra destes autores ao se valeram de um conteúdo mítico que o teatro clássico
consagrou como tragédia e a transformarem em peças tragicômicas. De fato, a
tradição teatral de representação do mito medeico concentrava-se em Eurípedes e
Sêneca, com suas tragédias de mesmo nome Medeia, ao final das quais, a cruel
feiticeira perpetra o crime bárbaro do filicídio. Vejamos, doravante, como se dá essa
transformação.
Em que pesem as diferenças entre as duas obras, o argumento das peças
de Eurípedes e de Sêneca pode ser sintetizado da seguinte maneira: Medeia quer
se vingar do seu esposo Jasão, porque este irá se casar com Creúsa, filha de
Creonte, rei de Corinto. Nativa da ilha de Iolcos, Medeia deve ser expulsa
imediatamente de Corinto, mas antes, ardilosamente, apela a Creonte que a deixe
ficar mais um dia para se despedir dos dois filhos que tivera com Jasão. A feiticeira
se aproveita desse meio tempo para executar sua vingança, enviando um presente
mortal a Creúsa e assassinando as duas crianças degoladas. Em seguida, foge num
carro alado enviado pelo deus Sol.
Calderón, Rojas Zorilla e Antônio José da Silva distanciaram-se dos dois
tragediógrafos mencionados não só pela inserção do cômico na recriação do
referido conteúdo mítico, mas também por direcionar seu foco na representação da
aventura dos argonautas e no protagonismo de Jasão. Se em Eurípedes e Sêneca,
tal ação é exposta apenas pela narração ou menção no diálogo dos personagens,
os três autores ibéricos a transformaram em ação dramática.
A peça Los tres mayores prodigios, de Calderón de la Barca, compõe-se de
três jornadas. A “Jornada primeira” diz respeito à conquista do velocino de ouro por
Jasão; a “Jornada segunda” representa a história de Teseu e Ariadna; e a “Jornada
terceira” refere-se à busca de Hércules por Dejanira67. Importa-nos aqui, portanto,
apenas a “Primeira jornada”. Até onde sabemos, Calderón seria o primeiro a incluir
comicidade na fábula envolvendo Jasão e Medeia, embora Lope de Vega, com sua
peça El vellocino de oro, de 1622, tenha tratado liricamente da aventura dos

67 Para este trabalho, valemo-nos da edição de A. Valvuena Briones (1991).

211
argonautas e da refreida relação amorosa, fechando a história com a fuga do casal
da ilha de Iolcos, ou seja, sem sequer vislumbrar o acontecimento trágico que
envolveria a morte das crianças e de Creúsa.
Tal como em Lope de Vega, a história de Medeia e Jasão na peça de
Calderón encerra-se com a conquista do velocino de ouro. Na peça de Zorrilla, o
enredo se dá quando Jasão, casado com Medeia, envolve-se com Creúsa; em
Antônio José da Silva, há a conjugação desses dois fatos, ou seja, na primeira parte
da peça ocorre a chegada de Jasão à ilha de Iolcos (onde se passará toda a ação),
e a conquista do velocino graças aos feitiços de Medeia. Na segunda parte da peça,
a ação se concentra no triângulo amoroso Medéia/Jasão/Creúsa, sendo que a
primeira, ao descobrir que está sendo enganada pelo argonauta, começa a
antagonizar-se com o casal. Aqui, Jasão não fugirá com a feiticeira, mas quase
consegue se safar levando o carneiro de ouro e Creúsa. Sendo assim, não há
sequer filhos de Jasão e Medeia. Esta, ao ser rechaçada por todos, inclusive por
seu pai, o rei Aetes, fugirá numa nuvem pela imensidão dos céus.

Nas peças de Calderón, Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva os


personagens graciosos, todos criados de Jasão, possuem nomes pitorescos que
ensejam trocadilhos ou ditos engraçados. Sabañón (frieira, em português), em Los
tres mayores prodígios; Mosquete (tipo de arma, em português), em Los encantos
de Medea; e Sacatrapo (instrumento para tirar a bucha das armas de fogo), em Os
encantos de Medeia.
É digno de nota ainda que os recursos cômicos presentes nas peças barrocas
em questão adquiriram maior relevo conforme a cronologia de tais obras, vale dizer,
a personagem graciosa fora adquirindo mais destaque, mais diálogos e maior
participação no andamento do enredo. Na peça de Antônio José da Silva,
Sacatrapo, além de personagem adjuvante, é verdadeiro reflexo deformado de seu
amo Jasão, ocasionando, assim, um espelhamento entre o casal discreto (sério)
Jasão/Creúsa e o casal gracioso (cômico) Sacatrapo e Arpia, criada de Medeia.
A “ópera” joco-séria Os encantos de Medeia de Antônio José da Silva,
apresenta não só o título idêntico ao da peça de Rojas Zorrilla, mas também detém

212
uma forte proximidade formal e temática com Los encantos de Medea. Nas duas
peças, os graciosos têm maior destaque que o personagem cômico da peça de
Calderón. A comicidade, nesse caso, é marcada pela fala paródica dos criados em
relação à fala dos amos, pelos jogos de linguagem e ditos populares, pela covardia
desmedida dos graciosos, pela metateatralidade, pelo latim macarrônico, dentre
outros aspectos.
Cotejando-se a personagem Medeia de Zorrilla e de Antônio José da Silva
com as de Eurípedes e Sêneca, nota-se que os autores barrocos mantiveram a
personalidade ardilosa e vingativa da feiticeira, embora ocorra certa hesitação ao
executar sua vingança, o que, de outro modo, também ocorre em alguns momentos
na Medeia de Eurípedes, quando a personagem se lança ao assassínio dos filhos.
Na peça de Antônio José da Silva, depois que Medeia arremessa um raio contra a
nau Argos, a personagem se arrepende e chama o raio de volta, para não ferir
Jasão, deixando, porém, que a tempestade por si mesma se encarregue da
vingança. A referida ação ocorre quase identicamente em Los encantos de Medea.
Comparemos os dois momentos. Primeiro na peça de Rojas Zorrilla, na qual o raio
vai preso a um foguete (cohete):
Medea: (...) Rayos de esa obscura carcel,
de esse opaco calabozo
salgan que la Nave abrasen;
pero no, rayo, detente,
y en esa Region errante,
como en tu centro te fixa
Pasa un cohete por um cordel.
Vuelve á baxar, no dispares
Amenazadoras lanzas
de tu fuego penetrante.
Vuelve el cohete (ROJAS ZORRILLA, 1792, p.7).

E agora na peça de Antônio José da Silva:


Medeia: (...) Ó Prosérpina, ó deidades furibundas da lagoa Stígia,
movei os elementos todos, para castigar a um fementido traidor! Raios, saí
dessas nuvens e abrasai aquela nau.
Escurece-se o teatro com trovões e sai um raio de cima, que irá
para o navio.
Medeia: Mas não, não, raios! Não abraseis a Jason; basta que me
abrase a mim o raio de amor.
Torna o raio para onde saiu (SILVA: 1956, p.88).

213
Estes efeitos são apenas um pequeno exemplo da espetacularidade
investida nas peças de Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva. Em Los encantos de
Medea, os recursos de maquinaria teatral usados na representação de nuvens
voadoras transportando personagens, fogos de artifício presos por cordões em
forma de raios, um dragão que cospe fogo, atestam um tipo de teatro baseado no
puro maravilhamento. Antônio José da Silva não só repete praticamente todos esses
mesmos efeitos visuais, mas também acrescenta outros, colocando sobre o palco a
nau Argos em pleno mar, além de árvores que dançam. Nesse sentido, o
comediógrafo inflaciona o texto espetacular até as últimas consequências, de modo
a enriquecer e complexificar ainda mais a comunicação teatral. Lembremos que as
“óperas” joco-sérias de Antônio José da Silva eram escritas para marionetes, e este
dado não pode ser menosprezado, pois que, indiscutivelmente, os efeitos visuais no
palco se tornam mais exequíveis quando se tem em vista a representação feita por
bonecos.
A própria escolha dos títulos nas duas peças (Los encantos de Medea/Os
encantos de Medeia) reforça a ideia de se destacar o apelo espetacular pretendido
pelos autores, uma vez que há uma evidente ênfase nos atributos mágicos de
Medeia, de modo a exigir intenso trabalho das maquinarias teatrais nas
representações. A título de reforço teórico, cabe aqui citar um trecho do verbete
sobre tragicomédia presente no Dicionário de teatro, de Patrice Pavis (2005):
“Enquanto a tragédia clássica é respeitosa com as regras, a tragicomédia (...) se
preocupa com o espetacular, com o surpreendente, com o barroco, para dizer tudo”
(p.420).
No caso da obra de Rojas Zorrilla, o que se pode por em xeque, entretanto,
é a pertinência da representação do assassinato dos filhos de Medeia e Jasão, ou
melhor, a exposição no palco das duas crianças mortas. Se Antônio José da Silva
deu um tratamento mais leve à malsucedida história de amor entre a feiticeira e o
argonauta, excluindo assim qualquer referência ao cruel filicídio, o mesmo não fez
Rojas Zorrilla com sua peça de 1645. Quase ao fim de Los encantos de Medea, a
didascália nos força a imaginar uma descoberta atroz e medonha: “Corre Jason la
cortina, y halla degollados los dos niños” (Jasão corre a cortina e encontra os dois

214
meninos degolados, tradução nossa). Se Sêneca, ao contrário de Eurípedes,
também pôs em cena o morticínio das crianças, a inclusão do filicídio e a exposição
dos cadáveres nos parecem um tanto excessivo, não condizendo com o tom
tragicômico que atravessa quase toda a peça do dramaturgo espanhol, uma vez que
a tragicomédia, em princípio, deve sempre acabar bem, ao menos, sem grandes
sofrimentos para os personagens ou para a plateia.
Se por um lado a peça Os encantos de Medeia de Antônio José da Silva é
tributária à de Rojas Zorrilla em muitos aspectos de fundo e forma; por outro lado, o
comediógrafo brasileiro soube equilibrar mais sabidamente o trágico e o cômico,
espelhando ações elevadas e as ações inferiores, o que significou dar maior relevo
dramático para o gracioso, que a assume a função de alcoviteiro (ajuda Jasão a
conquistar Creúsa) e cujas falas deleitam o público ao transbordar naturalidade de
linguagem, desmascarando muitas vezes o artificialismo e a dissimulação de seus
amos. Além disso, Antônio José da Silva soube como nenhum outro sintetizar
dramaticamente dois episódios diversos, embora interligados, quais sejam, a
conquista do velocino de ouro e o triângulo amoroso entre Jasão, Creúsa e Medeia.
No que tange ao caráter trágico de Os encantos de Medeia, este se resume
como ação séria realizada por personagens de extração elevada. O pathos
(sofrimento) de tais personagens nunca é catártico demais, ou seja, nunca chega a
provocar o horror do público, embora possa causar-lhe alguma piedade. A dor
trágica na peça de Antônio José da Silva se identifica com um sofrimento amoroso
causado ou pelo ciúme (chamados de zelos) de Medeia, que será usada por Jasão
com o fito de que ela o ajude, através de seus feitiços, a conquistar o velocino de
ouro.
Na última cena da peça do autor luso-brasileiro, a única personagem a quem
é negado o happy end é Medeia, sem que haja, no entanto, nenhum derramamento
de sangue ou infelicidade maior, e, além disso, com os pares românticos
devidamente estabelecidos sob as bênçãos do rei.
Como conclusão da nossa análise, pode-se afirmar que a tragicomédia
barroca, em sua dimensão dramatúrgica e espetacular, difere-se do teatro greco-
latino ao menos em dois aspectos. O primeiro deles é o seu forte apelo cênico e

215
visual, o que fica patente pelas didascálias das peças barrocas; o segundo aspecto
é a noção de trágico, que já não pertence à mesma natureza do que ocorria nas
obras gregas. Isso ocorre, em grande medida, pela ausência do decaimento do herói
nas tragicomédias (happy end) e pela presença da comicidade levada a efeito pelos
personagens cômicos, que dividem a cena com os personagens sérios.
Naturalmente, o efeito trágico buscado nas peças clássicas já não correspondia aos
anseios do público do barroco dos séculos XVII e XVIII, levando a que os
dramaturgos dessa época alçassem ao primeiro plano o gosto popular em
detrimento das preceptivas de cunho aristotélico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALDERÓN DE LA BARCA, Don Pedro. Los tres mayores prodigios In:______.


Obras completas. Tomo II. Nueva edición, prólogo y notas de A. Valbuena Briones.
Madrid: Aguilar, 1991. p.1547-1589.

PAVIS, Pavis. Dicionário de teatro. Tradução de Jacó Guinsburg e Maria Lúcia


Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2005.

PLAUTO. Anfitrião. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. 2ª edição, corrigida


e aumentada. Coimbra: Instituto de Investigação Científica, 1986.

ROJAS ZORILLA, Francisco de. Los encantos de Medea: comedia famosa.


Salamanca: Imprenta de la Santa Cruz, 1792. Disponível em:
https://archive.org/details/losencantosdemed00roja

SILVA, ANTÔNIO JOSÉ DA. Os encantos de Medeia. In: Obras completas. Prefácio
e notas do Prof. José Pereira Tavares. Lisboa: Sá da Costa, 1957. Volume II.

VEGA, Lope de. Arte nuevo de hacer comedias (1609). Edición de Enrique García
Santo-Tomás. Madrid: Cátedra, 2006.

216
ROCK AND ROLL: LEVEZA NA POESIA DE RESISTÊNCIA DE
RENATO RUSSO

Elisângela Maria Ozório68

Breve contextualização do rock and roll

O rock and roll é um gênero musical originário da cultura norte-americana,


expandindo-se às demais nações por meio da forte influência que os Estados
Unidos da América têm sobre o mundo. Entretanto, o gênero não foi só bem aceito
mundialmente por causa da influência política daquela nação, mas porque, em seus
acordes dissonantes, os jovens encontraram uma maneira de contrariarem a
sociedade em que viviam: uma sociedade estadunidense estabelecida em duas
vertentes, nos idos de 1950: uma formada pelos brancos que usufruíam do auge
capitalista e outra, pelos negros e por brancos pobres da área rural do país,
relegados ao esquecimento.
Como os negros não possuíam os mesmos conceitos morais dos brancos ricos,
suas músicas exploravam o jogo corpóreo-vocal, uma vez que tendiam para a
representação da vida cotidiana do negro numa sociedade seccista. O negro
cantava os fortúnios e os infortúnios da vida nas músicas, isto é, não era estranho
para essa divisão social a abordagem sexual ou capitalista nas letras e nos gestos
das danças que executavam.
O ritmo das músicas, classificadas em jazz, blues, rhythm and blues, country e
jump band jazz, instigou os filhos dos brancos que logo passaram a cantarolá-lo e a
espalhá-lo por todo o território. Dessa forma, a fusão dos ritmos originou uma nova
vertente: o rock and roll. Foi essa vertente mais bem aceita pelos adolescentes
brancos. Ou seja, provindo da hibridização de diversos gêneros musicais negros, o
rock iniciava a vida, resistindo ao comportamento tradicional da sociedade. Os
brancos se viam como os senhores da virtude e da razão, em contrapartida,
segregavam a população em classes sociais derivadas da cor da pele. Isso

68
UNESP/IBILCE

217
significava rejeição total pela cultura paralela dos negros. Do outro lado, a população
branca resguardava a imagem puritana, condenando o corpo físico ao ostracismo.
O corpo era a fonte de todo o pecado carnal e utilizá-lo para o desenvolvimento do
prazer era condenável pelas instituições tradicionais. Todavia, os puritanos
executavam, na realidade, posturas diversas da pregada: os chefes de família
tinham amantes e, em algumas situações, as esposas fiéis também tinham
amantes.
Os jovens brancos notaram as incongruências da sociedade puritana e a
recusaram. Eles não queriam ser iguais seus pais. E acharam no ritmo negro rock
and roll a escapatória da real sociedade. Os jovens começaram a ouvir uma música
que provocava não só a dança, mas a dança sensual:
A opressão não advinha apenas dos ambientes políticos e mercadológicos,
mas dos próprios ideais construídos pelas pessoas antigas que viam nos jovens
apenas um período de transição, por isso, esses jovens encontraram no rock o
meio de afirmarem suas liberdades de expressão. Daí a busca da liberdade de
criar seu sistema e a marca de sua identidade (BRANDINI, 2004, p. 16).

Apesar do caráter contestatório e identitário do rock and roll, a música ainda


não havia desenvolvido o canto de resistência, pois letra e melodia não se chocaram
na recriação da sociedade ou na denúncia das mazelas sociais. Apenas na segunda
fase é que o rock começa a trilhar o caminho junto às letras de protestos. A
resistência torna-se mais forte e o movimento deixa de ser um ritmo estritamente
negro ou norte-americano, pois ingleses adentram a música e, na sequência, o
mundo. O rock transpõe os limites territoriais e começa a observar o mundo, começa
a refletir sobre os problemas do homem moderno: “mesmo politicamente engajados,
os cantores folk se limitavam a recolher temas do cancioneiro tradicional que se
pudessem aplicar a situações da sua época” (MUGGIATI, 1985, p. 60).
As músicas folk foram avivadas pelo rock da segunda geração, já que, em suas
raízes, há uma retratação do cotidiano das pessoas comuns. Tal cotidiano foi
ampliado para os centros urbanos e o rock introduziu à retratação as composições
de protestos a partir da conscientização e da denúncia dos problemas sociais
inerentes no dia-a-dia de qualquer cidadão das metrópoles.
Além da incorporação das letras de protestos, os acordes receberam
elaboração, o comportamento dos cantores modificou e a letras não eram mais

218
meros acompanhamentos sonoros. A música não era somente sensação e, sim,
reflexão: “Preste atenção nas letras, cara” (Bob Dylan. Apud: FRIEDLANDER, 2008,
p. 132). Todavia, como tudo que ganha vasta parcela de adeptos, o rock and roll
deparou-se com o próprio declínio. A música alcançou a massa popular,
consequentemente, teve seus acordes modelados pela indústria fonográfica. Os
cantores e a gravadoras enriqueceram e as músicas perderam o caráter
contestatório. O objetivo inicial de rejeição à sociedade cedeu espaço para o agrado
da população acomodada. O rock atingiu grandes vendagens e esqueceu-se do seu
teor de resistência.
Porém, como o rock é uma música que se reinventa muito bem com novas
realidades, ele recupera-se na geração seguinte. Essa recuperação chamou-se de
punk, cuja tradução é uma gíria inglesa para o termo lixo. Surgido no final da década
de 70, o movimento punk simplifica os acordes outrora sofisticados pelos guitarristas
adeptos anteriormente, brutaliza as letras (o mundo é rústico com o proletário que
não tem futuro, o “no future”, o lema punk) e coloca, finalmente, o corpo em sua
plenitude na audição da música. O corpo, antes fonte de prazer, é vilipendiado por
cantores e ouvintes. O corpo é a expressão cruel da sociedade pobre e
marginalizada, mas o jovem a resiste e a agride com a mesma intensidade com que
é tratado.
Não obstante, o punk resgata um dos elementos da poesia primitiva: “A poesia
primitiva é uma poesia de caráter coletivo porque representa os anseios da
coletividade e está intimamente ligada ao modus vivendi dessas comunidades”
(SPINA, 2002, p. 15). O punk rock, como a música primitiva, (re)construiu a falta de
perspectiva do jovem proletário num futuro melhor, transformando-se num brado
ansiado dos problemas do coletivo juvenil e pobre.
O movimento punk chegou ao Brasil num momento em que o país retomava os
passos rumo à democracia. Todavia, o que pareceu a conquista da tão sonhada
liberdade, após o regime ditatorial, transformou-se na acomodação da sociedade e
na corrupção escancarada da política brasileira. O brasileiro havia tornado-se num
sujeito sem perspectivas de melhora, de sonhos. Mas, os jovens continuavam a
buscar a própria liberdade, o próprio prazer, a própria identidade. Essa situação

219
favoreceu a aceitação do movimento punk pelos adolescentes brasileiros, que
viram, na música, a chance de falarem abertamente sobre os problemas individuais
e sociais do seu cotidiano.
Não diferente desses jovens, Renato Russo partilhou dos ideais punk e trilhou a
trajetória artística com influências diretas das letras e dos acordes dissonantes e
agressivos da vertente punk do rock and roll. Por causa disso, era esperado que
Renato Russo fosse apenas mais um letrista do rock nacional. No entanto, Renato
Russo tornou-se um poeta dos jovens, um poeta do cancioneiro brasileiro. Renato
Russo criou e recriou mundos, sonhos, amores e corrupções em suas canções. A
melodia encontrava-se, novamente, como decorrera com a música popular
brasileira, com a letra, formando o canto poético do cotidiano do homem comum:
A presença de empresários sensíveis à dimensão estética do produto, muitas vezes
procedentes do meio artístico, é fenômeno corriqueiro das áreas de direção e
decisão do mercado fonográfico. Ao mesmo tempo que concentram seus esforços
nos lançamentos explosivos, esses agentes reconhecem que por trás das
manifestações efêmeras da maior parte de seu cast algo de sólido deve permanecer
nem que seja como garantia à preservação dos números já conquistados. Trata-se,
na verdade, da permanência de conteúdos profundamente arraigados na
comunidade que independem dos caprichos da moda ou mesmo das exigências
juvenis: em qualquer época, precisamos celebrar encontros, lamentar as
separações, anunciar e denunciar situações, retratar o lirismo e a estética do
cotidiano etc (TATIT, 2008, p. 232).

O canto de resistência de Renato Russo celebrou o dia-a-dia do homem


social e urbano da contemporaneidade. Ele denunciou os problemas da sociedade
e comentou as dúvidas do homem solitário, sobretudo, porque “o mal do século é a
solidão”.

Renato Russo e o canto poético de resistência

Alfredo Bosi discorre sobre o modo como a poesia se desmembra em diversas


formas de criação escrita, porque a poesia é uma produção inerente à sociedade,
prevalecendo-se, pois, atual. Não obstante, uma das produções poéticas da
sociedade é a poesia de resistência.
A poesia de resistência surge do engajamento sócio-político do poeta que
recusa a realidade coletiva do grupo inserido. Ou seja, a poesia de resistência inicia-

220
se a partir de duas manifestações históricas: a repressão e o sistema capitalista.
Insatisfeitos com a repressão ditatorial dos poderes políticos, a poesia de resistência
encontra, nas metáforas, maneiras de denunciar os abusos, bem como propõe um
novo mundo, um mundo no qual a liberdade do homem social é assegurada acima
de qualquer coisa.
No caso do sistema capitalista, não há diferenciação notável no tratamento com
o indivíduo, porque o capitalismo é um estado velado de repressão humana. O
capitalismo, em sua sobrevivência, depende do acúmulo de bens materiais,
reduzindo a capacidade humana à aquisição de mercadorias que, geralmente, são
desnecessárias ao bem-estar do homem. A poesia de resistência tende a desnudar
os ideais capitalistas ao indivíduo, conscientizando-o de sua essência tanto física
quanto psíquica. O homem consciente questiona a realidade e procura outro mundo:
Na verdade, a resistência também cresceu junto com a “má positividade” do
sistema. (...) A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos
correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto
oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-
esgar, a auto-desarticulação, o silêncio. O grito deve se “um grito de alarme”, (...).
Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em meio hostil ou
surdo, não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente
possível de existir no interior do processo capitalista. (BOSI, 2008, p. 165).
Em Renato Russo, a poesia de resistência encontra, na música rock and roll, a
expressão da rejeição do mundo real e capitalista:
Geração Coca-Cola
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados
Dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas chegou nossa vez –
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês

Somos os filhos da revolução


Somos os burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.

221
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil de aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser?
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis.

Geração Coca-Cola denunciou o sistema capitalista a partir do uso de uma


marca de refrigerantes norte-americana, Coca-Cola, expressando que, nos anos
iniciais da ditadura militar brasileira, as multinacionais estrangeiras, principalmente,
estadunidenses, invadiram menos o mercado do país. Em contrapartida, a geração,
nascida na década de 60 e jovem na década de 80, teve seu crescimento
bombardeado por propagandas ou mercadorias dessas empresas. O capitalismo
norte-americano invadia os costumes brasileiros, por isso, Renato Russo a
cognominou de geração coca-cola.
Contudo, a geração coca-cola não estava satisfeita. Ela, então, delatou e
recusou as maneiras de dominação: “Desde pequenos comemos lixo/ Comercial e
industrial”. Representando as empresas multinacionais, o lixo era adquirido pela
nova sociedade brasileira, que lhe creditava essencialidade. Contrário à
sobreposição dos produtos estrangeiros, a canção convocou o ouvinte na
conscientização e na recriação do outro mundo, por causa disso, convocou o ouvinte
para participar da revolução: “Mas agora chegou nossa vez-/ Vamos cuspir de volta
o lixo em cima de vocês”.
Além da agressividade dos versos e de palavras de baixo calão na poética da
música, a resistência efetivou-se na canção quando a melodia apresentou uma
harmonia, ou desarmonia, bruta, violenta, dissonante. O cantor parecia berrar a
composição e a melodia atacava o ouvinte. Tudo lembrava uma revolução e, como
toda revolução, as pessoas eram estimuladas por meio de gritos: “Somos os filhos
da revolução / Somos os burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação”.
Na última estrofe, a canção demonstrava os caminhos percorridos para saber
como por fim na invasão capitalista. A revolução objetivava a derrubada dos “reis”,

222
as multinacionais, e “Fazer comédia no cinema com as suas leis”, com as regras do
capitalismo norte-americano. O verso final era uma ironia sobre a cultura dos
Estados Unidos da América. A revolução acabaria com a invasão e ainda a contaria,
nas telas do cinema, satirizando a cultura capitalista.
A resistência tem muitas fases. Ora propõe a recuperação de sentido comunitário
perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena
defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de
Rosseau); ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da
sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia).
Nostálgica, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando. O que
ela não pôde fazer, o que não está ao alcance da pura ação simbólica, foi criar
materialmente o novo mundo e as novas relações sociais, em que o poeta recobre
a transparência da visão e o divino poder de nomear. Só a Revolução (BOSI, 2008,
p. 167).

Alfredo Bosi salienta que a poesia de resistência descobre espaços de


expressão através do caos repressivo da sociedade. Mediante isso, ela reinventa-
se a cada realidade, atravessando as normas rígidas para apresentar novos
caminhos para o homem. Os novos caminhos, muitas vezes, percorrem três passos:
a denúncia da sociedade, a defesa da repressão e, por fim, a criação do espaço
perfeito a ser compartilhado pelo grupo, pela comunidade. O espaço perfeito, quase
sempre, orienta-se pela utopia:
no nível mais profundo, um e outro poema enraizam-se no imaginário que desde
sempre inconscientemente povoou a mente do homem ocidental; pelo menos é
possível neles identificar a vontade de reconquistar o paraíso perdido, ou de chegar
a uma terra outra, futura, onde o indivíduo poderá ser mais feliz do que é, pois
prisioneiro, aqui e agora, de um mundo injusto e cruel, vivendo dentro dos limites de
uma rotina insatisfatória, restritiva e desprovida de encantos (BERRINI, 1997, p. 21)

Nessa construção do espaço utópico, o poeta da resistência contrasta dois


mundos: o real, e cruel, X o ideal, logo, perfeito. Os mundos contrastantes ocorrem
mesmo quando a poesia parece trabalhar somente com o mundo real, pois, para
falar da realidade, é preciso conhecer a possibilidade do mundo perfeito, do mesmo
modo, é o caminho do perfeito, isto é, o poeta só constrói a utopia se identificar o
real.
No caso da poesia de resistência russiana, há um desvelar da sociedade
moderna brasileira e uma demonstração do brado de liberdade: a revolução. O
brado de Geração Coca-Cola buscava a revolução dos jovens para edificarem um
novo Brasil, um Brasil perfeito e nacionalista, onde a prevalência do capitalismo

223
seria nacional, não mais multinacional americana, por isso, em Geração Coca-
Cola, o brado revolucionário não se restringia à composição escrita. Ele abarcava
também o prolongamento musical. A partitura se uniu à letra, formando o canto
poético.
Diante disso, a agressividada da canção estava presente na melodia, na letra e
na voz. A voz agredia o outro e o convocava a partilhar da realidade e da revolução.
O canto resgatava o interesse coletivo outrora da poesia primitiva, bem como
devolvia a liberdade do corpo que, na participação do canto poético russiano, se
desamarrava da opressão do capitalismo.
A participação do canto coletivo em Geração Coca-Cola e na obra de Renato
Russo entregava ao jovem a leveza utópica da poesia, uma vez que, segundo Ítalo
Calvino, a literatura tende a buscar a leveza das coisas, mesmo quando essa
aparenta trabalhar apenas com o peso:
Gostaria de propor a seguinte: no mais das vezes, minha intervenção se traduziu
por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas,
ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à
estrutura da narrativa e à linguagem (CALVINO, p. 15, 2009).

A busca de Calvino, em retirar o peso das coisas para fazer literatura, é uma
constante na sua produção literária, pois literatura e poesia são escritas da leveza,
da possibilidade de encontrar o outro que complemente a si mesmo, de encontrar,
muitas vezes, um outro mundo. Um mundo diferente do real, porque o mundo real
constitui-se de peso.
Retornando ao canto poético de Renato Russo e aproveitando-se da ideias de
Calvino, sua poesia de resistência revelava o lado pesarozo da realidade humana e
brasileira, recriando os hábitos cotidianos do homem comum:
Hoje não estava nada bem
Mas a tempestade me distrai
Gosto dos pingos de chuva
Dos relâmpagos e dos trovões

O fragmento da música Esperando por Mim iniciava com uma constatação do


peso da realidade humana “Hoje não estava nada bem”. O peso traduziu-se no
homem comum, que não se sentindo bem, fascinou-se pela tempestade: havia

224
tristeza, escuridão e alegria. O recorte representava o peso do mundo real, a tristeza
e a escuridão do não estar bem. Todavia, de acordo com Calvino, a poesia se faz
da leveza, logo, o trecho mencionado também proporcionou a imagem da leveza: a
alegria de observar a tempestade.
O recorte da canção aclara o binômio calviniano leveza X peso, pois o peso da
realidade encontrava-se na declaração “Hoje não estava nada bem”; entretanto,
havia alguma leveza que o retirasse do peso: a tempestade. É interessante notar o
tratamento dado à tempestade; já que a chuva é uma imagem poética, geralmente,
associada à tristeza, à dor, ao medo, à escuridão. Na canção, a tempestade
iconizava a fuga da realidade, porquanto “a tempestade me distrai”. A fuga do real
era a leveza da poesia proposta por Calvino.
Ademais, a complexidade dos fenômenos naturais da tempestade ocasiona
gotículas de água, clarões e sons dos relâmpagos, sendo que nenhum desses
traços fenômicos transpunham uma imagem leve e frágil, muito menos, pesada;
mas uma imagem leve e complexa, porque os traços dependem de toda uma
organização física da natureza para existirem. Dessa forma, Calvino explica a
complexidade inerente na leveza, citando Paul Valéry: “É preciso ser leve como o
pássaro, e não como a pluma” (CALVINO, 2009, p. 28), porque o voo do pássaro é
leve e complexo, enquanto a pluma é pesada devido a sua brevidade. Renato Russo
transformou o peso da tristeza na liberdade das emoções, representando a leveza
da tempestade, já que a chuva, igualmente o pássaro, só ocorre devido a um
complexo mecanismo físico. Os pingos d’água não são leves como a pluma, uma
vez que esses existem graças ao fenômeno natural, enquanto a pluma é apenas um
despreendimento da complexidade do pássaro.
Destarte, a melodia iniciava agressiva, o canto impunha-se e não havia quase
espaço para a respiração; contudo, a partir do trecho exposto, a canção sofria uma
suavidade na voz. A voz tomava outro rumo, o abrandamento impressionava pela
falta de reação, porque “não estava nada bem” e a tempestade o retirou do mal-
estar.
A dor aguda do verso “Hoje não estava nada” se esvaiu, conforme a progressão
da tempestade. Os versos se acentuavam novamente na palavra “trovões” porque

225
permitiram uma nova realidade: o bem-estar que se segue após a chuva: “Hoje a
tarde foi um dia bom”.
A voz ascendia-se a partir dos “trovões”. Sua força aumentava e a tempestade
abrandava-se. O céu desanuviou-se, não estava mais cinza. A esperança, o outro,
retornou ao canto poético. Mas, a voz não se encerrou na perfeita harmonia. Ela
ganhou, mais uma vez, o peso da realidade: “No silêncio eu não ouço meus gritos”.
A canção era presenteada, ao final, com as lágrimas da dor e a certeza de que o
homem se afirmou no mundo, como observação de Paul Zumthor (2005, p. 69):
Hoje à tarde foi um dia bom
Saí para caminhar com meu pai
Conversamos sobre coisas da vida
E tivemos um momento de paz
É de noite que tudo faz sentido
No silêncio eu não ouço meus gritos
E o que disserem
Meu pai sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Minha mãe sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Meus verdadeiros amigos sempre esperaram por mim
E o que disserem
Agora meu filho espera por mim
Estamos vivendo
E o que disserem
Os nossos dias serão para sempre

As repetições das expressões “E o que disserem” e “sempre esteve esperando


por mim” concediam a imagem lacrimal da certeza de ter vivido e de estar no mundo.
Sua existência fora esperada e, de tão esperada, o consolo surgia da eternidade de
que “Os nossos dias serão para sempre”.
Por conseguinte, vale lembrar Octavio Paz quando diz que a poesia é um cosmo
no qual as dúvidas humanas, os temores e os defeitos da sociedade são iconizados
para proporcionarem a fraternidade nas pessoas. Esperando por Mim iconizava a
complexidade humana e o desejo do homem de se afirmar no mundo, num mundo

226
de caos. Esse homem era um anti-herói, mas também, o homem real que procurava
o outro para completar a si mesmo, o homem que se complementava quando estava
certo de que não estava sozinho, pois todos esperavam por ele.
Espelho da fraternidade cósmica, o poema é um modelo do que poderia ser a
sociedade humana. Diante da destruição da natureza, mostra a irmandade entre os
astros e as partículas, as substâncias químicas e a consciência. A poesia exercita
nossa imaginação e assim nos ensina a reconhecer as diferenças e a descobrir as
semelhanças. O universo é um tecido vivo de afinidades e oposições. Prova vivente
da fraternidade universal, cada poema é uma lição prática de harmonia e de
concórdia, embora seu tema seja a cólera do herói, a solidão da jovem abandonada
ou o naufrágio da consciência na água parada do espelho. A poesia é o antídoto da
técnica e do mercado. A isso se reduz o que poderia ser, em nosso tempo e no que
chega, a função da poesia. Nada mais? Nada menos (PAZ, 1993, p. 147).

Renato Russo exercitou a imaginação do ouvinte que, na linguagem músico-


poética do rock and roll, era o ser participante e, portanto, ativo da criação dos
mundos – real e ideal. Esperando por Mim era a exemplificação dessa imaginação.
Se atentar para os últimos versos, o herói de Paz é, aqui, o homem comum do
cotidiano das grandes cidades. Tal herói era “sincero” e “cínico”, mas era o ser que
encontrava na família e nos amigos a harmonia do mundo. A certeza de que todos
sempre estiveram “esperando por mim”. “Os nossos dias serão para sempre”
reiterava a eterna espera e reafirmava a importância de estar no mundo, de
reinvindicar “a totalidade do meu lugar” (ZUMTHOR, 2005, p. 69), desse modo, o
canto poético transformou-se na “prova vivente da fraternidade universal” (PAZ,
1993, p. 147). O ouvinte participante comungava com o cantor/poeta a poesia.
Ambos comungaram e sentiram a liberdade da opressão do real; ambos
alcançaram, por meio do corpo- físico, da voz, da audição a plenitude da alma. O
homem, enfim, fundiu-se no ser único composto de corpo e alma.
“Na situação performancial, a presença corporal do ouvinte e do intérprete é
presença plena” (ZUMTHOR, 2007, p. 68). A situação performancial zumthoriana
estava no canto poético de resistência de Renato Russo, canto este compartilhado
com o ouvinte. Quando ouvinte e cantor se encontravam na canção, eles se
incorporavam num único ser, um ser coletivo. O coletivo deparava-se com a
plenitude da humanidade.

227
Referências Bibliográficas

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228
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____________. A tempestade ou O Livro dos Dias. Manaus: EMI, 1996.

229
O DIA DOS PRODÍGIOS: IDENTIDADE (FEMININA) GERMINAL

Elisangela Nogueira 69

Introdução

Pensar os processos identitários envolve não apenas a identificação de um


indivíduo pelos outros (a atribuição externa de uma identidade), mas também os
processos através dos quais esse mesmo indivíduo constrói uma concepção de si
próprio. Com isso, acredita-se no surgimento da possibilidade de criação de um
“self” nos diferentes contextos.
Assim, refletir sobre a identidade feminina pressupõe usar como ponto de
partida essa concepção de reconhecimento de um “self”; no entanto, pode-se
considerar ainda, como advertiu Ana Margarida Nunes de Almeida em Entre o dizer
e o fazer: a construção da identidade feminina que “a identidade da mulher constrói-
se na relação familiar com os outros – o marido e os filhos – e, nesse território
privado que é a casa, ela “governa a vida”. Ser esposa e depois tornar-se mãe é
percorrer e completar as etapas de uma carreira familiar já prevista.” (ALMEIDA,
1986, 499) Nessa carreira, ao lado de um marido ou de outra figura masculina, se a
mulher não estiver em matrimônio (situação em que está implícito um “arrumar-se”
na vida), ela provavelmente estará submetida a uma autoridade que pode aparecer
concentrada na figura masculina. Isso sugere uma relação de subalternidade,
proibição e repressão da mulher em relação ao homem e, diante das circunstâncias,
a mulher acaba aceitando passivamente essa situação.
Dentro desse espaço doméstico, mesmo que inconscientemente (e a
despeito dessa repressão em razão da imposição masculina), a mulher constroi
certo poder. Ainda de acordo com Ana Margarida Nunes de Almeida em Entre o
dizer e o fazer: a construção da identidade feminina:

A mulher adquire, pela prática, uma autoridade permanente, regular e


contínua sobre o funcionamento da unidade doméstica e os
comportamentos familiares; através de conselhos, sugestões e uma
vigilância discreta, orienta e estimula modelos de conduta dos filhos –

69 Faculdade Eça de Queirós

230
atuando menos pela repressão direta (como o marido) do que pela
sugestão; é de certa maneira um poder que não se sente, porque
constantemente atua na discrição dos meandros de uma tomada de
decisão. É sobretudo um poder de que não se fala, silenciado e invisível
no discurso comum. (ALMEIDA, 1986, 503)

Tendo em mente esses pressupostos, descobrir e explorar as representações


com que as mulheres constroem a sua identidade, ou seja, pensar a identidade
feminina levando em consideração a maneira pela qual a mulher fala de si própria,
é a principal intenção desta investigação. E o corpus que auxiliará nesta tarefa é
constituído pelo primeiro romance de Lídia Jorge: O dia dos prodígios (1980).
O primeiro romance suscita uma série de questões de interesse no sentido
de, por meio da análise das personagens, investigar como ocorre o processo de
construção da identidade feminina. Acredita-se que, já a partir do título do romance,
a autora pode sugerir como transcorre a vida no vilarejo fictício de Vilamaninhos,
onde a ação se passa, e como se desenvolvem as relações naquele lugar.
Em primeira instância, convém reportar-se ao sentido denotativo do vocábulo
“prodígio”, presente no título da obra. De acordo com Houaiss, a palavra possui
quatro definições: “1. Acontecimento que é ou parece estar em contradição com as
leis da natureza; 2. Coisa ou fato extraordinário; maravilha, milagre; 3. Pessoa que
apresenta alguma habilidade ou talento; 4. Que ou o que possui excepcional
inteligência ou talento para a sua idade” (HOUAISS, 2001, 2304).
Ao observar o ambiente de Vilamaninhos, é pouco provável que a definição
de número quatro se enquadre entre as características dos aldeões, já que não se
trata de uma comunidade de pessoas com algum grau de esperteza, safas. Já a
acepção de número dois parece se adequar mais às características do povo da
aldeia, que, em dois momentos, se depara com fatos que, do ponto de vista deles,
são extraordinários. O primeiro quando ocorre o episódio da cobra, que no
imaginário daquele povo, se transforma em dragão, alça voo e desaparece
misteriosamente. O segundo, quando surgem no vilarejo soldados fardados num
carro de guerra, sem darem nenhuma explicação plausível, do ponto de vista dos
aldeões, sobre quem eles, esses soldados, eram e de onde vinham.
O episódio da cobra que aparece no vilarejo e desaparece sem deixar rastros
pode ser um exemplo de acontecimento extraordinário. Aparentemente, trata-se de

231
uma simples cobra, mas, quando os aldeões mencionam o desaparecimento dela,
criam em torno desse fato uma atmosfera sobrenatural, capaz de transformar a
serpente numa espécie de mito. Eles ainda criam uma expectativa de que, em algum
determinado momento, alguém virá para explicar o desaparecimento dessa
estranha cobra alada, e esse sentimento vai sendo cada vez mais alimentado ao
longo da narrativa.
A aparição da cobra como ente sobrenatural se mostra bastante oportuna
para os aldeões mergulharem neste "mundo transfigurado" e ainda proporciona uma
vivência nesse "Tempo prodigioso", marcado pela circularidade, no sentido de não
apresentar projeção de passado e futuro, e pela estaticidade, de maneira que
revivem aquele mesmo evento, no mesmo tempo. Como se os camponeses
estivessem inseridos num tempo estático, numa espécie de vivência interna, no
tempo interior.
Isso se pode notar pelo comportamento dos aldeões, que parecem não se
orientar pela racionalidade e ainda viver numa espécie de mundo delimitado, que
talvez possa ser caracterizado como arcaico. Nesse tipo de sociedade (e
mentalidade) "arcaica", de "pensamento selvagem" (LEVI-STRAUSS, 1976), as
práticas da escrita e das técnicas modernas não são cumpridas, por isso, na maioria
das vezes, essas sociedades baseiam suas atividades e suas tradições na
oralidade. De fato, na comunidade de Vilamaninhos a comunicação se estabelece
basicamente de forma oral, pois grande parte dos aldeões são semianalfabetos.
Esse tipo de sociedade “concebe o mundo que a cerca como um microcosmo.
Nos limites desse mundo fechado começa o domínio do desconhecido, do não
formado” (ELIADE, 1991, 34). No caso do texto de Lídia Jorge, ele oferece ao leitor
pistas de que há, na aldeia, um desconhecimento no que se refere ao que está
externo à vila, o que pode contribuir para o não desenvolvimento da consciência
daqueles aldeões. Trata-se de uma aldeia em condições precárias em vários
aspectos (cultural, político, social) e isso já pode ser observado na forma como ela
é descrita geograficamente: “no meio do redondo mais íntimo sempre fica
Vilamaninhos, colado às esferas pelas bordas da terra, cozida de quietude.
Mansidão" (JORGE, 1984, 35).

232
Eliade também admite que há relações íntimas existentes entre o mito em si
e o tempo, porque o mito é capaz de fornecer revelações sobre a estrutura do tempo.
Sendo assim,

um mito narra acontecimentos que se sucederam in principio, ou seja, “no


começo”, em um instante primordial e atemporal, num lapso de tempo
sagrado. Esse tempo mítico ou sagrado é qualitativamente diferente do
tempo profano, da contínua e irreversível duração na qual está inserida
nossa existência cotidiana e dessacralizada. (ELIADE, 1991, 54)

Em outras palavras, pode-se supor, então, que o mito acontece em um tempo


que transita por um espaço infinito de tempo, um tempo incapaz de ser medido.
Nesse caso, como observou Eliade,

um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual,


cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente, no
Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não
ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma
ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para
o Grande Tempo, para o Tempo Sagrado. (ELIADE, 1991, 54)

Esse caráter cíclico do tempo acompanha a ambientação mítica e é tratado


por Massaud Moisés (1985), em A criação literária. Prosa, como tempo metafísico
ou mítico, estando ligado a um tempo ontológico, no qual o importante é refletir sobre
o ser. Trata-se, ainda de acordo com Moisés, do “tempo de todos, não de um
indivíduo, tempo da Humanidade, quando era só corpo fundido às coisas do Mundo,
tempo reversível em circularidade perene, tempo primordial, [...] tempo sacro, tempo
eterno, sem começo nem fim”. (MOISÉS, 1985, 109)
Assim, constata-se que a ação se passa num passado remoto. Isto parece
dar sentido à vida dos que habitam em Vilamaninhos, pois, de certa forma, estão
alheios ao mundo, perdidos num ponto do passado, afastados, cada vez mais, do
presente histórico. O episódio em que os soldados adentram o vilarejo a fim de
colocar os aldeões a par da Revolução dos Cravos pode evidenciar quão afastados
estavam do presente histórico.
Sob o ponto de vista histórico, a Revolução causou em Portugal uma grande
transformação nos diversos setores políticos, econômicos e sociais. No que
concerne a Vilamaninhos, observa-se que a revolução não teve o mesmo efeito,

233
pois se trata de uma vila do interior do Algarve que parece não ter evoluído na
mesma proporção em que as transformações ocorreram em Portugal. Ao contrário,
a aldeia permaneceu estagnada e sem perspectiva de progresso. Em síntese, a
maneira como o povo de Vilamaninhos percebeu a revolução mostra que estavam
alheios ao mundo que os cerca.
Nesse ambiente propício à estagnação, ao pouco desenvolvimento no que
se refere ao conhecimento do mundo exterior ao vilarejo e, possivelmente, à
formação de uma identidade, as personagens se mostram propensas ao não
reconhecimento de si. Pelo que a narrativa mostra, acredita-se que isso ocorre com
toda a comunidade de Vilamaninhos, mas, com as personagens femininas, essa
falta de consciência de si parece se evidenciar. Talvez pelo fato da mulher ser
considerada, de acordo com a visão da sociedade patriarcal (sociedade vigente na
época em que se passa o romance), inferior em relação à figura masculina, o que
pode ser observado pelo modo como a narrativa se apresenta e, prioritariamente,
pelo comportamento das personagens.
As linhas de O dia dos prodígios são habitadas por certas personagens que
merecem destaque na narrativa. Há indícios de que se trata de personagens
estereotipadas e que talvez possam ser consideradas representantes das classes
oprimidas portuguesas. Essa impressão se instala a partir do reconhecimento de
que se trata de um universo formado essencialmente por mulheres, e também pela
época em que se passa a narrativa (época da ditadura salazarista, em que as
mulheres eram classificadas como seres menores estabelecendo uma relação de
dependência com a figura masculina e, consequentemente, vivendo momentos
intensos de opressão).
Naquele época, como afirma Manuela Tavares em Feminismos: percursos e
desafios (2011, 131), “o sofrimento dessas mulheres ia-se apaziguando com as
cartas que chegavam por correio, mas o tempo de espera era demasiado [...] O
regresso era aguardado com muita ansiedade, mas as tensões acentuavam-se no
retomar da vida em comum”. Diante dessa situação, as mulheres, sem alternativa,
acabavam exercendo não somente as funções dentro do lar, mas também fora dele.

234
Em se tratando de O dia dos prodígios, grande parte das mulheres que
habitavam a aldeia exerciam também trabalhos braçais, nos campos, para
garantirem o sustento próprio e também o da família. Cada uma desenvolvia, a sua
moda, as suas funções dentro e/ou fora do espaço doméstico. Umas eram mais
comedidas e centradas nas tarefas do interior da casa, outras, mais proativas,
responsabilizavam-se pelos trabalhos externos, plantio e colheita, para garantir o
abastecimento da vila. Importante dizer que, pelo que mostra a narrativa, todo tipo
de trabalho era desenvolvido basicamente pelas mulheres, porque os homens que
ali estavam não tinham condições para desenvolvê-lo.
Pode-se considerar, em primeira instância, sobre as personagens, que
parece possível dividi-las em dois núcleos. O primeiro grupo parece estar
caracterizado por um nível de consciência inferior. Neste se podem incluir as
personagens Jesuína Palha, o casal Esperancinha Tereza e José Jorge Junior, e os
demais personagens que habitam o vilarejo, divisão baseada nas atitudes e
posicionamentos que essas personagens tomam diante dos acontecimentos
sucedidos no vilarejo.
O segundo grupo se compõe de personagens que se mostram num estágio
de consciência um pouco mais elevado em relação ao primeiro, no qual se podem
incluir as personagens Branca Volante, Carminha Parda e Carminha Rosa, e
Macário. Esse indício de elevação no nível de consciência parece estar associado
a ações específicas praticadas por essas personagens - o bordar e o limpar,
respectivamente, - ações consideradas tipicamente femininas e ainda constituem
atividades essencialmente intuitivas, que convidam ao mergulho na interioridade e,
consequentemente, a um desenvolvimento, mesmo que involuntário, de uma
consciência de si. Acredita-se que, talvez, Carminha Rosa (mãe de Carminha
Parda) possa ser inserida neste grupo porque convive com o drama de ter se
relacionado com o padre da cidade (Carminha Parda é fruto desse relacionamento)
e, pelo que se nota, não sente vergonha por isso.
Macário, embora não esteja inserido no rol das personagens femininas,
merece atenção especial porque, assim como Branca e Carminha Parda, exerce
uma atividade manual, toca violão e, além disso, canta e compõe. Macário se

235
mostra, na narrativa, como um artista, poeta e, por meio da composição de poesias,
acredita-se que há possibilidade de um mergulho no seu íntimo e um provável
reconhecimento de si. Pelo que parece, essa personagem se apresenta dotada de
uma inquietude que seria própria daqueles que, ainda que vivendo num universo
diferenciado, se destacam por um olhar iluminado.
No primeiro grupo de personagens, José Jorge Junior e Esperancinha Tereza
formam um casal que parece simbolizar a estagnação e o arcaísmo que no vilarejo
se instala. Isso pode ser notado pelo comportamento dessas personagens. Para
José Jorge, Esperancinha praticamente não existia; já ele, na sua própria visão, era
ainda dotado de boas qualidades.
Na realidade, a maior ocupação de Esperancinha, para não dizer a única, era
primeiro parir filhos e depois cuidar deles. A mulher de José Jorge não o ouvia.
Enquanto ele estava envolto nas lembranças dos seus antepassados, ela voltava
sua memória para a lembrança do nascimento dos filhos. Eram verdadeiros
monólogos que se caracterizavam como discursos totalmente solitários. Mas,
mesmo estando com sua mente ocupada por outros pensamentos, Esperancinha
estava ali, diante de seu marido, de corpo presente, supostamente ouvindo as
histórias de José Jorge, porque jamais poderia deixar de obedecer a ele.
Pelo que parece, indiretamente, José Jorge contribui para que Esperancinha
mergulhe no próprio interior e faça uma revisão de si, pois de acordo com Clark e
Holquist em Mikhail Bakhtin (1998) o indivíduo só se constitui na relação com o
outro. A relação que se estabelece entre o casal, embora seja de subalternidade
(José Jorge manda e Esperancinha obedece) parece proporcionar a ela a
possibilidade de visita ao seu íntimo e também pode ser o indício de que talvez
possa haver, não exatamente naquele momento, mas quem sabe posteriormente,
uma possível conscientização de si.
Nesse universo, prioritariamente liderado por mulheres, Jesuína Palha se
mostra uma líder, cuja função é cuidar e zelar por todos da aldeia. O núcleo liderado
por ela abrange a comunidade de modo geral, e Jesuína se vale desse poder para
estigmatizar as Carmens por considerá-las pecadoras, a mãe ex-amante de um
padre e a filha fruto desse ato proibido.

236
Embora se mostre líder da comunidade, Jesuína não demonstra ter
consciência de seu discurso, portador de certas nuances de incompreensão dos
fatores sociais, políticos e culturais condicionantes. Assim como os outros, ela não
tomou conhecimento do acontecimento histórico (Revolução de 1974) que deveria
envolver toda a sociedade portuguesa. Esse desconhecimento os mantêm
distanciados da realidade que os cerca, alheios ao exterior à vila, todos os
habitantes, não somente Jesuína.
Em razão dos fatos, Carminha Rosa e Carminha Parda (mãe e filha,
respectivamente) foram julgadas e condenadas pelos habitantes de Vilamaninhos.
Apesar desse mau julgamento, trata-se das personagens, juntamente com Branca
Volante e Macário, que aparentam um nível de consciência mais evoluído em
relação às outras. Macário acaba sendo enquadrado no rol dessas personagens
(mesmo sendo uma personagem masculina) porque deixa transparecer uma alma
feminina, pelo seu modo de agir diante de Carminha Parda, deixando transparecer
uma mentalidade pouco machista se comparada às outras personagens
masculinas.
Para se livrarem desse estigma e pelo desprezo que os aldeões lhes infligem
em razão da condição das duas, que consideram pecaminosa, mãe e filha vivem
trancadas em casa, mal transitam pelo vilarejo. Carminha, a filha, ocupa-se em
limpar constantemente as janelas, como se quisesse limpar de si as impurezas por
sua filiação.
A única maneira, na visão de Carminha Rosa e Parda, de se livrarem dessa
desonra seria esperar que viesse alguém de fora, um homem, para casar-se com a
filha e levá-la para longe dali. Mas acabam percebendo que somente no interior do
vilarejo, rodeadas pelos outros habitantes e em comunhão com eles, talvez
conseguissem transformar o vilarejo e, consequentemente, os que ali habitavam.
Carminha Parda acaba descobrindo que a solução não viria de fora, está ali
mesmo, dentro do vilarejo, na figura de Macário, o aluado cantor-jogral da vila, que
sempre fora apaixonado por ela e, por isso, casa-se com ele. Ela compreende que
a mudança de espaço não traria a solução para seus problemas; seria necessário

237
que ocorresse uma transformação interna e cada habitante do vilarejo tem sua
parcela de responsabilidade nesse processo.
No núcleo das personagens com um nível de consciência um pouco mais
elevado apresenta-se Branca Volante, que vive em matrimônio com Pássaro
Volante. A dedicação de Branca aos filhos, ao marido e aos trabalhos relativos ao
lar preenche a totalidade de suas horas livres. Pássaro Volante impunha a sua
autoridade e não permitia que ela afastasse os seus pensamentos dos afazeres do
lar, e ela obedecia

porque se alguma coisa faltasse fazer, e as escamas do dragão


crescessem. Ah dedinhos, Branca estaria a esquecer-se dos seus deveres,
e forçoso seria fazê-la lembrar. Cinco dedos estampados na pele. Não era
para doer. Era mais a marca e lembrança. (JORGE, 1984, 36)

Além de ser submetida ao poder masculino e desrespeitada em seus direitos


de ser humano e livre, Branca ainda era associada a uma “mula”, pois ambas, mula
e mulher, são insolentes, loucas e também, perversamente, misteriosas e cínicas.
No princípio, Branca não passa de uma substituta da mula do marido; até a
descrição de ambas se assemelha: “Branca vista de frente parece uma lagarta,
porque “Os olhos fecharam-se de vermelho e inchaço de lágrima. Mas de lado
parece uma erva de folha fina” (JORGE, 198(JORGE, 1984, 36) [...] Contudo, vista
de frente e de lado, a mula era “redonda e manteúda, o pêlo ruivo e brilhante”.
(JORGE, 1984, 36)
Branca não era submetida somente aos abusos que seu marido lhe infligia,
mas também era subtraída de seu próprio corpo, de sua própria voz: “E eu mais do
que submissa, acobardada. Caladinha” (JORGE, 1984, 35). Diante dessas
circunstâncias, Branca parece não ter alternativa, restando-lhe continuar submissa
e manter-se numa condição servil. Na visão de Pássaro, para que isso se
perpetuasse, Branca teria que ocupar todo e qualquer tempo que lhe restasse livre:
por isso Pássaro impôs-lhe o bordado. Desse modo, “Branca Volante passaria as
tardes com o espírito além das parreiras” (JORGE, 1984, 35), sem ter tempo de
afastar os seus pensamentos dos afazeres do lar. Mesmo assim, Pássaro temia o
que se passava no espírito, pois era certo que isto ele “nunca poderia medir nem
calcular” (JORGE, 1984, 35).

238
Branca limita-se a sofrer o mau tratamento que recebe do marido, mas o faz
enquanto borda um dragão no centro de uma colcha de linho cru, à semelhança de
Penélope na longa espera do marido Ulisses, que tinha ido guerrear em Troia. No
mito, Penélope era apaixonada por Ulisses e, para não ter que casar-se com outro,
lança mão de um artifício, o bordado, para ganhar tempo, ainda esperançosa do
regresso de Ulisses. Penélope alegou que estava empenhada em tecer uma tela
comprometendo-se em fazer sua escolha entre os pretendentes que já estavam a
postos quando a obra estivesse pronta. Para Penélope o bordado era uma escolha,
já para Branca uma imposição.
O ato de bordar resgata em Branca um dom que tinha desde menina e isso
a faz “ir mais além do presente até agarrar o futuro, com uma vidência feita de
sobressaltos e chamada por palavras”. (JORGE, 1984, 60) A partir de então, a
mulher que talvez pudesse representar no vilarejo a submissão feminina começa a
dormir de olhos abertos e ver através das pessoas, “ver a transparência como
através de um vidro.” (JORGE, 1984, 46) Os poderes de Branca começam a tomar
proporções cada vez maiores, e essa aparente passividade vai se transformando.
No isolamento da casa e na aparente prisão do bordado, vai nascendo o sonho que
leva Branca a afirmar a sua personalidade em confronto com o marido, isto é, na
medida em que o bordado evolui, parece que a aldeã vai tomando consciência de
si.
Entre as personagens femininas apresentadas no romance, Branca aparenta
ser, em primeira instância, aquela que mais se submete aos demandos do marido,
Pássaro Volante, e que possivelmente apresenta maior dificuldade em partir rumo
à construção do reconhecimento de si. Mas as ações dessa personagem acabam
convergindo para uma transformação. Isso ocorre porque, além de recuperar seu
dom de vidência, se rebela contra o marido, que lhe infligia maus tratos, dando nele
uma surra.
Outro fato que parece contribuir para o despertar da consciência de Branca
ocorre no final do romance, quando a personagem se encontra com o forasteiro e
ele a convida para ir embora dali. A personagem tem a oportunidade de contato com
o que está externo ao vilarejo, mas recusa a possibilidade de saída.

239
Ao que parece, Branca se mostra como a única personagem no vilarejo que
possui um germe de formação de identidade. Acredita-se que o fato de ter se
libertado do marido e recuperado seu dom adormecido não remete ainda à presença
de uma identidade. Trata-se, porém, do início de um processo muito longo a ser
percorrido e, pelo que se nota, Branca está em busca de uma identidade individual
(quando se concentra em seus próprios interesses) e, ao mesmo tempo, inserida no
coletivo (considerando que a busca dessa identidade pode ser também feminina, ou
seja, de um grupo específico, o das mulheres).
Branca parece buscar a continuidade de si mesma, uma identidade que não
se restringe a sua pessoa, mas a um grupo feminino. Se Branca não tivesse
recuperado seu dom de vidência e enfrentado o marido, seria difícil dar início à
construção do sujeito mulher, melhor dizendo, muito provavelmente não seria
possível a construção desse sujeito na sua individualidade e coletividade. Atrelada
à questão da construção do sujeito está o reconhecer a si mesmo e ser reconhecido.
Branca, pela maneira como conduz suas ações, parece almejar esse
reconhecimento de si e também ser reconhecida: acredita-se que, primeiramente,
pelo marido, pois, somente assim, o processo de construção de sua identidade teria
início.
Com as outras personagens femininas, exceto as Carminhas Rosa e Parda,
essa oportunidade não surge porque o espaço do vilarejo contribui para a
estagnação, e o fato de não saírem dali propicia a permanência naquele estado de
mesmice, ocasionando o não contato com o outro e, consequentemente, a não
conscientização de si mesmas.
Apesar dessa mentalidade rústica, atrasada e da espera de transformações que tanto
tardam, nota-se que há presença de um sentimento de quem vê uma possível realização de algo, e
isso se evidencia por meio de Branca Volante e Carminha Parda. Lídia Jorge mostra que a atitude
dessas personagens talvez possa iniciar um semear da consciência de si. Isso é apresentado ainda
de uma maneira que remete ao estágio inicial de desenvolvimento, numa condição que se mostra
tão elementar a ponto de parecer se apresentar no estágio antes de deixar a condição de ovo.

240
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241
CULPA E PECADO EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Ernani Terra70
Introdução

Minha pesquisa, em nível de pós-doutorado, sob a supervisão da Profa. Dra.


Diana Luz Pessoa de Barros, investiga o discurso da interdição na obra Crônica da
Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso. O fundamento é a Semiótica discursiva, que
me ofereceu o aporte teórico-metodológico a fim de mostrar como o discurso da
interdição é materializado no nível discursivo, por meio de uma sintaxe e de uma
semântica. Para isso, centro a investigação nesses dois componentes. A sintaxe
discursiva, como se sabe, vai retomar a enunciação, observando como a instalação
de um enunciador cria um eixo de coordenadas espácio-temporais. A semântica vai
tratar dos componentes temáticos e figurativos, que materializam as crenças e as
ideologias. A figurativização consiste na instalação pura e simples das figuras
semióticas, ou seja, da passagem do tema à figura. É importante ressaltar que,
segundo Barros (1988), temas e figuras são determinados historicamente e trazem
para os discursos os modos de ser e de pensar de classes e de grupos sociais,
assegurando assim o caráter ideológico desses discursos.
A obra de Lúcio Cardoso é marcada pelo catolicismo e recebeu influência
direta dos assim chamados autores católicos franceses: Julien Green, George
Bernanos e François Mauriac. Na Literatura Brasileira, Lúcio Cardoso forma com
Cornélio Pena e Octavio de Faria, um trio de importantes autores católicos. Em
Crônica da casa assassinada, a religiosidade pode ser observada no nível profundo,
por meio de articulações semânticas como /pecado vs. salvação/ e / morte vs.
ressurreição/; no nível narrativo, no percurso narrativo do ator Ana e, no nível
discursivo, por meio de isotopias temáticas e figurativas. Apenas a título de
ilustração, o gênero discursivo confissão está presente em momentos significativos

70 Pós-doutorado, Universidade Presbiteriana Mackenzie

242
da obra. É por meio dele que tomamos conhecimento de fatos relevantes da diegese
na medida em que o ator Ana revela a padre Justino seus pecados.
Os sentidos de Crônica da casa assassinada constroem-se a partir da
oposição: morte vs. vida, articulação semântica fundamental do universo dos
valores individuais. Tais valores axiológicos são figurativizados no nível discursivo
por atores e objetos-valor. A morte é figurativizada no solar dos Meneses (a casa
assassinada), que é o espaço da ordem, sacralizado, que funciona como axis mundi.
Esse mundo ordenado da família Meneses (a casa-Cosmos) vê-se transformado e
ameaçado por um ataque externo, por meio de Nina, que se casa com um dos
Meneses, Valdo. Nina teria tido relação incestuosa com seu filho André. Ao adentrar
para a família Meneses, Nina, que figurativiza a vida, passa a ser membro do clã e
rompe o contrato estabelecido ao, possivelmente, manter relações incestuosas com
o próprio filho.
Rompido o contrato fiduciário, Nina, movida pela cupidez, desperta paixões
de cólera em Ana (a cunhada), de vingança em Demétrio (o cunhado, que odeia e
ama Nina), de insegurança em Valdo (o marido, prisioneiro dos valores
representados pela Casa e da paixão por Nina). O presumido incesto rompe o
espaço consagrado (a casa-Cosmos) instaurando o Caos, que leva à ruína, à
desintegração da casa dos Meneses, e à morte por câncer de Nina.
Um enunciador, que coligiu os fatos por meio de cartas esparsas, cadernos
com relatos de família e depoimentos de testemunhas, por meio de debreagem
enunciativa, delega a voz a dez narradores que contam a decadência e a destruição
dos Meneses, num (des)concerto polifônico descontínuo. Os dez narradores, todos
de focalização interna, fazem-se ouvir em discursos materializados em diferentes
gêneros: diário, carta, confissão, depoimento, memórias, que se assemelham a
peças de um inquérito, que deixa a cargo do leitor recompor os fatos e estabelecer
"a verdade". Quando uma voz emerge, outras são ouvidas em contraponto. Cada
vez que uma voz se vê confrontada ou espelhada noutra(s), o leitor é levado para
veredas de um labirinto, numa leitura que se pode dizer hipertextual.
A figura central do romance é Nina, mulher cuja beleza desperta desejo e
inveja. Representa uma antítese e, ao mesmo tempo, uma negação dos valores que

243
regem a família Meneses, ponto para onde convergem todas as vozes, que falam
da verdade, do sexo, do amor e da morte.
Na estrutura narrativa, Nina exerce papel fundamental na medida em que é
destinador-manipulador dos demais sujeitos da ação, estabelecendo as regras do
jogo. Em semiótica discursiva, denominamos destinador "o sujeito responsável pela
alteração das qualidades do sujeito da ação. Aquele que determina a competência
e os valores do sujeito que age, aquele que, em suma, estabelece as regras do jogo"
(BARROS, 1988, p.18). Nina é destinador-manipulador na medida em que
determina os valores que serão visados pelos sujeitos, transformando-os, isto é, ela
exerce um fazer-fazer. Sua entrada no solar dos Meneses, como se fora um anjo
exterminador, instaura a ruptura da ordem (a transformação do Cosmos em Caos),
desencadeando as paixões, sobretudo as de malquerer. O tempo não é cronológico:
há analepses e prolepses. A narrativa se inicia em in ultima res, pela narração de
André, em seu diário, dos últimos momentos de Nina, com seu corpo já se
decompondo pelo câncer, exalando mau cheiro, mas mesmo assim capaz de
despertar desejo.
Para este trabalho, voltado para o tema da culpa e do pecado, fiz um recorte
e centrei-me apenas no percurso narrativo de um dos actantes, representado pelo
ator Ana (esposa de Demétrio e cunhada de Nina), pois é nela que se manifestam
mais explicitamente a culpa e o pecado.

Culpa e pecado: programa narrativo

Como este trabalho tem por fundamento a Semiótica greimasiana, a distinção


que estabeleço entre culpa e pecado não é de ordem religiosa, mas discursiva, vale
dizer, culpa e pecado não são propriedades exclusivas dos sujeitos, mas
propriedades do discurso inteiro.
Embora no nível fundamental, culpa e pecado possam constituir articulações
semânticas semelhantes, já que ambas podem se opor a perdão (perdoar culpa e
perdoar pecado); no nível narrativo, a sintaxe é diversa. A culpa tem um componente
patêmico (poderia ser estudada à luz da Semiótica das paixões). O ator sofre a dor

244
da culpa em decorrência de alguma ação, seja ela pecado ou não. No pecado, o
ator é agente, na medida em que infringe uma norma anterior que caracteriza seu
ato como pecado, que pode ser anulado pelo perdão. Donde posso tirar as seguintes
conclusões: a) pode haver pecado (ação) sem culpa (paixão); b) pode haver a culpa
sem pecado.
Evidentemente, o percurso do sujeito será diferente em cada um dos casos.
No caso de haver pecado e não haver a culpa, o agente não se sentirá compelido a
buscar o perdão, como poderá não experimentar paixões decorrentes de sua ação.

Um dos percursos narrativos de Ana: uma análise

Ana é esposa de Demétrio, o patriarca dos Meneses. Pessoa infeliz,


amargurada, sem vida.

Ah, como me detesto, como me desprezo, que tremenda


hostilidade interna delineia minha figura exterior. Aquela saia
cor de rapé, aquela blusa desbotada e sem nenhum enfeite,
aquele modo relaxado de pentear os cabelos são as provas
do quanto considero minha pessoa mesquinha e vil.
(CARDOSO: 2013, p. 285).

Sua infelicidade aumenta com a chegada à Casa de Nina, casada com Valdo,
irmão de Demétrio. Nina é extremamente bela, veste-se bem, atrai a atenção de
todos, o que desperta a inveja de Ana. Não bastasse, Ana, que espiona Nina,
descobre que Nina mantém relações sexuais com o jardineiro Alberto, que é amado
por Ana. O jardineiro suicida-se usando um revólver que fora atirado pela janela por
Nina.
Esses fatos influenciam as ações de Ana, particularmente com relação à
Nina, movida pelas seguintes paixões:
a) inveja: "Ah, como era bela, como era diferente de mim. Tudo na sua pessoa
parecia animado e brilhante"(CARDOSO: 2013, p. 112).
b) ciúme: Ana ama Alberto, mas esse tem relacionamento amoroso com Nina: "E
ainda daquela vez o ciúme encheu-me o coração e, como tantas vezes já o fizera

245
no decorrer da vida, contemplei minha cunhada com inveja - ela era a vitoriosa, e
o seria sempre" (CARDOSO: 2013, p. 401). (destaques acrescidos)
c) cólera;
d) vingança: Ana quer matar Nina por julgá-la culpada da morte de Alberto.

Só havia um castigo para a falta daquela mulher: a morte. A morte pura e


simples. [...] Nina devia desaparecer, e a execução devia partir de mim.
Minhas mãos é que deveriam agir, e assim como arrancara ela o prazer
ante a visão do meu tormento, da sua agonia eu extrairia a minha paz.
(CARDOSO: 2013, p. 311)

As paixões estão relacionadas à existência modal do sujeito, vale dizer, o


sujeito segue um percurso, entendido como uma sequência de estados passionais
eufóricos ou disfóricos e podem ser de bem-querer ou de malquerer. Na inveja, uma
paixão de malquerer, o sujeito é modalizado pelo /querer-ser/, que implica querer-
ter os valores desejados que estão em conjunção com o sujeito invejado e em
disjunção com o sujeito invejante, mas sem nada fazer para isso. Para Ana, essas
paixões são manifestações do diabo, que se apoderou dela.
Alberto, para mim, sempre fora o jardineiro e jamais conseguira identificar
sua presença senão daquele modo. Eu que agora, pelo simples manejo da
existência de Nina, eu o descobria como havia descoberto a mim mesma.
Este deve ser, Padre, o primeiro dom essencial do demônio: desejar a
realidade de qualquer ficção, instalando-a na sua impotência e na sua
angústia, nua no centro dos seres. Sim, pela primeira vez eu via Alberto e
o via de vários modos simultâneos: primeiro, que era moço, segundo, que
era belo. (CARDOSO: 2013, p. 115)

Essas paixões instalam em Ana o terrível sentimento de culpa, apenas


revelado ao Padre Justino.
Que Padre Justino me perdoe, pois talvez seja o pior, o mais seco, o mais
condenável dos sentimentos, mas nem eu mesma entendo o que se passa
comigo, tão diferente me sinto. As coisas da Igreja parecem-me vãs e
absurdas, como tudo mais neste mundo também me parece vão e absurdo.
Vivia bem até o momento em que compreendi que me achava sufocada,
em trevas, e nessas trevas, que não me pesavam antes, agora me causam
uma insuportável sensação de envenenamento. Sem ar, é como se me
debatesse dentro de um elemento viscoso e mole: no fundo do meu
espírito, uma força tenta em vão romper a camada habitual, revelar-se,
impor a sua potência que eu desconheço e não sei de onde vem. Repito,
ignoro o que esteja se passando comigo - surda, causticada, vaguei entre
pessoas sem coragem para expor o que se passa no meu íntimo, mas
suficientemente lúcida para ter certeza de que um monstro existe dentro
de mim, um ser fremente, apressado, que acabará por me engolir um dia.
(CARDOSO: 2013, p. 161)

246
Programação espacial: o espaço do pecado

Para a Semiótica, o espaço é um objeto construído que comporta elementos


descontínuos. Pelo mecanismo da debreagem, o enunciador instaura a categoria
espaço. No discurso, o espaço se organiza a partir do aqui (espaço da enunciação),
que se opõe ao espaço fora da enunciação (o espaço do lá, do acolá). Dessa forma,
têm-se duas ordens de espaço: o enunciativo (espaço do aqui) e o enuncivo (espaço
do não-aqui). Os efeitos de sentido serão os de proximidade e de distanciamento,
respectivamente.
Greimas e Courtés (2012) fazem referência à espacialização pragmática
(localização espacial propriamente dita) e à espacialização cognitiva do discurso.
Esta diz respeito às relações cognitivas que se estabelecem entre os diferentes
actantes, ou entre actantes e objetos, investidos de propriedades espaciais como
tocar, ver, ouvir etc.
Fiorin (2001, p. 259), apoiado em Vernant (1973), afirma que o espaço se
articula "em torno de categorias como interioridade vs. exterioridade, fechamento
vs. abertura, fixidez vs. mobilidade, que são homólogas à categoria feminilidade vs.
masculinidade". Acrescentamos que, relacionadas à espacialização dos seres no
discurso, temos também categorias como /proximidade vs. afastamento/ (relativas
a distância), /verticalidade vs. horizontalidade/ (relativas a direcionalidade) e
/englobado vs. englobante/ (relativas a abrangência).
Como a maioria das transformações narrativas ocorre dentro do espaço da
Casa, que, na obra, tem papel de destinador-manipulador, julgamos necessário um
breve comentário sobre a Casa como espaço.
A casa, como espaço doméstico, é, segundo Bachelard (2008, p.36), "um
corpo de imagens que dá ao homem razões ou ilusões de estabilidade". Esse
filósofo destaca ainda que casa comporta as categorias /verticalidade/ e
/centralidade/. A verticalidade decorre da polaridade /porão vs. sótão/ e a
centralidade da oposição /dentro vs. fora/. Para os gregos, o espaço interior tem
conotação feminina. Nele, a mulher está em seu domínio. O espaço exterior tem

247
conotação masculina, já que o movimento do homem é centrífugo: é quem sai para
a guerra e para a caça. Esse movimento inverte-se para mulher com o casamento,
pois ela deixa a casa para se estabelecer em outra.

O espaço na Crônica da casa assassinada

A Casa pode ser vista como axis mundi, pois é nela e por ela que se
desenvolvem os percursos narrativos dos sujeitos. Com relação ao espaço
pragmático, está situada na Chácara dos Meneses, no distrito de Vila Velha, Minas
Gerais. Nela habitam os Meneses (Demétrio, Valdo e Timóteo), Ana (esposa de
Demétrio), Nina (esposa de Valdo) e criadagem, com destaque para Betty, a
governanta, e Alberto, o jardineiro. Tirante a Casa e seus arredores, o outro espaço
pragmático do romance é o Rio de Janeiro, de onde provém Nina. Assim, tem-se
uma primeira oposição espacial: /Vila Velha vs. Rio de Janeiro/, homóloga à
oposição /rural vs. urbano/ e /isolamento vs. integração/. Enquanto Vila Velha é o
espaço do arcaico, da falta de relação entre pessoas, da decadência, do atraso, da
não-vida, portanto espaço disfórico; o Rio de Janeiro é figurativizado como espaço
das interações pessoais, da vida, espaço eufórico, portanto. O espaço da Casa
comporta ainda duas oposições, levando em conta a categoria /englobante vs.
englobado/.
Vila Velha Casa
/englobante/ vs. /englobado/
Essa oposição comporta outra, uma vez que na Casa há um anexo, o
Pavilhão, espaço de relações proibidas.
Casa Pavilhão
/englobante/ vs. /englobado/
/alto/ /baixo/
A programação temporal realiza a sintagmatização dos tempos,
estabelecendo uma cronologia. A programação espacial organiza o encadeamento
sintagmático dos espaços parciais, inscrevendo neles programas narrativos graças
ao procedimento da debreagem, instalando espaços enunciativos ou enuncivos.

248
O espaço tem função relevante na medida em que a Casa não é apenas o
locus onde se desenrolam os conflitos e paixões, mas também é a metaforização
da ruína dos Meneses. Lúcio Cardoso apresenta nas páginas iniciais da Crônica,
um desenho em que reproduz a planta da Chácara dos Meneses, com seus limites
e, no desenho da casa, seus cômodos, identificando o quarto que ocupa cada um
dos atores.
Reportanto a Eliade (2010), sabemos que o espaço do sagrado não é
homogêneo, apresentando rupturas que permitem a constituição do mundo a partir
da constituição de um ponto fixo. Na Casa, que constitui uma imago mundi, o espaço
se fragmenta; cada sujeito tem seu espaço próprio (seu quarto) em que se confina.
O ator Timóteo (irmão de Demétrio e Valdo), homossexual, que se veste com roupas
femininas, está desterrado em sua própria casa, confinado em seu quarto, proibido
por Demétrio de ausentar do espaço a que foi confinado e de se avistar com os
irmãos, por ser considerado "vergonha da família", portador de "moléstia
contagiosa". O desterro, como se sabe, é forma de sanção e interdição.
Há uma disjunção no espaço, pois paralelamente a Casa, propriamente dita,
instala-se um espaço metonímico, o Pavilhão, locus, fora do eixo central, das
relações interditas e que vive trancado. A seguir, apresento resumidamente as
oposições espaciais relevantes no romance.
espaço enuncativo vs. espaço enuncivo
aqui (Casa) vs. lá (Pavilhão)
rural (a Casa, o arcaico) vs. urbano (Rio de Janeiro, o moderno)
englobante (a Casa) vs. englobado (o Pavilhão)
alto (a Casa) vs. baixo (o Pavilhão)

Essas oposições espaciais são correspondentes a:


salvação vs. pecado
coerções sociais vs. pulsões individuais
relações sociais prescritas vs. relações sociais não prescritas

249
Partindo da oposição semântica fundamental /natureza vs. cultura/, Greimas
e Rastier (1975) apresentam o seguinte quadrado semiótico para o sistema social
das relações sexuais.

Figura 1: Sistema social das relações sexuais

Com base nesse quadrado, é possível fazer uma distinção das relações
sexuais que, segundo o catolicismo, configuram pecado, que são as não prescritas
e as interditas, lembrando que relações não interditas no universo da cultura podem
ser consideradas excluídas no universo da religiosidade. Ana, portanto, não é
pecadora apenas pelas paixões que tem em relação à Nina, como a inveja, mas
também por estabelecer relações sexuais fora do matrimônio.

O Pavilhão
O Pavilhão é o espaço onde ocorrem as relações interditas, relações
adulterinas e incestuosas. Trata-se de um espaço afastado da Casa propriamente
dita, localizado em posição inferior em relação a ela, abandonado e mal-
conservado.
Ocorreu-me que aquela parte de Chácara – o Pavilhão – sempre me
parecera um lugar condenado, a que ninguém se referia; se por acaso
alguém a isso era obrigado, munia-se de uma série de precauções e nunca
dizia abertamente o nome pelo qual a construção era conhecida, mas

250
designava-a apenas como ‘lá’, ou ‘lá embaixo’, tal como já ouvira, por mais
de uma vez, falar tia Ana. (CARDOSO, 2013, p. 385)

Portanto, o Pavilhão é mais do que o espaço do pecado, é o espaço onde se


podem infringir as leis humanas e divinas, é o espaço das relações interditas e, por
isso, esse espaço atinge a categoria de tabu, na medida em que seu nome sequer
deve ser pronunciado. O ódio que Ana tem de Nina não é só porque essa manteve
relações sexuais com Alberto, a quem ela amava, mas pelo fato de essa relação ter
ocorrido no Pavilhão, espaço em que o pecado deixa de ser pecado e, por isso,
espaço onde se podem exercer as pulsões individuais sem que isso traga a culpa.

Conclusão
Neste trabalho intentei mostrar como culpa e pecado são tematizados na obra
Crônica da casa assassinada. Vários caminhos se abriram para esse estudo. Um
deles seria tratar da figurativização desses temas, estudo fascinante, sem dúvida.
Optei por deixar de lado uma abordagem da semântica discursiva, dado o caráter
de comunicação breve deste trabalho, optando por uma abordagem do componente
sintáxico do nível discursivo e, mesmo assim, ficando restrito à programação
espacial. Justifica-se também essa abordagem, uma vez que, já a partir do título,
que é um contextualizador prospectivo, a categoria espaço toma relevante
importância para se entender que, a partir de sua fragmentação e descontinuidade,
é categoria essencial para se compreender os percursos narrativos de culpa e
pecado dos sujeitos, na medida em que na obra limitam-se claramente os espaços
de pecado e de não-pecado, A culpa e o pecado, visto assim, estão confinados a
determinados espaços da Casa, particularmente aos subterrâneos e aos porões,
locus em que os sujeitos pecam, mas não se sentem culpado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes: 2008.
BARROS, Diana Luz Passos de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São
Paulo: Atual, 1988.

251
BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: ____. Problemas de
linguística geral I. 4a. ed. Campinas (SP): Pontes; Editora da Universidade Estadual
de Campinas, 1995. [p. 284-293]
_____. A natureza dos pronomes. In: _____. Problemas de linguística geral I. 4a.
ed. Campinas (SP): Pontes; Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995.
[p. 277-283]
______ . O aparelho formal da enunciação. In: _____. Problemas de linguística geral
II. Campinas (SP): Pontes, 1989. [p. 81-90]
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3a. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e
tempo. 2a. ed. São Paulo: Ática, 2001.
GREIMAS, Algirdas Julien.; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. 2a. ed.
São Paulo: Contexto, 2012.
_______ . ; RASTIER, François. O jogo das restrições semióticas. In: GREIMAS,
Algirdas Julien. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975,
p. 126-143.

252
VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO:
O DISCURSO DO PORTAL DO SINDICATO APEOESP

Ester Anholeto Pirolo71


Introdução

Partindo de um alicerce teórico fundamentado em estudiosos da retórica –


Aristóteles, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca –, do discurso – Dominique
Maingueneau e Patrick Charaudeau – e das diferentes linguagens, tais como Lucia
Santaella, escolhemos para análise um corpus pertencente ao discurso sindical,
pelo fato de esse discurso ser de grande relevância social, e também por ser
divulgado para um grande número de pessoas e por influenciar direta ou
indiretamente seus pensamentos e suas ações.
Dada a grande quantidade de material sobre a violência no ambiente escolar
no referido portal, selecionamos para análise alguns textos que acolhem esse tema.
Voltamos nosso olhar para o modo como eles foram construídos linguisticamente,
para os efeitos de sentido que produzem, verificando como se constrói o discurso
nos links que o site apresenta, no aspecto visual dos ícones, na presença de
gêneros como ficha de denúncia e notícias.
Partimos das seguintes questões: de que recursos esses textos se valem
para se fazer crer, para se mostrar confiáveis aos leitores? Quais as estratégias
argumentativas mais comuns em textos dessa natureza tomadas como ferramenta
de convencimento e persuasão dos enunciatários? Damos destaque a esse tipo de
análise, pois nem sempre se observa criticamente a entonação do discurso, que
veicula um fazer persuasivo, envolvente e que imprime juízos de valor de
determinado grupo social.
Dito isso, passemos a observar um pouco do perfil do sistema educacional
público paulista e, sobretudo, de seu sindicato. Vejamos alguns dados importantes:
de acordo com o site da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, essa

71
Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob a orientação da Profª. Drª. Aurora
Gedra Ruiz Alvarez.

253
secretaria possui a maior rede de ensino do Brasil, com 5,3 mil escolas, 230 mil
professores, 59 mil servidores e mais de quatro milhões de alunos (SECRETARIA
DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, 2015, on-line).

Levando em conta que a população do Estado de São Paulo, em 2014, era


de 42.673.386 habitantes, de acordo com pesquisa do Sistema Estadual de Análise
de Dados (SEADE), constatamos que só os alunos dessa rede somam cerca de
10% da população do Estado, o que é um número considerável. (FUNDAÇÃO
SEADE, 2015, on-line).

Segundo o Estatuto da APEOESP (ESTATUTO DA APEOESP, 2015, on-


line), o sindicato tem 70 anos de existência e é integrado por docentes e
especialistas em educação das redes estadual e municipal do referido Estado.
Propõe-se a organizar e representar esses docentes e especialistas, defendendo os
interesses e direitos dessa categoria profissional. Tem ainda como finalidade, entre
outras, lutar pela melhoria do ensino público e gratuito. É uma entidade que diz estar
organizada “sem fins lucrativos, sem discriminação de raça, credo religioso, gênero
ou convicção política ou ideológica”. (ESTATUTO DA APEOESP, 2015, on-line).
No modo como o site da APEOESP se organiza, também é possível verificar
um pouco mais a maneira com que o sindicato constrói uma imagem de si para seu
público de associados e leitores do portal. Para facilitar nosso olhar diante de tantos
temas em pauta na página da APEOESP, dividimos a disposição do site em vinte e
sete quadros, de acordo com os assuntos que cada um aborda e uma vez que há a
possibilidade de se acessar diferentes links através de cada um deles. Assim,
temos, por exemplo, o cabeçalho da página, os destaques – principais notícias –,
palavra da presidenta, tv APEOESP, notícias, galeria de fotos, entre outros
(APEOESP, 2015, on-line).
Curiosamente, observamos que, dos vinte e sete quadros do portal, três se
dedicam a tratar o tema da violência nas escolas. Julgamos que não seria
necessária essa repetição temática – já que um único link poderia levar a diferentes
informações sobre o mesmo assunto –, mas como ela existe, vemos que a esse

254
tema foi dada relevância. Diante desse critério, escolhemos alguns desses textos
para análise.

Antes, porém, iniciamos pelo texto que trata da “missão” da APEOESP, pois
por meio dele é possível verificar o modo como a instituição se apresenta e se coloca
no mundo (APEOESP MISSÃO, 2015, on-line). Ao ser intitulado “Missão”, vemos
que se trata do compromisso assumido perante os associados e à sociedade em
geral. Também nos remete aos objetivos, obrigações morais da instituição para
aqueles a quem representa.
Esse texto estabelece as principais finalidades do sindicato e chama-nos a
atenção a repetição dos verbos “defender” e “lutar”, ambos presentes em dois
momentos para referir às ações da APEOESP para com seus sócios. Os dois verbos
pressupõem que a categoria dos professores precisa de uma certa proteção, de
tutela. E se precisa de defesa é porque há algum opositor, inimigo ou até mesmo
um obstáculo, que no caso podem ser os empregadores ou até os alunos. No trecho
“É o sindicato que, em nome dos associados, negocia com o governo questões
salariais, profissionais e educacionais” é possível ver uma dessas forças opositoras
a que se referem. Essa “característica defensora” do sindicato permite que ele se
mostre com uma função bastante positiva para a sociedade. Prova que tem saberes
e poderes que o legitimam para advogar pelas causas de toda uma categoria de
profissionais.
Uma das lutas a que se propõe é pela melhoria do ensino, sobretudo público
e gratuito, o que demonstra sua preocupação social. É interessante observar o tom
um tanto pretensioso que se cria no texto pelo uso de diversas expressões
generalizadoras, para dizer o que o sindicato é capaz de realizar. Esse tom aparece,
por exemplo, nas constantes repetições do pronome indefinido “todo”, como em:
“visando à unidade e a unificação de todas as entidades”, “melhoria do ensino [...]
em todos os níveis”, “lutar [...] por organização, manifestação e expressão para
todos os trabalhadores”. Esse uso tanto engrandece o sindicato, ampliando sua
capacidade de ação, quanto aponta para o fato de que essa entidade está sempre

255
na busca da equidade, já que não exclui nenhum trabalhador, nenhum nível de
ensino, nenhuma entidade.
No terceiro parágrafo, a instituição em questão expõe uma série de números
que comprovam sua grande abrangência e aceitação para com seus associados.
Isso porque 180 mil sócios podem totalizar quase 80% dos docentes das redes
públicas de ensino do estado de São Paulo. Diz ainda ser “um dos maiores
sindicatos da América Latina”, o que também confirma esse seu grande alcance
social.
Além dessas atribuições, todas muito positivas, o sindicato também diz ter
convênios em diversas áreas, como educação, comércio, assistência médica, um
apart-hotel para receber professores do interior do Estado, quando estão de
passagem pela capital. Conta ainda com quatro colônias de férias. Todas essas
ofertas vêm ao encontro desse papel positivo que a entidade representa. Por meio
delas, a APEOESP se mostra também acolhedora, preocupada com o bem-estar, o
lazer, a saúde de seus associados.
Em resumo, podemos dizer que o texto que expõe a missão do sindicato só
revela aspectos positivos dessa instituição. Percebemos, ao mesmo tempo, um tom
potente, laudatório, e até mesmo maternal, visto que defende, protege, preocupa-
se com seus dependentes.
De acordo com Aristóteles, um discurso mobiliza três tipos de provas para
persuadir seu auditório: o ethos, que consiste no caráter moral do orador, a imagem
que ele constrói de si para ganhar a adesão de seus ouvintes, o pathos, ou paixão,
que se fundamenta nas disposições que se criam no ouvinte e o logos, que se
ancora no próprio discurso. Todos esses mecanismos implicam no fazer persuasivo.
A partir de nosso exame do logos, podemos depreender um ethos inserido no
discurso.
Assim como considera Aristóteles, tomamos o ethos como um processo de
influência sobre o outro e, portanto, o mais importante meio de persuasão, já que
por meio dele o discurso deixa a impressão de o orador ser digno de confiança. Seu
caráter moral é a prova determinante para se fazer crer. O caráter atribuído ao
sindicato no texto faz com que ele passe uma imagem de que é digno de confiança;

256
pelo texto, ele parece ser confiável. Além disso, ele se mostra totalmente parceiro
dos associados, a favor dos seus interesses e esse encontro, essa união de
interesses em comum, cria efeitos bastante persuasivos.
A página na internet é um dos meios que o sindicato tem de passar a imagem
que criou para si. Ali, tem seu espaço para expor essa representação, para que o
público saiba e creia no que está sendo dito e tome como verdade. Isso, claro, se o
discurso do site for ao encontro do que pensa o leitor, pois no caso contrário, poderá
parecer um site mentiroso. Desse modo, se o interlocutor, o auditório de um discurso
não crer nessa representação, não haverá confiança, nem persuasão. Mas se
levarmos em conta que a entidade em questão conta com 180.000 associados,
numa rede de ensino com 230.000 docentes, veremos que esse público julga a
figura do sindicato como digna de crédito.
Assim, é possível dizer que há uma harmonia entre o ethos do enunciador e
o pathos do enunciatário e o discurso é eficaz. A um enunciatário que necessita que
advoguem por suas causas corresponde um enunciador disposto a “lutar” e a
“defender” esses profissionais. A APEOESP mostra-se como uma instância
superior, com saberes e poderes para proteger seus associados. Ao mesmo tempo
docentes e sindicato se identificam e se diferenciam; têm papéis diferentes, mas se
completam.
Voltemos, agora, nosso olhar para o destaque dado pelo portal à violência
das escolas. Como já dissemos, o site da APEOESP repete em três links da página
esse tema. Em apenas um desses links, verificamos que o site disponibiliza 19
páginas com matérias sobre esse assunto. Das páginas 1 até 18 foram encontradas
dez matérias – entre notícias, reportagens, etc. – em cada uma. E na página 19,
havia sete textos até a data do acesso, em 12 de março de 2015, totalizando 187
tópicos. Esses textos datam de 9 de novembro de 2012 a 24 de fevereiro de 2015,
ou seja, há no portal textos e relatos que retratam a violência nas escolas num
período de 27 meses. São muitas histórias, pesquisas, dados, sem contar que
existem casos que não são noticiados, nem registrados em boletins de ocorrência,
ou expostos no site em questão.

257
Ressaltamos que essas matérias têm como fonte uma série de meios de
comunicação, tais como os jornais O Estado de São Paulo, O Globo, Agora São
Paulo, Diário de São Paulo, O Diário, Diário do grande ABC, e portais Agência Brasil
– Portal Terra, O Tempo, Portal LR1, G1, Portal R7, UOL, além das pesquisas feitas
pela própria APEOESP, entre tantos outros meios de comunicação.
Diante de todo esse material e da observação do enfoque de cada um desses
textos, constatamos que muitos deles tratam da violência de forma mais
particularizada, como vemos nos seguintes títulos: “Aluna agride colega em escola
e faz ameaça: ‘Da próxima vez vai ser pior’”, “Após nova ameaça, escola dispensa
alunos mais uma vez”, registrando e discutindo casos de uma escola ou de uma
região específica. Há outros que tratam o tema de modo mais amplo e que
correspondem especificamente ao Estado de São Paulo, e há ainda os que falam
de como esse assunto é visto em todo o país. Neste trabalho, porém, abreviamos o
corpus a ser analisado72.
Iniciando nossa análise, já nos chama a atenção o ícone usado para o
“Observatório da violência”, e que antecede cada um dos 187 textos desse link,
como vemos na figura 1. Trata-se de três gizes, um azul, um rosa e um amarelo. O
giz azul aparece quebrado ao meio, com alguns fragmentos pequenos e pó. Essa
quebra do principal material de trabalho oferecido aos professores das escolas
públicas pode representar a violência nas escolas em diversos aspectos. Pode
sugerir agressão física dos mais diferentes tipos, crimes hediondos, até mesmo que
levam à morte, visto que são muitos os textos expostos nesse mesmo link relatando
até casos de professores mortos por alunos. Alguns exemplos: “Aluno que matou
professora dentro de escola é condenado a 16 anos de prisão”, “Casos continuam
após morte de docente”, “Menina é estuprada dentro de escola em Osasco”, entre
tantos outros relatos de crimes graves. Nesses casos, a imagem do giz quebrado
parece até ser branda para simbolizar esse tipo de violência.

Figura 1

72A análise mais detalhada dos textos do site é parte da tese de doutorado da autora, a ser concluída em
jun/2016.

258
Fonte: APEOESP OBSERVATÓRIO DA VIOLÊNCIA. (2015, on-line).

São muitos os textos com esse tipo de conteúdo, mas além desses delitos há
muitos outros expostos no site. Podemos até pensar nos casos em que alunos
arremessam o próprio giz nos colegas e professores, usando esse material como
instrumento de ataque. Nesse caso, esse objeto parece ser menos ofensivo se
compararmos com as histórias de morte, espancamento, estupro, mas de qualquer
forma não deixa de ser uma atitude agressiva e que pode, sim, causar danos à
integridade física de quem por ele é atingido. O giz, em vez de servir como material
de trabalho dos professores, como recurso para as aulas, acaba servindo como mais
um objeto a ser usado para promover violência.
E sendo o giz, ainda, o principal material fornecido aos professores nessa
rede de ensino, a quebra dele na imagem também pode representar o rompimento,
o impedimento da aula, e até pelo mesmo motivo da violência.
Existe, também, um link, ao final da página da APEOESP, que conta com um
“Caderno de violência nas escolas”, uma pesquisa feita pelo Instituto Data Popular,
por encomenda do sindicato. Só o fato de o sindicato ter feito esse material já é
relevante, e mostra o quanto essas ocorrências estão presentes no dia a dia das
escolas. Discuti-las e procurar compreendê-las pode ser um caminho para tentar ao
menos minimizar esses acontecimentos. É curioso pensar que a própria Secretaria
de Estado da Educação (SEE), responsável por essas escolas, não tem uma
pesquisa como essa.
O material vem em uma capa preta, assemelhando-se a um livro de
ocorrências e tem como subtítulo “O olhar dos professores”, que inclusive tem mais
ênfase visual, pois o tamanho da letra é maior nesse subtítulo do que no próprio
título. Em branco, contrasta ainda mais com o preto da capa, o que reforça esse
destaque dado à voz dos professores. Todos esses dizeres aparecem em caixa alta

259
e esse realce pode agradar muito ao público associado, que certamente quer ser
ouvido.
Outro link que trata desse tema é intitulado “Registre aqui ocorrências de
violência nas suas Escolas”. A existência desse link já é muito significativa. Deixa
implícito que a violência existe e que o sindicato quer ouvir seus associados. Ainda
mais se levarmos em conta que no site da secretaria da Educação de São Paulo
quase não há menção à violência nas escolas, e disponibilizar a ficha é reconhecer
a existência desses fatos, o que não é feito pela instituição responsável pela
educação pública do Estado de São Paulo.
Após clicar no link, abre-se uma tela em que o texto encoraja o associado –
professor – a registrar as ocorrências de violências. Ao apresentar o objetivo do
registro, o texto afirma que é o de “contribuir para a lavratura de Boletins de
Ocorrência” e vemos, então, que o sindicato se compromete a levar o caso a
instâncias judiciais. A primeira ação oferecida pela APEOESP no caso do registro é
levar o fato à polícia e, só então, o texto diz que usará esse dado como material de
estudo da APEOESP para posteriormente “cobrar das autoridades ações para
prevenir e conter um problema que, há muito, deixou de estar restrito a casos
isolados, tornando-se verdadeira ‘epidemia’ no estado de São Paulo”.
Ao dizer “um problema que, há muito, deixou de estar restrito a casos
isolados” faz com que se pressuponha que a violência nas escolas já tivesse sido,
no passado, restrita a casos mais pontuais, mas que “há muito” não o seja mais. E
a designação desse problema como sendo uma “epidemia” só confirma o quanto
essa situação é notável, pois esse termo costuma se referir a um fenômeno
negativo, geralmente uma doença, que afeta rapidamente a vida de uma grande
quantidade de pessoas.
Esse trecho, o segundo parágrafo, mostra um sindicato bastante atuante, o
que pode ser visto pelo uso de verbos que se referem a ele, como: “contribuir”,
“propor”, “cobrar”, “prevenir”, “conter”, todos esses conferindo uma atuação positiva
a essa instituição. Os substantivos “atuação” e “ações” também confirmam esse
papel realizador do sindicato, que mostra ter o poder e o saber para, inclusive,
cobrar ações das autoridades.

260
Conhecendo melhor o teor da ficha, vemos que um de seus campos dispõe
de uma lista com dez tipos de violência, o que pressupõe que essas são as
ocorrências mais comuns. Eles aparecem nesta ordem: “Ato de vandalismo
(depredação, pichações)”, “Ameaça”, “Agressão verbal”, “Agressão física”, “Furto
(sem uso de violência)”, “Roubo ou assalto à mão armada (com uso de violência)”,
“Assédio ou violência sexual”, “Assédio moral”, “Tentativa de assassinato”,
“Assassinato”, “Outro – descreva sucintamente”. A ficha ainda pede que se indique
a vítima e nele admite-se que a violência pode ocorrer com qualquer pessoa
pertencente à comunidade escolar.
Juntando-se ao que dissemos, dos 187 textos expostos no portal da
APEOESP sobre violência nas escolas, analisamos mais detidamente dois deles,
um da BBC Brasil em São Paulo, do ano de 2014, e outro, de 2013, da TV Globo.
Aqui, mencionamos algumas conclusões obtidas através dessa análise, que nos
levam a depreender mais um pouco da visão que o site passa a seus leitores:
nesses textos, em geral, o aluno é mostrado como o agressor, o professor é a vítima,
as famílias dos alunos são corresponsáveis pela violência, a escola é um local
perigoso e o sindicato é uma instituição protetora, atuante. Todos esses “entes” são
apresentados assim, de forma maniqueísta, estereotipada, autoritária. Isso porque
o discurso manifesto no portal do sindicato não aponta para uma abertura, uma
multiplicidade de olhares e de características dessas instâncias/instituições.
É possível dizer, pois, que o processo de persuasão nessa página eletrônica
é construído pela junção de diversas estratégias. A repetição do tema da violência
nos links, a grande quantidade de material sobre esse assunto, a abordagem
diversificada – por meio de notícias, pesquisa, ficha de denúncia –, as fontes
também diversas, a harmonia entre um ethos protetor, sábio, poderoso, honesto,
confiável, com um pathos estimulado pelo temor, pela compaixão, pela indignação,
são algumas das estratégias retóricas do portal para convencer o leitor de que esse
sindicato é, de fato, necessário para proteger tanto os associados, professores,
quanto os alunos, que convivem no ambiente escolar, tido como hostil.
Mas mesmo considerando que estamos diante de um discurso, que constrói
uma certa “realidade”, esse discurso do portal da APEOESP suscita reflexões

261
polêmicas e, ao mesmo tempo, necessárias, pois, em tese, ao se pensar em escola
não se deveria pensar também em violência. Esse tema, portanto, tão abordado no
portal, merece um olhar bastante cuidadoso, tanto do poder público, quanto da
escola e da sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APEOESP. São Paulo, 2015. Disponível em: <www.apeoesp.org.br>. Acesso em 25


fev. 2015.

APEOESP MISSÃO. São Paulo, 2015. Disponível em


<http://www.apeoesp.org.br/o-sindicato/missao/>. Acesso em 03 mar. 2015.

APEOESP OBSERVATÓRIO DA VIOLÊNCIA. São Paulo, 2015. Disponível em:


<http://www.apeoesp.org.br/publicacoes/observatorio-da-violencia/>. Acesso em 15
mar 2015.

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 14. ed. Trad. Antônio Pinto de Carvalho.
Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

______. Retórica das paixões. Trad. Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Trad. Angela M. S. Corrêa. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2013.

ESTATUTO DA APEOESP. São Paulo, 2015. Disponível em:


<http://www.apeoesp.org.br/o-sindicato/estatuto-da-apeoesp/>. Acesso em 03 mar.
2015.

FUNDAÇÃO SEADE. São Paulo, 2015. Disponível em:


<http://produtos.seade.gov.br/produtos/perfil_estado/>. Acesso em 09 mar. 2015.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad. Cecília P. de


Souza-e-Silva e Décio Rocha. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

PERELMAN, C; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova


retórica. Trad. Marina Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à


cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

262
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. São Paulo, 2015. Disponível em:
<http://www.educacao.sp.gov.br/portal/institucional/a-secretaria/>. Acesso em 09
mar. 2015.

263
CAETANO VELOSO: A SINGULARIDADE ENTRE A TRADIÇÃO E A
RENOVAÇÃO NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA

Felipe Pupo Pereira Protta73

Introdução

Caetano Veloso é um dos poucos artistas brasileiros que conseguiram


concatenar tão bem a tradição e o novo, de uma maneira que não ofuscasse
nenhum dos dois extremos temporalmente falando. Se Caetano ousou dizer não ao
não e lutar pela absorção e adoção de elementos de culturas estrangeiras na
brasileira – a guitarra elétrica, toda uma estrutura diferente de se fazer letras e as
constantes visitações por estilos musicais de outras culturas -, por outro lado,
Caetano Veloso também sempre foi um defensor da cultura brasileira e de
elementos ligados à multiplicidade de tradições do nosso povo.
Um exemplo disso é a faixa Dom de Iludir/Tapinha, contida no álbum “Noites do
Norte Ao Vivo” (2001). Esta é composta por uma canção de autoria do próprio
Caetano, dos anos 80, e de um funk carioca datado do mesmo ano do disco em
questão.
A canção Dom de Iludir tem por tema, desde seu título, uma característica que
seria inerente a toda e qualquer mulher: a capacidade de enredar e enganar aqueles
que porventura se apaixonem por elas. O fato de este ser um traço inerente a “toda
mulher” é revelado nos versos: “Você diz a verdade / E a verdade é seu dom de
iludir”, que dão conta de que, mesmo ao tentar ser honesta e sincera, há algo mais
forte, de sua natureza, que transforma tudo em mentira e ilusão.
Mas, para além deste aspecto, contido já no verso que abre a canção: ”Não me
venha falar na malícia de toda mulher” o que se coloca é uma exaltação da figura
feminina, com a enumeração de aspectos relativos à sua força, coragem e
posicionamento firme, conforme os versos:
Você sabe explicar
Você sabe entender tudo bem
Você está, você é,
Você faz, você quer, você tem

73
Universidade Presbiteriana Mackenzie

264
A clareza e compreensão, a firmeza de postura e de convicções e até mesmo
um poder de realização, expresso pelo desejo e posse são expressos, de maneira
a exaltar a mulher por seus atributos.
Na verdade, isto diz respeito a toda uma sedução exercida pela mulher nos
homens, a começar por sua beleza. Desde a mitologia, com a figura das ninfas,
passando pelo folclore brasileiro, em que os navegadores eram encantados pelo
canto das sereias e, na tentativa de se aproximarem delas, acabavam morrendo
afogados.
Mas, no próprio âmbito da canção popular brasileira, esta temática da canção de
Caetano Veloso se constitui como uma intertextualidade em relação ao tema de um
samba datado de XXXX, de Vadico e Noel Rosa: Pra Que Mentir. Aliás, desde seu
título, a canção de Caetano é marcada por um processo de intertextualidade,
referente a expressões contidas na letra deste samba, cujos versos citamos abaixo:
Pra que mentir
se tu ainda não tens
esse dom de saber iludir?
Pra quê? Pra que mentir
se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir
se tu ainda não tens a malícia de toda mulher?

O samba de Noel Rosa e Vadico esta inserido num contexto em que a presença
do machismo no Brasil – infelizmente, ainda ão presente – se dav com uma
intensidade muito maior.
Desse modo, a letra do samba em questão, apesar do tom bem-humorado de
sátira, revela a atribuição desta característica à mulher como algo a ser
desenvolvido com o passar do tempo – talvez, atrelado à maturidade -, tendo em
vista que a voz poética, na letra, se dirige a uma menina ou garota que só não tem
ainda este traço devido à mocidade.
Caetano vertera um samba de um dos maiores nomes da canção popular
brasileira numa canção de sua autoria, que também fez bastante sucesso nos anos
80, na voz de Gal Costa.
E, então, já no início dos anos 2000, trazendo à tona a temática do tratamento
dado à mulher, num contexto marcado pela violência contra esta e pela banalização
disso em letras de canções do estilo específico – funk carioca -, o qual, inclusive,

265
popularizou como expressões elogiosas à mulher, palavras que antes serviam para
ofender ou difamar esta mesma figura, dentre as quais: cachorra e vadia, por
exemplo.
Tapinha () ironiza um ato de violência contra uma mulher que, ao ser agredida,
parece satisfazer-se quase que sexualmente, e pedir mais, alegando que “um
tapinha não dói”.
A união, numa única peça, da temática do início do século XX, ligada a uma
desonestidade, do ponto de vista sentimental, da mulher, retomada nos anos 80, de
maneira a ressaltar mais as potencialidades da mulher, e, por fim, uma expressão
de uma mulher que se satisfaz ao ser agredida por seu parceiro se constitui como
uma discussão acerca dos diferentes tratamentos dados a esta figura de suma
importância para o ser humano – afinal de contas, todo ser humano vivo, veio ao
mundo por meio de uma mulher.
Caetano Veloso traz o tema à tona e parece questionar os valores de toda uma
sociedade, sem qualquer discurso ou análise mais profunda, mas apenas por meio
do arranjo entre canções, que denota a comunhão da tradição e da
contemporaneidade em seu trabalho.
Esta reflexão apenas evidencia a importância dos estudos relativos à canção no
que tange o caráter histórico e cultural de um povo com o brasileiro, e também a
forma como este cancionista baiano conduz seu trabalho, de maneira a agradar,
chocar, enaltecer, criticar o que for possível e devido, sem por isso se tornar
contraditório ou cair em qualquer armadilha. Aliás, muito pelo contrário, numa
coerência e relevância ímpares que ajudam a explicar a longevidade de sua obra e
da relevância de sua figura, no contexto artístico brasileiro.

266
A PEDRA DO REINO: CONFLUÊNCIAS COM DIFERENTES GÊNEROS
LITERÁRIOS E DISCURSIVOS NO ROMANCE E NA MINISSÉRIE

Fernanda Cristina Araújo Batista

INTRODUÇÃO

Este trabalho é um pequeno recorte de nossa tese de doutorado e tem como


objetivo apresentar uma análise do Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do
sangue do vai-e-volta (1971), de autoria de Ariano Suassuna, e de sua adaptação
televisiva, a minissérie A Pedra d’O Reino (2007), de Luiz Fernando Carvalho, no
que diz respeito aos diálogos que ambos mantêm com diferentes gêneros literários
e discursivos.
Para a composição do romance (hipotexto), Suassuna fez com que seu
narrador-protagonista, Pedro Dinis Ferreira Quaderna, empregasse amplamente
outros gêneros literários, tais como a epopeia, o memorial, a crônica histórica, o
ensaio, a novela de cavalaria, o folhetim e o cordel, com diferentes objetivos: narrar
sua vida com grandiosidade, relembrar fatos da história do Brasil e relacioná-los à
história de sua família etc.
Luiz Fernando Carvalho, apesar de ter toda a liberdade para transformar o que
considerasse necessário no romance a fim de transpor sua narrativa para minissérie
(hipertexto), optou por manter esse aspecto do texto fonte, e ainda o ampliou ao
utilizar recursos oriundos de outros gêneros do discurso, tais como o teatro e a
pintura.
Visamos, aqui, a explicitar como foram estabelecidos esses diálogos e quais
os efeitos de sentido criados por eles em ambas as narrativas.

O ROMANCE EM DIÁLOGO COM OUTROS GÊNEROS LITERÁRIOS

O Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta é, como


o próprio título indica, um romance, isto é, uma composição ficcional em prosa que
contém um enredo vivido por personagens dentro de uma estrutura espaço-
temporal e é narrado por uma instância organizadora denominada “narrador”, e que,
segundo Massaud Moisés, “caracteriza-se pela pluralidade da ação, pela

267
coexistência de várias células dramáticas, conflitos ou dramas” (1974, p. 400).
Entretanto, esse romance é composto por diversos outros gêneros que se
intercalam segundo a intenção do narrador, Quaderna, em cada passagem da
narrativa de sua intrincada história de vida.
A epopeia, segundo Hélio Alves, consiste num “texto poético,
predominantemente narrativo, dedicado a fenômenos históricos, lendários ou
míticos considerados representativos duma cultura” (In: E-Dicionário de Termos
Literários. Acesso em: 23 dez. 2013). Quaderna dá a sua narrativa ares epopeicos
devido, primeiramente, à natureza do assunto que pretende tratar: a ressurreição
de seu primo e sobrinho Sinésio, que, desaparecido após o assassinato de seu pai,
em 1930, e dado como morto em 1932, reaparece na Vila de Taperoá em 1935,
para buscar o tesouro guardado por Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o qual,
segundo a população pobre do local, seria usado para finalmente libertar o povo de
seus sofrimentos com a instauração do Quinto Império de Jesus Cristo na Terra, e
que, segundo a população abastada e as autoridades, seria usado para financiar a
Revolução Comunista.
Além do tema, a forma como o narrador o aborda também garante ao relato
característica de epopeia, pois a grandiosidade com que os acontecimentos (não só
os realizados por Sinésio, mas também, e principalmente, aqueles comandados
pelos ancestrais de Quaderna e por ele próprio no episódio da caçada) são descritos
e narrados é típica dos poemas épicos, cujo objetivo é engrandecer a ação do herói
a fim de exaltar o povo e a nação dos quais ele é representativo: Quaderna narra
tudo com grandeza com a finalidade de justificar por que ele deve ser Rei do Brasil
e seu primo, príncipe, e também visando ao posto de Poeta da Pátria e Gênio
Máximo da Humanidade (que ele acredita pertencer a Homero por ter sido um
epopeieta). Ele, então, quer superar o grego bem como seus mestres, Clemente e
Samuel, que também têm pretensões literárias.
O memorial caracteriza-se por ser um relato escrito de memórias de fatos
pretensamente verídicos. Assim, o autor ou narrador que viveu determinado fato
conta-o ao leitor. O narrador utiliza-se desse gênero para a composição do romance
a fim de atribuir a seu discurso maior credibilidade perante seus interlocutores: o júri

268
do processo criminal no qual ele é o réu. Dessa forma, Quaderna, personagem
fictício, desvenda seu passado e o de seus ancestrais, que foram pessoas reais que
viveram na região nordeste, de modo a explicar o motivo de ele se sentir no direito
de ser o novo imperador do Brasil, de ter apoiado o primo Sinésio na busca pelo
tesouro escondido por seu pai em algum lugar do sertão e de merecer confiança no
que diz respeito a uma suposta acusação de ter sido o assassino do tio, pois ele
demonstra que era o braço direito deste e, portanto, não teria nada a ganhar com
essa morte.
A crônica histórica relata fatos históricos em ordem cronológica. Quaderna cita
crônicas famosas em seu discurso com o intuito de comprovar as informações que
são veiculadas nele e, também, de exaltar seus antepassados, uma vez que, para
o narrador, o fato de a historiografia oficial reconhecer os feitos de seu bisavô e de
outros familiares ao escrever sobre eles – ainda que em tom declaradamente
pejorativo e zombeteiro – significa que eles foram pessoas importantes e
merecedoras de tal destaque midiático.
O ensaio, segundo Jayme Paviani, é um texto que se caracteriza por ser uma
investigação formalmente desenvolvida cujo assunto deve ser exposto de maneira
lógica e com rigor. Ele “pode ser de natureza literária, científica e filosófica”
pressupondo, apesar do rigor que deve ter, uma maior liberdade de expressão de
seu autor, que pode “defender uma posição sem o apoio empírico, documentos ou
outros recursos metodológicos” (PAVIANI, 2009, p. 4). No romance, aparecem
ensaios nos momentos em que Quaderna está reunido com seus mestres discutindo
questões literárias que, no fundo, revelam as ideologias e o posicionamento político
de cada um: Clemente é de esquerda e, sendo caboclo, defende a origem negro
tapuia da nação brasileira sobre todas as demais influências e é a favor da
instauração do comunismo em toda a América Latina; Samuel é de direita e, sendo
descendente de europeus vindos em sua maioria da Península Ibérica, considera a
influência branca proveniente dessa região com a colonização como superior às
demais e defende a monarquia; Quaderna é um mestiço, como grande parte da
população brasileira e, por isso mesmo, traz consigo ideais híbridos e até mesmo
inconciliáveis: é a favor de uma monarquia de esquerda.

269
O romance ou novela de cavalaria foi a prosa de ficção de maior sucesso de
público nos fins da Idade Média, segundo Marcos Antônio Lopes:

Sem dúvida, o gênero agradava aos homens e às mulheres, pelo conteúdo


fantástico das façanhas de seus protagonistas, em meio a sociedades que
cultivavam o herói guerreiro como figura máxima das virtudes cristãs e que,
acima de tudo, era opositor e vencedor infalível de infiéis, de bandidos e
de monstros. O paladino da história cavaleiresca é quase sempre uma
espécie de Ulisses cristianizado, o justiceiro que vai salvar a sua amada e
o seu povo das ações de usurpadores. [...] Em uma perspectiva abrangente
do gênero, pode-se afirmar que os romances de cavalaria [...] sempre
realçavam as vitórias gloriosas do herói sobre os opressores dos
desvalidos. Decorrido um certo tempo da narrativa, ouve-se apenas o
pranto dos inocentes oprimidos pelos sequazes de algum poderoso de
péssima índole, até que o paladino toma ciência das injustiças cometidas.
Daí em diante, é a escalada da mais pura energia virtuosa, um verdadeiro
festival de punições dos agravos, uma torrente de força que restaura a
ordem natural das coisas. Essa base de heroísmo é acrescida de uma
complicada trama romanesca cheia de interditos e desencontros
amorosos. Isso porque, na composição do romance cavaleiresco, não pode
faltar uma intensa paixão, daquelas que removem montanhas. A presença
de uma dama de excepcional beleza é um dos elementos vitais da estrutura
do romance, e ainda mais na última fase dessa literatura, na qual se
acentua a galanteria. À beleza superlativa da mulher é preciso acrescentar
as virtudes do sexo frágil: fidelidade e pureza em primeiro plano. A figura
feminina era indispensável ao cavaleiro, porque só realizavam verdadeiras
façanhas se existisse o combustível da paixão por uma donzela. A única
recompensa em jogo era a “resposta” que o cavaleiro receberia da dama
de seus pensamentos. Mas, junto com as experiências fantásticas, foi o
erotismo o elemento que, na composição do romance, acrescentou os
diferenciais que livraram o gênero da toada monocórdia das façanhas de
armas dos cavaleiros. Por sua amada, os cavaleiros faziam promessas
como, por exemplo, andar com um dos olhos vendados, enquanto não
conseguissem dar cabo de uma proeza; por ela deixa-se crescer a barba,
à espera da realização de um feito de armas etc. [...] As recorrências do
fantástico e do maravilhoso — monstros, espíritos, gigantes — completam
o tripé dos motivos dessa literatura [...]. (LOPES, 2009, pp. 156-157)

No romance, o amor de Sinésio e Heliana é narrado nos moldes da novela de


cavalaria: ele é considerado pelo narrador um cavaleiro de descendência nobre
cujos objetivos de luta são grandiosos e ela é uma moça bonita e sonhadora,
também considerada nobre, por quem ele se apaixona praticamente à primeira vista,
o que remete ao amor cortês dessas novelas. A profecia realizada por Quaderna de
que Sinésio transformará o povo humilde do sertão em pessoas felizes, bonitas,
ricas e imortais, punindo os poderosos que o oprimem também remete às façanhas
dos cavaleiros.

270
O folhetim é uma narrativa que se caracteriza por ser publicada de forma
parcial e sequenciada em periódicos. Sousa explica a origem da palavra folhetim e
seu uso como gênero literário:

Termo português para o francês feuilleton, derivado de feuille (folha).


Aplicava-se a um espaço regular inferior das páginas de jornais,
preenchido sobretudo por longos romances publicados como séries, mas
também por crítica literária, artigos humorísticos e até poesia, como é
frequente no caso português. O romance publicado nestas condições
adquiriu certas características, que determinaram o significado actual do
adjectivo “folhetinesco”: o texto de cada número de jornal devia constituir
um episódio ou lucubrações apresentadas de tal modo que, produzindo um
efeito de suspense (v.) levassem o leitor a querer ler o número seguinte.
(In: CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários)

O Romance d’A Pedra do Reino tem muitas passagens que o aproximam do


gênero folhetinesco. O uso de mecanismos de suspensão, manutenção e
reatamento do sentido visa não apenas a prender a atenção do leitor, mas
principalmente a tardar o desenlace de diversas questões propostas pelo narrador
ou pelo Juiz Corregedor que o interpela, seja porque ele tem medo de revelar certos
fatos referentes à história pregressa de sua família ou sua própria que poderiam vir
a prejudicá-lo no processo que está sofrendo, seja porque ele quer florear o estilo
de modo a construir uma narrativa que possa vir a consagrá-lo como o Poeta da
Nação ou até mesmo como o Gênio Máximo da Humanidade.

A MINISSÉRIE EM DIÁLOGO COM OUTROS GÊNEROS DISCURSIVOS

A Pedra d’O Reino mantém os diálogos do romance com os gêneros epopeia,


memorial, crônica histórica, ensaio, novela de cavalaria e folhetim. Contudo, dialoga
também com outros gêneros do discurso, tais como o teatro e a pintura.
Em termos de preparação de atores, de montagem de cenários e de escolha
de objetos de cena, dialoga com o teatro, pois se utilizou de técnicas mais
comumente empregadas nos palcos do que na televisão.
Os atores estudaram técnicas de expressão corporal e vocal durante um
período grande e in loco, as quais visavam a que eles realizassem um trabalho
intenso com seus corpos, como no teatro, explorando ao máximo suas
potencialidades e criando uma conexão uns com os outros que pudesse
transparecer nas filmagens.

271
Também, alguns cenários e objetos de cena da minissérie assemelham-se ao
usados no teatro, pois não se mostram como sendo a coisa que representam ser,
mas declaram seu estatuto de símbolo por sua aparência, textura, tamanho ou
tridimensionalidade, ou seja, não pretendem mimetizar os locais ou objetos reais, e
sim aludir a eles. É o que ocorre com os animais presentes em cena ao longo de
toda a minissérie – cavalos, bois, onças, cobras, preás, gaviões –, que são todos
bonecos construídos de forma artesanal por profissionais da região onde o
programa foi gravado, Taperoá, com a finalidade de torná-lo popular no sentido
original da palavra, isto é, “feito pelo povo”. É o que acontece, ainda, com a
representação das pedras que dão nome ao título e que constituem o local onde os
ancestrais de Quaderna profetizaram a volta de Dom Sebastião e promoveram
matanças como sacrifício para que o retorno do monarca finalmente pudesse ser
concretizado. Elas existem geograficamente, estão localizadas na divisa do estado
de Pernambuco com a Paraíba, e a equipe poderia ter ido até elas para gravar as
cenas referentes aos episódios sangrentos dos bisavós do narrador e à sua ida até
lá como ritual de retomada do trono de sua família. No entanto, a preferência foi por
representá-las como pintura em tecido, feita por Manuel Dantas Suassuna (filho de
Ariano Suassuna), a qual foi estendida num ambiente fechado que parece um palco
de teatro, para enfatizar a ação da personagem pela expressão do ator, bem como
a intensidade humana dessa ação em detrimento da referência física ao local. A
ideia da ficção fantasiosa de Quaderna dentro da ficção maior de Carvalho se
concretiza na antítese empregada: a escolha do tecido para representar a aspereza
das pedras e a presença de animais artificiais dentro de um relato que se diz
verdadeiro.
Ainda, as personagens da minissérie são construídas com base nas
personagens da commedia dell’arte, a qual, segundo Freitas (2008, p. 66), foi uma
forma de teatro popular improvisado iniciada na Itália no século XVI – em oposição
à comédia erudita (baseada no teatro clássico e restrita às camadas mais elevadas
da sociedade) – e que se manteve popular até o século XVIII em vários países da
Europa. Era realizada sobre as carroças de companhias itinerantes ou sobre
pequenos palcos improvisados pelas ruas e praças públicas das cidades aonde

272
chegavam. Seus principais personagens eram o arlecchino, o brighella, o dottore, o
pantalone e a colombina, cada um dos quais geralmente era interpretado pelo
mesmo ator do início ao fim de sua carreira de modo que tinha suas características
físicas e suas habilidades cômicas exploradas até o limite (FREITAS, 2008, pp. 66-
67).
Algumas das referências que a minissérie faz a esse teatro foram percebidas
por Fernanda Areias de Oliveira em sua dissertação de mestrado Novas
possibilidades para a teledramaturgia: A Pedra do Reino: uma adaptação televisiva
por Luiz Fernando Carvalho (2009, pp. 85-86): elas estão presentes na
caracterização do personagem-narrador Quaderna como arlecchino tanto no que
diz respeito à vestimenta quanto à expressão corporal e do palco de onde ele conta
sua história, que também é móvel. As personagens Dona Margarida, Samuel e
Clemente também foram inspiradas em personagens importantes da commedia
dell’arte: a Colombina, o Brighella e o Dottore, respectivamente.
A escolha em dialogar com um tipo de produção cultural popular certamente
não foi aleatória nem casual, ela reflete os propósitos específicos do diretor e da
equipe de produção como um todo com esse trabalho: criar uma obra de arte que
pudesse ser considerada erudita pelo cuidado e sofisticação com que sua
linguagem foi pensada e elaborada, mas que fosse, ao mesmo tempo, constituída
de elementos da cultura popular, assim como o romance no qual ela foi baseada.
A pintura também está presente na minissérie. Como também já observou
Oliveira (2009, pp. 110-121), Luiz Fernando Carvalho inspirou-se em afrescos do
italiano Giotto Di Bondone (1267-1337) que retratam eventos religiosos e feitos de
santos para criar o cenário onde morreu Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto bem
como para apresentar o personagem Sinésio e seu retorno à Vila de Taperoá.
A torre por sobre a qual voam os demônios no quadro A expulsão dos
demônios de Arezzo é reproduzida na minissérie: foi o local onde morreu Dom Pedro
Sebastião Garcia-Barretto, por sobre o qual paira a Onça Caetana, também uma
espécie de demônio alado – como os de Giotto – que representa a morte. Também,
a chegada de Sinésio à Vila a cavalo, quando, acompanhado de seus seguidores,

273
depara-se com diversas pessoas, muitas das quais aguardavam ansiosa e
esperançosamente a sua volta, remete à pintura Entrada de Cristo em Jerusalém.
O motivo para a escolha das obras de Giotto como inspiração, segundo
Carvalho, deve-se às cores e à textura utilizadas por ele, as quais remetem ao
elemento terra e lembram mais uma tapeçaria que uma pintura, efeitos
considerados importantes pelo diretor para a recriação imagética do sertão
suassuniano:
* A questão da luz e da textura:
Minha intenção é trabalhar os planos, o movimento dos atores, os figurinos,
os elementos cenográficos; enfim, tudo, dentro da ideia de um afresco. Um
grande afresco – à maneira de Giotto, onde se pode perceber uma
infinidade de cores e uma textura que me lembra uma tapeçaria e não uma
pintura. (CARVALHO, 2007, p. 81, grifo do autor)

Outra razão para a escolha de Giotto certamente foi o caráter inovador que o
artista imprimiu à pintura renascentista, sujeitando o esquema tradicional a uma
“simplificação radical”:

A ação desenvolve-se paralelamente ao plano do quadro; paisagem,


arquitetura e figuras foram reduzidas ao mínimo essencial; a gama ilimitada
e a intensidade de tons da pintura em afresco (cores diluídas em água,
aplicadas sobre o reboco ainda fresco da parede) acentua ainda mais o
aspecto austero da arte de Giotto. (JANSON, 1996, p. 150)

Em Entrada de Cristo em Jerusalém, Giotto consegue obter o efeito de


realidade da cena apresentada pelo fato de seu espaço pictórico ser apresentado
de modo a “fazer com que o olhar do espectador fique ao mesmo nível das cabeças
das figuras”, parecendo “dar continuidade ao espaço em que nos encontramos”. Seu
grande mérito foi o caráter tridimensional de seus “traços vigorosos”, “tão
convincente que eles parecem quase tão sólidos quanto esculturas independentes”:

Com Giotto, as figuras criam o seu próprio espaço, e a arquitetura é


reduzida ao mínimo exigido pela narrativa. Consequentemente, sua
profundidade é obtida através dos volumes combinados dos corpos
sobrepostos na pintura, mas, mesmo restrito a esses limites, os resultados
são muito convincentes. [...] Giotto considerava a pintura superior à
escultura – uma pretensão nada vã, pois ele de fato inicia o que
poderíamos chamar de “era da pintura” na arte do Ocidente. Entretanto,
seu objetivo não era simplesmente rivalizar com a estatuária; queria antes
que o impacto total da cena atingisse o espectador de imediato. Se
observarmos as pinturas anteriores, constataremos que nosso olhar
percorre vagarosamente cada detalhe, até cobrir toda a superfície. Giotto,
ao contrário, não nos convida a examinar demoradamente pequenos

274
pormenores, nem a percorrer novamente o espaço pictórico; mesmo os
grupos de figuras devem ser vistos como blocos, e não como aglomerados
de indivíduos. Cristo encontra-se sozinho no centro, ao mesmo tempo que
preenche o espaço entre os apóstolos que avançam pela esquerda e os
habitantes da cidade, em atitude de reverência, à direita. Quanto mais
estudamos esse quadro, mais nos damos conta de que sua força e clareza
majestosas encerram a mais profunda expressividade. (JANSON, 1996,
pp. 150-151)

A cena de Sinésio chegando à Vila, assim como o quadro de Giotto citado


acima, inova em seu meio ao conduzir o espectador a manter o olhar no mesmo
nível das cabeças das personagens devido ao enquadramento utilizado: o primeiro
plano, que, segundo Araújo (1995, p. 63), é aquele que foca a personagem da
cintura para cima. Na televisão e no cinema naturalistas, essa cena teria sido filmada
em plano de conjunto, isto é, com todo o grupo de personagens do bando sendo
focado ao mesmo tempo a fim de transmitir com mais ênfase a ideia de chegada
abrupta e inesperada, de uma invasão.
Ainda, um motivo para Carvalho ter se inspirado em pinturas de Giotto para
compor algumas cenas foi o de identificação dos temas nelas representados:
percebemos que existe um paralelo entre as personagens centrais de cada cena,
Cristo e Sinésio: enquanto o centro da imagem de Giotto é Cristo, o centro da
imagem da minissérie é Sinésio, o que permite a identificação desse personagem
como uma figura messiânica, sentido que perpassa toda a narrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escolha de Ariano Suassuna de fazer seu narrador utilizar-se de vários


recursos provindos de diferentes gêneros literários dentro de seu romance se
sustenta pelas diversas necessidades deste dentro da narrativa: 1-) contar com
grandiosidade sua história a fim de que, com sua escrita, possa obter o título de
Gênio Máximo da Humanidade; 2-) tentar nos provar que é da linhagem dos profetas
da Pedra Bonita e que é inocente das acusações feitas contra ele; 3-) convencer a
todos da importância que seus ancestrais tiveram para a história do Brasil; 4-) expor
seu ponto de vista político e literário, bem como o de seus mestres; 5-) criar a
imagem de seu primo Sinésio à semelhança de um cavaleiro medieval e até de Dom

275
Sebastião; 6-) evitar revelar informações sobre seus antepassados por medo de se
prejudicar no inquérito e florear o estilo para que seu livro se torne a “obra da raça”.
Por sua vez, a escolha dos produtores da minissérie de mesclar a linguagem
televisiva a elementos oriundos de outras artes, aproxima-a do romance com
relação à variedade de gêneros que compõem seu discurso. Ela o faz, no entanto,
não apenas tendo a hibridação de gêneros como um fim em si mesmo, mas sim
para construir significados específicos e transmitir mais e melhor as emoções das
cenas retratadas. A representação de animais através de bonecos e não de seres
vivos treinados causa estranheza no espectador acostumado a ver objetos que
simulam os reais – tais como o dinheiro e os alimentos cenográficos que aparecem
com frequência na teledramaturgia – e tem o intuito maior de remeter ao tom
hiperbólico e fantasioso da narração empreendida por Quaderna, a qual não é uma
narração que ocorre num ambiente natural e visa a relatar a verdade dos fatos
(embora ele queira aparentar isso em alguns momentos). Pelo contrário, ela faz
parte do projeto de escrita do livro que ele pretende que seja um romance epopeico
– obra ficcional – ainda que retome elementos “reais”. Por isso, utilizar animais “de
mentira” corrobora para a construção do sentido de que tudo aquilo que Quaderna
está contando talvez nunca tenha acontecido realmente, mas apenas faça parte de
um construto, tão fictício quanto os animais artificiais e as pedras exibidos na tela.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Inácio. Cinema: o mundo em movimento. São Paulo: Scipione, 1995
(História em Aberto).

BATISTA, Fernanda Cristina Araújo. A Pedra do Reino: uma análise dos


procedimentos da adaptação do romance para minissérie e dos diálogos com outros
gêneros discursivos. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2015.

CARVALHO, Luiz Fernando et al. A Pedra d’O Reino / da obra de Ariano Suassuna:
Cadernos de filmagem do diretor (V. 1, 2, 3, 4, 5) [Diário de elenco e equipe]. São
Paulo: Globo, 2007.

FREITAS, Nanci de. A commedia dell’arte: máscaras, duplicidade e o riso diabólico


do arlequim. In: Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v. 5,
n. 1, pp. 65-74, 2008.

276
GENETTE, Gérard. Palimpsests: literature in the second degree (Stages).
Translated by Channa Newman and Claude Doubinsky. University of Nebraska
Press, 1997.

GRAHAM-DIXON, Andrew. Arte: O Guia Visual Definitivo da Arte: da Pré-História


ao Século XXI. São Paulo: Publifolha, 2013.

JANSON, H.W.; JANSON, Anthony F. Iniciação à História da Arte. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.

LOPES, Marcos Antônio. Explorando um gênero literário: os romances de cavalaria.


In: Revista Tempo. v. 15, n. 30. UFF: Rio de Janeiro, 2009. ISSN 1980-542X.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1974.

OLIVEIRA, Fernanda Areias de. Novas possibilidades para a teledramaturgia: A


Pedra do Reino: uma adaptação televisiva por Luiz Fernando Carvalho (12/06/07 a
16/06/07). Dissertação. (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura).
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.

PAVIANI, Jayme. O Ensaio como Gênero Textual. In: V SIGET: Simpósio


Internacional de Estudos de Gêneros Textuais – O Ensino em Foco. Caxias do Sul,
2009. ISSN 1808-7655.

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e-volta. 9ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

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GLOBO, 2007.

CEIA, CARLOS. E-Dicionário de Termos Literários. ISBN: 989-20-0088-9.


Disponível em: http://www.edtl.com.pt. Acesso em: 23 dez. 2013.

DI BONDONE, Giotto. Legend of St. Francis: 10. Exorcism of the Demons at Arezzo
(1297-1299). Afresco, 270 x 230 cm. Basílica de São Francisco de Assis, Assis.
Disponível em: www.wga.hu. Acesso em 15 nov. 2013.

______. No. 26 Scenes from the Life of Christ: 10. Entry into Jerusalem (1304-1306).
Afresco, 200 x 185 cm. Capella Scrovegni, Pádua. Disponível em: www.wga.hu.
Acesso em 15 nov. 2013.

277
CLÁSSICO LITERÁRIO E ADAPTAÇÃO EM QUADRINHOS:
UMA PROPOSTA PARA A FORMAÇÃO ESTÉTICO-DISCURSIVA
DO JOVEM LEITOR74

Fernanda Isabel Bitazi75


Introdução

Pode-se considerar o ano de 2006 um importante marco para a produção dos


quadrinhos em solo brasileiro. Naquele ano, obras em quadrinhos foram incluídas,
pela primeira vez, na lista do PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) 76
(VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p. 12), sendo enfatizada, para a composição dos
acervos a serem distribuídos às escolas, a aquisição de adaptações quadrinizadas
dos clássicos literários “artisticamente adaptadas ao público jovem” (BRASIL, 2006,
p. 2).
Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos cogitam que uma possível razão para
tal ênfase na aceitação de adaptações quadrinizadas de obras literárias canônicas
está em que o MEC (Ministério da Educação) parece “encarar os quadrinhos – por
mesclarem elementos verbais escritos e visuais – como um estímulo à leitura”
(VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p. 40) e, acrescentando uma outra hipótese, como
um estímulo à leitura dos hipotextos literários clássicos, cuja linguagem e temáticas
são, muitas vezes, encaradas pelo jovem leitor como algo muito distante de sua
realidade (BARBOSA, 2011, p. 159). Essa visão instrumental do Governo Federal
em relação aos quadrinhos, associada ao fato de ele ser, por meio de ações
promovidas principalmente pelo MEC, o principal comprador brasileiro de livros
(ZILBERMAN, 2014, p. 224), promoveu uma maior produção de obras em
quadrinhos, inclusive a de adaptações quadrinizadas de clássicos literários. Aliás,
sobre sua inserção no PNBE de 2006, Ramos afirma que, “como o Governo Federal
tendia a priorizar adaptações literárias nas seleções, começou uma corrida de ouro

74
Este artigo é um recorte da tese de doutorado concluída e defendida pela autora em agosto de 2015, na
Universidade Presbiteriana Mackenzie. O título deste artigo e o da tese são exatamente os mesmos.
75
Universidade Presbiteriana Mackenzie
76
O PNBE é um programa do Governo Federal cujo propósito é fornecer às escolas públicas acervos com livros
de literatura, os quais devem ou deveriam ser, posteriormente, trabalhados pelos professores juntos a seus
estudantes. Para a composição do acervo, o governo lança, anualmente, editais com as regras que orientam as
editoras do país a lhe apresentarem os livros a serem escolhidos.

278
para incluir algum título na lista. Mesmo editoras que não tinham tradição de publicar
quadrinhos começaram a lançar adaptações” (RAMOS, 2012, p. 243).
Além de acarretar um expressivo aumento na produção de adaptações
literárias quadrinizadas, essa tendência do edital em priorizar sua aquisição visando,
principalmente, o acesso dos jovens leitores aos clássicos literários, também
provocou mudanças nos processos de elaboração estética da linguagem dos
quadrinhos. Muitas adaptações, por exemplo, foram produzidas, mantendo-se,
praticamente, intactos longos trechos do texto das obras canônicas adaptadas. A
respeito desse excessivo respeito à linguagem literária, Waldomiro Vergueiro afirma
que “as boas adaptações – e mesmo as HQ’s originais – precisam respeitar uma
regra simples: serem verdadeiramente histórias em quadrinhos e não um resumo,
ou a transposição integral das obras originais” (BONINO, s/d). Moacy Cirne, por seu
turno, faz a seguinte indagação acerca desse tipo de produção: “Quantos e quantos
romances adaptados não passam de simples ‘histórias ilustradas’?” (CIRNE, 2000,
p. 184). O teórico afirma, ainda, que “os quadrinhos não são apenas para serem
lidos; são também para serem vistos. Em muitas séries, são sobretudo para serem
vistos” (CIRNE, 2000, p. 175-176, grifos do autor).
Mas e se são exatamente essas as adaptações que acabam por parar nas
mãos dos jovens leitores? Seria, pois, o caso de concluir que a formação do jovem
leitor estaria comprometida? Outra questão que se coloca é sobre se qualquer
adaptação literária em quadrinhos pode fazer o jovem passar de sua condição inicial
de leitor de primeiro nível para a de leitor de segundo nível das obras clássicas
literárias. Seria, aliás, esta sua única contribuição para a formação leitora do jovem?
Para respondermos a essas indagações, comecemos pela diferenciação que
Umberto Eco faz entre leitor de primeiro nível e leitor de segundo nível:

Toda obra se propõe pelo menos dois tipos de leitores. O primeiro é a


vítima designada pelas próprias estratégias enunciativas, o segundo é o
leitor crítico que ri do modo pelo qual foi levado a ser vítima designada [...]
O leitor do segundo nível deve divertir-se não com a história contada, mas
com o modo como foi contada (ECO, 1989, p. 101, grifos nossos).

279
Para o teórico italiano, os leitores de primeiro nível preocupam-se mais com
o enredo – logo, com o conteúdo – de uma narrativa, enquanto os de segundo nível
transcendem essa preocupação ao se importarem com sua arquitetura textual –
portanto, com sua forma. Tendo em vista uma definição tradicional do que venha a
ser texto literário, um dos protocolos que rege sua leitura é a depreensão e a
apreciação, por parte do leitor, de como o escritor trama artisticamente os elementos
linguísticos de modo a produzir determinados sentidos (BLOOM, 2010, p. 35-36;
OSAKABE; FREDERICO, 2004, p. 76). Deste ponto de vista, Leyla Perrone-Moisés
afirma que “estudar a literatura apenas a partir da temática é a maneira mais pobre
de a conceber”, pois “a leitura temática empobrece não apenas o texto mas também
seu leitor” (PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 3).
Se levarmos em conta tão-somente esta visão mais tradicional da leitura do
texto literário, nenhuma adaptação quadrinizada – nem mesmo as bem produzidas
– possibilitaria ao jovem leitor o acesso à forma artisticamente elaborada dos
hipotextos literários canônicos. Uma primeira explicação para isso seria a de que,
se, por um lado, o conteúdo do hipotexto persiste em uma adaptação, por outro, sua
forma muda (HUTCHEON, 2011, p. 32). Portanto, mesmo as adaptações que
tentam manter intactos longos trechos verbais do hipotexto clássico mudam sua
forma, na medida em que processam cortes em sua narrativa com vistas à
adequação ao novo meio midiático. Um outro motivo que poderia explicar a
impossibilidade de essas produções promoverem tal acesso se refere simplesmente
a que “qualquer adaptação está fadada a ser considerada menor e subsidiária,
jamais tão boa quanto o ‘original’” (HUTCHEON, 2011, p. 11).
No entanto, pensando em que tanto o jovem quanto a escola estão imersos
no que Jesús Martín-Barbero denomina por ecossistema comunicativo da cultura
eletrônica audiviosual, que constitui um meio educacional difuso e descentralizado
– difuso porque concatena uma diversidade de linguagens e descentralizado porque
a escola e o livro já não são mais o principal centro irradiador dos saberes que
circulam na sociedade contemporânea (MARTÍN-BARBERO, 1999, p. 27) –, é
preciso reconsiderar se as adaptações quadrinizadas realmente não permitem ao
jovem leitor acessar a estética dos hipotextos literários canônicos. Além disso, e

280
principalmente, é preciso levar em conta que a realização de uma boa mediação
leitora na escola pode contribuir para que o diálogo entre adaptações e clássicos
literários forme jovens leitores de segundo nível não apenas da linguagem literária,
mas, também, da própria linguagem dos quadrinhos. Isso pode, inclusive, ser feito
por meio de uma adaptação de má qualidade, afinal, como bem afirma Marisa
Lajolo: “Mesmo com um texto muito ruim, pode fazer-se um bom trabalho. Um bom
leitor pode atenuar a carga negativa de um mau texto, e um bom texto pode ser
prejudicado por um mau leitor” (LAJOLO, 2009, p. 101).
E, no caso do estudo comparativo entre adaptação e hipotexto clássico
literário, em que consiste uma boa mediação leitora? Em primeiro lugar, o professor
deve distinguir o que faz uma adaptação quadrinizada ser esteticamente melhor
resolvida que outra. Se comentamos que a mera “colagem” de longos trechos
verbais do hipotexto literário a descaracteriza enquanto produção em quadrinhos,
então uma boa adaptação diz respeito àquela que pode ser fruída como obra
autêntica e autônoma, ou seja, como obra que, apesar do vínculo explícito com seu
texto-fonte, pode ser apreciada simplesmente a partir de seus próprios meios de
elaboração. Uma adaptação quadrinizada que se preocupa excessivamente com a
manutenção quase que integral do hipotexto literário goza de pouca autonomia, uma
vez que, de sua parte, há “um grande respeito pela arte literária, [...] como se fosse
somente [ela] o texto ‘bem escrito’” (ZENI, 2014, p. 126). Com isso, estamos
querendo dizer que as adaptações que mantenham parte do texto do clássico
façam-no de modo que sua edição não torne secundário um aspecto fundamental
dos quadrinhos: sua visualidade.
Outros procedimentos prévios de que o professor deve se valer para realizar
um estudo em paralelo eficiente entre uma adaptação quadrinizada e seu hipotexto
clássico literário, objetivando a formação de segundo nível do jovem leitor, são: a)
ele deve conhecer, relativamente bem, o texto literário canônico, o que implica em
ler, criticamente, não só algumas interpretações legitimadas pelo meio acadêmico,
como, também, ler o texto canônico na sua íntegra; b) ele deve conhecer os
mecanismos estruturantes básicos tanto da linguagem literária, quanto da
linguagem quadrinizada; c) ele deve ler a adaptação literária quadrinizada, para, em

281
seguida, fazer um levantamento do que nela permaneceu e dela se retirou em
termos de enredo; d) ele deve verificar se os adaptadores privilegiaram apenas a
transposição do enredo da obra canônica ou se também se preocuparam em
traduzir77, imageticamente, alguns de seus recursos estéticos verbais; e) ele deve
verificar como as escolhas dos adaptadores foram transpostas, visualmente, para a
linguagem dos quadrinhos.
Tomando por base todas essas orientações, iremos analisar, a seguir,
apenas um trecho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, em comparação com
Dom Casmurro, de Ivan Jaf e Rodrigo Rosa, adaptação quadrinizada que, por
respeitar seus próprios meios de elaboração, é adequada para a formação leitora
de segundo nível dos jovens tanto na linguagem dos clássicos literários quanto na
dos quadrinhos. Acreditamos que esse procedimento de análise por unidade de
comparação permite ao aluno diferenciar linguagens diversas – no caso em
questão, a verbal e a verbo-visual –, pondo-lhe em relevo os recursos estéticos de
que cada uma delas se vale para transmitir seus conteúdos simbólicos e ideológicos.
Antes de procedermos efetivamente com tal análise comparativa, cabem,
ainda, algumas poucas considerações gerais tanto sobre o hipotexto clássico
quanto sobre a adaptação. Como já se sabe, ler Dom Camurro – assim como
praticamente toda a obra de Machado de Assis – é ter de lidar com os efeitos de
sentidos oriundos de determinados recursos que, de certa forma, marcam toda sua
poética: a lentidão da narrativa do referido romance decorre das muitas digressões
feitas por Bento Santiago ao longo de seu relato e sua dubiedade interpretativa
advém das várias alusões intertextuais e das ironias zombeteiras continuamente
proferidas por esse narrador-protagonista.
No caso da adaptação quadrinizada elaborada por Ivan Jaf e Rodrigo Rosa,
sua leitura integral revela um maior dinamismo e uma maior objetividade em relação
ao ritmo da história do hipotexto clássico, uma vez que os adaptadores, ao
transporem-na para a sintaxe dos quadrinhos, eliminaram praticamente todas suas
digressões, alusões intertextuais e ironias, bem como reescrevam seu texto

77
Segundo Tereza Barbosa, a diferença entre adaptação quadrinizada e HQ-tradução é que esta consiste em
“recuperar as leis estéticas que foram molas mestras no texto literário” (BARBOSA, 2013, p. 9).

282
mediante o processo parafrástico, logo, sem usar a “colagem” ipsis litteris da escrita
machadiana. Assim, se Machado de Assis delineia um protagonista que tenta
esconder, por meio de suas constantes ironias e digressões, o amor e o carinho que
ainda sente pela já falecida esposa – segundo o crítico José Veríssimo, Bento
“procura cuidadosamente esconder estes sentimentos, sem talvez consegui-lo de
todo” (VERÍSSIMO, 2003, p. 229) –, Jaf e Rosa traçam-no, em sua adaptação, como
alguém que, mesmo explicitando sua angústia por não saber se fora ou não traído
por Capitu, não hesita em explicitar o amor e a ternura que ainda nutre por ela.
Vejamos como essa diferença ocorre entre ambas as produções, a partir da famosa
cena dos “olhos de ressaca”:

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para


dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. [...] Olhos de ressaca? Vá, de
ressaca. [...] Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força
que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de
ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às
orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão
depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava
e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos
minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse
tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não
acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos
suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a
soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos;
assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus
desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro
suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar
poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-
me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e
disse-lhe, – para dizer alguma cousa, – que era capaz de os pentear, se
quisesse (ASSIS, 2008, p. 159).

Esta cena diz respeito à ocasião em que Bento relata ao leitor que, quando
jovem, no intuito de querer saber se os olhos de Capitu eram, de fato, “olhos de
cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2008, p. 158), tais como foram definidos por
José Dias, pediu a até então amiga que os deixasse ver. O resultado dessa
recordação é que Bento lembra dos olhos da amiga ficando “crescidos” e “sombrios”
(ASSIS, 2008, p. 159), imagem esta que desperta suas emoções, fazendo-o valer-
se da metáfora da ressaca do mar para descrever a força ao mesmo tempo
assustadora e prazerosa que o olhar de Capitu lhe causou não só naquele instante,

283
como também no momento de seu relato. Contudo, para tentar esconder a
vivacidade desse afeto e, por extensão, demonstrar segurança diante desse
sentimento, Bento emenda, logo após seu discurso metafórico, uma digressão
irônica pela qual insinua que a infinita e breve eternidade daquele seu momento de
felicidade lhe trouxe suplícios futuros. Seguindo sua jornada pretensiosamente
racional, ele segue relatando o instante em que, para tentar recompor-se de seu
desconcerto, pediu à amiga que o deixasse pentear seus cabelos.
Na adaptação de Ivan Jaf e Rodrigo Rosa, podemos constatar, por meio da
supressão da digressão irônica, que Bento não faz questão de disfarçar que ainda
se recorda, com carinho, de todos esses acontecimentos:

(ROSA; JAF, 2012, p. 20-21)

284
Além da eliminação da digressão irônica, um outro recurso que põe em relevo
o amor de Bento em detrimento da raiva é o uso por Jaf e Rosa de um recurso
próprio da linguagem quadrinizada: o uso do metaquadrinho, que é o quadrinho de
página inteira (EISNER, 2001, p. 63). Nos dois metaquadrinhos em questão, a
organização do enredo feita sem a sequência linear de vários quadrinhos –
responsável pela “ordem cronológica do ato de fala e do diálogo e, portanto, do
próprio tempo narrativo” (CAGNIN, s/d, p. 52) – causa a impressão de que as
sensações do passado invadem o presente, mesclando-se a ele. Se, no primeiro
metaquadrinho, a metáfora dos olhos de ressaca aparece traduzida
imageticamente, ressaltando o medo e o cuidado do jovem Bento para não “afogar-
se”, no segundo, a transposição da cena do penteado e do beijo, que, no romance,
também vem logo após a cena dos olhos de ressaca (ASSIS, 2008, p. 161-162),
demonstra o prazer que tais acontecimentos lhe proporcionaram e ainda lhe
proporcionam, tanto que o protagonista, no momento em que está escrevendo suas
memórias, aparece sendo afagado pelas tranças de Capitu. Além disso, ele aparece
montado em um pente, cavalgando pelo espaço e tendo, por companhia, a figura
de quando era garoto. Vale ressaltar que tal cena, no hipotexto clássico, não foi
representada por Machado de Assis por meio de nenhuma metáfora, mas, sim,
somente mediante a tensão entre o saudosismo e a ironia de Bento.
A breve análise da unidade comparativa proposta neste estudo serviu não
para defender a ideia de que a adaptação quadrinizada deve garantir que o jovem
leitor passe a ler, espontaneamente, os clássicos literários. O objetivo central foi
mostrar que o trabalho comparativo é uma dentre outras atividades pedagógicas
que podem fazer os jovens leitores perceberem que o funcionamento estético da
linguagem literária é distinto da linguagem quadrinizada: no caso analisado, mesmo
optando por traduzir, visualmente, a metáfora verbal machadiana, e por
conseguinte, manter seu efeito estético, Jaf e Rosa fizeram-no de forma a valorizar
as leis sintáticas dos quadrinhos, o que também pôde ser conferido pela criação de
metáforas imagéticas, cujo correspondente verbal é inexistente no hipotexto.
Acreditamos que fazer os jovens perceberem as diferenças entre as
linguagens é uma maneira de contribuir para seu amadurecimento leitor. Saber que

285
uma adaptação é uma obra distinta do hipotexto, porque os meios em que uma
mesma história é contada são diferentes um do outro pode aprimorar seus critérios
de avaliação e de escolha, o que não significa afirmar que eles precisam vir a gostar
de ler o clássico literário. Significa que é preciso que os jovens se conscientizem de
que o estilo de Machado de Assis não é chato porque é difuso, mas pode ser
considerado chato porque simplesmente eles não gostam desse estilo; e para não
gostar, é preciso experimentar e conhecer como esse estilo funciona. E é a escola
que deve fornecer todo o instrumental que vise o aprimoramento de seus
julgamentos e escolhas, afinal “formação estética não é [...] satisfação caprichosa
do gosto, busca do que me agrada pura e simplesmente” (PERISSÉ, 2009, p. 47).

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288
EFEITOS DE SENTIDOS NA INTERCULTURA: UM ESTUDO DE EXPRESSÕES
IDIOMÁTICAS NO ESPAÇO LUSÓFONO

Flavio Biasutti Valadares78

Introdução

O foco do trabalho foi a investigação de expressões idiomáticas nos países


lusófonos selecionados – Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal –, e como se
dá a construção dos efeitos de sentido na intercultura.
A partir dessa ideia, selecionamos expressões idiomáticas em cada um
destes países lusófonos e analisamos a construção de semelhanças e de diferenças
do conhecimento linguístico-gramatical, do ponto de vista sociocultural.
Na configuração de análise do corpus selecionado, consideramos: 1) as
expressões idiomáticas dos países lusófonos selecionados – Brasil, Cabo Verde,
Moçambique e Portugal –, a fim de constatar as semelhanças e diferenças, com
base no conhecimento linguístico-gramatical, do ponto de vista sociocultural; 2) o
processo de construção de efeitos de sentido em expressões idiomáticas utilizadas
nos países lusófonos selecionados; 3) a compreensão de semelhanças e de
diferenças no uso de expressões idiomáticas destes países; e 4) a identificação de
aspectos relativos aos conhecimentos construídos sob a perspectiva linguístico-
gramatical, sob um viés intercultural.
A análise do corpus está baseada na recolha de expressões idiomáticas, em
textos jornalísticos publicados em sítios de cada um dos países selecionados. Este
corpus configura-se como cientificamente embasado para o cumprimento dos
objetivos, visto que a mídia impressa de um país reproduz seu espírito de época
(Princípio da Contextualização – KOERNER, 1996); além disso, configura-se como
um veículo para a transmissão de um saber compartilhado, em que algumas atitudes

78
Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo/IFSP.Doutor em Língua
Portuguesa/PUC-SP,Pós-Doutorado em Letras/MACK-SP

289
linguísticas são motivos de demarcação de espaço, de identidade cultural e de
elaboração do perfil de uma comunidade. (VALADARES, 2014, p. 71)
Metodologia adotada: seleção das expressões idiomáticas com mesma
estrutura linguística, recolhidas em textos de jornais publicados em sítios de cada
país79; elaboração de um quadro no qual consta a expressão idiomática
selecionada, o país e a fonte de onde fora recolhida a expressão. Em seguida, a
análise de cada uma das expressões idiomáticas selecionadas conta com: a) o
contexto no qual a expressão fora utilizada em cada uma das fontes, b) os aspectos
interculturais envolvidos relativos aos conhecimentos construídos sob a perspectiva
linguístico-gramatical, c) a identificação ou não sob o ponto de vista linguístico,
social e cultural de semelhanças no âmbito da intercultura, d) a indicação de
ampliações no uso ligadas a áreas da sociedade, como política, economia,
tecnologia, esporte, moda, saúde e sociedade.
Para apresentação, selecionamos 1 expressão idiomática e sua respectiva
análise:
MOVER MUNDOS E FUNDOS
BRASIL

SANTIAGO80 - Ninguém leva muito a sério essa história de o Brasil mover


mundos e fundos para tentar reformular a ONU e ganhar uma vaga permanente
no Conselho de Segurança. Não leva a sério porque acha que o Brasil não tem
estatura para isso e não se interessa muito porque o assunto é chato mesmo e
não se sabe direito para que esse raio desse conselho serve. Para impedir
invasões do Iraque é que não é.
CABO VERDE

O corrupto Preirona81 Quarta, 12 Dezembro 2012 08:03, por Nuno Ferro Marques

Portanto, há aqui alguém que perde em cada “erro” e em cada “correção”, e esse
alguém somos nós, o país, a Nação. Cristina Duarte que havia sido diretora de
gabinete ou coisa parecida (salvo seja) de João Pereira Silva na ditadura é que
acabou por descobrir, enquanto Ministra das Finanças e Planeamento o que eu
já havia descoberto dois ou três anos antes, que João Pereira Silva estava a

79 Opção de reproduzir os textos selecionados com o trecho específico de análise e a devida indicação em nota
de rodapé da referência eletrônica.
80 MOTTA, Nelson. Pelo mundo afora. Folha de São Paulo
81 Disponível em http://cvnoticia.com/section-table/36-politica-cabo-verde/748-o-corrupto-preirona-.html

Acesso em 09.maio.2014

290
tramar Boa Vista e Maio e a bolsa de cada cabo-verdiano, de Santo Antão à
Brava, João Pereira Silva, do alto da sua competência agronómica e neo-
ditatorial, determinara e até declarara para a revista África que era preciso
“remover os obstáculos legais” e que em seis meses iria mover mundos e
fundos para isso.
MOÇAMBIQUE

Compreendendo a Renamo: Missão impossível82 Quarta, 04 Junho 2014 00:00,


por Alexandre Chivale

TENHO estado a ponderar seriamente na possibilidade de mover mundos e


fundos para conseguir convencer realizadores famosos de Hollywood ou os
melhores romancistas, com o intuito de lhes vender uma engenhosa ideia, com
largas possibilidades de produzirem uma longa-metragem ou um dos best sellers,
a figurar nos anais do Guinnes Book. Assim é porque já vou na segunda série de
elucubrações, tentando compreender um suposto partido político que dá pelo
pomposo nome de Resistência Nacional de Moçambique, abreviadamente
designado por RENAMO. Tem sido titânico, entretanto, inglório, o esforço de
compreender se estamos em presença de um movimento dirigido por um senhor
de guerra ou um clube de amigos, que à custa do suor do povo tem tentado
amealhar ganhos económico-financeiros, sem para tal fazer o mínimo esforço.
PORTUGAL

Uma estória destes dias83


Jornal Avante. n.º 2018. Agosto. 2012. Por João Ferreira

O dia quente, apesar de ainda curto, mergulhava-o num certo torpor, sensação
estranha para quem se considera um homem de acção, habituado a tomar as
decisões que se impõem, por difíceis que sejam, sem hesitações ou
procrastinações. Decisões como a que hoje era chamado a tomar, melhor
dizendo, como a que hoje era chamado a anunciar aos
trezentos colaboradores que a empresa decidira dispensar. Enfim, ajustamentos
derivados de descréscimos de produção, inerentes à actividade do sector. Uma
situação normal, como reconheceu aliás o presidente da Câmara – homem
pragmático, compreensivo face às naturais contingências inerentes à actividade
do sector, e que sabe reconhecer a importância que investidores como este têm
para a prosperidade do concelho. Por essa razão, de resto, não hesitara tudo
fazer para ajudar a mover mundos e fundos (incluindo os generosos fundos
comunitários) para atrair para a cidade este importante investimento.

QUADRO 1 – Expressão idiomática

82
Disponível em http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/analise/16937-compreendendo-a-renamo-
missao-impossivel-1 Acesso em 11.agosto.2014
83 Disponível em http://www.avante.pt/pt/2018/europa/121196/ Acesso em 09.maio.2014.

291
A origem84 da expressão “Mover mundos e fundos”, de acordo com a revista
Aventuras na História, surgiu das navegações espanholas. Segundo uma antiga
promessa que rogava “O Céu pediu estrelas/O peixe pediu fundura”, os aventureiros
tinham uma impressão abissal do mar. Para eles, a noção de mundo e da fundura
do oceano era algo recorrente e trivial no dia a dia – daí o termo com os dois
exageros. Seu significado, conforme Nascentes (1986, p. 193), é “fazer muitos
oferecimentos para depois não os cumprir ou fazê-lo pela metade”. O contexto de
uso, nos textos selecionados, é político (Brasil, Cabo Verde e Moçambique) e
político-econômico (Portugal).
Pensando na intercultura, o uso em cada um dos 4 países lusófonos sob a
noção linguístico-cultural indica semelhança na construção do sentido do elemento
linguístico, isto é, a ideia de que as culturas podem estar ligadas por elementos que
ultrapassam o linguístico se apresenta como possível na expressão idiomática
selecionada – mover mundos e fundos –, visto que o texto-base da coleta indica
que tal expressão mantém o mesmo significado nos 4 países lusófonos – oferecer
algo e não exatamente cumpri-lo.
Dessa maneira, constatamos que, sob o ponto de vista linguístico, há
semelhanças no âmbito da intercultura, uma vez que a construção de sentidos dá-
se igualmente e configura-se, na perspectiva da fraseologia, em “combinações onde
os componentes possuem traços metafóricos geralmente estáveis”. (ORTÍZ
ALVAREZ, 2002, p. 520)
Em uma perspectiva cultural, como salienta Xatara e Seco (2014, p. 504), as
semelhanças que ocorrem no interior das expressões idiomáticas promovem
contatos interlinguísticos entre diferentes culturas e propiciam a troca desses dados
culturais entre as diversas sociedades, ou seja, de suas visões de mundo, ideologias
e escalas de valores. Além disso, as autoras indiciam que “não podemos deixar de
mencionar a própria existência intralinguística de sinonímia entre as EIs,

84 Urbano (2013) salienta que fica normalmente sem solução científica, principalmente em relação às
expressões consideradas como as mais populares. No entanto, valemo-nos, em alguns casos, de fontes
jornalísticas para explicitar a origem da expressão idiomática utilizada.

292
tradicionalmente consideradas cristalizadas e, portanto, não vulneráveis à variação”.
E complementam que o “fato se explica por uma cristalização ou estabilidade
apenas relativa, o que deixa margem a uma variabilidade, ainda que restrita”.
(XATARA e SECO, 2014, p. 505)
Por fim, identificamos que existem ampliações que ultrapassam um uso
restrito ao senso comum ou ao popular, isto é, há indicações, nos textos
selecionados, ligadas à política e à economia para a expressão mover mundos e
fundos. No caso do Brasil, ela é utilizada no texto com um sentido político no qual
se questiona o fato de o Brasil não se esforçar suficientemente quanto a ter uma
vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Nesse aspecto, demonstra
a fragilidade política que o Brasil ainda apresenta e ratifica a noção de um certo
desinteresse, o que fica patente no uso da expressão.
Igualmente, a expressão utilizada nos textos selecionados de Cabo Verde e
de Moçambique demonstra a fragilidade política destes países, ao ser colocada uma
situação de trama de golpe político e uma situação de criação de um partido político,
respectivamente. No caso de Portugal, o uso em sentido político-econômico traz
para tal âmbito a expressão em perspectiva de fazer oferecimentos para
consecução da proposta de investimento.
Assim, sentimo-nos autorizados a afirmar que existe, sim, um espaço no qual
convivem tais culturas sob o ponto de vista linguístico, posto que a estrutura
linguística é idêntica; e sob a perspectiva sociocultural, uma vez que a expressão
fora utilizada com objetivos comunicativos iguais nos 4 países, quais sejam os de
ratificar a ideia de que se fez algum oferecimento para depois não cumpri-lo. Trata-
se, assim, de uma sinonímia intercultural, já que remete a uma mesma imagem
cultural.

Conclusão

É importante citarmos Martins (2012, p. 33), que reflete: “a visão do mundo


de uma comunidade está presente nas E.I’s [expressões idiomáticas] da sua língua.

293
Estas são transmitidas de geração em geração e estão presentes nas mentes dos
falantes que as atualizam no seu discurso quase de forma inconsciente”.
Partimos, então, nesta pesquisa, da ideia de que uma expressão idiomática,
de fato, é simbólica em uma cultura, sendo ainda mais uma construção (inter)cultural
quando se trata do espaço lusófono.
Com isso, obtivemos, como resultado, em nossas análises, que o espaço
lusófono se caracteriza não apenas pelo uso oficial de uma língua em comum, mas
também, por realizações linguísticas que extrapolam tão-somente estruturas, indo
além disso, com um uso de sentido em cada cultura que se estende à compreensão
nas várias culturas lusófonas, assinalando, neste espaço, o aspecto intercultural,
defendido por nós neste trabalho.

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295
LINGUAGEM, IDENTIDADE E GÊNERO: IDEOLOGIAS CONSERVADORAS E
DESIGUALDADE DE GÊNERO NO CAMPO POLÍTICO

Gabriela Soares Balestero85

Introdução

A linguagem tomada discursivamente corrói as sociedades complexas e


contemporâneas, naquilo que ela possui de uma imposição de leitura de mundo, de
verdade estabelecida pelas ideologias conservadoras sexistas que procuram
estabelecer uma grade de leitura de regimes de verdades para uma suporta ordem
ou normalidade social.
Assim ao longo da história as mulheres foram alijadas do campo social
principalmente sofrendo com a exclusão, diante da presença constante do discurso
discriminatório inibidor do protagonismo feminino.
Nesse passo, no presente estudo será analisada a discriminação da mulher
no cenário social e político brasileiro diante da ausência de equiparação de fato no
tange à igualdade de chances e a acesso a cargos públicos, de maneira a violar o
disposto no artigo 5°, inc. I da Constituição Federal que prevê a igualdade entre
homens e mulheres em direitos e obrigações.
Apesar da Lei 9.504/97 obrigar que os partidos políticos reservem para as
mulheres pelo menos 30% de suas candidaturas aos legislativos federal, estadual e
municipal. Essa alteração legislativa pouco melhorou a representação feminina nos
cargos de comando, sendo necessária uma mudança da mentalidade para que
realmente haja a quebra dos estereótipos de identidade de gênero ainda existentes
e possibilitar, através do discurso a construção de uma sociedade mais democrática
e efetivamente inclusiva. Eis o escopo do presente estudo.

85
Gabriela Soares Balestero. Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires. Mestre
em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade
de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Sul de Minas,
bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogada, professora universitária.

296
A linguagem como construção de sentidos e a presença do discurso machista

Segundo Maria Costa Val (1994), em seu livro Redação e Textualidade,


aborda que para se melhor compreender o fenômeno da produção de texto escritos
é necessário entender previamente o que caracteriza texto, escrito ou oral. Pode-se
definir texto ou discurso como ocorrência linguística falada ou escrita, de qualquer
extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal.
Consoante o entendimento de Ingedore Villaça Koch a linguagem é uma
forma de atividade humana que nasce a partir de uma motivação inicial, desenvolve-
se através de um conjunto de operações linguísticas e cognitivas, a fim de se obter
um resultado final esperado de caráter basicamente linguístico, onde uma entidade
psico-físico-social – sujeito pressuposto em toda produção textual - relaciona-se
com outro sujeito, planeja e constrói seu objeto-texto de acordo com suas
necessidades e objetivos, concretizando assim o processo de comunicação86.
O autor também entende o conceito de texto como uma construção dos
sentidos, baseando-se em teorias sócio-interacionais da linguagem, tem como
objetivo discutir as atividades discursivas existentes no processo de produção
textual, considerando-o uma atividade interacional entre sujeitos com objetivos pré-
determinados dentro de um determinado contexto social.
Beaugrande e Dressler (1983) apontam sete fatores responsáveis pela
textualidade de um discurso qualquer; a coerência e a coesão, que se relacionam
com o material conceitual linguístico do texto, e a intencionalidade, a aceitabilidade,
a situcionalidade, a informatividade e a intertextualidade, que tem a ver com os
fatores pragmático.
A linguagem tomada discursivamente como uma imposição, com um grau de
intencionalidade que gere a violação de direitos, corrói as sociedades complexas e
contemporâneas, naquilo que ela possui de uma imposição de leitura de mundo, de
verdade estabelecida dos a priori das ideologias conservadoras sexistas que
procuram estabelecer uma grade de leitura de regimes de verdades para uma

86
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9ª Ed. São Paulo: Contexto, 2007.

297
suporta ordem ou normalidade social. Tal situação afeta a própria educação, seja
no âmbito privado ou público.
Tanto a produção textual e a linguagem devem ser vistas como uma atividade
verbal interacional, resultante de operações e estratégias da mente humana e a
serviço de fins sociais. Assim, cabe ao enunciador poder moldar seu enunciado e
constituir marcas próprias no discurso seja ele um texto verbal ou um texto escrito.
O texto falado possui uma estruturação própria, de acordo com situações
sócio cognitivas presentes durante sua produção. Entendemos que não deve o texto
falado ser dotado de maneira preconceituosa e o texto escrito visto como parâmetro
ideal de produção e nem impor determinada forma de pensamento, o texto deve
levar o leitor a uma reflexão sobre o tema tratado.
Assim, o discurso assume a importância de construção da própria sociedade
função da de um fazer histórico, visto que estes são produtos e produtores de
subjetividades.
No tocante à discriminação feminina, podemos entender o machismo como
um discurso, um discurso hegemônico (discurso de dominação/ ideologia
conservadora e patriarcal), em uma dinâmica em que as mulheres acumulam
desvantagens em comparação aos homens e buscam por redefinir as relações de
gênero no âmbito público e privado. Nessa vereda trazemos um questionamento:
Em que dimensões da vida as mulheres permanecem como menos do que cidadãs,
tendo a sua autonomia restrita? Eis o que será analisado no presente estudo.

A conquista dos direitos políticos das mulheres: a cota partidária feminina


como uma ação afirmativa

No que tange às mulheres, em boa parte da história elas ocuparam um


papel secundário, restrito às tarefas domésticas. A luta pelos direitos políticos das
mulheres começou ainda no século XVIII. No início da Revolução Francesa, o
Marquês de Condorcet – matemático, filósofo e iluminista – foi uma das primeiras
vozes a defender o direito das mulheres. Nos debates da Assembléia Nacional, em
1790, ele protestou contra os políticos que excluíam as mulheres do direito ao voto
universal, dizendo o seguinte: “Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem

298
verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra o direito do
outro, seja qual for sua religião, cor ou sexo, desde logo abjurou os seus”.
Em 1789 em meio à Revolução Francesa foi elaborada a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão e em 1791, Olympe de Gouges escreveu uma
Declaração dos Direitos da Mulher na qual considerava que as mulheres são
sujeitos de direitos, porém essa declaração foi rejeitada e a autora do projeto
enforcada87.
Na Revolução Francesa, Olympe de Gouges88, que foi analfabeta até a
idade adulta, liderou as mulheres francesas e lutou pelo direito do voto feminino e o
direito de exercerem um ofício, de terem uma profissão. Ela propôs, através do
referendo, que fosse escolhido na França ou um sistema de governo republicano ou
o monárquico, ganhando a inimizade de Marat e Robespierre e, sendo assim, foi
denunciada pelo Procurador Chaummete, pelo delito de haver esquecido as virtudes
de seu sexo e por intromissão nos assuntos da República. Ela foi presa e
guilhotinada em 07 de novembro de 1791. Já a inglesa Mary Wollstonecraft em
179289 publicou a sua obra “A Vindication of the Rights of Woman” (A Reivindicação
dos Direitos da Mulher), na qual ambas reivindicavam:

co-presença no terreno político (...) que vai na direção de uma


complementaridade não mais entendida como justificação de uma relação
desigual entre ambos, mas como possibilidade de uma relação igualitária
mesmo que não necessariamente simétrica, baseada no fato de que a
diferença de sexo não pode justificar a exclusão das mulheres do poder
político e da cidadania social. 90

William Godwin – no livro An Enquiry Concerning Political Justice (1793) –


também defenderam os direitos das mulheres e a construção de uma sociedade
democrática, justa, próspera e livre.
A luta pelo direito de voto feminino só se tranformou no movimento sufragista
após os escritos de Helen Taylor e John Stuart Mill. O grande economista inglês
escreveu o livro The Subjection of Women (1861, e publicado em 1869) em que

87 Zylbersztajn, 2009: 413.


88 Tabak; Verucci, 1994: 19.
89
Wollstonecraft, 1992:1.
90
Groppi; Bonacchi, 1995: 14.

299
mostra que a subjugação legal das mulheres é uma discriminação, devendo ser
substituída pela igualdade total de direitos.
Em meio à Revolução Industrial as mulheres começam a exercer atividade
laboral fora do âmbito doméstico como mão de obra em fábricas. Contudo, as
mulheres recebiam metade dos salários dos homens, cumpriam excessivas
jornadas de trabalhos e ocupavam cargos inferiores, subalternos.
Com base no pensamento destes escritores pioneiros, o movimento
sufragista nasceu para estender o direito de voto (sufrágio) às mulheres. Em 1893,
a Nova Zelândia se tornou o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, graças ao
movimento liderado por Kate Sheppard. Outro marco neste processo foi a fundação,
em 1897, da “União Nacional pelo Sufrágio Feminino”, por Millicent Fawcett, na
Inglaterra. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, as mulheres conquistaram o
direito de voto no Reino Unido, em 1918, e nos Estados Unidos, em 1919.
No fim do século XIX, durante os anos setenta surgiu o movimento feminista
que reivindicava a ampliação do espaço feminino no meio político e social incluindo
direito de greves, direito de voto, e direitos iguais entre homens e mulheres, com o
fim de efetivar medidas de respeito às diferenças e eliminação do preconceito e
discriminações.
Segundo Chantal Mouffe 91 “para las feministas comprometidas com una
política democrática radical, la desconstrucción de las identidades esenciales
tendría que verse como la condición necesaria para una comprensión adecuada de
la variedad de relaciones sociales donde se habrían de aplicar los principios de
libertad e igualdad.”
O feminismo também teve um papel importante na academia jurídica.
Quase todas as Faculdades de Direito dos Estados Unidos possuíam um curso a
respeito do tema o que popularizou o assunto e acentuou os debates e discussões.
Em todas as situações, o feminismo se apresenta não como uma ideologia política
e sim uma teoria jurídica de proteção, amparo e busca de direitos humanos às
mulheres.

91
Mouffe, 1993: 6.

300
El feminismo es el conjunto de creencias e ideas que pertenecen al amplio
movimiento social y político que busca alcanzar una mayor igualdad para
las mujeres. El feminismo, como su ideología dominante, da forma y
dirección al movimiento de las mujeres y, desde luego, es moldeado por
este. Las mujeres buscan igualdad en todas las esferas de la vida y utilizan
una amplia gama de estrategias para alcanzar este objetivo. El feminismo
no pertenece exclusivamente al campo del derecho. Sin embargo, el
derecho ha figurado de manera prominente en la lucha por la igualdad de
las mujeres, tanto como un ánbito a ser reformado, cuanto como un
instrumento para la reforma. 92

Em um nível, o feminismo é uma teoria sobre a igualdade e de outro lado é


uma teoria sobre a objetividade do direito. O movimento das mulheres começou a
tomar raiz no âmbito jurídico e legal. Em 1973 o feminismo teve um avanço no
campo constitucional com o caso Roe vs. Wade93. Porém durante o final da década
de setenta e nos anos oitenta, o movimento das mulheres cresceu em poder e
adesões e a busca por direitos civis perdeu a importância. Atualmente, o movimento
feminista constitui uma avançada luta pela igualdade material, condenando políticas
e práticas discriminatórias.
No que tange à luta pela concessão de direitos políticos às mulheres
verifica-se na história feminista brasileira os papéis marcantes de Bertha Maria Júlia
Lutz94 (1894-1976), Nísia Floresta (1810-1885)95 e Carlota Pereira de Queiroz96
(1892-1982). Bertha Lutz e Nísia Floresta 97 são consideradas as figuras pioneiras
do feminismo brasileiro e Carlota Pereira de Queiroz foi a primeira 98 mulher eleita
deputada federal em 1933 e participou da Assembléia Nacional Constituinte.

92
FISS, 1992:319.
93
O caso Roe declarou a inconstitucionalidade das leis que criminalizavam o aborto. Esse caso representou uma
vitória da liberdade, dando a cada mulher o direito de escolher a possibilidade de realizar um aborto e de outro
lado o direito de controlar o seu corpo.
94
Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 315.
95
Duarte, 2008: 1048.
96
Costa, 1996: 68.
97
“Nísia Floresta foi pioneira em várias frentes, por exemplo, foi uma das primeiras mulheres no Brasil a
romperem os limites do espaço privado e a publicarem textos na grande imprensa, pois, desde 1830, seu nome
era presença constante em periódicos nacionais, comentando questões polêmicas, como o direito das mulheres
– e, também, dos índios e dos escravos – a uma vida digna e respeitável.” (Duarte, 2008:1048.)
98
“É o fato de ter sido a primeira mulher a ser eleita para o Legislativo no Brasil que torna a experiência de
Carlota Pereira de Queiroz absolutamente única. [...] Embora seu perfil se assemelhasse em muitos pontos ao
das militantes feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e ela própria fosse uma ardorosa
defensora dos direitos e das conquistas das mulheres, a dra. Carlota não se sentiu atraída por este tipo de
mobilização, que considerava segregacionista e pouco eficaz com vistas aos fins a que se propunha.
Paradoxalmente será a primeira beneficiária da conquista da cidadania política pelas mulheres brasileiras que,
depois de décadas de descontentamento e de mobilização, vêem reconhecido seu direito de votar e de ser eleitas

301
Bertha Lutz diante do seu conhecimento dos movimentos feministas dos
Estados Unidos e da Europa no início do século criou em 1922 a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino 99 com a finalidade de promover a educação
feminina, a profissionalização das mulheres e liderar a luta pelo direito de voto
feminino.
Bertha Lutz conheceu os movimentos feministas da Europa e dos Estados
Unidos nas primeiras décadas do século XX e foi uma das principais responsáveis
pela organização do movimento sufragista no Brasil. Ajudou a criar, em 1919, a Liga
para a Emancipação Intelectual da Mulher, que foi o embrião da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino, criada em 1922 (centenário da Independência
do Brasil). Representou o Brasil na assembléia geral da Liga das Mulheres Eleitoras,
realizada nos EUA, onde foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana.
Após a Revolução de 1930 e dez anos depois da criação da Federação Brasileira
pelo Progresso Feminino.
O movimento sufragista liderado por Bertha Lutz conseguiu uma grande
vitória após dez anos de sua criação: o Decreto 21.076 de 24 de fevereiro de 1932
editado pelo então Presidente Getúlio Vargas garantiu às mulheres o direito de voto.
Em 28 de julho de 1936, devido à morte do titular da cadeira o então
Deputado Cândido Pessoa100, Bertha Lutz, candidata pela Liga Eleitoral
Independente, assumiu a suplência da cadeira de deputado federal e exerceu até
10 de novembro de 1937 quando teve início a ditadura do Estado Novo.
Juntamente com a primeira deputada federal brasileira Carlota Pereira de
Queiroz101, propuseram inúmeras mudanças na legislação brasileira como a criação
do Estatuto da Mulher102.

pelo código eleitoral de 24/2/1932, código que respondia tanto às exigências paulistas de retorno à legalidade
democrática quanto aos reclamos tenentistas de saneamento das notórias irregularidades que ocorriam nos
pleitos anteriores.” (Costa, 1996: 69.)
99
Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 316.
100 Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 317.

101 A primeira mulher eleita deputada federal foi Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), que tomou posse em
1934 e participou dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Com a implantação do Estado Novo, em
novembro de 1937, houve o fechamento do Legislativo brasileiro e grande recuo das liberdades democráticas.
Na retomada do processo de democratização, em 1946, nenhuma mulher foi eleita para a Câmara. Até 1982, o
número de mulheres eleitas para o Legislativo brasileiro poderia ser contado nos dedos da mão.
102 Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 318.

302
Alguns itens propostos por Bertha foram incluídos na Constituição de 1934
tais como o direito de acesso das mulheres a funções públicas.
Nesse sentido, a relevância das iniciativas do movimento feminista no Brasil
está em questionar a “suposta sujeição das mulheres brasileiras a valores impostos,
a restrição de sua atuação ao espaço doméstico e a sua alienação quanto à
realidade política, social e cultual do país.” 103

No Estado Novo implantado em 10 de novembro de 1937 houve um recuo


das liberdades democráticas, com a extinção dos partidos políticos existentes,
criando o bipartidarismo e o movimento feminista brasileiro sofreu um recuo, porém
houve avanço para as mulheres de nosso país na educação, na saúde, no
alistamento eleitoral e no mercado de trabalho104.
Somente com o processo de redemocratização, da Nova República, o
número de mulheres começou a aumentar. Foram eleitas 26 deputadas federais em
1986.
Com a Constituição Federal de 1988 reconheceu pela primeira vez a
igualdade entre homens e mulheres no art. 3°, inc. IV, que veda a discriminação por
sexo, o art. 5°, inc. I, que dispõe que os homens e as mulheres são iguais em direitos
e obrigações, o art. 6° ampara a maternidade, o art. 7°, incs. XVIII, XX e XXX prevê
a licença maternidade, garante mercado de trabalho para a mulher bem como veda
a existência de diferença salarial entre mulheres e homens.
Entretanto, apesar da Constituição Federal prever a igualdade entre
homens e mulheres, lamentavelmente, essa igualdade formal encontra obstáculos
à sua implementação no âmbito material. Simplesmente, foram eleitas 32 deputadas
federais em 1994.
No que tange à composição feminina em cargos públicos verifica-se que
em 1997 entrou em vigor a Lei 9.504, na qual, em seu artigo 10, § 3º, obriga os
partidos a reservar às mulheres pelo menos 30% de suas candidaturas aos
legislativos federal, estadual e municipal.

103 Soihel, 2005: 195.


104 Sobrinho, 1970: 53/54.

303
Entretanto, em 2002, foram eleitas 42 deputadas federais e 45 deputadas
em 2006 e 2010. Mas este número representa apenas 9% dos 513 deputados da
Câmara Federal.
No ranking internacional da Inter-Parliamentary Union (IPU), o Brasil se
encontra atualmente no 142º lugar. Em todo o continente americano, o Brasil perde
na participação feminina no Parlamento para quase todos os países, estando a
frente do Panamá, do Haiti e Belize. No mundo, o Brasil perde até para países como
Iraque e Afeganistão, além de estar a uma grande distância de outros países de
lingua portuguesa como Angola, Moçambique e Timor Leste.
Assim, as mulheres brasileiras conquistaram o direito de voto em 1932, mas
ainda não conseguiram ser representadas adequadamente no Poder Legislativo.
Até 1998 as mulheres eram minoria do eleitorado. A partir do ano 2000, passaram
a ser maioria e, nas últimas eleições, em 2010, já superavam os homens em 5
milhões de pessoas aptas a votar. Este superávit feminino tende a crescer nas
próximas eleições. Nas eleições de 2010, a grande novidade foi a eleição da
primeira mulher para a chefia da República. Neste aspecto, o Brasil deu um grande
salto na equidade de gênero, sendo uns dos 20 países do mundo que possui mulher
na chefia do Poder Executivo. Com a alternância de gênero no Palácio do Planalto,
o número de ministras cresceu e aumentou a presença de mulheres na presidência
de empresas e órgãos públicos, como no IBGE e na Petrobrás.
Nos municípios, as mulheres são, atualmente, menos de 10% das chefias
das prefeituras. Nas Câmaras Municipais as mulheres são cerca de 12% dos
vereadores. Mas, em 2012, quando se comemoram os 80 anos do direito de voto
feminino, haverá eleicões municipais. A Lei de Cotas determina que os partidos
inscrevam pelo menos 30% de candidatos de cada sexo e dê apoio financeiro e
espaço no programa eleitoral gratuito para o sexo minoritário na disputa. Os estudos
acadêmicos mostram que, se houver igualdade de condições na concorrência
eleitoral, a desigualdade de gênero nas eleições municipais poderá ser reduzida.
Bertha Lutz lutou pelo direito de voto feminino, Carlota Pereira de Queiróz foi
a primeira mulher eleita deputada federal, e, portanto, lançaram a semente da
cidadania feminina. Em 2010, o Brasil elegeu a sua Primeira Presidenta, Dilma

304
Roussef pelo Partido dos Trabalhadores. Contudo, verifica-se que nem mesmo as
inovações legislativas trouxeram melhora significativa no que tange à questão do
acesso das mulheres a cargos públicos, pois existem dúvidas sobre a possibilidade
de as mulheres conseguirem apoio dos partidos para disputar as eleições em
igualdade de condições.
Assim passa a ser necessária, além da mobilização legislativa, a adoção de
estratégias para a inclusão e reconhecimento político do papel das mulheres que
combine a proibição de discriminação e a adoção de políticas públicas de incentivo
à candidatura feminina como ações positivas para acelerar o processo de
igualização de condições entre homens e mulheres e assim proporcionar maior
acesso feminino à vida pública.
Verifica-se a inércia do Poder Legislativo em aprovar ações afirmativas nesse
sentido. Tal fato, podemos comprovar com a rejeição pelo plenário da Câmara dos
Deputados no dia 16 de junho de 2015, a emenda apresentada pela bancada
feminina à reforma política (PEC n. 182/07 do Senado, a PEC da Fidelidade
Partidária) que propunha cota de 10% para a representação feminina no Legislativo.
A emenda obteve 293 votos favoráveis, contra 101 e 53 abstenções. Mas, como se
trata de Emenda Constitucional, eram necessários, no mínimo, 308 votos a favor.
A proposta levada ao plenário já era conservadora, pois a bancada feminina
da Câmara, por receio de não obter aprovação da maioria, baixara de 30% — cota
tradicional nos parlamentos de diversos países — para apenas 10%. A emenda
previa, ainda, cota progressiva de 12% e 15% nas duas legislaturas subsequentes,
respectivamente. Se a emenda tivesse sido aprovada, ainda assim, não atingiria
alguns estados brasileiros, cuja representação feminina na Câmara é maior que
10%. Na Casa, as mulheres já quase chegam ao percentual rejeitado no dia 16 de
junho de 2015; no Senado, elas ocupam 16% das cadeiras. A votação na noite do
dia 16 de junho de 2015 foi marcada em muitos momentos por discursos machistas.
Um deputado chegou a dizer que era a favor da proposta "porque o Plenário ficaria
mais bonito". Outro defendeu a aprovação por ser "importante dar um voto de
confiança às mulheres". Mas houve quem afirmou que a cota era "injusta" porque
não considerava o mérito dos eleitos.

305
Portanto, a inércia e o descaso legislativo e a predominância do discurso
machista ainda presente em parcela conservadora da sociedade são molas
propulsoras para um novo discurso de igualdade e não discriminação e mais ainda,
para transformações sociais e políticas.

CONCLUSÃO

O discurso é uma construção dos sentidos, baseada em teorias sócio


interacionais da linguagem. É nosso dever a construção de discursos
transformadores da própria sociedade em que vivemos nos esforços de encontrar
alternativas de expressão.
Assim, um discurso verbal e textual que vise a garantia e proteção dos
direitos femininos, uma efetiva igualdade de gênero e o incentivo a práticas
representativas femininas é mais que um mero discurso, são ações afirmativas que
propiciam a igualdade e a não discriminação feminina no campo social e político.
Para a inclusão política feminina e um efetivo reconhecimento de seu papel
na política é necessário a mobilização do legislador no sentido de proporcionar o
maior acesso das mulheres a cargos públicos aprovando ações afirmativas, e dos
próprios cidadãos em prol do respeito princípio da igualdade, da dignidade da
pessoa humana e da não discriminação.

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311
AS AVENTURAS DE BOMBOM NA ILHA TUMPINAMBARANA:
PROPOSTA DE EBOOK PARA O PÚBLICO INFANTIL

Graciene Silva de Siqueira105

Introdução
Assim como ocorreu aos demais meios de comunicação, o livro rendeu-se às
possibilidades do meio digital. Enquanto alguns decretaram o fim do livro impresso
e ainda resistem às mudanças, outros se dedicam a criar o ambiente propício ao
seu desenvolvimento. O segundo grupo é o que nos interessa e nele destacamos
diversas iniciativas: de pesquisadores que buscam compreender a linguagem do
meio (Lúcia Santaella, 2004) e as mudanças nas práticas da leitura e o futuro do
livro (Roger Chartier, 1998; 2002); de escritores que se apropriaram do meio para
criar histórias proporcionando assim novas experiências de leitura; de empresas que
investem em softwares cada vez mais avançados a fim de permitir uma experiência
de leitura à altura (ou maior) àquela a qual estamos acostumados e de editoras que
dispõem em seu catálogo a venda de livro digital (ebook ou livro eletrônico), entre
outros.
É um cenário propício ao livro digital que ainda busca seu espaço. Ednei
Procópio (2013) em sua mais recente obra, A revolução dos ebooks, traz dados
sobre o mercado mundial do livro digital, onde os Estados Unidos figuram em
primeiro lugar, tendo movimentado US$ 113 milhões até 2008. Em 2011, a venda
de ebooks cresceu 117% e mais de cem editoras no país comercializam livros
digitais.
No Brasil, apesar de contribuir para o crescimento do mercado editorial em
2013, aumentando de R$ 3,8 milhões para R$ 12,7 milhões o faturamento no setor,
esse aumento não passou de 3% do valor total faturado pelo mercado. Em 2014, a
porcentagem caiu para 1% mantendo-se nesse patamar em 2015. Os dados são da

105
Bolsista do Programa RH-Interiorização da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na UPM

312
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). E o número de leitores que
buscam livros digitais também é pequeno. “Segundo a pesquisa Retratos da leitura
no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL), em 2012, dos 95,6 milhões de
leitores no país, apenas 1% recorre aos livros digitais” (PROCÓPIO, 2013, p. 169).
Por outro lado, ainda que a participação dos livros em plataformas digitais no
mercado editorial esteja abaixo do esperado pelo setor, empresários estão criando
estratégias para solidificar o mercado a partir do que está hoje disponível para o
consumidor. Michael Cairns, CEO da Publishing Technology, em artigo publicado
na Publishnews, diz que o diferencial na comercialização dos ebooks está na forma
como o conteúdo é disponibilizado e consumido pelo leitor/usuários, ou seja, na
criação de ferramentas que tornem a experiência de leitura única para cada
indivíduo. O momento é oportuno, pois estamos diante de uma geração imersa no
uso de tecnologias, especialmente por meio dos smartphones. Estes estão em
segundo lugar entre os suportes de leitura mais populares, atrás de notebooks,
netbooks e ultrabooks (PROCÓPIO, 2013).
Porém, ao se pensar em um mercado para ebooks é preciso considerar
outros fatores, entre eles a variedade de plataformas de leitura existentes e que
acabam por forçar o consumo de produtos de determinada empresa. Fatores esses
fundamentais, mas que não são objeto de estudo neste trabalho.
Foi em meio a essas discussões, durante a disciplina Seminário Avançados
em Estudos Literários da UPM, no primeiro semestre de 2015, que recebemos como
proposta a criação de um ebook, a ser apresentado como trabalho final. Elaboramos
então o projeto do livro digital infantil As aventuras de Bombom na ilha
Tupinambarana, com objetivo de proporcionar experiência de leitura a partir das
possibilidades da linguagem própria do meio, a hipermidiática, a qual exploramos a
seguir.

Referencial teórico
Ainda que não gozem do status do livro impresso, pelo menos por enquanto,
os ebooks trazem novas possibilidades ao mercado editorial, com sua linguagem
hipermidiática. Mais do que simplesmente existirem no mundo digital, esses livros

313
absorvem as possibilidades do meio, proporcionando novas experiências ao
leitor/usuário.
A exemplo do que ocorreu nos meios de comunicação de massa, como jornal
impresso, rádio e TV, a inserção do livro no ambiente digital pode ser analisada a
partir do grau de apropriação da linguagem digital pelo meio tradicional. Luciana
Mielniczuk (2003), por exemplo, propõe uma trajetória dos produtos jornalísticos
desenvolvidos para a Web em três fases. Semelhantemente aplicamos essa ideia
ao livro e chegamos a quatro tipos de ebooks. Trata-se de uma proposta para este
trabalho e com certeza necessita de maior elaboração, mas no momento serve aos
nossos propósitos.
O primeiro tipo é o livro digital resultado da conversão do conteúdo escrito
em bits. São as versões digitais vendidas pelas livrarias, por exemplo, como uma
opção ao livro impresso. E, contrário ao que muitos acreditavam, não apresentam,
em muitos casos, um valor mais em conta em relação ao produto impresso.
O segundo ebook é elaborado exclusivamente para o meio digital, não
existindo no suporte tradicional e, assim como o primeiro, não explora as
possibilidades do meio. É o suporte procurado por muitos autores sem condições
de pagar por uma versão impressa.
O terceiro tipo é o livro impresso que ao ganhar versão digital busca explorar
a linguagem do meio. Este tipo tem suas limitações, especialmente por conta do
conteúdo já definido e porque o autor do ebook nem sempre é o autor da versão
impressa. Assim, as ferramentas a serem agregadas ao texto devem considerar em
grande medida o texto original.
Por fim, o quarto e último tipo é o livro criado especificamente para o meio
digital e que traz como vantagens o fato de o conteúdo não estar preso a um suporte
anterior, o que permite maior liberdade ao autor na exploração da linguagem
hipermidiática.
Em um primeiro momento, o terceiro e quarto tipos podem ser considerados
semelhantes, porém o quarto, em nossa opinião, é um nível que possibilita maior
uso dos recursos do ambiente digital, podendo até mesmo permitir uma narrativa
não-linear, construída em rede, sem perda do sentido do conteúdo seja qual for o

314
caminho de leitura percorrido pelo leitor/usuário. Exigiria mais do autor, sem dúvida,
porém teria mais a oferecer em questões de experiência.
Identificamos assim nosso ebook como do quarto tipo, especialmente por não
estar preso a um suporte anterior, a uma história já existente.
Após definido que o trabalho final seria um livro digital, foi sugerido à turma
usar como texto base o capítulo “O vergalho”, da obra Memória Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis. Ao longo da disciplina, decidiu-se que cada um
escolhesse o texto, e o resultado foi interessante, com ebooks sobre “O Vergalho”,
sobre discografia de uma banda estrangeira, sobre o romance O Sol é para todos,
de Harper Lee, e um destinado ao público infantil, tema deste trabalho.
A proposta para a turma era que o livro digital não fosse simplesmente uma
transposição do impresso para o digital, o primeiro tipo do qual falamos. Ao mesmo
tempo buscamos não utilizar de recursos do meio digital tão somente para
caracterizar a obra como tal. Cada ferramenta a ser utilizada deveria dialogar com
o conteúdo, complementando-o, ou ainda ajudando a construí-lo.
A fim de compreendermos a linguagem hipermidiática recorremos a Santaella
(2004), que aponta quatro traços definidores fundamentais dessa: a hibridização de
linguagens, organização do conteúdo em arquitetura hipertextuais, cartograma
navegacional e interatividade. Traços que vão caracterizar qualquer projeto no
ambiente digital pois se trata de uma linguagem característica do ambiente.
Santaella propõe uma divisão a fim de estudos e melhor compreensão da hipermídia
e, ao lermos o texto, percebemos o quão imbricados se encontram esses traços.
No primeiro, temos a integração de dados de diferentes espécies, como
textos, imagens e sons, permitindo uma hibridização de tecnologias e linguagens
(anteriormente separadas), conhecida como convergência das mídias. E isso só
será possível graças ao computador. “De resto, sem essa convergência, a
hipermídia, como linguagem híbrida, prototípica do mundo digital, não seria
possível” (SANTAELLA, 2004, p.48).
É interessante observar que o livro impresso nos permite alguns desses
recursos, além do texto. Em livros, temos imagens, como fotos e ilustrações, ou
áudio. Porém, as vantagens do livro digital se encontram na integração desses

315
elementos em um ambiente virtual, possibilitando uma melhor manipulação.
Podemos dizer que o livro digital potencializa o que já encontramos em um livro
tradicional, pelo menos do ponto de vista dos recursos.
No segundo traço, temos a organização dos fluxos informacionais em forma
de rede, com as arquiteturas hipertextuais, que permitem o surgimento de módulos
de informações, gerando um trânsito não-linear, diferentemente da experiência
linear da linguagem verbal impressa. Esses módulos de informações podem ser
constituídos pelos dados descritos acima, como textos, gráficos, vídeos ou áudios,
ou vários desses ao mesmo tempo.

Em vez de um fluxo linear de texto como é próprio da


linguagem verbal impressa, no livro particularmente, o
hipertexto quebra essa linearidade em unidades ou módulos
de informação, consistindo de partes ou fragmentos do texto.
Nós e nexos associativos são os tijolos básicos de sua
construção. [...] Nós de informação, também chamados de
molduras, consistem em geral daquilo que cabe em uma tela
(SANTAELLA, 2004, p.49).
A autora explica que os nexos vão cumprir uma missão na linguagem
hipermidiática semelhante ao que os conectores gramaticais cumprem no discurso
verbal, que é criar coesão entre as partes. No caso da linguagem hipermidiática, os
nexos vão dar origem a um sistema próprio de conexões, denominado de
cartograma navegacional, o terceiro traço definidor. As possibilidades para o
navegador a partir daí são infinitas, exigindo que ele faça escolhas ao longo de todo
o percurso e até mesmo organize o que pretende com sua navegação a fim de não
se frustrar diante de tanta informação.
Por fim, o quarto e último definidor da hipermídia: ela é uma linguagem
eminentemente interativa e quanto maior a interação proporcionada, maior a
imersão do leitor/espectador. Apesar de grandemente difundida ao se falar de
ambiente digital, a interatividade existe fora desse meio há tempos, como destaca
Machado (1997). Em 1979, Raymond Williams já discutia o real sentido da palavra
uma vez que muitos anunciavam tecnologias como interativas, quando seriam
apenas reativas. Enquanto para Willians a primeira resultaria em respostas
autônoma, criativas e não previstas, a segunda colocaria o usuário apenas diante

316
de escolhas cujas respostas já são pré-determinadas. O que pode ser percebido
ainda hoje em muitos produtos, como os jogos de videogame.
Na linguagem hipermidiática, a ideia de comunicação como a conhecemos,
onde um emissor transmite uma mensagem a um receptor, sofre uma mudança.
Agora, o primeiro apenas constrói o caminho pelo qual o receptor vai receber a
mensagem, e ela se constrói, ou se modifica, a partir da manipulação do receptor.
Trata-se da proposta de muitas obras de artes da atualidade, que para “existirem”
ou ganharem sentido, necessitam da participação do leitor/espectador (MACHADO,
1997).
A partir dessas discussões em sala sobre a linguagem hipermidiática e diante
de exemplos trazidos à sala, não apenas de ebooks, mas ainda de poemas e livros
e as tentativas de seus autores em criar uma interação com seu público, passamos
a elaboração do livro digital, cujas etapas descrevemos abaixo.

As aventuras de Bombom
O enredo de As aventuras de Bombom na ilha Tupinambarana é sobre uma
cachorrinha que sente-se abandonada por sua família (Gracie e Júlia) quando esta
parte para São Paulo e demora para vir buscá-la como prometido. Bombom então
decide deixar a ilha de Parintins, localizada no interior do Amazonas, chamada
também de ilha Tupinambarana. Ela recebeu esse nome por conta dos índios
tupinambaranas que habitaram a região.
Optamos por uma história para o público infantil pois, como percebemos
durante as discussões em sala, é o segmento para o qual tem surgido um maior
número de ebooks do quarto tipo, aquele criado especificamente para o meio digital
e que explora a linguagem hipermidiática.
Buscamos exemplos de ebooks especialmente para o público infantil a fim de
somar aos modelos apresentados nas aulas. Não foi tarefa fácil pois muito do que
está disponível no mercado, e que interessa a esta pesquisa, só pode ser acessado
por meio de aparelhos da Apple. Em pesquisa realizada em 2012, a empresa
detinha 73% do mercado de tablets (PROCÓPIO, 2013).

317
Apesar do baixo custo para se adquirir alguns ebooks, o mesmo não pode
ser dito em relação aos equipamentos para poder lê-los. Quanto aos ebooks
disponíveis para o sistema Android ou para máquinas da Microsoft, em sua maioria
são livros digitais do primeiro e segundo tipos e para público diferente do pretendido
por nosso projeto.
Nos livros digitais destinados ao público infantil aos quais tivemos acesso,
percebemos o uso da linguagem hipermidiática, com imagens e sons somando-se
ao texto, buscando oferecer uma experiência interativa, especialmente por meio do
touchscreen. A sensibilidade da tela substitui o mouse, apontado por Santaella
(2004) para estabelecer os nexos e conexões.
Nossa trajetória na construção do ebook nos levou a algumas indagações:
Até que ponto podemos avançar para oferecer uma experiência interativa, sem
incorrer no erro de acumular desnecessariamente recursos da mídia apenas para
dizer que se trata de um livro digital? Ou será que exploramos os recursos
devidamente ou algo mais pode ser acrescido para garantir uma experiência única
ao usuário? Perguntas estas que nortearam todo o processo e que serão
respondidas ao longo deste trabalho.
O próximo passo foi pensar a estrutura do livro. Como a história iniciava com
a fuga de Bombom de sua casa em Parintins, interior do Amazonas, achamos
necessário apresentar quem é a nossa personagem e o que a motivava. Assim,
surgiu a ideia de uma animação. Ela seria a porta de entrada do ebook, a segunda
página do livro, logo após a capa. Uma história curta, mas objetiva.
A seguir a criança poderia ler a história por meio de texto e ilustrações,
dividida em três partes – uma para cada tentativa de fuga de Bombom da ilha (de
avião, de lancha e de barco). Havia também a opção de apenas ouvir a história com
o auxílio de um narrador. Como recursos extras, oferecíamos imagens para colorir;
jogo interativo; gravação em áudio da história pelas crianças e a opção de trocar a
capa do ebook.
Esse primeiro projeto foi apresentado como trabalho final da disciplina, mas
sentimos necessidade de reformulá-lo, especialmente para sanarmos dúvidas
quanto ao uso da linguagem hipermidiática.

318
A principal mudança surgiu a partir do conceito de narrativa transmídia
(transmidia storytelling) abordado por Henry Jenkins (2009). Essa narrativa, própria
da cultura da convergência das mídias, se constitui em um amplo enredo ficcional a
ser explorado em diferentes plataformas, de forma integrada e ao mesmo tempo
autônoma. “Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas
plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao
comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (JENKINS,
2009, p. 29). Nesse cenário, o conteúdo que circula por meio das plataformas é a
narrativa transmídia, cujo objetivo – do ponto de vista artístico – é criar uma
experiência única à audiência, instigando-a a conhecer todos os enredos desse
universo a fim de compreendê-lo por inteiro.
Como exemplo, Jenkins cita a franquia Matrix. Além de três filmes, ela
engloba HQs, animações e jogos de videogame. Cada narrativa desenvolvida
nessas plataformas é independente, mas de alguma forma ligada à história do
universo Matrix, desenvolvendo personagens ou enredos, além do que é
proporcionado pelos filmes. “Matrix é entretenimento para a era da convergência,
integrando múltiplos textos para criar uma narrativa tão ampla que não pode ser
contida em uma única mídia” (JENKINS, 2009, p.137). O objetivo com esse tipo de
narrativa é proporcionar uma experiência de entretenimento que vai se sobrepor a
qualquer uma dessas plataformas individualmente.
Existe, claro, um interesse econômico por trás dessa convergência, uma vez
que o fã de um universo ficcional como este tende a consumir tudo o que for
relacionado a ele. Porém, trata-se também de atentar para as mudanças do público
consumidor de narrativas ficcionais diante de tantos meios disponíveis. A ideia não
é repetir um conteúdo em diferentes plataformas, isso aliás, seria enfadonho para
qualquer público, mas sim buscar atingir diferentes públicos agregando-os em uma
grande comunidade.
Mesmo Matrix tendo obtido êxito comercial, Jenkins diz que ele apresenta
algumas falhas na construção da narrativa transmídia, demonstrando um campo a
ser explorado assim como a existência de um público consumidor para esse tipo de
narrativa.

319
A partir dessas considerações, o ebook, que antes buscava aglutinar diversas
funções, foi repensado para um cenário transmidiático. Ele “cedeu” algumas de suas
narrativas a outros produtos, como explicaremos adiante, surgindo assim um
sistema organizado, no qual um produto dialoga com outro, como previsto para esse
tipo de narrativa.
O projeto transmidiático consiste então em: 1. Ebook, 2. Livro impresso, 3.
Aplicativo com jogo para celular, 4. Jogo de tapete para crianças, 5. Livro para
colorir, 6. Bonecos em miniatura dos personagens e 7. Jogo de videogame.
A narrativa que coube ao livro digital é a da animação. Esta foi reformulada e
vai se concentrar na separação de Bombom da família, a chegada dela a sua nova
casa, o ciúme pela atenção de Júlia com a chegada da gata Arthemis, entre outros
momentos. Os livros, por sua vez, trazem as aventuras de Bombom para sair da ilha
de Parintins com destino a São Paulo, em busca de sua família e também a viagem
dela para São Paulo, quando enfim reencontra Júlia e Gracie. O aplicativo para
celular narra as aventuras de Bombom durante o Festival Folclórico de Parintins
(que ocorre durante sua fuga de casa); o jogo para videogame traz Bombom perdida
na floresta durante sua tentativa frustrada de fugir de barco da ilha; o jogo de tapete
é um mapa da floresta onde as crianças precisam cumprir provas para ajudar
Bombom; e os livros para colorir trazem a história individual de cada personagem
que compõem o universo da Bombom, como a gata Arthemis, o bicho-preguiça, a
arara vermelha, o macaco zog zog. Há ainda outras narrativas que possivelmente
vão ser integradas aos livros impressos, como a morte da gata Arthemis, a aventura
de Bombom procurando sua mãe e o encontro dela com o irmão.
A animação pode ser assistida com ou sem narração e/ou com legendas ou
por meio de imagens fixas também com ou sem narração e/ou com legendas. Como
recursos interativos, a criança pode gravar sua versão da história, com uma
indicação de áudio da velocidade que deve acompanhar a fim de garantir sintonia
entre imagem e áudio. Ao fim da animação, surgirá na tela um mapa da cidade de
Parintins, no qual a criança poderá obter informações sobre a ilha (localização,
cultura etc), ler a biografia dos personagens da história, e conhecer o “Mundo da
Bombom”, onde são apresentadas as demais narrativas do universo da história.

320
Nele a criança vai ser informada ainda que pode mudar a capa do ebook, e receberá
instruções de como fazê-lo, tendo para isso duas opções.
Acreditamos que a reformulação do projeto solucionou nossas dúvidas,
especialmente quanto ao uso em demasiado das possibilidades do meio,
sobrepondo-se à narrativa. Com a distribuição dessa em diferentes plataformas, a
expectativa é que a criança possa explorar cada enredo em seu. Outra reformulação
importante no projeto foi a ampliação do público, antes entre seis e oito anos, e
agora entre três e oito, o que é justificado pela ampliação da história e as
plataformas a serem utilizadas para acessá-la.

Considerações
Mesmo tendo surgido como atividade de sala de aula, o ebook As aventuras
de Bombom na ilha Tupinambarana mostrou potencial narrativo para diversas
histórias. Diversas mudanças foram implementadas a fim de melhorar o projeto. O
primeiro passo foi pensá-lo a partir do conceito de narrativa transmídia. Por outro
lado, há ainda interesse de nossa parte em explorar a discussão de cunho
ambiental, o que é oportuno dado o fato de a história se passar na Amazônia. Em
relação aos personagens, entendemos que precisamos trabalhar a caracterização
de cada um, a fim de permitir uma identificação das crianças com a história. Para
isso, vamos nos inspirar em desenhos como Toy Story e Rei Leão, onde os
personagens, um brinquedo e um leão, respectivamente, vivenciam experiências e
sentimentos característicos da natureza humana.
Por meio dessa atividade pudemos ainda refletir sobre as discussões acerca
do livro impresso, e seu anunciado fim ou substituição pelo ebook. Na narrativa da
Bombom, por exemplo, o livro digital não surge como um substituto, mas sim um
complemento a fim de enriquecer o universo ficcional criado. Sem dúvida são duas
experiências de leitura completamente diferentes, mas, como mostram pesquisas,
há público para ambas. Assim, deixando de lado a visão pessimista sobre o ebook,
lançamos como proposta explorar seu potencial, pois o futuro de ambos, impresso
e digital, até o momento, parecem entrelaçados.

321
Referências
CAIRNS, Michael. Cinco previsões sobre o mercado editorial para 2015.
Publishnews, São Paulo, 16 jan. 2015. Disponível em:
<http://www.publishnews.com.br/materias/2015/01/16/80311-cinco-previsoes-
sobre-o-mercado-editorial-para-2015>. Acesso em: 5 set. 2015.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Trad. Suzana L. de Alexandria. 2ª ed.
São Paulo: Aleph, 2009.
MACHADO, Arlindo. Hipermídia: o labirinto como metáfora. In: DOMINGUES,
Diana. (Org.) A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo:
Unesp, 1997.
MACIEL, Nahima. Pesquisa mostra retração na indústria do livro em 2014.
Publishnews, São Paulo, 16 jun. 2015. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2015/06/16/interna_diversao_arte,486702/pesquisa-mostra-retracao-na-
industria-do-livro-em-2014.shtml>. Acesso em: 5 set. 2015.
MIELNICZUK, Luciana. Sistematizando alguns conhecimentos sobre o jornalismo
na web. In: MACHADO, Elias; PALACIOS, Marcos. (Org.) Modelos de jornalismo
digital. Salvador: Editora Calandra, 2003.
PROCÓPIO, Ednei. A revolução dos ebooks: a indústria dos livros na era digital.
São Paulo: Senai-SP, 2013.
RODRIGUES, Maria Fernanda. Faturamento com venda de e-book cresce 225% no
Brasil, mas mercado editorial continua em crise. Estadão, São Paulo, 22 jul. 2014.
Disponível em: < http://cultura.estadao.com.br/blogs/babel/faturamento-com-venda-
de-e-book-cresce-225-no-brasil-mas-mercado-editorial-continua-em-crise/#>.
Acesso em: 25 ago. 2015.
SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo.
São Paulo: Paulos, 2004 (Comunicação).

322
ENCONTROS INÉDITOS ENTRE UM PIXADOR DESCONHECIDO E ESPAÇOS
DE LEGITIMAÇÃO ARTÍSTICA

Gustavo Lassala106

Introdução

A questão central que motiva este texto está na compreensão de uma realidade
social recente que aproxima a modalidade de intervenção urbana, conhecida como
pixação, e os espaços de legitimação artística, intermediada pela atuação do
pixador Djan Ivson, conhecido nas ruas pelas intervenções que desenvolve por meio
da gangue de pixadores Cripta.
Ao flanar sobre a história da arte é nítido o caminho para o deslocamento do objeto
artístico para o fazer artístico, enfatizando-se a figura do artista, que atinge o seu
ponto máximo na Body Art, bem como parte das ações artísticas mais significativas
levadas a cabo a partir do final dos anos 1960, independentemente de serem ou
não baseadas na matriz deambulatória, como observa Jacopo Crivelli Visconti,
(VISCONTI: 2012, 7) elas compartilham a aspiração a uma arte não comercializável.
Jackson Pollock, conhecido artista norte-americano do expressionismo abstrato,
trabalhou a ideia de que o artista deveria ser o sujeito e objeto de sua obra,
destacando que o movimento do artista de performance aparece como o sujeito que
atua no intuito de não se submeter ao cinismo do sistema, praticando, às custas de
sua vida pessoal, uma arte de transcendência (COHEN: 2009, 44-45).
Em princípio, o pixador é movido pelo desejo de status entre os pares, “terapia
ocupacional” no preenchimento de uma vida desimportante, ou por imposição de
sua figura desbotada diante dos códigos sociais vigentes. Não há qualquer indício
de que ele tivesse, originalmente, pretensões artísticas. Contudo, o pixador, ao
escolher o suporte para suas ações, a cidade, o subir e descer edificações,

106
Técnico em Artes Gráficas pelo Senai “Theobaldo De Nigris”, Bacharel em Design (Programação Visual)
pela USJT, Mestre em Educação Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie onde também é professor. É
autor do livro Pichação não é pixação.

323
arriscando a vida pelo ato da pixação, usa como parâmetro o próprio corpo como
escala, medida e ferramenta para impor sua assinatura em locais não autorizados.
As inscrições deixadas nos variados lugares da cidade, mais do que obras
autônomas, são vestígios ou rastros da passagem por ali do corpo do pixador. Neste
sentido, sem qualquer clareza discursiva ou conceitual, os pixadores de São Paulo
compartilham, em alguma medida, dos procedimentos artísticos presentes em
diversas manifestações estéticas modernas e contemporâneas. Este ponto de
contato involuntário, mas vital, constitui-se por si só um bom motivo para que o
campo da arte tenha, em algum momento, se interessado pela prática do pixo.
Neste sentido, quando os pixadores, a partir de 2008, passam a agir em espaços
de legitimação artística, locais onde, em princípio, não estavam abertos a este tipo
de atividade, a aproximação entre pixação e arte se dá de forma contundente.
Entretanto, o interesse despertado para a pixação no meio artístico não ocorreu
apenas depois da aproximação em 2008, mas sim após diversas ações promovidas
por pixadores, articuladas, principalmente, por Djan.
Antes de ocupar os espaços institucionais de exposição, a pixação era – e, em
grande medida, continua sendo – uma prática destinada às ruas da cidade, que se
resolve em muros, monumentos, equipamentos públicos, fachadas e empenas de
edifícios, aparatos arquitetônicos e urbanísticos improvisadamente convertidos em
suporte para escritos enigmáticos, dirigido aos que não fazem parte dos grupos. A
ambiguidade do caráter atual desta manifestação cultural – entre o fenômeno social
e artístico – é possível observar também na situação do personagem, que mantém
ainda laços com sua base social, ao mesmo tempo em que se envereda pelo
universo artístico. A ambiguidade se revela na própria prática de Djan, já que divide
sua atuação na participação em discussões de arte contemporânea – já com status
de “artista” –, mas ainda é representante dos demais pixadores, principalmente em
São Paulo.

324
Aproximações entre a pixação e o campo da arte

O fenômeno da pixação surgiu em São Paulo no início de 1980 e possui uma


estrutura social com características particulares, que perduram até o momento. A
estrutura social dos pixadores é definida por um sistema próprio de regras que
constrói, em certa medida, um estilo de vida próprio para os praticantes dessa
contravenção, formando um conjunto de disposições que condicionam os pixadores
a como sentir, pensar e agir.
Para evitar equívocos semânticos é importante diferenciarmos o termo pichação,
grafado com “ch”, de pixação, escrito com “x”. Pichação é uma ação de transgressão
para marcar presença ou chamar atenção para alguma causa, principalmente em
ambientes externos do espaço público urbano. Não preza por um padrão em relação
ao conteúdo e à forma, de modo que qualquer pessoa pode atuar com as mais
diversas ferramentas para desenhar, pintar, escrever ou rabiscar. Pixação refere-se
a um tipo de intervenção urbana ilegal nativa de São Paulo; sua principal
característica é o desenho de letras retilíneas escritas com spray ou rolo de espuma
para estampar logotipos de gangues ou indivíduos; esse estilo de letras é conhecido
como tag reto ou pixo. Normalmente, moradores de bairros periféricos, jovens que
se arriscam nessa modalidade ao escalar edificações para carimbar sua marca em
lugares de grande visibilidade, buscam notoriedade.
A ponte de contato entre arte e pixação se deu de forma muito recente,
principalmente se considerarmos a participação efetiva dos pixadores em eventos
artísticos e não a representação da sua cultura ou estética intermediada por artistas
preparados e que se apropriam dessa temática.
Partindo de uma abordagem cronológica dos fatos, o principal exemplo internacional
de participação da pixação de modo “amigável” – ou menos contraventor e mais
próximo dos códigos do campo da arte – em um espaço de legitimação artística,
ocorreu em 2009 com a participação do pixador Djan Ivson da gangue Cripta, na
Fundação Cartier, em Paris, França, na exposição “Né dans la Rue: Graffiti”, que
tratava da história internacional do grafite. Djan, um pixador, um contraventor com
inúmeras passagens em delegacias da cidade de São Paulo por conta das suas

325
atuações ilegais na paisagem urbana, figurou em um centro de exposição de arte
contemporânea com destaque, graças ao design diferenciado das suas letras de
pixação e de sua performance ao caligrafar a fachada do prédio da galeria com o
logotipo da sua gangue. Esse fato colocou uma situação até então não discutida na
história da pixação.

Figura 01 – Acima Djan pintando a fachada da Fundação Cartier em Paris com o logotipo da sua
gangue107.

Em 2010, outro exemplo emblemático da temática foi a participação de um coletivo


de pixadores na 29ª Bienal de Artes de São Paulo. Nesse exemplo nacional de
participação da pixação em um espaço de legitimação artística, novamente tivemos
a presença de Djan Ivson. Ele não se restringiu ao espaço destinado ao coletivo de
pixadores; Djan roubou a cena ao pixar a obra do artista Nuno Ramos de forma não
autorizada, em meio aos visitantes da Bienal. Esse fato trouxe destaque para Djan
na mídia e, por consequência, entre os pixadores.

107
Fonte: João Wainer/ Folha imagem. Publicado em 04/07/2009 na página especial C8 do jornal Folha de S.
Paulo.

326
Em 2008, ocorreram os Ataques – como foram chamadas as invasões pelas notícias
da época – tiveram grande repercussão na mídia108, que apresentava ao grande
público as surpreendentes ações de pixadores de diversas gangues que, sem
credenciais, entravam à força em espaços institucionais de arte e realizavam neles
performances análogas às que realizavam nas ruas. Foram atacados o centro
Universitário Belas Artes, a Bienal de Artes em São Paulo e a galeria de arte Choque
Cultural. Djan usava sua ascendência e liderança natural sobre os pares para
convocar e organizar os pixadores de outras gangues, que participavam como
voluntários nesses atos.
Tomando por base as ideias de Bourdieu (2004:105), podemos destacar o sistema
de produção e circulação de bens simbólicos no campo da produção erudita, voltado
a um público de produtores de bens culturais; e no campo da indústria cultural
destinados a não produtores de bens culturais, ou seja, à população em geral,
configurando dois tipos distintos de público para recepção desses bens. Ao
promoverem Ataques em espaços de conservação de bens simbólicos (galeria,
museu, instituição de ensino), os pixadores entram em um embate com o campo de
produção erudita que funciona como uma arena fechada, de concorrência pela
legitimidade cultural (consagração propriamente cultural). No outro lado, ao
mobilizarem e alimentarem os instrumentos de difusão dos acontecimentos, as
questões da pixação entram em contato com os modos de recepção da cultura
média na engrenagem da indústria cultural regida por uma lei da concorrência para
conquistar o maior mercado possível.
As ações ilegais de Djan, em 2008, e as participações oficiais de arte, em 2009 e
2010, pareciam informações não só suficientes para embasar a descrição da
evolução histórica da pixação, mas também o processo de ruptura da tradição do
pixo em ter a cidade como único suporte de sua atuação. Djan, em 2012, participou
da 7ª Bienal de Berlim, com um coletivo de pixadores e novamente ganhou destaque

108
Algumas reportagens que ilustram o destaque na mídia:
CAPRIOGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de S. Paulo.
Cotidiano, C7, São Paulo, 13 jun 2008.
CYPRIANO, Fabio. Bienal é aberta amanhã com ameaça de pichação. Folha de S. Paulo. Ilustrada, E15, São
Paulo, 24 out. 2008.
COLI, Jorge. O país do homem cordial. Folha de S. Paulo. Mais!, n871, São Paulo, 14 dez. 2008

327
ao jogar tinta, publicamente, sobre o curador do evento, o artista polonês Artur
Zmijewski. Após esta performance, que o catapultou para a manchete do jornal
Folha de São Paulo, Djan passou a ser definido pela mídia como “artista/pixador”.
Essa notícia talvez tenha sido o ponto alto da pixação como fenômeno descolado
da sua própria história de subversão nas ruas de São Paulo.

Figura 25 – Acima, reprodução de parte da capa do jornal Folha de S.


Paulo em 13/06/2012

Nesse contexto, o ano 2008 pode ser considerado como o marco do ingresso da
pixação no campo da arte, de modo não amigável, iniciando um período que se
estende até a consolidação dessa nova situação, em 2012, quando as participações
regulamentadas de pixadores em eventos organizados por instituições artísticas
tornam-se corriqueiras. Este hiato tem Djan como elemento-chave; em sua biografia
temos o momento quando, supostamente em nome da pixação, ele rompe com uma
atuação exclusiva nas ruas para entrar no circuito institucional da arte.
A identidade social de Djan como pixador não é um problema, como poderia ser
para um pixador qualquer de São Paulo, ao assumir a prática de uma ação de
contravenção, mas sim um recurso estratégico de diferenciação e construção de um

328
papel social em uma sociedade que não lhe ofereceu opções de integração. A
pixação funciona como uma espécie de reflexibilidade social e ferramenta de
subjetivação. Ou seja, em seu discurso e suas ações, Djan adota uma estratégia
que se assemelha ao conceito da lógica da estratégia, em que a ação coletiva não
é apenas um meio de seus participantes “se identificarem, mas também como um
instrumento para acenderem a um mercado político local” (DUBET: 1994, 122),
proposta por Dubet: converte algo que é visto socialmente como transgressão e
sujeira em meio de expressão para disputar posições no campo da arte, até então
inacessível para os pixadores legítimos.

Considerações finais

As articulações entre o universo da pixação e demais intuições, principalmente no


período compreendido entre cinco anos, iniciado com os Ataques, em 2008, até a
atuação na Bienal de Berlim em 2012, são fatos que podemos chamar de articulação
ou “obra” construída por esse personagem que atuou como representante legítimo
da pixação em São Paulo, tanto para os pixadores como para sociedade.
Articulações que estão diretamente relacionadas, ao que parece, com a trajetória
de Djan, que, tomando para si a responsabilidade de ganhar notoriedade, usou dos
recursos que tinha e das oportunidades que foram surgindo. Ao emergir como um
“artista subversivo”, que surpreende a cada nova “produção”, que deixa sempre
dúvidas no ar. Será ele artista de fato? Será um representante da pixação, dos
pixadores ou dele mesmo?
A história de Djan tem um lado enigmático e nos faz refletir sobre a pergunta mais
comum – isto é, se a temática da pixação tem relevância para um debate –, uma
pergunta que traz consigo o senso comum, que vê na prática apenas sua condição
de contravenção, como mera sujeira e vandalismo: “a pixação tem solução ou cura?”
Difícil prever, pois ela é, também, um sintoma de problema social mal tratado pelo
poder público. Ao se transformar em fenômeno estético, ela nos força a buscar
explicações mais profundas para sua essência. No atual estágio de nossa

329
compreensão, talvez a pixação tenha muito mais a dizer sobre as cidades e os
segregados do que nós temos a dizer sobre ela.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU. Pierre. A economia das trocas simbólicas. (Introdução, organização e


seleção de Sérgio Miceli). São Paulo: Perspectiva, 2004.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009.
P.44-45.
DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
LASSALA, Gustavo. Em nome do Pixo: A experiência social e estética do pixador e
artista Djan Ivson. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
VISCONTI, Jacopo Crivelli. Novas Derivas. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

330
MAGNÓLIA – ANÁLISE DA MISE-EN-SCÈNE NA INTRODUÇÃO DO FILME DE
PAUL THOMAS ANDERSON

Hugo de Almeida Harris109


Introdução

O cinema é uma arte que procura, por meio de recursos visuais e sonoros, contar
histórias. Em meio a isso, como toda expressão estética, há sempre espaço para
experimentação e ousadia. Apontar a organização de um texto audiovisual é tão
estimulante quanto fazer uma análise literária. A compreensão da construção
narrativa é algo que provavelmente deve interessar às duas áreas – cinema e
literatura.
Devido a esta associação entre as duas áreas, torna-se coerente demonstrar a
inspiração para o estilo do estudo aqui implementado. Apesar de se tratar de uma
introdução a um conhecido estudo literário, pode-se adaptar o pensamento para um
estudo na área do audiovisual.
Procurando sobretudo interpretar, este não é um livro de erudição, e o aspecto
informativo apenas serve de plataforma às operações do gosto. Acho valiosos e
necessários os trabalhos de pura investigação, sem qualquer propósito estético; a
eles se abre no Brasil um campo vasto. Acho igualmente valiosas as elucubrações
gratuitas, de base intuitiva, que manifestam essa paixão de leitor, sem a qual não
vive uma literatura. (CANDIDO: 2012, 32)
Este trabalho descreve uma análise possível da introdução110 do filme “Magnólia”,
do cineasta estadunidense Paul Thomas Anderson, lançado no ano de 1999. Trata-
se dos primeiros seis minutos do filme 111, que acabam por se configurar como uma
espécie de preâmbulo da história principal. Como será visto posteriormente,
algumas premissas localizadas nos contos narrados na introdução expõem temas
que serão explorados de forma mais prolongada no filme. Além disso, o tom da

109 Doutorando em Letras –Universidade Presbiteriana Mackenzie


110 Poderia ter sido feita a análise de qualquer trecho do filme. Porém, optou-se por trabalhar a introdução
pelo fato de nela constarem histórias com começo, meio e fim, o que torna o objeto mais consistente.
111 O filme inteiro tem 188 minutos.

331
narrativa, que beira o absurdo, também prepara o espectador para o que encontrará
no resto do filme.
A pergunta-problema que guiou esta pesquisa foi: “De que forma a mise-en-scène
foi utilizada na introdução de 'Magnólia' para expor o tema principal do filme e
estabelecer seu tom?".
O objetivo principal deste trabalho era analisar a introdução do filme "Magnólia" em
seus aspectos formais e estruturais. Como objetivos secundários, o primeiro é
compreender a associação entre a temática desta introdução com a do filme
principal, visto que se trata de histórias diferentes daquela que é contada no resto
da produção112. Em seguida, traçar um padrão de construção de cada um dos
trechos da introdução, no intuito de compreender uma possível unidade formal.
Um trabalho como este sempre se mostra relevante devido à constante investigação
a respeito das estruturações na arte. "Magnólia" foi exaltado quando lançado nos
cinemas, em especial pela forma como Paul Thomas Anderson optou em contar sua
história. Ele divide a história naquilo que é conhecido como multiplot113, criando
histórias independentes que, de alguma forma, acabam por se encontrar. Não é a
primeira vez que se faz isso. Basta assistir a "Pulp Fiction - tempos de violência", de
Quentin Tarantino, que pode-se perceber este uso.
A escolha do filme “Magnólia” é primordialmente subjetiva, estimulada pela
qualidade estrutural da peça e por ter sido realizada por Paul Thomas Anderson,
que é um cineasta conhecido pelo esmero na utilização da mise-en-scène. Os filmes
dele transitam entre o popular e a arte – uma dicotomia que está presente em muitas
formas de expressão artística.

A mise-en-scène e Paul Thomas Anderson

A construção de um filme passa por diversas etapas. Seja a criação da ideia, sua
roteirização, planejamento de produção, filmagem ou finalização, sempre tem-se em

112 Como será visto no decorrer deste trabalho, a introdução do filme “Magnólia” é composta por três histórias,

as quais, como dito, não estão diretamente associadas à trama do filme.


113 Multiplot é, de acordo com glossário constante em COMPARATO (2009, 487): diversas linhas de ação,

igualmente importantes, numa mesma história.”

332
mente a história a ser contada. Em cada uma destas etapas, é necessário conhecer
características específicas da trama, para poder aproveitar ao máximo suas
potencialidades.
Ao mesmo tempo, o conhecimento a respeito destas características também pode
estimular a criatividade do realizador, na busca pela melhor estruturação possível
da peça final.
Dentre os conceitos a serem levados em consideração no momento da realização,
está a utilização da mise-en-scène. Trata-se da articulação entre imagens e sons,
da escolha dos realizadores do filme a respeito de como expor cada situação que
irá compô-lo. Neste caso, também encontra-se a necessidade de investigar a
escolha a respeito da montagem do filme. De acordo com Bordwell (2008, 33):
Poucos termos da estética do filme são tão polivalentes como esse. Em francês,
significa o que, em inglês, chamamos de “direção” e suas origens estão no teatro.
Mettre en scène é “montar a ação no palco” e isso implica dirigir a interpretação, a
iluminação, o cenário, o figurino etc. Desde Bazin, alguns críticos passam a tratar a
mise-en-scène simplesmente como o processo inteiro da direção de um filme,
incluindo a encenação, a montagem e a trilha sonora.114
Para compreender a análise que pretendeu-se realizar do objeto deste trabalho, é
fundamental se passar pela relação entre cena, plano e mise-en-scène. Não se deve
deixar de lado que este termo é proveniente do teatro, o que mostra que desde
décadas antes do surgimento do filme já se fazia uma relação entre cena e mise-
en-scène. Com o cinema, há uma adaptação do conceito.
A mise en scène115, aqui, estaria inextricavelmente vinculada a seu núcleo nominal,
a cena, (...) – não a cena de teatro, de onde ela decola, mas sua decupagem, ou
seja, sua submissão à arte da duração e da variação dos pontos de vista. A cena
cinematográfica se constrói pelo plano (ou soma de planos), que é sua unidade de

114Grifos do autor.
115Este autor não utiliza hífens na grafia do termo mise-en-scène. Como deve-se fazer, a cada citação, seguiu-
se a grafia escolhida por cada autor. David Bordwell, por exemplo, coloca hífens. Porém, para o texto deste
artigo, optou-se por hifenizar o termo.

333
composição – unidade potencialmente descontínua, móvel e variável. (OLIVEIRA
JÚNIOR: 2013, 29)116
Os filmes de Paul Thomas Anderson notabilizam-se pelo trabalho de mise-en-scène.
Desde seu primeiro filme de sucesso117, as histórias se caracterizavam pela forma
como eram contadas, o que as valorizava ainda mais. “Magnólia” foi seu filme
seguinte, e consagrou-o definitivamente. PTA 118, como é conhecido nos Estados
Unidos, conseguira reunir diversos atores, distribuídos em tramas independentes,
que seriam articuladas aos poucos dentro do filme. Depois disso, outras realizações
do diretor foram lançadas, sempre com um espaço de tempo dilatado entre elas 119.
Isso pode ser devido à característica de sua obra, que não é propriamente comercial
e que dificulta o financiamento120.
A introdução do filme “Magnólia” é composta por três histórias independentes, as
quais serão chamadas aqui de contos121. Cada uma com sua trama específica,
trabalha dois temas em comum: ironia e coincidência. São estes dois temas dão
razão de existência para esta introdução, pois estarão presentes no filme inteiro. A
presença do narrador é marcante nas três histórias. Será possível perceber que ele
conduz a percepção do espectador, auxiliando na interpretação de cada imagem
que é colocada no filme.

Primeiro Conto
O narrador introduz a história dizendo que, em 1911, o jornal New York Herald,
noticiou o enforcamento de três homens pelo assassinato de um homem de família.
Este trecho ocorre com a sequência de imagens de três homens sendo enforcados
sucessivamente, dando a impressão de aproximação para o espectador, como se

116 Grifos do autor.


117 Boogie Nights: prazer sem limites (1997).
118 Sigla formada pelas iniciais de seu nome.
119 Em ordem de lançamento: Embriagado de amor (2002); Sangue negro (2007); O mestre (2012); Vício

inerente (2014).
120 Outro cineasta que passa pelo mesmo problema é Terrence Malick, autor de A árvore da vida.
121 Toma-se esta liberdade por serem narrativas breves, dinâmicas e fechadas em si.

334
tivesse sido colocado um zoom. A história é contada numa janela122 menor que a
convencional, típica dos filmes da era muda 123. Esta escolha demonstra a aliança
entre conteúdo e formato.
Na apresentação do local onde a vítima (sir Edmund William Godfrey), vê-se
claramente a placa com o nome da rua: Greenberry Hill. A ironia / coincidência
ocorre quando são nomeados os assassinos. Os nomes eram Joseph Green,
Stanley Berry e Daniel Hill. A cada nome apresentado, é realizado um movimento
dolly124 em direção ao rosto de cada um, para que haja uma maior pontuação sobre
os personagens.
Para finalizar o conto, o narrador repete de forma compassada o sobrenome de
cada um dos assassinos, o que forma o nome da rua onde morava a vítima.
Esta é uma história mais curta e simples do que as seguintes.

Segundo Conto
Com uma série de labaredas e sua crepitação, é feita a transição do primeiro para
o segundo conto. Novamente o narrador introduz a história relatando que ela foi
noticiada em um periódico. Desta vez, trata-se do Reno Gazette, de 1983125. A
mudança temporal e espacial é providencial se for levado em consideração o
suposto objetivo da introdução do filme – demonstrar que há coincidências e ironias
na vida. Se tudo ocorresse numa mesma época e localidade, poderia-se ter a ideia
de que estes eventos narrados seriam fenômenos característicos de um
determinado momento histórico.

122 Monclar (1999, 66) esclarece: “A luz (...) penetra através das lentes que está colocada (sic) na torre da
câmera e imprime o fotograma (ou frame) do negativo através da janela que recebe a imagem quando se
abre diante do obturador. O formato desse fotograma será determinado pela janela (em grelha) que estiver
encaixada na ranhura correspondente entre a torre da câmera e a estrutura da janela do corredor de
negativo do corpo interno da câmera. Os formatos destas grelhas são: 1.66, 1.33, 1.85 e 2.35.”
123 No roteiro do filme, encontra-se a seguinte definição no cabeçalho que apresenta esta cena: “Black and

White Lumiere Footage” (ANDERSON: 1998, 01)


124 Dolly é realizado com um carrinho que possui o mesmo nome, podendo ser com rodas ou em trilhos. O

movimento é ou para frente, ou para trás. No caso mencionado, este movimento é para frente, o que amplia
o tamanho do rosto dos personagens na tela.
125 Por se tratar do ano de 1983, quando as janelas de filmagem já haviam progredido, encontra-se no roteiro

do filme a seguinte inscrição no cabeçalho: “(35mm / color / anamorphic now)” (ANDERSON: 1998, 03). O
termo “now” demonstra a alteração entra a primeira história e a segunda.

335
A partir deste segundo conto, a narrativa torna-se mais complexa. Enquanto na
primeira história há uma certa linearidade126, as duas que a seguem têm uma
montagem mais fragmentada.
O conto inicia com uma imagem curiosa e nonsense. Isso gera curiosidade no
público para acompanhar o relato que se seguirá. Trata-se da visualização de um
mergulhador, com equipamento completo: máscara, snorquel, roupa de neoprene e
nadadeiras. O grotesco da situação é que ele está morto, no topo de uma gigantesca
árvore no meio de uma floresta que pegava fogo. Assim como no início do primeiro
conto, PTA realiza uma aproximação do personagem com o corte de três planos,
começando num mais aberto, para terminar num close do rosto dele. Novamente,
esta sensação de aproximação se dá como se fosse um zoom, mas devido aos
cortes, parece que se coloca gradualmente lentes de aumento sobre o homem.
Com um primeiro flashback127, o narrador apresenta o personagem. Trata-se de
Delmer Darion, crupiê de um cassino em Reno. São mostradas imagens dele no
trabalho, com detalhes de sua habilidade no trato com as cartas e todo o ambiente
do cassino. Rapidamente é feita a transição para o hobby do crupiê, que era
mergulhar num rio próximo. Neste ponto é feita uma transição para ele dentro do
Lago Tahoe128.
A revelação a respeito da conexão deste evento com aquilo que foi mostrado no
início do conto se dá logo em seguida, quando um avião bombeiro desce sobre o
lago de comportas abertas recolhendo água. O entendimento sobre o que
aconteceu é confirmado quando o narrador relata: “As reported by the coroner,
Delmer died of a heart attack somewhere between the lake and the tree” 129
(ANDERSON: 1998, 05).

126 Esta linearidade nãoé total pois, como descrito, o primeiro conto inicia com a descrição dos enforcamentos
para depois mostrar o motivo destas execuções – o assassinato que, obviamente, aconteceu algum tempo
antes. Porém, nos dois contos posteriores, há um jogo de idas e vindas temporais mais intenso e complexo.
127 Flashback é o recurso de montagem cinematográfica em que há um retorno no tempo para expor fatos

ocorridos que, de alguma forma, contribuirão para o entendimento da trama e/ou de detalhes do
personagem.
128 O nome do lago consta no roteiro do filme.
129 Como relatado pelo legista, Delmer morreu de ataque cardíaco em algum ponto entre o lago e a árvore. –

tradução minha

336
Esta fala ocorre enquanto o espectador assiste o avião voando em direção à
floresta. A somatória de imagem e som contribui para o entendimento daquela
situação mostrada no início, sem que seja necessário mostrá-la novamente.
Onde estaria a coincidência? A história continua com a introdução de um novo
personagem – Craig Hanson – o qual teria se suicidado. A aproximação do
personagem desta vez não se dá em vários cortes, mas num dolly in, como feito na
apresentação dos assassinos do primeiro conto. Um novo flashback torna-se
necessário, ao apresentar os hábitos de Craig. Tratava-se de um jogador inveterado
e viciado em bebida. Algum tempo antes do acontecimento principal do conto, Craig
teria espancado o mesmo Delmer Darion no cassino em Reno após não conseguir
vencer uma partida.
A coincidência está no fato de Craig ser o piloto do avião bombeiro que recolheu
Delmer junto da água do lago e o lançou sobre a floresta. O conto termina com Craig
não conseguindo suportar tamanha coincidência e dando um tiro em sua cabeça.
No momento do tiro, o estouro causa um flash dentro de seu quarto. O narrador,
novamente, tem o papel de conectar os fatos para facilitar a compreensão do
público.

Terceiro Conto
Diferente das histórias anteriores, este não é relatado como notícia de jornal.
Indicando novamente uma variação de tempo e espaço, o narrador descreve uma
situação que foi contada numa reunião de associação em 1961. À medida que o
conto inicia, já há um flashback para o ano de 1958, quando se deu a história que
será contada.
Começa com uma aproximação em dolly de um personagem que está no topo de
um prédio. Quando a câmera chega no personagem, que é apresentado como
Sydney Barringer, ele se joga do topo do prédio. O inusitado se dá quando ele passa
por uma janela e dela sai um tiro, que atinge o homem que está em queda. Ele cai
sobre uma rede de proteção, quando a imagem é frisada. Este é o acontecimento
principal da história, aquele que guiará a narrativa, e que será destrinchado para
que se possa compreender onde está a ironia e coincidência.

337
Após esta exibição, o narrador faz a história voltar, e novamente o espectador se vê
sobre o prédio, ao lado do personagem. O narrador tem a preocupação em mostrar
a evidência de que Sydney queria se suicidar. Mostra um bilhete que é possível
visualizar no bolso de Barringer. Além disso, imagens do bilhete, mostrando trechos
e termos que comprovem as intenções do personagem. A intenção do narrador fica
ainda mais explícita ao dizer “Para elucidar...”, e em seguida começar a remontar
todas as situações que compõem este evento.
Este trecho descrito no parágrafo anterior é relevante também para fazer uma
conexão com o roteiro do filme, pois comprova que já havia um pensamento por
parte do realizador sobre o trabalho de mise-en-scène que seria efetuado nas
filmagens. Na cena transcrita abaixo é possível perceber o olhar do cineasta sobre
os pontos de vista a serem trabalhados no filme. A citação está diagramada como
se faz em roteiro (ANDERSON: 1998, 07):

25 – EXT. ROOFTOP – MORNING – FLASHBACK (1958)130


A seventeen year old kid SYDNEY BARRINGER 131 steps up on to the ledge of a
nine story building and looks down.

Narrator
Seventeen year old Sydney Barringer. In the city of Los Angeles on March 23, 1958.
CAMERA DOLLIES132 towards Sydney landing in a CLOSE UP 133 of his feet on the
ledge, they wobble a bit – he jumps, dissapears from FRAME.
BEAT134. The following happens very quickly:
ANGLE135, looking up towards the sky136…Sydney falls past CAMERA….
ANGLE, looking down towards the street…Sydney continues to fall…

130 Todo cabeçalho de cena deve ser escrito em maiúsculas.


131 A apresentação de personagens deve ser sempre em maiúsculas, com indicação de idade, algo feito pelo
realizador antes de mostrar o nome.
132 Funções de câmera também devem ser colocadas em maiúsculas, para auxiliar a equipe de fotografia.
133 Enquadramentos também devem ser colocados em maiúsculas.
134 O beat significa uma mudança de ritmo no meio da cena.
135 As indicações de ângulo demonstram mudanças de ponto de vista bem marcantes que se seguirão no

decorrer da cena.
136 Indicação da direção para onde está apontada a câmera – isso ocorrerá também na frase seguinte.

338
ANGLE, a random window on the sixth floor of the building SMASHES137….
ANGLE, Sydney’s stomach…a BULLET rips into it as he falls…blood splatters and
his body flinches….
ANGLE, looking up towards the sky…Sydney’s body and some shattered glass FALL
directly at the CAMERA…which pulls back a little to reveal a SAFETY NET in the
foreground…Sydney’s body falls LIMP into the net…FREEZE FRAME 138.

Narrator
The coroner139 ruled that the unsucessful suicide had suddenly become a sucessful
homicide. To explain:140

Em seguida, são apresentados dois novos personagens. A câmera caminha pelo


corredor do prédio, numa aproximação em dolly novamente. Há um corte para
dentro do apartamento e a dolly continua, fazendo uma curva para a esquerda.
Revela-se um casal que briga em altos brados. A mulher ameaça o homem com

137 Tanto no caso da palavra “SMASHES” quanto na palavra “BULLET” a maiúscula é utilizada para indicação
de sons importantes dentro da cena.
138 Marcações importantes de montagem também devem ser colocadas em maiúsculas.
139 É curiosa a menção de um legista nesta história também, visto que havia sido citado no conto anterior.

140(Cena) 25 – EXT. EDIFÍCIO/TOPO – MANHÃ – FLASHBACK (1958)


Um rapaz de dezessete anos, SYDNEY BARRINGER, sobe na beira de um prédio de nove
andares e olha para baixo.
NARRADOR
O jovem Sydney Barringer. Na cidade de Los Angeles no dia 23 de março de 1958.
CÂMERA AVANÇA na direção de Sydney terminando em CLOSE UP em seus pés na beira,
eles pendem – ele salta, desaparece do FOTOGRAMA.
BEAT. Acontece o seguinte muito rápido:
ÂNGULO, olha para cima em direção ao céu…Sydney em queda passa pela CAMERA….
ÂNGULO, olha para baixo em direção da rua…Sydney continua sua queda…
ÂNGULO, uma janela qualquer no sexto andar do prédio SE QUEBRA...
ÂNGULO, estômago de Sydney...uma BALA acerta-o enquanto ele cai...sangue se espirra e
seu corpo sofre o impacto...
ÂNGULO, olha para cima em direção ao céu...O corpo de Sydney e alguns cacos de vidro
CAEM diretamente na direção da CÂMERA...que se afasta um pouco para revelar uma
REDE DE PROTEÇÃO no primeiro plano...O corpo de Sydney cai DIRETO sobre a rede...
FREEZE FRAME
NARRADOR
O legista disse que o suicídio mal realizado tinha subitamente se transformado num homicídio
bem sucedido. Para elucidar: - Tradução minha.

339
uma espingarda. Isso é mostrado em plano e contraplano, criando tensão dentro da
cena. De repente, um tiro sai da arma acidentalmente. Neste instante, vê-se o corpo
de Sydney passar pela janela. É o exato instante de conexão entre a cena principal,
guia do conto, e este momento de elucidação para o público. Em seguida, o narrador
apresenta os personagens: são os pais de Sydney Barringer.
Com uma pequena passagem de tempo141, vê-se Fay e Arthur Barringer agora
sentados, interrogados pela polícia. A câmera se aproxima aos poucos, à medida
que eles revelam que não sabiam que a arma estava carregada. Com isso, surge o
personagem de uma criança que conta como isso aconteceu. Assim, dentro do
flashback que era assistido, inicia um flashback ainda anterior, que mostra que foi
Sydney quem carregou a arma, desejando que seus pais se matassem. Há uma
imagem que corrobora com o relato do rapaz, em que Sydney carrega a arma e o
menino está logo atrás dele, colocando-o na cena narrada. Curiosamente, a criança
realiza o depoimento olhando para a câmera, que se aproxima dela novamente em
dolly. Quando está em close, um flash estoura, como se a criança fosse fotografada
para os jornais. Este flash remete ao do conto anterior.
O conto termina com um plano bem aberto, mostrando o edifício inteiro. O narrador
descreve a ironia do acontecimento. A cada fala do narrador, desenha-se na tela o
percurso dos eventos: o salto de Sydney, a trajetória da queda, o corpo em queda,
o momento do tiro, a continuidade da queda, e quando o corpo dele cai sobre a tela
de proteção que havia sido instalada dias antes. A ironia está na fala do narrador,
que diz que ele teria sobrevivido à queda devido à rede, mas morreu por causa do
tiro que levou. Visto que o tiro foi dado por sua mãe numa arma que ele carregou,
ela se torna sua assassina e ele cúmplice de seu próprio assassinato.
Com isso, termina a introdução, com uma frase que arremata todo o propósito dela:
“Estas coisas estranhas acontecem o tempo todo”. Para em seguida iniciarem os
créditos para o filme principal. Terminaram os seis minutos da introdução.

141 Conhecida como elipse.

340
Conclusão
Este trabalho tinha como pergunta-problema o seguinte: “De que forma a mise-en-
scène foi utilizada na introdução de 'Magnólia' para expor o tema principal do filme
e estabelecer seu tom?".
Com o que foi descrito na análise dos três contos que compõem os seis minutos da
introdução do filme, foi possível ver que há um cuidado na organização dos
elementos constitutivos das cenas apresentadas. Não apenas os enquadramentos
e movimentações de câmera, mas principalmente a articulação entre os planos, que
é aquilo que é conhecido como a montagem do filme. A forma de contar estas
histórias já está presente no roteiro do filme. Na leitura de Anderson (1998) vê-se
várias vezes a indicação dos movimentos de câmera que seriam utilizados na
filmagem. Encontra-se cenas no roteiro como confirmação deste procedimento142.
A descrição passo a passo das imagens e sons utilizados por Paul Thomas
Anderson demonstram seu domínio da mise-en-scène. Isso não é apenas na
filmagem, mas também passa, como explicado, pelo planejamento da estruturação
que se dá no roteiro.
Com a análise realizada, percebe-se o papel fundamental do narrador para a
condução do espectador para o tema: ironia e coincidências. Sem esta presença, o
apontamento da conexão entre cada um dos eventos não seria tão evidenciado.

Referências Bibliográficas

ANDERSON, Paul Thomas. Magnolia: Screenplay. 1998. Disponível em:


<http://www.pages.drexel.edu/~ina22/splaylib/Screenplay-Magnolia.PDF>. Acesso
em: 20 set. 2015.
BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: A encenação no cinema. Campinas:
Papirus, 2008.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: Momentos decisivos. Rio de
Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2012.

142 Vide explicação do terceiro conto.

341
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: Teoria e prática. São Paulo: Summus,
2009.
MONCLAR, Jorge. O diretor de fotografia. Rio de Janeiro: Solutions Comunicações,
1999.
OLIVEIRA JUNIOR, Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema
de fluxo. Campinas: Papirus, 2013.

342
MÚLTIPLAS LINGUAGENS: UMA ANÁLISE DA ESTÉTICA PUBLICITÁRIA

Isabel Orestes Silveira143


Marco Antonio Palermo Moretto144

Introdução

É possível encontrar, na imagem e na linguagem publicitária, elementos como obras


de arte, estrofes de música, trechos de poesias e adaptações literárias, ou ainda
outras tantas manifestações artísticas. No momento em que se assiste à televisão,
se acessa a internet ou quando se manipulam revistas ou outros impressos, nota-
se a presença invasiva da publicidade. Mesmo o olhar mais distraído observa
anúncios espalhados pelas ruas das grandes avenidas da cidade e não escapa das
identidades visuais das grandes marcas. O conteúdo de muitas peças traz imagens
e textos com excelentes recursos gráficos e em algumas, observa-se a arte
tradicional (aquela que está nos museus, nas igrejas, nos centros culturais, etc.), ou
mesmo a arte popular (canções, filmes, etc.).
É interessante notar que Michelângelo, Leonardo DaVinci e Mozart não fizeram suas
obras para vender sabonetes, carros ou sandálias. Aliás, em suas épocas não havia
divulgação de produtos para o grande público, nem a chamada Indústria Cultural 145,
muito menos o conceito de “massa” (conceito tão caro, a teoria da Comunicação).
O conceito de arte é muito complexo, principalmente se tomarmos como referência
a arte chamada “consagrada”, aquela dita “imortal”. Pode passar o tempo, e ela
permanece na cultura dos povos. É o caso do famoso quadro Monalisa pintado por
Leonardo DaVinci, que ficou mundialmente conhecido e ainda é explorada pela

143
Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.
Coordenadora de Pesquisa e Extensão do CCL da Universidade Presbiteriana Mackenzie
144
Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo; contratado do ITESP , Brasil
145
* Para o leitor interessado em uma discussão mais aprofundada sobre o tema Indústria Cultural remetemos
o leitor aos textos de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. A Indústria Cultural- O Iluminismo como
mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César Bloom. Rio de Janeiro: Zahar,
1985 [1969].

343
mídia. Uma obra com mais de 500 anos, executada em pleno período do
Renascimento (1300-1700). Muitos podem pensar: “é uma obra de arte, sem
dúvida”. Mas, quando são consideradas as obras que estão expostas em acervos
de museus contemporâneos em que se fazem presentes pedaços de madeira com
alguns pregos transpassados, e logo abaixo aparece uma etiqueta com o titulo
“Marina”, questiona-se: será possível imaginar o mar sendo representado nesse
pedaço de madeira? Para alguns sim, para outros será difícil ver a arte expressa
nesse objeto.
O conceito de “obra de arte” tem sido um assunto polêmico, o qual tem gerado muita
discussão. No caso citado (obra intitulada: Marina), pode-se afirmar que é arte
abstrata ou outros especialistas diriam que é arte conceitual. Alguns ainda podem
alegar que para ser compreendida dependeria da imaginação do sujeito que vê.
Assim, a palavra ARTE vai assumindo diversos significados e, com o passar do
tempo, diversas formas concretas de expressão.
Segundo Pareyson (1984, p. 12), “[...] a arte é uma linguagem que se reinventa
constantemente para construir, conhecer e expressar questões dos seres
humanos”, ou podemos aferir que “[...] arte é perceber o mundo por meio da
sensibilidade” (FERRARI, 2013, p.20). Assim, “[...] toda arte é condicionada pelo seu
tempo e representa a humanidade em consonância com as ideias e aspirações, as
necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular” (FISCHER,
1980, p.17).
As obras de arte são contextualizadas, isto é, apresentam quatro características
essenciais para a compreensão de sua presença no mundo: a época, o lugar, o
artista e a própria obra: a produção. É nesse sentido que a publicidade observa as
tendências da arte, da moda, do clássico/erudito e da arte popular. São nas múltiplas
linguagens, e também, no uso da intertextualidade, que se apoia a estética 146
publicitária.

146
* Estética do grego aisthesis e significa "faculdade de sentir", "compreensão pelos sentidos", "percepção
totalizante". A Estética consiste num ramo da filosofia que se ocupa das questões relacionadas à arte, como o
belo, o feio, o gosto, o sublime e também estuda as teorias da criação e da percepção artística. Nesse artigo o
termo estética será utilizada no seu sentido lato, isto é, para designar o fazer publicitário e sua pratica criativa
nas inter-relações com as diferentes linguagens.

344
Diante de um job, as duplas de criação são movidas pelo
espírito bricoleur precisamente na hora do brainstorm – prática
em que o redator e o diretor de arte lançam ideias livremente
para depois aperfeiçoá-las e encaixá-las nos moldes do que
lhes foi solicitado. Para isso, é vital que tenham vasto
background, buscando no próprio estoque de signos de sua
comunidade a matéria-prima para chegar à solução mais
adequada ao problema de comunicação do anunciante. A
rotina dos criativos exige, pois, que aperfeiçoem a habilidade
de combinar os variados discursos por meio do jogo
intertextual. (CARRASCOZA, 2008, p.23)

Propõe-se discutir, neste artigo, a linguagem híbrida utilizada pela


publicidade que se atualiza pelo discurso do aproveitamento de múltiplas formas
comunicativas presentes em outras linguagens como o cinema, a televisão, o teatro,
o jornalismo, as novelas, a literatura e outras areas capazes de despertar o interesse
do público receptor.

Discurso Publicitário

A força da Indústria Cultural pode ser percebida pelo discurso publicitário.


Dentre os teóricos que analisam o discurso publicitário como forma de controle
social, destaca-se Lagneau (1974, p. 121-122) que investigou a respeito dos
recursos utilizados pela publicidade, envolvendo a linguagem como forma de
sedução, por meio de três vias, a saber: psicológica, antropológica e sociológica.
Pela via psicológica, reconheceu no pensamento psicanalítico de Freud, o
jogo erótico que os anúncios publicitários contêm; pela via antropológica investigou
o receptor que é induzido pela compra e iludido pelo jogo simbólico das palavras
que inconscientemente lhe remete aos arquétipos147 coletivos. Por fim, pela via
sociológica, o autor menciona o fato de que o discurso publicitário dá a ilusão de
que todo anúncio é dirigido a um único individuo, ou seja, o discurso é personalizado
e as palavras empregadas contêm força para convencê-lo de que ele faz parte de
um grupo social, portanto é um sujeito especial.

147
* O termo arquétipo tal qual foi cunhado e desenvolvido por Jung pode ser entendido aqui, como
possibilidades de um completo sistema de funções psíquicas que é acionado quando imagens são evocadas na
psique de maneira coletiva.

345
Segundo Carvalho, a publicidade não tem autoridade para ordenar, então o
emissor utiliza a “manipulação disfarçada”, e sobre isso afirma:

[...] para convencer e seduzir o receptor, não deixa transparecer suas


verdadeiras intenções, ideias sentimentos, podendo usar de vários
recursos: a ordem (fazendo agir): Beba Coca-Cola; a persuasão (fazendo
crer): Só Omo lava mais branco; ou a sedução (buscando o prazer): Se
algum desconhecido lhe oferecer flores, isto é Impulse. (CARVALHO,
2001, p.10)

Os modelos de comportamento e os conceitos que por meio das imagens,


das músicas, dos anúncios, dos cenários e dos demais elementos comunicativos
que interagem entre si na publicidade podem ser considerados mecanismos de
persuasão e alvos de críticas, se considera que tais elementos são absorvidos pelo
consumidor e afetam seu hábito de vida.
Esses mecanismos são percebidos, muitas vezes, pela presença da arte dita
consagrada e podem motivar os consumidores quando estes ouvem música
clássica ao fundo, por exemplo; assim sentem-se impelidos, por sua sensibilidade e
também pelo apelo sensorial, a aderir tal campanha e a consumir determinado
produto. É claro que a formação cultural de cada consumidor é importante para
estabelecer essa relação, visto que nem todas as pessoas possuem sensibilidade
ou obtiveram formação em arte. Muitos consumidores podem desconhecer que a
música é do período Barroco, ou que o quadro mostrado na televisão é de algum
pintor famoso, mas mesmo nesses casos, há ao menos, a recepção da imagem e
do som. Dito de outro modo, mesmo não havendo uma associação clara entre o
discurso da propaganda com um filme clássico, texto literário, obras de arte ou outra
linguagem, a estética dos anúncios poderá levar o consumidor ao ato da compra.
Principalmente porque estamos na era da indústria cultural na qual as obras de arte
podem virar mercadoria.

O homem, na sociedade industrial, acha-se exposto a numerosos e


diversos estímulos e sensações. Seu senso estético não é tábula rasa: foi
afetado por toda a massa das mercadorias que, uma vez produzidas,
inundaram a sua vida desde a mais tenra infância. (FISCHER,1980, p.239)

346
Nos exemplos que seguem observa-se que uma das obras mais notáveis e
conhecida do pintor Leonardo da Vinci (a Mona Lisa também conhecida como A
Gioconda ou ainda Mona Lisa del Giocondo). É uma obra de arte de um período
artístico chamado “Renascimento”, e muito utilizada em propagandas. Esse quadro
que atrai os olhares e admiração de milhares de pessoas aparece reutilizado pela
marca conhecida mundialmente, a Coca Cola. A personagem retratada segura uma
latinha de refrigerante, como se oferecesse credibilidade ao consumidor, já que na
época em que foi projetada a pintura, essa bebida nem existia ainda. Em outra
ocasião, a mesma obra serviu com o humor, para a promoção do amaciante da
marca Bom Bril. Um ator se veste como ela e a representa perto de muitos produtos
de limpeza. Como o consumidor interpreta uma cena dessas? Seria uma referência
às mulheres, será que a Mona Lisa usaria tais produtos? Ou será pelo humor que a
venda será feita (uma vez que é um homem que está vestido de mulher)? Bem, seja
qual for à interpretação, o fato é que uma obra de arte consagrada foi usada para
vender produtos de limpeza.

Figura 1 e 2: Anúncio publicitário. Disponível em:


http://arteinspiravida.blogspot.com.br/2012/06/as-monas.html Acesso em: 23/08/2015

O processo de produção para o artista pode ser lento e pode demorar anos,
considerando que sua criatividade e sua técnica produzem a sua obra. Na
publicidade é preciso cumprir prazos e os profissionais da criação seguem
cronogramas, pois há um cliente esperando. Uma obra de arte que aparece em um
anúncio já está pronta e, nesse momento, seu conteúdo fica ligado ao produto que
está sendo vendido. A criatividade do anúncio, nesse caso, está na reinterpretação
da obra clássica.

347
Nos próximos exemplos, pode-se observar a apropriação dos contos de fada,
“Branca de Neve”, “Chapeuzinho vermelho” e “Cinderela”, as quais aparecem com
uma conotação jovem ou adulta na campanha da marca O Boticário. Os textos
remetem a outro (aos contos clássicos infantis) a fim de manter o sentido da
mensagem.

Figura 3 a 6 – Campanha O Boticário. Disponível em


http://mundofabuloso.blogspot.com.br/2008/01/o-boticario-e-suas-princesas.html
Acesso em: 23/08/2015

Entendemos ser muito ingênuo argumentar que o consumo exagerado ou a


necessidade de adquirir objetos novos ou o acúmulo deles sejam resultados
unicamente da estética publicitária. Sabemos que a indústria promove o descarte
ou mesmo a substituição rápida de produtos, pelo ritmo dos avanços tecnológicos;
todavia interessa lançar luz para o fato de que a estética usa obras no fazer
publicitário e diferentes tendências e áreas do conhecimento, ao “aproveitar-se de
tudo” para compor um anúncio.

348
Múltiplas linguagens

O sujeito cria sua identidade social em um mundo de profunda pluralidade de


formas de ser e agir, que se torna tão instável quanto os bens simbólicos nos quais
apoia sua identidade. O sentimento de identidade é fortemente alicerçado pelas
convicções do coletivo, ou seja, do grupo ao qual pertence o sujeito. O consumo de
uma determinada grife, por exemplo, identifica seu portador perante os outros,
fazendo-o diferente aos de fora e semelhante aos de dentro, e por isso, evoca
sentimentos, crenças e fantasias. Consomem-se hoje em dia símbolos e marcas,
mais do que produtos.
Entendemos que a publicidade faz parte do contexto comunicacional das
empresas e que ao comunicar-se com os consumidores, a publicidade intenciona
persuadir o público alvo. Portanto, a comunicação em publicidade deve ser
transmitida eficazmente integrando-se ao comportamento do consumidor e para
isso, deve levar em conta a promoção de sua satisfação em relação ao produto
anunciado.
Partindo da premissa de que é pela comunicação que as marcas dos
produtos se fortalecem, entendemos que o publicitário necessita cuidar desta área
tão vasta, sendo constantemente desafiado a conciliar o aspecto ético na
identificação e manutenção de um cliente potencial e na conquista de outros novos,
a fim de conseguir resultados lucrativos para a empresa sem esquecer-se da
constante atualização em conhecer cada vez mais os hábitos do consumidor para
melhor satisfazê-lo. Saber o que se quer e como atingir o objetivo desejado exige
desse profissional mais do que o domínio das ferramentas do marketing e das ações
de endomarketing, propaganda, vendas e atendimento ao cliente.
Por isso, o aspecto da estética publicitária recorre aos artifícios criativos de
comunicação. A propaganda comercial é especifica e voltada ao mercado e muitas
vezes a estética que usa, assimila elementos de outros gêneros, mas os transforma
a sua maneira.
Para deixar ainda mais claro esse aspecto da estética “do aproveitar-se de
tudo” no fazer a criação publicitária, considera-se aqui, uma certa liberdade de viés

349
mítico-poética, ou seja, para se compreender a estética re-atualiza-se a
antropofagia enquanto metáfora, para explicar a estética publicitária.
Há que se trazer à memória que a antropofagia era uma prática ritualística
ancestral das sociedades tribais da América e que consistia em comer parte da
carne do outro, na crença de que se se incorporava deste, sua força, diferente do
canibalismo (hábito de comer carne humana). Posteriormente em 1922, os artistas
modernistas recorreram a essa expressão para dar sentido do que se tornou
conhecido como “busca por uma identidade brasileira” e nessa ocasião o resgate
da metáfora antropofágica, voltou com força, ou seja, no Brasil, “come-se o que é
do outro”, referindo-se a apropriação de outras culturas. Tornou-se conhecida a
frase de Oswaldo de Andrade: “só me interessa o que não é meu”. Na publicidade
essa metáfora é bem prática quando se deseja compreender sua estética, afinal, ela
“come”, ou se apropria de outras linguagens e discursos, pegando para si a força
comunicativa da mensagem.

Figura 7 –Autorretrato de Tarsila do Amaral e Campanha O Boticário, por ocasião do dia internacional da mulher.
Disponível em: http://artenapp.blogspot.com.br/ Acesso em: 23/08/2015

Pode-se argumentar que a estética publicitária sempre subtrai ao máximo a


existência de elementos alheios de outros campos e saberes, para incorporá-la à
sua prática discursiva. A publicidade cria perfis e estilos de vida nos quais as
pessoas se identificam e almejam. As técnicas publicitárias busca encantar as
pessoas. Portanto, há sempre o desafio de apresentar elementos que possam
sequestrar os sentidos do consumidor para que esteja sendo veiculado, para
consequentemente gerar interesse e efetivo ato de compra.

350
A mensagem publicitária faz amplo uso da dimensão estética quando intenta
aguçar os sentidos (marketing sensorial) e estimular a fantasia do consumidor com
o objetivo de desencadear sentimentos e cadeias de significações.
O discurso publicitário se estrutura por mensagens cuja dimensão estética se
estrutura pela lógica da sedução, que atualmente deixa de ser somente do belo,
mas também do feio, do desagradável ou daquilo que choca. Como exemplo, citam-
se dois exemplos de anúncios: primeiramente a campanha para grife italiana de
moda Nolita. O objetivo da campanha veiculada em 2007, durante a semana de
moda de Milão era chamar a atenção para distúrbios alimentares, o que de fato
aconteceu, pela estética desfigurada da modelo que pousa.

Figura 8: Foto por Oliviero Toscani da jovem Isabelle Caro. Disponível em:
https://pensandoodiferente.files.wordpress.com/2010/05/ana_2.jpg
Acesso em: 23/08/2015

Interessante notar que no, segundo exemplo o aspecto da presença do


grotesco se faz sentir. Trata-se do anúncio que reproduz o princípio de
hierarquização interna de uma agência de comunicação e revela com ironia, que os
criativos premiados são por vezes fato estrelas em contrapartida aos demais
componentes da agência que não significam nada.

351
Figura 9: A peça comemorativa dos 30 anos do anuário do Clube dos criativos de São Paulo /CCSP. Disponível em:
http://www.clubedecriacao.com.br/novo/anuario-do-ccsp-ha-30-anos-faz-toda-diferenca-ganhar-1/ acesso em: 23/08/2015

Comumente as conhecidas duplas de “criativos” são formadas por um redator


e um diretor de arte e são valorizadas ao conceber ideias inusitadas e de forte
impacto para a comunicação dos clientes. Porém os publicitários não organizam
criações que seguem padrões ou sintaxes próprias, ao contrario, se constrói a partir
de diversas outras linguagens. Enquanto muitos ficam chocados com a imagem,
outros a associam rapidamente a obra “Merda d’artista” do pintor Piero Manzoni
(1933-1963) que chegaram a ser vendidas por mais de 1 milhão de libras e consistia
numa série de 90 latas contendo suas fezes.

Figura 10: Merda d’artista” do pintor Piero Manzoni. Disponível em:


http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/04/1612614-piero-manzoni-famoso-
por-enlatar-fezes-como-arte-tem-mostra-no-mam.shtml. Acesso em 23/08/2015

Mais uma vez, a estética comemorativa dos 30 anos do anuário do Clube


dos criativos de São Paulo, se valeu de uma narrativa do passado, a partir de outros
campos de significação, reformulando a informação que desejava transmitir.
Assim, os materiais culturais, populares ou eruditos, podem ser utilizados
como pontos de partida para a criação estética em publicidade. Um texto sempre
dialoga com outros, sendo esse o princípio do conceito de dialogismo de Bakhtin.
Esse conceito não está atrelado à ideia de um diálogo face a face entre
interlocutores, mas sim entre discursos, já que “o interlocutor só existe enquanto
discurso” (FIORIN, 2006, p. 166), ou seja, mantém relações com outros discursos
que o precederam.
Essa reflexão não se propõe a dar conta dos conceitos amplos ligados as
concepções de Bakhtin acerca do discurso e, principalmente, do dialogismo

352
(princípio constitutivo da linguagem). O que cabe é a provocação e o desejo de
ampliar a pesquisa da trama do texto publicitário, que por ora se limita a apontar
para uma estética que se faz tecida de elementos de outros textos, revelando nesse
cruzamento as posições ideológicas de seu enunciador.
A estética, por isso, pode ser tecida com capacidade de sugerir significados
novos e evocar outros do passado tendo diversas opções de percursos de sentidos.

Considerações finais

No mundo da convergência das mídias, a marca é vendida por múltiplos


suportes para alcançar o consumidor onde quer que ele esteja. Uma estratégia
criativa das campanhas publicitárias é a repetição de conteúdos em diferentes
peças e veículos. O fim que se deseja é transmitir passar para o mercado uma
comunicação persuasiva e marcante.
Esse fazer estético que mistura o que foi, ou o que se renova como proposta
criativa em um determinado anúncio tem o potencial de desencadear promessas de
beleza, de bem estar, de paixão, de conforto, etc., em um misto de imagens e sons
e de sentidos. Mais do que anunciar produtos, a estética publicitária promove
sedução que combina o simulacro da imagem, é a aparência do real que se torna
mercadoria numa mensagem conotativa.
Foi possível pensar no recurso utilizado na estética publicitária e no viés da
Intertextualidade, ou seja, em um anúncio publicitário pode-se imitar outro
transmutando parte do conteúdo de varias formas de linguagens (pintura, peça
cinematográfica, obra literária etc.) ou de outro anúncio já existente. Pode ser
entendida como uma estética própria da nossa cultura antropofágica, que aproveita
o alheio e o incorpora resignificando as práticas sociais.

Referências Bibliográficas
ADORNO, T. W. , HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César
Bloom. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1969].

353
CARRASCOZA, João Anzanello. Redação publicitária – Estudos sobre a retórica do
consumo. São Paulo: Futura, 2003.
CARVALHO, Nelly De. Publicidade : a linguagem da sedução. 3. ed. São Paulo:
Ática, 2001.
FERRARI, Solange dos Santos Utuari. Por toda parte. São Paulo: FTD, 2013
FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAITH, Beth (Org.).
Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 161-193.
FISCHER,Ernst. A necessidade da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
LAGNEAU, Gérard. A caça ao tesouro. Prolegômenos a uma análise racional da
linguagem publicitária. In: Diversos. Os mitos da publicidade/ Joachim Marcus-
Steiff; tradução de Hilton Ferreira Japiassu Petropolis : Vozes, 1974.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1984

354
A PERCEPÇÃO DE PRODUTORES E OUVINTES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO
PROGRAMA RADIOFÔNICO NA PONTA DA LÍNGUA – TUDO O QUE VOCÊ JÁ
SABIA, MAS ACABOU DE ESQUECER148 PARA PROMOÇÃO DO USO
ADEQUADO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Isaura Maria Longo149


Ana Cristina Bornhausen Cardoso 150
Hadna Teider Silva151

INTRODUÇÃO

Com o avanço do mundo tecnológico, novos canais de comunicação


passaram a fazer parte do cotidiano dos indivíduos, que, por intermédio da web,
twitter, facebook, instagram, se conectam dia e noite em um processo dinâmico.
Apesar dos grandes saltos no universo comunicativo, o rádio continua sendo um
meio de comunicação que encanta e ensina há muitas gerações. Sua abrangência
é inquestionável, pois em qualquer lugar que se vá, há alguém sintonizando alguma
estação. Nesse contexto, as dezenas de estações de rádio existentes no Brasil,
principalmente as denominadas educativas, se mostram muito importantes para a
formação do repertório de seus interlocutores, além de promoverem a
democratização do ensino.
A Rádio Educativa Univali FM (Itajaí, SC), há 13 anos (2002-2015), traz em
sua grade de programação, o programa NPL. Trata-se da veiculação de
programetes com caráter didático-pedagógico que têm por objetivo divulgar, de
forma divertida e dinâmica, informações sobre o uso adequado da Língua

148Neste trabalho usaremos a sigla NPL toda vez que nos referirmos ao nome do programa Na Ponta da Língua
– Tudo o que você já sabia, mas acabou de esquecer.
149Mestra em Línguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora dos
projetos de Extensão Na Ponta da Língua e Leitura à Flor da Pele da Univali.
150Mestra em Língua pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - SP. Coordenadora do Curso de Letras e do
Projeto de Extensão PROLER da Univali.
151Acadêmica da 6ª fase do Curso de Publicidade e Propaganda da Univali/Bolsista do
Projeto de Extensão NPL.

355
Portuguesa, além de informações sobre Literatura e Cultura. A motivação para a
realização desse trabalho dá-se pelo fato de existir parcos estudos sobre
indicadores avaliativos em relação ao impacto do programa sobre seus produtores
e ouvintes no que tange ao conhecimento e uso adequado da língua portuguesa.
Assim, este artigo tem por objetivo avaliar a percepção de produtores e
ouvintes sobre a importância do programa NPL para promoção do uso adequado da
Língua Portuguesa. O presente trabalho possibilita uma maior compreensão do
processo de produção do programa; sinaliza de forma lúcida conceitos que
permeiam a produção do programa; reconhece a importância do Rádio como meio
de comunicação mais abrangente em termos de público atingido; e promove o
diálogo entre ensino, pesquisa e extensão no ambiente universitário.
O programa NPL pretende disseminar o uso adequado da Língua
Portuguesa, desmistificando a forma tradicional de circunscrever o ensino de
português em um formato normativo-prescritivista, onde regras e conceitos são
apresentados de forma descontextualizada. Faz-se mister encaminhar os estudos
da língua em uma perspectiva funcional, situacional e comunicativa, privilegiando o
funcionamento da língua em situações reais de uso, para que sua complexidade
possa ser entendida de forma reflexiva, promovendo a discussão e compreensão
dos fatos da língua de forma menos artificial.
Na sequência, apresenta-se a base teórica sobre a qual se apoiou o presente
estudo de caso, os aspectos metodológicos da pesquisa, a análise dos resultados
e as considerações finais.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No processo de interação social, vimos desenvolvendo nossa capacidade de


ver e interpretar o comportamento do outro. Essa atitude possibilita identificar certos
objetos e acontecimentos, surgindo assim determinadas representações sociais
(DURKHEIM, 2009 apud RODRIGUES at al, 2012). Entender a percepção “como o
processo de extrair informação”, a partir da “recepção, aquisição, assimilação e
utilização do conhecimento”, como afirma (FORGUS, 1971, p. 1, 2 apud
RODRIGUES at al, 2012, p.99) no qual estão subordinados a aprendizagem e o

356
pensamento, significa admitir que o ato de perceber está vinculado ao ato de
conhecer. Isso pode ser complementado com Morin (2000, p. 20 apud Rodrigues at
al, 2012, p. 99), quando afirma que “[...] todas as percepções são, ao mesmo tempo,
traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e
codificados pelos sentidos”. Cada ser humano reage e responde de maneira
diferente às relações interpessoais, indivíduos atuantes em um mesmo grupo social
podem expressar atitudes e pensamentos distintos, sendo sua percepção
influenciada pela cultura, história, religião, classe social e outros fatores que
contribuem diretamente no processo de construção do comportamento. Assim,
perceber é interpretar, de diferentes modos, o comportamento do outro de tal forma
que seja possível construir informações sobre o que se vê e se sente
(FAGGIONATO, 2009 apud RODRIGUES at al, 2012).
É por este viés que passamos a interpretar e a desenvolver nossa percepção
sobre linguagem. Entendemos a linguagem como uma atividade social e interativa.
Ao ser compreendida assim, assume-se que ela não é homogênea, mas
heterogênea, pois contém um conjunto de ações, representações, valores e atitudes
construídas em um contexto sociohistórico e interativo. A linguagem, numa visão
interacionista, deve ser entendida como forma de ação, sendo percebida como
atividade e não como estrutura apenas (FARACO, 2005 apud MARCUSCHI, 2008).
Seu uso e funcionamento se dá em “textos e discursos produzidos e recebidos em
situações enunciativas ligadas a domínios discursivos da vida cotidiana e realizados
em gêneros que circulam na sociedade” (MARCUSCHI, 2008, P.22). Desta forma,
“não existe um uso significativo da língua fora das inter-relações pessoais e sociais
situadas” (MARCUSCHI, 2008, p.23), isso quer dizer que são sujeitos de verdade
que produzem textos de verdade, que se relacionam e visam a algum objetivo
comum. A língua não é um organismo desencarnado, descolado da realidade, os
textos, as palavras tomam forma e sentido em uma linguagem que representa a
experiência de sujeitos históricos de carne e osso.
Enquanto fenômeno empírico, a língua não é um simples código autônomo,
um sistema abstrato, ela é variada e variável, interativa, cognitiva e situada. Ao ser
vista como tal, assume-se que é possível observar o que fazem os falantes

357
com/na/da língua, ou seja, observar a língua em seu funcionamento a partir de suas
condições de produção e recepção. Afirmam Bakhtin/Voloshinov (1992, p. 110) que
“a língua vive e evolui historicamente na comunicação concreta, não no sistema
linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”.
Essa forma de conceber língua conduz a um ensino funcional e sociointerativo da
linguagem.
Embora se decida por uma noção de língua como um conjunto de práticas
sociocognitivas e discursivas, não existe a possibilidade de trabalhá-la sem
considerar o sistema, se alguém é falante de uma língua, ele domina as regras
dessa língua. A gramática tem uma função sociocognitiva relevante, desde que
entendida como instrumento que permite uma melhor comunicação. “O falante de
uma língua deve fazer-se entender e não explicar o que está fazendo com a língua”,
afirma Marcuschi (2008, p.57). A gramática não tem uma finalidade em si mesma,
ela existe para permitir a comunicação entre seus falantes.
Nesse contexto, mediar o conhecimento da língua via rádio educativa, se
mostra muito importante para o processo de formação do produtor/ouvinte. Uma
rádio dessa natureza também pode servir como poderoso projeto de letramento
assim como um instrumento de interação sociodiscursiva no ambiente acadêmico.
Baltar (2012, p. 18), afirma que os programas de uma rádio escolar, por exemplo,
podem estimular o desenvolvimento de múltiplas competências, principalmente no
que tange à competência discursiva de estudantes e professores, bem como pode
servir como “dispositivo de ensinagem152 dos gêneros textuais orais e escritos”.
Sabe-se que a família, a igreja, a escola e a universidade são importantes
instituições formadoras de opinião, mas deve-se considerar que a mídia exerce
grande influência na forma de agir das pessoas que vivem em sociedade.
Constatado o seu potencial, a presença do aparato midiático em instituições de
ensino não pode servir como mero reprodutor de forças hegemônicas tradicionais,
pelo contrário, seu papel deve propiciar a leitura crítica da sociedade, via leitura da
mídia em si para que professores e alunos “possam compreender os discursos

6 Baltar (2012) usa o termo “ensinagem” a fim de ressaltar uma posição contrária à dicotomia ensino-
aprendizagem.

358
forjados (atenuados ou destacados) nessa esfera social de forma científica e
sistematizada” (BALTAR, 2010, p. 218).
Freire e Macedo (2011) enfatizam a existência de uma relação dialética entre
as pessoas através da linguagem e da ação transformadora. A linguagem não é
mera habilidade técnica, mas instrumento de liberdade. Inerente ao projeto político,
afirma o direito e responsabilidade que os indivíduos têm não só de ler, mas de
transformar suas experiências pessoais, construindo uma relação mais ampla com
a sociedade.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
No que se refere a seus objetivos, esse estudo se classifica como descritivo.
Quanto aos procedimentos técnicos, tratar-se de um estudo de caso, estratégia
utilizada “quando o pesquisador tem pouco controle sobre os eventos e quando o
foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da
vida real” (YIN, 2001, p.19). Do ponto de vista da forma de abordagem do problema,
essa pesquisa classifica-se como quantitativa.
O Projeto de Extensão NPL nasceu em 2002, da vontade de um grupo de
acadêmicos do curso de Publicidade e Propaganda em produzir conteúdo educativo
divulgado por meio de programetes pela Rádio Educativa Univali FM. Ao longo
destes 13 anos, foram produzidos 2.300 programetes e mais de 14.500 veiculações
foram realizadas pela emissora. Em 2015, tornou-se um programa guarda-chuva,
ampliando a abrangência de suas ações a partir da incorporação de novos projetos
desenvolvidos pelo curso de Publicidade e Propaganda.
Nosso objeto de estudo são os programetes com um minuto e quinze
segundos de duração (em média). Para definição de programetes, recorreu-se à
proposta de Reis (2008) que afirma que os mesmos podem ser denominados
microprogramas. Afirma ainda que “é um formato de anúncio que se veicula ao vivo
ou gravado e que se integra à programação da emissora como um espaço
autônomo” (REIS, 2008, p.53). São veiculados cinco programas inéditos,
intercaladamente, de segunda a sexta, quatro vezes ao dia, durante a programação
da Rádio Educativa Univali FM. Os Programas atingem não somente a comunidade

359
acadêmica, mas todos os ouvintes da Rádio Univali FM em diversos períodos do
dia.
Estes programetes são criados e produzidos pelos acadêmicos do curso de
Publicidade e Propaganda, acompanhados pela orientação de docentes do curso.
Os acadêmicos realizam a pesquisa bibliográfica e estabelecem relação com
situações cotidianas. Posteriormente, produzem o roteiro, escolhem os efeitos
sonoros especiais e os BGs (back grounds – músicas de fundo) de acordo com a
temática abordada e fazem a gravação. Finalmente é enviada uma planilha à Rádio
Educativa Univali em que constam os programetes que serão veiculados no período
de 30 dias. Os elementos componentes do roteiro estão demonstrados na Figura 1.
Figura 1 – Roteiro do programete do Programa Na Ponta da Língua.
Na Ponta da Língua N° 1360 Data Gravação:
Assunto: Quero-a/ Quero-lhe Tempo: Parte 1 – Elementos referenciais
VINHETA DE ABERTURA 20”
EFEITO: GALO CANTANDO
Parte 2 – Vinheta de
abertura
EFEITO: TIRO DE CANHÃO Parte 3 – Identificação de efeitos
especiais e background (música de
ENTRA BG VINHETA
TEXTO: Na Ponta da Língua fundo)
Tudo o que você já sabia, mas acabou de esquecer.
CORTA BG VINHETA
Parte 4 – Situação do cotidiano
SITUAÇÃO:
Efeito (Barulho de ônibus passando)
LOC1: Turquinho! Rápido! Corra para não perder o ônibus!
LOC2: Sim! Sim Juquinha! Vou correndo atrás do ônibus até chegar em casa... Assim
Turquinha economiza o dinhero da passagem e babai verá que quero-o bem ou quero-
lhe bem...Agora Turquinha se confundiu. Parte 5 – Pergunta e resposta
Entra BG:
PERGUNTA: Você sabe qual a diferença entre dizer quero-a muito
e quero-lhe muito?
RESPOSTA: Pode parecer a mesma coisa, mas não é. Quando você deseja alguém, por
exemplo, sua namorada, deve utilizar a expressão quero-a muito. Este
verbo aqui assume o significado de desejar. Já, quando a relação for de
estima, de respeito, querendo bem a alguém, você deve utilizar quero-lhe Parte 4 – Situação do
muito, e não quero-a. Quando for escrever um cartão para sua mãe,
portanto, escreva quero-lhe muito bem. cotidiano (cont.)
LOC2: Babai Salim! Babai Salim!
LOC3: Fala meu filho Turquinha! O que foi?
LOC2: Babai Salim vai ficar orgulhoso! Vim correndo atrás do ônibus – da escola até
nossa casa - para economizar o dinhero da passagem...
LOC3: Ehhh! Garoto burro!
LOC2: Burro por que babai, Salim?
LOC3: Deveria ter vindo correndo atrás de um taxi... É mais caro! Então você teria
economizado ainda mais...
Parte 6 – Vinheta de
CORTA BG encerramento
VINHETA DE ENCERRAMENTO
ENTRA BG VINHETA
TEXTO: Na Ponta da Língua
Uma iniciativa do curso de Publicidade e Propaganda da Univali.
Realização: CECIESA – Comunicação Turismo e Lazer e Rádio Educativa Univali FM.
Parte 7- Fonte de
CORTA BG
EFEITO: GALO CANTANDO CAPENGA: pesquisa
Fonte: NOGUEIRA, Sérgio. Língua Viva. São Paulo: Rocco, 1999.
360
Fonte: TRAINOTTI; LONGO (2011); Arquivo do

Quanto à análise dos dados, a abordagem é de caráter quantitativo. A


população e amostra desta pesquisa compreende dois públicos-alvo os produtores
e os ouvintes: (1) de um total de 167 produtores participantes entre 2002-2015
responderam à pesquisa 37 produtores, alunos do curso de Publicidade e
Propaganda; (2) de um total de 8164 inscritos na página do Facebook do NPL e da
Rádio Educativa Univali FM, responderam à pesquisa 83 ouvintes/seguidores. Cabe
ressaltar que os produtores do NPL são voluntários, e os ouvintes entrevistados
estão sintonizados diariamente, o dia todo, à rádio Univali FM, uma vez que o NPL
não possui horário fixo e seus programetes são veiculados de forma aleatória
durante a programação.
Quanto aos instrumentos de coleta de dados, foram desenvolvidos dois
questionários, com perguntas fechadas, formulados a partir da utilização da Escala
Likert (Discordo totalmente, Discordo parcialmente, Neutro, Concordo parcialmente
e Concordo totalmente). O questionário relativo aos produtores continha dezesseis
questões; aquele enviado aos ouvintes continha dez questões referentes ao
conteúdo e as temáticas e, 8 questões referentes à estrutura do programete. Os
questionários foram enviados nos meses de agosto e setembro de 2015. Ambos
foram hospedados no site Google Docs. Para obter as respostas dos produtores,
foram levantados nomes e e-mails por meio das atas de presença dos encontros de
produção e gravação do NPL. Para contatar os ouvintes foram encaminhados os
questionários via Facebook, cujo link direcionava à página do Google Docs. Os
dados obtidos foram representados por tabelas, descritos e analisados à luz do
referencial teórico.

361
Análise dos resultados

Os dados a seguir evidenciam a percepção de produtores e ouvintes sobre a


importância do programa radiofônico NPL para promoção do uso adequado da
Língua Portuguesa.

Tabela 1- PERCEPÇÃO DOS PRODUTORES


PERCEPÇÃO DOS PRODUTORES - NPL Disc. Disc. Neutro Conc. Conc.
(resultados em %) Total. Parc. Parc. Total.
1. O programa NPL influenciou na minha formação profissional 5,5 0,0 13,5 40,5 40,5 81,0
pois aumentou minha eficácia no uso da língua portuguesa.
2. O processo de criação dos programetes ampliou meu 0,0 0,0 10,5 29,0 60,5 89,5
conhecimento sobre a gramática da Língua Portuguesa.
3. O processo de criação dos programetes possibilitou identificar 0,0 5,5 21,6 32,4 40,5 72,9
quando devo usar o nível informal e formal da Língua Portuguesa
4. Minha participação no programa ampliou o meu repertório 0,0 5,4 13,5 29,7 51,4 81,1
linguístico.
5. Minha participação no programa permitiu que eu percebesse o uso 0,0 8,1 13,5 24,3 54,1 78,4
da língua em seus diferentes contextos de comunicação.
6. O programa NPL permitiu que eu pesquisasse e conhecesse a 0,0 5,4 0,0 27,0 67,6 94,6
origem das palavras.
7. O programa Na Ponta da Língua permitu que eu compreendesse os 0,0 5,4 2,7 35,1 56,8 91,9
diferentes significados das palavras.
8. A gravação dos programetes propiciou desenvolver habilidades de 5,4 2,7 8,1 8,1 75,7 83,8
oratória.
9. Minha participação no programa NPL propiciou um conhecimento 2,7 5,4 10,8 21,6 59,5 81,1
mais profundo dos gêneros textuais radiofônicos.
10. A produção dos programetes aprimorou minha habilidade de 2,7 8,1 10,8 27,0 51,4 78,4
escrita.
11. A produção dos programetes aprimorou minha habilidade de 8,1 2,7 8,1 21,6 59,5 81,1
síntese da informação.
12. Durante a produção dos programetes, eu preferi tratar de 16,2 16,2 32,5 13,5 21,6 35,1
temáticas menos complicadas e com menor grau de dificuldade.
13. O programa NPL propicia o aprendizado das regras do Novo 0,0 0,0 15,8 26,3 57,9 84,2
Acordo Ortográfico.
14. O rádio é um bom veículo para divulgar o uso adequado da língua 2,7 2,7 10,8 24,3 59,5 83,8
portuguesa.
15. Eu sinto que tenho mais acesso à informação e me torno mais 13,5 5,5 10,8 27,0 43,2 70,2
crítico após produzir os programetes para o NPL.
16. O contato com o NPL me animou a propagar o uso adequado da 10,8 5,4 13,5 18,9 51,4 70,3
língua portuguesa.
Fonte: Dados da pesquisa – 2015.2

As respostas obtidas pelo questionário enviado aos produtores do NPL revelam


que 93,75% os indicadores situam-se em um patamar superior a 81,5%, o que
demonstra que o programa NPL é eficaz no aprendizado da língua portuguesa.
Considerando a eficiência do programa no aprendizado da língua para os
produtores, cabe ressaltar que 81,0 % dos entrevistados, afirmaram que o
conhecimento da norma culta e a participação no NPL foram e são muito
importantes para sua formação profissional e pessoal.

362
Além disso, destaca-se que a metodologia do programa, unindo a teoria da
Língua Portuguesa com a prática vivenciada pelos personagens permitiu que o
produtor associasse a nova informação a uma situação real de uso da língua,
corroborando com o pensamento de Marcuschi (2008) de que língua não é um
organismo desencarnado, descolado da realidade.

Tabela 2- PERCEPÇÃO DOS OUVINTES


PERCEPÇÃO DOS OUVINTES - NPL Disc. Disc. Neutro Conc. Conc.
(resultados em %) Total. Parc. Parc. Total.
1. As curiosidades apontadas no programa ajudam a ampliar meu 2,0 0,0 0,0 47,0 51,0 98,0
conhecimento de mundo.
2. As curiosidades abordadas no programa me levam a perceber uma 2,0 0,0 9,8 29,4 58,8 88,2
identidade cultural regional, nacional e global.
3. O programa Na Ponta da Língua ilustra a diversidade de sotaques 2,0 2,0 11,7 21,6 62,7 84,3
brasileiros.
4. O programa Na Ponta da Língua me proporciona o contato e o 2,0 2,0 5,8 33,3 56,9 90,2
entendimento dos ditos populares brasileiros.
5. O programa Na Ponta da Língua me instiga a ler obras da literatura 5,9 9,8 33,3 25,5 25,5 51,0
brasileira e mundial.
6. O programa Na Ponta da Língua aumenta meu vocabulário. 0,0 2,0 8,0 24,0 66,0 90,0
7. O programa Na Ponta da Língua permite que eu compreenda as 0,0 5,9 2,0 17,6 74,5 92,1
origens das palavras.
8. O programa Na Ponta da Língua permite que eu compreenda os 0,0 3,9 5,9 25,5 64,7 90,2
diferentes significados das palavras.
9. O programa Na Ponta da Língua propicia o aprendizado das regras 2,0 2,0 9,8 19,5 66,7 86,2
do Novo Acordo Ortográfico.
10. O programa Na Ponta da Língua propicia o aprendizado das 0,0 2,0 13,7 33,3 51,0 84,3
classes das palavras.
11. A estrutura do programa por meio de diálogos informais 5,8 2,0 3,9 27,5 60,8 88,3
desmistificou a visão de que aprender a língua portuguesa é tarefa
muito difícil.
12. Os diálogos apresentados no programa Na Ponta da Língua me 2,0 3,9 5,9 23,5 64,7 88,2
permite observar que o uso da língua está diretamente relacionado ao
contexto onde ela é usada.
13. A duração do programete é suficiente para o entendimento da 2,0 5,9 3,9 41,2 47,0 88,2
informação veiculada.
14. As músicas de fundo e os efeitos sonoros utilizados nos 2,0 9,8 15,6 21,6 51,0 72,6
programetes contribuem para o entendimento da situação de
comunicação.
15. O humor utilizado nas situações de comunicação fez com que eu 2,0 5,8 11,8 21,6 58,8 80,4
me interessasse mais pela temática do programete.
16. O rádio é um bom veículo para divulgar o uso adequado da língua 3,9 2,0 9,8 19,6 64,7 84,3
portuguesa.
17. Eu me tornei mais atento as questões do uso da língua portuguesa 0,0 9,8 17,6 25,5 47,1 72,6
após escutar o programa Na Ponta da Língua.
18. O contato com o Na Ponta da Língua fez com que eu propagasse 3,9 7,8 15,7 25,5 47,1 72,6
o uso adequado da língua portuguesa.
Fonte: Dados da pesquisa – 2015.2

Ao verificar o perfil dos ouvintes da Rádio Educativa Univali FM por meio das
respostas obtidas no questionário observa-se que os indicadores referentes às
temáticas situam-se em um patamar superior a 89,28%, o que demonstra que o
programa NPL é eficaz no aprendizado da língua portuguesa.

363
A inclusão de situações-problema permite que produtores (item 5/78,4%) e
ouvintes (item 12/88,2%) percebam que linguagem e realidade se fundem, num
processo sociointerativo em diferentes contextos de comunicação. Essa percepção
reforça o pensamento de Marcuschi (2008) de que “não existe um uso significativo
da língua fora das inter-relações pessoais e sociais situadas”.
Em relação à utilização do rádio como veículo para a difusão do uso adequado
da língua portuguesa, produtores (83,8%) e ouvintes (84,3%) concordam tratar-se
de um bom veículo mesmo com o surgimento das novas tecnologias, uma vez que
o rádio é um meio de comunicação que atinge uma maior parcela da população.

Considerações finais

Conclui-se que o programa NPL veiculado da Radio Educativa Univali FM


possibilitou pensar e discutir atividades envolvendo a escrita e a oralidade no
ambiente universitário, tendo como foco o estímulo do uso adequado da língua
portuguesa. Acrescenta-se que o incentivo e a valorização da escrita por parte dos
produtores motivaram: a aquisição de autonomia e conhecimento na produção de
gêneros textuais pertencentes ao universo radiofônico; o desenvolvimento da
criticidade, criatividade, reflexão e argumentação.
No que diz respeito à formação de nossos acadêmicos pode-se dizer que o
NPL promoveu uma maior aproximação da universidade e a comunidade,
incentivando o diálogo entre ensino, pesquisa e extensão.
Um dos desafios do programa NPL está em conseguir desenvolver em
produtores e ouvintes, além das habilidades no que diz respeito ao uso adequado
da Língua Portuguesa, o despertar da consciência intercultural, o respeito à
diversidade e a formação continuada dos professores.
A partir desse estudo deixa-se como sugestão a possibilidade de realizar
outras pesquisas relacionadas às mídias locais como, por exemplo, um estudo que
analise os programas educativos locais veiculados na televisão.
The perception of producers and listeners about the importance of radio
program “Na Ponta da Língua – Tudo o que você já sabia, mas acabou de
esquece” to promote the proper use of the Portuguese language

364
Abstract: From the last 13 years(2002-2015) the Educational Radio Univali FM
(Itajaí, SC) brings in its program schedule, the program Na Ponta da Língua – Tudo
o que você já sabia, mas acabou de esquecer. Those programs have a didactic and
pedagogical character that aim to spread, in a fun and dynamic way, informations
about the proper use of the Portuguese language, Literature and Culture. The main
goal of this research is to evaluate the perception of producers and listeners about
the importance of the NPL program to promote the proper use of the Portuguese
language. Marcuschi (2008), Baltar (2012), Bakhtin (1992), Freire (2011) and
Rodrigues (2012) were used as a theoretical support to analyze the linguistic
approach, studies on perception and the teaching-learning process. Regarding the
technical and scientific procedures, this research was developed through a case
study with a quantitative character. Preliminary results of the questionnaire indicate
the relevance of the NPL for producers and listeners as a disseminator program for
the proper use of the Portuguese language, understanding that speech is built upon
the understanding of a sociodiscursive context.

Keywords: Portuguese language. Perception of producers and listeners. Radio. Na


Ponta da Língua Program.

REFERÊNCIAS
BALTAR, Marcos. Rádio escolar uma experiência de letramento midiático. São
Paulo: Cortez, 2012.
BALTAR, Marcos. Mídia, escola, agentes de letramento e gêneros textuais. In:
SERRANI, Silvana (org.). Letramento, discurso e trabalho docente. Vinhedo: Editora
Horizonte, 2010, p.211-233.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6.ed., São Paulo: Hucitec,
1992.
FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura de mundo, leitura da
palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008.

REIS, C. Propaganda no rádio: os formatos de anúncio. Blumenau: Edifurb, 2008.


RODRIGUES, Mariana Lima et al. A percepção ambiental como instrumento de
apoio na gestão e na formulação de políticas públicas ambientais. In: Saúde Soc.
São Paulo, v.21, supl.3, p.96-110, 2012.
YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2 ed. Porto Alegre: Editora
Bookmam, 2001.

365
O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR DE LUIS ANTÔNIO VERNEY E SUA
INFLUÊNCIA NA REFORMA POMBALINA DO ENSINO

Ivelaine de Jesus Rodrigues 153

Introdução

Portugal, na segunda metade do século XVIII, passava por uma complicada


situação política – enfraquecimento do poder real, má administração das riquezas
conquistadas por meio das expedições além-mar, entre outros – e por uma
acentuada mudança na administração pública.
Após a morte de D. João V, o trono português foi assumido por D. José I, que
tinha por objetivo recuperar o poder do Estado. Uma de suas atitudes foi a de
fortalecer as atividades mercantilistas da época – aproveitando as grandes
tendências econômicas possibilitadas pelas colônias e o emergente
desenvolvimento da indústria. Mas, a nomeação do primeiro-ministro Sebastião
José de Carvalho e Melo – futuramente, Marquês de Pombal – talvez, tenha sido
uma das mais importantes decisões de D. José I.
Viajado e inteirado das tendências modernas que nasciam em outros países
da Europa, o Marquês de Pombal trouxera para a corte novas propostas que seriam
desenvolvidas em sua administração, baseadas nos ideais iluministas – não com o
objetivo anti-histórico e irreligioso seguido na França, mas centrado em um
pensamento progressista, reformista, nacionalista e humanista.
Após o grande empenho e respectivo resultado na reconstrução de Lisboa –
destruída pelo terremoto que atingiu Portugal em 1755 –, Pombal recebeu
autorização e apoio incontestáveis do Rei – referentes a qualquer decisão que ele
achasse necessário tomar durante seu governo –, tornando-se, assim,
reconhecidamente, um déspota esclarecido.

153
Doutoranda PUC-SP

366
O Marquês de Pombal no governo português e seu envolvimento com a
questão educacional

A educação, nessa época, era dirigida oficialmente pelos Jesuítas da


Companhia de Jesus e seguia o modelo do documento publicado em 1599 , Ratio
Studiorum, que descrevia como deveria ser conduzida a educação jesuítica. Em
1750, entretanto, considerava-se esse documento ultrapassado. Segundo Fávero
(1996, pp. 62), “o ensino dos inacianos, que produzira bons frutos nos séculos
anteriores, encontrava-se no século XVIII estagnado, pois ainda valorizava a disputa
escolástica e não acompanhava as novas ideias provenientes da França”.
O método – considerado antiquado pelos mais modernos estudiosos daquele
período – de trabalhar a educação no país não era o único motivo pelo qual os
jesuítas, constantemente, se tornavam alvo de críticas do Marquês, mas o poder
político que eles exerciam tanto em Portugal, quanto em suas colônias – pela
posição a eles atribuída. Toda a renda da educação era administrada pela Igreja e,
dessa forma, vista pelo primeiro-ministro como uma barreira para o fortalecimento
do poder Absoluto e Real:

Pelas constituições da Companhia de Jesus, somente os Colégios e as


Casas de Formação poderiam possuir bens que lhes garantissem o
sustento do trabalho pedagógico e missionário. Não resta dúvida, portanto,
que a expansão do ensino jesuítico, no reino como nos domínios
portugueses, foi condicionada por este relevante fator. A penetração e o
alargamento da obra missionária dependiam, fundamentalmente, da
criação de escolas, únicos empreendimentos que poderiam justificar, do
ponto de vista canônico, a posse dos bens indispensáveis à concretização
dos demais fins da Companhia de Jesus. (CARVALHO, 1978, 110).

Alguns nomes, como Martinho de Mendonça de Pina e Proença, Dr. Jacob


de Castro e Sarmento e Dr. Antônio Nunes Ribeiro Sanches tentaram adaptar a
Portugal algumas teorias de Locke, ideias newtonianas, mas, em um regime
pedagógico eclesiástico, não lograram sucesso:

Em Portugal, os jesuítas tinham o direito exclusivo de ensinar latim e


filosofia no Colégio de Artes, a escola preparatória obrigatória para
ingresso nas faculdades de teologia, leis canônicas, leis civis e medicina
da Universidade de Coimbra. A única outra universidade de Portugal, a de

367
Évora, era uma instituição jesuítica. No Brasil, os colégios jesuíticos eram
as principais fontes para a educação secundária. E no que restava do
império de Portugal na Ásia os jesuítas haviam sido a força dominante
desde os primórdios da expansão portuguesa no Oriente. (MAXWELL,
1996, 13)

A única congregação católica que obteve êxito em ingerir, até então, novas
ideias na pedagogia portuguesa foi a Oratoriana – grandes propagadores das
ciências naturais que enxertaram, em Portugal, princípios de Bacon, Descartes,
Gassendi, Locke e Antonio Genovesi. Os oratorianos tornaram conhecidos esses
novos ideais, que foram, contudo, oficialmente, proibidos – por meio do edital de 07
de maio de 1746, expedido pelo reitor do Colégio das Artes – de serem utilizados
nas lições e cobrados em exames.
Luís Antônio Verney (1713-1792), oratoriano, provocou um dos maiores
conflitos entre os jesuítas e os oratorianos em 1746. Utilizando-se do pseudônimo
Pe. Barbadinho, Verney escreveu dezesseis cartas – intituladas Verdadeiro Método
de Estudar para ser útil à República e à Igreja –, criticando o método jesuítico de
ensino e denunciando o estado da instrução pública até então. Objetivamente, na
educação, compreende as seguintes áreas: ensino de português, latim, grego e
hebraico, estudos de retórica, poesia, filosofia, matemática, medicina e teologia.
Em relação ao ensino de língua portuguesa, especificamente, Verney propõe:
i) a definição do que é a gramática e o importante papel em estudar
sistematicamente a sua língua; ii) priorizar o estudo pela gramática de língua
materna e não pela gramática latina – como exigia o Ratio Studiorum; iii) adotar uma
gramática curta e clara – partindo do princípio de que a gramática deve ser ensinada
aos alunos de pouca idade e, por isso, será mais fácil e objetiva a compreensão; iv)
não se deve ensinar com mau modo ou pancadas – hábito exercido até então –
mas, explicar pacientemente, a partir do próprio discurso do professor, ou, por meio
de exemplos simples; v) ensinar ortografia e leitura; vi) novo método de ensino da
gramática latina – estuda-la por intermédio da língua portuguesa e, para melhor
assimilação do latim, tornar obrigatório o estudo de história, geografia, cronologia e
antiguidade greco-romana; vii) defende o valor da retórica e da oratória como coisas

368
usuais, que façam parte do cotidiano dos alunos – pois, elas eram vistas na escola
em latim e direcionadas às orações; e, ainda:
rev[er] os estudos maiores da física, medicina, metafísica, ética, teologia,
moral e jurisprudência. A última carta, décima sexta, é uma sequência de
planos de estudos: elementares, gramática, latinidade, retórica, filosofia,
medicina, direito, teologia, terminando com um apêndice “sobre o estudo
das mulheres”. (FÁVERO, 1996, 75).

Azevedo (1922, pp. 196-7) relata que, em 1758, após o atentado que sucedeu
contra o rei D. José I, havia rumores populares de que os culpados seriam os
Távoras e de que os jesuítas seriam os responsáveis em fomentar tal ato. Após
investigação feita por Pombal, os Távoras – uma das famílias mais ilustres de
Portugal – foram presos, torturados e enforcados em praça pública. Aos jesuítas,
exigências foram feitas: i) apreensão dos bens; ii) recomendação ao bispo de que
os padres explicassem qual a participação deles no atentado de 3 de setembro de
1758 ao Rei; iii) dissolução das comunidades, separando os padres e levando os
mais estudados para lecionar na África – decisão essa que nunca chegou a ser
cumprida, pois os padres não tinham meios para manter-se, então, eram
encaminhados ao Pontífice, a fim de que este lhes garantisse o sustento; iv)
encarceramento daqueles que o governo julgasse merecedores; v) substituição das
escolas da Companhia por outras nas mesmas localidades – essa última
determinação, seria o pontapé inicial para a expulsão total dos jesuítas:
Pombal usou a tentativa de assassinato de D. José I como um meio para
esmagar tanto a oposição aristocrática como os jesuítas em Portugal.
Também utilizou a ocasião para atingir os pequenos comerciantes, que ele
acusava de conspirar com os jesuítas contra seus planos, abolindo suas
associações e, por conseguinte, sua representação. (MAXWELL, 1997,
92).

Apesar de toda a vontade de que essas determinações fossem cumpridas,


Pombal encontrou, no Papa, um verdadeiro protetor dos interesses jesuíticos,
porque, em sua concepção, caso ele assumisse falha no comportamento da
Companhia de Jesus, ele estaria, consequentemente, afirmando falhas contra sua
própria instituição religiosa. Esse ainda, segundo Azevedo (Op. cit., pp. 201):
“explanava a recusa, observando que tão horroroso facto não havia probabilidade

369
de se repetir, por isso a concessão nos termos pedidos não tinha razão de ser.”, e
escrevia cartas ao Rei pedindo penas mais leves àqueles que fossem julgados e
condenados.
O verdadeiro empenho do Papa Clemente XIII em livrar os jesuítas de penas
tão duras e radicais não foi considerado pelo governo português, o que levou o
Pontífice a escrever uma carta maldizendo o Rei e o ministro e a mão ferrenha com
a qual tratavam os jesuítas. Essa atitude gerou grande repercussão:
E a proposito, exclamava irritado que o geral dos jesuitas era o verdadeiro
Papa, e Clemente XIII um imbecil, que devia ser deposto, por tantos abusos
que em seu nome deixava commetter. O Papa, vendo que o adversario se
não dobrava, escrevia afinal a D. José e ao ministro, no amavioso tom ritual
da Santa Sé, exorando a reconciliação. Mas um e outro responderam de
modo que toda a esperança fenecia. Sob as formulas da aparente
veneração, a espistola do Rei era aggressiva, a do ministro ironica, e em
ambas resumbrava o patente desapreço á tentativa do Pontifice.
(AZEVEDO, 1922, 287).

Pouco tempo depois, o Papa escreveu dois documentos – Apostolicum


pascendi e Animarum saluti – explicitando a sua indignação com a falta de
importância atribuída à Igreja e reafirmando a sua obrigação em proteger os jesuítas
e qualquer um que estivesse em nome da Igreja Católica.
Inesperadamente, Clemente XIII morre e, após a instituição do novo papa,
Clemente XIV, houve permanentes brigas entre o papado e o governo português.
Mesmo com a tentativa de laicização do Estado, Pombal não podia romper
definitivamente com a Igreja e, após nove anos de desentendimentos, o Pontífice
assumiu uma postura diferente – mantendo um diálogo pacífico com o governo
português e privilegiando seus interesses em extinguir, totalmente, a Companhia de
Jesus por toda a Europa.

O Verdadeiro Método de Estudar

O autor
Luis Antônio Verney nasceu em Lisboa (1713), foi filósofo, teólogo, padre,
professor e escritor (mestre nas artes e doutor em teologia e jurisprudência) e era
considerado um estrangeirado, pois, mudou-se para Roma em 1736 com o objetivo

370
de dar continuidade aos estudos iniciados em Portugal (Escola de Santo Antão
pertencente à Companhia de Jesus; Congregação do Oratório e Universidade de
Évora) e inteirar-se nas novas tendências culturais que frutificavam nesse período
em toda a Europa.
Como teve, em sua formação de base, educação pautada primeiramente nas
doutrinas jesuíticas e, posteriormente, na congregação Oratoriana, Verney
acreditava que o ensino jesuítico, apesar de estável, passava por um momento de
defasagem (pois era baseado no Ratio Studiorum, como já expomos) e precisava
de uma renovação com a introdução das ciências modernas em campo português,
como faziam os Oratorianos.
Visando uma modernização no ensino português, o rei D. João V propôs a
Verney que elaborasse uma reforma educacional pautada no espírito progressista
das novas tendências seguidas por países como França e Alemanha (pois se
interessavam na evolução das ideias pedagógicas). Verney atendeu prontamente
ao pedido do rei e, em 1746, redigiu dezesseis cartas, com o pseudônimo de padre
Barbadinho, direcionadas a um doutor da Universidade de Coimbra.

A obra

Na introdução das cartas, Verney faz uma dedicatória aos padres da


Companhia de Jesus, exaltando tudo o que tinham feito até aquele momento em
nome de uma educação séria e orientando que os mesmos, a partir daquele
momento, utilizassem esse novo manual pedagógico em substituição ao documento
de 1599.
Essa obra se tornou o documento que inspirou a reforma do ensino em 1759
e foi considerada o registro mais importante da literatura pedagógica portuguesa até
a primeira metade do século XVIII, atribuindo à educação portuguesa a renovação
cultural já aplicada na maioria dos países europeus.

A divisão das cartas

I – Língua Portuguesa
II – Gramática Latina
III – Latinidade

371
IV – Grego e Hebraico
V e VI – Retórica e Filosofia
VII – Poesia
VIII – Lógica
IX – Metafísica
X – Física
XI – Ética
XII – Medicina
XIII – Direito Civil
XIV – Teologia
XV – Direito Canônico
XVI – Regulamentação Geral dos Estudos
2.2.1.1. Carta I – Língua Portuguesa

A primeira carta refere-se ao ensino da língua portuguesa e é sobre ela que


iremos direcionar a análise. Como as mulheres não tinham o direito à educação e o
primeiro contato linguístico da criança acontecia com a mãe, Verney defendeu a
prioridade do ensino da língua materna nos primeiros anos escolares (em oposição
à educação jesuítica, que priorizava o ensino da língua latina), para que a criança
aprendesse a falar de acordo com a norma culta. A ordem de ensino foi, então,
alterada para a seguinte: língua materna, latim, grego, línguas modernas, história e
geografia, matemática, retórica e filosofia.
No âmbito didático, Verney propôs a elaboração de uma gramática da língua
materna curta e clara; que os professores não se apresentassem aos alunos com
“mau modo” ou “pancada”, mas que fossem pacientes; que, após o ensino das
regras, fizessem com que os alunos repetissem-nas, para que pudessem fixa-las na
memória; que lessem, juntamente com os alunos, cartas simples e fáceis (como as
do padre Antônio Vieira) para que eles aprendessem a entonação das palavras e
das frases; que passassem a elaboração de textos simples como atividade para os
alunos, a fim de que treinassem a ortografia.
Baseado na gramática do padre Argote, Verney levantou críticas quanto às
repetições cansativas que em nada acrescentariam à prática do bem falar e do bem
escrever; quanto à sintaxe de regência, explanou que nada poderia aproveitar e
sugeriu uma reforma ortográfica baseada na pronúncia das palavras.
Seguem alguns exemplos da reforma ortográfica recomendada por Verney:

372
Retirar palavras repetidas que não Ex.: Essa → Esa (diferentemente de
fazem distinção do som ferrovia → ferrovia)
Retirar a letra “H” que inicia palavras, Ex.: Homem → omem
pois não é pronunciada
Destacar as desinências para que Ex.: disséramos → dissera-mos
fiquem claros número e pessoa do amaríamos → amaria-mos
verbo
Na colocação pronominal, propôs a Ex.: fazê-la → fazèla
substituição da separação pela Obrigá-los-ia → obrigalosîa
acentuação
Trocar a letra “e” pela “i” a depender da Ex.: Entregar → intregar
pronúncia da palavra Entender → intender
Transformar algumas locuções em Ex.: contanto que → contantoque
uma palavra, por meio da junção nam obstante que →
namobstanteque
A favor da acentuação para diferenciar Ex.: serîa (verbo) → seria (adjetivo)
palavras homógrafas

Observações: Verney defendia o uso de estrangeirismos, era contra o


aportuguesamento de palavras – explicitava que o único representante da literatura
portuguesa que escrevia com zelo era Luis de Camões – e incentivava o uso do
dicionário.

A Reforma Pombalina do Ensino inspirada no Verdadeiro Método de Estudar

Objetivando a remodelação dos métodos educacionais em andamento – que


já era uma preocupação antiga dos intelectuais portugueses – o Marquês de
Pombal, baseado nas ideias iluministas, criou o Alvará Régio de 28 de junho de
1759 que foi a primeira reforma do ensino em Portugal e confrontou o pensamento
tradicional – até então baseado nas práticas adotadas pelos jesuítas – àquele que

373
circulava como novidade na Europa – em Portugal, particularmente, inspirado pelo
Verdadeiro Método de Estudar, de Verney. Esse alvará norteou todo o percurso
educacional e pedagógico seguido por professores e alunos tanto de Portugal,
quanto das colônias.
É notável que o motivo da criação das Aulas Régias – que pretendiam
secularizar o ensino –, instituídas em 1759, em Portugal, foi a lacuna deixada após
a expulsão dos jesuítas e a extinção das escolas administradas pela Companhia –
já que eles, praticamente, mantinham o monopólio da educação. O governo
precisava, então, dessas novas diretrizes para mostrar à população que a educação
passara por uma reformulação.
Nesse documento, Pombal sistematizou uma educação direcionada aos
novos interesses políticos e econômicos de Portugal, mas mantendo,
constantemente, a atenção voltada em não ferir os interesses da fé religiosa – a
mudança era focada na renovação cultural que dominava as novas tendências
educacionais europeias:

Em nome da união cristã e da sociedade civil justificou o gabinete de D.


José I a adoção de uma pedagogia destinada a substituir as tradicionais
práticas por métodos mais condizentes com as razões de uma política que
procurava, dentro da ordem cristã, alcançar os objetivos da sociedade civil
em que os interesses seculares encontraram, pela primeira vez, quem os
traduzisse em termos que melhor se compadeciam com o progresso da
cultura e com os fins de uma ordem civil consciente de seus direitos. Ao
suprimir o ensino dos jesuítas, não ignorou, sem dúvida, o governo, o
significado do dilema em que se lançou. (CARVALHO, 1978, 79).

Uma das determinações mais explícitas no alvará de 1759 é a necessidade


de um ensino simplificado, objetivo, a fim de reduzir o número de anos relativos aos
estudos menores e, desta maneira, encorajar uma quantidade significativa de
alunos a cursarem os chamados estudos superiores.
Diferentemente da ação jesuítica na educação, o objetivo pombalino não
estava focado apenas na conclusão dos cursos pelos alunos, mas também na
mudança da mentalidade: despertando, neles, o desejo em congregar-se no mundo
cultural que efervescia a Europa do século XVIII. Esse desejo governamental surgia
de uma proposta que pretendia, intrinsicamente, formar novos líderes – civis e

374
eclesiásticos –para o Estado, que agissem, a partir de então, com ideias
“iluminadas”:

(...) pois este fato traduz, em substância, o objetivo conscientemente


elaborado de aparelhar a inteligência dos estudantes para elaborar, com
seguro critério, os problemas jurídicos e teológicos que porventura
tivessem de resolver. É este, a nosso ver, o significado da reforma
consubstanciada no Alvará de 28 de junho de 1759. (CARVALHO, 1978,
pp. 86).

O Alvará, assim como o Verdadeiro Método de Estudar, determinava uma


“geral reforma” no ensino da língua latina. Diferentemente do método jesuítico – que
primeiro ensinava o latim e, somente nas escolas de ler e escrever aplicava o ensino
da língua vernácula –, Pombal priorizou o ensino da língua portuguesa e, depois de
apreendidas as regras deste, é que se faria o ensino do latim, optando em adotar
uma nova gramática – já que a gramática utilizada anteriormente, na pedagogia
jesuítica, era redigida em latim.
Além disso, ainda seguindo os moldes pensados por Verney, a nova
gramática deveria ser curta e objetiva, a fim de que pudesse, consoante Carvalho
(1978, pp. 81), simplificar os estudos, de modo que os alunos [pudessem] adquirir a
ciência do latim com brevidade (...) – são elas a de Antonio Pereira de Figueiredo e
a de Antonio Felix Mendes.
A literatura exigida seguia os moldes franceses de escritores
contemporâneos e acatava uma metodologia determinada por grau de dificuldade:
iniciava-se com livros simples e de leituras rápidas; à medida que os alunos
demonstrassem um aprimoramento em seus conhecimentos, os professores
aplicariam os livros que possuíssem um desenrolar mais complexo.
O ensino de grego é ampliado – competente não apenas aos estudantes de
teologia, mas também às áreas do direito, de artes e da medicina, já que a Grécia
foi a grande precursora dessas áreas; e o de hebraico, destinado ao curso de
teologia.
Na Retórica, conforme expressa a quinta carta de Verney – inspirada na visão
de Quintiliano –, era necessário que os alunos aprendessem que todo lugar é teatro

375
para retórica, ou seja, o professor deveria aproximar essa disciplina não somente
aos atos pertencentes às pregações, mas também ao cotidiano do jovem aluno.
O alvará ainda instituiu: i) a criação do cargo de diretor geral dos estudos; ii)
a obrigatoriedade de que fossem feitas avaliações para o cargo de professor; iii) a
proibição do ensino público ou particular sem licença do diretor geral dos estudos;
iv) extensão do direito, a todos os professores, dos “privilégios de nobres,
incorporados em direito comum e especialmente no Código, Título – De
Professoribus et Medicis”. (VERNEY, 1746 apud FÁVERO, 1996, pp. 77).
Logo após a publicação do Alvará, em 09 de julho, D. Tomaz de Almeida foi
nomeado Diretor Geral dos Estudos. Essa nova função o levou a publicar os editais
para o exame obrigatório ao ingresso dos alunos à escola; a redigir a carta de
autorização aos professores que se candidatassem ao cargo; e a fazer o
levantamento das escolas, de acordo com o número de alunos, para determinar o
número de professores em cada estado de Portugal – era obrigação dele nomear
todos os professores que assumiriam o cargo a partir de então.
Os professores eram sempre vigiados, a fim de que não houvesse uma
suposta transgressão às ordens do novo programa educacional que estava
começando a ser desenvolvido. Os professores que fossem flagrados ensinando
pelo método antigo – por meio da Arte do Pe. Alvares – eram presos e obrigados a
assinar um documento se comprometendo a não mais assumir a função de
professor régio.
No Brasil, a determinação vinda de Portugal, por meio das instruções régias,
era de que os jesuítas permanecessem na colônia – não com fins educativos, mas
contribuindo com a educação religiosa dos índios. Dessa maneira, o número de
jesuítas em cada colégio seria bastante reduzido e os que não estivessem
vinculados a essa função voltariam para Portugal – os jesuítas, entretanto, não
aceitavam essa determinação e recusavam-se a deixar as instituições educacionais.
Além disso, para não perderem territórios utilizados por eles, até então, os
jesuítas demonstraram resistência ao Tratado de Madrid e, contrariando a
determinação do Rei, continuavam utilizando a mão de obra indígena, além de
condenar a emancipação indígena que havia sido determinada por Pombal. Diante

376
dessa resistência – que confrontava diretamente os interesses da Coroa –, D. José
I determinou a expulsão imediata de todos os jesuítas do Reino e de todas as
colônias lusitanas.
As Aulas Régias no Brasil funcionaram como em Portugal. D. Tomaz de
Almeida, ainda em 1759, exigiu a realização de concursos para a ocupação das
cadeiras de latim e retórica na Bahia. Em Pernambuco, entretanto, não havia
indicação de pessoas preparadas para assumirem os cargos, o que levou o Diretor
Geral a enviar dois professores portugueses, o que geraria vários incidentes – as
pessoas não os receberam de maneira cordial, pois afirmavam que eles eram
arrogantes. Além disso, rejeitavam o novo método de ensino e o material utilizado
para as Aulas Régias:

É provável que estes fatos se explicassem também pelo procedimento


particular dos professores, contra os quais se levantaram queixas que iam
desde as imputações de falta de civilidade e desrespeito aos superiores
até a violação das aulas régias que determinaram a época das férias e dos
suetos. (CARVALHO, 1978, pp. 131).

Essa insatisfação, por parte da população, resultou em uma grande evasão


de alunos. Como os professores eram obrigados a escrever cartas a D. Tomaz de
Almeida por meio de um relatório e deixá-lo informado de tudo o que estava
acontecendo, o Diretor resolveu suspender os professores e tomar duras
providências que obrigassem os alunos a retornarem às salas de aula: “Obrigados
pela autoridade, os estudantes não encontraram outra solução senão a de acatar
respeitosamente as ordens, disfarçando talvez aquele “ódio ao novo método (...)”.
(CARVALHO, 1978, pp. 132). Professores vindos de Portugal também ocuparam
cadeiras no Grão-Pará, Vitória – no Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro.
A educação no Brasil seguia os moldes do Alvará Régio instituído em
Portugal, porém, com algumas dificuldades, como a resistência dos nativos à
separação dos jesuítas, o nível intelectual dos alunos – só quem tinha acesso à
educação eram os filhos dos colonos – além disso, não seria vantagem para
Portugal que houvesse, em sua colônia, pessoas esclarecidas, conhecedoras da
verdade. Por esse motivo, Pombal mandou queimar os livros mantidos nas

377
bibliotecas construídas e organizadas pelos jesuítas e proibiu o desenvolvimento de
qualquer projeto que levantasse o interesse em fundar instituições de ensino
superior no Brasil.

Considerações Finais

Com características de um governo duro e intolerante, o primeiro-ministro,


depois da expulsão dos jesuítas do território brasileiro, instituiu as aulas Régias –
um sistema educacional escasso e cheio de deficiências, as aulas, autônomas e
isoladas, deixaram de acontecer em seminários e passaram a ser ministradas em
casa. A depender das cadeiras que houvesse no local em que o aluno estivesse
alocado, poderia cursar uma por vez.
A situação dos mestres era caótica, pois os salários eram muito baixos, a
estrutura física não correspondia à necessidade que possuíam e o treinamento para
o ensino de qualidade, insuficiente. Apesar de um aparente caos, quando
comparado ao modelo jesuítico, o ensino público pombalino iniciou um processo
moderno de ensino, com ideias que eram condizentes com a realidade cultural que
a Europa vivenciava na metade do século XVIII e com a elaboração de conteúdos
úteis à realidade dos alunos.
A reforma no ensino instituída pelo Marquês de Pombal em Portugal e,
consequentemente, no Brasil, foi apenas o início de uma grande política educacional
que capacitava e preparava o aluno para a realização dos interesses civis e políticos
e que continuaria a se desenvolver durante o reinado de D. Maria I.

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, José Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. Rio de Janeiro:
Anuário do Brasil, 1922.
CARVALHO, Laerte Ramos. As Reformas Pombalinas da instrução pública. São
Paulo: USP, 1978.

378
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo: Ática, 1982.
FÁVERO, Leonor Lopes. As Concepções Linguísticas do século XVIII: a gramática
portuguesa. Campinas: UNICAMP, 1996.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. 2ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar. 3.ed. Lisboa: Oficina
Gráfica, 1949.

379
CRIATIVIDADE E CIBERESPAÇO – CONVERGÊNCIA PARA
ALÉM DO HIBRIDISMO

Janaina Quintas Antunes154


Cleusa Kazue Sakamoto155

Introdução

A riatividade humana é uma capacidade diferenciada que supõe um processo


e um ambiente de suporte; concede ao ser humano um status de agente construtor
revelando suas incontáveis e incomparáveis potencialidades. Pode resultar na
apresentação de produtos inovadores, que estão por trás da construção do mundo
humano em todos os seus detalhes. A genialidade em diversas áreas do existir
humano se expressa sob o fazer criativo que muitas vezes deriva inventos os quais
vemos traçar a trajetória da história de evolução humana. A realidade humana,
resultado do talento criador, também é parte inerente do processo criativo, pois dela
advém todos os elementos materiais e simbólicos que lhe servem de suporte.
A Criatividade esteve até recentemente, envolta em uma aura de mistério em
termos de seu conhecimento científico, porém cada dia mais vem sendo estudada
e debatida, possibilitando o entendimento de sua função e participação na vida
humana. Weschler (2002), bem como Alencar, Bruno-Faria e Fleith (2010)
descrevem uma visão histórica sobre o estudo da Criatividade que nos oferece um
entendimento de como diferentes enfoques buscam defini-la e pesquisá-la.
Winnicott (1970) discute a importância do potencial criativo para o ser
humano e suas contribuições ao processo evolutivo individual e ao ambiente
humano, que nos permite refletir sobre a construção das sociedades e suas variadas
culturas, perspectiva de análise que estimula o exame do cenário do início do século
XXI, com a criação do Ciberespaço. Parece inevitável questionar em que medida a
sociedade globalizada e o surgimento da internet inauguraram novas formas de

154
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)
155
Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM)

380
relacionamento, de pensamento, de produção, ou seja, uma nova relação entre o
ser humano e o mundo. A este respeito, menciona Sakamoto (2012, p. 87) que:
A lógica das relações não é mais direta e dependente de elementos
definidos, mas está associada a um processo complexo de fatores e
microelementos, aparentes e não aparentes, que estabelecem vias
transversais de relacionamento e originam incontáveis desdobramentos de
conexão recíproca, conflituosa e/ou excludente, que fogem ao alcance de
uma apurada e imediata percepção, ainda que minuciosa e experiente.

A sociedade contemporânea globalizada em suas fronteiras para além de


limites concretos das localidades geográficas e ampliada com o Ciberespaço é
atualmente, um ambiente genuíno e claramente complexo e criativo com novas
maneiras de ver, de pensar, de trocar, de se relacionar ou de viver.
O Ciberespaço estabeleceu uma expansão à Criatividade, pois os
parâmetros concretos da experiência podem ser alterados em seus limites
geográficos e temporais. Anteriormente éramos influenciados culturalmente pelo o
que estava próximo de nós, nossas fontes criativas eram aquelas que estavam
visíveis e acessíveis territorialmente e temporalmente. Não tínhamos grandes
possibilidades de influências de culturas longínquas no espaço e no tempo, ao
mesmo tempo havia pouco contato com registros históricos da nossa história
humana.
A contemporaneidade descortinou padrões novos de busca de informações
e possibilitou a presença mais constante de modelos de pensamento criativo em
que múltiplas linguagens convergem para expressar modos de interação humana,
anseios e necessidades. As trocas interpessoais se tornaram possíveis em tempo
real na aldeia global, e cada vez mais complexas, apoiadas por altas tecnologias da
comunicação. Estas mudanças no modo de ser e de viver do ser humano na
atualidade reinventaram o fenômeno da Criatividade hoje, traduzindo de modo mais
essencial, a potencialidade criativa do ser e fazer humano.
Convergências de pensamentos acerca da Criatividade e do Ciberespaço
para explicarmos uma realidade para além do hibridismo podem ser uma tentativa
válida para abordar fenômenos complexos como a interatividade em tempo real e o
conceito de espaço sem lugar, que a contemporaneidade delineia reinventando o
viver humano na era digital.

381
O presente artigo pretende apresentar de modo preliminar uma discussão
relacionando Criatividade e Ciberespaço na busca de entender a participação deste
último na expressão criativa na contemporaneidade. Refletir sobre a existência
humana transformada por inovações tecnológicas e novos hábitos cibernéticos, é
oportunidade para compreendermos o hibridismo para além dele na convergência
entre o ato de criar e o ambiente do Ciberespaço. Conceitos híbridos como a
Condição Glocal e o Nobrow são algumas das definições que abrem um novo
horizonte de reflexão e discernimento sobre viver, criar e dar continuidade ao
processo evolutivo do ser humano hoje. A expansão dos poderes criativos dado aos
indivíduos com acesso a redes de comunicação virtuais, nos leva a considerar que
o “tema da criatividade emerge como interessante campo de questionamentos e
insights acerca da complexa construção da realidade na contemporaneidade”
(SAKAMOTO, 2012, p. 87).

Glocalidade e Nobrow – conceitos novos do ciberespaço e do viver

O contexto de sociedade e cultura, suporte inerente da Criatividade, foi


transformado pela realidade em que a cidade se tornou maior e recebeu o predicado
“virtual”. O Ciberespaço é uma extensão da realidade concreta que introduz
expansão de novas possibilidades humanas. O Ciberespaço nos trouxe a
possibilidade de sermos influenciados por diversas culturas de diferentes lugares e
tempos; sendo o ambiente no qual ocorre a internacionalização de culturas, ele
possibilita sintetizar o produto criativo da confluência de características culturais de
todo planeta. Nesta nova realidade, a Criatividade parece ser a expressão humana
que melhor exemplifica a vida em sociedade no século XXI, já que em seu hibridismo
pode explicar infinitas inovações na contemporaneidade.
No horizonte do Ciberespaço, podemos contemplar um fenômeno de
articulação criativa simultaneamente local e global, ambos e nenhum destes ao
mesmo tempo, nomeado como “Glocal”, que entrelaça o global e o local expondo a
profunda inter-relação típica da cibercultura.

382
Glocal é o sítio no qual estamos quando não nos encontramos nem no local
nem no global. Quando, por exemplo, visitamos um museu virtual, não estamos
literalmente na cidade, na localização desse museu; porém também não nos
encontramos na cidade onde nosso corpo físico se encontra, pois não estamos
vivenciando o ambiente desta localidade, mas sim o ambiente glocal da localização
do museu que nos recebe pelo virtual, aquele que se apresenta por meios virtuais
que foi teletransportado pela tecnologia.
Nossa sociedade atual é hipermidiática, estamos em um momento histórico
dominado pela tecnologia. A Glocalidade é um fenômeno mundial que atinge todas
as pessoas do mundo através do ciberespaço e atinge até mesmo as pessoas sem
acesso à internet, que são influenciados de forma indireta, pois elas sofrem essa
influência ao entrar em contato, por mais esporádico que este seja, com um
individuo que tem influência direta do Ciberespaço. A cibercultura sofre uma
disseminação universal proporcionada por todos os indivíduos que têm contato com
o Ciberespaço.
Na Glocalidade estamos isolados, tanto no Glocal Lato Sensu quanto no
Glocal Stricto Sensu, pois no primeiro estamos isolados por falta de acesso à
internet, no segundo estamos isolados do mundo territorial ao nosso redor
protegidos por um Bunker Glocal, isto é, nossos infinitos gadgets que nos separam
do ambiente físico em que nosso corpo se encontra. Estamos isolados
territorialmente, mas unidos ao mundo todo pelo Ciberespaço. Um indivíduo pode
se isolar da tecnologia, mas jamais pode fugir do processo irreversível da
Glocalidade.
Essa união entre o global que circula e o “onde” o corpo está (ou “onde” ele
atua) que é o fundamento comunicacional do processo civilizatório corrente, se dá
por inúmeras roupagens (que por enquanto são smartphones, tablets,
computadores), mas essa roupagem não tem a menor importância, pois o Glocal
não reside nelas. A qualidade glocal da comunicação se dá mais no sentido
funcional que estrutural da experiência. É isso que sustenta a união inextricável
entre o global da rede e aquilo que circula instantaneamente pela comunicação de
massa interativa ou híbrida.

383
A nova condição de Glocalidade impõe uma restrição, a de que não é mais
possível separar conteúdos que são circulantes internacionalmente, ou
nacionalmente ou localmente, ou ainda, em termos do lugar que você ocupa e do
lugar em que está seu corpo. Esta nova característica introduzida pela comunicação
digital modifica a dinâmica e a consistência comunicacional global que acontece no
plano físico em que atuamos e passa por milhões de outros lugares no planeta, ao
mesmo tempo em que torna invisível a realidade em que nos encontramos e nos
coloca em uma condição glocal.
O processo de Glocalização significa ainda, desenvolvimento cultural, na
medida em que permite uma miscigenação no campo cultural, uma hibridação de
conteúdos na rede sem fronteiras.
O território físico vem sendo reconfigurado em nossa realidade atual, aos
poucos sendo substituído por outras extensões da realidade, permitindo o
surgimento de processos criativos atuantes na transversalidade de uma realidade
que supre o que é próprio e local sem desautorizá-lo porque o transcende, sem
desqualificá-lo, porque o substitui por códigos alternativos que são geridos por uma
realidade reestruturada, a do network universal que sofre adaptações locais e
transmuta-se na condição glocal.
A evolução e o claro delineamento linear temporal da cultura deixam de existir
no advento da cibercultura, pois a Glocalidade torna possível que um indivíduo seja
influenciado por culturas e movimentos culturais que na nova ordem de
conectividade encontram-se “fora” de uma determinada ordem temporal ou
geográfica.
Um artista (ou qualquer pessoa, em seu papel de produtor de cultura) pode
ser, por exemplo, conjuntamente influenciado por um artista neolítico
asiático e por um expressionista africano.
O ciberespaço nos trouxe um enorme número de possibilidades de
influências vindas de diversas culturas, de diferentes épocas e
localizações. Somos imersos em um mar de influências infinitas, muitas
vezes não sendo pessoalmente capazes de reconhecer quais são elas ou
suas origens, consequentemente enfrentando uma grande dificuldade em
nomear ou nos integrarmos a um movimento cultural singular, já que hoje
somos completamente atemporais e ageográficos. (ANTUNES, 2015, p. 5).

A influência global atemporal e ageográfica traz como consequência novos


produtos, ou novos bens culturais que estimularam a evolução do conceito de

384
hibridismo para um “além-hibridismo” e os tornaram bens inclassificáveis. Os novos
bens culturais podem ser caracterizados como multilaterais, mas não são
classificáveis como alguma área, alguma cultura, alguma arte específica, porque
são o encontro de todos esses elementos que ao interagir resultaram a sua
produção.
Nobrow é o conceito para denominar este produto cultural que é influenciado
em amplitude mundial, de natureza inclassificável porque é fruto da
multidimensionalidade de todos os processos de produção e da influência cultural
multiaspectal; distribuído de algum modo por qualquer meio, seja pela internet, pela
televisão, por diversas mídias.
Esta nova realidade redefiniu a cultura, fazendo-a deixar de ser apenas uma
soma de fatores culturais que resulta no hibridismo e tornando-a algo novo, único e
inclassificável; isto é, um resultado no qual não é possível reverter a operação
matemática do ciclo de influências culturais para revelar seus componentes
incógnitos.
O termo Nobrow foi proposto pelo jornalista e crítico cultural John Seabrook
em 2000 e utilizado academicamente pela primeira vez pelo professor Peter Swirski
em seu livro de 2005 para caracterizar essa nova tendência da cultura; foi baseado
nos conceitos de Highbrow e Lowbrow:
A expressão Nobrow faz referência à expressão highbrow (uma
denominação de cultura, artes e literatura, que as caracteriza como
“intelectuais, de alta qualidade”), e à expressão lowbrow (expressão que
caracteriza a cultura, a literatura e a arte como sem conexão ou interesse
em ideias culturais sérias/intelectuais), de maneira a representar o
conceito de cultura sem uma qualificação de lowbrow ou highbrow, sem
um direcionamento específico a determinado tipo de público, ou à
determinada área do conhecimento. Tal cultura não é nem popular, nem
erudita; nem de certo estilo, ou de outro; uma cultura não categorizada.
(ANTUNES, 2015, p.1)

Nobrow é a evolução do hibridismo, vinda da interatividade típica da


cibercultura (caracterizada como uma cultura interativa digital em tempo real), para
além do hibridismo. É a consequência do diálogo entre culturas e da troca de
tradições culturais plenamente universalizados pelo Ciberespaço, é o surgimento de
uma Criatividade independente de herança cultural local e/ou temporal. Nobrow é o
inclassificável na era da cibercultura, consequência da interatividade mundial.

385
Além de um novo conceito, Nobrow é também um novo processo
comunicacional, uma nova estética, uma nova perspectiva de contemplar o
processo criativo. É um novo fenômeno na história cultural que caracteriza o século
XXI; ele está surgindo como a cultura do século XXI, nascida sob condições
tecnológicas e culturais específicas da contemporaneidade. Nobrow é a articulação
do mundo, é a internacionalização de culturas de todos os lugares por meio da
comunicação proporcionada pela tecnologia; é um fenômeno glocal.
Enquanto bens culturais híbridos têm características de diversas tendências
juntas em um único trabalho, e enquanto elas podem ou não estar ligadas à
cibercultura, os bens culturais Nobrow são únicos: suas origens e influências podem
ser várias e é impossível reconhecê-las ou traçá-las, tornando sua classificação
impossível. Os objetos culturais Nobrow não são necessariamente vinculados ao
digital e ao interativo; eles não estão obrigatoriamente no Ciberespaço. Contudo,
cada obra Nobrow foi influenciada pelos traços da Cibercultura; cada uma recebeu
influências diretas ou indiretas de outras produções e seus produtores do mundo
inteiro pelo Ciberespaço, ou como mencionado anteriormente, são fruto do Glocal
Lato sensu; ainda que muitas obras Nobrow sejam fruto do Glocal Stricto sensu. É
pela articulação social no Ciberespaço que a estética da cultura Nobrow e seus bens
culturais são internacionalmente estabelecidos.

Breve conclusão

A Cibercultura e o Ciberespaço nos permitem um enorme número de


possibilidades de interação e produção de influências infinitas vindas de diversas
culturas, de diferentes épocas e localizações, exponenciando a Criatividade.
Anteriormente a cidade, a geografia, o nosso ambiente territorial, eram os
elementos-chave da influência cultural, os meios pelos quais se davam o
desenvolvimento criativo, e eram eles que ofereciam a matéria prima do hibridismo
cultural territorial. Com a introdução do Ciberespaço, a sociedade expandiu os seus
meios de influência cultural, e novos meios de influência e novos modos de
interatividade deram origem à Glocalidade.

386
Criatividade na atualidade reflete não apenas capacidades inesperadas de
sínteses inovadoras do ser humano, mas também dá acesso ao entendimento de
fenômenos humanos de maior complexidade e magnitude interacional a partir das
fronteiras expandidas da sociedade global, da condição glocal e da origem da
cultura além-hibrida ou Nobrow.
Nesta ótica, o conceito de superação do ser humano hoje, pode ser um
equívoco na discussão da vida, visto que pode estar apoiado ainda em parâmetros
de definição cartesiana para o pensamento. É possível que tenhamos que buscar
uma nova estrutura de entendimento, mais flexível e que se apoie na compreensão
dinâmica de fenômenos humanos que estão para além do visível e do classificável,
mas que não por isto, seja menos válido e representativo. O conteúdo além do
híbrido é um fenômeno cultural irreversível e disseminado por todo o globo.
Derivações de relações criativas anteriores cujas interfaces expõem possibilidades
ao infinito, são inclassificáveis enquanto suas origens, porém identificam a
Criatividade em sua natureza essencial – sem limites!
Podemos considerar que o século XXI nos permita perceber a realidade
humana complexa em uma qualidade plural genuína e, ao mesmo tempo, nos
convoque a rever a dimensão do que deve ser o real, já que o real não tem mais
apenas as fronteiras concretas e as imaginárias, mas tem também um território sem
lugar que é a condição glocal, um lugar sem lugar objetivo cujo tempo é instantâneo,
o tempo real da comunicação digital.
Criatividade e Ciberespaço são as coordenadas dinâmicas de natureza
plástica e de uma concepção material híbrida do processo de interação e produção
na atualidade. Convida a refletir sobre quem é o ser humano, o mundo humano e
as capacidades humanas; e ainda, sobre a responsabilidade de construção do que
denominamos mundo humano e sobre as implicações do fazer criativo para a vida
humana no planeta.

387
Referências Bibliográficas

ALENCAR, Eunice Maria Soriano de; BRUNO-FARIA, Maria de Fátima; FLEITH,


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recepções. São Paulo, Edição 1, 2015, p. 1 – 8.
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WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar e a Realidade. Tradução Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago, 1975.

388
A TRADUÇÃO DA ARTE POÉTICA HORACIANA NA ARCÁDIA LUSITANA -
MARQUESA DE ALORNA

Joana Junqueira Borges156

Introdução
A retomada de traduções do legado greco-romano em língua portuguesa tem
se dado de modo esparso, mas, de certo modo, gradual. Em 1862, na versão de
Antônio Feliciano de Castilho para Os Fastos, de Ovídio, o Marquês de Resende,
em nota, argumenta sobre a necessidade de compilar e publicar em língua
portuguesa traduções dos clássicos, a exemplo das publicações francesas de
Panckoucke ou de Didot (Resende in Castilho, 1862, p.496).
Bastante tempo depois, José Paulo Paes, em seu capítulo A tradução literária
no Brasil (1990, p.9), aborda essa questão ao relatar a dificuldade de se realizar um
estudo diacrônico de traduções no Brasil e em língua portuguesa, principalmente
por conta da ausência de documentos e de catalogação.
Haroldo de Campos, que iniciou o seu trabalho com o texto grego da Ilíada
no início dos anos 1990, mas só o publicou completamente em 2002, trouxe
novamente para a cena literária a tradução que Odorico Mendes havia publicado
em 1874. Essa retomada de uma tradução anterior, servindo de paradigma para a
sua, e para outras que viriam (Campos, 1994, p.240), faz parte da defesa do poeta
e tradutor (ou transcriador, uma vez que define suas versões como transcriação)
para que se constitua uma História da Tradução em nossa língua. Haroldo resgata
em Odorico, por exemplo, o metro de sua tradução, dodecassilábico e a criação de
neologismos (Rocha, 2013, p.304).
Antoine Berman compartilha com Campos a ideia de se elaborar uma História
da Tradução, tanto para auxiliar o fazer tradutório quanto para acompanhar o modo
como esta se desenvolve (2002, p.12). Peter Burke, nesse mesmo sentido, destaca
a importância de se estudar e analisar os contextos de produção do texto de partida
e do texto de chegada (2009, p.16).

156
UNESP-FCLAr/ CAPES

389
É a partir desses princípios que vem sendo desenvolvido por vários
pesquisadores, sob a orientação do Prof. Brunno Vieira, o projeto "José Feliciano
de Castilho e a tradição clássica no séx. XIX", que estuda traduções do legado
greco-romano em língua portuguesa, explorando diferentes épocas de produção,
bem como diferentes tradutores lusófonos.

Marquesa de Alorna
É nesse cenário, portanto, que desenvolvemos nosso trabalho de pesquisa.
Até o Mestrado trabalhamos com traduções que José Feliciano de Castilho realizou
no século XIX para os epigramas de Marcial, o que envolveu estudar e entender
como sua época lidava com a licenciosidade e como essas questões influenciaram
suas traduções, a fim de entender como, a partir de seu contexto, o tradutor leu o
poeta latino.
Para a continuidade aos estudos de tradução e recepção do legado greco-
romano, agora no Doutorado, estudamos a tradução que a Marquesa de Alorna
realizou para a Arte Poética de Horácio em 1812157. O ponto que desperta o
interesse aqui não é mais a licenciosidade, mas sim o fato de se localizar
temporalmente no Arcadismo lusitano e ser esse uma escola literária que bebe
diretamente de fontes clássicas, entre elas os preceitos horacianos contidos em sua
poética.
Além disso, vale ressaltar, mesmo que rapidamente, a importância de D.
Leonor de Almeida, a Marquesa de Alorna, que já nos salta aos olhos por ser uma
mulher, participando ativamente da cena literária de sua época, influenciando novos
escritores, como bem observou Alexandre Herculano:
Aquella mulher extraordinária, a quem só faltou outra pátria, que não esta
pobre e esquecida terra de Portugal, para ser uma das mais brilhantes
provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva do nosso
sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litterária, quando ainda no
verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada das lettras
(HERCULANO, 1844, p.404).

157
Nesta época a Marquesa de Alorna vivia em Londres, onde esta edição foi publicada. Posteriormente, em
1844, suas filhas publicaram suas Obras Completas, apresentando um volume com o texto tal como fora
publicado, acompanhado também da tradução de Alexandre Pope.

390
D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre nasceu em 1750, em
Lisboa. Oito anos depois, por questões políticas envolvendo seu pai, que foi preso
no forte da Junqueira, ela, sua irmã e mãe foram encarceradas no mosteiro de
Chelas, bairro lisboeta, onde permaneceram por dezoito anos.
A Marquesa de Alorna utilizou o tempo que passou no mosteiro para seus
estudos e suas produções poéticas. E, apesar de sua clausura, conseguiu algum
convívio com a cena poética sua contemporânea, participando dos outeiros
poéticos158 do mosteiro, ou recebendo visitas de poetas nas grades do convento,
como a de Filinto Elísio, que deu a ela o apelido literário de Alcipe, como a chamava
nos poemas que trocaram (Anastácio in Alorna, 2007, p.24) e como ficou conhecida.
Foram as filhas da Marquesa, Frederica e Henriqueta, quem publicaram suas
obras completas, em 1844, intituladas Obras Poéticas de D. Leonor D’Almeida
Portugal Lorena e Lencastre, Marquesa d’Alorna, Condessa d’Assumar e
d’Oeynhausen, conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcipe. Em
um dos seis volumes que compõe essa coleção encontra-se a tradução da Arte
Poética de Horácio, acompanhada da tradução de Ensaio sobre a crítica, de
Alexandre Pope. Além dessas traduções a Marquesa possui vasta obra tradutória,
que segundo Pinilla também conta com textos de:
Homero, Horácio, Claudiano, Marcial, Chateaubriand, Lamartine,
Lamennais, Macpherson [poemas de Ossian], Pope e Weiland; imitações
de Anacreonte, Safo, Catulo, Horácio, Metastácio, Testi, Delille, Lamartine,
Gray, Goldsmith, Thompson, Bürguer, Goethe e Herder; e paráfrases da
Bíblia (os Salmos) e de versos de Santa Teresa de Jesus. Autores antigos
e modernos (muitos deles contemporâneos da marquesa), de diversas
tendências e línguas: grego e latim, espanhol, francês e italiano, alemão e
inglês (2007, p.310). 159

Voltemos, então, ao ponto em que observávamos a necessidade de se


retomar e compendiar traduções antigas em nossa língua, o caso da Marquesa de
Alorna cabe perfeitamente nessa perspectiva, basta observarmos a quantidade de
autores clássicos que ela traduziu e cujos textos traduzidos são praticamente
desconhecidos, seja do público leigo, seja do especializado.

158
Michaelis: 2 Festa que outrora se realizava no pátio dos conventos, e em que os poetas glosavam motes dados
pelas freiras.
159
Tradução nossa.

391
A importância da Arte Poética no período árcade e, consequentemente, a
tradução da Marquesa merecem um novo olhar crítico. Se tomarmos como
referência as edições elencadas por Rosado Fernandes em sua tradução do texto
de Horácio, têm-se entre publicações em latim acompanhadas de comentários e
traduções propriamente ditas, quatorze que ele considera relevantes, dessas, sete
são do século XVIII e quatro do século XIX (Fernandes, 2012, p.33-41).
Dessa forma notamos tanto a inserção da tradução da Marquesa de Alorna
no contexto árcade, quanto a notável quantidade de textos e traduções de Horácio
dessa época (isso porque não contabilizamos as leituras e releituras do carpe diem
- Carm. 1.11).
Além disso, vale ressaltar que a Marquesa de Alorna realizou sua tradução
em versos o que, embora isso não fosse incomum em sua época, é bastante raro
em nossos dias, em especial em solo brasileiro. Desse modo a retomada dessa
versão aponta para servir de base para uma futura tradução da Arte Poética, uma
das questões defendidas pelos estudiosos de História da Tradução.
No momento em que nos encontramos da pesquisa, essas são as principais
questões de contexto social e literário da tradução da Marquesa de Alorna, mas,
assim como ocorreu em nossa pesquisa de mestrado, pretendemos realizar leituras
de outras traduções, bem como de aparato crítico da época para entender a
tradução da Arte poética de Horácio inserida no Arcadismo.
Passemos, então, a uma breve análise de aspectos tradutórios do texto da
Marquesa de Alorna.

Poética de Horatio
A tradução da Marquesa de Alorna é realizada em decassílabos e, embora
não haja a presença de rimas, não podemos deixar de notar questões poéticas como
as seguintes:
Inceptis gravibus plerumque et magna professis,
Purpureus latè qui splendeat, unus et alter 15
Assuitur pannus: cum lucus et ara Dianae,
Et properantis aquae per amoenos ambitus agros,

392
Aut flumen Rhenum, aut pluvius describitur arcus.
Sed nunc non erat his locus [...]
(Alorna, 1812, p.4)
Geralmente, a inícios que se prometem graves e grandiosos é costurado um ou
outro retalho purpúreo, que resplandeça ao longe: quando é descrito o bosque e o
altar de Diana e o circuito da água que corre pelos campos amenos, ou o rio Reno,
ou o chuvoso arco-íris. Mas agora não era lugar para isso [...]
(Tradução nossa)
Essas obras pomposas, que prométem
Coizas grandes, às vezes, são retalhos
De purpura, e brocado, que alinhava 20
Com arte o dono; como exemplo achamos,
A descripção das aras de Diana,
No Sacro bosque; o rapido remanço,
Que serpea nos campos sombreados;
O largo Rheno, e a luminoza estrada 25
Onde entre o sol e a chuva, Iris anda.
Isto porem não é de que se trata.
(Alorna, 1812, p.5)

De início vale notarmos a escolha da Marquesa para traduzir inceptis, a forma


plural do ablativo de inceptum. Ao pensarmos nas questões retóricas da dispositio
do texto, podemos concluir que Horácio falava do princípio da obra, os “inícios que
se prometem graves e grandiosos”, como traduzimos, seria algo como sua
introdução160. A escolha desse sentido para traduzir esse vocábulo está de acordo
com a visão de Cândido Lusitano, que verteu da seguinte maneira:
Commumente a principios de si graves,
E que tratar promettem grandes cousas,
De purpura remendos se lhes coze [...] (Lusitano in Horacio, 1778, p. 9-11)

Isso não significa que a Marquesa de Alorna traduziu erroneamente o


vocábulo. No dicionário de Saraiva consta como segunda acepção “tentativa,
empresa”, no que podemos entender sua escolha por “obra”. Sua escolha, embora
negligencie as teorias retóricas subjacentes ao texto, não chega a propriamente
desvirtuar seu sentido, mas o modifica, na medida em que não fica claro que essas
obras se prometem grandiosas no inceptum.

160
Como exemplo desse inceptum como parte introdutória da obra podemos citar a Eneida de Virgílio, seu
primeiro verso, Arma uirumque cano, já apresenta o que será cantado.

393
Outro ponto a ser observado são os “retalhos”, esse termo está presente no
texto latino (pannus), mas a pontuação adotada pela Marquesa, marcada pela
presença de frequentes vírgulas, principalmente nos três primeiros versos, nos dá a
ideia plástica (iconográfica, até, se pensarmos nos tipos gráficos) de como são
“alinhavados” esses retalhos. Cabe observar ainda que, o verbo escolhido por ela,
“alinhavar”, se adequa perfeitamente à metáfora da costura adotada por Horácio,
assim como o acréscimo do termo “brocado”, reforçando essa metáfora na tradução.
Outra questão poética que nos chama a atenção é a aliteração em /s/ no
trecho que se refere ao correr do rio. O vocábulo utilizado pela tradução para aquae
é “remanço”161, o curioso aqui é a associação dos sentidos opostos de remanso e
“rápido”, em que observamos que a Marquesa apresenta o sentido primeiro de
properantis, “apressar, acelerar” (Saraiva), mas parece que ao utilizar “remanso”
para o rio ela entende que amoenos (“amenos”) adjetiva aquae e não agros, o que
não seria possível sintaticamente, uma vez que aquae pode ser genitivo ou dativo
singular, ou nominativo plural, e somente agros, no acusativo plural concordaria com
amoenos. Fica então a questão, será que por conta da métrica e para inserir um
paradoxo ela “forçou” essa concordância? Ou ela quis ressoar o /r/ assim como o
/s/ para figurativizar o barulho das águas?
O texto latino aborda nesse excerto as questões de simplicidade e unidade,
fortemente defendidas por Horácio. O autor romano destaca que por vezes os
autores costuram retalhos de descrições ou de trechos que, embora bonitos e
utilizados para engrandecer o texto, não têm relação estrita com o conteúdo (Sed
nunc non erat his locus - “Mas agora não era lugar para isso”), caracterizando
digressões que acabam por atrapalhar a unidade do texto. Vale observarmos que
Horácio apresenta a quebra da unidade justamente fazendo uso dos artifícios
descritivos (describitur) que os escritores da época utilizavam, como Ennio (Ann.
173) e Virgílio (A. VI, 659) (BRINK, 2011, p.97).
Essas digressões estão claramente colocadas por Horácio como describitur
(é descrito), termo que a Marquesa de Alorna aproveita para sua tradução, ainda

161
Moraes: remánso s.m: nos reios, e no mar, chama-se remanso a porção d’águas’ que banha alguma parte
curva, e quase uma pequena enseiada, sem ter movimento sensível.

394
que o apresente como substantivo e não como verbo (“descripção”). Esse vocábulo
define retoricamente o artifício do poeta para embelezar seu texto e o fato de a
tradução mantê-lo reforça a noção de que as informações principais do texto de
partida foram mantidas.
Diferentemente do texto latino, a tradução da Marquesa de Alorna nos dá a
impressão de comparar as “obras grandiosas” a esses “retalhos”, creditando
somente a essas inserções a grandeza da obra, mas se o “dono”, no caso o autor,
alinhava com destreza, a obra ganha grandeza? Isso não está muito claro na versão
portuguesa, embora ao final esteja presente a sentença “Isto porem não é de que
se trata”, trazendo a noção de que essas partes costuradas estão desconectadas
do sentido geral. Não se pode afirmar que ela não diz o que está no texto latino
(observamos isso pela utilização do termo “descripção”, pelos vocábulos que
reforçam a metáfora horaciana de tecido e costura “retalhos” e “alinhavar” e pelo
acréscimo de “brocado”), mas o sentido primeiro do texto latino fica um pouco diluído
pela escolha que a Marquesa fez ao traduzir inceptum por “obra”, deixando de lado
as questões retóricas da dispositio que esse vocábulo carrega.
O trecho a seguir apresenta a questão da apropriação do texto de partida
pelo contexto de chegada, isto é, altera-se o texto para conferir-lhe sentido para o
leitor de sua época. Esse tipo de tradução se aproxima da tradução retórica de
Cícero, que procura traduzir o conteúdo, não somente o texto, Mauri Furlan define
esse tipo de tradução como “reelaboração, é reinvenção da fonte grega, é a
apropriação, latinização. Ele suplanta retoricamente o original” (Furlan, 2010, p.84).
No caso, seria lusitanização do original latino.
Com o passar dos anos, traduções da Bíblia e de outros textos mostraram
que esse não é o único modo de traduzir. Friedrich Schleiermacher, teólogo e
filósofo alemão, escreveu em 1813 Über die verschiedenen Methoden des
Übersetzens (“Sobre os diferentes métodos de traduzir”), em que discute o método
anteriormente já defendido por Cícero, de levar o autor até o universo do leitor, em
oposição ao método que defendia levar o leitor ao autor, ou seja, deixar o texto com
suas características de produção e língua de partida. Esses dois modos também
são discutidos pelos irmãos Antônio e José Feliciano de Castilho, que colocam os

395
termos de tradução “parafrástica” e “literal” (Castilho, 1862, v.1, p.37). Mais
recentemente Antoine Berman também trata sobre os modos de traduzir, falando de
uma tradução “etnocêntrica” e “da letra” (2002, p.15).
O trecho que recortamos da tradução da Marquesa de Alorna é bastante
significativo para essa discussão:
Et nova factaque nuper habebunt verba fidem, si
Graeco fonte cadant, parcè detorta. [...]
(ALORNA, 1812, p.10)
E as palavras novas e criadas recentemente terão crédito se vêm de fonte Grega,
alteradas moderadamente.
(Tradução nossa)
E as palavras de fabrica recente,
Terão valôr; e mais se derivarem
Com pouca corrupção, da Grecia, ou Latium. 80
(ALORNA, 1812, p.11)

Já comentamos como o Arcadismo procura reter e ressoar os preceitos


greco-latinos em sua poética, portanto, não é estranho que o período que quer
justamente ambientar o clássico em Portugal aclimate essa tradição aos seus
costumes. Filinto Elísio defende justamente essa apropriação a partir do
estranhamento e do que chamamos hoje de neologismo:

O modo de aperfeiçoar a língua materna é enxertando nela o precioso das


outras. Temos o exemplo antigo da língua Romana, que se fez abastada
co’as riquezas que tirou da Grega; e, desta, conta Xenofonte que d’entre
os proveitos, e vantagens que da força marítima tiravam os Atenienses, era
um, e grande, o de ouvirem falar toda a casta de línguas, e tomarem desta
uma frase, daquela um termo enérgico, etc., etc. […] E ora se a língua
Grega, a mais bela das línguas européias, a mais louvada dos Romanos,
senhores do mundo, se enriquecia com o trato e comércio de outras;
quanta riqueza não requer que a língua Lusa tire da Grega e da Latina, e
ainda de outras, assinalando-as com o seu cunho, e dando-lhes Carta e
provisão de naturalizadas. (ELÍSIO 1998, p.63-64)

É exatamente esse tipo de defesa que Horácio faz em seu texto, embora
ressaltando que esse artifício deve ser utilizado parcimoniosamente (parce). A
tradução da Marquesa de Alorna não apresenta o advérbio, embora acrescente que
essas palavras devem ser inseridas “sem corrupção”. Mas o acréscimo mais

396
significativo de sua tradução é justamente “Latium”, que a alinha ao pensamento de
Filinto Elísio.
A título de curiosidade e de mote para uma discussão posterior sobre esse
assunto, cabe observarmos que a mais conhecida das traduções da Arte Poética no
Arcadismo Português, a de Cândido Lusitano, não traz o Lácio como fonte para
novas palavras em vernáculo, apenas a “fonte grega”, no entanto acrescenta
“nascerem sem violência” (Lusitano in Horacio, 1778, p.31), o que vai ao encontro
da escolha da Marquesa de Alorna quando utiliza “sem corrupção”.
Outro fator que influenciou a escolha da expressão “com pouca corrupção”
pela Marquesa de Alorna é a retomada do clássico português “Os Lusíadas”, o que
nos mostra que os árcades retomam também os clássicos lusitanos. Justamente no
“Concílio dos deuses”, no momento em que Vênus faz sua defesa do povo
português, no trecho:
Sustentava contra elle Venus bella,
Affeiçoada á gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nella
Da antigua tão amada sua Romana:
Nos fortes corações, na grande estrella.
Que mostraram na terra Tingitana;
E na lingua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que he a Latina.
(CAMÕES, 1859, p.91)

Conclusão
Acreditamos que passagens como essas exemplifiquem a tradução da
Marquesa de Alorna enquanto nosso trabalho encontra-se no início. Com a breve
análise que fizemos aqui pudemos observar que sua versão não se afasta muito do
texto latino, embora em alguns momentos haja alguns desvios de sentido, que ainda
serão melhor estudados para sabermos se se dão por conta da leitura de sua época
ou se por um entendimento errôneo do texto latino.
No geral, o que já pode ser afirmado é o fato de que o Arcadismo português
procurou resignificar o clássico, se apropriando de suas temáticas (como o carpe
diem, as referências mitológicas, etc.) e de suas normas literárias (o que se nota
pelas traduções da Arte Poética realizadas nessa época e pelo uso de neologismos,

397
por exemplo). A princípio podemos notar que os aspectos clássicos no Arcadismo
se refletem também no modo de traduzir dessa época, o que, aliado às teorias
poéticas de Horácio, deverão ser encontrados na tradução da Marquesa de Alorna
para a Arte Poética.

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399
SILÊNCIOS, IMAGENS E HISTÓRIA EM “A REDAÇÃO” – ANTONIO
SKÁRMETA E ALFONSO RUANO

Joanna Durand Zwarg162

Na memória latino-americana o significado da palavra “ditadura” deixaria sua


marca, influenciando percepções e formas de atuar no mundo. Imagens e palavras
são importantes instrumentos de registro dessas memórias, e é deles que
trataremos aqui, a partir da leitura reflexiva de A Redação (La Composición, 2006)
de Antonio Skármeta, escritor chileno. Consideramos a leitura da edição de 2006,
traduzida ao português por Ana Maria Machado e que traz ilustrações de Alfonso
Ruano, artista espanhol. Imagens (Ruano) e palavras (Skármeta) dessa obra unem-
se na revelação de um olhar infantil para um contexto em que a expressão “ditadura
militar”, recente e misteriosa para a personagem protagonista, tem seu significado
revelado aos poucos, em meio a palavras e imagens que identificam o olhar de um
menino de nove anos para o contexto ao qual se insere.
Em A Redação / La composición (2006), Pedro convive com seus pais,
companheiros de futebol, escola e vizinhança. O drama pessoal da personagem, a
princípio, volta-se ao desejo de possuir uma bola de futebol profissional. Une-se a
esse desejo a curiosidade por compreender a nova rotina que se apresenta fora e
dentro de sua casa: militares nas ruas, o chiado da estação de rádio ouvida
atentamente, todas as noites, por seus pais e outros adultos que os visitam:

No último mês, desde que as ruas tinham se enchido de militares, Pedro


reparara que toda noite o pai se sentava em sua poltrona predileta, levantava
a antena do aparelho verde e ouvia com atenção notícias que chegavam de
muito longe. Às vezes vinham uns amigos, que se deitavam no chão, fumavam
como chaminé e encostavam as orelhas no receptor.
Pedro perguntou à mãe:
- Por que eles estão sempre ouvindo essa rádio cheia de chiado?
- Porque o que ela diz é interessante.
- E o que é que ela diz?
- Coisas sobre a gente, sobre nosso país.

162
Mestrado em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil

400
- Coisas que estão acontecendo.
- E por que se ouve tão mal?
- Porque a voz vem de muito longe”. (2006, p.4)

Tal curiosidade é aguçada quando, em uma partida de futebol, um gol que


faz de cabeça é ignorado pelos companheiros porque todos veem o pai de Daniel,
amigo de Pedro e um dos jogadores naquele momento, sendo levado por militares.
A partida de futebol é interrompida e Daniel explica a Pedro que seu pai foi levado
preso por ser contra a ditadura:
- O que é isso?
Daniel olhou a rua vazia e falou, como se estivesse contando um segredo:
- Quer dizer que eles querem que o país seja livre. Que os militares saiam do
governo.
- E é por isso que prendem as pessoas? – perguntou Pedro.
- Acho que é.
- Que é que você vai fazer?
- Não sei. (2006, p.12)

Então o primeiro interesse não é pelo significado da palavra “ditadura”, mas


pelo que significa ser contra a mesma. A Pedro não lhe é cobrada a tomada de um
partido e, muito menos, que compreenda a situação de seu país, o que se percebe
pelo diálogo dele com seus pais, após o ocorrido: “-Papai – perguntou então - , eu
também sou contra a ditadura?” (2006, p.19), e a mãe toma a palavra, respondendo
da seguinte maneira: “[...]criança não é contra nada. Criança é simplesmente
criança. Garoto da sua idade tem é que ir para a escola, estudar muito, brincar e ser
carinhoso com os pais” (2006, p.19). O fato de perguntar sobre si mesmo para os
pais revela uma identidade, normal em sua idade, ainda em princípio de formação,
extremamente dependente da orientação hierárquica da família, da comunidade.
(2006, p.19)
Por estar inserido no tempo e no lugar da ditadura militar, no entanto, Pedro
interage inevitavelmente com tal contexto e formula, junto a outros meninos de sua
idade, intuitivamente, sua própria compreensão dos fatos. Dessa forma, a memória
que se vai abrindo na leitura deste livro não é um recorrido de acontecimentos
históricos. Trata-se da expressão de um olhar infantil, mais preocupado com gols
de cabeça, balas de graça, pipas azuis presas em árvores, fugir de um primeiro beijo
precoce. Estas são algumas das aventuras e preocupações de Pedro, narradas de

401
forma concomitante e em paridade com sua curiosidade sobre o conceito de
ditadura, a exemplo do diálogo de Pedro com seu pai, após o episódio da prisão:
(2006, p.16)

- Daniel ficou tomando conta da mercearia. Pode ser que me dê umas balas
de presente – disse Pedro.
- Acho que não.
- Levaram ele num jipe, igualzinho àqueles dos filmes.
O pai não disse nada. Respirou fundo e ficou olhando a rua, na maior tristeza.
Embora fosse dia, as únicas pessoas que passavam eram os homens que
voltavam do trabalho, andando devagar. (2006, p.16)

A possibilidade de ter em mãos seu objeto de maior desejo, uma bola


profissional de futebol, surge quando um capitão vai a sua escola e, a pretexto da
realização de um concurso com premiação, solicita às crianças que escrevam uma
redação:
-‘O que minha família faz todas as noites’... Compreenderam? Quer dizer, tudo
o que vocês e seus pais fazem quando chegam da escola e do trabalho. Os
amigos que vêm visita-los. O que conversam. O que comentam quando veem
televisão. Qualquer coisa de que vocês se lembrem. Livremente. Com toda
liberdade. Pronto? Um, dois, três ... Começar. (2006, p. 22)

A liberdade que o capitão concede ou reconhece nos meninos que vão


escrever a redação é a mesma referida pela mãe de Pedro, diz respeito à
desobrigação da formação partidária e política de quem ainda está em processo de
formação social e, no caso de um contexto de opressão política, da necessidade de
preservar seus filhos e eles mesmos da violência de estado. Já para os governantes,
tal inocência poderia ser aproveitada como uma forma de obter informações, pela
falta de malícia das crianças. Em “Cuando la ficción nace del infierno” (2001),
explicando as motivações para a escrita de “Tema de Clase”163, título desta obra em
sua primeira versão, Skármeta relaciona o pedido do capitão em seu relato ficcional
às estratégias de perseguição políticas empreendidas a partir de 1973, no Chile 164:

163 O conto foi publicado pela primeira vez na revista Le Monde, nos anos 70, com o título Tema de Clase. A
obra recebeu o título La composición quando publicada pelas edições Ekaré em 2000, com ilustrações de
Alfonso Ruano.
164 Em 11 de setembro de 1973 ocorreu o golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet no Chile,

dando início a um período de dezesseis anos de ditadura militar.

402
[...] lo que me pareció obsceno, indecente, patológico, grosero, fue el intento
de la dictadura en Chile en 1973 de arrastrar al conflicto de la sociedad a niños
inocentes, tratando de manipular sus frescas e ingenuas conciencias. Temas
como los que pidieron en la escuela del niño Pedro Malbrán, héroe de mi
relato, hubo millares. Y los chicos de entonces, hoy adultos, lo recuerdan. (La
Nación, 2001)165

Tal falta de malícia, não impediria, no entanto, que aquele menino de nove
anos percebesse que em cada movimento seu existia um impedimento ou um vazio.
Algo, no estado das coisas, não permitia que seus pais o presenteassem com uma
bola de futebol profissional, um gol feito por ele não é celebrado e uma partida de
futebol é interrompida porque o pai de um amigo é preso, o chiado do rádio todas
as noites, o choro da mãe.
Vazios e fatos estranhos a um cotidiano harmonioso são objetos de análise
e discussão entre Pedro e outras crianças. “- Mulher vive chorando” (2006, p.27),
será a explicação de Juan para o choro da mãe de Pedro. É Juan também que
questiona o discurso de que ditadura militar não é assunto para crianças: “-Sempre
dizem isso. Meu pai está preso. Levaram ele para o norte”. (2006, p.29) Esclarece
pouco depois de repreender a Pedro por uma pergunta inadequada para o momento
– em que o capitão aguarda a escrita das redações - e, em sua opinião, óbvia: “-
Você é contra a ditadura?/ Juan olhou bem, conferindo a posição do capitão, e se
inclinou para Pedro: /- Claro, pentelho” (2006, p.29)
Interessa aqui ressaltar diferenças entre diálogos da personagem
protagonista com os pais e entre meninos da mesma idade. A ausência de
hierarquias e de didatismo permite maior exposição de ideias e cobranças entre os
interlocutores. A contraposição entre inocência e curiosidade evidencia-se nos
diálogos entre crianças e mostra a percepção de mundo de Pedro como integrante
de um coletivo.

165[...] o que para mim pareceu obsceno, indecente, patológico, grosseiro, foi a tentativa da ditadura chilena,
em 1973, de arrastar ao conflito da sociedade crianças inocentes, tratando de manipular suas frescas e
ingênuas consciências. Temas como os que pediram na escola do menino Pedro Malbrán, herói do meu relato,
houve milhares. E os jovens desse período, hoje adultos, lembram-se. (tradução nossa).

403
Pedro não deixa de viver sua infância, mas observa o que acontece ao seu
redor. O fragmento abaixo diz respeito ao que se passou em uma semana após a
escrita da redação:
Passou uma semana, uma árvore da praça caiu de velha, o caminhão de lixo
ficou cinco dias sem passar e as moscas tropeçavam nos olhos das pessoas,
o Gustavo Martínez da casa em frente se casou e os vizinhos ganharam um
pedaço de bolo, o jipe voltou e prenderam o professor Manuel Pedraza, o
padre não quis rezar missa no domingo, no muro da escola apareceu escrita
a palavra resistência (grifo meu). Daniel voltou a jogar futebol e fez um gol de
bicicleta e outro de lençol, os sorvetes subiram de preço e Matilde Schepp,
quando fez nove anos, pediu a Pedro que lhe desse um beijo na boca. - Você
está maluca! – gritou Pedro”. (2006, p.30)

E a ilustração que o acompanha pode ser descrita da seguinte maneira: A


palavra resistência escrita em um muro e a sua frente, em primeiro plano, um tronco
caído de uma árvore. A palavra e as lajotas do muro dividem espaço em meio ao
caos, que parece estar representado pela árvore caída.

SKÁRMETA, 2006. p. 31. Ilustração de Alfonso Ruano

Em Seis propostas para o próximo milênio, no capítulo sobre Leveza, Ítalo


Calvino faz referência a narrativas mitológicas e romanescas para tratar da leveza
como característica presente a deixar suas marcas na composição literária do
futuro. Ressalta, durante sua conferência, o caráter da leveza como uma espécie
de oposição ao peso da vida, não se trata de uma recusa da realidade, mas um
olhar desde outra perspectiva, tornando dada realidade narrável, até mesmo para

404
comunicar seu peso. Comenta textos de Ovídeo e Lucrécio para concluir que, em
ambos: “a leveza é algo que se cria no processo de escrever”. (2015, p. 26) Sobre
Kundera, autor de A insustentável leveza do ser (1984), Calvino esclarece que o
“peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão” (2015, p.21). Em “A
redação” o horror do golpe militar e suas consequências ganham a leveza de uma
perspectiva infantil. Inocência e curiosidade da personagem protagonista mesclam
as ações de opressão e censura a fatos do cotidiano. Ao mesmo tempo em que o
olhar de Pedro e outras crianças emprestam suavidade e até um pouco de humor a
difíceis tempos de Ditadura Militar, não deixa de ser um olhar realista, verdadeiro.
O menino não descobre os motivos nem obtêm informações detalhadas a respeito
do que caracteriza um golpe de Estado e sobre o funcionamento de uma nação em
período de ditadura militar. Mas é na percepção de particularidades do cotidiano,
“desde que as ruas tinham se enchido de militares” (2006, p. 4), que a ditadura
ganha seus contornos no universo de Pedro: nas informações desencontradas, nas
prisões.
A redação composta por Pedro, é resultado da relação entre desejos, medos
infantis e o drama de um estado de opressão causado pela ditadura. Pedro lê diante
dos pais, apreensivos porque só naquele momento sabem que um capitão da polícia
militar esteve na escola, sua redação:

-“Quando meu pai volta do trabalho, eu vou espera-lo no ponto de ônibus. Às


vezes, minha mãe está em casa e ela pergunta quequiouve meu bem, como
foram as coisas hoje. Tudo bem diz meu pai, e com você, o de sempre
responde minha mãe. Então eu saio para jogar futebol e adoro fazer gol de
cabeça. Depois minha mãe chega e diz tá na hora Pedrinho vem que a janta
tá na mesa, e a gente se senta e eu sempre como tudo menos a sopa que eu
detesto. Depois toda noite minha mãe e meu pai sentam no sofá e jogam
xadrez e eu termino o dever de casa. E eles continuam jogando xadrez até a
hora de dormir. E depois, e depois eu não posso contar porque já estou
dormindo.
Assinado: Pedro Malbrán.
Recado: se eu ganhar um prêmio por essa redação tomara que seja uma bola
de futebol, mas não de plástico”.
Pedro olhou para os pais e viu que os dois estavam sorrindo.
- Bom - disse o pai -, por via das dúvidas, vamos ter que comprar um jogo de
xadrez. Nunca se sabe ...” (2006, p.35)

405
A redação de Pedro seria uma descrição pura e simples da realidade se a
palavra “rádio” nela existisse sem ser substituída por “jogo de xadrez”. É pelo rádio
que Pedro escuta falar de ditadura militar: “Quando ouviu o rádio falar em ‘ditadura
militar’, Pedro sentiu que todas as coisas que andavam rodando soltas pela sua
cabeça se juntavam, como se fossem as peças de um quebra-cabeça”. (2006, p.
18) Tais coisas carregavam o signo da ditadura militar e Pedro se dá conta disso
porque desde que os chiados da rádio participavam do cotidiano de sua família a tal
da “ditadura militar” começou a fazer parte de sua rotina, provocando certa mudança
na sua forma de perceber o mundo. Percebe, por exemplo, que o pai é contrário à
ditadura e o relaciona com o pai de Daniel, preso por esse motivo e por soldados
que vestiam fardas tais quais às do capitão que encomendou a redação. Por trás de
uma redação que mostra a preservação da infância e é motivo de alívio e alegria
momentânea para uma família, há todo um processo de perseguição e
silenciamento pressentido por Pedro e seus amigos.
Ao tratar do “Simbolismo do Xadrez”, Titus Burckhard (2015) escreve que
nesse jogo estariam presentes as relações entre vontade e espírito, já que a
disposição das peças no tabuleiro representa uma batalha em que a inteligência
prevalece sobre a sorte e a liberdade está em íntima ligação com o conhecimento.
Ou seja, na movimentação de uma peça, a escolha é livre, mas limitada, implica em
consequências. Trata-se de liberdade de ação com previsão e conhecimento.
Pelo construto da narrativa de Skármeta, em conjunção com as ilustrações
de Alfonso Ruano, podemos perceber que a simbologia do xadrez condiz, na
narrativa, com o rádio no que diz respeito ao fato de ser uma fonte de liberdade para
o conhecimento que implica escolhas, busca de caminhos. Uma estação de rádio
cheia de chiados, que para ter acesso à mesma é preciso esconder- se, implica em
escolhas, dentre as quais: assumir um risco, devido a censura imposta pelo governo,
e de compreensão das mensagens em meio a chiados. Ao ouvir a expressão
“ditadura militar”, Pedro não precisava entender todo o percurso político para uma
compreensão mínima do que significa estar a mercê desse regime. Entende, de
alguma forma, que desde aí surgem as incompletudes, os vazios.

406
As ilustrações de Alfonso Ruano, unem-se às palavras de Antonio Skármeta
para esse arsenal de significações. Na capa, a personagem protagonista e sua
redação aparecem em primeiro plano, com os soldados militares atrás, diminuídos.

SKARMETA, 2006. Capa com ilustração de Alfonso Ruano

Trata-se de uma informação oposta ao que ocorre no conto, em que a figura


militar é sempre imponente diante da paisagem e de outras personagens,
principalmente das crianças. Privilegia-se a comunicação do contexto opressor que
Pedro tenta entender.

SKÁRMETA, 2006, p. 27. Ilustração de Alfonso Ruana.

A imagem de um aparelho de rádio abre a narrativa e a figura de um jogo de


xadrez a encerra. O rádio marca a relação de Pedro com a família. Marca também
o silêncio da família para com ele. Elemento misterioso, fonte de informações
desencontradas.

407
Em “Os militares e a história”, de Paisagens Imaginárias, Beatriz Sarlo trata
da ambiguidade da escrita/leitura literária. As palavras, para Sarlo, escondem –
desfiguram e tornam dúbios os acontecimentos – e mostram – não deixam que os
fatos se apaguem, nomeiam. Segundo a autora “nos reconhecemos nas leituras”
(2005, p.26), que compõem e explicam nossa realidade. Entre a literatura e a vida
existiria uma tensão de resistência, provocação e necessidade. A arte, que tem seu
lugar no extremo das coisas, morde “o centro deslocado, reprimido ou ignorado”
(2005, p.27) Não explica, mas assinala fatos. Ao tratar da história, a literatura
permite a reconstrução de um “nó de memória”, sendo assim contrária ao
esquecimento. A escrita e posteriores leituras de um texto estariam acima de leis de
anistia e pactos de esquecimento” (2005, p. 32)
Como em outras obras de Skármeta, há em “A redação” uma personagem –
Pedro – ligada ao universo das palavras. Sem saber, embora de alguma forma
pressinta, em determinado momento do conto Pedro é quem tem a palavra e faz
uso da mesma para reconstruir a experiência familiar, silenciando a existência de
um meio de comunicação que, também por palavras, denuncia a “ditadura militar”.
As palavras de Pedro, em sua redação, silenciam o que as imagens de Ruano
escancaram. E as palavras do narrador de Skármeta mostram uma personagem
cujo cotidiano juvenil não se resume apenas nos fatos narrados na redação, nem
na opressão e medo causados pela ditadura militar e retratados nas ilustrações de
Ruano.
Ao final do conto, a redação de Pedro é representada por uma folha de
caderno com o texto escrito a mão, Ressaltando o contexto didático e ingênuo em
que estão inscritas as palavras do menino. Como o anunciado na capa, o menino e
sua palavra escrita voltam a prevalecer e a dominar o contexto de comunicação.

408
SKÁRMETA, 2006, p. 34. Ilustração de Alfonso Ruano.

Pedro parece intuir a necessidade do silêncio em relação ao rádio. Silêncio


elegido no momento em que lhe é dada voz, em que domina um contexto de
comunicação para relatar os fatos. Explora-se o imaginário infantil em um espaço
de contenção e silêncio, combinado à aparente ingenuidade de Pedro. Da qual,
como de outras crianças, o capitão tenta, e por vezes consegue, tirar proveito.
Skármeta teria como objetivo, ao escrever A Redação, que seu relato: “fuese leído
como una fantasía, la alegre ficción de un poeta que inventa una historia donde la
inteligencia triunfa sobre la estupidez, aun si el poeta sabe que en realidad la
estupidez ha triunfado a menudo sobre la inteligencia” (2001). Na linguagem
figurativa de Ruano também há um silêncio relacionado às vivências infantis de
Pedro, em que o discurso do menino não coincide com o ambiente repressor
destacado nos desenhos de Ruano, ressaltando, dessa forma, a oposição infância
x ditadura militar.
Nessa obra de Skármeta imagens e palavras expressam um processo de
aprendizagem vivenciado por uma criança que tem como estímulo sua curiosidade
em relação a transformações recentes do cotidiano e sua ligação com a expressão
“ditadura militar”. A voz do menino e as figuras que compõem a edição ilustrada por
Ruano combinam-se nesta narrativa sobre a formação de uma identidade em meio
a uma realidade inexorável que se apresenta no que se vê, no que se ouve e,
finalmente, no que se escreve, é no ato da escrita que temos o registro do olhar de
Pedro para a realidade. A redação mostra o início da percepção de um contexto em
que nem tudo pode ser dito, o que é típico de um contexto de ditadura militar. O
silêncio elegido por Pedro, no momento em que lhe é dada a palavra, salva sua

409
família e parece garantir um final feliz ao conto. Final este, no entanto, baseado em
dados históricos de anos de repressão que levava a censura, prisões,
desaparecimentos, dentre tantos outros sintomas.
Por trás da infância que, sem perceber, Pedro consegue salvar e manter, fica
a marca da percepção precoce, nele e em seus amigos da mesma idade, da vivência
de um momento em que a sinceridade e a inocência não podem ser aproveitadas
intensamente e, desde cedo, embarca-se em um jogo de limitações e
silenciamentos como forma de garantir a sobrevivência. Nós, leitores, também
entramos em uma espécie de jogo. Junto com a família de Pedro, podemos ter
nossas perspectivas frustradas ao entrar em contato com a redação de Pedro e ver
que, sem perder a leveza que sua inocência infantil proporciona, maneja o discurso
de forma a resistir a um sistema de confissão, como se a palavra resistência, escrita
no muro mencionado pelo narrador de Skármeta e ilustrado por Ruano, adentrasse
ao novo cotidiano e, lido na atualidade pelo viés ficcional, mostrasse um contexto
histórico da América Latina, presentificado pelo olhar de uma criança. A redação ,
produto final da busca de uma explicação para a nova realidade que se apresenta,
aponta para uma identidade em processo de formação, a princípio poupada da
violência de Estado, mas inserida, como tantos outros jovens que testemunharam
ditaduras militares, em um contexto de repressão que se impõe a famílias, escolas
e meios de comunicação, obrigando ao silêncio e à resistência por formas então
consideradas subversivas de comunicação. As ditaduras oprimiram esses protestos
mas não poderiam oprimir a memória e seus registros. Neste caso, o registro da
literatura: “A história é um horizonte de debates entre narrações diversas, que
reaparecem mesmo ao serem condenadas ao esquecimento. As palavras
continuam pesando”. (SARLO, 2005, p.34). Na edição considerada para esta
pesquisa, as palavras do narrador de Skármeta ficam atravessadas pela tradução
ao português de Ana Maria Machado, integrando pelo idioma o Brasil à história da
América Latina.
Alfonso Ruano integra a palavra “resistência” à ilustração em uma das
páginas de A redação. Palavras escritas em muros eram silenciadas por sabão e
tinta, além de prisões, torturas, exílios. Tal ato encontra-se representado nesta obra

410
desde um olhar infantil. Trata da obrigação ao silêncio imposta por ditaduras
militares que, no entanto, esta e outras obras da literatura latino-americana não
deixam calar.

BIBLIOGRAFIA:
BURCKHARDT, Titus. O simbolismo do xadrez. Trad. Luiz Pontual. In:
www.renguenon.net. Acesso em: 8 de outubro de 2015.

CALVINO, Ítalo. Leveza. In: Seis propostas para o próximo milênio: lições
americanas. Trad. Ivo Barroso, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SARLO, Beatriz. Os militares e a história: contra os cães do esquecimento. In:


______. Paisagens Imaginárias: intelectuais, artes e meios de comunicação. Trad.
Rubia Prtes Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2005.

SKÁRMETA, Antonio. A redação. Trad. Ana Maria Machado. Rio de Janeiro:


Record, 2006.

_________. Cuando la ficción nace del infierno. La Nación. Santiago : Talls. Graf.
La Nación, 1917- v., (8 abril 2001), p. 8 In: http://www.memoriachilena.cl. Acesso
em: 10 de agosto de 2015.

411
APROXIMAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E LITERATURA: ESTRATÉGIAS DE
LEITURA NO DESENVOLVIMENTO DE UM CLUBE LITERÁRIO CIENTÍFICO

João Eduardo Ramos166

Introdução

Já não é novidade a aproximação entre ciência e literatura, e suas


possibilidades didáticas (ZANETIC, 1989; GOMES, 2011; OLIVEIRA, 2010;
MARTIN et al, 1992; ALMEIDA E RICON, 1993). Seja na ficção científica, na fantasia
ou na literatura fantástica, é possível encontrar conteúdos e discussões sobre
ciência. Conceitos sendo levados ao extremo, paradoxos sendo criados, novos
universos, viagens espaciais, entre outros temas. De maneira que no aparente
abismo entre a arte e os temas científicos, há uma rede que entrelaça os diversos
aspectos da cultura humana que possibilitam o estabelecimento de interessantes
relações e conjecturas, que podem ser aplicadas em atividades didáticas. Esta
aproximação entre ciência e arte, permite, no nível educacional, diminuir as
barreiras entre as disciplinas, possibilitando um diálogo interdisciplinar.
Refletindo sobre o processo de leitura em si e o seu ensino, e tendo como
base algumas atividades já realizadas (RAMOS, 2013), fomos observando que o
aluno, quando obrigado por algum motivo (prova ou alguma outra avaliação), não
lê. Evidente que não são todos os alunos, mas, talvez até por uma questão de gosto,
não é possível atingir todos os estudantes, principalmente se levarmos em
consideração turmas com até quarenta alunos. Nesse sentido, "a leitura termina se
parecendo com uma escravidão que emana responsabilidade e obrigação"
(JACOBS, 2011, 21). Com este cenário, passamos a questionar a validade de certas
atividades de leitura no ambiente escolar, pois, consideramos que os jovens gostam
de ler (LAJOLO, 2014; OLIVEIRA, 2013; GUEDES, 2013), embora talvez não se
interessem tanto pela leitura obrigatória, como apontam Gabriela Oliveira (2013) e
Daniel Pennac (1998). Oliveira (2013), notou, ao entrevistar alunos da educação
básica, que os jovens liam e comentavam sobre as narrativas que gostavam

166
USP/UNISO

412
apaixonadamente, mas resistiam ao cânone escolar. Ou seja, embora haja
variações devido ao nível socioeconômico e a formação das famílias, os jovens
leem. “Eles podem não ler o que a escola lhes pede para ler, pode não ler com a
frequência que se esperaria que lessem, mas em geral eles leem, citam seus livros
preferidos e discorrem sobre o que lhes agrada nas leituras que fazem dos livros
que selecionam para ler” (OLIVEIRA, 2013, 262).
Dado este contexto, nosso objetivo com esta pesquisa é apresentar uma
reflexão sobre as atividades de leitura desenvolvidas em um 'clube de leitura
científico', que visa fomentar o interesse de jovens dos 8º e 9º anos para a
leitura/literatura e ciência, a partir de textos de fantasia e ficção científica. O clube
em questão faz parte do projeto LUCIA (Leituras Universais e Ciência Investigativa
para Adolescentes), que é uma parceria da Escola de Artes Ciências e
Humanidades da USP juntamente com uma escola municipal de São Paulo. As
atividades do grupo são realizadas de forma voluntária e no contra turno das aulas.
Nosso intuito de ocupar o contra turno é desenvolver um espaço de atividades não
formais dentro do ambiente escolar. Nesse sentido, a participação dos alunos no
grupo não está atrelada a nenhum tipo de avaliação, por exemplo. Além disso, as
atividades são realizadas de forma pontual e para o desenvolvimento das mesmas
nos apoiamos nas estratégias de leitura propostas por Isabel Solé (1998), para
quem a dinâmica de leitura em sala de aula pode ser estruturada em pré-leitura,
leitura e pós-leitura.
Portanto, apresentamos nesta pesquisa os resultados das atividades
desenvolvidas ao longo do primeiro semestre de 2015. Iniciamos com uma
discussão sobre o LUCIA e as obras utilizadas inicialmente, acompanhadas da
descrição de algumas atividades realizadas. Em seguida comentamos e discutimos
os resultados coletados.

Os projetos ALICE e LUCIA

O A.L.I.C.E., Arte e Lúdico na Investigação em Ciências na Escola, assim


denominado em homenagem à obra de Lewis Carroll, é um projeto voltado para
estudantes entre 10 e 14 anos. A proposta do projeto é, integrando pesquisadores,

413
professores, estudantes de graduação e alunos da escola básica, aproximar os
conteúdos artísticos do científico a partir de atividades que envolvem produção de
texto, pesquisa e o uso da arte e das mídias para a manifestação de conteúdos
científicos: painéis, dobraduras, pinturas, encenações, instalações, vídeos,
brinquedos, música, textos ficcionais, entre outros.
Assim, o projeto prevê a realização de atividades didáticas em quatro frentes:
(1) R.I.T.A – Rock n’Roll na Investigação da Tecnociência para Adolescentes,
centrado nas representações da ciência e da tecnologia na música pop e no rock;
(2) L.U.C.I.A – Leituras Universais e Ciência Investigativa para Adolescente,
baseado em literatura infanto-juvenil, ficção científica,
O humor e outros recursos de leitura na educação científica; (3) E.M.M.A –
Estudos sobre a Mulher na Mídia para Adolescentes, focado nos estudos das
relações de gênero por meio de investigações da mídia e (4) L.Y.R.A – Laboratório
Investigativo de Robótica e Astronáutica, com atividades de produção de brinquedos
robóticos e leituras sobre temas de robótica, cibernética e inteligência artificial.
O projeto ALICE se apoia em três pilares básicos: a escola de tempo integral,
o ensino por projetos, e a visão educacional que dialoga com a cultura primeira do
aluno, ou seja, a cultura que lhe dá prazer. A ampliação da jornada escolar com a
escola em tempo integral (SME) tem possibilitado um espaço de uso da escola além
das disciplinas obrigatórias. No entanto, que tipo de atividade é possível realizar
com os estudantes nesse tempo adicional? Propostas do gênero de projetos como
feiras de ciências, gincanas, mostras culturais, iniciações científicas, entre outras,
têm ganhado cada vez mais espaço no país (Barcelos et al 2010).
Quanto ao ensino por projetos, observamos, como indicam os documentos
oficiais (SME), que esta é uma forma inovadora de romper com as estruturas
curriculares compartimentadas em disciplinas e de dar um formato mais ágil e
participativo ao trabalho de professores e educadores. Segundo os autores
(Barcelos et al, 2010, p. 218), a pesquisadora Girotto (2005) defende que uma via
metodológica alternativa, como o ensino por projetos, pode corroborar e superar o
processo de ensinar e aprender fragmentado, disciplinar, descontextualizado,
unilateral e direcionador, que se constata na maioria das escolas. Neste sentido,

414
isso acaba nos levando ao terceiro pilar que é a ideia de diálogo com a cultura
primeira do aluno (Snyders, 1998), pois, o dialogo com esta cultura pode ajudar a
criar um interesse e um engajamento no aprender.
O subprojeto LUCIA, propõe a leitura de obras da literatura infanto-juvenil,
ficção científica, humor e de outros recursos de leitura na educação científica, com
o objetivo de utilizar a literatura para discutir conceitos e temas científicos, assim
como sua relação com a sociedade; criar e conduzir um clube que possa incentivar
tanto o hábito de leitura entre os estudantes como o interesse no saber científico; e
incentivar e amparar a execução de projetos de caráter interdisciplinar pelos alunos.
No LUCIA, partimos de obras iniciais pré-selecionadas que de alguma
maneira, apresentam conteúdos científicos a serem trabalhados. Conteúdos que
vão desde conceitos até a relação da ciência com outras áreas e sua própria
produção. Em linhas gerais as obras que foram trabalhadas podem ser agrupadas
em três grupos: Literatura de ficção científica cômica, Em busca de vida fora da
Terra e Fadas, robôs, deuses, dragões e ciência.
De maneira geral muitas ficções científicas acabam apresentando uma visão
hora pessimista e hora otimista da ciência e do futuro. Nesse sentido, a ciência pode
tanto nos salvar e trazer progresso, quanto nos destruir. Mas, na maioria dos casos,
isto é feito com um tom sério, solene, afinal, e especialmente na ficção científica
clássica, a ciência é uma coisa séria. Mas, algumas obras quebram com essa visão
e apresentam uma ficção com um tom irônico ou humorístico. Ou ainda, satirizam e
brincam com temas padrões da ficção científica como invasões alienígena na terra,
viagens interestrelar, os paradoxos e tecnologias do futuro. Dentre estas obras,
destacamos o Guia do Mochileiro das Galáxias
Na segunda vertente, as leituras recomendadas envolvem livros de ficção
científica cuja história se desenrola em um planeta criado pela imaginação do autor.
Contextualizado dentro de uma hard-science fiction, onde a existência do planeta e
seus atributos físicos possuem alguma explicação dentro do discurso científico,
estes planetas imaginários abrem espaço para uma discussão ampla, tanto do ponto
de vista artístico (valor imaginativo, qualidade da história, etc), científico
(plausibilidade do ponto de vista da física, química, biologia, etc), como também do

415
social (relações políticas e sociais determinadas pelas condições ambientais, entre
outras discussões). As leituras, neste caso, seriam complementadas por
informações e atualidades das diferentes ciências que se relacionam com o assunto,
podendo abarcar a biologia, astronomia, geologia, química, geografia e até mesmo
história e psicologia, evidenciando o potencial interdisciplinar deste tipo de leitura.
Como exemplo, podemos citar o planeta Arrakis, da série Duna.
Por fim, a terceira vertente dialoga com obras de fantasia no qual a ciência
está implícita, como é o caso do Percy Jackson, que apresenta a mitologia grega
em pleno século XXI. Os diversos acontecimentos que envolvem a natureza, a
cultura, o desenvolvimento científico e tecnológico e a sociedade moderna são
ações diretas dos deuses do Olimpo.
Assim, a aproximação entre literatura e ciência acaba permitindo a
elaboração de questões/temas que servem como mote para as atividades. No caso
do Percy Jackson questões como qual seria a relação entre ciência e mitologia? E
a causa da ocorrência de terremotos se dá pela ira de Hades ou pelas placas
tectônicas? Já no Guia dos Mochileiros, questionamos, como fazer para "mochilar"
pelas galáxias? E no Duna, como viver num planeta desértico? Quais são as
adaptações necessárias a sustentação da vida humana?
Neste sentido, o momento de pré-leitura, acaba se caracterizando por esta
problematização dos temas presentes, tanto na ciência quanto na literatura. Após
esta problematização inicial, os temas eram discutidos e apresentados a partir dos
textos e de materiais de suporte como vídeos e artigos de divulgação científica.

Resultados e observações

As atividades foram iniciadas no primeiro semestre de 2015 contaram com a


participação, em média, de 15 estudantes, sendo alguns do 8º e 9º ano. Os
resultados puderam ser observados tanto no âmbito escolar quanto em relação aos
estudantes. Em relação a escola, a mesma se mostrou bastante receptiva com a
realização do projeto, fornecendo toda a infraestrutura necessária para a realização
do mesmo. Além do espaço, a direção da escola permitiu a aquisição dos livros

416
propostos para sua distribuição aos alunos. Destacamos essa medida, pois, é
importante ter os livros disponíveis para os estudantes lerem. Assim, utilizamos a
prática de deixar os livros disponíveis para empréstimo em todos os encontros,
como representado na foto a seguir.

Foto 1: Alunos escolhendo os livros disponíveis para a leitura.


Por outro lado, houveram alguns impasses devido a próprio cotidiano e da
cultura escolar. No período de festas, por exemplo, a presença dos alunos se
tornava bastante baixa, e o mesmo ocorria nas semanas de reuniões e de
planejamento pedagógico.
Quanto aos alunos, pudemos observar que, de maneira geral, eles
apresentaram um interesse em conhecer as obras apresentadas. Houveram,
inclusive, estudantes que realizaram a leitura integral de livros, de forma voluntária.
Os estudantes se engajaram na participação e na produção de trabalhos, quando
solicitados, embora, em alguns casos os alunos só iam em um encontro e não
retornavam mais.
Trabalhando com os alunos pudemos verificar dois aspectos em relação ao
nível escolar dos participantes. A partir das atividades em leitura, que aconteciam
hora em voz alta e hora em leitura individual, foi possível identificar que alguns
estudantes possuíam um déficit de leitura quando solicitados para realizar uma
leitura em voz alta. Ao mesmo tempo, o mesmo não era percebido nos participantes
que relavam já apresentar uma familiaridade com leitura.

417
Em relação à ciência, vimos que alguns estudantes tinham dificuldade em
identificar a ciência presente nos textos. Acreditamos que parte disso se deve por
não conhecerem os temas e só estarem iniciando o estudo da ciência recentemente.
Alguns estudantes traziam um certo conhecimento sobre os temas científicos, mas,
em muitos casos era um tanto limitado. Além disso, foi também possível encontrar
participantes que não se interessavam pela discussão científica, ficando mais
interessados no aspecto literário.
Considerações
A pesquisa se propôs a apresentar os resultados preliminares da aplicação
de um clube de leitura que utiliza como base textos de fantasia e ficção científica
que possibilitem o desenvolvimento tanto do gosto pela leitura quanto pela ciência.
De maneira geral, pudemos observar a dificuldade de aliar as duas áreas com
atividades que sejam atraentes para os participantes. No período em que foi
realizado, foi possível tratar tanto de temas literários quanto científicos, o que nos
possibilitou observar na prática a importância da aproximação entre ciência e
literatura em atividades didáticas.
Observamos, também, que a proposta para implementação de atividades
transdisciplinares, embora seja bem recebida no espaço escolar, é bastante
complicada. Acaba sendo algo novo até para os alunos que já estão acostumados
com o ensino fragmentado.
Como continuidade da pesquisa, esperamos aumentar o acervo de obras
trabalhadas de maneira a possibilitar que os estudantes participantes também
sugiram obras que gostariam de ler. Além dos livros, também esperamos
desenvolver novas dinâmicas de intervenção. Embora estivéssemos utilizando o
espaço do contra turno com a ideia de fazer atividades não formais, sentimos que
as atividades desenvolvidas ainda ficaram muito presas a sala de aula. Nesse
sentido, acreditamos que pensar atividades mais dinâmicas e que possam explorar
todo o espaço escolar, podem ajudar a aumentar a participação dos estudantes.

418
Referências
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perspectiva cultural em aulas de Física. Caderno Catarinense de Ensino de Física,
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da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1989.

419
COMBINANDO SABERES CRUZADOS DE LÍNGUA E DE AMBIENTES
DIGITAIS 3D COMO SUPORTE PARA ESTIMULAR APRENDIZAGEM
TRANSDISCIPLINAR E CONTINUADA: UMA EXPERIÊNCIA DE USO A PARTIR
DO ENSINO FUNDAMENTAL

Jorge Ferreira Franco167


INTRODUÇÃO

Como integrar tecnologias de informação e comunicação contemporâneas


em atividades educativas que suportem aprimorar conhecimento científico, técnico
e letramento digital tem sido um assunto recorrente na educação básica e no ensino
superior (Franco; Lopes: 2014; Gabriel: 2013; Maier; Warren: 2000; Wilson et al:
2013). Além disso, há uma lacuna no desenvolvimento e divulgação de atividades
educativas longitudinais que integrem saberes cruzados de língua e cultura digital e
contribuam para reduzir o problema de como aprimorar conhecimento embasado
nas letras de modo transdisciplinar (Mackenzie: 2015).
Por outro lado, através de uma análise de scripts/programas de computador
e de sua representação simbólica via interfaces bidimensionais (2D) e 3D, por
exemplo, em páginas da internet e ambientes digitais 3D desenvolvidos por
estudantes do ensino fundamental, identifica-se uma combinação transdisciplinar,
que envolve saberes cruzados de línguas ‘inglesa e portuguesa’, arte, geometria,
matemática, estratégias pedagógicas,
conceitos e técnicas de ciência da
computação, tais como os de
computação gráfica e de linguagens de
programação de computadores (Franco;

167
Departamento de Ciência da Computação – Instituto de Matemática – Universidade Federal da Bahia –
UFBA

420
Lopes: 2012, 2013; Franco: 2014), figura-1.
Figura.1 À esquerda, um programa de
computador escrito na linguagem de
marcação Virtual Reality Modeling
Language (VRML), com suporte das
línguas inglesa e portuguesa. Na imagem
à direita sua representação simbólica,
propiciando visualização de uma
combinação de saberes envolvendo
cultura digital e arte, por exemplo, com uma simulação 3D da obra minimalista “Free
Ride” (Wikepedia Minimalism: 2015)
Aprofundando investigação em trabalho prévio (FRANCO et al: 2006), essa
‘combinação pedagógica e técnica’ tem sido utilizada no uso educacional e na
construção de sistemas digitais e ambientes/interfaces 3D que propiciam produção
e visualização de informação e interações humano-computador (IHC) em tempo
real, por exemplo, como em (CHEN: 2006; SHARP; ROGERS; PREECE: 2013;
SEBESTA: 2011).
Na literatura referente ao uso de ambientes digitais 3D (AD3D) e suas
tecnologias na educação (AVATAR: 2011; Youngblut: 1998). E, no contexto de
desenvolvimento deste trabalho, os impactos qualitativos oriundos de atividades
educacionais experimentais com suporte de AD3D, que têm beneficiado estudantes
e ex-estudantes de uma escola pública de ensino fundamental, indicam, que o uso
desta combinação pedagógica e técnica, na Educação, traz vantagens.
Principalmente, se for utilizada com ênfase em integrar o desenvolvimento de
atividades educativas com reflexões críticas e interativas entre os indivíduos sobre
a aplicação de tecnologias digitais. Desta maneira, pode e os têm ajudado construir
consciência e ou modelos mentais sobre a relevância de conhecer, compreender,
dominar e aplicar tais conhecimentos ao longo da vida. Por exemplo, são
identificadas vantagens relativas a estimular os indivíduos aprender a aprender e
ampliar habilidades cognitivas e técnicas, no que tange a se engajar em incursões

421
mais aprofundadas e vitalícias na busca e aprimoramento de conhecimento
(FRANCO; LOPES: 2012; FRANCO: 2014; FRANCO: 2015).
Esta combinação pedagógica e técnica suporta estimular a capacidade dos
indivíduos de interagir e aprender novas linguagens e suas técnicas, de expressar
ideias e de aprender continuamente (SEBESTA: 2011, p.21-23), de modo integrado
com conceitos científicos do currículo escolar como em (Professor Virtual 3D: 2015).
Ela embasa interações humano-computador (IHC), reflexões individuais e
colaborativas sobre compreender numa perspectiva transdisciplinar a integração de
vários conceitos técnicos, científicos, artísticos e culturais, tais como os relativos ao
uso de recursos técnicos contemporâneos da cultura digital inspirada na Web3D
para produzir e visualizar informação com base em programar computadores.
Assim, participar deste processo educativo, que enfatiza produção e visualização
de informação via programação de computadores e aplicação do conceito de
hipertexto, tende a contribuir para que os indivíduos entendam a relevância de
estudar, compreender, dominar e ampliar conhecimento referente às letras e os
meios digitais que elas compõem, na vida cotidiana.
Pois, para Ware (2004, p.15-16), em essência, as letras são símbolos
convencionais arbitrários socialmente construídos e difíceis de aprender,
requerendo dos indivíduos bastante dedicação ao interagir com elas a fim de
apreenderem o conhecimento que as envolve. Este autor exemplifica que mesmo
dominando a habilidade da fala, as crianças levam centenas de horas para aprender
a ler e escrever.
O engajamento dos indivíduos no processo educativo de aprimorar domínio
das letras, que engloba aprender e aplicar saberes cruzados de língua e ambientes
digitais 3D, pode ajudar a reduzir problemas, tais como a necessidade de decrescer
o alto percentual de alfabetismo funcional da população brasileira (INAF: 2012); de
promover alfabetização midiática e informacional dos indivíduos (WILSON et al.:
2013), estimular ensino comunicativo de língua estrangeira com base em significado
e contexto numa realidade em que a comunicação é mediada pelo computador
(HANNA: 2015); aprimorar capital humano através de uma educação mais integral
e continua, sintonizada com as evoluções dos meios digitais e a necessidade de

422
indivíduos com habilidades cognitivas mais efetivas para o mundo do trabalho (IBM:
2015); e contribuir com estudos relativos a como promover a formação e
aprimoramento de ecossistemas educacionais que englobem aprendizagem/ensino
de ciências, engenharia, tecnologia, artes, matemática em ambientes educativos
formais e informais (NRC:2015).

Objetivo Deste Trabalho, Linguagens e Frameworks da Internet 3D


Com suporte da combinação pedagógica e técnica descrita, este trabalho
apresenta uma análise com enfoque transdisciplinar de atividades educativas
experimentais que têm estimulado estudantes se tornarem autores de interfaces 3D,
através da aplicação de recursos educacionais abertos (REA: 2015), tais como
linguagens de marcação/programação e de frameworks de produção e visualização
de informação da internet, como mostra o exemplo na figura1.
Essas linguagens e frameworks são acessíveis e hipertextuais por serem
projetados para compor a Web. Eles têm sido objeto de pesquisa e desenvolvimento
(P&D) evolutivos (FRANCO; LOPES: 2012). Um exemplo é o framework (X3DOm,
2015). P&D evolutivos têm proporcionado que linguagens e frameworks de
programação e visualização de informação sejam utilizados como instrumentos
adaptáveis, inclusivos e de companhia permanente em processos formais e
informais de ensino e de aprendizagem (FRANCO; LOPES: 2012; Professor virtual
3D: 2014; FRANCO: 2015).
Com o uso de linguagens e frameworks da internet 3D em seus processos
educativos, os indivíduos têm aprimorado concomitantemente conhecimento
científico, técnico e sua alfabetização/letramento digital, na escola e em casa, em
um processo de educação continuada (FRANCO; LOPES: 2012; 2013; Franco,
2015), que beneficia os indivíduos através do domínio e da aplicação, na educação,
de técnicas de produção de visualização de informação (CHEN: 2006) intrínsecas à
revolução digital (GABRIEL: 2013; WILSON et al.: 2013), conforme requer a
preparação das e dos cidadãos para serem atuantes na sociedade do conhecimento
(CASTELLS: 2003; RONCHI: 2009).

423
Metodologia e Estratégias de Aplicação
Com suporte de técnicas relativas à pesquisa-ação, através de observação
longitudinal formal e informal (Sharp; Rogers; Preece: 2013; Mills: 2014), e
estratégia de aprender fazendo (Ronchi: 2009), tem sido apresentado aos
estudantes via projeto pré ou pós-aula no laboratório de informática da escola, e
quando possível durante as aulas de língua inglesa, as técnicas, softwares,
linguagens e procedimentos necessários para desenvolvimento de ambientes
digitais 3D com base em tecnologias da internet. Fora do horário de aula de língua
inglesa, os estudantes têm participado do processo educativo por adesão voluntária.
As atividades educativas têm sido realizadas durante o período de autoformação do
autor deste texto, quarenta e cinco minutos, uma vez por semana. Para atender com
mais qualidade o processo educacional dos estudantes o número máximo de alunas
e alunos convidados é doze.

Análise com enfoque transdisciplinar


O aprofundamento de conhecimento através de estudos colaborativos com
os estudantes utilizando a combinação pedagógica e técnica citada tem promovido
aprimoramento de habilidades cognitivas como as de ler, escrever, pesquisar,
comunicar, pensar espacialmente, memória e atenção, aprender a aprender de
maneira integrada (SHARP; ROGERS; PREECE: 2013). As e os estudantes que
têm participado do projeto, ao ler e ou escrever programas com linguagens
VRML/X3D e o framework X3DOM e visualizar sua representação simbólica em
tempo real, aprendem a fazer associações inter e transdisciplinares (FRANCO;
LOPES: 2012; 2013; FRANCO: 2014; 2015).
Durante as atividades educativas e interações humano-computador e
reflexões suportadas por tecnologias da Web3D, as associações inter e
transdisciplinares contribuem para formação de modelos mentais nos indivíduos que
ajudam em seu aprimoramento vitalício. Os indivíduos escrevem, leem e ou reusam
o código de um dado programa em língua inglesa, fazem os comentários escritos
das funcionalidades do programa em língua portuguesa figura-1. De maneira

424
modular, no programa são construídos / descritos objetos digitais, com uso de
diversos conceitos da matemática para atribuir aos objetos digitais tamanhos, por
exemplo, números (inteiros e decimais; negativos e positivos tendo como referência
o plano Cartesiano); conceitos de geometria relativa à forma dos objetos (box, cone,
cylinder, sphere, text shape), cor, movimento, e posição espacial. Há ainda
associação com a cultura digital relativa à produção de conteúdo tridimensional
(3D), que é uma tendência da indústria do entretenimento, por exemplo, encontrada
nos vídeos games e nas criações cinematográficas. O processo de produção de
conteúdo digital 3D ajuda também na compreensão dos conceitos de luz e de textura
e de como produzir e aplicar luz e textura em um objeto. Os conceitos de luz e
textura são estudados na disciplina de Artes. Este processo educacional interativo
tem beneficiado as e os estudantes proporcionado que experimentem com técnicas
e conceitos relativos à ciência da computação, computação gráfica interativa e
realidade virtual ao programarem computadores, visualizarem e interagirem em
tempo real com objetos digitais. Este enfoque no uso pedagógico e técnico
transdisciplinar de tecnologias da Web3D tem estimulado e propiciado que os
indivíduos tenham embasamento para utilizar essas e outras tecnologias afins como
suporte ao seu aprendizado e protagonismo vitalícios, levando-os também a
incursões profissionais e empreendedoras, a partir do uso consciente dos
conhecimentos técnicos relativos a essas tecnologias de modo integrado com
saberes científicos do currículo instigados e aplicados desde o ensino fundamental.

Considerações finais
Resultados qualitativos deste trabalho indicam que a combinação
pedagógica e técnica descrita suporta aprendizagem/ensino com princípios
transdisciplinares (WEIL; D’AMBROSIO; CREMA: 1993), estimula habilidades
cognitivas como pensar espacialmente (Chen: 2006), ler e comunicar (SHARP;
ROGERS; PREECE: 2013), domínio técnico para usar recursos digitais com
consciência (FRANCO; LOPES: 2012; FRANCO: 2014). Com sua aplicação em
atividades educativas experimentais, esta combinação que engloba saberes
cruzados de língua e AD3D tem inspirado aprimoramento sociotécnico, educação

425
continuada e atitudes empreendedoras dos indivíduos (FRANCO: 2015). E
produzido um ecossistema educacional propicio para estimular construção de outros
ecossistemas educacionais que englobem aprendizagem/ensino transdisciplinar de
letras, ciências, engenharia, tecnologia, artes, matemática em ambientes educativos
formais e informais.
Estes resultados empíricos qualitativos alcançados no ensino fundamental, a
partir do uso da combinação mencionada, podem contribuir com estudos e reflexões
em trabalhos de pesquisas que têm objetivos similares, ensino superior. Por
exemplo, o trabalho do grupo de pesquisa ‘Ferramentas de Interação e Simulação
Aplicadas aos Processos Educacionais, Tecnológicos e Sociais (FISAPETS)’, que
investiga “novas perspectivas educacionais e sociais para a geração, representação
e exploração de conhecimentos hipertextualizados e dinâmicos”. (FISAPETS:
2015).

Agradecimentos
Agradecemos aos estudantes, educadores, pesquisadores e instituições que de
algum modo têm contribuído para a sustentabilidade deste trabalho. Que sejam
abençoados.

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429
DO CAUSO À TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA:
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE MEDIAÇÃO DE LEITURA E
PRODUÇÃO HIPERMIDIÁTICA

Juliana Pádua Silva Medeiros168

Introdução

A sociedade, nos últimos séculos da grande marcha humana, vem sofrendo


profundas e céleres transformações, o que, consequentemente, esculpe outros
paradigmas nos modos de ser, pensar, sentir, agir e se comunicar.
As revoluções tecnológicas, por exemplo, desencadeiam processos
comunicativos cada vez mais complexos, bem como instauram/rearticulam novas
formas de produção, circulação e recepção das linguagens. Essa interação entre o
homem e técnica provoca também expressivas mudanças no âmbito cultural,
histórico, político, econômico e das relações humanas, impulsionando o surgimento
de uma sociedade interplanetária, transnacional, interativa, cujo arranjo
organizacional assemelha-se a uma teia que interconecta o globo em uma espécie
de urdidura sem centro e sem periferia.
Nessa era hipercomplexa, é possível notar que os avanços tecnológicos, as
conexões em redes e as estruturas híbridas solicitam, então, uma maior consciência
sobre o esfacelamento de dicotomias clássicas e a respeito do comportamento
caótico do universo. Sob esse compasso, o grande desafio dos educadores, no
terceiro milênio, é abordar tal complexidade de pensamento e de vida, pois a
sociedade contemporânea tem se esboçado como uma gigantesca contextura que,
vertiginosamente, conecta tudo e todos, à semelhança da biblioteca de Babel
sonhada por Borges, subjugando qualquer pensamento simplificador.
Nesse sentido, faz-se urgente um processo de ensino e aprendizagem capaz
de garantir experiências complexas e plurais, haja visto que os novos paradigmas
educacionais pleiteiam um leitor e produtor de textos apto a percorrer a

168
USP/CSD

430
multiplicidade de caminhos em uma arquitetura labiríntica, cujos fios heterogêneos
conduzem o indivíduo na grande aventura de ler e outorgar sentidos, experiência
única e humanizadora.
Por isso, nos últimos três anos, nas aulas de Língua Portuguesa da primeira
série do Ensino Médio no Colégio São Domingos, tem sido realizado um trabalho
de leitura e produção de textos nos mais variados
códigos/suportes/mídias/linguagens, extrapolando, assim, ao universo da escrita,
ou seja, desenvolvendo “[...] competências comunicativas dos estudantes que vão
muito além do conhecimento do vocabulário e da gramática para formar sentenças
gramaticalmente corretas no aprendizado formal da expressão verbal literária.”
(MultiRio: 2011, 71).
No ano de 2013, por exemplo, em face desse mundo cada vez mais inter-
pluri-multi e transcultural, onde as fronteiras esfacelam-se, buscou-se oferecer aos
alunos meios para que eles pudessem compreender e usar os sistemas simbólicos
das diferentes linguagens como modo de organização cognitiva da realidade,
tornando-se, efetivamente, protagonistas no processo de produção dos sentidos.
Para tanto, como será descrito adiante, os estudantes foram enveredados para o
universo da tradução intersemiótica, no qual puderam compreender que “[...] a
leitura para a tradução não visa captar no original um interpretante que gere
consenso, mas ao contrário, visa penetrar no que há de mais essencial no signo”.
(PLAZA: 2013, 36).

Apresentação do projeto pedagógico

Na busca de uma prática que incorpore e sistematize as diversas linguagens


presentes na sociedade contemporânea, uma espécie de projeto poético
pedagógico ofertou aos discentes experimentar a diversidade cultural, de
pensamentos e de meios comunicativos, proporcionando (multi)letramentos,
plurilinguismos, experiências plurais, ensaios... enfim, o exercício da cidadania.

431
Nessa esteira, foram criadas estratégias capazes de promover diferentes
práticas sociais de leitura e também de produção textual, cuja vivência
proporcionasse o desenvolvimento de uma postura crítica/sensível diante de
valores/informações/discursos veiculados e construídos pelos objetos culturais nos
mais vastos meios de expressão.
Na (a)ventura de alargar significados, o aluno foi desafiado, portanto, a
movimentar diferentes áreas do saber, expondo o seu repertório individual. Isso se
diferencia, completamente, de um trabalho realizado ao longo de anos de uma
tradição escolar nacional, o qual se limita a procura de uma resposta e modelo
“corretos”169 sem aprofundamento ou reflexão.
Nessa senda, no que tange a disciplina de Língua Portuguesa, tentou-se
promover a apreensão dos recursos da linguagem e dos contextos de produção
(tempo/espaço, gênero, materialidade) para que, assim, o estudante construísse
sentidos e diálogos entre épocas, culturas, saberes e textos.
O exercício desse olhar sensível, mas também inteligível, permitiu aos alunos
desdobrarem-se pela vastidão do que não se sabe e não se limitarem aquilo que se
conhece. Tal abordagem, que não se restringiu a uma leitura e uma produção
meramente com meios de comunicação, mas nos/pelos/entre/para, engendrando
saberes de outras áreas, como História, Geografia, Artes etc.
Desse modo, no espreitar de uma realidade abstrata, incerta e em constante
transformação, foi proposto um gesto investigativo que revelasse, no exercício da
mediação, um projeto pedagógico que garantisse “[...] reflexão e oferta de uma
infinidade de outras referências, outros códigos e valores, com o objetivo de
promover um amadurecimento e um questionamento no consumo de bens, serviços,
informações e saberes.” (MultiRio: 2011, 77).
Quanto à experiência propriamente dita, o presente relato irá apresentar
maiores detalhes a seguir.

169
Não há confrontos de leituras e pontos de vista, mas a imposição de uma análise “una” e correta, privilegiada
pelo docente, anulando qualquer acontecimento dialógico no seio da sala de aula. No Colégio São Domingos, a
mediação de leitura e de produção em sala de aula concretizou-se como uma atividade dialógica guiada pelo
educador atento aos discursos, às vozes e, até mesmo, aos silêncios dos alunos, assegurando que as
(inter)subjetividades aparecessem, se colocassem à prova, se ensaiassem, se inventassem e se transformassem,
como sugere Larrosa (2004).

432
Descrição do material utilizado

Desde o ano de 1996, o projeto Quem conta um conto aumenta um ponto


registra parte da memória oral do Vale do Jequitinhonha, transcrevendo narrativas
contadas por moradores dessa região. Os textos que encapsulam a cultura
jequitinhonhense, além de transcritos, são reescritos e publicados em livretos que
acompanham CDs com o áudio original e versões recontadas. Sob os cuidados da
professora Sônia Queiroz, da Universidade Federal de Minas Gerais, esse material
paradidático vislumbra aproximar a literatura oral das salas de aula.
Tal projeto editorial/pedagógico/acadêmico apresenta um registro fiel à fala
do contador e várias recriações elaboradas por jovens escritores do curso de Letras
(UFMG), além de um dicionário bidialetal e várias sugestões de atividades a partir
da narrativa oral.

Capa do livreto

Em sala de aula, na primeira série do Ensino Médio, no Colégio São


Domingos, em 2013, foi o utilizado o material como disparador para se pensar as
inúmeras funções sociais da linguagem, os diferentes suportes textuais, as diversas
formas de narrar, as vastas performances narrativas, a multiplicidade de variações
linguísticas etc.
Cabe pontuar que, antes dessas reflexões de cunho teórico, os alunos
ouviram uma das faixas do CD que acompanha o livreto, na qual o contador Joaquim
Soares Ramos, de Minas Novas (MG), como uma espécie de artesão da memória
do Vale do Jequitinhonha, apresenta, em um português rural, a história de três

433
irmãos que morreram em razão da cobiça. Depois, os educandos receberam a
transcrição da história (dialeto caipira) que, em seguida, foi confrontada com uma
versão na norma culta, sendo os dois textos narrados em terceira pessoa (narrador
onisciente).
Dentre as sortidas estratégias de mediação, os estudantes acabaram
demarcando o campo semântico da história e levantando hipóteses para o
significado de algumas expressões, como, por exemplo, “deitá fogo”. Mais adiante,
os adolescentes leram Tristeza nos caminho da roça170, Oi de oro171, Jovens irmãos
se matam no buraco fundo172 e A pedra do caminho173.
Frente às possibilidades de transpor o arranjo textual do causo para outras
variantes linguísticas, outros focos narrativos, outros gêneros, outros tons, outros
suportes, outros contextos..., propôs-se a experimentação do processo de tradução
intersemiótica do causo A peda de oro, pois:

[...] Não somos somente sujeitos, somos também objetos do e no mundo,


pois nos percebemos dentro do mundo, isto é, nos ouvimos, nos tocamos,
nos vemos. Ao perceber o mundo, percebo-me dentro desse mundo,
percebo meu eu. À sensação do estar "aqui" corresponde outra, a de estar
"ali", em conflito. E mais: a distinção entre o "mundo visual" (o mundo
exatamente) e o "campo visual", ou seja, aquilo que entra na retina com
informação, leva-nos à distinção entre o mundo tal como conhecido e que,
como tal, somente pode existir na memória, e o mundo que observo e sinto.
Esta distinção entre o que se sabe, o que se sente e o que se vê, parece-
nos fundamental para a captação do real, pois constitui a diferença entre a
síntese dos estímulos do passado arquivada na memória do eu, e o conflito
aqui-agora do presente. o não-eu (PLAZA: 2013, 46).

Tradução Intersemiótica
Primeiramente, cabe sublinhar que:

170
O velho pai, um agricultor já sem forças para trabalhar, abandonado pelos filhos, é quem conta a história.
171
Quem conta é o Diabo, um espírito sedutor e malicioso, o qual, tentadoramente, convida os três rapazes a
“cair no mundo”.
172
É narrada a morte dos três irmãos como um fato de interesse para a página policial dos jornais. Cabe sublinhar
que o compromisso com a atualidade transformou a pepita de ouro em pedra de crack.
173
Conta-se a história da morte dos filhos de um velho solitário, escolhendo as palavras pela sonoridade, pelo
ritmo, de modo a tocar os sentidos e a emoção.

434
[...] Jakobson foi o primeiro a discriminar e definir os tipos possíveis de
tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica. [...] A Tradução
Intersemiótica ou “transmutação” foi por ele definida como sendo aquele
tipo de tradução que "consiste na interpretação dos signos verbais por meio
de sistemas de signos não verbais", ou "de um sistemas de signos para
outro, por exempli, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a
pintura", ou vice-versa. (PLAZA: 2013, 11)

A tradução intersemótica pode ser utilizada para resgatar tradições, recriando


o que já existe. Segundo o autor:

Fazer tradução toca no que é mais profundo na criação. Traduzir é pôr a


nu o traduzido, tornar visível o concreto do original, virá-lo pelo avesso. A
partir disso, pode se afirmar que, à maneira de vasos comunicantes,
tradução e invenção se retroalimentam. [...] Inventar formas estéticas é
provocar a aparição de qualidades virtuais, aparências que nunca antes
aconteceram. A criação lida principalmente com singularidades. Não é de
sua natureza o estabelecimento de gerais ou entidades abstratas, mas de
entidades concretas que estabelecem o princípio de significação. A
materialização do signo estético tem a ver com a verdade artística que diz
respeito muito mais a sua inserção no seu princípio constitutivo, isto é, no
seu ícone ou insight, do que a sua dependência de fatos e realidades extra-
artísticas. (PLAZA: 2013, 39-40)

Sob esse veio, os alunos foram convidados a experimentar uma produção174


que brincasse com outras variantes linguísticas, outros focos narrativos, outros
gêneros, outros tons, outros suportes, outros contextos... Nesse processo de
tradução, outros textos foram desdobrando-se, evidenciando uma pluralidade de
modos, semioses, olhares, experiências... Entretanto, como recorte, discorrer-se-á
somente acerca de apenas um produto.
As alunas Ana Luíza Carvalho Sartoreli, Isabela Souza Xavier da Silva, Nina
de Arruda Botelho Van Ham e Luíza Buendia Takeshita produziram um vídeo 175 à
la princesas e disso desdobraram quatro perfis fictícios no Twitter e um blog. Esses
textos virtuais, apresentando o ponto de vista de cada personagem advinda dos
contos de fadas, enlaçavam-se, dando forma a uma narrativa uma e plural em torno

174
Dentre os inúmeros produtos autorais a partir do causo A peda de oro, apareceram: entrevista fantástica, em
áudio, com o capeta; atualização da narrativa em formato audiovisual; diário de veio poético do Coisa-Ruim;
carta de despedida do pai dos jovens mortos; cartografia indicando o local onde se encontrava a pedra de ouro;
fotonovela somente com personagens femininas; história em quadrinhos reconfigurando o tipo de pedra
encontrada (crack), e costura de textos hipermidiáticos.
175
https://www.youtube.com/watch?v=wBKrmW2qDVQ

435
da cobiça (desejo de se casar com o príncipe encantado), como se pode
acompanhar a seguir:

Perfis das personagens

Fragmento do blog da Belle: http://belleprincessblog.tumblr.com

436
Fragmento da página do Twitter da Belle: http://twitter.com/_BellePrincess

Fragmento da página do Twitter da Cinderella: http://twitter.com/_CinderellaP

Fragmento da página do Twitter da Branca de Neve: http://twitter.com/_BrancaNeve

437
Fragmento da página do Twitter da Chapeuzinho Vermelho: http://twitter.com/_ChapeuzinhoV

Considerações Finais

A sala de aula constitui-se como um lugar propício de experimentações e,


portanto, um campo rico de reflexão pedagógica. A experiência relatada, por
exemplo, possibilitou observar que os produtos dessa vivência permitem vislumbrar
não apenas (inter)subjetividades, mas outros desafios no campo da leitura e da
produção textual, visto que, a cada nova configuração, os sentidos vão se
encapsulando e esculpindo redes ainda mais complexas de significação.
Por isso, acredita-se que as estratégias pedagógicas da disciplina de Língua
Portuguesa não devem limitar-se somente ao uso das tecnologias e meios de
comunicação, incitando um trabalho meramente instrumental, mas sim contemplar
de muitas formas (códigos, suportes, materialidades) as diversidades linguísticas e
culturais, o conhecimento pulsante, a provisoriedade do saber, os paradoxos, as
(inter)subjetividades...
Do causo à produção hipermidiática de uma nova versão dos contos de
fadas, as estudantes perceberam que:

[...] a tradução para nós se apresenta como “a forma mais atenta de ler” a
história porque é uma forma produtiva de consumo, ao mesmo tempo que
relança para o futuro aqueles aspectos da história que realmente foram
lidos e incorporados ao presente (PLAZA: 2013, 2)

438
Ademais, “[...] a tradução como prática intersemiótica, depende muito mais
das qualidades criativas e repertoriais do tradutor, quer dizer, de sua sensibilidade,
do que da existência apriorística de um conjunto de normas e teorias [...] (PLAZA:
2013, 210).

Referências

LARROSA, Jorge. Revista Educação e Realidade. A operação ensaio: sobre o


ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. In.: Porto Alegre:
UFRGS, v. 29, p. 27 -43, jan./jun., 2004.
MULTIRIO. A escola entre mídias. Rio de Janeiro: MultiRio, 2001.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013.
PRÓ REITORIA DE EXTENSÃO. Quem conta um conto aumenta um ponto. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1998, v. 17 (Coleção Quem Sabe Faz).

439
O DESAFIO DE (RE)PENSAR O PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM,
EM FOCO: RECURSOS AUDIOVISUAIS E INTERTEXTUALIDADE.

Juliana Zanco Leme da Silva 176

Introdução

A sala de aula é um desafio constante ao educador que pensa em seu aluno


como sujeito do processo ensino-aprendizagem, pois esse olhar o leva a buscar e
encontrar meios, para que os alunos desenvolvam a leitura crítica das diversas
linguagens177 que os rodeiam. Se analisarmos a história da educação brasileira, o
desafio se agiganta, uma vez que tivemos um início desastroso, pois logo no 1º
período (1549-1759), há “o monopólio da vertente religiosa da pedagogia
tradicional” (SAVIANI, 2011, p. 14), visto que Tomé de Souza, o primeiro governador
geral do Brasil, traz consigo os jesuítas liderados por Manuel da Nóbrega e esses
(em obediência à ordem real de doutrinar, ensinar e converter os índios à fé cristã)
iniciam o processo de aculturamento, ou seja, menosprezam a cultura e tradição
indígena e impõem a cultura portuguesa.
Anos mais tarde, Freire nos faz refletir que o filme da educação colonizadora
nunca ficou ultrapassado, ao contrário, foi repetido e assistido, muitas e muitas
vezes no cotidiano escolar, pois aprendemos que “o educador é o que atua; os
educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador”
(FREIRE,1987, p. 59).
Pensar o educando e o educador como sujeitos do processo ensino-
aprendizagem é, praticamente, ter de olhar para os modelos vivenciados no período
de nossa formação (educação básica e superior) e repensá-los, pois quantas vezes
vivenciamos e concordamos com a educação intitulada por Paulo Freire (1987)
como bancária, na qual o professor é o detentor de todo o conhecimento e o
deposita nos educandos (nós) e o retira em uma avaliação?

176
Mestrado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil, Professora da Faculdade Mogiana
do Estado de São Paulo
177A linguagem, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1996, p. 22), é “uma forma ação interindividual

orientada por uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais
existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da sua história”.

440
Então, o que seria ser sujeito do processo ensino-aprendizagem? Ser sujeito
implica em participar ativamente do processo que não é só de ensino e sim de
ensino-aprendizagem, ou seja, construir o conhecimento em um processo de troca,
não apenas estar no mundo, mas atuar nele.
Seria possível agirmos como seres transformadores de uma realidade,
mesmo que tenhamos como modelo a educação reprodutora? A resposta é
afirmativa, desde que, como propõe Freire (1996, p.17), tenhamos consciência de
que “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação”
E é com base nesses preceitos inovadores que exigem um novo olhar ao
processo ensino-aprendizagem, que discutimos e expomos, neste trabalho,
atividades didáticas desenvolvidas em sala de aula. Procuramos “pensar certo”,
como nos sugere Freire (1996, p. 21), isto é, não limitar as aulas à mera
transferência de conteúdo, mas sim construir o conhecimento em conjunto:
educador e educandos.
Para tanto, dividimos o trabalho em três tópicos. No primeiro, A roda da
leitura, narramos como surgiu a ideia do trabalho com recursos audiovisuais e a
intertextualidade. O segundo tópico, intitulado Caminhos da aprendizagem,
destinamos à narrativa do desenvolvimento do trabalho em sala de aula, expomos
as ações didáticas passo-a-passo. No último, Enfim aprendemos?, refletimos e
fazemos considerações sobre o processo ensino-aprendizagem.

A Roda da Leitura
A Roda da Leitura é uma atividade didática desenvolvida, quinzenalmente,
com os alunos dos 9º anos, na Escola Municipal do Ensino Fundamental Pref.
Waldomiro Calmazini, situada em Mogi Guaçu – SP, que consiste em um momento
“diferente”, no sentido amplo da palavra, tanto em relação à distribuição física da
sala, como ao desenvolvimento da atividade didática. Fazemos um círculo, a fim de
que os comentários e reflexões sejam “lidos” por todos, o que envolve a leitura da
linguagem corporal e da verbal, e, neste momento, compartilhamos nossas
experiências leitoras.

441
O trabalho objetiva o desenvolvimento da oralidade e criticidade, tais
objetivos são evidenciados nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
Portuguesa (1997, p.33), pois apontam que o educando deve “valer-se da
linguagem para melhorar a qualidade de suas relações pessoais, sendo capazes de
expressar seus sentimentos, experiências, ideias e opiniões, bem como de acolher
interpretar e considerar os dos outros, contrapondo-os quando necessário”.
Geralmente, iniciamos a atividade com a exposição do professor, o qual
relata de maneira simples, porém entusiasmada, a última leitura realizada por ele, a
fim de encorajar os alunos a relatarem suas experiências leitoras, que não precisam
estar limitadas à mera narração das histórias, mas em emitir opinião sobre a
construção do livro (linguagem utilizada, público alvo, entre outras coisas).
Em uma dessas “conversas”, comentamos sobre o livro Dom Quixote de la
Mancha de Miguel de Cervantes e os alunos se envolveram na história e pediram
para que desenvolvêssemos um trabalho sobre o clássico. Apresentamos, então,
algumas versões da obra e elegemos para o desenvolvimento da atividade o livro
Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato.
Paulo Freire (1996, p. 44) nos faz refletir que o educador deve “assumir o
dever de motivar, de desafiar quem escuta, no sentido de que, quem escuta diga,
fale, responda”. No momento em que narramos a história de Dom Quixote, os alunos
foram desafiados e ouvidos, por isso inserimos no planejamento das aulas o
trabalho com o livro. No entanto, precisaríamos planejar quais seriam os passos
seguintes dessa nova atividade e, ainda, qual seria o produto final.
Nessa mesma Roda de Leitura, discutimos possíveis atividades que
poderiam ser realizadas como produto final da leitura do livro Dom Quixote das
Crianças: apresentação de um teatro, produção de um vídeo, resumo da obra,
seminários expositivos, entre outros.
Decidimos que seria a produção de um vídeo. Logo, precisaríamos conhecer a
linguagem audiovisual, também necessitaríamos conhecer o gênero textual178
“roteiro”, para que o trabalho fosse realizado. Consequentemente, analisaríamos a

178“Constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três
elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional” (PCN, 1996, p.23).

442
questão da intertextualidade, já que o livro é um intertexto da obra de Cervantes,
assim como o vídeo que seria produzido pelos alunos como produto final.
Trabalharíamos a intertextualidade da perspectiva da transformação e
assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o
comando do sentido, não como uma soma confusa e misteriosa de influências, como
nos aponta Elisa Guimarães (2009). Esclareceríamos que o trabalho de recriação
de um texto permite novas leituras de perspectivas diferentes, o que possibilita
diversidades de formas.

Caminhos da aprendizagem
Paulo Freire (1996, p. 16) nos lembra que “não há ensino sem pesquisa e
pesquisa sem ensino”, concordamos com o autor, por isso antes de sequenciarmos
o trabalho, pesquisamos “caminhos” que pudessem facilitar o processo ensino-
aprendizagem e encontramos um vídeo intitulado Dom Quixote como gostaríamos
que fosse, que narra a história de Dom Quixote e Miguel de Cervantes, pela ótica
de várias personalidades americanas, as quais enfatizam a influência de Quixote
em suas vidas, entre elas Mário Cuomo, ex-governador de Nova Iorque. Contudo,
não queríamos que a análise do vídeo ficasse limitada, apenas, a conhecer a(s)
narrativa(s), mas sim, objetivávamos a apropriação dos recursos para a produção
do vídeo, ou seja, o (re)conhecimento da linguagem audiovisual.
Logo, percebemos que precisaríamos nos alfabetizar nessa nova linguagem,
uma vez que “perceber, compreender, com-icmplar, observar, descobrir, visualizar,
examinar, ler, olhar” (DONDIS, 2003, p.5), pode parecer simples, principalmente em
relação à linguagem audiovisual, pois está presente em nosso cotidiano, mas
implica um olhar cuidado e criterioso. A partir disso, resolvemos investigar as
nomenclaturas da linguagem audiovisual, para que os alunos entendessem que a
construção de um vídeo vai além da narrativa.
No primeiro momento do desenvolvimento da atividade, assistimos o vídeo,
fizemos o levantamento de nossas impressões e entendemos um pouco mais do
livro Dom Quixote de La Mancha e de Miguel de Cervantes. Em seguida,
procuramos analisar os efeitos da linguagem audiovisual presentes no vídeo, para

443
tanto esclarecemos que os enquadramentos “constituem o primeiro aspecto da
participação criadora da câmara no registro que faz da realidade exterior para
transformá-la em matéria artística” (MARTIN, 2005, p.45), pois precisávamos
compreender o aspecto criador da câmara (ou do câmara?), o quanto tal registro é
necessário para transformar a “realidade” em arte, para a interação do
leitor/telespectador com a criação artística.
Posteriormente, passamos a compreender os planos de uma filmagem e que
“[...]a escolha de cada plano é condicionada pela necessária clareza da narração:
deve existir uma adequação entre a dimensão do plano e o seu conteúdo material”
(MARTIN, 2005, p. 47). Descobrimos que há a necessidade de uma escolha, pois
existem vários tipos de planos, os quais permitem clareza e transmissão de emoção
ao público, de acordo com o conteúdo dramático da narrativa. Procuramos,
didaticamente, mostrar tais ângulos aos alunos, com imagens representativas, aqui,
limitar-nos-emos a breves definições:

a) plano aberto – a câmera fica distante do objeto, de maneira que ele


ocupa uma pequena parte do cenário; b) plano médio– a câmera está a
uma distância média do objeto, de modo que ele ocupa uma parte
considerável do ambiente, mas ainda tem espaço à sua volta; c) plano
fechado – a câmera está bem próxima do objeto, de modo que ele ocupa
quase todo o cenário; d) plano geral – com um ângulo visual bem aberto,
a câmera revela o cenário à sua frente; e) plano conjunto – com um ângulo
visual aberto, a câmera revela uma parte significativa do cenário à sua
frente. É possível reconhecer os rostos das pessoas mais próximas à
câmera; f) plano médio – a figura humana é enquadrada por inteiro, com
um pouco de “ar” sobre a cabeça e um pouco de “chão” sob os pés; g)
plano americano – a figura humana é enquadrada do joelho para cima; f)
primeiro plano – a figura humana é enquadrada do peito para cima; g)
primeiríssimo plano – a figura humana é enquadrada dos ombros para
cima. h) plano detalhe – a câmera enquadra uma parte do rosto ou do corpo
(um olho, uma mão, um pé, etc.). (www.primeirofilme.com.br.)

A compreensão sobre a escolha dos planos, curiosamente, revelou-nos um


“mundo novo” ─ a televisão ─, algo tão comum em nosso dia-a-dia. Então,
passamos a compreender a indagação de Dondis (2003, p.5) “quantos de nós
veem?”, se fizéssemos um levantamento de quantos filmes já assistimos,
comerciais novelas, entre outros, e o quanto compreendemos sem conhecer a

444
linguagem audiovisual, com certeza, a surpresa seria grande. Essa foi uma das
primeiras colocações dos alunos, ao adentrem neste novo universo.
Também aprendemos um pouco sobre os tipos e a importância dos ângulos
na construção do vídeo, como fizemos com os planos, os ângulos também foram
evidenciados por imagens e breves definições

a) ÂNGULO NORMAL – quando a câmera está no nível dos olhos da


pessoa que está sendo filmada. PLONGÉE (palavra francesa que significa
“mergulho”) – quando a câmera está acima do nível dos olhos, voltada para
baixo. c) CONTRA-PLONGÉE (com o sentido de “contramergulho”) –
quando a câmera está abaixo do nível dos olhos, voltada para cima.
(www.primeirofilme.com.br. Grifos Nossos.)

Após a compreensão da utilização dos ângulos e planos, passamos à nova


leitura do vídeo e, oralmente, os educandos expuseram a “nova” interpretação e
percebemos que “precisamos de conhecer melhor as coisas que já conhecemos e
conhecer outras coisas que ainda não conhecemos”, como afirma Freire (1989,
p.40), a fim de que atuemos no mundo de maneira efetiva.
O trabalho seguiu com a divisão dos grupos (máximo de quatro pessoas), a
fim de que os alunos discutissem sobre o vídeo e escrevessem suas impressões,
com base nos novos conhecimentos (recursos audiovisuais). Gostaríamos de
lembrar, aqui, as palavras de Vasconcelos (2010, p.17), “é preciso planejar: o
planejamento (e o constante replanejamento) do curso e das aulas constitui tarefa
indispensável à função docente”, toda a ação docente deve ser planejada, até
mesmo a organização da sala para a divisão dos grupos, pois, neste momento, é
necessário trabalhar o respeito mútuo, a conservação do mobiliário, o tom de voz
durante a execução das atividades, o aceitar das diferentes opiniões.
O resultado foi muito satisfatório, pois pudemos observar que entender e
conhecer os recursos audiovisuais, possibilitou-nos uma maneira nova e diferente
de ler o “mundo”, o que pode ser observado na transcrição que fizemos de uma das
produções dos educandos:
Contar uma história e dar uma entrevista, parecem apenas coisas
habituais, as quais vemos em filmes, desenhos, jornais, propagandas e
novelas. O que não conseguimos muitas vezes perceber, talvez, porque já
nos adaptamos, é que enfoque no rosto, efeito de neblina, sons abafados,
excesso de luz, falta da mesma, olhar para o horizonte ─ foram
predeterminados, tendo cada qual, sua função no modo como o expectador

445
os vê. Para começar, uma densa neblina no plano geral (PG) foi essencial
para se causar o suspense e, ao sair dela, Dom Quixote em sem cavalo, a
câmera deu um close em seu rosto ─ momento de emoção [...] (Fragmento
– Texto 1 – 9º A)

Verificamos, também, que a produção textual “conjunta” viabilizou, além da


interação, a aprendizagem entre pares (colegas), desde a discussão sobre a
narrativa, os recursos audiovisuais utilizados (planos, ângulos, enquadramentos e
sons), até a composição do texto (melhor maneira de escrever as ideias, a correção
de erros ortográficos, a substituição de palavras e a reelaboração de parágrafos),
fez-nos compreender concretamente que a “leitura e escrita são práticas
complementares fortemente relacionadas, que se modificam mutuamente no
processo de letramento [...]” (PCN, 2006, p.40). Logo após a produção textual, os
alunos expuseram os textos aos colegas.
O próximo passo seria a divisão dos capítulos do livro Quixote das Crianças
entre os grupos, que foi realizada proporcionalmente (mais ou menos seis capítulos
por grupo). Ressaltamos que a leitura dessa adaptação, fará com que os alunos
conheçam o clássico de Miguel de Cervantes, pelos olhos de Monteiro Lobato, que
é representado pelas personagens do sítio, cada uma com sua especificidade, o
que implicará aos alunos empenho e leitura crítica dos acontecimentos no sítio, para
criarem suas próprias personagens. Além disso, o livro é repleto de ilustrações, as
quais foram feitas por Camilo Riani179, ou seja, os alunos terão acesso à (re)leitura
das duas narrativas presentes na obra, através do olhar do artista, que,
possivelmente, auxiliarão à produção textual do roteiro (produto final do trabalho).
Ao planejarmos a sequência das atividades, que seriam extraclasse ─ leitura
do livro, gravação do vídeo e elaboração do roteiro ─, descobrimos que os alunos
não conheciam o gênero textual roteiro, por isso fizemos adequações no
planejamento, pois tal ação pedagógica envolve “o conhecimento do aluno que se
tem e que ser formar” (VASCONCELOS, 2006, p.17).

179 Artista plástico e caricaturista é um rio-clarense de muitas histórias, contadas em caricaturas, ilustrações, pinturas e
instalações dentre muitas aventuras artísticas. Ele é nome conhecido na grande imprensa brasileira, como revista Veja e o
jornal Folha de S. Paulo, e é presidente do Salão Universitário de Humor de Piracicaba, cidade onde também é professor de
artes gráficas na Universidade Metodista de Piracicaba. (www.revistaicone.com)

446
Procuramos meios para elucidar a formulação do roteiro que “não é o último
estágio de um percurso literário. É o primeiro estágio de um filme” (CARRIÈRE,
2006, p. 132). Logo, o término da leitura proposta, seria a mola propulsora à
construção do roteiro, que implica não apenas a escrita do texto, mas o
planejamento detalhado de cada ação das personagens, a reflexão sobre
ambientação das cenas, os sons, o cenário, ângulos, enquadramentos, planos da
câmera, etc.
Descobrimos o vídeo “A criação de um roteiro”, que detalha de maneira
dinâmica a construção do gênero. A utilização desse recurso facilitou a
compreensão dos alunos em relação à importância do “pensar” sobre a escrita
desse gênero textual. Segundo os PCN (2008, p.76), “as atividades didáticas de
produção textual, que envolvem autoria ou criação são complexas, porque o aluno
precisa articular dois planos: o do conteúdo - o que dizer e o da expressão - como
dizer”.
Levando em consideração a complexidade de tal atividade e buscando,
ainda, “caminhos” facilitadores, levamos à sala de aula trechos do filme
“Saneamento Básico” e respectivos roteiros, visto que o vídeo narra a história de
personagens construindo um roteiro e aborda uma questão muito importante na
criação do vídeo: a transposição do roteiro em filme, que segundo Carrière, (2006,
p. 148) “está pronto quando o roteiro tiver evanescido”.
Precisávamos compreender que a elaboração do roteiro era essencial para a
produção do filme, mas que elementos do texto poderiam ser acrescentados,
retirados, modificados, de acordo com a necessidade percebida no momento da
gravação. Ao compararmos o texto escrito e o filme já gravado, evidenciamos várias
diferenças, as quais possibilitaram maior compreensão dessa transposição.
Ressaltamos a importância de tais leituras (vídeo e roteiro), pois “a leitura, por um
lado, nos fornece a matéria-prima para a escrita: o que escrever. Por outro, contribui
para a constituição de modelos: como escrever.” (PCN 1996, p.40)
Para concretização do trabalho, estabelecemos o prazo de 30 dias e o
Momento tira dúvidas, no qual, uma vez por semana, os alunos trariam as principais

447
dificuldades encontradas ao produzirem o roteiro e o vídeo, a fim de que
pensássemos possíveis soluções.
Demorou um “pouquinho” para que os alunos compreendessem, que eles
estavam criando uma nova história, ou seja, um intertexto, visto que as dúvidas mais
frequentes eram: “Podemos “tirar” partes do texto original”?; “Podemos criar o nosso
Pedrinho, a nossa Dona Benta ou a nossa Emília?”, “E o nosso Dom Quixote?”.
Muitas eram as dúvidas, durante o processo de criação do texto, porém a cada
dúvida esclarecida, percebíamos muita animação e envolvimento no trabalho.
No dia marcado para apresentação do trabalho, todos os alunos estavam
presentes nas salas (ansiosos e eufóricos), pedimos a eles que apresentassem os
vídeos e explicassem como foi o processo de criação do roteiro e do filme.
Os alunos pontuaram alguns probleminhas de comunicação e colaboração
dos colegas, porém focaram a explanação na construção do roteiro e do vídeo,
explicaram o porquê das músicas escolhidas para cada cena, como produziram as
roupas das personagens, como pensaram e fizeram trabalho com câmera (ângulos,
planos e enquadramentos), para causarem os efeitos desejados: suspense, medo,
alegria, etc.

Enfim, aprendemos?
Procuramos trabalhar o “ato de ler, que não se esgota na decodificação pura
da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na
inteligência do mundo” (FREIRE, 1989, p.9), em sala de aula, vislumbrando a
compreensão do texto através do estabelecimento de relações de texto e contexto,
o que, para nós, não é muito simples, uma vez que, como já expusemos, somos
frutos da educação impositiva e reprodutora. Porém, estabelecer essas relações e
oportunizar tal leitura aos alunos é, sem dúvida, o primeiro grande passo à
aprendizagem.
A troca de experiências leitoras entre/com os alunos na Roda de Leitura,
desencadeou uma sequência de atividades inusitadas, pois adentramos a um
universo desconhecido, para o qual precisaríamos conhecer e entender os recursos
audiovisuais e (re)planejar várias aulas, de acordo com a necessidade e sugestão

448
dos alunos, a fim de que o processo ensino-aprendizagem fosse efetivo. Na
verdade, aprendemos juntos, desbravamos o novo “mundo” lado a lado, a cada
questionamento, a leitura desse mundo ia se ampliando e impulsionava-nos a nova
pesquisa.
Ao traçarmos os Caminhos da aprendizagem, conseguimos o envolvimento
de todos os alunos em cada passo, pudemos perceber que pisar as terras estranhas
do conhecimento, causou fascínio e prazer a eles, pois a linguagem que era
incomum, passou a ser comum e ao ganharem “voz” durante as discussões,
produções e exposições dos trabalhos, tornaram-se sujeitos do processo ensino-
aprendizagem. Logo, alcançamos os objetivos propostos.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
introdução aos parâmetros Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1996/1997.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução de Fernando
Albagli e Benjamin Albagli. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
DONDIS, A. Donis. Sintaxe da linguagem visual. Tradução: Jefferson Luiz Camargo.
2ª ed. ─ São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
____________. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
____________. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São
Paulo: Cortez, 1989.
GUIMARÃES, Elisa. Texto, discurso e ensino. ─ São Paulo: Contexto, 2009.
LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das Crianças. ─ São Paulo: Globo, 2010.
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Tradução: Lauro António e Maria
Eduarda Colares. ─ Lisboa Portugal: Dinalivro, 2005.
SAVIANI, Dermeval. Histórias das ideias pedagógicas no Brasil. 3ª ed. Campinas –
SP: Autores Associados, 2011.

449
VASCONCELOS, Maria Lucia M., PEREIRA et al. Linguagens na sala de aula do
ensino superior. 2ª ed. Niterói: Intertexto; São Paulo: Xamã, 2010.

Sites consultados:

http://portal.inep.gov.br/internacional-novo-pisa-resultados. Acesso ao site em 28 e


29 de maio de 2015.
https://www.youtube.com. Período de acesso: abril e maio de 2015.
http://www.primeirofilme.com.br. Período de acesso: abril e maio de 2015.
http://www.revistaicone.com. Acesso ao site em 15 de maio de 2015.

450
O MITO DE FAUSTO NA LITERATURA DE CORDEL

Juliane Emiliano180

Introdução

Desde o surgimento e no decorrer do desenvolvimento da humanidade,


muitas histórias, lendas e mitos populares, assim como outras manifestações
culturais serviram para transmitir as tradições de uma sociedade. Dentre as formas
mencionadas abordaremos neste artigo especificamente o mito, uma vez que este,
de acordo com Luis da Camara Cascudo (1978), caracteriza-se como uma
constante em movimento, tendo em sua essência uma ação nitidamente
personalizadora, que transpõe fatos, imagens e histórias de geração a geração,
permeando do clássico ao popular. E é devido a essa circularidade que
destacaremos uma figura emblemática presente em muitas das narrativas do
imaginário popular: o Diabo.
Na era cristã primitiva a imagem pouco aparecia, e quando surgia era
representada “sob traços de um anjo, decaído, sem dúvida, e com unhas recurvas,
mas sem feiura e com um sorriso um pouco irônico” (Delumeau: 1989, 239). Nos
séculos XI e XII houve mudanças no aspecto físico deste ser sobrenatural; a
ilustração agora é de um “Satã de olhos vermelhos, de cabelos e asas de fogo do
Apocalipse de Saint-Sever, o diabo devorador de homens de Saint-Pierre-de-
Chauvigny, os demônios imensos de Autun” (DELUMEAU: 1989, 239).
Já no século XVII a ideia que se pregava sobre o Diabo era, segundo Jean
Delumeau (1989), a de uma figura sedutora que criava diversas armadilhas e
tentações para que o ser humano caísse e pudesse assim levá-lo ao inferno.
Como percebemos há inúmeras reproduções dessa imagem extremamente
simbólica na cultura ocidental. Todavia, tais concepções por muitas vezes,
estiveram vinculadas às doutrinas da igreja, de modo que ensinavam ao povo como

180Mestre em Teoria Literária, pela Universidade Federal de Uberlândia e professora da Faculdade Don
Domênico – Departamento de Letras. Guarujá – SP – Brasil.

451
fugir do Maligno, pois este se transformava em muitas figuras para enganar e atrair
o povo ao pecado, como mostram as seguintes passagens bíblicas: “E não é de se
admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz” (2 Coríntios 11:14),
“Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão
que ruge procurando alguém para devorar” (1 Pedro 5:8). Além dessas
caracterizações muitas outras imagens foram atribuídas a Satanás; segundo Kênia
Maria de Almeida Pereira (2006), desde a Idade Média, a tradição popular
costumava materializá-lo sob inúmeras versões, como serpente, sapo, bode,
cachorro até frade.
Dentro desse contexto muitas obras foram escritas para alertar os humanos
contra a esperteza do Satã; um exemplo, segundo Delumeau (1989), foi o texto
publicado na Alemanha no século XV intitulado “As armadilhas do diabo”, uma vez
que as tentações eram vistas como mais perigosas do que o próprio tormento
eterno. No Brasil, conforme afirma Mário Souto Maior:

a fim de impedir que os homens pecassem tanto, quando a luxúria


dominou as primeiras décadas da colonização, os missionários usavam,
na catequese, o Diabo como arma poderosa. Pintavam seu retrato com
cores fortíssimas, para que o impacto fosse ainda maior. Assim, o Diabo
era preto, usava chifres, tinha o nariz adunco por onde expelia fogo e
fumaça, os pés eram de pato, a cauda terminava em forma de seta, parecia
um morcego, sua presença era sentida por causa do cheiro de enxofre que
exalava e só andava com um espeto na mão. (Maior: 1975, 51)

Como notamos, nos sermões entoados pelos padres na colonização, o


Demônio é descrito com traços carnavalizados, o que nos lembra o estudo do
escritor russo Mikhail Bakhtin (1993), que considera essa imagem grotesca como
uma caricatura negativa e exagerada, porém muitas vezes assim representada para
tentar dominar e causar medo no homem.
E foi desde modo que a figura do Diabo chegou ao Nordeste. Além das
mudanças na representação e a terrível fama, muitos foram os nomes dados ao
Diabo aqui no Brasil como, por exemplo, “Almadiçoado, “Lúcifer”, “Feiticeiro”,
“Dedo”, “Tição”, “Tisnado”, “Tinhoso”, “Rabudo”, “Imundo”, “Inimigo”, “Negrão”,
dentre outros. Respeitado e temido, o Diabo mexeu com o imaginário do povo
nordestino.

452
E é partindo desse conhecimento que nos propomos a escrever sobre a
presença do Maligno na cultura popular brasileira por meio da Literatura de Cordel,
uma vez que esta aparece no Brasil como sinônimo de poesia popular em verso;
segundo Hélder e Lúcio (2001), Literatura de Cordel é a expressão inicialmente
empregada pelos estudiosos da nossa cultura para designar os folhetos vendidos
nas feiras que ficavam pendurados por um barbante. Por ser uma literatura dita
popular de narrativa predominantemente oral, reúne “todas as manifestações de
recreação popular, mantidas pela tradição” (Cascudo: 1978, 27); nela podemos
encontrar histórias de batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos políticos e
sociais do país e do mundo.
Por isso, então, propomos analisar um folheto de cordel do autor Manuel
D’Almeida Filho, considerado um dos grandes cordelistas brasileiros, por ter mais
de 150 obras e ser o autor do mais longo romance em versos até hoje escrito: O
Direito de Nascer, contendo 719 estrofes.
No texto que analisaremos a composição ocorre da seguinte forma: as rimas
posicionadas exclusivamente nos versos pares, sendo a eles aplicada a estrutura
de sete sílabas; os versos assim dispostos são chamados heptassílabos ou
redondilha maior, os quais, de acordo com Norma Goldstein (1999), ocorrem com
muita frequência na literatura de cordel; isso porque, do ponto de vista das leis
métricas, é de fácil composição, bastando a última sílaba ser acentuada, podendo
os demais acentos incidirem sobre qualquer outra sílaba. Outro aspecto importante
são as formas apresentadas: neste cordel ocorrem predominantemente estrofes de
seis versos, chamados de sextilha ou sexteto, composição que popularizou a poesia
escrita de base oral por toda região do nordeste brasileiro.

O Diabo na cultura popular

No folheto, A mulher que enganou o Diabo, D’Almeida Filho narra a história


de um homem chamado Pedro Botelho, um preguiçoso inveterado, que vivia por
invocar Satanás, porque pretendia, em troca de riqueza fácil, dar sua alma e de sua

453
esposa ao demo. No entanto, quando o Tinhoso, personificado num negro, aparece,
é a personagem principal, Maria da Conceição. Esta percebendo a astúcia do
inimigo, elabora um plano para derrotá-lo e salvar o marido:

Segundo uma lenda, até/ O Diabo foi enganado/ Por uma mulher bonita/
Que o deixou desmantelado:/ Trabalhou que quase explode/ Findou
desmoralizado. Agora vamos botar/ A feijoada no prato,/ Saber como
Satanás/ Com a mulher fez um trato/ E como no fim/ Não cumpriu seu
contrato. (Filho: 1986, 3)

Nos versos acima observamos que a mulher sairá vencedora da batalha com
o Tisnado, mas para isso ela terá de ludibriar muito bem fazendo com que ele não
cumpra o trato e quebre o contrato. Todavia nossa análise não abordará somente a
astúcia de Conceição, mas também a de outra mulher que, como ela, usou da
artimanha para conquistar a vitória. Comecemos por entender o desenrolar da
história e como a personagem do folheto conseguiu sair vitoriosa.
Num certo dia, após tanta invocação feita por Pedro Botelho, o Diabo aparece
sob a forma de um negro, que, de acordo com Franklin Maxado (1994), no cordel
muitas vezes foi associado ao Diabo católico Medieval, o qual era negro e horroroso;
entretanto quem o atende é Maria, que, percebendo logo de quem se tratava
pensou: “Agora/ vejo o Diabo em minha frente;/ Valei-me minha Nossa Senhora,/
Dai me força para que/ Vença o “bicho” sem demora” (Filho: 1986, 5).
O pedido de socorro à santa se dava porque Maria tinha muita fé em Deus e
sabia que iria, com a força dos seus argumentos, derrotar o inimigo, pois, conforme
afirma Ian Watt (1997), a única maneira de defender-se do Demônio é ter uma
robusta fé em Deus. Logo, então, ela explica a ausência do marido e questiona a
presença do Dito Cujo em sua casa, dizendo poder atender em nome de Botelho. O
negro, então, esclarece o motivo do comparecimento: “O negócio/ Era somente com
ele/ Mas como a senhora acha/ Que pode se montar nele,/É para lhe dar riqueza/
Em troca da alma dele” (Filho: 1986, 6). A esposa, entendendo a intenção do
bandido, em seguida lhe propõe uma aposta para tentar ludibriá-lo:

Maria, mais uma vez/ Usando o sexto sentido,/ Entendeu perfeitamente/ As


intenções do bandido;/ Armou-se para enganá-lo/ E não perder o marido./
Então disse: - Muito bem,/ Vamos fazer uma aposta/ Escrita em um

454
documento;/ Com termos da proposta/ Nossa assinatura em sangue/ No
contrato fica posta/[...]/ Com sangue de um dedo seu/ Fez o contrato e
assinou;/ O preto assinou também/ Onde Maria mandou,/ Também com
sangue de um dedo/ Que no momento furou. (Filho: 1986, 6-8)

Como percebemos Maria tomou a iniciativa de pactuar com o demo, fazendo


assim uma aliança perigosa, na qual até sua vida estava na aposta. O marido
chegando “quente” em casa questiona a presença do Capeta, de modo que
Conceição explica tudo a ele e diz não precisar se preocupar, pois tinha certeza que
mesmo sendo Satanás nunca iria realizar o que nenhum Diabo faz.
Todavia, acordos entre humanos e o Diabo não acontecem somente na
cultura popular; na erudita temos o exemplo do mito do Dr. Fausto de Goethe que
narra a história de um homem das ciências que desiludido com o conhecimento de
seu tempo aceita fazer um pacto com o demônio:

Fausto: Que queres tu dar, pobre demo?/ Quando é que o gênio humano,
em seu afã supremo/ Foi compreendido pela tua raça? Mas, possuis
alimento que não satisfaça,/ Rubro ouro que nas mãos já se desfaça/ Como
mercúrio, jogo estranho,/ Perdido sempre e jamais ganho,/ Mulher que já
nos braços meus,/ Piscando o olho, outro a si atrai;/ Da glória o dom, prazer
de um deus,[...]/ Mefistófeles: De tais bens posso dar-te a escolha,/ E põe-
me o encargo a fácil prova./ Mas, caro amigo, o tempo ainda virá/ De em
calma saboreares prazer./ Fausto: Se eu me estirar jamais num leito de
lazer,/ Acabe-se comigo, já!/ Se me lograres com deleite/ E adulação falsa
e sonora/ Para que eu próprio Eu preze e aceite,/ Seja-me aquela a última
hora!/ Aposto!/ e tu?/ Mefistófeles: Topo!/[...]/ No festim doutoral, assumirei
tão logo/ De servidor o ofício e o porte./ Mas, por amor da vida e morte,/
Algumas linhas te rogo./ (GOETHE: 2004, 167-171)

Ao lermos a passagem acima notamos que o trato é realizado entre


Mefistófeles e Fausto. Contudo para Fausto receber a juventude, dinheiro, poder e
conhecimento, o demônio faz com que o médico assine o pacto com gota do seu
sangue:

Fausto: Pedante, algo de escrito exiges mais?/ Palavra de homem tu


conhecestes jamais?/[...]/ Que exiges, pois, gênio daninho?/ Papel, bronze,
aço, pergaminho?/ Devo escrever com lápis, cinzel, pena?/ Dou-te de tudo
escolha plena/ Mefistófeles: Por que exageras teu fraseado/ Com jeito tão
acalorado?/ Serve qualquer folheto ou nota./ Com sangue assinas, uma
gota!/ Fausto: Pois bem, a farsa, então, se adota,/ Já que te deixo
contentado./ Mefistófeles: Sangue é um muito especial extrato. (GOETHE:
2004, 171-173)

455
Entendemos, então, que no texto de Goethe o Diabo é que toma a iniciativa
de propor um acordo com um homem, oferecendo a ele tudo o que desejar.
Diferente do cordel aqui proposto para análise, em que é a mulher a sugerir uma
aposta ao demo, segundo a qual este teria de realizar sete mandados sem
pestanejar; caso vencesse contrato ele levaria a alma dos dois; do contrário,
perderia aposta e nada ganharia.
Na primeira tarefa o Coisa Ruim tinha que construir uma casa com cem mil
metros, de dois andares, com material de boa qualidade, na qual deveria haver:
“muitos salões e salas,/ Servindo a todos os fins:/Parques, pomares, passeios,
Caramanchões e jardins” (Filho: 1986, 12). O Tinhoso, concordando com o trabalho,
partiu com as ferramentas e no dia seguinte entregou o prédio conforme o
combinado.
Maria, surpresa com a rapidez, foi logo ordenando construir um roçado: “Com
cem quadros de cinquenta,/Quero o campo todo arado,/ De cereais e verduras/
Rapidamente plantado” (Filho: 1986, 13); Tisnado saiu à noitinha e no dia seguinte
tudo estava pronto, o roçado já tinha até feijão maduro. No terceiro mandado o
Danado teve que edificar uma barragem para água represar, tendo nela peixes do
oceano adaptados para na água doce serem criados. O Das Trevas voltou no outro
dia alegremente dizendo:

Com o meu povo disposto/ Foi um trabalho honorífico,/ Usei um


computador/Pelo lado científico.../ Tem muito mais água que/ No oceano
pacífico./ Peixes de muitas espécies/Das águas doces e salgada,/ Tem até
uma baleia/ Com a boca escancarada/Que pode engolir até/ Uma barca
carregada (Filho: 1986, 15)

Maria, sorrindo parabeniza pelo trabalho executado, porém ordena logo fazer
outro mandado; neste solicita a construção de uma rede de armazéns. Com um
sorriso nos lábios o Dito Cujo explodindo de alegria responde que entregaria os
armazéns antes que amanhecesse o dia. Após terminar o trabalho, a personagem
Maria da Conceição elogia os feitos do Cramulhão:

456
Querido,/ você é bom de verdade,/ Quero que vá hoje mesmo/ Construir
uma cidade/ Com dez mil casas bem feitas/ Cobrindo a localidade./ Ao
redor da minha casa/ Quero as ruas alinhadas/ Muito limpas e espaçosas/
Todas com pedras calçadas/ Com áreas para lazer/ E praças arborizadas./
O preto não vacilou/ A tarefa foi aceita/ Convocou sua turma,/ Executou a
receita/. (Filho: 1986, 16-17)

Ao lermos os versos do folheto, percebemos que o Demo não trabalha


sozinho; para a realização de algumas tarefas chama “sua turma” para ajudá-lo;
sabemos que Satanás ao ser atirado sobre a terra veio juntamente com seus anjos
(Apocalipse 12: 9); por isso as ordens eram cumpridas no tempo requerido. Na
penúltima tarefa Maria da Conceição diz para o Tinhoso procurar por pessoas
pobres, famintas e sofridas que nas ruas vivessem por não terem onde morar. Ele
saiu disparado, procurando por vários lugares por pessoas necessitadas:

Tomei uma forte chuva/ Com relâmpago e trovão/Que fiquei todo molhado/
E dei cada escorregão/ Que caía com dez metros/ Rasgando o bumbum
no chão./ Para fazer o seu gosto,/Quase estouro minhas veias,/Percorri
vários países,/ Cidades, vilas e aldeias;/ Estou cansado; porém/ As
moradas estão cheias./ Tem espanhóis, alemães,/Suecos, russos,
franceses,/ Suíços, italianos,/ Polacos e noruegueses,/Mexicanos,
canadenses,/ Argentinos e chineses;/ Chilenos, [...] Fiz a mistura dos
pobres,/Doentes, famintos, nus. (Filho: 1986, 18)

Com o trabalho terminado o Coisa Ruim questiona sobre o último mandado,


pois suas mãos estavam estouradas, os pés feridos e o corpo todo moído;
Conceição responde não ter nada com isso: “Comigo tem que cumprir/ As bases do
compromisso/ Ou vai cair na panela/ De fogo do seu feitiço” (Filho: 1986, 19). O
Demo com toda sua malícia falava a Maria que irá sugar toda sua carne e depois
derretê-la, e não iria aparecer nenhum macho para defendê-la.
A confiança do Danado na vitória era grande, pois já havia realizado seis
mandados com total prontidão, porém é no último que Maria arrebenta com o ego
do Satanão. Ela ordena a construção de uma catedral católica, em que coubessem
todos os santos da união apostólica; deveria ter altares para todas as imagens tendo
na torre um grande cruzeiro. O Capeta ao escutar “ficou tremendo/De beiço branco,
amarelo/ E disse: - Estou desgraçado,/ Careca, roto, banguelo;/ Caí em uma
armadilha,/ Sei que perdi o duelo” (Filho: 1986, 22), ao entender que tivera sido um

457
escravo e fizera tudo em vão; o negro, que não era vagabundo e não queria perder
seu conceito realizando um trabalho tão imundo, vai embora contrariado:

Trabalhei como um danado/ E, para a minha desgraça,/Fiz um contrato


assinado./ Isso é bom para que eu/ Não acredite em mulher/ Que para ser
vencedora/Faz tudo quanto puder,/ Nem mesmo o Diabo se livra/ Das
manhas que uma tiver./ Desde o começo do mundo/ Que a mulher só faz
traição,/ A que começou foi Eva/ Quando atraiçoou Adão,/ Seguindo o
mesmo caminho,/ Dalila enganou Sansão./ Porém apesar de tudo/ Minha
luta não se encerra,/ Perdi hoje uma batalha/ Porém não perdi a
guerra;/Tenho ainda que tentar/Os maus da face da terra. (Filho: 1986, 22-
23)

O Diabo frustrado por ter sido enganado por uma mulher sai dizendo não ter
perdido a guerra, já que havia muitas almas, como assassinos e políticos
bagunceiros para serem “levados para o palácio das dores” (Filho: 1986, 23). No
entanto o Demo não menciona em vão o nome de algumas mulheres que usaram
da astúcia para conseguirem seus objetivos. Eva, segundo o livro de Gênesis a
primeira mulher que viveu na terra, traiu Adão ao oferecer o furto proibido por Deus.
Contudo pretendemos frisar a história de Dalila, pois com sua sagacidade conseguiu
derrubar o forte Sansão.
Consta na passagem do livro de Juízes que Sansão era o mais forte dentre
o seu povo, porém ao descer ao vale de Soreque se afeiçoou a uma filisteia, cujo
nome era Dalila; o israelita a desejou e tomou-a por sua esposa; no decorrer do
tempo ela sempre indagava ao marido a fonte de sua força; nas primeiras tentativas
ele não revelou o segredo, mentindo para ela; mas, devido à insistência e como a
amava, Sansão sede e acaba revelando a fonte de sua força:

Importunando-o ela todos os dias com as suas palavras e molestando-o,


apoderou-se da alma dele uma impaciência de matar. Descobriu-lhe todo
o coração e lhe disse: Nunca subiu navalha à minha cabeça, porque sou
narizeu de Deus, desde o ventre de minha mãe; se vier a ser rapado, ir-se-
á de mim a minha força, e me enfraquecerei e serei como qualquer outro
homem. Vendo, pois, Dalila que ele lhe descobrira todo o coração, mandou
chamar os príncipes dos filisteus, dizendo: Subi mais esta vez, porque
agora, me descobriu ele todo coração. Então, os príncipes dos filisteus
subiram a ter com ela e trouxeram com eles o dinheiro. (Juízes, cap. 16 ver
16-18)

458
Após a revelação os príncipes dos filisteus atacam Sansão, raspam sua
cabeça e o levam como escravo até Gaza. Lá o amarram com duas cadeias de
bronze para virar um moinho dentro do cárcere. Dalila é recompensada com mil e
cento ciclos de prata por entregar o marido aos seus inimigos. Dessa forma
percebemos que, assim como Dalila, Maria da Conceição usou de muita esperteza
nos argumentos para derrotar o Tisnado e vencer o pacto. Assim ficou claramente
demonstrado que, apesar de a sabedoria ser voltada para propósitos maléficos, é
muitas vezes superior à força física.

Considerações finais

Como notamos ao analisarmos o folheto de Manuel D’Almeida Filho e os


críticos da cultura popular, a figura do Diabo perpetua-se por diferentes civilizações.
No texto pesquisado a referência ao mito de Fausto de Goethe deixa clara essa
circularidade existente entre as tradições, conforme afirma Ginzburg: “temos por um
lado a dicotomia cultural, mas, por outro, circularidade, influxo recíproco entre
cultura subalterna e cultura hegemônica” (Ginzburg: 1987, 21), pois tanto os
personagens de Goethe quanto os de D’Almeida Filho pactuam com o Demônio.
No caso do cordel, devido aos costumes nordestinos, o linguajar das
personagens demonstra a carnavalização descrita por Bakhtin (1993) e além do
mais o Diabo foi apresentado sob a forma de um negro e derrotado por uma mulher
demonstrando assim que a astúcia feminina é superior à força masculina.
Desse modo então compreendemos que por meio da Literatura de Cordel é
possível perceber características da “cultura produzida pelas classes populares”,
ou, como Ginzburg (1987) afirma, cultura das classes subalternas, e como esta
literatura até hoje se concentra em transmitir/criticar por meio oral/escrita situações
da história e cultura do povo brasileiro.

459
Referências Bibliográficas

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Brasil; São Paulo: Mundo Cristão, 2003. 1728p.
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em 13.12.2011.

460
SOBRE AS VARIEDADES BRASILEIRA E EUROPEIA DO PORTUGUÊS:
ANALISANDO O USO DE PREPOSIÇÕES EM CARTAS DE LEITORAS

Letícia Cordeiro de Oliveira Bueno¹

Introdução
Sabe-se que o princípio fundamental da Linguística Histórica é o fato de que as
línguas humanas mudam com o passar do tempo, não constituindo uma realidade
estática. Devido ao fato dessas mudanças ocorrerem de forma lenta e gradual,
muitos falantes não têm consciência de que suas línguas estão mudando, o que
comprova que a história da língua vai se fazendo num jogo de mutação e
permanência. Também é fato inconteste que esse processo passa,
necessariamente, pela situação de variação, em que a convivência e a concorrência
de formas variantes levam à gradual substituição de formas mais antigas
(conservadoras) por formas novas (inovadoras) (WEINREICH, LABOV, HERZOG,
1968, p.126).
É nesse contexto que se situa este estudo. Propõe-se a investigar a variação
entre as preposições introdutoras de complementos verbais, um fenômeno
atestadamente variável na variedade brasileira do português. Espera-se encontrar
um uso maior das preposições até, em e para nos dados analisados no português
brasileiro (PB), enquanto, para os dados do português europeu (PE), a hipótese inicial
é de que a preposição a prevaleça. Pretende-se, através dessa análise, apontar
explicações e justificativas para as diferenças existentes entre os usos dessas
preposições nas cartas brasileiras e portuguesas, de modo a determinar em que
medida essa distribuição revela padrões diferentes de uso em relação às normas
vigentes.
Trabalharemos, então, com as revistas Capricho e Bravo, brasileira e
portuguesa, respectivamente datadas dos anos de 2002 a 2012 e 2010 e 2011181, e
destinadas ao público feminino e adolescente. Pretende-se, assim, estabelecer uma
possível relação entre alternâncias no emprego de preposições em revistas

¹ Departamento de Linguística e Língua Portuguesa – FCL/UNESP ARARAQUARA

461
femininas brasileiras e portuguesas, buscando evidenciar os casos de variação
linguística através da análise das cartas de leitoras presentes nesses veículos de
comunicação. Pretendemos, através dessa relação, realizar uma comparação entre
duas variedades do português, considerando seus diferentes usos no que se refere
às preposições.
A busca por situações de variação e mudança em um córpus escrito nos faz
reconhecer, assim como na fala, o caráter heterogêneo também da escrita, sendo
essa uma tentativa de conceder à língua escrita um lugar nas pesquisas
sociolinguísticas.
Trabalharemos ainda com base nos estudos da Sociolinguística, tal como
proposta pela Teoria da Variação e Mudança Linguísticas (WEINREICH, LABOV,
HERZOG, 1968; LABOV 2001), que tem como princípio analisar a correlação entre
fatores sociais e a estrutura linguística de modo a compreender melhor o
funcionamento das línguas e da linguagem. Sendo assim, fica claro que tanto os
fatores internos quanto os externos são de extrema importância para os estudos
sociolinguísticos.

2 Orientações teórico-metodológicas
2.1 O uso das preposições e a variação linguística
As preposições selecionadas para esse estudo, segundo Ilari et al (2008),
são preposições que atribuem à figura a noção de ponto final de um percurso.
Exemplos como (1) “Ir ao cinema, comer um gelado.” (Bravo, 31/05/2011, p. 34);
(2) “Parece que ainda não caiu a ficha que estou indo para Taiwan sozinha, com
15 anos de idade.” (Capricho, 23/11/2008, p. 12); (3) “Um dia o Gustavo (feio) ligou
para mim e, enquanto fui no meu quarto pegar meu dever, minha irmã pegou o
celular e disse para o Gustavo (feio) pensando que era o Gustavo (bonito) [...].”
(Capricho, 22/01/2006, p.85) mostram que as preposições a, em e para entram em
variação sintática quando acompanham verbos de movimento. Já a preposição até
especifica o ponto final de um percurso, cujo ponto inicial fica pressuposto, assim
como vemos em (4) “Vai até a piscina e apresenta-se ao grupo.” (Bravo,
27/07/2010, p. 44).

462
Pode-se afirmar, então, que, embora as preposições apresentem grande
variedade de usos, bastante diferenciados no discurso, é possível estabelecer para
cada uma delas uma significação fundamental, marcada pela expressão de
movimento ou de uma situação resultante (ausência de movimento) e aplicável aos
campos espacial, temporal e nocional. Esta subdivisão possibilita a análise do
sistema funcional das preposições em português, sem que seja preciso levar em
conta os variados matizes significativos que podem adquirir em decorrência do
contexto em que vêm inseridas. Isso porque a maior ou menor intensidade
significativa da preposição depende do tipo de relação sintática por ela estabelecida.
Assim, é a partir dessa significação fundamental que se abre espaço para que as
preposições em questão funcionem como variantes.

2.2 Compreendendo a tipologia verbal trabalhada

Sendo as preposições a, até, em e para variantes em contextos de


complementação verbal no português, faz-se necessária uma compreensão acerca
dos tipos verbais aqui trabalhados, de modo que a relação verbo / preposição /
complemento seja melhor explicitada. Segundo Berlinck (1996, p.128), serão as
diferenças na caracterização semântica do verbo e os elementos que ele
subcategoriza que permitirão a distinção de quatro tipos de estruturas transitivas: (i)
transferência material, (ii) transferência verbal e perceptual, (iii) movimento com
transferência e (iv) movimento abstrato.
Ao estudarmos os verbos de transferência material, temos, segundo Berlinck
(1996, p.129), que esse “grupo é prototipicamente representado pelo verbo ‘dar’.
Aqui, o sujeito (Nº) faz com que o OD (N¹) passe a pertencer ao dativo (N²). A autora,
assim, resume as propriedades distribucionais desse tipo de construção: [+/-
animado]N0 + V + [(+)/- animado]N1 + {a,para,de}[+/- animado]N2182.
Quando analisamos os verbos de transferência verbal e perceptual, temos,
segundo Berlinck (1996, p.131), que o verbo “dizer” é o mais prototípico dessa

182
O uso de colchetes com as preposições indica que há alternância entre elas na atualização da construção.

463
classe. As propriedades distribucionais de uma construção com esse tipo verbal
podem ser descrita como [+/- animado]Nº + V + [-animado]N¹ + {a, para}
[+animado]N².
Sobre o terceiro tipo verbal, aquele que aborda os verbos de movimento com
transferência, Berlinck (1996, p.132 – tradução nossa183) nos diz que “este grupo
representa uma extensão da ideia de transferência porque ele completa esta noção
com a de um movimento físico”. O seu verbo prototípico é “levar” e a estrutura de
uma sentença com este tipo verbal pode ser expressa por [+/- animado]Nº + V + [+/-
animado]N¹ + {a, para, em de} [+/- animado]N².
O último tipo verbal pertencente às estruturas transitivas são os verbos leves,
definidos por Cyrino, Nunes e Pagotto (2009, p.66) como verbos “com conteúdo
mais gramatical que semântico, cuja função primordial é a de formar predicados
complexos, associando propriedades verbais (como tempo, por exemplo) a seu
complemento”. Sabemos que há uma relação semântica estabelecida entre o verbo
e seu argumento externo e que, no caso de construções transitivas, o verbo e o seu
complemento são envolvidos. Normalmente, esse tipo verbal é identificado em
construções que apresentam os verbos “dar”, “oferecer”, “conferir”, “levar”,
“entregar” e “trazer”.
Aos observamos as estruturas intransitivas, deparamo-nos com outros três
tipos verbais (verbos de interesse, verbos de movimento e verbos de movimento
psicológico), sendo que destacaremos aqui apenas o segundo grupo, composto pelos
verbos de movimento ou direção. Para Berlinck (1996, p.136 – tradução nossa184),
“as estruturas intransitivas com um complemento dativo servem para descrever um
estado de associação entre os dois argumentos do verbo”.
É com base, então, na tipologia verbal acima descrita que serão determinadas
quais são as preposições que introduzem o complemento de predicadores de
direção, de movimento com transferência e de transferência material e
verbal/perceptual.

183 “This group represents an extension of the idea of transfer because it complements this notion with that of a
physical motion” (BERLINCK, 1996, p.132).
184 “Intransitive structures with a dative complement serve to describe a state of association between the two of

the verb” (BERLINCK, 1996, p.136).

464
2.3 Aplicando conceitos: as normas brasileira e europeia e as preposições

Faz-se aqui necessário compreender também as normas linguísticas, assim


como seus modos de organização e aplicação em uma determinada comunidade
de fala. Tomou-se, como ponto de partida para tal, os trabalhos de Aléong (2001),
Bagno (2003), Faraco (2008), capazes de promover e facilitar a compreensão do
tema e sua relação com o objeto de estudo deste artigo. Valemo-nos aqui, a
princípio, das definições de norma culta e norma padrão, sendo a primeira
caracterizada como a variedade de uso corrente entre falantes urbanos com
escolaridade superior completa, em situações monitoradas; e a segunda entendida
como aquela codificada pelos manuais de gramática como modelar para a escrita.
Seguindo, então, esse pensamento, é preciso, aqui, retomar os conceitos de
norma acima apontados e reforçar o princípio de que uma determinada norma
linguística pode ser assim considerada por ser ela recorrente na fala de todos, uma
vez que a norma seria, então, o conjunto de usos recorrentes. Deste modo,
entendemos norma como sendo produto das escolhas linguísticas adotadas pelos
falantes, assim como a posição destes frente a esses e outros usos da língua. Ao
adotar este caminho para a discussão aqui proposta, torna-se pertinente afirmar que
nem sempre a norma linguística estará diretamente relacionada com as prescrições
trazidas pelas gramáticas tradicionais.
Assim, intuímos que as variedades brasileira e europeia do português são, a
princípio, sustentadas por suas respectivas normas linguísticas visto que, para cada
uma dessas variedades, encontramos conjuntos diferentes de usos recorrentes,
ainda que os Manuais de Gramática nos apresentem conteúdos bastante similares.
Ainda que a norma-padrão do Brasil se assemelhe em muito à de Portugal,
acreditamos que a norma culta dos dois países é fundamentalmente responsável
por sustentar os diferentes usos linguísticos peculiares de cada uma dessas
variedades do português, noção essa que pretendemos melhor explicar com a
análise detalhada de nossos dados.

465
2.4 O gênero “carta de leitoras”

Entende-se gênero textual como sendo as atividades discursivas socialmente


estabilizadas que se prestam aos mais variados tipos de controle social e até mesmo
ao exercício do poder (MARCUSCHI, 2002, p.02). Para Marcuschi (2002), os
gêneros textuais estão muitas vezes imbuídos de valores, sendo mais do que guias
neutros para a realização de certas atividades comunicativas.
Ao relacionar os conceitos expostos com o corpus aqui trabalhado – cartas
de leitoras de revistas femininas, percebe-se que as cartas são capazes de
evidenciar o quanto um gênero textual pode ser misto, já que elas se situam no
entrecruzamento da fala e da escrita (MARCUSCHI, 2008).
Assim, ao se acreditar que as cartas de leitoras apresentam elementos
diversos da oralidade, pode-se também supor que esse gênero, dentro de um
continuum de formalidade, está, então, mais próximo daquilo que é considerado
menos formal, uma vez que sua composição se dá através de traços orais que
fogem, muitas vezes, à norma padrão. Percebe-se, deste modo, que as relações
entre fala e escrita “refletem um constante dinamismo fundado no continuum que se
manifesta por essas duas modalidades de uso da língua” (MARCUSCHI, p.34,
2008).
Para Marcuschi (2002), as cartas fazem parte de uma comunicação
assíncrona, ou seja, que não ocorre em tempo real e que normalmente é defasada
pelo tempo. Porém, não podemos assumir que as cartas ignorem o seu possível
caráter oral por se distanciarem de situações comunicativas mais espontâneas,
como as situações de fala.
Sendo assim, as revistas Capricho e Bravo foram escolhidas devido às
diversas semelhanças que elas apresentam quanto aos seus modos de
organização. Tanto a revista Capricho como a Bravo são destinadas ao público
feminino e adolescente, o que faz com que elas abordem, então, assuntos bastante
parecidos. Quanto às cartas de leitoras publicadas nessas revistas, entende-se que,
de modo geral, elas apresentam como objetivo esclarecer as dúvidas e
questionamentos de suas leitoras, respondendo às perguntas por elas enviadas.

466
Através das perguntas enviadas, é possível notar o grande envolvimento das
leitoras para com as revistas, já que elas esperam por dicas, conselhos e soluções
sobre como lidar com determinados problemas ou desafios.
Ao trabalhar a noção de gênero, e mais especificamente as cartas de
leitoras de revistas femininas, acreditamos ser importante a afirmação feita por
Fairclough (2011), que nos diz que, se por um lado o discurso reflete a
realidade social, por outro, constrói essa mesma realidade. Assim, fenômenos
linguísticos são sociais, bem como fenômenos sociais são linguísticos, no
sentido de que a linguagem age em todos os contextos e práticas
(FAIRCLOUGH apud KNOLL e PIRES, 2008, p.03).

3. Uma primeira análise e seus resultados

Partindo-se do fato de que as mudanças sintáticas são caracterizadas por


eventuais alterações na organização dos constituintes de uma sentença, este
estudo teve como base a análise do material sintático a partir dos valores assumidos
pelas preposições a, até, em e para. Sendo assim, buscou-se aqui determinar qual
ou quais são as preposições que introduzem o complemento dos predicadores
selecionados e como se distribuem em termos de frequência.
Para isso, realizamos o levantamento de dados nas cartas de leitoras das
revistas Capricho e Bravo, e obtivemos, para cada uma delas, um resultado bastante
diferente. Foram analisados, no total, 574 dados, dos quais 329 pertencem à revista
brasileira Capricho e 245 à revista portuguesa Bravo. Quanto a esses dados,
podemos afirmar que na revista portuguesa houve a prevalência da preposição a
em relação a todos os grupos de fatores trabalhados, já que a revista Capricho
mostrou resultados mais balanceados no uso da preposição a em relação às outras
(até, em e para), ainda que essas tenham prevalecido nos dados.
Entre os 245 dados pertencentes à revista Bravo, temos que 196 dados
apresentam a preposição a e apenas 49 deles correspondem às “outras
preposições”, sendo um único caso com até, nenhum caso com em e 48 casos com
para. Quando observamos os dados da revista Capricho, notamos que 183 casos
dos 329 apresentam as preposições até (15 dados), em (19 dados) e para (149

467
dados); a preposição a, mesmo que em menor quantidade, ainda apresenta-se em
número bastante significativo, com 146 casos.
Quando observamos estes resultados “mais gerais”, notamos ser a
alternância entre a e para a mais produtiva. Assim, optamos por apresentar, através
de uma análise mais específica, os dados em que concorrem apenas essas duas
preposições. Logo, trabalharemos, aqui, com 282 dados correspondentes à revista
Capricho, sendo que 149 deles (53%) apresentam a preposição para e 133 (47%)
a preposição a; e com 237 dados retirados da revista Bravo, 48 deles (20%)
apresentando a preposição para e 189 (80%) a preposição a. Consideraremos para
a nossa análise os tipos de verbo e a natureza do complemento.
Desta forma, ao observamos, nas revistas Capricho e Bravo, o uso das
preposições em relação aos tipos de verbos analisados, encontramos resultados
bastante divergentes e significativos, como nos mostra a tabela 01.

Tabela 01. O emprego das preposições e os tipos verbais.


Tipo de Verbo
Ocorrências Capricho Ocorrências Bravo
PARA A PARA A
Transferência verbal 29 (78,4%) 08 (21,6%) - 63(100%)
Direção 88 (44,9%) 108 (55,1%) 42 (27,8%) 109 (72,2%)
Transferência material 17 (85%) 03 (15%) 02 (33,3%) 04 (66,7%)
Movimento com transferência 06 (60%) 04 (40%) 03 (50%) 03 (50%)

Percebemos que, na revista Capricho, temos a predominância da preposição


para com praticamente todos os tipos verbais, com exceção dos verbos de direção,
que apresentam 108 casos (55,1%) com a preposição a. Notamos, ainda, que os
verbos de transferência verbal apresentam um valor bastante significativo em
relação à preposição para, já que 78,4% dos dados trazem esta preposição e,
apenas 21,6% dos casos apresentam a preposição a. Com a revista Bravo, vemos
uma situação inversa, já que é a preposição a que prevalece em relação a todos os
tipos de verbos selecionados. Aqui, os verbos de transferência verbal destacam-

468
se com 63 casos (100%) com a preposição a e nenhum caso com a preposição
para.
Quando observamos a relação entre o uso das preposições e a natureza do
complemento, percebemos, na revista Capricho, que existe a prevalência da
preposição para com os complementos “lugar” e “ser animado”.
Tabela 02. Natureza semântica do complemento – Revista Capricho
Natureza semântica do completo – Ocorrências
Prep./Compl. Ser Animado Lugar Evento Noção Abstrata Instituição
PARA 51 (77,3%) 96 (51,9%) - 01 (14,3%) 01 (100%)
A 15 (22,7%) 89 (48,1%) 23 (100%) 06 (85,7%) -

Podemos pensar que a prevalência da preposição para com os


complementos “lugar” e ser “animado” aconteça, pois, de alguma forma, ela
corresponde à também prevalência dos verbos de direção (considerados, aqui, pelo
número bastante significativo de casos com a preposição para) e transferência
verbal, de modo que estes sejam os complementos mais prototípicos para os tipos
verbais em questão.
É de grande importância destacar que o grupo de fatores “natureza do
complemento” foi selecionado pelo programa estatístico GOLDVARB como sendo o
grupo explicativamente mais relevante na análise dos dados da revista Capricho.
Notamos que são os complementos “ser animado” e “lugar” que apresentam,
comparativamente ao complemento “noção abstrata”, uma maior propensão ao uso
da preposição para; sendo que este último complemento (“noção abstrata”)
privilegia o emprego da preposição a.

Tabela 03. Peso relativo “natureza do complemento” – Revista Capricho


Peso Relativo - Natureza do Complemento
Prep./Compl. Noção Abstrata Ser animado Lugar
Preposição PARA 0.108 0.712 0.440
Preposição A 0.892 0.288 0.560

Ao voltarmos nossos olhares para a revista Bravo, notamos que os valores


relacionados à natureza dos complementos aqui selecionados são praticamente
inversos aos resultados obtidos com a revista Capricho. Temos, assim, a
preponderância da preposição a com todos os tipos de complemento trabalhados,

469
sendo que poucos casos com a preposição para foram encontrados. Aos
complementos “ser animado” e “lugar” cabe a mesma justificativa empregada aos
dados da revista Capricho: eles podem também corresponder aos verbos de direção
e de transferência verbal, como forma de melhor completar os sentidos por eles
empregados.

Tabela 04. Natureza semântica do complemento – Revista Bravo


Natureza semântica do completo – Ocorrências
Prep./Compl. Ser Animado Lugar Evento Noção Abstrata Instituição
PARA 02 (2,8%) 41 (29,9%) 05 (23,8%) - -
A 69 (97,2%) 96 (70,1%) 16 (76,2%) 07 (100%) 01 (100%)

Além disso, precisamos destacar o fato de nenhum grupo de fatores ter sido
selecionado como relevante pelo programa GOLDVARB, o que justifica, então, a
ausência dos pesos relativos referente à revista Bravo e reitera a ideia de pouca
variação em relação a esses dados.
Assim, diante dos dados ora apresentados conseguimos afirmar que as
preposições a e para podem ser consideradas variantes em contexto de
complementação verbal no português. Isso se dá, em particular, nos contextos que
trazem verbos de direção e de transferência verbal e de forma mais robusta na
variedade brasileira representada pelos dados da Capricho.

Conclusão
Foi possível confirmar a hipótese inicial de que há uma maior incorporação
das preposições até, em e para no português brasileiro, sendo importante ressaltar
que o português europeu, ainda que pareça ser mais sensível à sua respectiva
norma – fato comprovado através da preponderância da preposição a nos dados
retirados da revista Bravo – apresenta também alguns casos com as “outras
preposições”, mais inovadoras, principalmente quando se trata dos verbos de
direção e do complemento “lugar”.
Dessa forma, percebemos que o gênero carta de leitoras é capaz, sim, de
influenciar as escolhas e os usos dos falantes brasileiros e portugueses, já que é

470
possível que cada um deles apresente um comportamento linguístico diferente,
sendo influenciados por suas respectivas normas.
Com base em todas essas informações, torna-se possível, então, afirmar
que as diferenças existentes entre o PB e o PE, quando tratamos dos usos das
preposições a, até, em e para, são sustentadas, cada qual, por suas respectivas
normas linguísticas, de modo que se preservem todas as diferentes variedades que
constituem uma língua. Tal fato nos faz, assim como já mostrado no início desse
trabalho, reconhecer o caráter heterogêneo da escrita, o que inclui a capacidade de
ser permeável a formas oriundas da fala e, por isso, ser também lugar de possíveis
variações e mudanças.

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______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.

472
MENSAGEM DE FERNANDO PESSOA: SIMILITUDE BIBLICA

Letícia Pereira de Andrade 185

1. Mitologia hebraica e lusitana

O mito é o nada que é tudo.


(Fernando Pessoa)

A mitologia germinou desde os tempos mais antigos da história do


pensamento humano. Desde o período arcaico até o contemporâneo, as questões
da formação do mito e de sua influência na evolução da experiência humana
existencial têm passado por diferentes apreensões críticas, ratificando a paradoxal
condição do mito: “é o nada que é tudo” (PESSOA: 2006, p. 20).
Ao perceber que o mito, embora aflore nas representações, é representação
de nada, Fernando Pessoa colocou no inominado e no imponderado a essência do
mito, confinando a sua matéria ao indeterminado das valorações simbólicas e
arcaicas. Segundo Mielietinski (1987: p. 176), o mito é específico das culturas
arcaicas, todavia está presente nas mais diferentes culturas. Assim, ao revalorizar
o mito arcaico, como o hebreu bíblico, Fernando Pessoa enxergou a mitologia ou
remitologia como um possível instrumento de reconstrução de um “Portugal futuro”.
O sebastianismo é um mito lusitano, assim como o messianismo é hebraico.
Ambos os mitos tem imagens arquetípicas similares. A “espera”, por exemplo, por
um Ungido é um rito simbólico do messianismo e por correspondência do
sebastianismo. Nessa perspectiva, os mitos sebásticos e mitos bíblicos podem-se
referir diretamente ou indiretamente. Como a imagem de D. Sebastião parece ser
tão importante para a cultura portuguesa assim como o Messias é para a cultura
hebraica, dentre outras, tornando-se uma simbologia espiritual universal.
Conforme Mielietinski (1987), o mito tem uma orientação funcional e
existencial. Assim nos tempos arcaicos bíblicos, a história do povo hebreu se
assimilava ao seu mito, fornecendo modelos para a conduta humana, conferindo
significação e valor à existência. Seu mito era de origem e de destinos coletivos.

185
Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.

473
Outros povos, também, imitavam esses antigos, recriando seus mitos cada qual a
sua maneira. Fernando Pessoa, sabedor dessa força mítica, usa o mesmo
instrumento hebreu para tentar guiar um tão grande povo.
A narrativa mítica desempenha uma função dentro da estrutura da sociedade.
Segundo Aristóteles (1980), há três funções para o mito: uma forma atenuada de
intelectualidade; uma forma independente de pensamento ou de vida; e como um
instrumento de controle social. É possível perceber que, na história de Israel, um
único homem de cada vez (Moises, Josué, Samuel, Davi etc.) sempre comandava
ou controlava o povo hebreu por meio de seus mitos, os quais eram cantados de
geração a geração. O mito aqui é uma narrativa que atende a uma coletividade,
como se fosse uma resposta a uma pergunta coletiva, reveladora da necessidade
de preenchimento de um espaço vazio.
A presença hebraica na Península Ibérica encontra seus primórdios na
Antiguidade. Diante disso, podemos pensar que a mitologia hebraica alimentou
diversos messianismos medievais e teve uma presença recorrente na cultura
portuguesa, ou seja, no universo de mitos do Atlântico, constituído pelas diferentes
diásporas e inúmeras histórias que fazem referências aos hebreus. O ato de nascer
no reino português, politicamente, em fins do século XII, sob a espada abençoada
por “visões divinas” e comandada por Afonso Henriques186, dá-se num momento em
que os “filhos de Abraão” já se encontravam comerciando em algumas localidades
de grande povoamento e importância, como Santarém, Coimbra e Lisboa
(HERMANN: 1998).
Nesta perspectiva, podemos dizer que a mitologia lusitana, como sua história,
converge para a mitologia hebraica. Portugal como Israel parece ter uma mesma
“missão espiritual”, daí mitos similares: o Sebastianismo ou Messianismo e o V
Império. Corrobora essas convergências, Lima de Freitas (2006, p.76), que ao

186
Afonso Henriques era filho do Conde D. Henrique de Borgonha e de D. Tareja, infanta de Leão. O caráter
de inspiração divina de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, faz parte do mito de Ourique. Esse corajoso
homem, como o rei Davi, vence as batalhas por intermédio da ajuda divina, por isso torna-se 1º rei. Por milagre
venceu a batalha de Ourique, a tomada de Santarém, e pelo milagre da vinda dos Cruzados se fez a conquista
de Lisboa. Maior milagre foi o de Alcácer, quando com sessenta cavaleiros, sem couraças, D. Afonso Henriques
desbaratou a um exército de quarenta mil infantes e quinhentos Mouros de cavalo (cf. AZEVEDO: 1918, p. 7).

474
atestar a universalidade dos mitos, diz que estes são arquétipos que governam a
humanidade. Segundo o autor:
A Península é o resultado de camadas de subconscientes muito variadas:
nórdicos, celtas, árabes, com todas essas moiras encantadas... tem, por
isso, um fundo mítico muito grande; e quando afirmo que não existem mitos
portugueses faço-o, evidentemente, em sentido estrito, porque existem
formas tipicamente portuguesas de mitos e é através do estudo dessas
formas que podemos alcançar uma possibilidade séria de
autoconhecimento (FREITAS: 2006, p.77).

Nessa fusão com outros povos, Portugal criou sua história e mitos. Também
como ocorreu na Península Ibérica, a cosmovisão, que os hebreus 187

desenvolveram ao longo dos anos, teve aproximação com outras culturas


mitológicas. Inclusive, podemos pensar que o mito hebraico foi influenciado por
mitos mesopotâmicos e cananeus. Nesse processo de fusão de mitos, um povo
determinado revê seu passado, faz o presente, projeta o futuro, procurando
reescrever seu destino.
Os portugueses reveem seu futuro, como os hebreus, por meio de profecias.
O profetismo é ação simbólica das mitologias do messianismo e do V Império. De
acordo com Franco (2010), o profetismo pode ser entendido, em termos gerais,
como a corrente originariamente de caráter religioso que propõe uma interpretação
do ritmo, do destino da História à luz das profecias. O messianismo e o
sebastianismo foram propagados por meio das várias profecias preditas ao longo
dos anos. O profetismo português surgiu, portanto, inspirado no pensamento
judaico-cristão que se resume na chegada de um Messias.Em Mensagem,
Fernando Pessoa se coloca como um poeta-profeta que anuncia uma mensagem
profética a serviço de uma afirmação de uma consciência nacional: “É a hora”.
À modelo do profetismo hebraico que tem uma dimensão política e cultural,
o profetismo mítico português reza que El Rei D. Sebastião regressará em um dia
de Nevoeiro para instaurar aquela que será uma Nova Era. Com a morte de D.

187 O nome hebreu vem da designação do nome de Heber (Gênesis 11:14-17) – do hebraico ‫עברים‬, “ibri” que
significa “do outro lado”, numa referência a Abraão (descendente de Heber), o pai da nação. Este termo foi
achado em diversos documentos, durante vários períodos da história antiga, na época dos patriarcas; e tornou-
se pouco usado após a segunda metade do século X a.C. Hebreu como nome para o povo foi usado
principalmente a partir da vivencia deste no Egito (JOSEFO, 2004). Vale notar que os termos hebreus, judeus
e israelitas referem-se a um mesmo povo.

475
Sebastião e a ausência de descendentes ao trono, o reino de Portugal foi anexado
à rival Castela. O fato de nunca ter sido encontrado o corpo do rei, associado à
sujeição a Castela e fundido às trovas de Bandarra deu origem ao mito português:
o Sebastianismo. Tal profecia é, desde Bandarra, Camões, passando pelo Padre
António Vieira e nos textos de Fernando Pessoa, principalmente em Mensagem,
objeto de várias leituras e interpretações ao longo dos séculos em que foram
intentadas as suas interpretações.
Conhecer o futuro e o transcendente sempre foi uma ambição do ser humano,
como se percebe nessas correntes profético-messiânicas. Talvez por isso Pessoa
se coloque como continuação deste legado profético: o Terceiro Aviso, em
Mensagem. Sendo OS AVISOS: primeiro, o Bandarra; segundo, António Vieira; e o
terceiro sem título, que escrito em primeira pessoa, fazendo-nos pensar que é o
próprio poeta: “Screvo meu livro à beira-mágoa” (PESSSOA: 2006, p. 53).
Essas mitologias profetizadas é como se fosse um estímulo para o povo
continuar prosseguindo, olhando para o futuro e acreditando que este será melhor
do que aquilo que já se conhece: “Quem te sagrou criou-te português. / Do mar e
nós em ti nos deu sinal. / Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta
cumprir-se Portugal!” (PESSOA: 2006, p. 36). É uma espécie de evocação de uma
forma particular de vida social. É uma mensagem que possa constituir uma resposta
à crise e à sociedade degradada.
Pessoa também se coloca no lugar de mensageiro de caráter transcendente
e espiritual para o destino da nação: “PAX IN EXCELSIS”. O profetismo de Pessoa
se dá, sobretudo, a partir da terceira parte de Mensagem, intitulada de O
ENCOBERTO. Seus poemas criam realmente um clima de profetismo. “Quando virá
D. Sebastião?”; “Não sei a hora, mas sei que há a hora.” (PESSOA: 2006, p. 42).
Seu discurso profético orienta-se predominantemente para o mito do Encoberto ou
do sebastianismo: “Que símbolo fecundo / Vem na aurora ansiosa? (...) Que símbolo
divino / Traz o dia já visto?” (PESSOA: 2006, p, 49).
Como diz Girard (1997: p. 63), “o nexo do mito com o símbolo é essencial”.
As combinações sucessivas de símbolos estruturam o mito que, por sua vez, invade
as regiões transcendentais correspondendo ao que há de mais profundo na vida e

476
na experiência humanas. Essas criações mitológicas fazem o subconsciente agir
sem qualquer entrave, como nos sonhos e visões, em uma totalidade diacrônica,
enraizando-se na experiência universal do homem.
Dessa forma, a mitologia hebraica bíblica e os líderes do profetismo
passaram anelar por um “rei ideal” do futuro, o qual traria para a nação e o mundo
todos os benefícios da paz, da justiça, e da prosperidade, tanto moral como material.
Segundo Hermann (1998, p. 10), essa crença conheceu modalidades variadas,
tanto no reino como em seus territórios coloniais, e “teve por base um messianismo
judaico herdado dos séculos de convivência entre católicos e judeus na península
Ibérica”. Também, Azevedo, em A Evolução do Sebastianismo (1918, p. 9-12),
afirma que o sebastianismo português brotou da esperança judaica no Messias.
Essa esperança messiânica passou para os portugueses com algumas
mascaras, mas ainda é possível vermos convergências de símbolos em Mensagem
e na Bíblia confirmando a atualidade e a força das imagens e símbolos que
estruturam uma mitologia abundante de valor elevado. Essa busca profética por um
Messias, que pode ser propriamente cada um, na visão de Pessoa, parece-nos ser
uma tentativa de acalentar o sonho de uma realeza universal, um lugar ideal em um
novo tempo, também ideal, como veremos a seguir.

2. Ver o Invisível: construções utópicas

São ilhas afortunadas,


São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só mar.
(Fernando Pessoa)

O mito é capaz de abordar uma realidade impossível e ser construtor de


utopias188 difusas no tecido do imaginário humano. A justificação ao rei ideal, ao
tempo ideal ou ao lugar ideal, portanto, está nos mitos. Ou seja, o inacreditável ou

188
Desde a antiguidade até 1516, existiam produções literárias e iniciativas que hoje são conhecidas como
utópicas, mas não existia o termo. Essa palavra foi proposta no século XVI, em 1516, quando o inglês Thomas
More publicou, em latim, um livro sobre a vida dos habitantes da ilha de Utopia. Etimologicamente, o termo
utopia vem do grego, que tanto quer dizer “não-lugar” (ou + topos) como “bom-lugar” (eu + topos). Em outras
palavras, refere-se a um lugar inexistente perfeito ou, simplesmente, um não lugar e um bom lugar.

477
aquilo que é sobre-humano pode-se referir apenas na linguagem imagética e
simbólica do mito. Ele presenteia o leitor com o alimento da esperança.
Crer na espera de um rei ideal está presente, por exemplo, no Messianismo
ou Sebastianismo. Este rei é o representante do próprio Deus na Terra. Por isso, o
representante da divindade governará e administrará o mundo com perfeição e
justiça. O rei ideal deve, sobretudo, ser o salvador de seu povo, garantindo-lhe todo
o bem-estar material, moral e espiritual.
A apologia ao local ideal está presente nos mitos do Paraíso. Este mito
sobreviveu por muito tempo na forma adaptada do paraíso oceânico, como as ilhas
paradisíacas do Grande Oceano, refúgio de todas as felicidades. O paraíso terrestre
teria se tornado na ilha longínqua, na condição perfeita de Adão antes da queda –
o centro do mundo. Ou, a “nova Jerusalém”, a terra que será transformada com a
chegada do Messias. Ainda a ilha afortunada donde virá D. Sebastião. Ou a ilha dos
Amores de Os Lusíadas.
O tempo ideal aparece em vários mitos, como no Milenarismo ligado ao
messianismo e ao cristianismo. O reinado de mil anos de paz e justiça tem sua
definição ligada a idade de ouro desaparecida, existindo nas religiões que creem na
possibilidade de se recuperar um tempo perfeito, semelhante àquele que um dia
houve na Terra. Aqui há alusão à imortalidade do homem e ao não envelhecimento
do corpo. Essas imagens invocam a nostalgia de um passado mitificado,
transformado em arquétipo ou “o desejo de algo completamente diferente do
momento presente, definitivamente inacessível ou irremediavelmente perdido: ‘o
Paraíso’” (ELIADE: 2002, p. 13- grifo do autor).
Para os hebreus, Jerusalém sempre será o local ideal. Nos exílios, o povo
hebreu não esquecia Jerusalém, considerada por Jeremias a mais formosa de toda
a terra (Lamentações 2:15). Aí se lembravam dela e manifestavam a sua saudade:
“Se me esquecer de ti, oh Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua destreza
(...) se não te preferir à minha maior alegria” (Salmo 137:5). É como se este local
terrestre fosse extensão do “céu paraíso” – a habitação da divindade, onde se
manifesta a sua presença. Este sentimento de que Deus habita nos céus e aí tem a

478
sua corte celeste, vamos encontrá-lo nas mais diversas épocas bíblicas
(Deuteronômio 26:11; Esdras 1:2; Neemias 9:6; Isaías 37:16; Jonas 1:9).
Nesta perspectiva, o rei ideal, para os hebreus, deveria erigir o seu trono
em Jerusalém (o centro do mundo), manifestando os poderes sobrenaturais. Os
seus poderes eram uma amostra (em ponto reduzido dos poderes da divindade)
concebida como um rei supremo, uma espécie de Santo ou ser celeste. A figura do
rei ideal do futuro, para os judeus, surge como prefiguração ou protótipo do Messias,
um herói e Santo. Ainda, o Messias não será qualquer rei, mas provirá da
descendência de Davi. Associado ao aspecto de ser descendente de Davi, o
Messias é apresentado como um conquistador, à semelhança deste. Nesta
qualidade, identifica-se com o próprio YHWH, pois o Messias vestirá as veste de
salvação e de vingança, com as quais o próprio YHWH se vestira para libertar o seu
povo e vencer os seus inimigos (Isaías 59:16). Assim, com ajuda de YHWH, o
Messias estabeleceria um governo pacífico mundial, com sede em Jerusalém.
O rei ideal de Portugal é aquele profetizado desde a fundação de Portugal,
da descendência de Afonso Henriques, uma espécie de rei-sacerdote cuja virtude
guerreira é colocada a serviço da fé: levará o cristianismo para o mundo inteiro.
Numa obra publicada em 1602, João de Castro (apud VALENSI: 1994, p. 142-143)
traduz uma profecia escrita em latim que liga Alcácer a Ourique: Afonso Henriques
prestes a batalhar com os reis mouros, temendo o pior, adormece sobre a Bíblia,
vindo um velho anunciar sua vitória, e a de seus descendentes, acrescentando que
os sucessos se interromperiam na décima sexta geração, mas retornariam após
“uma pausa”. Retornaria para reparar os erros, reestabelecer a ordem, fazer justiça
sobre a terra. Este rei ideal português, portanto, regressará, colocando em ordem o
caos de Portugal e do mundo. E este é o último descendente da dinastia do Avis.
Aliás, Sebastião cumpriu todas as profecias de seu primeiro reinado. Aí está a prova
de que completará sua missão quando voltar a reinar.
Um rei ideal só poderia reinar também em um local ideal. O reinado trágico
de Portugal tornaria um reinado feliz e totalmente cristão. Lembranças, ao menos
desde o reinado de Manuel, “prometem a Portugal o domínio do mundo, a
reconquista da Terra Santa e a submissão do islã” (VALENSIA: 1994, p. 146).

479
Portugal é o povo eleito, sua ruína sobrevém com a expedição da África, contudo,
seu renascimento lhe é prometido com a chegada do reinado universal. Assim, o
discurso sebastianista empenha-se a apagar a derrota de Alcácer com o enunciado
de todas as vitórias ainda a obter, sobretudo, o V Império mundial.
Em relação ao tempo, os profetas bíblicos apresentam o reino messiânico
como não tendo fim, em que haverá paz e prosperidade serão sem fim. Seria um rei
justo, sob cujo mando, toda a ordem seria estabelecida (Isaías 9:6-11). Segundo
Isaías, o “dia do Senhor” será seguido por uma nova criação, um novo céu e uma
nova terra, ou seja, um novo tempo: “e faz o seu deserto como o Éden” (Isaías 51:3).
Segundo as profecias bíblicas, junto com o Messias surgirá um Mundo Novo,
descrito por Isaías.
D. Sebastião, assim como Davi e outros reis ideais (a exemplo do Rei Artur),
é modelo exemplar da realeza que se sacrifica pelo seu reino e, após livrar-se do
tempo, representado pelo “período de pausa”, o rei salvador volta renovado para
redimir seu povo. Assim D. Sebastião voltará da sua Ilha Encoberta, considerada o
centro do mundo, igualmente como Artur permaneceu na Ilha de Avalon189, centro
do mundo. Cavaleiro deslumbrante, D. Sebastião surgiria das ondas vindo também
de uma ilha. Como profetizou Bandarra: Este sonho que sonhei / É verdade muito
certa/ Que lá da Ilha Encoberta/ Vos há-de vir este Rei /(apud VALENSIA: 1994, p.
170).
O Encoberto vive retirado na ilha também encoberta. Essa ilha encantada,
invisível, impossível de localizar de maneira definitiva, e que não figura em nenhum
mapa, surge das brumas diante dos navios em apuro. Valensia (1994) traz várias
recordações dos marinheiros dessa ilha encoberta. Conta-se que a ilha é um lugar
situado ao largo da ilha Madeira, que só é visível em certas condições atmosféricas
e se chama Antilia (ou Antlia). É a morada do jovial rei Encoberto que lá tem dois
filhos (o que permite minimizar o trauma português de não ter recebido descendente

189A ilha de Avalon aparece em Historia Regum Britanniae ("A História dos Reis da Bretanha") de Geoffrey
of Monmouth como o lugar onde a espada do Rei Arthur foi forjada e, posteriormente, para onde Arthur foi
levado para se recuperar dos ferimentos após a Batalha de Camlann. Como uma "Ilha dos Bem-aventurados"
Avalon tem paralelo em outros lugares na mitologia indoeuropeia, em particular a Tír na Nóg irlandesa e a
Hespérides grega, também conhecidas por suas maçãs. Avalon foi associada há muito tempo com seres imortais,
como Morgana Le Fay.

480
de D. Sebastião ao trono). Na ilha encantada, ninguém envelhece, portanto, o rei
não tem idade. E, como essa ilha conta com arcebispo e seis bispos, chamam-na
de ilha das Sete Cidades. Sua população goza de uma abundancia de bens, de
saúde e de riquezas. Outros dizem que a riqueza é tanta que abunda ouro e prata.
A língua oficial é o português. Assim sendo, a ilha é um local propício para a
constituição de mitologias e o sebastianismo é rebento da ilha encoberta.
É possível observamos por meio das narrativas que a ilha encantada ou o
novo céu e a nova terra predita por Isaías constitui um reino utópico. Os
depoimentos são exagerados. Os habitantes são felizes e saudáveis não
perseguidos pelo tempo. O local é afastado deste mundo atual e fora do tempo,
como viviam os habitantes do Éden. As forças temporais que regiam o ser humano
são agora resignificadas. O lugar é seguro, porque assume os desígnios da criação
do mundo no jardim do Éden (Gênesis 1-2). O local ideal oferece ao homem um
recomeço.
Essa expectativa da volta de um rei ideal que fundaria um novo tempo
abarcou um conjunto de transformações por que passava a Europa no tempo das
reformas religiosas, sobretudo, a partir de 1516. Segundo Hemann (1998), a cisão
operada na cristandade desde o início do século XVI foi palco de grandiosos projetos
utópicos ou milenaristas, dos quais cita Thomas Müntzer, autodenominado o
“Mensageiro de Cristo”. Para este, o fim de heresias daria lugar à vinda do Messias
e ao início do Milênio. Outro exemplo citado é A cidade do sol, de Tommaso
Campanella (1602), em que, tal como na Utopia, de Thomas More (1516), idealiza-
se um lugar de plenitude e felicidade. Contudo, essas elaborações utópicas não tem
o sonho do V Império dos portugueses, nem o caráter universal e a eterna juventude.
Apesar das diferenças, esses escritos e os sebásticos vêm ao encontro do clima de
expectativa e incerteza que assombrava a Europa em períodos de crises.
Mensagem poetiza a triste realidade de tempos de crises “a luz do gládio”,
“que é Portugal a entristecer”, atraindo o leitor pela promessa de um mundo melhor:
ainda “falta cumprir-se Portugal”. Portanto, este texto poetiza sobre a “guerra santa”
e, simultaneamente, propõe mudanças por meio da tomada da consciência da sua

481
radical situação: “Caí no areal e na hora adversa / Que Deus concede aos seus”
(PESSOA: 2006, p. 47).
Aqui, vale lembrarmos que, no século XX, os atributos ligados a D. Sebastião
são transferidos para o país inteiro ou para cada sujeito em si: Portugal é o
personagem simbólico cujo “ser é como aquela fria Luz”, mas a promessa é que a
Portugal ideal se cumprirá na “Eucaristia Nova”. Oliveira Martins concluiu a sua
História de Portugal observando que o sebastianismo ainda não foi substituído pela
consciência de “uma nova nação, real e viva”. Entretanto, os símbolos de Mensagem
revelam que o tempo é chegado da nação inteira retornar à vida: “É a hora!”.
No “sebastianismo racional” de Fernando Pessoa, a utopia não é vista como
o retorno saudosista do passado, para um tempo ideal e um lugar de perfeição idílica
à maneira dos renascentistas, mas é vista como “futuro do passado”. É como um
tiro no escuro, ou melhor, no nevoeiro. Talvez porque o futuro não é mais do que
um passado ainda por acontecer, talvez porque o passado é o primeiro “não topos”,
ou “não lugar”, e o futuro, o segundo. O fato é que o sebastianismo, seja ele
transformado ou sublimado ou remitologizado, consegue ser até o século XX, o mito
nacional português. Segundo Valensia (1994, p. 251), em todas as gerações houve
portugueses que creram em suas promessas. Promessas não cumpridas, mas
sempre renovadas.
Diante do exposto, podemos concluir que espera por um Messias para a
salvação de eventos ruins, subtende-se a construção de uma idealidade ou espera
de algo melhor. É um considerar o presente ou a vida como “falsa”, “vil” e
“imperfeita”. O ideal é a noção de que “a Vida não basta” (PESSOA: 1990).

O ideal tem três formas: na sua relação com o universo - a Verdade; na


sua relação com os homens - a Virtude; na sua relação consigo próprio - a
Beleza. A Beleza é o Ideal Puro; é superior à Verdade e ao Bem porque é
a própria substância do ideal, inaplicado e irrefracto. A Beleza é o que se
prefere à vida, sem razão outra do que a preferência. (PESSOA: 1990, p.
324).

A beleza é, portanto, a essência do ideal ou do “idealismo superior”, na


concepção de Pessoa (1990). Para o poeta, o que importa é procurar uma
explicação do universo que seja também uma explicação do valor espiritual do ser

482
humano. Ou seja, a matéria pode ser explicada pelo espiritual, o que Ricardo Reis
chama de “crer na sensação” ou de “crer no inacreditável”.
A construção utópica “é um grande anseio que Deus fez” no ser humano.
Regressar ao futuro pelo caminho do nevoeiro. Talvez por isto possa ser
concretizável na crença da sensação. Não é necessário “esperar” mais, mesmo
sendo hoje Portugal Nevoeiro... É possível enxergar, apesar do nevoeiro. “Mas, se
vão despertando”... É possível “ver o invisível”. É só utilizar a “espada iluminada de
Excalibur”... A hora é agora, segundo Mensagem.

3. Hora de quê?

Tudo é incerto e derradeiro.


Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!
(Fernando Pessoa)

Talvez seja uma mera coincidência, mas como Mensagem está dividida em
três partes, como um círculo perfeito (Brasão, Mar português e O Encoberto),
assim também a Bíblia hebraica contém divisão em três partes: A Lei (Torah), Os
profetas (Nebhiim) e os Escritos (Kethubhim). A primeira parte da Bíblia conta a
gênese do povo ungido por Deus e suas primeiras conquistas. Na segunda, são
apresentadas, sobretudo, as profecias sobre o Messias que haveria de vir. Na
terceira, a preparação histórica para a chegada do Messias e do V Império. Na
primeira parte de Mensagem conta-se a história das glórias portuguesas. Na
segunda, são apresentadas as navegações e conquistas marítimas de Portugal. Na
terceira, é apresentado o mito sebastianista e a chegada do V Império.
Percebemos, por conseguinte, que na história social desses povos há uma
equiparação: ambos receberam um sinal de Deus, ambos viveram momentos de
glórias, com períodos de decadência, seguidos da busca por esperanças. Em
alusão à Bíblia, Pessoa inicia seu texto Mensagem com uma epígrafe em latim,
traduzida por ele da seguinte forma: “Bendito seja Deus Nosso Senhor, que nos deu
o Verbo” (PESSOA, 2006, p. 13). Este é o sinal dado por Deus: a Palavra. Ambos

483
os povos receberam de Deus este sinal. Agora é a oportunidade de usar a palavra,
para reimprimir um “sopro de vida” a tantas realidades ocultas, misteriosas, sem o
calor de uma comunicação espiritual.
A epígrafe profetiza que Portugal, hoje, é nevoeiro. Segundo as profecias,
é exatamente o nevoeiro que marca o regresso de D. Sebastião – O encoberto. É,
portanto, a “hora” em que o rei salvador volta e transforma o passado glorioso,
dando, finalmente, a Portugal o V Império Espiritual. Ainda o Messias de Mensagem
não trará “paz na terra”, mas “PAX IN EXCELSIS” – “Paz nas alturas”, como sugere
a epígrafe que abre a terceira parte da obra. Aqui a poesia passa a ser vista como
uma linguagem além-signo. Os símbolos já revelam um “erguer de asas”. Para o
poeta, os símbolos são formas de comunicação com o Cosmos.
Por fim, usando a palavra o poeta abarca o Cosmo pela força sugestiva do
símbolo. Isso seria o V Império Espiritual, na visão de Pessoa. “Grécia, Roma,
Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda idade. / Quem vem
viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (PESSOA: 2006, p. 48). Triste daquele
que não superar as crises. Assim é hora de “Ver o invisível” é ver o que os outros
não querem ver, usando o “olhar esfíngico e fatal”... “O Ocidente, futuro do passado”.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. 3 ed.


São Paulo: Cultriz, 1980.
AZEVEDO, J. Lúcio de. A Evolução do Sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica
Editora, 1918.
BIBLIA HEBRAICA. Formato: ADOBE EPUB EBOOK. Trad. FRIDLIN, Jairo;
GORODOVITS, David. Editora: SEFER EBOOK, 2012. E-book disponível em
www.semeadoresdapalavra.net. Acesso em 14 de outubro de 2008.
FREITAS, Lima de. Porto do Graal. Lisboa: Ésquilo, 2006.
GIRARD, Marc. Os símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na
experiência humana universal. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997.

484
HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em
Portugal nos Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
JOSEO, Flávio. História dos hebreus: de Abraão à queda de Jerusalém. Trad.
Vicente Pedroso. 8. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
MIELIETINSKI, Eleazar M. A poética do mito. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987.
MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: L&PM, 1997.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Edição comentada por Jane Tutikian. Porto
Alegre: L&PM, 2006.
PESSOA, Fernando. Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa. Org.
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. Disponível em http://arquivopessoa.net/.
Acesso em 09/04/2015.
VALENSI. Lucette. Fábulas da Memória. A batalha de Alcácer Quibir e o mito do
sebastianismo. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994.

485
TITUBA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DE MULHER, ESCRAVA E FEITICEIRA A
ÍCONE DA MODA

Profª Drª Lilian Cristina Corrêa190

Há séculos, entende-se a figura da feiticeira como uma personagem que transita


entre conhecedora de segredos da natureza a entidade demoníaca. As ditas
feiticeiras sempre sofreram consequências por serem “diferentes”, por ameaçarem
as esferas do ser, do poder e do saber e, acima de tudo, por intimidarem ou
questionarem os dogmas religiosos. Entretanto, é possível apresentar outro
questionamento, subjacente a essas ideias já apresentadas, mas que, de certa
forma, vem a complementá-las ou mesmo tornar os momentos históricos em que
mais se tocou nos assuntos relacionados à bruxaria em momentos críticos, nos
quais a existência da figura vista como bruxa ou feiticeira era o questionamento
apresentado e toda a polêmica acerca dele escondia outros problemas políticos e
sociais bem mais graves do que as tentativas de purificação dessas que eram
consideradas como criaturas do além. Prova disso são os inúmeros textos em torno
do assunto, em diferentes esferas do conhecimento. Em setembro de 2006, a
Revista História Viva apresentou um artigo, Bruxas, da fogueira ao confinamento,
em busca de esclarecer a existência desses seres:

A abordagem histórica das bruxas deve começar com a pergunta


inescapável: elas existiram? A resposta é afirmativa, mas comporta uma
ressalva. Sim, elas existiram, mas como construção social de uma época,
como objeto catártico de uma sociedade dominada pela Igreja que
demonizava o que soasse herético. [...] A repulsa e o temor à bruxaria
tinham também um componente que hoje seria chamado de sexista. Havia
bruxos, mas a perseguição visou mais às mulheres. Eram sobretudo elas
que morriam queimadas nas fogueiras da Inquisição medieval. Os tempos,
no entanto, mudaram e o declínio do poder da Igreja, a partir do Iluminismo,
correspondeu a penas mais brandas, como o isolamento das acusadas em
hospícios. (p.32)

Considerando as questões anteriores e colocando como ponto de partida a


premissa de que reescritas literárias trazem discursos anteriormente apresentados,

190 Universidade Presbiteriana Mackenzie

486
uma nova ótica, pode afirmar que, de alguma forma, a tentativa de preencher
“espaços” deixados por textos anteriores pode ajudar na melhor compreensão de
outros períodos históricos, sociais e, por que não, literários. Essas narrativas
intertextuais são apresentadas de maneira abundante na literatura contemporânea,
de forma especial aquelas originárias de países colonizados, cujas realidades
histórica e social sempre merecem ser retomadas. É considerando estas
perspectivas que o presente trabalho propõe apresentar as questões referentes à
condição feminina, através da imagem da feiticeira, por intermédio da presença
intertextual da personagem Tituba na peça As Bruxas de Salém (1953), do
dramaturgo norte-americano Arthur Miller e no romance Eu, Tituba, Feiticeira...
Negra de Salém (1986), da romancista antilhana Maryse Condé e por Frederico
Ferrera, estilista pernambucano, na Coleção Tituba (2015).
Devemos ressaltar a forma através da qual o diálogo entre as obras estudadas é
estabelecido. Na peça As Bruxas de Salém, lançada por Arthur Miller em 1953,
observamos a reconstituição da sociedade estritamente puritana que habitava a
cidade de Salem no século 17, ocasião em que ocorreu o famoso episódio histórico,
com graves influências sociais, então denominado “caça às bruxas”. É dado como
certo que o dramaturgo teve como inspiração para escrever a sua peça não somente
o episódio real da “caça às bruxas” como também o momento político que vivia na
década de 50 nos Estados Unidos, retomando as acusações graves e
inconsistentes proferidas pelo então Senador Joseph McCarthy que delatava a
suposta presença de comunistas infiltrados no seio do governo americano, bem
como os também inconsistentes julgamentos realizados quando do episódio
histórico de Salém, enfatizando, assim, a existência de comportamentos
considerados extremos, resultantes de vontades obscuras e motivações de cunho
pessoal, que são perceptíveis tanto no momento político americano em que a peça
foi escrita, quanto no momento do qual foi extraída sua inspiração, resultando em
uma grave crítica social. O próprio autor deixa claro na abertura da peça,
Esta peça não é história no sentido em que a palavra é usada por
historiadores acadêmicos. Exigências dramáticas muitas vezes me
obrigaram a fundir numa só várias personagens; a reduzir o número das
raparigas da ‘gritaria’, a dar mais idade a Abigail, a simbolizar em Hathorne
e Danforth uma mão cheia de juízes tão respeitáveis como eles. Apesar de

487
tantos tratos estou convencido que o leitor vai encontrar aqui a essencial
natureza dum dos mais estranhos e terríveis capítulos da história da
humanidade. O destino individual de cada personagem é exactamente o
mesmo de seu modelo histórico e neste drama nenhuma há que não
tivesse tido semelhante – e em alguns casos precisamente o mesmo –
papel na história. (MILLER, 1953, p. 9)

Em seu texto, Miller traz à tona a série de julgamentos ocorridos em Salém, como
podemos observar em:
Ninguém hoje sabe exatamente o que era a vida daquela gente. Não
tinham romancistas – nem permitiam a ninguém a leitura de romances, a
não ser que se tratasse de obra muito sisuda. As suas crenças proibiam
tudo o que, de perto ou de longe, cheirasse a teatro ou a outros
‘divertimentos gratuitos’. (id., p.12)

A motivação para que tudo ocorresse foi a descoberta de um grupo de garotas e


uma escrava, Tituba, encontradas nos arredores da comunidade dançando em torno
de uma fogueira, em um ritual para chamar espíritos através da magia. Naquela
sociedade puritana, tais práticas eram, obviamente, consideradas proibidas e
passíveis de severas punições, pois os preceitos daquela comunidade julgavam
intoleráveis quaisquer atitudes inapropriadas ou comportamentos social e
religiosamente inaceitáveis, sendo os culpados punidos publicamente por terem
pecado e quebrado o código de ética religiosa pré-estabelecido, o que transgredia
também suas crenças.
O Reverendo Parris, então responsável religioso pela comunidade, descobriu o
grupo dançando na floresta. Ele, de todas as formas, tenta encobrir o fato, pois
estavam entre as garotas sua filha e sobrinha, bem como Tituba, que lhe servia
como escrava. No entanto, sua filha Betty, ao notar a presença do pai no momento
em que ele chega à clareira, é tomada por um medo descomunal e, temendo não
somente a reação de seu pai, bem como a punição que receberia, simula uma
doença e as causas dessa suposta doença são atribuídas, pelas outras garotas,
como forma de fuga, ao demônio. Abigail, a sobrinha de Parris, culpa Tituba pelo
estado de Betty e a escrava passa a ser ameaçada não somente pelo reverendo
como por todos na comunidade, como uma forma de expiar seus pecados e, ao
mesmo tempo, encobrir a verdade dos fatos.

488
Uma vez que o médico local não se considera apto a desvendar o problema que, a
este ponto, atingia não somente a Betty, mas a outras garotas da comunidade (que
igualmente simulavam estados de incapacidade),
PARRIS: Que disse o doutor, filha?
SUSANA, desviando-se do olhar de Parris para poder dar uma olhadela
em Betty: O doutor pediu-me para lhe dizer, Reverendo, que ele não
encontra nos livros remédio para esta doença.
PARRIS: Então que continue a procurar.
SUSANA: Mas, Reverendo, ele tem estado a procurar nos alfarrábios
desde que daqui saiu, senhor. Por isso ele pediu-me para lhe vir dizer que
o melhor é o senhor começar a procurar causas sobrenaturais para isto,
pois as naturais não as encontra.
PARRIS: Não, não. Não há aqui nenhumas causas sobrenaturais. Vai dizer
ao doutor que eu já mandei chamar o Reverendo Hale de Beverley que vai
com certeza confirmar o que estou a dizer. O doutor que se ocupe de
medicina e não pense em causas sobrenaturais. Não existe cá disso.
(MILLER, 1953, pp.20-1)

A comunidade resolve buscar o Reverendo Hale, especialista em assuntos


sobrenaturais, é chamado para avaliar o caso e, assim, inicia-se o tumulto. Ele
examina as garotas, procurando possíveis alternativas para a explicação dos
eventos, mas nada encontra que pudesse ser explicado como causas naturais.
Decide, então, fazer um interrogatório com a escrava Tituba, uma vez que ela seria
a única com poder de revelar quais as razões daquela cerimônia “assombrosa”.
Obviamente, a escrava nega ter tido qualquer má intenção com relação ao que
acontecera com as garotas, dizendo nem mesmo entender qual seria o problema
com (, de quem sempre cuidara e a quem queria como a uma filha). Chega a jurar
nada ter feito contra a garota e recebe a promessa de que, se confessasse ter
conjurado espíritos ou mesmo manter alguma relação com o demônio, não seria
considerada culpada; do contrário, se continuasse negando suas influências e
ligações com o Maligno seria presa e enforcada. Ameaçada pelo Reverendo Parris,
a quem temia mortalmente e por toda a sociedade que via nela a única culpada,
Tituba vê como única saída confessar suas ‘ligações com o sobrenatural’, temendo
a morte e, ao mesmo tempo, sendo forçada a acusar outras pessoas daquela
comunidade que agissem da mesma forma, mantendo relações com o demônio:
HALE: Tituba, quero que acordes esta criança...
TITUBA: Tituba não tem poder sobre esta menina, senhor.
HALE: Eu estou certo que tens e vais libertar esta criança desse poder,
Tituba! Imediatamente! Desde quando tens pacto com o Diabo?

489
TITUBA: Tituba não tem pacto com o Diabo!
PARRIS: Ou tu confessas tudo, negra maldita, ou levo-te lá para fora e
chicoteio-te até morreres.
[...]
TITUBA: Não, não, não enforquem Tituba! Eu disse a ele que não queria
trabalhar para ele, patrão, eu disse.
[...] HALE: Tu és o instrumento que Deus pôs em nossas mãos para
descobrirmos os agentes do Demônio entre nós. Tu foste a escolhida,
Tituba, tu foste eleita para nos ajudar a limpar a nossa comunidade de todo
o mal. Por isso fala abertamente, Tituba, vira as costas a satanás e põe os
olhos em Deus! Põe os olhos em Deus, Titubam que ele te protegerá! [...]
Quem é que acompanhava o Demônio? Quem eram? Eram duas? Três?
Quatro? Quantas eram? [...] Diz os nomes delas.
TITUBA: Oh, quantas vezes ele me pediu para matar o Reverendo Parris!
[...] Então eu olhei e vi a Senhora Good [...] e a Senhora Osburn. (MILLER,
1953, pp. 85-92)

Neste trecho da narrativa, Abigail e as outras garotas notam a chance de se vingar


de quem sempre quiseram e de conseguir o que nunca tiveram e iniciam, então,
uma série de acusações infundadas. As acusações partem não somente pelas
garotas, por motivos aparentemente fúteis, mas também por outros membros da
comunidade que visavam outros interesses, como disputas de terras e ascensão
social. Surge, entre os acusados, o nome de Elizabeth Proctor, esposa de John
Proctor, com quem Abigail, a sobrinha de Parris, manteve um caso amoroso –
Elizabeth é presa e, na tentativa de provar sua inocência, Proctor também é
indiciado, assim como acontecia qualquer cidadão que tentasse proteger algum
acusado.
Proctor encontra-se em uma situação semelhante à de outros condenados, uma vez
que se recusava a confessar ou apresentar qualquer ligação com o demônio. Ele
concorda em “confessar”, mas acaba por mudar de ideia quando percebe que sua
confissão seria infundada e inútil, quando não lhe é permitido ficar com o
documento:
DANFORTH: Senhor Proctor, eu tenho que ficar com essa confissão...
PROCTOR: Não, não. Eu assinei. Os senhores viram-me assinar. Pronto.
O senhor não tem necessidade desse pedaço de papel.
DANFORTH: Mas, Proctor, a aldeia tem que ter uma prova de que o
senhor....
PROCTOR: Ao Diabo, a aldeia! Eu confessei a Deus e deus viu bem o meu
nome neste papel. Isso basta! [...] Confessei, sim senhor! Então só há boas
penitências em público? Deus não precisa ver meu nome afixado à porta
da igreja! Deus vê o meu nome aqui. Deus conhece os meus pecados e
sabe como eles são negros! Isso basta! [...]

490
DANFORTH: Então faça o favor de me explicar, senhor Proctor, por que
razão não quer...
PROCTOR: Porque se trata do meu nome! Porque não posso ter outro
nome na vida! Porque só disse mentiras e subscrevi calúnias! Porque não
sou digno sequer do pó que levantam os pés dos que vão morrer na forca!
Como posso eu viver sem o meu nome? Dei-lhes a minha alma, deixem-
me meu nome! (MILLER, 1953, pp. 278-281)

Fato é que muitos foram condenados à morte, mas com o passar do tempo, veio à
tona não somente a inconsistência das acusações, bem como os resultados da
chacina em Salém, como demonstra o próprio autor ao final da peça:

Vinte anos após a última execução, o governo concedeu uma indenização


às vítimas ainda vivas e às famílias dos mortos. No entanto, é evidente que
muita gente ainda não queria admitir a sua culpabilidade total e que o
fanatismo ainda vivia, porque muitos beneficiários não eram vítimas, mas
informadores. [...] Em reunião solene, a congregação levantou as
excomunhões. Isto em março de 1712, mas fez isto por ordem do governo.
O júri, porém, lavrou acórdão em que pedia perdão aos que tinham sofrido.
Algumas herdades pertencentes às vítimas foram votadas à ruína e por
mais dum século ninguém quis comprá-las ou viver nelas. De qualquer
maneira, o poder da teocracia em Massachusetts cairá por terra. (id., p.
285)

Quando Arthur Miller apresentou As Bruxas de Salém, criou uma atmosfera única
ao quando retoma os eventos históricos e as regras daquela sociedade puritana que
havia deixado a Europa para escapar da perseguição política e religiosa e buscava
na América uma nova Canaã, a terra prometida em que todos teriam as mesmas
oportunidades e seriam realmente iguais aos olhos divinos. Entretanto, ao
estabelecerem sua comunidade em solo americano, tomaram uma posição de
intolerância religiosa, demonstrando sua fé, honestidade e integridade através do
trabalho físico e total cumplicidade à doutrina religiosa puritana, considerando
desejos materiais e físicos como coisas advindas do demônio.
Ao recriar este cenário histórico-social, Miller deixa implicitamente claros seus
objetivos críticos à sociedade da qual é contemporâneo, relacionados à conduta
imposta pelas atitudes do Senador McCarthy, quando muitos eram acusados de
subversão e apoio às atividades comunistas. Tais pessoas eram presas pelas
acusações sem que tivessem como provar sua inocência ou terem direito à defesa.
McCarthy, nessa atmosfera, propôs à nação americana, como uma forma de

491
expurgá-la dos seus pecadores, uma nova “caça às bruxas” – referência clara ao
episódio de Salém, como se isso fosse um pedido de ajuda ao povo americano, no
intuito de tirar as manchas de sua a sociedade.
Com base em todas as descrições apresentadas, torna-se clara e evidente a
temática abordada por Miller em Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salém, romance
publicado em 1986 pela antilhana Maryse Condé, que traz a releitura de As bruxas
de Salém de forma mágica. Sua narrativa, escrita sob a forma de romance, traz a
personagem Tituba, de Miller, e sua participação no episódio de Salem. Entretanto,
Condé ultrapassa os limites da narrativa considerada hipotexto, uma vez que traz
sua narrativa subvertendo não somente a questão histórica quanto à ordem do texto
de Miller, uma vez que apresenta todos os eventos sob o ponto de vista da escrava,
desde antes de chegar a Salém até depois do episódio. Ao fazê-lo, Condé torna
possível explorar toda uma gama de questões filosóficas, culturais e sociais, dentre
elas: a questão de gênero, o papel materno, o feminismo, as similaridades entre as
experiências de negros e judeus, a questão do amor, sexo, racismo, escravidão
entre outros. Trata-se de uma obra de ficção e, em termos efetivamente históricos,
pouco se conhece sobre a vida da escrava Tituba, bem como há pouquíssimas
informações acerca de sua participação no episódio histórico de Salém – nada além
do fato de ter vindo de Barbados e confessar ser “uma bruxa”. O romance é iniciado
por:
Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês na ponte do
Christ the King, num dia de 16**, quando o navio velejava rumo a Barbados.
Foi dessa agressão que nasci. Desse ato de ódio e desprezo. (...) Minha
mãe chorou por eu não ser menino Achava que a sorte das mulheres era
ainda mais dolorosa que a dos homens. Para se libertarem de sua
condição, não tinham elas que passar pelas vontades daqueles mesmos,
que as mantinham na servidão e dormir em suas camas? Yao, ao contrário,
ficou contente. [...] Foi ele quem me deu meu nome: Tituba. Ti-Tu-Ba. Não
é um nome ashanti. Sem dúvida, ao inventá-lo, Yao quis provar que eu era
filha de sua vontade e de sua imaginação. Filha de seu amor. (CONDÉ,
1986, pp. 11-15)

Temos um encontro entre a Tituba de Miller e a sua nova Tituba, que relata sua
história desde antes mesmo de seu nascimento até sua chegada à América,
passando pelo episódio de Salém, sua condenação por ter confessado conjurar com
o demônio e ter escrito em seu livro e, posteriormente, cria uma nova realidade,

492
obviamente ficcional, para a escrava após a sua prisão. Em cada um desses
momentos, é possível perceber, através da narrativa, as diferenças entre a Titubas:
uma, escrava sem voz, calada pela sociedade, que se aproveita do momento da
confissão para dar voz às suas vontades e a outra, ainda escrava, mas com
personalidade marcante, questionadora.
A Tituba de Condé vai para a América para não ser separada do marido, John Índio,
que é vendido ao Reverendo Samuel Parris antes de sua partida para a América.
Ela abdica de sua própria liberdade, uma vez que não tinha donos, para poder ficar
ao lado do homem que amava. Pressentia os perigos que a cercavam, mas mesmo
assim, insistiu:

Eu sabia que perigos terríveis me ameaçavam, mas era incapaz de nomeá-


los [...]. Aquela noite soprou um ciclone.
[...]
John Índio balbuciou:
- Um novo proprietário, senhora!
- É. Um homem de Deus que cuidará da alma de vocês. É um ministro
chamado Samuel Parris. Tentou fazer comércio aqui, mas seus negócios
não andaram bem. Então vai para Boston.
-Para Boston, senhora?
- É, fica nas colônias da América. Preparem-se para acompanhá-lo.
John Índio estava perplexo. Pertencia a Susanna Endicott desde a infância.
[...] estava convencido de que mais dia menos dia iria falar em sua
libertação. Mas eis que, em vez disso, sem mais nem menos, lhe anunciava
que o vendia. E a quem, Senhor? A um desconhecido que ia atravessar o
mar para tentar a fortuna na América... Na América? Quem é que já tinha
ido à América?
Quanto a mim, entendi o terrível projeto calculado por Susanna Endicott.
Eu, somente eu era visada. Era eu que ela estava exilando nas Américas!
[...] (id., pp. 50-51)

Desde sua chegada ao continente americano, Tituba entende que sua vida ali nunca
seria fácil. Ela descreve a chegada ao porto com a família Parris, seu contato com
a esposa do Reverendo, sua filha e sobrinha e do carinho que nutria pela pequena
Betty, filha de Parris. Revela que a família é transferida para a aldeia de Salém,
indicando que nem tudo parecia bem: “Desde o instante em que entrei em Salém
senti que nunca seria feliz ali. Senti que minha vida aí conheceria provas terríveis,
e que acontecimentos singularmente dolorosos embranqueceriam todos os cabelos
da minha cabeça!” (CONDÉ, 1986, p. 81)

493
Assim que as meninas da aldeia, entre elas Betty e Abigail, passam a demonstrar
sinais de ‘histeria’, Tituba é acusada de feitiçaria, pois rondavam a aldeia boatos de
que ela mexia com ervas e com os espíritos dos mortos. Ela, no entanto, fazia uso
da sabedoria que lhe fora passada por seus ancestrais para curar doenças e
confortar os que precisavam de auxílio. A personagem sente-se uma estranha para
si mesma naquele ambiente e as acusações só vêm a corroborar com tal situação:
“Havia, no entanto, uma coisa que eu ignorava: a maldade é um dom que se recebe
ao nascer. Não se adquire.” (id., p. 99)
Toda forma de defesa a seu favor era em vão, pois já havia sido condenada: “Você,
fazer o bem? Você é negra, Tituba! Só pode fazer o mal. Você é o mal!” (id., p. 104)
Até que a escrava se decide por tomar atitudes similares às daqueles que acusavam
injustamente, visando reverter a sua situação:

Quem eles queriam que eu denunciasse? Atenção! Eu não ia me contentar


com denunciar as infelizes que caminhavam comigo na lama. Eu ia bater
forte. Ia bater na cabeça. E eis que na extrema miséria em que me
encontrava, o sentimento do meu poder me embriagava! Ah, sim, o meu
John Índio tinha razão. Aquela vingança, com a qual eu tinha
frequentemente sonhado, me pertencia, e pela vontade deles próprios! (id.,
p. 125)

Neste momento, Tituba sente-se fortalecida pelas palavras de John Índio e pela
visão que teve de sua avó, Man-Yaya:

Não se aflija, Tituba! Você sabe, o azar é irmão gêmeo do negro! Nasce
com ele, deita-se com ele, disputa com ele o seio murcho. Come o peixe
da sua cuia. No entanto, ele resiste. O negro! E aqueles que querem vê-lo
desaparecer da superfície da terra pagarão caro. De todos, você será a
única a sobreviver! (id., p. 115)

Depois da confissão, Tituba é condenada e, tal qual a Tituba de Miller e a


personagem histórica, vai para a prisão. Entretanto, seu destino é distinto se
comparado ao das outras Titubas. A personagem de Condé volta a Barbados e se
vê envolvida em conflitos em prol da liberdade. Descobre-se como figura histórica
idolatrada por seu povo e passa diversos outros dissabores antes de sua morte.
Condé, ao retomar os fatos históricos e a narrativa de Miller, estabelece uma
interação entre as personagens apresentadas, revelando, em seus diálogos, uma
série de críticas severas ao comportamento social da época no tocante à condição

494
feminina e, ainda mais importante e abrangente, questiona os “silêncios” e a
“submissão”, o “poder” e o “fazer” presentes na condição do gênero feminino sob
diferentes pontos de vista, além de questionar o que realmente representaria ser
uma ‘feiticeira’ em uma sociedade que de tão conservadora, revelava-se, em
verdade, hipócrita em demasia.
Assim, a releitura da peça de Miller apresentada no romance de Condé apresenta a
possibilidade de discussão entre as dicotomias estória / história, verdade / exclusão,
colonizador / colonizado, civilização / selvageria, racismo / sexismo, dominação /
submissão, centro / periferia, exílio / alienação, tempo / espaço, realidade / ficção
ou, como Linda Hutcheon assim denota, uma ‘metaficção historiográfica’. Quando
expõe as formas pelas quais tal ficção é produzida, Hutcheon chama a atenção do
leitor para o status do romance como uma espécie de artefato e não como uma
reprodução relativamente fiel da realidade. Assim, essa consciência pessoal da
narrativa revela o fato de que a literatura não reflete nenhuma realidade de maneira
inocente, pelo contrário, cria ou denota uma realidade, e, ao fazê-lo, a torna
significativa.
Com base em todas essas Titubas, a personagem histórica e suas releituras
ficcionais, deparamos com mais uma possibilidade de releitura intertextual, desta
vez sob outra perspectiva artística: aquela do mundo da moda. Em 2015, o estilista
pernambucano Frederico Ferrera lançou sua coleção de inverno intitulada Tituba.
Segundo apresentação da coleção no site do estilista, “Batizada de Tituba, a
coleção de inverno 2015 da grife Frederico F. (...) vem inspirada no mistério, na
força, na sensualidade e no misticismo da mulher brasileira que vive nas grandes
metrópoles.”
Embora traga para a contemporaneidade e para o espaço das metrópoles a figura
da escrava por meio de sua coleção, Frederico F. promove, à sua maneira, uma
reatualização da personagem Tituba, trazendo a figura feminina a um patamar de
força misteriosa e misticismo sensual, embebida pelo universo mágico da literatura
e pela realidade dos modelos criados pelo estilista para esta coleção.
Ainda no site, encontramos o mote central da campanha de lançamento da referida
coleção: “A ideia da campanha é mostrar um pouco mais por baixo dos babados e

495
decotes profundos. Um olhar além da magia e do dom de iludir sobre o que é estar
na pele de uma mulher”.
Em consulta via e-mail ao estilista, na tentativa de obter mais informações sobre as
fontes de inspiração para que compusesse sua coleção, foi possível descobrir que
a coleção foi pautada no convívio do estilista com diversas mulheres artistas e em
sua forma de fantasiar o mundo, em busca da real essência da mulher real. Ele
menciona ter buscado informações em filmes e séries mais noir, com temáticas
relacionadas às bruxas e que em um desses materiais “[...] a Tituba apareceu pra.
mim [sic], negra, forte, bruxa, com um bom nome e com uma história forte” E o
estilista complementa:
Desenvolvi a coleção conceitual e a comercial, eu uso em minhas coleções
apenas tecidos naturais, então utilizei muito linho e algodão, as roupas
eram fluidas com cortes assimétricos e acabamentos desfeitos, a maioria
das peças possuíam um formato de triângulo, e as barras dos vestidos e
saias eram manchados de prateado como se essa mulher andasse sempre
por um chão empoeirado e antigo.
Já a coleção comercial tem as peças que a marca já vende bem e o
conceito do desfile foi diluído para que a roupa ficasse usável, desenvolvi
uma estampa de cobra Coral, que foi diluída para ficar geométrica e
estampada digitalmente no tecido.

Assim, considerando as diversas Titubas relidas ao longo deste estudo, seria


possível afirmar que a figura da escrava marcada nas páginas da História assumiu
diversas identidades em diferentes cenários históricos, sociais e literários,
permitindo ao leitor uma perspectiva de entendimento e de percepção de
identidades muito amplamente discutida, quer seja por meio de críticos, quer seja
pela ótica da moda.

Referências Bibliográficas
ASHSCROFT, B. & GRIFFTHS, G & TIFFIN, H. The Empire Writes Back. London
and New York: Routledge, 1991.
BERND, Zilá. Escrituras Híbridas: Estudos em literatura comparada
interamericana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRG, 1998.
BOEHMER, Elleke. Colonial and Postcolonial Literature. New York: Oxford
University Press, 1995.

496
CONDÉ, Maryse. Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salém. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2005.
HANCIAU, Núbia. A feiticeira no imaginário ficcional das Américas. Rio Grande: Ed.
da FURG, 2004.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
MILLER, Arthur. As Bruxas de Salém. Porto: Editorial Presença, 1961.
______________. The Crucible. Harmondsworth: Penguin, 1998.
Revista História Viva, edição de setembro de 2006.
SCHEIDT, Jennifer L. Cliffsnotes on Miller’s ‘The Crucible’. New York: IDG Books,
2000.
http://hallsocial.leiaja.com/tags/tituba?page=12825
www.fredericof.com.br
http://www.siteits.com/as-novidades-da-marca-frederico-f/

497
A CORREÇÃO NAS ENTREVISTAS TELEVISIVAS:
COOPERAÇÃO E CONFLITO

Lorena Maria Nobre Tomás191


Renata Nobre Tomás1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo analisar como se configura o processo


de correção em entrevistas. Para tanto, investigamos duas entrevistas do programa
De frente com Gabi exibido aos domingos no SBT. Para a constituição de nosso
corpus, selecionamos duas entrevistas. Uma com o ex-jogador de basquete Oscar
Schmidt192, transmitida em 11/08/2013 e com 35 minutos de duração. A outra, com
o Pastor Silas Malafaia 193, exibida em 03/02/2013 e com duração de 45 minutos.
Optamos pelo gênero entrevista de televisão por considerá-lo um exemplar
autêntico da língua falada em contexto formal. Em nossa análise, observamos não
apenas o que se corrige nesses momentos de fala monitorada, mas quem corrige e
com qual objetivo.
Para a realização deste artigo, pautamo-nos nas bases teóricas da Análise
da Conversação. Recorremos, assim, aos estudos de pesquisadores brasileiros
como Marcuschi (2003 [1986]); Barros e Melo (1990); Barros (1999 [1993]); Fávero
1999 [1997]; Fávero, Andrade e Aquino (1999 e 2006); Castilho (2009 [1998]), entre
outros.
Este trabalho está organizado em duas partes: 1) as bases teóricas que
nortearam a pesquisa; 2) a análise das duas entrevistas selecionadas.

191
As autoras são doutorandas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professoras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e
bolsistas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
192
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=buUHwT6xaE4>. Número de visualizações: 18.658.
Acesso em: 12 de maio de 2015.
193
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Myb0yUHdi14>. Número de visualizações:
6.678.732. Acesso em: 15 de abril de 2015.

498
1. A CORREÇÃO COMO PROCESSO DE REFORMULAÇÃO TEXTUAL
A atividade de reformulação é inerente ao ato de comunicação seja na
modalidade escrita seja na falada. No texto escrito, como destaca Marcuschi (2003
[1986], p. 28), “o leitor só recebe a versão final” e, consequentemente, não tem
acesso ao seu processo de construção. No texto falado, por sua vez, o momento do
planejamento e o da produção são quase simultâneos, o que permite que o processo
de elaboração seja visualizado em tempo real pelos interlocutores. Na conversação,
de acordo com Marcuschi (2003 [1986]), tudo o que se fizer é definitivo. Como não
é possível apagar/editar, o texto explicita as hesitações, pausas, repetições,
correções etc.
Na correção, o falante reformula o que considera inadequado do ponto de
vista linguístico ou interacional a fim de garantir a intercompreensão. Segundo
Fávero, Andrade e Aquino (1999, p. 57), “corrigir é produzir um enunciado lingüístico
(enunciado reformulador - ER) que reformula um anterior (enunciado fonte - EF),
considerado ‘errado’ aos olhos de um dos interlocutores; a correção é, assim, um
claro processo de formulação retrospectiva”. Marcuschi (2003 [1986], p. 29) defende
que a correção funciona como “processo de edição ou auto-edição conversacional
e contribui para organizar a conversação localmente”.
A correção pode ser realizada pelo próprio falante ou por seu(s)
interlocutor(es). A partir dos modelos propostos por Schegloff, Jefferson e Sacks,
Marcuschi (2003) apresenta quatro subdivisões para a correção. A autocorreção
autoiniciada é “feita pelo próprio falante logo após a falha” (MARCUSCHI, 2003
[1986], p. 29). Pode ocorrer no mesmo turno ou no seguinte. O mais comum é que
a correção seja efetivada imediatamente após o erro. Com isso, evita-se que a
correção seja efetivada pelo interlocutor, o que poderia expor a face do falante
perante seus pares ou permitir a perda do turno. Esse é certamente o motivo pelo
qual Schegloff, Jefferson e Sacks, segundo Marcuschi (2003 [1986]), a classificaram
como a modalidade preferida na conversação, pois além de preservar a face do
falante, ainda o mantém com o turno conversacional.
Autocorreção iniciada pelo outro “é a correção feita pelo falante, mas
estimulada pelo seu parceiro ou por outro” (MARCUSCHI, 2003 [1986], p. 29),

499
também é denominada de autocorreção heteroiniciada. Já na correção pelo outro e
autoiniciada ou heterocorreção autoiniciada, “o falante corrente inicia a correção que
é efetivada pelo interlocutor” (FÁVERO, ANDRADE e AQUINO, 1999, p. 66). Na
correção pelo outro e iniciada pelo outro, “o falante comete a falha e quem corrige é
o parceiro” (MARCUSCHI, 2003 [1986], p. 29).
Além de preservar a própria face, como geralmente ocorre na autocorreção,
a correção pode ter diferentes objetivos: manter o turno, ser cooperativo com a
conversação, desqualificar a imagem do outro, tomar o turno do interlocutor.
Quanto ao que é corrigido, Fávero (1999 [1997]) divide em dois grupos,
linguísticos e enunciativos. Os linguísticos podem referir-se a aspectos fonético-
fonológicos, morfossintáticos e lexicais. Castilho (2009 [1998], p. 42) ainda trata de
questões pragmáticas relacionadas às normas conversacionais, como estratégias
para “reparar na distribuição do turno”.
Quanto aos elementos que marcam a correção na língua falada, Fávero,
Andrade e Aquino (2006, p. 69-70) distinguem dois tipos: as prosódicas e os
marcadores discursivos. As marcas prosódicas mais citadas pelos pesquisadores
da área são: pausa, repetição, alongamento, mudança na curva entonacional,
velocidade da elocução e intensidade da voz. A pausa é a mais recorrente e,
normalmente, combina-se com outras marcas. Quanto aos marcadores discursivos
são bastante diversificados. Podem funcionar como marcadores de correção: não,
quer dizer, ou melhor, bom, perdão; e ainda expressões como: ahn, ah, hein, entre
outras.
São considerados como marcadores extralinguísticos os gestos, o
movimento de cabeça, o olhar, o riso, entre outros. Os marcadores não verbais
podem ser divididos em paralinguísticos e cinésicos. Conforme Dionísio (2006),
correspondem à paralinguagem os sons emitidos pelo aparelho fonador, mas que
não fazem parte do sistema sonoro da língua e à cinésica, os movimentos do corpo
como gestos, postura, expressão facial, olhar e riso. O movimento de cabeça
correspondendo a uma negativa, por exemplo, é uma marca muito comum no
processo de correção na fala.

500
Quanto às funções da correção, elas irão variar de acordo com os objetivos
interacionais dos interlocutores e, consequentemente, com a situação comunicativa
em que estão inseridas. Como resposta à pergunta “para que se corrige?”, Barros e
Melo (1990, p. 53) atribuíram à correção três principais objetivos, desmembrados
da função geral de propiciar a adequação e a intercompreensão na conversação, a
saber:
a) O objetivo cognitivo-informativo tem por função “fazer o ouvinte bem
compreender os conteúdos ‘objetivos’ da conversação” (BARROS e MELO, 1990,
p. 53). Nesse caso, o locutor visa à precisão referencial, sendo, portanto, subdividido
pelas autoras em: 1) precisão referencial e 2) precisão anafórica. O primeiro refere-
se à reformulação de inadequação semântica acerca do referente. Já o segundo é
mais específico, pois corresponde à correção de inadequações quanto ao que já foi
dito durante a conversação.
b) Os objetivos enunciativos ou pragmáticos “asseguram, na conversação, a
boa compreensão da posição social e das opiniões dos locutores” (BARROS e
MELO, 1990, p. 53) e são divididos em dois grupos: 1) compreensão das opiniões,
sentimentos e crenças do locutor; 2) reconhecimento da posição social dos
locutores [...] ou de cada um dos interlocutores. A este último correspondem as
correções relacionadas à adequação à norma culta. As autocorreções assim
motivadas demonstram preocupação do locutor em preservar sua autoimagem de
falante culto perante seus interlocutores.
c) As funções interacionais, por sua vez, “podem ser entendidas [...] como a
procura de cooperação na conversação e de estabelecimento de relações de
envolvimento interpessoal” (BARROS e MELO, 1990, p. 54). Esse envolvimento
entre os interlocutores não significa necessariamente concordância, podendo
ocorrer divergência de opiniões. São também divididos em dois: 1) cooperação e
participação na conversa e 2) estabelecimento de envolvimento emocional. Este
último está relacionado tanto ao efeito de familiaridade, quanto ao de desacordo,
pois, como bem nos lembram Barros e Melo (1990, p. 56), “corrigir é criar
envolvimento, é compartilhar o discurso, mas é também exercer controle sobre o

501
parceiro, manifestar saber e poder, brigar pela vez e pelo turno, acentuar as
diferenças entre os interlocutores”.
Essa divisão das funções da correção tem um caráter didático, pois elas
normalmente não se realizam de forma isolada.

2. A CORREÇÃO NAS ENTREVISTAS DE FRENTE COM GABI

As duas entrevistas têm um caráter altamente dialógico. Mesmo sendo


assimétricas, pois os entrevistados têm predomínio sobre o turno conversacional,
como comumente acontece nesse gênero, há um alto grau de interação, com
participações da entrevistadora não só para conduzir a entrevista e elaborar as
perguntas, mas também para apresentar argumentos contrários/favoráveis aos dos
entrevistados.
Apesar dessas semelhanças, selecionamos essas duas entrevistas por terem
sido conduzidas de modo diferente. Enquanto com Silas o clima era de tensão e
conflito, com Oscar havia cumplicidade. Com isso, pretendemos analisar como se
configura o processo de correção nessas duas entrevistas. Se a correção constitui-
se do mesmo modo e quais estratégias são empregadas em cada uma delas.
Para a análise das correções, fizemos primeiramente a transcrição dos dados
seguindo as convenções propostas pelo Projeto Norma Urbana Culta (NURC) a
partir das concepções teóricas da Análise da Conversação. Depois disso,
procedemos à análise das correções, verificando quem corrige, que estratégias
emprega e com que objetivos.
A entrevista com Oscar Schmidt parece mais um bate-papo descontraído.
Versou sobre o início da carreira do atleta como jogador de basquete, sobre a
família, como tem se recuperado das cirurgias e superado o câncer, bem como
sobre a atual profissão de palestrante. A temática por si só já contribui para uma
conversação mais colaborativa. Entrevistado e entrevistadora estão muito
confortáveis e não registramos ataques à imagem de nenhum dos falantes. Embora
haja sobreposição de falas e assaltos aos turnos, isso se dá harmonicamente.

502
As correções encontradas dão-se de três modos: autocorreção
heteroiniciada, autocorreção autoiniciada e heterocorreções (correção pelo outro e
iniciada pelo outro). Houve o predomínio dessas duas últimas e não registramos
nenhuma ocorrência de correção fonético-fonológica. Esse tipo de correção não é
comum nas entrevistas porque os falantes estão em um momento de fala
monitorada (mesmo que distensa) e porque soaria deselegante algum tipo de
heterocorreção dessa natureza, pois haveria uma exposição da imagem de quem
tivesse cometido o equívoco.
Constatamos que as autocorreções ocorreram, conforme defendem Fávero,
Andrade e Aquino (1999, p. 74), “com o intuito de preservar a auto-imagem pública”.
Essa preservação deu-se de dois modos: ora para proteger a própria face, como em
(1), ora para preservar a face de seu interlocutor, como em (2).
No exemplo a seguir, Marília Gabriela (L1) retoma uma das falas de Oscar
(L2) em que ele disse ter ganhado mais dinheiro fazendo palestras do que com o
basquete.
(1)
L1 – agora...você diz... na paLEStra eu ganhei uhn:... muito mais... do que/ou ganhei
MAIS do que ganhei com o::
L2 – [sem dúvida

A entrevistadora formula a pergunta afirmando que Oscar havia dito que


ganhou “muito mais”. Hesita, emprega o marcador “ou” e corrige sua fala para
conferir maior precisão ao dito, conforme a afirmação anterior do jogador que disse:
“eu vivo disso hoje MELHOR que jogando basquete”.
Oscar não havia dito que ganhava “muito mais” com as palestras. Ele afirmou
que vivia “melhor”. A autocorreção, portanto, teve como propósito precisar a
informação para que a entrevistadora não corresse o risco de ser corrigida
posteriormente por seu interlocutor ou prejudicar sua credibilidade junto a seus
telespectadores que haviam acabado de ouvir a fala de Schmidt.
Com a autocorreção heteroiniciada presente em (1), verificamos a
preocupação de Marília Gabriela em ser colaborativa com o ex-jogador. Em (2), a
entrevistadora conduz Oscar a modalizar uma afirmação comprometedora,
passando da certeza “sem dúvida” à incerteza “talvez não”.

503
(2)
L2 – problemão... eles não queriam me deixar sair de lá...
L1 – que queriam operar imediatamente
L2 – ah e ganhar a grana deles... né?
L1 – cê acha que era por isso?
L2 – SEM: DÚVIDA... talvez não
L1 – TALVEZ não... acho que... pela emergência... você tem um troço desse tamanho dentro
da cabeça... pô

No exemplo a seguir, a apresentadora verifica um equívoco na resposta de


Oscar e, ao invés de corrigi-lo, faz uma pergunta, conduzindo-o à autocorreção.
(3)
L2 – é terrível ficar de mau-humor
L1 – é mau-humor?
L2 – não ((gesticula com a mão e a cabeça)) ficar de bom-humor cansa:do irrita:do...

Quanto às heterocorreções, verificamos que foram bastante recorrentes.


Barros (1999 [1993], p. 144) ratifica que elas “caracterizam conversações
fortemente polêmicas ou cooperativas, em que os laços interativos são tensos”. Na
entrevista com Oscar, o que predomina é a cooperação. Em (4), por exemplo, Oscar
corrige a entrevistadora.
(4)
L1 – e aí... aí você ti/esse era o único sintoma?
L2 – único único
L1 – [a dor... essa dor... que você/de quando RIA... só?
L2 – [isso... não... quan/quando
griTAva
L1 quando gritava... e eu... quando ria é ótimo... quando griTAva
L2 – [quando GRITAVA

Em (4), Oscar busca a precisão anafórica. Ele já havia informado em trecho


anterior que sentia dor de cabeça quando “gritava”, e Marília retoma dizendo “ria”.
Oscar, ao perceber o equívoco, hesita, emprega o marcador “não” e enuncia
enfaticamente o termo adequado. Marília reconhece o erro e repete a palavra
correta.
Podemos observar com esses fragmentos que, na entrevista com Oscar
Schmidt, as correções assumiram um caráter cooperativo. Entrevistadora e
entrevistado utilizaram as correções para garantir a intercompreensão, precisar
informações, mostrar interesse pela fala do outro e preservar tanto a sua face quanto
a de seu interlocutor.

504
Passemos agora à análise da entrevista com o pastor evangélico Silas
Malafaia. Nessa entrevista, os assuntos tratados são polêmicos. Primeiramente,
aborda-se o fato de a revista Forbes ter declarado que o entrevistado é o terceiro
pastor evangélico mais rico do país. Fala-se também das ofertas e dízimos dados
pelos fiéis à igreja. Outro tópico relevante na entrevista é a discussão sobre a
homossexualidade. Os temas foram polêmicos e o tom da entrevista é, portanto, de
embate, confronto.
Nesse contexto, o que se destacou no corpus foram as heterocorreções.
Elas foram largamente utilizadas tanto pelo entrevistado quanto pela entrevistadora
que assumiu algumas vezes o papel de debatedora. Além disso, pudemos perceber
que as estratégias de correção empregadas pelo entrevistado se assemelham às
mencionadas por Fávero, Andrade e Aquino (1998, p. 5) ao tratarem das correções
nas entrevistas:

ao empregar a estratégia da correção, o entrevistado preocupa-se mais


com a audiência do que com o envolvimento com o entrevistador,
redirecionando a atividade interacional e não permitindo, nesse instante,
que o entrevistador assuma o comando da situação.

Por diversas vezes, o entrevistado não deixa a entrevistadora prosseguir. Ele


tem pressa em corrigir seu interlocutor, pois tem consciência do peso de tais
afirmações para sua audiência. Em decorrência da polêmica acirrada entre os
interlocutores, verificamos em alguns momentos a inversão de papéis, ou seja, o
entrevistado tenta dirigir a entrevista e faz perguntas. Como no início deste trecho:
(5)
L2 – então o que digo pra você é o seguinte... vai lá:: no po::vo... como é que uma pessoa...
Marília Gabriela... fica trinta anos numa igreja... quarenta anos numa igreja dando
oferta e dízimo e não tem benefício nenhum? é um imbecil idiota
L1 – [não... não... não... não ((acena negativamente com a mão))
L2 – [então como é que é isso... o maior beneficiado são as pessoas e não a igreja
L1 – [eu acho...
L1 – eu acho que encontra um conforto um (tipo de) conforto
L2 – [NÃO... encontra muito mais

A entrevistadora, agora no papel de entrevistada, tenta corrigir, recuperar o


turno, mas é interrompida por L2 até que ele conclua seu argumento: “os maiores
beneficiados são as pessoas e não a igreja”, no qual corrige a afirmação anterior
de L1.

505
Esse fragmento evidencia ainda a forte presença das estratégias de correção.
Os enunciadores brigam constantemente pelo turno a fim de desqualificarem a
opinião do outro. As heterocorreções tanto de L1 quanto de L2 expressam
discordâncias de opinião, acentuando as diferenças entre eles. Nesse sentido,
destacamos a forte recorrência do marcador discursivo “não” que é o mais típico da
correção e deixa explícita a relação de oposição semântica entre os enunciados.
Em relação ao tópico da homossexualidade, a primeira correção é acerca do
termo “homossexualismo”, que foi considerado incorreto por L1, resultando na
heterocorreção presente no fragmento abaixo:
(6)
L2 – na minha igreja não... ele não teria sido reeleito... deixa eu falar sobre essa questão de
homossexualismo...
L1 – DADE
L2 – ahn?
L1 – DADE... homossexualiDADE
L2 – [homossexualidade
L2 – isso... obrigado... deixa eu te falar uma coisa... PRImeiro... ninguém nasce gay...
homossexualismo é um comportamento... eu vou fazer uma definição

Nesse caso, chamam-nos a atenção o como e o porquê dessa correção. A


apresentadora não utiliza marcador verbal para corrigi-lo, apenas enfatiza o sufixo
que julga correto “-dade”. O entrevistado exprime espanto “ahn?” e diz aceitar a
correção “isso... obrigado”. Essa é uma correção motivada por questões ideológicas,
que irá se explicitar ao longo de toda a entrevista. O entrevistado, ao ser corrigido
novamente, não aceita mais a correção e argumenta confirmando seu
posicionamento. Evidencia-se assim a posição ideológica, as crenças dos
interlocutores, e o diálogo prossegue em tom agressivo. Em vários momentos,
disputam o turno para que possam expressar conhecimento e poder sobre os
interlocutores (entrevistada e telespectadores).
Marília Gabriela busca também manter seu papel de entrevistadora
assumindo o controle da situação. No trecho que segue, ela percebe que o
entrevistado está escapando do tópico e o interrompe dizendo: “eu não tô
perguntando isso pra você”. O entrevistado reconhece a fuga e, sem muita escolha,
responde conforme o tópico em questão. Vejamos o excerto:
(7)
L2– primeiro tem mais na fila casais héteros esperando crianças do que homo...

506
L1– [eu não tô perguntando
isso pra você eu tô perguntando/eu to falando das novas famílias
L2– [não eu NÃO acredito
L1 – [venha cá
Além das constantes heterocorreções que visam à tomada do turno,
destacamos o segmento abaixo, que evidencia o emprego de uma correção
metacomunicativa, ou seja, corrige-se o próprio ato comunicativo, a saber: se
alguém pergunta é porque quer uma resposta. Por isso, L2 após ser interrompido
assevera em trecho sobreposto: “se você quer saber eu tenho que te responder”. O
entrevistado está pedindo para falar.
(8)
L1 – não não essa conversa não vai terminar nunca e eu quero saber de você
L2 – [se você quer saber eu tenho que te
responder
L1– eu quero saber qual é a TUA questão com a homossexualidade?
L2 – [então vamo lá...vamo lá...eu eu vou dizer qual é a questão

A entrevistadora, ao perceber que a “conversa não vai terminar nunca”, utiliza


tal recurso na tentativa de controlar a situação e recomeça fazendo uma pergunta
mais pontual: “qual é a TUA questão com a homossexualidade?”.
Como se pode observar, a ocorrência da correção, mais especificamente da
heterocorreção, é significativa na entrevista com o pastor Silas Malafaia. Corrige-se
principalmente para discordar e para tomar o turno a fim de expressar seu ponto de
vista e de influenciar a audiência. Além disso, destacamos a preservação da
autoimagem pública, em especial no que se refere ao primeiro bloco da entrevista
em que se discutia um assunto polêmico, o enriquecimento de pastores e das igrejas
evangélicas.

CONCLUSÃO
Apesar de as entrevistas terem a mesma estrutura, as estratégias de
correção foram empregadas de modo diferente. Na entrevista com Oscar Schmidt,
há um clima de cumplicidade. A entrevista é conduzida em tom de brincadeira. Em
inúmeros momentos, ambos riem dos gracejos do ex-jogador. Há uma clara
demonstração de afeto e cuidado. Marília Gabriela o chama de “amor” e, em dois
momentos, após alguma brincadeira de Oscar, diz carinhosamente que ele é “bobo”,
expressão que soa quase como um afago. Esse cuidado é explicitado inclusive na

507
forma como as correções foram feitas, conforme pudemos verificar nos exemplos
aqui analisados.
Na entrevista concedida pelo pastor Silas Malafaia, por sua vez, há um clima
de tensão. Há inúmeros conflitos, opiniões divergentes e, em vários momentos,
interrompem um ao outro. Para isso, uma das estratégias empregadas foram as
correções. Houve o predomínio da heterocorreção com o intuito de evidenciar o erro
e, consequentemente, desqualificar os argumentos apresentados.
Os objetivos das correções serão determinados, portanto, não apenas pelo
gênero entrevista em si, mas pelas condições de produção da conversação. O tipo
de correção, o modo como se corrige e suas funções evidenciam as posições
ideológicas bem como os papéis sociais desempenhados pelos interlocutores. Por
essa razão, em nosso corpus, identificamos estratégias de correção tão díspares.

REFERÊNCIAS
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PRETI, Dino (org.). Análise de textos orais. 4. ed. São Paulo: Humanitas
Publicações – FFLCH/USP, 1999 [1993]. (Projetos Paralelos, Vol. 1) (p. 129-156)

______; MELO, Zilda Maria Zapparoli. Procedimentos e funções da correção na


conversação. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de; PRETI, Dino; URBANO,
Hudinilson (orgs.). A língua falada culta na cidade de São Paulo: materiais para seu
estudo. São Paulo: T. A. Queiroz, FAPESP, 1990. (p. 13-58)

CASTILHO, Ataliba Teixeira de. A língua falada no ensino de português. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2009 [1998].

DIONÍSIO, Ângela Paiva. Análise da conversação. In: MUSSALIM, Fernanda;


BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 5. ed. São
Paulo: Cortez, 2006. Vol. 2. (p. 69-99)

FÁVERO, Leonor Lopes. Processo de formulação do texto falado: a correção e a


hesitação nas elocuções formais. In: PRETI, Dino (org.). O discurso oral culto. 2. ed.

508
São Paulo: Humanitas Publicações – FFLCH/USP, 1999 [1997]. (Projetos Paralelos,
Vol. 2) (p. 141-159)

FÁVERO, Leonor Lopes; ANDRADE, Maria Lúcia da C. V. de Oliveira; AQUINO,


Zilda Gaspar Oliveira de. Discurso e interação: a reformulação nas
entrevistas. DELTA, São Paulo, v. 14, n. Especial, 1998. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
44501998000300008&script=sci_arttext>. Acesso em: 15 de abril de 2015.

______. A correção no texto falado: tipos, funções e marcas. In: NEVES, Maria
Helena de Moura (org.). Gramática do português falado: novos estudos. 2. ed. São
Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, Campinas: Editora da UNICAMP, 1999. Vol. 7. (p.
53-76)

______. Correção. In: JUBRAN, Clélia Cândida Abreu Spinardi; KOCH, Ingedore
Villaça. Gramática do português culto falado no Brasil. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2006 (Vol. 1. Construção do texto falado). (p. 255-273)

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. 5. ed. São Paulo: Ática, 2003
[1986].

509
O DISCURSO DA MARCA FOLHA DE S. PAULO: UMA ANÁLISE
SEMIÓTICA DAS INTERAÇÕES OFF-LINE E ON-LINE COM OS LEITORES

Luciana Azevedo Pereira194


Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa195

Considerações Iniciais

O desenvolvimento da internet e as inovações tecnológicas permitiram o


surgimento de novas formas de comunicação e causaram impactos na produção e
disseminação de informação pelos veículos de comunicação. Tais mudanças
impactam a marca de um veículo de comunicação no momento de sua expansão
para o ambiente on-line, em especial para as redes sociais, e as interações com
seus leitores, gerando um desafio gerencial para esta marca.
Além de identificarem as origens dos produtos, as marcas também
desempenham outras funções que estão relacionadas diretamente ao consumidor.
Sherry Jr. (2006) identifica marca como um repositório de significado na cultura do
consumidor e um “empreendimento semiótico da empresa”. As marcas são lentes
pelas quais se enxerga o mundo e se tornaram veículos que carregam pensamentos
e emoções. Deve ser entendida como uma experiência semiótica pelos profissionais
de marketing, que precisam estar atentos para gerenciar a produção de novos
sentidos, em um processo de descobrimento, criação e transformação dos
significados.
Neste contexto, o presente trabalho investiga se existe convergência entre o
projeto de marca proposto pela Folha de S. Paulo e três manifestações
fundamentais da marca: a versão impressa (off-line), o website e o perfil no
Facebook (on-line). O estudo utiliza o modelo de Projeto/Manifestação de identidade
de marca proposto por Andrea Semprini (2010) e as ferramentas teórico-

194
Mestrado em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
195
Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Professor Adjunto I da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro

510
metodológicas da Semiótica discursiva de linha francesa (GREIMAS; COURTÉS,
2008) para a análise das manifestações da marca. A fim de aprofundar a
compreensão das interações que se dão entre a Folha de S. Paulo e os seus
consumidores/leitores, recorre-se ao modelo preconizado por Eric Landowski
(2014), segundo o qual as interações podem se inserir em quatro regimes:
programação, manipulação, ajustamento e acidente.

Corpus

Para a reconstrução do projeto de marca, a partir do modelo proposto por


Semprini (2010), foram utilizadas fontes oficiais da empresa Folha de S. Paulo,
como: o website da empresa, rico em dados sobre a sua história, missão, visão,
valores, diferenciais e atributos da marca, além de vídeos, histórico de campanhas
publicitárias, fotos, entre outros dados; o livro “Folha explica: Folha”, editado em
2012 pela Publifolha, editora do grupo Folha de S. Paulo; o Manual de Redação da
Folha de S. Paulo, editado desde 1987, pela mesma editora; e o documentário “O
jornal do futuro”, produzido a pedido da Folha de S. Paulo pela Spray Filmes, em
2010, por ocasião da reforma gráfica do jornal.
Ao longo de um ano, foi feito um acompanhamento da edição impressa e
digital do jornal, por meio de assinatura do jornal nos dois formatos, visita diária ao
website da Folha de S. Paulo, e acompanhamento do perfil no Facebook, com o
recebimento de avisos sobre todos as notícias publicadas na rede social. A fim de
delimitação do corpus de estudo, optou-se pela concentração nas primeiras páginas
do jornal, tanto na edição impressa, quanto no website ou mesmo no perfil do
Facebook. Isso porque a capa vem a ser o primeiro contato entre o produto ou a
marca e o seu consumidor (RABAÇA & BARBOSA, 2014), neste caso, o leitor. O
primeiro período analisado compreendeu os dias 18 a 27 de setembro de 2014, um
período pré-eleição presidencial no qual o noticiário nacional dedicou parte
considerável de suas pautas a este assunto. Uma nova coleta foi realizada em
janeiro de 2015, entre os dias 20 e 25, totalizando 16 dias de análise em meses
diferentes.

511
A coleta consistia no armazenamento da primeira página da edição impressa,
cujo primeiro contato era na edição de papel e, posteriormente, o arquivamento do
fac-símile da capa, disponível para assinantes no website; a captura de imagens da
página inicial do website da Folha de S. Paulo (www.folha.uol.com.br), em diferentes
momentos do dia (manhã e noite) e finalmente, a captura de imagens do perfil do
Facebook, também em diferentes momentos do dia, a fim de acompanhar a
totalidade de posts ao longo do dia. Vale destacar que não foram objeto da análise
links compartilhados no Facebook da Folha de S. Paulo, mas apenas posts
realizados pelo jornal (ainda que fosse um redirecionamento para o seu website).
No mesmo período, realizou-se, também, a captura das cartas dos leitores,
publicadas diariamente na seção Painel do Leitor, na página A2 do jornal impresso;
dos dez primeiros comentários de leitores publicados no website, em dez matérias
diárias, selecionadas aleatoriamente, e dos 20 primeiros comentários publicados
pelo leitor em cada uma dos posts disponíveis no Facebook.

Quadro 1 – Resumo do corpus de pesquisa

Edição Impressa Website Facebook


16 capas do jornal 32 páginas iniciais 640 posts
16 colunas “Painel do 1600 comentários 12.800 comentários
Leitor” aproximadamente aproximadamente
Fonte: Elaborado pelos autores

Resultados da Análise

Com as análises das três manifestações selecionadas nota-se que a


identidade manifesta da Folha de S. Paulo, ou seja, o resultado das suas
manifestações (SEMPRINI, 2010), é convergente com projeto de marca proposto
pelo jornal. No entanto, algumas particularidades são notadas quando se concentra
em cada uma delas separadamente e, traçado um caminho que começa na versão
impressa e vai até o Facebook, passando pelo website, percebe-se uma ampliação

512
e até uma alteração nas características da marca, o que pode sugerir um risco para
seus valores fundamentais.
No nível fundamental, repousam os valores do projeto de marca da Folha de
S. Paulo, com suas características fundamentais norteadoras do trabalho da
publicação. São essas as características fundamentais da marca, configurando-se
em seu nível mais abstrato de significação.
Na sequência, a análise das edições do jornal impresso sugere que o nível
narrativo se dá em uma espécie de monólogo do jornal, que será tratado neste
estudo como narrativa fundadora. Por ela, entende-se o discurso do enunciador bem
definido, no caso, o jornal, que pressupõe a leitura feita por um enunciatário também
definido, no caso, o leitor. Um processo de comunicação fundado no
estabelecimento claro desses dois papeis e em um nível de interação ainda muito
pequeno.
Esse processo da comunicação, marcado por um distanciamento entre jornal
e leitor, e materializa no nível discursivo, por meio da seleção das pautas, diferenças
de tamanhos das letras, cores, fotografias, infográficos, vozes dissonantes e todas
as demais marcas de enunciação, como os dados de circulação, marcas de tradição,
slogan, símbolos, tipografia, debreagens da enunciação e pouco estímulo às
interações. Todas as marcas da enunciação geram um sentido para o enunciatário-
leitor e, no caso da edição impressa, reforçam os próprios valores da marca.
A narrativa fundadora se dá em uma sequência canônica (FIORIN, 2010), de
fazer-saber para um fazer-crer, desempenhando a função não apenas de informar
o seu receptor sobre determinada notícia, mas também formar opinião ou conceito
acerca de um tema. O voto de confiança dado pelo leitor ao jornal e a credibilidade
de que a publicação goza, fruto da tradição, do alcance e da construção de uma
marca forte no seu mercado, aliado às próprias condições interacionais limitantes
oferecidas pelo meio off-line, garantem ao jornal uma posição hierárquica do
detentor do conhecimento.
O processo da comunicação sugerido pela análise do website da Folha de S.
Paulo é marcado por uma maior aproximação entre jornal e leitor e concretizado no
nível discursivo, por meio da presença de novos elementos, como o maior estímulo

513
e mais facilidade para a interação, presença dos comentários do leitores nas
matérias, espaço fixo para pautas e textos enviados pelo leitor, área para
reclamações dos leitores, enquetes e com o maior uso de fórmulas enunciativas na
linguagem, dirigindo-se diretamente ao leitor em exemplos como “A cidade é sua”,
“Envie sua reclamação”, “Colabore com a folha”, entre outros.
Assim, a narrativa de transição começa a deslocar para a esfera da aventura
(LANDOWSKI, 2014), conforme nota-se uma maior participação do leitor na
construção da enunciação. A sequência anteriormente percebida do fazer-saber
para fazer-crer, promovida pela edição impressa, em que as hierarquias eram mais
definidas e havia maior distanciamento entre jornal e leitores, portanto na esfera da
prudência, se desloca para o quadrante da aventura. Este nível narrativo,
classificado no trabalho como a narrativa de transição, começa a se afastar da
programação, relacionada ao fazer-ser, e da manipulação, relacionada ao fazer-
fazer, para dar lugar ao risco dos novos regimes propostos por Landowski (2014).
A participação do leitor já está presente no website. A interferência, no
entanto, ainda é frágil e se dá mediante uma tutela constante do enunciador, no
caso o jornal. Ainda é prematuro afirmar que se trata de um regime de risco puro,
em que o leitor age de forma livre e sem interferências. Logo, percebe-se no website
da Folha de S. Paulo a presença muito maior da multimidialidade, com fotos, vídeos
e áudios, do que da interatividade. Nota-se, também, novos valores no nível
fundamental, com destaque para a atualização e o dinamismo, materializados pela
mudança constante da página e das matérias publicadas, e a descontração
presente, especialmente, na linguagem, tendendo a uma aproximação com o leitor.
No nível discursivo, algumas marcas da enunciação aparecem de forma
bastante intensa na análise do perfil do Facebook, a começar pela ausência da
identidade visual da marca – slogan, cores e logomarca. Em um primeiro contato
visual com a página da rede social, o leitor não identifica diretamente que se trata
de uma página vinculada ao jornal que ele já conhece das manifestações impressa
e on-line. Por outro lado, a página parece estar preocupada com a sua tradição,
uma preocupação também da edição impressa, com a publicação de dados de sua
fundação e momentos históricos importantes em sua linha do tempo.

514
Outra característica relevante é a linguagem utilizada não apenas nos posts
feitos pelo jornal, mas também nas respostas dada pelo jornal aos comentários dos
leitores. Ao contrário da linguagem formal e com respeito à norma culta, percebidas,
por exemplo, na edição impressa, no Facebook há uma concessão à linguagem oral,
às piadas e às brincadeiras típicas da Internet, como os memes, por exemplo.
Intensificada já no website do jornal, a participação do leitor ganha ainda mais
espaço no Facebook que, conforme enuncia a própria descrição da página da Folha
de S. Paulo na rede social, “foi feito para receber a sua opinião”. Ali, torna-se, então,
o espaço do compartilhamento de discursos, opiniões, visões, enunciações, no qual
as relações hierárquicas bem marcadas nas relações com a edição impressa e já
esmaecidas no website, parecem desaparecer.
A multiplicidade de vozes sobrepostas na página do Facebook constrói o que
pode ser classificada como uma narrativa compartilhada. O uso de linguagens mais
coloquiais, com concessões ao registro oral geram uma aproximação entre jornal e
leitor – ou enunciador e enunciatário – fazendo com que esse diálogo entre ambos
seja também potencializado.
Recuperando a análise realizada do nível narrativo das três manifestações e
reconfigurando as narrativas para a classificação proposta por Landowski (2014),
tem-se que a narrativa fundadora, percebida nas edições impressas do jornal são
também uma narrativa da prudência e as interações aí percebidas estão no
quadrante da manipulação e programação. A participação do leitor no processo
interacional é controlada pelo enunciador, com hierarquias bem definidas e posições
bastante definidas entre os actantes: o que enuncia e o que recebe a informação.
Mesmo os estímulos às interações, neste caso, são realizados de forma comedida
e todas as interações são mediadas pelo enunciador, que as aprova ou não e, ainda,
edita, recorta e publica de acordo com sua intencionalidade, utilizando-se até
mesmo, de respostas.
Na segunda manifestação analisada, o website da Folha de S. Paulo, em que
o nível narrativo foi classificado como uma narrativa de transição, o que se percebe
é uma abertura maior às interações, com a facilidade à participação do leitor, mas
ainda uma participação mediada e editada pelo enunciador, tal como acontece na

515
edição impressa. Aqui, nota-se já um ensaio ao risco e ao acidente, porém ainda
não é possível dizer que as interações estão no regime da aventura uma vez que
ainda há uma forte presença e um controle nítido do enunciador nas relações.
Finalmente, as interações analisadas no perfil do Facebook, some a
mediação do enunciador em relação ao discurso do enunciatário, que passa a se
confundir com o próprio enunciador, em uma esfera de papeis menos definidos entre
os dois participantes do fenômeno da comunicação. Tem-se neste ambiente um
regime de risco puro, em que novos sentidos podem surgir fora do controle do
enunciador.
Para facilitar o entendimento deste caminho da narrativa fundadora para a
narrativa compartilhada, ou da narrativa da prudência para a narrativa da aventura,
é possível estabelecer um esquema, a partir do modelo de Landowski (2014). Neste
caminho, parte-se das interações no jornal impresso, na esfera da programação e
manipulação, com o controle do destinador, indo até o perfil no Facebook, em que
as interações estão na esfera do acidente e do ajustamento. Não há mais controle
prévio do enunciador sobre o que está sendo dito e, ainda que este queira exercer
o controle, apagando um comentário, por exemplo, ele estará sujeito às novas
críticas que surgirão em resposta a esta ação.
Os resultados da análise sugerem que as divergências aumentam conforme
também aumentam as interações entre marca e consumidor ou, ainda, conforme a
marca vai perdendo sua hierarquia e o controle sobre o enunciado e dividindo esse
poder de fala com o enunciatário. Desse modo, fica claro que a versão impressa é
a que guarda com mais rigor as características fundamentais do projeto de marca,
o que esse trabalho classificou como narrativa fundadora, e a página no Facebook
como o local em que os sentidos gerados pela enunciação mais divergem dos valore
fundamentais da marca, classificado como narrativa compartilhada, passando por
um nível intermediário de enunciação, o website, classificado como narrativa de
transição.
Sob o regime das interações proposto por Landowski (2014), pode-se dizer
que o caminho parte do quadrante da manipulação e a programação, em que o
enunciador (jornal) tem o controle das interações e dos discursos produzidos sobre

516
a marca, concentrando-se em uma narrativa da prudência. Por outro lado, no
quadrante oposto, está a página do Facebook, em um regime de risco puro, em que
o acidente e o ajustamento dão o tom das interações. É o que se entende neste
trabalho como a narrativa da aventura, em que a geração de novos sentidos e o
contágio entre actantes são a marca fundamental.

Considerações Finais

As pesquisas e a trajetória dos jornais no ambiente on-line mostram


tentativas de encontrar uma linguagem específica para este tipo de ambiente. A
multimidialidade, a interatividade e a hipertextualidade inerentes ao meio (AGUIAR,
2009), apenas para resgatar algumas de suas características, demandam das
empresas de comunicação uma nova forma de fazer jornalismo, com uma
linguagem de convergência que acompanhe os novos comportamentos do
consumidor e a velocidade necessária a este ambiente, cuja característica principal
é a atualização rápida e constante de conteúdo.
No entanto, ao fazer a transição para este meio, a Folha de S. Paulo deve
lidar com o fato de que o meio on-line se coloca como um espaço de criação coletiva
de sentidos e o discurso ali enunciado não está mais sob o comando do enunciador,
mas é compartilhado com os enunciatários. O público parece deixar sua condição
de passividade, característica do receptor previsto no modelo matemático da
comunicação, para assumir uma postura participativa e crítica.
Os resultados da análise sugerem que há convergência entre o projeto de
marca e as manifestações estudadas. No entanto, o percurso do ambiente off-line
para o on-line pode gerar novos significados para a marca, impactando na sua
relação com o consumidor, uma vez que sofrem alterações os temas publicados, a
linguagem utilizada e, especialmente, as formas de interação entre veículo de
comunicação e leitores.
Esta pesquisa, situada na fronteira entre os estudos de Linguística,
Comunicação Social e Marketing, espera enriquecer o diálogo existente entre as
áreas. Diante do mercado competitivo da comunicação, em que a informação é

517
distribuída por meio de uma variedade de novos meios, não sendo mais
exclusividade dos meios tradicionais, a ideia cristalizada em alguns estudos da
Comunicação Social, que encaram o mercado e suas ferramentas de administração
como algo pernicioso que compromete a produção jornalística, deve ser relativizada.
Torna-se necessário refletir sobre a convivência entre os princípios clássicos do
jornalismo, que continuam sendo fundamentais, os processos de geração de
sentidos e o ambiente de mercado, que não mais pode ser negado.
Por outro lado, entendendo a comunicação não apenas como uma troca de
informações, como durante muito tempo ela foi entendida, mas como uma troca de
significados, vislumbra-se um produtivo espaço de pesquisas relacionadas à área
da Administração, com aplicação em questões concretas da comunicação
organizacional, divulgação de produtos e relações públicas de uma forma geral.

Referências Bibliográficas

AGUIAR, Leonel. A validade dos critérios de noticiabilidade no jornalismo digital.


Em: In: RODRIGUES, Carla (org). Jornalismo on-line: modos de fazer. 1 a edição.
Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Sulina, 2009. 163 – 182.

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_______________________. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Editora Ática,
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518
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mudanças estruturais. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 1, número 24. p. 38-57.
Janeiro/junho 2011.

PESSÔA, Luís Alexandre Grubits de Paula. Narrativas da segurança no discurso


publicitário: um estudo semiótico. São Paulo: Editora Mackenzie, 2013.

RABAÇA, Carlos Alberto. BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de Essencial


de Comunicação. Supervisão: Sílvio Roberto Rabaça. Rio de Janeiro: Lexikon,
2014.

SEMPRINI, Andrea. A Marca Pós-Moderna: Poder e Fragilidade da Marca na


Sociedade Contemporânea. Tradução: Elisabeth Leone. São Paulo: Estação das
Letras, 2006.

SHERRY Jr, John F. Significado da marca. Em: Branding. TYBOUT, Alice. M;


CALKINS, Tim (org). São Paulo: Atlas, 2006. 40 – 69.

TEIXEIRA, Lucia. Leitura de textos visuais: princípios metodológicos. In: BASTOS,


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São Paulo: EDUC, 2008.

JORNAL do futuro. Direção: Fernando Grostein Andrade. Spray Filmes.18 min. Cor.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/videocasts/739063-
documentario-revela-bastidores-das-mudancas-na-folha.shtml. <Acesso em 13 de
dezembro de 2014>

Dados de circulação dos jornais no país disponíveis em http://www.anj.org.br/a-


industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil <Acesso em 19 de
janeiro de 2014>

Dados históricos sobre o jornal Folha de S. Paulo disponíveis em


http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/historia_85_89.htm <Acesso em 19 de
janeiro de 2014>

Website F5, de entretenimento da Folha de S. Paulo em www.f5.folha.uol.com.br


<Acesso em 31 de outubro de 2014>

Website oficial da Folha de S. Paulo em www.folha.com.br <acessado em diversas


datas ao longo da análise>

519
FLUXO DE CONSCIÊNCIA E VOZ-OVER EM CLUBE DA LUTA

Luciana Duenha Dimitrov 196

Introdução

O quão confusa pode ser a compreensão de uma fábula quando esta é


constantemente interrompida por uma voz-over que obstruí sua fluidez natural? Por
que essa voz-over não se cala? Essa voz-over existe na narrativa literária? Afinal
de contas, o que é essa tal voz-over? Esses são apenas alguns dos
questionamentos que eclodem quando da análise de Clube da Luta (1999), longa-
metragem roteirizado por Jim Uhls, que traz como base o romance homônimo de
Chuck Palahniuk (1996).
De fato, ao adaptar o controverso romance pós-moderno ao cinema, o
roteirista prezou por manter viva a ideia do narrador em primeira pessoa ser, citando
Yves Reuter, “[...] um protagonista da história que narra, [logo, nela seu] discurso
domina” (1996, p.73). Esse protagonista é responsável por conduzir, em trinta e um
capítulos (considerando-se o posfácio), uma fábula pós-moderna pouco
convencional, em que a voz da personagem-protagonista mistura-se ao seu fluxo
de consciência interrompendo, assim, a fluidez narrativa.
Na adaptação, mantém-se a voz da protagonista uma vez que se emprega a
chamada voz-over. Essa duplicidade de voz (voz convencional, dialogada e voz-
over) no desenrolar da narrativa fílmica, atribui ao protagonista o status de uma
espécie de nova personagem. Registre-se que suas interrupções em voz-over não
trazem o mesmo tom de suas falas quando dialoga com as demais personagens;
trata-se de uma espécie de narrador cinematográfico que apresenta pensamentos,
sentimentos, ou ainda comenta o que está vivendo naquele exato momento.
Protagonista em ambos corpora, não é possível calar a voz dessa
personagem em nenhuma das narrativas; essa voz constante faz com que as duas
narrativas se desenrolem impregnadas de suas considerações acerca de tudo e de

196 Mestrado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil

520
todos que o cercam. Assim exposto, busca-se resolver, dentro do contexto
adaptativo aqui proposto, os questionamentos incessantes sobre a técnica em voz-
over, a saber: seu uso, suas proximidades com a literatura e sua real função nessa
adaptação.
Compreender uma fábula pós-moderna nem sempre é simples. Compreender
uma fábula pós-moderna em que a voz do narrador é interrompida por uma outra
voz torna-se um desafio ainda mais complexo. Imagine, então, se essa voz narrativa
se interromper por uma “vertente” da voz desse mesmo narrador? Indiscutível é o
fato de que, ao romper-se com a fluidez natural que se pressupõe integrante de
qualquer narrativa cria-se, obrigatoriamente, a necessidade de repensar o papel
dessa voz (literária e fílmica). Tendo como aporte os corpora Clube da Luta –
romance de Chuck Palahniuk (1996); adaptação dirigida por David Fincher e
roteirizada por Jim Uhls (1999) – busca-se, neste breve estudo, nomear e estudar a
função dessas vozes nas narrativas.
Já no primeiro capítulo de Clube da Luta, o narrador-personagem sem nome
diz: “[...] por muito tempo, Tyler e eu fomos melhores amigos. As pessoas sempre
me perguntam se conheço Tyler Durden” (PALAHNIUK: 2012, 9); o mesmo
narrador-personagem, no vigésimo-nono (e penúltimo) capítulo, explica-se: “sei
disso porque Tyler sabe disso. [...] Tyler desapareceu. Puf. Tyler é minha
alucinação, não dela. [...] E agora sou só um homem segurando a arma em minha
boca” (PALAHNIUK: 2012, 252-253). É neste derradeiro capítulo que a revelação
de que o Narrador e Tyler Durdan são, de fato, a mesma personagem acontece –
inclusive para o Narrador, que explica: “este é um momento de total epifania para
mim” (PALAHNIUK: 2012, 254). Antes disso, a narrativa é entrecortada por vozes
que nem sempre convergem.
O romance de estreia de Palahniuk traz, em sua essência, a figura do
narrador em primeira pessoa, um protagonista que acaba por gerar oscilações na
trama que tece, posto que sua voz nem sempre é reconhecida, sem hesitação, na
narrativa. Mesmo sem a explicitação dessa duplicidade de vozes, é esse Narrador
o responsável por conduzir uma fábula pós-moderna em que a sua voz mistura-se
à voz de seu eu projetado (Tyler, aquele que também interrompe a fluidez narrativa).

521
Encarada à luz da pós-modernidade como “[...] uma resolução de contradições
estéticas não [...] gratuita, pois a contradição formal em si tem sua significância
simbológica social e histórica” (JAMESON: 1997, 287, tradução nossa), a
instabilidade desse narrador acaba justificada por esse ser um representante do
liquefeito tempo histórico chamado pós-modernidade.
Dentre as tantas características responsáveis por delinear as narrativas pós-
modernas, destaca-se, para este estudo, aquilo que Robert Humphrey classifica
como fluxo de consciência. Para o estudioso (1976, 2), “a consciência é toda área
de atenção mental, a partir da pré-consciência, atravessando os níveis da mente e
incluindo o mais elevado de todos, a área de apreensão racional e comunicável”.
Razão e comunicação são questionados ao deparar-se com o Narrador que
descreve sequências inusitadas em que expõe (sempre em um parágrafo único) a
seguinte informação: “sei disso porque Tyler sabe disso”. Em se tratando de um
narrador personagem, sua ir-racionalidade acaba justificada quando se considera
que “a exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade
de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico de personagens”
(HUMPHREY:1976, 4).
Quase confessando seu próprio estado psíquico, a voz do Narrador, via fluxo
de consciência, acaba por revelar, ao longo da narrativa, o descontentamento desse
protagonista que toma o outro como aquele que o livrará daquilo que tanto o sufoca:
Ligo para Tyler.
O telefone toca na casa alugada de Tyler na Paper street.
Por favor, Tyler, me livre dessa roubada.[...]
Preciso que me resgate, Tyler, por favor. [...]
E o telefone chama outra vez e Tyler atende. [...]
Me salve, Tyler, de ser completo e perfeito. (PALAHNIUK: 2012, 52).

O desespero do Narrador, que quase implora a Tyler que o tire daquela


situação estagnada (“completa e perfeita”), reflete seu papel social de homem pós-
moderno que vive imerso em um “[...] incessante processo de capotagem interna no
qual a posição do observador [no caso, do leitor] vira do avesso [...]” (JAMESON:
1997, 64, tradução nossa). Sua desesperada ânsia por respostas exatas (e
necessárias) de Tyler denota outra característica que confirma o fluxo de
consciência como recurso narrativo estruturante do romance: o fato de Tyler

522
interagir quase que exclusivamente com o Narrador. Essa interação acontece, por
exemplo, na sequência do sétimo capítulo em que é o Narrador que relata o
encontro amoroso entre Tyler e Marla, “Tyler e Marla ficaram acordados quase a
noite toda no quarto ao lado do meu. Quando Tyler acordou, Marla já tinha
desaparecido e voltado ao Regent Hotel”. (PALAHNIUK: 2012, 74).
Diante desse panorama questiona-se, então, a reação do leitor que se vê
enredado em um emaranhado de vozes, vozes ora dialogadas – “ - Preciso que me
faça outro favor - Tyler diz. É sobre Marla, não é? - Nunca fale de mim para ela. Não
fale de mim pelas costas. Promete?” (PALAHNIUK: 2012, 86) – , ora entrecortadas
– “No hospital, Tyler diz que eu caí. Às vezes, Tyler fala por mim” (PALAHNIUK:
2012, 61). Dialogadas, entrecortadas, misturadas, as vozes do Narrador e de Tyler
são quase incompreensíveis, logo fica complexo distinguir o que é, de fato, diálogo
entre as personagens ou o que é apenas representação daquilo que se desenvolve
exclusivamente na mente do Narrador. Aqui retoma-se o teórico Robert Humphrey
(1976, 22) e suas considerações acerca do fluxo de consciência e do monólogo
interior:

o monólogo interior é, então, a técnica usada na ficção para representar o


conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente
inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em
diversos níveis do controle consciente antes de serem formulados para fala
deliberada.

Tomando-se o processo narrativo de o Clube da luta estruturado nas bases


do monólogo interior de um narrador-protagonista que nitidamente não distingue sua
realidade e aquilo que dela projeta – “E por acaso Tyler e eu temos as mesmas
digitais, mas ninguém entende isso” (PALAHNIUK: 2012, 242) – compreende-se
uma narrativa deliberadamente manipulada para que o leitor não distinga, com
facilidade, as vozes narrativas. Essa mesma – e tão característica – confusão
narrativa é mantida ao propor-se uma protagonista bipartida na adaptação de David
Fincher: Edward Norton interpreta o Narrador, Brad Pitt interpreta Tyler Durden.
O desafio que se encontra, ao analisar-se a adaptação, é identificar e
desvendar o artifício correspondente ao fluxo de consciência do romance. O próprio

523
teórico Robert Humphrey explica que a montagem cinematográfica, sob seu prisma,
funciona quase como um “[...] método para mostrar pontos de vista compostos ou
diversos sobre um mesmo assunto, em suma, para mostrar multiplicidade" (1976,
44). Indiscutivelmente múltiplo, o longa-metragem que se cria a partir do romance
tem, em sua essência, um mecanismo da adaptação bastante específico, a
chamada voz-over.
Isenta de fórmulas que a expliquem, a técnica do narrador em voz-over é
empregada toda vez que se objetiva, na narrativa fílmica, apresentar um paradigma
distinto sob uma ótica menos neutra do que a do narrador convencional, em terceira
pessoa. Justifica-se seu uso uma vez que “[...] essa forma de narração pode servir
a muitos propósitos, incluindo recriar/referir-se à uma voz narrativa do romance,
transmitindo informações expositivas, e auxiliando na apresentação de cronologias
complexas”. (KOZLOFF:1988, 41, tradução nossa).
No caso da adaptação em questão, a complexidade da narrativa original está
no fato de, como já exposto aqui, o protagonista bipartir-se em duas vozes que, em
muitos momentos narrativos, se sobrepõem (ou substituem) sem dar ao leitor a
sensação de compreensão completa daquela fábula. É interessante refletir como,
no processo de adaptação, David Fincher obteve êxito ao tomar como fio condutor
a sobreposição das vozes de Edward Norton e Brad Pitt, vozes que somente são
desamarradas no desfecho do filme.
Essa intermitente voz-over do Narrador denota o quão confusa pode ser a
compreensão de uma fábula quando esta é interrompida por essa voz que
constantemente obstruí sua fluidez natural. O roteiro de Jim Uhls, por sua vez,
colabora por primar em manter viva a ideia das duas vozes do narrador, vozes essas
“[...] capazes de levar o estranho e complicado fardo da consciência humana aos
domínios da legítima ficção em prosa” (HUMPHREY, 1976, p. 37). Esse primor
possibilita que o espectador experiencie a mesma sensação de desconforto que o
leitor tem ao ser recorrentemente interrompido pelos rompantes de fluxo de
consciência do Narrador literário.
Por não ser possível calar a voz do Narrador da adaptação, a trama
cinematográfica se desenrola impregnada de suas considerações acerca de tudo e

524
de todos que o cercam. Trata-se de “[...] um narrador em primeira pessoa em voz-
over [que] fala intermitentemente [...]não tem o controle de sua história no mesmo
nível, ou da mesma maneira, que um narrador literário” (KOZLOFF: 1988, 43,
tradução nossa). Aqui cabe uma ressalva, pois sendo quase que uma cópia do
Narrador no qual se inspira, o Narrador fílmico também obtém êxito em manter-se
alheio à narrativa que apresenta ao espectador.
É bastante relevante o fato de esse Narrador em voz-over (nomeado Jack,
no roteiro), que atua como uma espécie de nova personagem, não se manter fiel ao
seu tom natural quando fala diretamente com a câmera; pelo contrário, ao
apresentar seus pensamentos e/ou suas considerações, como na sequência em
que o Narrador apresenta Bob, seu “colega” do grupo de apoio de Câncer de
Testículos, ouve-se uma nova voz,

BOB
Eu tinha minha própria academia. Eu tinha minha própria marca.
JACK
Você foi seis vezes campeão mundial.
JACK (voz-over) (continuidade)
Bob, o pão-de-queijo gigante. Sempre me contava a história de sua vida.
BOB
Ainda somos homens.
JACK
Sim. Somos homens. Homens é o que somos.
JACK (voz-over) (continuidade)
Bob chorava. Seis meses atrás, seus testículos foram removidos. Então,
terapia hormonal. Ele desenvolveu peitos de putinha porque sua
testosterona estava muito alta e seu corpo criou mais estrogênio. Era aí
que minha cabeça entrava – no meio de seus peitos enormes, tão grande
como imaginamos Deus. (UHLS: 2000, 4, tradução nossa).

A voz social do Narrador– que, nesse exemplo, se coloca tanto como vítima,
quanto como confidente – é conflitante com a voz-over do Narrador (interna) – que
ironiza aparência e situação de Bob. Esse conflito recorrente entre a voz social
(publicável) e voz interna (impublicável) é um aspecto estruturante da narrativa
fílmica, pois não é possível desvendar quem é, verdadeiramente, aquele Narrador.
Quando opta por construir uma adaptação alicerçada em voz-over, Fincher “[…]
afeta profundamente a experiência textual do espectador ao naturalizar o tipo de
narrativa, ao aumentar a identificação com as personagens, [...] e por reforçar a
individualidade e a subjetividade da percepção da história que se conta” (KOZLOFF,

525
1988, p.41, grifo da autora, tradução nossa). Essa naturalização está na
manutenção de uma voz bipartida, o que reforça a aproximação entre texto original
e sua versão adaptada.
Dentre os muitos trechos em que que se observam a técnica de voz-over,
destaca-se um relato do Narrador: “[...] tudo o que sei é o seguinte: a arma, a
anarquia e a explosão, isso tudo tem a ver com Marla Singer” (PALAHNIUK, 2012,
p.13). Adaptado aos 2 minutos e 55 segundos, a semelhança textual que se observa
é bastante relevante: “e de repente percebo que tudo isto: a arma, as bombas, a
revolução ... tem algo a ver com uma moça chamada Marla Singer” (tradução
nossa). Ao ouvir apenas a voz-over que habita a mente do Narrador, o espectador
depara-se com a mesma dúvida (recorrente também ao longo da adaptação) do
leitor: essa voz-over do Narrador esboça realidade ou irrealidade?
Outro exemplo do emprego da voz-over é observado no oitavo capítulo.
Originalmente têm-se “Escrevo pequenos HAICAIS e passo por FAX para todo
mundo. Quando passo pelas pessoas no corredor do trabalho eu fico
completamente ZEN diante dessas CARAS hostis” (PALAHNIUK, 2012, p.75); sua
transposição se dá aos 52 minutos e 23 segundos da adaptação, em “eu me tornei
a calma, um pequeno centro no mundo. Eu era o mestre Zen. Escrevia pequenos
poemas haicais. Eu os enviava a todo mundo” (tradução nossa). Novamente muito
semelhantes em conteúdo, ouve-se a voz-over do Narrador, que ironiza aquela
situação.
Essa oscilação entre as vozes do Narrador, que causa recorrente desconforto
por parte do público, se consolida como desconfortante quando, no desfecho fílmico,
o espectador percebe que Tyler Durden também é o Narrador. O fato é que, sendo
protagonista em ambos corpora, não é possível calar as vozes dessa personagem
duplicada em nenhuma das narrativas; essas vozes intermitentes fazem com que
ambas as narrativas se desenrolem impregnadas de considerações múltiplas (e
deveras conflitantes) acerca de tudo o que acontece e de todas as personagens
com quem convive o Narrador (e, consequentemente, Tyler).
As cenas aqui destacadas são apenas algumas das inúmeras cenas que
comprovam a adaptação de Fincher como um exemplo efetivo de fluxo de

526
consciência adaptado em voz-over. Dentro do contexto adaptativo aqui proposto,
revelam-se o fluxo de consciência e o voz-over como possíveis respostas aos
questionamentos acerca dessa intermitência de vozes, que tanto atravanca a
compreensão global de tramas pós-modernas.

527
Referências Bibliográficas
CLUBE DA LUTA. Direção: David Fincher. Produção: Art Linson; Ceán Chaffin;
Ross Grayson Bell. Estados Unidos: Fox 2000 Pictures; Regency Enterprises;
Linson Film; Atman Entertainment; Knickerbocker Films; Taurus Film, 1999. (139
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Durham: Duke University Press, 1997.
KOZLOFF, Sarah. Invisible Storytellers. Berkley, Los Angeles, London: Berkeley,
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REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
UHLS, Jim. Fight Club. Estados Unidos: Fox 2000 Pictures; Regency Enterprises;
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Disponível em:
http://www.screenplay.com/resources/research/scripts/scripts_f.html#Fig. Acesso
em: 10 jan. 2015.

528
UM DIÁLOGO ENTRE O CLÁSSICO E O CONTEMPORÂNEO:
RELEITURAS DA OBRA ANFITRIÃO, DE PLAUTO

Luciana Ribeiro de Souza 197

Introdução

A convergência de ideias nunca esteve tão presente na sociedade como nos


últimos tempos, sobretudo no que se refere às diferentes mídias, que
constantemente se fundem com a intenção de criar produtos originais. Assim sendo,
todos os dias surgem novos livros, filmes, campanhas publicitárias, vídeo clipes – e
tantas outras manifestações vindas do chamado “mundo da mídia” –, que aos olhos
de muitos parecem ser algo inédito, mas que, na verdade, nada mais são do que
modelos construídos com base na Antiguidade Clássica.
Grande parte do público que recebe essas informações – principalmente os
mais jovens – não consegue estabelecer uma ponte entre a Antiguidade Clássica e
o produto contemporâneo com o qual está em contato, seja qual for esse produto.
Isso ocorre, muitas vezes, por falta de conhecimento da cultura antiga (incluindo-se
aí os seus elementos de composição e os seus representantes).
Tome-se como exemplo de manifestação cultural antiga o teatro, tipo de
representação que surgiu entre os séculos VI e V a.C, mas que continua mais vivo
e atual do que nunca, servindo como base para a criação de diferentes linguagens
artísticas. Dentro desse contexto, uma obra que, por sua força inventiva, serve como
referência é Anfitrião, de Plauto. Nessa peça, escrita por volta do ano 234 a.C, os
principais temas são: a paródia mitológica, o desvio de caráter e a questão da
identidade (o duplo).
Fixando-se a atenção nesse objeto de estudo (Anfitrião), este trabalho tem
por objetivo verificar os reflexos dessa obra Clássica – traduzida por Carlos Alberto
Louro Fonseca (1986) – em diferentes mídias da cultura contemporânea, a saber:

197
Doutoranda, com bolsa CAPES, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo.

529
Um Deus dormiu lá em casa, peça teatral de Guilherme de Oliveira Figueiredo
(1970), escrita originariamente em 1949, e Quero ser John Malkovich, filme de
Charlie Kaufman (1999). Considerando-se que dentre as principais características
de Anfitrião, o traço que se salienta é a questão identitária, busca-se,
especificamente, observar o uso desse recurso (a troca de identidade) nas obras
contemporâneas em análise. O que se pretende, por fim, é evidenciar que “novas
criações” do mundo contemporâneo podem, em geral, ser influenciadas por
manifestações culturais que nasceram na Antiguidade Clássica.
Para efeito de contextualização serão explicitadas a seguir, com base
nos apontamentos de Brandão (1984) e Cardoso (2008), algumas informações
referentes à consolidação do teatro clássico, aos gêneros literários que o
constituíam, com especial atenção à comédia, e ao autor latino cuja a obra clássica
é objeto de análise desta proposta.

O Teatro Clássico
A história do teatro grego começou, segundo Fischer (2011), na praça do
velho mercado de Atenas, entre os séculos VI e V a.C. Nessa época, a cidade vivia
um momento de fortunas e vitórias conquistadas nas guerras com outros povos da
Antiguidade. Por essa razão, destacava-se como uma das mais importantes cidades
gregas.
O povo ateniense costumava ir às ruas para participar dos rituais a Dionísio,
deus das festas, das uvas e da vegetação. Essas festas duravam em média cinco
dias. Nelas, os jovens cantavam e dançavam em homenagem a esse deus
(BRANDÃO, 1984). Aos poucos, esses rituais evoluíram para blocos de
apresentações cênicas, que eram representadas na arena da cidade de Atenas
(ROBERT, 1987). Essa mudança estimulou os escritores a desenvolverem textos
criativos para serem apresentados durante as festas dionisíacas. A partir de então,
Dionísio passou a ser também o deus do teatro (BRANDÃO, 1984).
O teatro grego compreende, segundo Brandão (1984), a tragédia
(considerada o mais nobre gênero literário da época) e a comédia – na qual este
trabalho está fixado –, sendo esta última dividida em comédia antiga e comédia

530
nova. Os autores que queriam emocionar e arrancar lágrimas do público escreviam
textos que se encaixavam na tragédia, dentre eles, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes
(NOVAK, 1999). Por outro lado, aqueles que queriam arrancar gargalhadas do
público, como Aristófanes e Menandro, dedicavam-se às comédias (HUNTER,
2010).
A comédia antiga – cujo representante mais importante, segundo Cardoso
(2008), é Aristófanes – surgiu quase cinquenta anos após a existência da tragédia
(BRANDÃO, 1984). As histórias que eram encenadas reuniam, em geral, elementos
diferentes, tais como a dança, o canto, e algumas farsas literárias. O tema principal
dessa fase era a crítica aos políticos e à sociedade da época (KURY, 1995).
Segundo o autor, como a cidade de Atenas vivia um período democrático, as ações
dos políticos contribuíam muito para o desenvolvimento da proposta cômica. Com o
fim do regime ocorreu também o fim da comédia antiga e da própria cidade
ateniense.
Por algum tempo, a comédia esteve fixada à mitologia, tendo como tema
básico a paródia. Esse período ficou conhecido como comédia média, uma fase de
transição entre a comédia antiga e a comédia nova (CARDOSO, 2008).
A comédia nova ou Néa Komoidía, como era chamada pelos gregos, era
apaixonante, pois retratava a vida privada, “buscando a intimidade dos cidadãos,
fixando-se nos aspectos mais prosaicos e comuns da existência: o amor, os
prazeres, as intrigas sentimentais” (LYRIO: 2010, 17).
Nesse período, segundo Cardoso (2008), o ideal da sátira política e social foi
substituído pelo amor e pela relação familiar. As peças teatrais tornaram-se mais
leves e atraentes, pois deixaram de tratar de maneira séria os assuntos da
sociedade, apresentando uma sátira refinada e racional. Um dos autores que mais
se destacou nessa fase foi Menandro, autor que usava, em seus trabalhos, a
singeleza e a suavidade, sem deixar de lado a ironia cômica e o humor (BRANDÃO,
1984). Não por acaso, Menandro foi o autor que mais influenciou Plauto, um dos
grandes nomes da comédia latina (HUNTER, 2010). Em Anfitrião, peça teatral que
serve como um dos objetos de estudo deste trabalho, é possível observar essa
influência recebida pelo autor, pois ele escreve um texto – no qual brinca com a

531
imagem e as características de alguns deuses do Olimpo – leve, irônico, repleto de
surpresas e de humor, bem ao estilo de Menandro.

A comédia latina
Segundo Novak (1999), Lívio Andrônico foi um dos primeiros autores a
traduzir (para o latim) e a apresentar ao público romano as duas modalidades
cênicas da época: uma tragédia e uma comédia. O povo romano, diferentemente do
público grego, demonstrou grande preferência pela comédia, afinal, ela os deixava
descontraídos e felizes.
As comédias produzidas para a classe média utilizavam, de forma bem
humorada, as situações cotidianas e o amor como temas constantes, mas
conseguiam somente arrancar sorrisos discretos do público. Por outro lado, os
comediógrafos, que escreviam para as massas populares, exageravam na dose de
humor, pois esperavam como resposta aos seus trabalhos o riso solto e satisfeito
(RIBEIRO JR., 1999). O resultado, neste último caso, era plateias lotadas, altas
risadas e muitos aplausos. Dentre os autores que se destacaram na comédia latina,
Plauto foi um dos que ganhou maior popularidade (CARDOSO, 2008). Visivelmente
influenciado pela comédia nova e, como já dito anteriormente, pelas características
de Menandro, ele escrevia textos que, muito provavelmente, arrancavam
gargalhadas de seu público.

Plauto
Titus Maccius Plautus ou Tito Mácio Plauto nasceu em Sarcina, uma região
da Itália, aproximadamente por volta do ano 254 a.C. (CARDOSO: 2008, 16). A
autora nota que os dados sobre a vida do autor não são precisos, assim como ocorre
com outras personagens que ajudaram a construir a história antiga. Sabe-se que
ele, quando jovem, trabalhou como cenógrafo e carpinteiro, o que teria despertado
a paixão pelo teatro. Ele atuou, por algum tempo, como ator (HUNTER, 2010),
porém as necessidades financeiras o afastaram da carreira, mas não do sonho. O
amor por essa arte persistiu em sua companhia, tanto que, independentemente de
ter continuado ou não atuando nessa profissão – de acordo com os estudiosos de

532
sua vida e de sua obra –, ele continuou, ao menos durante algum período de sua
vida, a estudar o teatro grego, em especial a obra de Menandro. Esses estudos
foram importantes para transformar, em pouco tempo, o jovem sonhador em um dos
homens mais importantes do teatro latino (HUNTER, 2010). Seu trabalho inspirou
autores de várias épocas, dentre eles, Camões, Shakespeare e Molière.
Cardoso (2008) mostra que o autor utilizava em seus textos recursos como
danças, canções e a Farsa, uma modalidade teatral na qual participam poucos
atores. Além disso, pondera a autora, costumava associar suas personagens às
figuras dos deuses (assim como ocorre em Anfitrião), às vezes para engrandecê-
los, outras para ridicularizá-los, misturando o universo celeste aos fatos reais. A
linguagem usada pelo autor fluía naturalmente, repleta de trocadilhos e figuras de
estilo, essenciais à comédia grega ou à comédia latina.
O principal objetivo desse gênero, como se mostrou, era divertir o público
sem se preocupar com a realidade. Isso, provavelmente, permitiu ao autor
apresentar o amor e a troca de identidade de maneira leve e cômica. Segundo
Hunter (2010), Plauto explorava, em seus textos, cada oportunidade de humor e
isso refletia na reação da plateia, que, muitas vezes, se reconhecia em algumas
personagens.
Ao que se sabe, o autor escreveu aproximadamente 130 peças, dessas,
apenas 21 chegaram à atualidade (CARDOSO, 2008), dentre elas, Anfitrião, texto
observado neste trabalho.

O texto clássico: Anfitrião


Praz (1982: 3) dissertando sobre pintura e poesia diz que “como certas
pinturas, alguns certos poemas agradam uma única vez, ao passo que outros
resistem a leituras repetidas e a exame crítico minucioso”. Anfitrião, uma das mais
representativas obras de Plauto, não é exatamente uma pintura ou um poema, mas
tem resistido a leituras repetidas no decorrer dos séculos, não só no teatro, como

533
também no cinema e na literatura. Muito desse sucesso se deve a forma inteligente
com a qual o autor introduz a paródia mitológica.
Na história latina, Júpiter, um deus muito namorador, que não mede esforços
para conquistar as mulheres que o atrai, aproveita a ausência de Anfitrião para ficar
com sua mulher, Alcmena. Para realizar seu desejo pessoal e convencer a mulher
a aceitá-lo, Júpiter se faz passar por Anfitrião (o marido) e pede ao seu filho,
Mercúrio, que se transforme em Sósia, um escravo da casa que também está
ausente, pois assim ele teria um cúmplice para acobertar suas armações, sem que
ninguém desconfiasse. Com a fisionomia de Anfitrião, Júpiter consegue realizar o
seu desejo. Quando a farsa é descoberta, o marido traído perdoa a mulher, pois
Júpiter lhe diz que só agiu de tal forma porque havia escolhido Alcmena para gerar
um semideus (Hércules) e isso, naquele contexto, era uma honra para qualquer
mortal.
No decorrer da trama, Anfitrião e Júpiter não ficam frente a frente quando o
deus está com a fisionomia de Anfitrião. O mesmo não ocorre com Sósia e Mercúrio,
que se encontram quando o deus está com a mesma fisionomia do escravo. Esse
encontro desperta muitas confusões e dúvidas na mente de Sósia, fazendo com que
ele se questione até o final da trama sobre sua verdadeira identidade, afinal, ele se
deparou com uma pessoa que era sua imagem e semelhança.
Dessa armação, muito bem bolada, decorrem os conflitos e os desencontros
que envolvem as personagens da trama (Júpiter, Anfitrião, Alcmena, Mercúrio, e os
escravos Sósia, Tessála e Brômia) em situações altamente engraçadas.
Ao que tudo indica, esse texto de Plauto foi um dos primeiros a tratar a
questão da identidade. É justamente o uso desse recurso (a duplicidade) que
consolida tanto a comicidade, quanto a sátira aos deuses mitológicos da Grécia
Antiga.
Observam-se, no texto, além dos artifícios cômicos, outras questões que
surgem em decorrência do duplo, tais como os desvios de caráter e os vícios,
sobretudo no que diz respeito aos deuses Júpiter e Mercúrio, ainda que este atue
apenas como cúmplice, que assumem identidades alheias para consolidar um
desejo pessoal de Júpiter: possuir a mulher do próximo. Além disso, notam-se

534
também os aspectos confusos e perturbados da mente humana, a pluralidade
interior do indivíduo e, principalmente, a busca da identidade, que é uma questão
muito presente na modernidade. Essas três últimas características ficam bastante
evidentes em Sósia, sobretudo depois de ele ficar frente a frente com a sua cópia
(Mercúrio).
Possivelmente, por apresentar esses artifícios, Anfitrião é um dos textos
clássicos mais adaptados de todos os tempos. As releituras são tantas que para
descrevê-las seria necessário um estudo bastante amplo, o que não é o caso deste
trabalho, que se restringe a dois exemplos contemporâneos que evidenciam as
influências dessa obra latina: a peça teatral Um dormiu lá em casa, de Guilherme
de Oliveira Figueiredo (1970), e o filme Quero ser John Malkovich, de Charlie
Kaufman (1999).

As obras contemporâneas
Muitos séculos depois de Plauto ter escrito Anfitrião, em 1949, um autor
brasileiro, Guilherme de Oliveira Figueiredo, adaptou a peça latina, dando-lhe como
título Um Deus dormiu lá em casa. Os papéis de Anfitrião e Alcmena foram
interpretados pelos atores Paulo Autran e Tônia Carrero, que estrearam como
atores nesse trabalho. Esse espetáculo aproximou o autor do universo mitológico,
que a partir de então, passou a fazer parte de seus trabalhos, sempre voltados à
comédia198.
A estreia do espetáculo, dirigido por Silveira Sampaio, foi no dia 13 de
dezembro de 1949, no Teatro Copacabana, Rio de Janeiro. Figueiredo adaptou,
com muita qualidade e irreverência, o texto do dramaturgo latino, criando uma
habilidosa paródia. Além de resgatar personagens da tragédia grega como Creonte
e Tirésias, eliminou Brômia, deu à Tessala o status de mulher de Sósia, e criou
demagogos cujas vozes podem ser ouvidas ao início e ao final do espetáculo,
contracenando com Anfitrião.

198Disponível em:<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa212882/guilherme-figueiredo>. Acesso em:


06 jun. 2015.

535
Embora Um Deus dormiu lá em casa seja uma releitura contemporânea na
qual é evidente a proximidade com a obra latina, a questão da identidade (o duplo)
ocorre de maneira diferente, pois os deuses Júpiter e Mercúrio não aparecem como
no original, ou seja, transformando-se nas figuras de Anfitrião e Sósia. Os
espectadores da obra brasileira conseguem visualizar apenas os atores, que
interpretam as respectivas personagens, disfarçando-se de Júpiter e Mercúrio para
testar a fidelidade de Alcmena e Tessala (suas esposas) e, ao mesmo tempo, tentar
impedir que a profecia de Tirésias (de que um homem habitaria casa deles enquanto
ambos estivessem lutando na guerra) se realizasse. Essa mudança não altera a
qualidade da comédia, muito pelo contrário, pois as personagens, ao se
disfarçarem, criam um jogo cênico de encontros e desencontros que prende a
atenção dos interlocutores e mantém a comicidade da obra.
Ao utilizar o artifício da duplicidade, o autor consegue não só provocar o riso,
como também mostrar o quanto pode ser útil se fazer passar por outra pessoa, tanto
para conseguir o que se quer, como para se livrar do que não se quer.
As influências do texto latino podem também ser observadas no filme Quero
ser John Malkovich, escrito em 1999, por Charlie Kaufman, com título original Being
John Malkovich. O filme contou com as interpretações dos atores John Cusack,
Cameron Diaz, Catherine Keener e John Malkovich.
No filme, Cusack interpreta Craig Schwartz, um manipulador de marionetes
desempregado que se candidata e é aceito para uma vaga temporária como
arquivista, no andar sete e meio de uma estranha empresa americana. Após alguns
dias de trabalho, ele descobre, atrás de um arquivo, uma passagem para a mente
de John Malkovich. Depois de embarcar nessa viagem, que considera uma
experiência sensacional, resolve alugá-la para outras pessoas, para que elas
também possam experimentar a sensação de ser John Malkovich por 15 minutos.
Craig vive uma crise de identidade desde o início da trama: perde o emprego,
não tem um bom relacionamento com a mulher, além de, como sugere a própria
personagem, não encontrar “o seu lugar no mundo”. Quando descobre a
possibilidade de ser outra pessoa (o ator John Malkovich), mesmo que por 15
minutos, ele experimenta uma sensação inexplicável de viver, ainda que por pouco

536
tempo, a vida de uma pessoa rica e famosa, que lhe permitiria encontrar uma
“identidade sólida” e repleta de sensações diferentes daquelas que ele estava
acostumado a viver. Além disso, poderia, se possível, viver um novo amor, pois
sendo um homem rico e com uma carreira consolidada (fatores que, muitas vezes,
contribuem para que se encontre um “amor”) ficaria mais fácil encontrá-lo.
Não se trata de uma releitura diretamente relacionada à obra latina, como
ocorre em Um Deus dormiu lá em casa, mas de um produto contemporâneo que
cabe muito bem à proposta deste trabalho, pois também evidencia a influência da
obra clássica em seu tema central: a questão da identidade.
O desenrolar dessa história, como não poderia deixar de ser, envolve as
personagens da trama – Craig, sua esposa, vivida por Cameron Diaz, Maxine
(Catherine Keener), amiga de trabalho, e, principalmente, o ator John Malkovich,
que tem sua mente invadida e controlada por diferentes pessoas durante o filme –
em situações intrigantes e cômicas, mas, sobretudo, evidencia uma outra
característica presente no texto latino: o desvio de caráter (assim como também
ocorre em Um Deus dormiu lá em casa), afinal de contas, Craig não só usa a sua
descoberta para fugir da realidade e viver momentos de prazer, como também a
transforma em um negócio possivelmente vantajoso para ele.
As três obras aqui observadas mostram que assumir a personalidade e a
fisionomia de outra pessoa, além de, em qualquer época, provocar o riso no espectador
(dentro do gênero em análise, a comédia), funciona como subterfúgio para isolar-se da
realidade, seja uma fuga por dificuldades pessoais ou emocionais, seja simplesmente
um escape por vaidade. O que fica evidente é que o uso da duplicidade, desde a
Antiguidade Clássica até os dias atuais, expõe de forma irônica a fragilidade de caráter
daqueles que decidem assumir a personalidade do outro.

Considerações finais
Embora a questão identitária pareça ser um questionamento bastante atual –
que acompanha o crescente desenvolvimento da modernidade –, não se pode
deixar de considerar, observando-se a obra de Plauto, que ela nasceu há milhares

537
de anos atrás, quando, provavelmente, não se pensava nela com o mesmo ímpeto
de hoje.
O artifício da duplicidade – que põe em evidência a questão da identidade –
utilizado por Plauto em Anfitrião foi aproveitado posteriormente por muitos artistas.
Isso indica que a necessidade de ser o outro perdurou no tempo e continua cada
vez mais atuante nas sociedades contemporâneas, como se pôde verificar nos dois
exemplos selecionados para este trabalho, Um Deus dormiu lá em casa e Quero ser
John Malkovich, nos quais as influências do texto clássico são evidentes, embora
passem despercebidas pelos olhos desatentos da maioria das pessoas que
consomem esses novos produtos.
Obviamente, a questão identitária ocorre de forma diferente em cada
manifestação cultural, no entanto, em todas elas, foi possível notar que a busca de
uma nova identidade (já tratada Antiguidade Clássica) está associada ao desejo de
viver de maneiras diferentes as situações do dia a dia, seja para firmar-se como
indivíduo participante da sociedade, seja para realizar desejos íntimos ou,
simplesmente, pelo fato de a vida alheia parecer mais interessante do que a própria
vida.
É possível que a maioria das pessoas, por razões distintas, já tenha se
imaginado, pelo menos em algum momento da vida, sendo outra pessoa. Foi assim
na Antiguidade Clássica, é assim no mundo contemporâneo e, provavelmente, será
assim na posteridade, sobretudo, considerando-se a evolução da sociedade.

Referências bibliográficas
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia e comédia. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1984.
CARDOSO, Zélia de Almeida. O Anfitrião, de Plauto: uma tragicomédia. Itinerários.
Araraquara, v. 26, pp. 15-34, 2008.
FIGUEIREDO, Guilherme de Oliveira. A rapôsa e as uvas; Um Deus dormiu lá em
casa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.

538
FISCHER, Lionel. História do teatro de sua criação até o final do século XIX, 2011.
Disponível em: < http://lionel-fischer.blogspot.com.br/2009/02/historia-do-teatro-de-
sua-criacao-ateo.html>. Acesso em: 12 jul. 2015.
HUNTER, Richard Lawrence. A Comédia Nova da Grécia e de Roma. Organizador
da tradução: Rodrigo Tadeu Gonçalves. Paraná: Editora Universidade Federal do
Paraná, 2010.
KURY, Mário da Gama. Introdução. In: ARISTÓFANES. As nuvens. Só para
mulheres. Um deus chamado dinheiro. Tradução: Mário da Gama Kury. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1995.
LYRIO, Fernanda Maia. Nos Meandros da Comédia Nova do Menandro. Contexto -
Revista semestral do Programa de Pós-graduação em Letras. Espírito Santo, v. 17,
pp. 10- 41, 2010.
NOVAK, Maria da Glória. Medeia de Sêneca. Letras Clássicas. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, nº 3, pp. 147-
162, 1999.
PLAUTO. Anfitrião. Tradução: Carlos Alberto Louro Fonseca. 2ª ed. Coimbra:
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986.
PRAZ, Mário. Literatura e Artes Visuais. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1982.
QUERO ser John Malkovich (Being John Malkovich). Spike Jonze. Roteiro de
Charlie Kaufman. EUA: Single Cell Pictures, 1999. DVD.
RIBEIRO JR., Wilson Alves. Do sorriso grego à gargalhada romana. In: Plauto, O
Soldado Fanfarrão. Tradução: J. D. Dezotti. Araraquara: FCLAr-UNESP, p. 7-8,
1999.
ROBERT, Fernand. A literatura grega. Tradução: Gilson César Cardoso de Souza.
1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Sites consultados:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa212882/guilherme-figueiredo. Acesso
em: 06 jun. 2015.
http://lionel-fischer.blogspot.com.br/2009/02/historia-do-teatro-de-sua-criacao-ate-
o.html. Acesso em: 12 jul. 2015.

539
HISTÓRIAS E PERSONAGENS NA IMPRENSA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO
– O JORNALISMO DO ESCRITOR ALUÍSIO AZEVEDO

Luciana Uhren Meira Silva199

O final do século XIX, em São Luís do Maranhão, foi um período marcado


pela agitação social causada pelos movimentos republicanos e abolicionistas. A
falta de um partido que representasse verdadeiramente os ideais progressistas e
modernos fez com que jovens intelectuais expressassem suas ideias por meio de
diversos periódicos.
Dentre eles destacam-se O País, A Flecha, O Futuro, O Pensador e
Pacotilha – os dois últimos contaram com a participação efetiva de Aluísio Azevedo.
Além dessas, havia as folhas Diário do Maranhão e Publicador Maranhense, nos
quais circulavam notícias oficiais e, o representante dos interesses da Igreja: a
Civilização.
O número elevado de jornais e a diversidade de segmentos que
representavam indicam a importância dos periódicos para os moradores da capital
maranhense. Embora grande parte das pessoas constituísse uma parcela
analfabeta da população, aqueles que possuíam acesso à leitura viam nos jornais,
diários ou não, o meio de ver suas convicções defendidas, além de terem acesso
aos folhetins e notícias vindas da Europa e da Corte.
Tendo em vista a penetração desse meio de comunicação, Aluísio Azevedo
usou as páginas de O Pensador e Pacotilha para divulgar e defender seus ideais
positivistas, além de divulgar e lançar o romance O Mulato, fazer críticas teatrais e,
principalmente, expor os vícios da sociedade e do clero católico.
Pacotilha200 foi o primeiro jornal diário do Maranhão. Era vendido em
exemplares avulsos – o que representou grande novidade para época – além das
habituais assinaturas. Esse periódico alcançou boa repercussão entre os

199 Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora em
cursos de graduação e licenciatura na Faculdade Paschoal Dantas, São Paulo – SP.
200 O conteúdo de Pacotilha foi consultado em microfilmes disponibilizados pela Biblioteca Nacional do Rio de

Janeiro. Os números consultados vão de dezembro de 1880 a setembro de 1881 e serão aqui indicados pela sigla
MF.

540
maranhenses e chegou a alcançar a tiragem de 1500 exemplares diários. No
período entre 12 de dezembro de 1880 e 06 de setembro de 1881 é possível verificar
os escritos de Aluísio sob os pseudônimos Lhinho e Giroflê, assim como atestam os
estudiosos Jean-Yves Mérian, Josué Montello e os próprios artigos do jornal católico
Civilização.
Os escritos publicados na Pacotilha eram um dos canais utilizados por
Aluísio para, não só atacar o clero, mas divulgar seus ideais positivistas para o
público. Esse posicionamento revela que o autor possuía uma visão da literatura
como sistema, pois sem um público consumidor de romances não haveria motivos
para escrevê-los. Portanto, era essencial, naquele momento específico da vida na
província em que a atividade intelectual estava longe de ter a mesma intensidade
que a Corte possuía, investir na promoção não só de seu romance, mas de todo um
modo de pensar e encarar a realidade.
A intenção do romancista era inserir-se numa tradição literária, assim como
comenta Antonio Candido:

Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal


sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade
literária – espécie de transmissão de tocha entre corredores, que assegura
no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É
uma tradição no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo
entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando
padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais
somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição
não há literatura, como fenômeno de civilização (1971, 24).

A estética presente e valorizada pelo público no momento da concepção e


divulgação de O Mulato ainda era a romântica. Por isso, de maneira a fazer parte
da tradição literária, a divulgação por meio da mídia disponível serviria de caminho
para a criação de um público que soubesse admirar e consumir o novo modelo de
fazer literário. A entrada de Aluísio no mundo das letras aconteceu pela via
romântica, mas era o positivismo que ele pretendia demonstrar, esclarecer e
propagar como seu modelo ideal de literatura.
Raimundo de Menezes, biógrafo de Aluísio Azevedo, afirma em seu Aluísio
Azevedo – uma vida de romance (1958), sobre o dia do lançamento da Pacotilha:

541
[...] à tardinha, um grupo de meninotes, em bizarras fardas, ganha a rua, a
sobraçar enormes pacotes de jornais, ainda com a tinta fresca. Berram,
como loucos, pelas ladeiras abaixo:
- Olha a Pacotilha! A Pacotilha!
A acolhida é surpreendente. Não há quem, curioso da novidade da venda
da nova gazeta, em pregões pelas ruas (até então era entregue a
domicílio), não se apresse em adquirir um exemplar por 40 reis
(MENEZES: 1958, 98).

Tal foi a intensidade do acontecimento que, meses depois, publicou-se na


recém-lançada folha a seguinte anedota sobre o método de distribuição do jornal:
Entre duas pretas velhas:
- Mas gentes, dizia uma, o que é essa coisa que essas crianças andam
gritando de noite, Capotilha, Sapotilha?...
- É Capotilha, minha camarada, dizia outra. É uma coisa que tudo quanto
você faz vem lá. Se você vai na praia, compra seu peixinho, cozinha pra
comer, vem as Capotilhas; se você vai pra casa acende seu cachimbo e se
deita, vem na Capotilha; tudo vem lá.
- Então é coisa do diabo.
- Cruzes minha camarada!!!! (AZEVEDO, MF, 21/06/1881).

Além da nova maneira de oferecer o periódico ao público, Aluísio e seus


companheiros redatores se utilizaram de outro método de propaganda. Na mesma
noite do lançamento da folha, houve uma apresentação de orquestra no teatro São
Luís. Em um dos intervalos, a orquestra executou uma composição do músico
Antonio Rayol, alusiva ao jornal. Nas palavras de Raimundo Menezes:

A certa altura, suspensos os demais instrumentos, apenas o piano e o


violino, num recurso admirável, dão a impressão de articular o título do
novo jornal, enquanto alguém, nos bastidores (o próprio Aluísio) para
provocar melhor impressão, grita compassadamente: pa-co-ti-lha (1958,
98).

Os métodos empregados por eles foram inovadores e realmente


conseguiram atingir a atenção do público, pois contar com a distribuição de 1500
exemplares diários realmente era algo grandioso para a época e para aquela
acanhada província. Aluísio contribuiu com inúmeros artigos, crônicas e cartas e
ofereceu ao público sua visão sobre a sociedade, o clero, as expressões artísticas
como o teatro e, até mesmo, sobre os demais jornais em circulação no local.

542
Na seção “Os jornais”, Aluísio sob o pseudônimo Lhinho, apresentou
diversos jornais e, por vezes, emitiu sua opinião sobre notícias e jornalistas. Nessa
seção, também, estiveram presentes vários comentários sobre o jornal católico
Civilização, além de promover outras folhas progressistas como O Futuro e
defender os escritos de Giroflê. Aluísio defendeu sua obra literária e divulgou
supostas cartas sobre O Mulato. Tais cartas, segundo Josué Montello, eram fruto
da própria imaginação do artista, usadas como recurso para chamar a atenção do
público leitor. Em 07 de junho, Aluísio, com as palavras de Lhinho, escreve:

D. Antonieta escreve a D. Julia uma interessante carta, dizendo as


impressões que recebeu com a leitura de O Mulato, romance de nosso
amigo Aluísio Azevedo.
D. Antonieta faz a apologia dos livros realistas e condena a leitura dos
romances amorosos cheios de paixão e desordem, nos quais o vício tem
um caráter simpático e atraente.
Somos inteiramente da opinião de D. Antonieta e desde já pedimos licença
para agradecer em nome de Aluísio Azevedo as palavras generosas que
S. Exc. escreveu a respeito de O Mulato (AZEVEDO, MF, 07/06/1881).

A ideia das cartas, com certeza, aguçava a curiosidade daqueles que ainda
não conheciam o livro, além de apresentar uma defesa em favor das obras realistas
em detrimento dos romances românticos vistos como portadores de todos os vícios.
Assumindo uma identidade ficcional, Aluísio, na voz de Lhinho, agradece às
leitoras pelo autor Aluísio Azevedo. Ainda um outro recurso utilizado por ele para
divulgar sua obra foi a exposição de desenhos das personagens que se
encontravam na redação da Pacotilha:

ANÚNCIO
Prevenimos aos leitores da Pacotilha que a partir de amanhã, estará em
exposição no nosso escritório um quadro com desenhos representando
vários episódios do romance de costumes maranhenses – O Mulato – por
Aluísio Azevedo, cujo retrato, tirado em ponto grande pela fotografia
Soares, ocupa o centro do quadro.
Os que já leram e os que ainda não leram – O Mulato – devem ter
curiosidade em ver o quadro, estes para fazerem uma ideia do que é o livro
e aqueles para verificarem a realidade da impressão que lhes causou a
leitura (MF, 25/04/1881).

O ambiente, dessa forma, estava preparado não só para a divulgação da


obra, mas para a formação do público leitor. Tanto a exposição dos ideais

543
positivistas na folha O Pensador, quanto a propaganda e os comentários de
Pacotilha, serviram de estímulo para curiosidade do leitorado maranhense.
A escolha que Azevedo faz em seus artigos jornalísticos revela sua intenção
educar o olhar de seu público para uma nova forma romanesca, em que a defesa
de uma tese era a base fundamental da obra de arte. É o que ele próprio afirma em
um momento metalinguístico de seu romance-folhetim Mattos, Malta ou Matta?
Romance ao correr da pena, de 1884. Em determinado momento da narrativa, o
autor assume a voz do narrador e explica seu método de construção romanesca:
[...] Diremos logo com franqueza que todo nosso fim é encaminhar o leitor
para o verdadeiro romance moderno. Mas [...] sem que ele dê pela tramoia.
[...] É preciso ir dando a cousa em pequenas doses [...] Um pouco de
enredo de vez em quando, uma ou outra situação dramática [...] para
engordar, mas sem nunca esquecer o verdadeiro ponto de partida – a
observação e o respeito à verdade (AZEVEDO apud MEYER: 1996, 306-
307).

Fazia parte do projeto estético do autor a apresentação de uma nova forma


de pensamento e a condução do possível público leitor para a concepção de
literatura que acreditava ser a correta: o romance de tese. Os escritos cumpririam,
então, dois postulados: falariam ao público contemporâneo que conhecia a
realidade representada pelo artista, e aos que apreciariam a obra, mesmo que
afastados pelo tempo, ao longo das leituras e das atualizações que o futuro lhe
reservava.
Pode-se considerar que os textos presentes nos diários informativos servem
como parte integrante da estrutura necessária para a ativação das faculdades
imaginativas que contribuem para a total recepção da obra literária. A exposição dos
‘vícios’ da Igreja, as cartas de leitoras fictícias, o comentário geral sobre as artes, a
defesa da obra literária e a propaganda referente às ilustrações das personagens
presentes na redação de Pacotilha, preparavam o leitor para o conhecimento das
ideias que Aluísio defendia em seu romance. Dessa forma, toda essa produção ser
considerada como parte integrante de um sistema, uma criação artística coesa e
bem elaborada.
Aluísio Azevedo tinha a oportunidade de se relacionar com os fatos que o
cercavam por meio do trabalho que desenvolvia como jornalista. O olhar aguçado

544
de caricaturista, atividade que empreendeu e aprimorou no período em que esteve
na Corte (entre 1876 e 1878), foi, também, ferramenta fundamental para o
desenvolvimento de seus julgamentos a respeito da sociedade maranhense e da
influência religiosa exercida pelo clero.
A observação desses escritos jornalísticos nos direciona para o trabalho que
Azevedo realizou com as fronteiras entre realidade e ficção inseridas em uma
estrutura textual – o jornal – onde, citando Umberto Eco (1994), são relatados os
fatos cotidianos verdadeiros.
Em sua reflexão sobre o que é fictício e o que é real, Wolfgang Iser, lança
uma questão que está inteiramente relacionada com a prática de escrita de Aluísio:
“Os textos ficcionados serão, de fato, tão ficcionais e os que assim não se dizem
serão, de fato, isento de ficções?” (ISER, apud LIMA: 1983, 384).
Do ponto de vista de Iser, a construção ficcional cria três condições básicas
para a apreensão do texto: 1) representa a condição para a reformulação do mundo
ou da realidade que cerca o autor e o leitor; 2) possibilita a compreensão de um
mundo reformulado – mundo ficcional e; 3) permite que tal acontecimento seja
experimentado no momento da leitura. São os vários atos de fingir que compõem
uma produção literária e implicam a seleção e combinação de dados fornecidos pela
realidade empírica. Essa relação é de natureza sociocultural e revela o enfoque que
cada autor deseja dar à sua obra. Relacionando esse conceito com a teoria
naturalista, as escolhas autorais representam a expressão pessoal, ou seja, o
recorte da realidade que o artista usará em seu trabalho e a maneira como irá
configura-lo numa nova forma transgressora do material empírico.
Um exemplo dessa relação entre ficção e realidade no contexto das crônicas
de Aluísio é o artigo publicado na folha Pacotilha de 27 de junho de 1881. Em carta
à redação da Civilização, Aluísio relata o fato de o jornal católico ter insultado os
jovens livres-pensadores da folha cuja edição está sob sua responsabilidade. Antes
de relatar os insultos publicados pelos religiosos, o cronista descreve a situação em
que se encontra a folha católica:
Causou-nos verdadeiro dó ver ontem a desgraçada bater com a cabeça
pelas paredes, esmurrar-se toda, morder a língua e afinal atirar-se ao chão,
roxa, apoplética, fula, a estrebuchar como uma coisa perdida, a enroscar-

545
se como uma lombriga e a vazar por entre os dentes podres uma gosma
de mau caráter.
Pobre Traviata! Quem te viu e quem te vê!
[...]
Causa-nos dó, velha besta desdentada, ver-te aparecer aos sábados, feia,
tísica, aguardentada, com os pés estalados de frieiras, as sobrancelhas
comidas de sífilis, arrastando tua miséria pela rua a tentar divertir um
público que te cospe na cara e que te repele com os pés.
[...]
Um dia te encontramos na porta de uma igreja, a pedir esmola. Como
tinhas o nariz muito vermelho, o olho vazado, um dente arrebitando o beiço
superior, como era muito feia e caricata, e como nós éramos rapazes –
achamos-te graça e rimos.
Tu te maçaste e chamaste-nos nomes feios.
Nós continuamos a rir e tu disseste no teu sopro nasal que nós pagaríamos
o que fizemos – com meia dúzia de galvazes no pescoço.
Coitada! Aquilo não é maldade – é desespero! É desvario! Também como
não há de estar ela nesse pobre estado, se todos a tomaram a seu debique
– se já não há por aí quem não lhe meta os pés e quem não lhe cuspa nas
ventas?!
Ah! Mas nós a defenderemos – a verdadeira desgraça encontrará sempre
proteção neste escritório – quando tu, pobre Civilização, te vires por aí
completamente perdida, enxotada pelos homens e pelos cães, quando tu
não tiveres um trapo para te embrulhares e um pedaço de pão para
matares a fome – vem por cá – nós somos bons rapazes e te faremos
recolher aí no corredor debaixo da escada e te mandaremos lá o resto do
jantar.
[...]
Aparece! (AZEVEDO, MF, 27/06/1881; grifos nossos).

Aluísio retrata a Civilização como uma artista de circo fracassada e


esquecida pelo público. Torna a folha católica em personagem caricata e relaciona
as ofensas por ela proferidas à sua condição amargurada e humilhante.
O ato de fingir, empregado pelo cronista, relaciona-se com a alusão feita às
injúrias proferidas pelos redatores do jornal católico. Tal fato pertence à realidade
empírica e pode ser comprovado com a leitura das acusações e ofensas levantadas
pela citada folha. Porém, Aluísio usa seu imaginário para criar a situação
vergonhosa em que se encontra a Civilização.
Como o imaginário não possui compromissos com a realidade comprovada,
ele atribui ao jornal a situação vexatória e ridícula de uma artista circense falida e
corroída pelos anos. Cada recurso empregado pelo autor – as descrições, as
hipérboles, o vocabulário e principalmente a ironia – é uma maneira de transgredir
a realidade observada e dar lugar a uma outra cena, agora no âmbito ficcional, com

546
seu estatuto de verossimilhança instaurado de modo a desmascarar as verdadeiras
intenções do jornal católico.
O cronista, nesse caso, coloca-se contra uma instituição que possui prestígio
social, a despeito de seus ataques satíricos. A Igreja é representada como uma
figura decrépita e decadente que busca sem aparente sucesso atingir um antigo
público que lhe fora fiel. Aluísio ignora, propositalmente, o fato de ainda existirem os
apoiadores da folha religiosa, pois assume uma postura subversiva e transgressora.
Quando escreve, Aluísio tem em mente o leitor implícito, que, segundo Iser
não é o leitor real, empírico, mas um tipo ideal que agiria como um colaborador ao
texto e, portanto, ajudaria a criá-lo. O leitor, dessa maneira, representa um papel de
fundamental importância para a realização do texto ficcional, jornalístico ou uma
mistura de ambos os estilos. Ele se funda na estrutura do texto, por isso “a
concepção do leitor implícito designa, então, uma estrutura do texto que antecipa a
presença do receptor” (ISER: 1996, 73). O autor utiliza sinais de gênero, ou seja,
recursos linguísticos específicos ou o conjunto de orientações textuais para orientar
o leitor. Sendo assim, o leitor implícito nasce com o texto, pois é uma criação do
próprio autor.
No caso do público maranhense, nos parece claro que Aluísio lançou mão
de recursos ficcionais na construção de suas crônicas jornalísticas – e, então
caminhou entre as fronteiras da realidade e ficção – pois reconhecia a preferência
do público por narrativas. Conseguia, assim, realizar uma dupla função – manter a
atenção do leitor empírico e divulgar o seu ideário positivista.
Podemos, ainda, recorrer a um outro exemplo para verificar a
ficcionalização de elementos da realidade observada. Trata-se da publicação da
seção “Os jornais” de 22 de junho de 1881. Naquela seção, o cronista comenta o
fato de ser perseguido pelo Padre Fonseca por ser um suposto quebrador de
lampiões que ronda a cidade. Com tom irônico, o autor revela ter a paz ameaçada
pela presença do padre que o segue com o objetivo de pegar-lhe em flagrante. A
seguir, temos a cena:

547
Oh! Coisa má e dolorosa! Oh! Tormento de nossa vida! – o espectro do
padre não nos deixa! Ainda outro dia vagávamos pela rua, acabrunhados
pelo fardo imenso de nossos terrores, quando esbarramos de encontro a
um lampião.
[...]
E os vendavais chilravam nas folhas dos arvoredos, e a noite se estorcia
no espaço como um pensamento negro e o céu crivado de estrelas, parecia
uma enorme escumadeira suspensa sobre nossas cabeças.
Foi então que nós subimos a torre de Santo Antonio, arremessamos o
chapéu, levantamos os braços, sacudimos a cabeleira e exclamamos afinal
com todo o ardor de nossa alma:
Quem nos livra
Quem nos livra do Fonseca!
Do Fonseca!
Perna fina e cara seca!
Tristes de nós – tínhamos enlouquecido! (AZEVEDO, MF, 22/06/1881).

A narrativa, que até mesmo exagera nas descrições da natureza – à moda


dos escritores românticos – ironiza as tentativas do padre de capturar o culpado
pelos atos de vandalismo. O comportamento descabido do narrador revela traços
característicos dos folhetins repletos de personagens com atitudes extremas e sem
medida. Sem dúvida, Aluísio recorria aos modelos literários apreciados pelo público
para propagar seus julgamentos contra o clero.
Em outra ocasião, a cidade do Maranhão é caracterizada como uma
personagem, assim como o autor fez no romance O Mulato. Ao discutir a posição
dos homens de política e de negócios do Maranhão, Aluísio aponta para a falta de
agilidade com que os negócios são feitos e as políticas públicas realizadas.
Lemos na seção “Os jornais”:
Pobre Maranhão! Terra de moleza e de pouca vontade! Tu devias, terra
nossa, reunir um dia todos os teus habitantes, escolher entre eles o que
mais se distinguisse pela preguiça, nomeá-lo presidente e deixar que este
dissesse com uma voz muito arrastada – Meus senhores! Está aberta a
pasmaceira!
- Se alguns dos senhores têm vontade de bocejar, pode fazê-lo a vontade!
- Peço o bocejo!
- Tem o bocejo o nobre colega da preguiça!
- Ah! Que lombeira!...
- Bem, meus senhores, agora podemos dormir, amanhã discutiremos se
devemos ou não introduzir a rede nessas reuniões.
E depois disto cada um tirava as botas, fazia do paletó um travesseiro e
pegava no sono.
Aí está o que devemos todos, todos fazer – o mais é estar com pomadas.
Os senhores lavradores não se precisam se incomodar – podem se deixar
ficar nos seus tijupás (AZEVEDO, MF, 06/06/1881).

548
O Maranhão é apresentado como aquele que deve reunir todos os
representantes políticos para discutir assuntos da mais séria importância: a
necessidade de redes na câmara de reuniões. Os participantes não pediriam a
palavra, mas o bocejo. A narrativa, mais uma vez, serve para caracterizar uma
situação que, na opinião de Azevedo, demonstra a real condição do povo
maranhense. Realidade e ficção, assim, caminham lado a lado na elaboração da
denúncia.
Aluísio Azevedo assumia ao máximo a liberdade que a imprensa lhe
proporcionava, e por isso foi capaz de oferecer ao público sua visão sobre os fatos
e ainda formar o futuro público de seu primeiro romance naturalista. Um dos
recursos dessa liberdade de imprensa foi o emprego de diversos pseudônimos que
garantia ao autor a oportunidade de assumir várias figuras ficcionais e experimentar
os mais variados estilos de escrita, desde os mais graves e reflexivos até os mais
irônicos e repletos de episódios ficcionais. Na medida em que transitava nas
fronteiras entre realidade e ficção, os textos jornalísticos de Aluísio trazem uma
realidade empírica que pode ser comprovada por documentação histórica, mas, por
outro lado, apresenta marcas profundas de sua expressão pessoal que, como forma
de extrapolar os limites do naturalismo no jornal, tornou sua obra única dentre os
seus contemporâneos.

Referências:
AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. São Paulo: Ática, 1994.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos) primeiro
volume (1750-1836). São Paulo: Martins 1971.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional IN LIMA, Luiz
da Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves, 1983.
MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo. Uma vida de romance. São Paulo:
Livraria Martins, 1958.

549
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913): o verdadeiro Brasil
do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
MONTELLO, Josué. Aluísio Azevedo e a polêmica de "O Mulato". Rio de Janeiro:
José Olympio, 1975.

550
(DES)CAMINHOS DO FANTÁSTICO EM A HORA DO DIABO,
DE FERNANDO PESSOA
Luciano de Souza
Introdução

Ouça, você é uma pessoa inteligente e


jamais esteve louca. Está convencida
seriamente de que ontem estivemos com o
Satanás?
O Mestre e Margarida – Mikhail Bulgákov

“Diga-me o que comes e eu te direi quem és” (Pessoa: 1986, 41) é o curioso
adágio, de autoria indefinida, que consta como epígrafe do conto “A Very Original
Dinner”, escrito por Fernando Pessoa em 1907 e atribuído a uma de suas primeiras
personalidades literárias, Alexander Search201. Tivesse sido objeto das filosóficas
ilações do criador daquele adágio, a relação entre os hábitos de leitura de um
escritor e o teor de seus textos poderia, da mesma forma, ter inspirado um axioma
como “Diga-me o que lês e eu te direi o que escreves”, o qual poderia mesmo figurar,
epigrafado ou não, como mote inicial de um texto ficcional ou, quiçá, de alguma
análise crítica sobre as práticas literárias de um dado autor.
Tome-se, por exemplo, a afeição de Fernando Pessoa, enquanto prosador,
“pelo estranho, pelo enigmático, pelo intersticial” (Segolin in Pessoa: 1986, 10).
Ainda pouco conceituada fora dos estudos pessoanos, essa propensão pode de fato
ser explicada pelo interesse que o autor português reconhecidamente nutria, desde
os anos de sua formação literária, por narrativas de cunho fantástico, como bem
nota Maria de Lurdes Sampaio (2012), no comentário que oferece ao conto “The
Door”, e Maria Leonor Machado de Sousa, em seu livro Fernando Pessoa e a

201
Esse texto foi publicado, no original inglês e em uma tradução realizada por Fernando Segolin e Maria da
Graça Abreu Segolin, em uma coletânea de breves narrativas ficcionais de Fernando Pessoa, editada em 1986.
Embora o autor português não tenha fornecido qualquer indício quanto à procedência da citação epigráfica, é
possível que sua inspiração tenha sido uma máxima utilizada pelo “gastrônomo-filósofo” francês Brillat-
Savarin: “Dis-moi ce que tu manges, je te dirai qui tu es” (Wartofsky: 1982, 451). Também o filósofo alemão
Feuerbach expressou um conceito semelhante – ainda que de maneira muito mais engenhosa, como lhe foi
permitido por seu idioma nativo – ao dizer que “O homem é aquilo que ele come” [“Der Mensch ist was er
isst”], mas as palavras de Savarin parecem mais condizentes com a epígrafe utilizada por Pessoa: “Tell me what
thou eatest and I”ll tell thee what thou art”.

551
literatura de ficção (1978). Nesse sentido, é cabível aventar que o pendor de Pessoa
pela escrita fantástica, aliado à sua atração pelo satânico 202, imprimiu na prosa de
A Hora do Diabo as marcas que levariam esse fragmentário conto a ser publicado,
pela primeira vez, justamente em uma coleção dedicada a contos fantásticos de
escritores portugueses, entre eles Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida e Eça
de Queiroz203.
Ausente do espectro da literatura pessoana reputada como canônica, A Hora
do Diabo relata o encontro, em uma dimensão além do tempo e do espaço,
entre uma mulher chamada Maria, grávida de três meses, e Satã, figura
relativamente assídua na produção juvenil de Fernando Pessoa. Estruturado,
editado e comentado por Teresa Rita Lopes, profunda conhecedora da obra do
poeta, A Hora... é, por certo, um dos textos mais intrigantes de Pessoa, sobretudo
pelas numerosas referências a diferentes tópicos relacionados ao esoterismo
ocidental, um tema reconhecidamente preponderante em boa parte de seus
escritos.
Todavia, tendo em vista que a mera ocorrência daquilo que transcende a
realidade humana não é suficiente para qualificar um texto literário como fantástico,
como concordam David Roas (2013: 31) e Tzvetan Todorov (2007: 40), quais seriam
os elementos que efetivamente justificariam uma tal compreensão daquela
hermética narrativa para além da óbvia instância sobrenatural evocada pelo
satânico? Afinal, quando Teresa Rita Lopes, já no início da nota posfacial que
compôs para a primeira edição d’A Hora do Diabo, chama a atenção do leitor para
a inclusão de um texto de Fernando Pessoa numa “colecção de histórias fantásticas”
(Lopes in PESSOA: 1988, 39), ela não parece conferir ao adjetivo “fantástico” um
sentido literário específico, inserindo-o antes naquela “grande categoria geral”
(CESERANI: 2006, 9) ou “concepção ‘unitária’” (Roas: 2013, 43) onde se aloca tudo

202
O satanismo pessoano será explorado na tese In sorte Diaboli: Satã e satanismo(s) em Fernando Pessoa, a
ser concluída em 2016. O artigo “O Diabo em Pessoa: retratos da figura de Satã nos escritos de Fernando
Pessoa” (Souza: 2009) pode ser lido como uma introdução ao assunto.
203
A Hora do Diabo foi dado ao público por duas editoras diferentes, sendo que a primeira edição, de 1988,
coube às Edições Rolim, enquanto as posteriores, de 1997 e 2004, foram publicadas pela Assírio e Alvim. As
duas edições constam das referências bibliográficas deste estudo porque, mesmo não havendo variações no texto
de Pessoa em cada uma delas, os comentários de Teresa Rita Lopes diferem em alguns pontos no que tange ao
seu teor e estrutura.

552
aquilo que “é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o
fabuloso” (Rodrigues: 1988, 9). Considerando, assim, a necessidade de um viés
teórico apropriado para investigar os mecanismos que instauram o fantástico na
diabólica prosa de Pessoa, a primeira investida nesse horizonte optou pela
utilização do consagrado sistema desenvolvido por Tzvetan Todorov em sua
Introdução à literatura fantástica, iniciativa essa que originou o artigo “A Hora do
Diabo: fragmentos de uma narrativa fantástica?” (SOUZA: 2014).
O presente estudo, por sua vez, ao seguir os (des)caminhos do fantástico no
conto de Fernando Pessoa, configura um retorno àquele especulativo exercício
exegético por meio da inclusão, na discussão realizada anteriormente, de alguns
conceitos pensados por David Roas e Remo Ceserani, especialistas que, sem
deixar de atestar a importância do trabalho de Todorov, preconizam, cada qual a
seu modo, reflexões sobre o fantástico que ultrapassam as balizas estabelecidas
pelo ensaísta franco-búlgaro. Há de se frisar que o objetivo aqui não é propor uma
nova interpretação para os fragmentos examinados no referido artigo ou refutar as
conclusões ali vigentes, mas sim avultar aquela apreciação inaugural com a
contribuição de vozes que não foram ouvidas à ocasião.
Convém lembrar neste ponto que, para Todorov (2007: 36), o ponto fulcral de
uma narrativa fantástica está assentado na incerteza do leitor, condição essa que
se sustenta ao menos em duas de três premissas elementares:

[...] é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um
mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente
experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a
uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas
da obra; [...]. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará
tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação poética (TODOROV: 2007, 39)

Considerado demasiadamente abstrato e sistemático por Remo Ceserani


(2006: 55), tal esquema mostra-se falho também na avaliação de David Roas (2013:
41), para quem as diretrizes de Todorov proporcionam uma “definição muito vaga e,
sobretudo, muito restritiva do fantástico”. Segundo o estudioso espanhol, aliás, o
fantástico “se define e se distingue por propor um conflito entre o real e o impossível.

553
E o essencial para que tal conflito gere um efeito fantástico não é a vacilação ou
incerteza [...], e sim a inexplicabilidade do fênomeno” (Roas: 2013, 89). Roas (2013:
42) acrescenta ainda, ao discorrer sobre sua percepção do fantástico, que “a
transgressão que define o fantástico só pode ser produzida em narrativas
ambientadas em nosso mundo, narrativas em que os narradores se esforçam por
criar um espaço semelhante ao do leitor”.
Estando, pois, decretadas as concepções de Todorov e Roas para o
fantástico, resta examinar os fragmentos que seguem a fim de averiguar de que
forma A Hora do Diabo pode ser vista como uma narrativa fantástica pelas lentes
daqueles investigadores.
Notar-se-á, já de início, que a necessidade de inserir a trama em um ambiente
familiar à realidade do leitor, conforme defende Roas, é perfeitamente atendida no
texto de Pessoa, ainda que o fantástico se manifeste não mediante a ruptura dessa
realidade, mas a partir do momento em que ela é restaurada:

Saíram do terminus, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria
rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás,
para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém.
Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer
ser um terminus de estação de comboios.
Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou,
subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório,
e, quando ela entrou, depôs o livro.
“Então?” perguntou ele.
E ela, “Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante”. E acrescentou,
antes que ele perguntasse: “Uma gente que estava lá no baile trouxe-me de
automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali
mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou!”
E, num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar
(PESSOA: 2004, 41).

Embora em uma via inversa, pode-se ver aí um exemplo daquilo que Remo
Ceserani (2006: 73) chama de “passagem de limite ou de fronteira”, um dos
procedimentos narrativos que, para aquele teórico, caracterizam o fantástico:
“Várias vezes encontramos, nos contos fantásticos que lemos, exemplos de
passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do
inexplicável e do perturbador”. Ceserani (2006: 77) também observa, ao tratar de
temas frequentes na narrativa fantástica, que “a ambientação preferida pelo

554
fantástico é aquela que remete ao mundo noturno”, não por acaso outro recurso
empregado por Pessoa em seu texto, como revela a imagem da “rua, lunar e
deserta”.
E é em um cenário onde a noite guarda o limiar entre o heimlich e o
unheimlich de Freud (Roas: 2013, 59) que Maria se vê aturdida ao constatar, ao final
de sua viagem, que a saída da estação era a rua em que residia e que, às suas
costas, já não havia sinal de nenhum terminal e tampouco da figura que a
acompanhava. A referência a um “companheiro” e a forma plural do verbo sair
indicam, entretanto, a presença anterior de uma segunda personagem. Deve-se
notar aqui que, sendo esse o primeiro fragmento do conto, estão ainda velados ao
leitor os mistérios da jornada de Maria e a identidade de seu acompanhante. Logo,
a repentina solidão da mulher e o surgimento e subsequente desaparecimento da
estação de comboios nas cercanias de sua casa, nas condições descritas, são
fatores que podem legitimamente suscitar no leitor a hesitação característica da
primeira condição da teoria todoroviana e, também, confrontá-lo com a
inexplicabilidade que, para David Roas, é inerente ao fantástico.
Essa impressão se acentua, ainda, pela completa ausência de referências
feitas por Maria, quando recepcionada pelo marido com um vago questionamento,
a qualquer um dos insólitos eventos por ela testemunhados em seu retorno. De fato,
a mulher simplesmente presta contas de como regressou ao lar graças a uma
carona oferecida e faz um comentário sucinto sobre um baile onde supostamente
estivera. No leitor, todavia, o cotejo de tais informações com o relato do narrador
planta a dúvida sobre o caráter sobrenatural dos acontecimentos descritos no início
da narrativa. Teria Maria deliberadamente urdido as omissões e inverdades ditas na
conversa com o marido, talvez a fim de preservar-se da desconfiança de um
companheiro que não veria em sua experiência sobrenatural nada além de sinais
de adultério ou insanidade? Ou o misterioso companheiro e as visões da estação
fantasma não passaram de imagens sonhadas pela mulher no banco do automóvel
que lhe deixou em casa após um baile? Se a realização máxima do fantástico é
“provocar – e, portanto, refletir – a incerteza na percepção do real” (ROAS: 2013:
111), não se pode negar que esse efeito tenha sido alcançado no fragmento acima,

555
o que corrobora novamente, note-se, os fundamentos de Tzvetan Todorov e David
Roas.
Com algumas pequenas variações, aqueles arranjos contextuais que
introduzem o fantástico no conto aparecerão ainda em dois fragmentos que,
prenunciando o término da narrativa, reproduzem a cena de abertura.
Destaca-se, no primeiro deles, a revelação de detalhes, até então ignorados
pelo leitor, que determinam a abrupta solitude que recai sobre Maria no desfecho
de sua viagem ao lado de Satã:

“Não imagina quanto apreciei a sua conversa. Nunca ouvi falar assim.”
Tinham saído para a rua, cheia de luar, na qual ela não reparara. Ela calou-se um
momento.
“Mas, sabe – é curioso – sabe realmente, e no fim de tudo, o que sinto?”
“O quê?” perguntou o Diabo.
Ela voltou para ele olhos subitamente marejados.
“Uma grande pena de si!...”
Uma expressão de angústia, como ninguém julgaria que pudesse haver, passou
pelo rosto e pelos olhos do homem vermelho. Deixou cair de súbito o braço que
enlaçava o dela. Parou. Ela deus uns passos, constrangida. Depois voltou-se
para trás para dizer qualquer coisa ― não sabia o quê porque nada percebera ―
para se desculpar da mágoa que viu que causara (PESSOA: 2004, 60, 61).

Franco e misericordioso, o sentimento de compaixão que Maria confessa


nutrir por seu acompanhante tem o inesperado efeito de um exorcismo, já que, ao
ouvir aquelas palavras, o Diabo perturba-se e aflige-se de tal maneira que lhe é
impossível manter o contato com a mulher ou sequer permanecer em sua presença.
Narra-se então, no excerto seguinte, com pequenas variações de ordem lexical,
aquilo que já fora retratado no início do conto: a surpresa de Maria por sua súbita
solidão, a constatação de que a estação que a deixara à porta de casa evanescera
e o encantamento noturno de um cenário marcado pelo luar preponderante.
Ao final da narrativa, logo após o excerto acima, repete-se a conversa em
que Maria, ao informar como chegara a casa, omite do marido aquelas situações
extraordinárias que a desconcertaram na volta de seu encontro com Satã. Importa
notar que, desta feita, a voz do cônjuge não se resume ao laconismo de um mero
“então?”, vindo mesmo a denotar certo grau de desconfiança diante das explicações
que a mulher lhe oferece com convicção:

556
“Vim com gente conhecida. Como vinham para os mesmos lados...”
“E como vieste? A pé?!”
“Não. Vim de automóvel.”
“Essa é boa! Não ouvi.”
“Não até a porta”, disse ela sem hesitação. “Passaram ali à esquina, e eu pedi
que me não trouxessem até aqui, porque queria andar este bocado de rua com
este luar tão lindo. E está lindo... Olha, vou-me deitar. Boa noite...”
E foi, sorrindo, mas sem lhe dar um beijo – o do costume, que ninguém ao dar
sabe se é costume se é beijo.
Nenhum deles reparou que se não tinham beijado (PESSOA: 2007, 63).

As indagações do marido, bem como sua postura reticente perante as


respostas que Maria lhe dá, expressam um estranhamento que, na verdade,
também é do leitor, uma vez que as explicações da mulher, sejam elas
propositadamente forjadas ou inconscientemente imaginadas, inexplicavelmente
ignoram os acontecimentos narrados nos fragmentos acima. Tal situação, por
consequência, mantém aguda a hesitação fulcral para o reconhecimento do
fantástico, segundo a sistematização de Tzvetan Todorov, assim como a
“confrontação – sempre problemática – que se produz entre o crível e o incrível,
entre o real e o sobrenatural” (ROAS: 2013, 113), atributo que, na visão de David
Roas, é exclusivo do gênero fantástico.
Antes de arrematar este estudo, deve-se dar atenção ainda ao último excerto
de A Hora do Diabo. Nele, diferentemente daqueles fragmentos vistos
anteriormente, não há mais o predomínio do testemunho do narrador, mas
sim das falas de Maria e seu filho, vozes que, por sua discordância, assinalam as
derradeiras manifestações do fantástico na prosa de Fernando Pessoa:

“Diga-me uma coisa, mãe... Dizem que certas memórias maternas se podem
transmitir aos filhos. Há uma coisa que constantemente me aparece em sonhos
e que não posso relacionar com coisa alguma que me houvesse sucedido. É uma
memória de uma viagem estranha, em que aparece um homem de vermelho que
fala muito. É, primeiro, um automóvel, e depois um comboio, e nessa viagem em
comboio passa-se sobre uma ponte altíssima, que parece dominar toda a terra.
Depois há um abismo, e uma voz que diz muitas coisas, que, se eu as ouvisse,
talvez me dissessem a verdade. Depois sai-se à luz, isto é, ao luar, como se
saíssemos de um subterrâneo, e é exactamente aqui no fim da rua... Ah, é
verdade, no fundo ou princípio de tudo há uma espécie de baile, ou festa, em que
esse homem de vermelho aparece...” (PESSOA: 2004, 65).

557
Ao atribuir seus inusitados sonhos204 a possíveis lembranças da mãe, o rapaz
de certa forma sugestiona o leitor a acreditar na veracidade dos eventos relatados
pelo narrador nos excertos acima, pois, ainda que se possa guardar reminiscências
de sonhos, como o próprio filho demonstra em seu relato, o termo “memória” tende
a estar mais comumente associado à revisitação de experiências vividas do que a
episódios oníricos. Além disso, parece não haver dúvidas de que, ao mencionar
“memórias maternas”, o rapaz esteja se referindo a recordações de situações
ocorridas antes de seu nascimento.
Reconduzida àquele estranho dia pelas palavras de seu filho, Maria,
entretanto, não dá sinais de se recordar daquela “conversa interessantíssima”
(Pessoa: 2004, 59) que mantivera com Satã e tampouco dos cenários por onde
passaram, atendo-se, antes, aos mesmos fatos que relatara ao esposo quando de
seu retorno naquela noite:

Maria depôs no colo a sua costura. E, virando-se para a Antónia, disse:


“Ora isto tem graça. Está claro que aquilo dos comboios e automóveis e tudo mais
é sonho, mas, realmente, há uma parte de verdade... Foi aquele baile no Clube
Azul, no Carnaval, aqui há muitos anos — sim, uns cinco — uns seis — meses
antes de este nascer. Lembras-te? Eu dancei com um rapaz qualquer vestido de
Mefistófeles, e depois vocês vieram trazer-me a casa no seu automóvel, e eu
fiquei, até, no fim da rua (olha, onde ele diz que saiu do abismo...)...” (PESSOA:
2004, 65, 66).

Note-se que, ao comentar com a amiga os sonhos do filho, Maria aviva em


sua mente não só a lembrança daqueles elementos já evidenciados, anos atrás, na
conversa com o marido. Um detalhe novo, talvez intencionalmente ocultado do
cônjuge então, surge agora como a única menção feita pela mulher a um possível
contato com Satã. Em verdade, a fim de explanar a figura do loquaz “homem de
vermelho” a que seu filho alude, Maria evoca Mefistófeles, o sagaz demônio
celebrizado nas obras de Marlowe, Goethe e tantos outros que concederam
tratamento literário ao mito fáustico. Nas memórias de Maria, porém, nada há de

204
As imagens que povoam os sonhos do filho de Maria remetem a todo o percurso a que a mulher fora
conduzida por Satã, incluindo as passagens onde predominam os solilóquios do Tentador sobre temas que vão
de sua real incumbência na tentação a Cristo (Pessoa: 2004, 43) até ao seu dilema existencial como “um pobre
mito” (Pessoa: 2004, 59).

558
sobrenatural nesse Mefisto que, de resto, não passaria de um “rapaz qualquer”
diabolicamente trajado para um baile de Carnaval.
Delineia-se já a esta altura uma tênue, porém relevante, contraposição entre
a sobrenaturalidade dos eventos descritos nas passagens onde prevalecem as
vozes do narrador e do filho e a trivialidade das situações relatadas em uníssono
por Maria e Antónia, já que esta acaba por corroborar as explanações e justificativas
da amiga: “Oh, filha, lembro-me perfeitamente... Nós queríamos vir até à porta de
casa, aqui, e tu não quiseste. Disseste que gostavas de andar este bocadito ao
luar...” (Ibidem). E é tal polarização de discursos que consolida na narrativa, uma
vez mais, a primeira condição do fantástico segundo Todorov, ou seja, a dúvida
experimentada pelo leitor como resultado do que é representado no texto.
Considerado facultativo por Todorov (2007, 37), também o segundo atributo
de um enredo fantástico pelos critérios de sua teoria, a saber, a hesitação
manifestada no próprio plano ficcional, faz-se reconhecer, em termos, na última fala
de Maria:

“Isso mesmo... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas
que estou certa que nunca te contei. É claro, não têm importância nenhuma...
Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma
história, em que há coisas verdadeiras — e que a própria pessoa não podia
adivinhar — e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte e o
subterrâneo?” (Ibidem).

Mesmo que a mulher credite as vertiginosas fantasias de seu filho a


imperscrutável matéria dos sonhos, sua reação ao relato do rapaz deixa
transparecer um relativo desconcerto, principalmente por conta da inexplicável
alusão a elementos que se correlacionam com exatidão a certos fatos que ela aceita
como verdadeiros, mas que jamais foram confidenciados ao filho. Por fim, o
assombro de Maria também traz em si algo da inexplicabilidade a que David Roas
se refere em sua definição para o fantástico, embora a perplexidade da mulher
advenha não do embate entre real e sobrenatural, como postula Roas, mas sim
daquilo que ela entende ser uma inapreensível permutabilidade entre verdade e
fantasia onírica.

559
A afluência de diferentes visões teóricas voltadas ao fantástico na literatura
sem dúvida abre um caminho para o eterno retorno ao tema, como se deu, aliás, no
caso desta concisa incursão nos obscuros domínios do fantástico pessoano, que
agora se encerra. E se a empreitada inicial, dedicada unicamente a interpretar A
Hora do Diabo conforme a sistematização estabelecida por Tzvetan Todorov, já
permitia reconhecer na prosa de Fernando Pessoa o estatuto do fantástico, este
trabalho, ao guiar-se também pelas perspectivas exegéticas de Remo Ceserani e
David Roas, corrobora aquela percepção. Apresentado por Teresa Rita Lopes como
uma narrativa fantástica “genérica”, o conto de Pessoa não somente se insere em
um gênero literário de indiscutível relevância, como amplia ainda mais o horizonte
dos estudos pessoanos ao mostrar ao leitor que tão importante quanto revisitar
Lisboa é deixar-se levar pelo Diabo em uma viagem “sem termo real nem propósito
útil” (PESSOA: 2004, 46).

Referências bibliográficas:

CESERANI, Remo. O fantástico. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.

PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo (posfácio, pesquisa, transcrição e


organização de texto de Teresa Rita Lopes). 1 ed. Lisboa: Rolim, 1988.
________________. A Hora do Diabo (edição e prefácio de Teresa Rita Lopes). 2
ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
________________. Contos (prefácio de Fernando Segolin). São Paulo: Edições
Epopeia, 1986.
________________. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Edições
Ática, 1966.
ROAS, David. A ameaça do fantástico. 1 ed. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
SAMPAIO, Maria de Lurdes. The Door: tentames e andaimes. Pessoa Plural, s/l,
s/v, número 2, p. 223-239, s/m, 2012.
SOUSA, Maria Leonor Machado de. Fernando Pessoa e a Literatura de Ficção.
Lisboa: Novaera, 1978.

560
SOUZA, Luciano de. A Hora do Diabo: fragmentos de uma narrativa fantástica?.
Revista Desassossego, s/l, s/v, número 11, p. 20-31, junho, 2014.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara
Correa Castello. São Paulo. Perspectiva, 2007.
WARTOFSKY, Marx W. Feuerbach. 1 ed. Cambridge, New York, Melbourne:
Cambridge University Press, 1977.

561
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA DÉCADA DE 1970 : POR
UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA

Luciano Magnoni Tocaia205


Ronaldo de Oliveira Batista206

Introdução

O presente texto apresenta uma análise, ancorada em pressupostos teórico-


metodológicos da Historiografia da Linguística, de um período específico do ensino
de língua portuguesa na história da educação brasileira, tendo como orientação a
circunscrição histórica e sua interpretação de saberes e procedimentos presentes
em práticas de ensino na década de 1970.
Uma análise nessa direção, seguindo Soares (1998), representa, de certo
modo, uma perspectiva política de reflexão sobre o ensino, uma vez “que busca
identificar os pressupostos ideológicos que levam a instituir um certo conteúdo em
disciplina curricular e que subjazem aos objetivos e procedimentos de ensino dessa
disciplina” (SOARES, 1998, p. 53).
Tendo essas perspectivas em mente, para uma análise da constituição
histórica de modos e formas do ensino de língua portuguesa, escolheu-se um
material que se configura como livro didático. Nesse sentido, temos de considerar
que a produção de um manual didático coloca seus autores (e os espaços de
atuação que os circundam e também os validam como produtores de material de
ensino) diante de esferas específicas de atuação e influência, pois o gênero livro
didático é uma forma de ação social, elaborada por uma cultura específica, tendo
em vista a comunicação e a interação entre indivíduos com propósitos delimitados,
direcionadores do contato entre gênero e seus usuários. Os manuais, assim, são
resultantes do trabalho em espaços sociais definidos - nos quais seus autores se

205 Doutor em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é professor dos cursos de Letras e Jornalismo
na mesma instituição.
206 Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo, é professor no Programa de Pós-Graduação em

Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

562
inserem - e veiculam formações discursivas que delineiam formas de saber que
cada autor assume como válidas em um momento histórico. O manual, por meio da
linguagem adotada em sua redação (em diálogo de continuidade ou de ruptura com
os saberes validados em determinada circunscrição histórica e social), pela adoção
de metalinguagem em tratamentos de fenômenos e aspectos linguísticos e pelas
suas formas de apresentação, organiza e difunde uma imagem ideal, projetando
para seus usuários uma visão que difunde uma imagem (um éthos nesse sentido)
universal, integral e praticamente inquestionável para o texto produzido, que, por
ser objeto do processo pedagógico, cria um espaço atemporal, não consciente da
história e das formulações e reformulações pelas quais o conhecimento passa.
Sendo assim, a proposta materializada em um livro didático ganha ares de
legitimidade exatamente pelo que apontamos.
Assim, a publicação de um livro didático constrói por si só um espaço de
atuação e também uma caracterização do que seus autores consideravam como
válido para o ensino de língua portuguesa em sua época, levando em conta,
naturalmente, um contexto mais amplo, inclusive político, que determinava modos
de atuação para a prática de ensino de língua. Há, nos termos de Bourdieu (2004),
a presença de um capital simbólico legitimando posicionamentos dos autores, via,
principalmente, a publicação de um texto que, por sua própria caracterização,
constitui-se com valor de autoridade na esfera social em que especificamente atua,
o processo de ensino-aprendizagem e a formação de professores.
Levando em conta os aspectos anteriormente apontados, escolhemos como
objeto de análise o livro didático Encontro com a linguagem, publicado por Beth
Brait, José Aguiar Negrini e Nina Rosa Lourenço, em 1977, pela Editora Atual.
Especificamente vamos considerar para a análise o volume 1 de uma coleção de
três volumes para o que na época se denominava ensino de 2 o. grau (o que
atualmente se considera como Ensino Médio). A escolha para o volume 1 se deve
ao fato de que esse volume especificamente apresenta tópicos que demonstram de
que modo uma perspectiva linguística de tratamento da linguagem começava a se
fazer presente de forma destaca na educação básica. Os outros dois volumes da
coleção apresentam tópicos mais tradicionais de revisão gramatical (em todos os

563
níveis de análise linguística) e de história literária. Como nosso objetivo central é
apresentar uma análise da presença da dimensão comunicativa da linguagem no
ensino de língua portuguesa, partimos do pressuposto de que o volume selecionado
nos fornece os elementos necessários para a interpretação historiográfica
pretendida. Na próxima seção, indicamos as diretrizes teórico-metodológicas de
nossa análise. E na sequência, apresentamos a análise do material.

1. Processos teórico-metodológicos de análise

As análises aqui propostas consideram que uma interpretação historiográfica


pode se dar por meio de três chaves de compreensão dos processos históricos: a)
a análise de uma obra específica em seu contexto de produção; b) o processo de
institucionalização de um conjunto de conhecimentos; c) as práticas de análise
linguística que configuraram modos de tratamento da língua em contextos de
produção específicos. Para que se possa alcançar essa perspectiva de
compreensão da produção e divulgação de saberes e conhecimentos, partimos de
forma resumida do que Konrad Koerner (2014) define como princípios de análise
para a Historiografia da Linguística:
 Princípio de contextualização: Reconstituição do clima de opinião (o
contexto social e histórico, a atmosfera intelectual de determinado
período em que certas propostas foram trazidas à discussão) que
permitiu a formação, o desenvolvimento, a divulgação e a recepção de
um pensamento ou de uma teoria linguística e ainda de propostas de
descrição e análise. Esse princípio é responsável por situar uma obra e
seu autor num quadro de reflexão mais amplo, considerando que a
produção e a recepção de ideias não se dão de forma isolada.
 Princípio de imanência: Observação da obra, escola, autor em análise
em seu recorte histórico e intelectual. Aproximações com visões
contemporâneas do historiógrafo devem ser evitadas, em nome de um
tratamento próximo ao filológico para o objeto de análise; em outras
palavras, o que se pretende é compreender o objeto de análise em sua

564
própria natureza e configuração social e temporal, isto é, analisar o
pensamento linguístico tal como ele se define.
 Princípio de adequação: Após a observação dos dois primeiros
princípios, o historiógrafo encontra-se em condições de realizar análises,
aproximações, avaliações críticas que iniciam a construção da narrativa
historiográfica, em que relações são esboçadas, e esforços
interpretativos passam a ser os primeiros passos de uma reflexão a
respeito da proposição, do desenvolvimento e da recepção de saberes
linguísticos em contextos históricos traçados e já analisados.
A seguir, propomos uma análise do material indicado, tendo em mente que a
produção, como dissemos, de um material didático está inserida em um complexo
histórico e social, que, ao mesmo tempo em que permite a produção e difusão de
conhecimentos e práticas de ensino, valida essa mesma produção, difusão e
práticas.

2. O livro didático Encontro com a linguagem em análise historiográfica

Neste item, analisaremos o livro didático Encontro com a linguagem (BRAIT,


NEGRINI, LOURENÇO, 1977), que segue a determinação da Lei nº 5692/71, em
que a língua nacional é denominada Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, cuja
concepção educacional aponta para

O cultivo de linguagens que ensejem ao aluno o contato coerente com os seus


semelhantes (comunicação) e a manifestação harmônica de sua personalidade nos
aspectos físico, psíquico e espiritual (expressão), sem deixar de ressaltar a
importância da língua portuguesa como expressão da cultura brasileira. (CFE,
1971, p.30).

Encontro com a linguagem (BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO, 1977) está


organizado em dois bimestres para o ensino de língua e cultura e dois bimestres
destinados ao ensino de literatura. Nossas análises tratarão somente das lições
destinadas ao ensino da língua e da cultura. É importante ressaltar como ponto de
partida que, além das novas situações sociais e políticas iniciadas nos anos 1960 e

565
que deram à escola e ao ensino um novo posicionamento da linguagem frente a
alunos pertencentes às classes sociais desfavorecidas, os avanços da Teoria da
Literatura e da Linguística nos anos 1970 muito influenciaram o ensino de língua e
de literatura nas aulas de português, além do fato de as ciências humanas no Brasil
estarem fortemente influenciadas pelo paradigma metodológico do estruturalismo.
Essa nova tendência metodológica influenciou visivelmente o ensino de língua
materna no Brasil, fato claramente depreendido pela análise de exercícios
estruturais ou por atividades que propunham a identificação dos elementos de
comunicação (emissor – receptor – canal – código).
Dessa forma, Encontro com a linguagem (BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO,
1977, p. 75-95) dedica uma lição aos componentes e mecanismos dos atos de fala,
tais quais propostos pelo linguista Roman Jakobson, embora em nenhum momento
da unidade se dê a ele os créditos das citações teóricas apontadas. Um estudo
minucioso das funções da linguagem por meio de exemplos de textos variados leva
o aluno ao conhecimento da variedade de funções, além de fazê-lo atentar para o
fato de que os elementos constitutivos de todo ato de comunicação (emissor –
receptor – referente - código – mensagem - canal) são predominantes em alguns
casos, mas não exclusivos. Reflexões dos autores corroboram a concepção de
língua em voga nos anos 1970, em que a linguagem é vista como instrumento de
comunicação, como meio objetivo para a comunicação: “diante da necessidade de
comunicar o real”; “[...] demonstram que o emissor não fez mais do que testar o
canal, tentando manter o contato, promover a comunicação [...]”; “diariamente
elaboramos mensagens com a finalidade única de iniciar ou manter o contato”.
(Encontro com a linguagem, Brait, Negrini, Lourenço, 1977, p.77, grifos no original).
Completam a definição dos atos de fala e de seus mecanismos geradores o que
Jakobson caracterizou como os dois tipos básicos de arranjos utilizados no
processo de seleção verbal: a seleção e a combinação (Brait, Negrini, Lourenço,
1977, p. 75), além dos conceitos de denotação e conotação, tratados, no entanto,
do ponto de vista abstrato do signo linguístico (significante X significado), como
ilustra o exemplo: “na conotação, a relação entre significante e significado se

566
estabelece quando um signo (significante + significado denotado) se torna o
significante de um novo significado”. (BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO, 1977, p. 83).
Embora as funções de linguagem não tenham sido definidas por meio de
cientistas que buscaram compreender e definir o tratamento da linguagem como
fenômeno de comunicação e expressão, como Roman Jakobson, faz-se, em
Encontro com a linguagem, a alusão tanto a linguistas que ajudaram, cada um a seu
modo, a construir as bases da Linguística enquanto ciência - André Martinet, Louis
Hjelmslev, Algirdas Julien Greimas - quanto a obras que foram expressivas na
difusão da linguística de base saussuriana, tais como: Elementos de Linguística
Geral (de MARTINT), Prolegômenos a uma teoria da linguagem (de Hjelmslev) e
Semântica estrutural (de GREIMAS).
Encontram-se em meio a essa gama de renomados linguistas, autores
diversos da literatura brasileira, como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, João Guimarães Rosa, Cecília Meireles, entre
outros. Deduz-se da variada seleção de autores literários a perspectiva linguística
vigente, sobretudo, nas teorias tradicionais de ensino de língua, de que a literatura
é o lugar por excelência da língua e sobre a língua. Dessa maneira, é constante em
Encontro com a linguagem a presença de textos literários nas duas seções
destinadas ao ensino da língua portuguesa, justamente por se acreditar que a
convocação da literatura em sala de aula ajuda, por um lado, a reunir um corpo de
obras altamente legitimadas e, por outro lado, estabelecer um corpus linguístico
autorizado, que define e descreve a língua literária e cede, então, os melhores
modelos para o uso da língua.
Importante dizer que a obra, embora tenha sido publicada no final dos anos
1970 e esteja de acordo com as correntes estruturalistas e funcionalistas da
linguagem, mantém também estreita relação com teorias tradicionais para o ensino
de língua, para as quais a linguagem é, fundamentalmente, a expressão do
pensamento. Segundo essas teorias, presume-se que existem regras a serem
seguidas para a organização lógica do pensamento e, consequentemente, da
linguagem. Essas regras se constituem nas normas gramaticais do “bem” falar e do
“bem” escrever, daí a importância da literatura encontrada na obra como corpus de

567
consulta para que o aluno possa se tornar usuário de “prestígio”. Essa íntima relação
é confirmada pelos autores nas observações e recomendações conferidas aos
professores, na primeira página da obra: “ainda que pensamento e linguagem não
se confundam, é inegável o papel da linguagem como suporte do pensamento”
(Encontro com a linguagem, 1977, p. 01).
A língua valorizada como elemento de comunicação não dava espaço ao
“ensino da gramática” como na perspectiva tradicional anterior. Não se acham em
Encontro com a linguagem (nos outros dois volumes esse tratamento é presente)
lições de gramática normativa, que têm por objetivo apresentar a norma ou a
variedade culta da língua (análise de estruturas, classificações morfológicas e
sintáticas, etc); ao contrário, o aluno é livre na obra para escrever como deseja:
“sem nenhuma preocupação de ser corrigido ou de corrigir-se, escreva livremente.
Você é um escritor de sala de aula” (Encontro com a linguagem 2º grau volume 1,
1977, p. 02). Destaca-se, no livro didático, a concepção estrutural de gramática em
estreita relação com a concepção saussuriana de sistema, como na explicação a
seguir: “A linguagem [...] consiste na possibilidade de selecionar elementos e
combiná-los segundo regras. [...] é universal, podendo ser comparada a um jogo. A
capacidade de jogar também repousa na possibilidade de selecionar elementos e
combiná-los” (Encontro com a linguagem 2º grau volume 1, 1977, p. 57, grifos no
original).
Além da descrição da estrutura e do funcionamento da língua, de sua forma
e função, é também característica da gramática descritiva de cunho estrutural a
preocupação com que o falante seja capaz de distinguir expressões da língua e
explicá-las como são faladas. É o caso de numerosos exercícios encontrados no
livro didático analisado, como por exemplo: “construa uma frase explicando o
significado da expressão ‘to na minha’; “qual o significado que você daria agora à
frase: entre coisas e palavras (...) circulamos”?; “como você resumiria essa
mensagem”?; “o que significa a expressão ‘chegue aos 80’”? (Encontro com a
linguagem, 1977).
A intervenção militar instaurada em 1964 também afetou o ensino de língua
portuguesa, como todas as demais disciplinas curriculares nos anos 1970. Nesse

568
novo contexto, cuja esteira teórico-metodológica estava baseada na teoria da
comunicação, como já afirmado, os objetivos do ensino de português nas escolas
brasileiras eram pragmáticos e utilitários (cf. SOARES, 1998, p. 56-57). Já não se
tratava mais de levar o conhecimento do sistema linguístico, ao saber a respeito da
língua, mas ao desenvolvimento de habilidades de compreensão e expressão de
mensagens, ao uso da língua.
Voltando novamente o olhar a Encontro com a linguagem, além de
observarmos a presença minimizada dos estudos gramaticais, uma outra novidade
é a inserção de “outros” textos – informativos, jornalísticos, publicitários - que não
aqueles escolhidos por critérios exclusivamente literários. Reforçam-se, nessas
escolhas, a partir de então, critérios de intensidade de presença nos textos em
práticas sociais de comunicação.
Não é de se estranhar, portanto, que uma unidade de Encontro com a
linguagem 2º grau volume 1 (1977, p. 27-34) tenha sido destinada ao estudo do
gênero propaganda, e também da antipropaganda. Ainda distante do projeto gráfico
dos livros didáticos do mesmo período, profundamente ilustrados e coloridos graças
ao desenvolvimento da indústria gráfica brasileira, o livro didático analisado dá seus
primeiros passos na análise de textos não-verbais, em preto e branco, que em nada
lembram, ao menos na forma imagética, os anúncios publicitários que buscam
representar.
As atividades, além de explorar alguns recursos de interpretação do texto
não-verbal, também levam o aluno a uma reflexão sobre as características
linguísticas e discursivas desses textos, comparando-os com os lidos na unidade
anterior, todos literários: “existem diferenças entre os textos lidos até aqui e os
anúncios dessa unidade. Estas diferenças residem na relação autor-leitor-texto”
(BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO, 1977, p. 28). São as primeiras manifestações, se
assim se pode afirmar, do trabalho com a concepção interacional dialógica da
língua, em que os sujeitos não só constroem de maneira ativa seus textos, como
também são construídos por eles. Uma publicidade em preto e branco (BRAIT,
NEGRINI, LOURENÇO, 1977, p. 29) convida os alunos a refletir sobre o consumidor
em potencial que existe em cada leitor, além de relacionar seus elementos

569
linguísticos (títulos, emprego do vocabulário, uso do imperativo, expressões
familiares) à qualidade do produto em questão.
Ainda de maneira bastante tímida, começa-se a delinear na obra, por meio
das atividades didáticas sobre gêneros discursivos diversos, a ideia de que o sentido
do texto é construído na interação texto-sujeito e não preexiste a essa relação, e
que a leitura é, então, uma atividade interativa complexa de produção de sentidos,
que não apenas se baseia nas informações linguísticas presentes na superfície
textual, mas também nos saberes que circulam no interior do evento comunicativo.
Outra inovação trazida por Encontro com a linguagem são três lições
direcionadas ao estreitamento de laços entre língua, sociedade e cultura. Nessa
perspectiva, a obra apresenta textos variados de antropólogos, jornalistas e
cientistas que associaram os estudos culturais às questões sociais, em um primeiro
momento, e às questões linguísticas, posteriormente. Discutem-se, no primeiro
caso, questões relacionadas aos conceitos de sociedade, de grupos considerados
marginais, de padronização de comportamentos, entre outras. Já em relação ao
binômio linguagem-cultura, o livro didático sugere uma reflexão, por meio de um
texto escrito por um antropólogo, para a importância do papel da linguagem na
cultura de um povo. Inicialmente, o objetivo maior é atentar o aluno para o fato de
que a linguagem responde a uma necessidade natural da espécie humana, a de
comunicar-se. Reforça-se a questão de que a linguagem verbal, diferentemente dos
atos de comer, dormir, respirar etc., não se manifesta de maneira natural e deve,
portanto, ser aprendida, sob a forma de uma língua, a fim de se manifestar por meio
de atos de fala.
Essa reflexão de base linguística dá passagem a um momento posterior em
que se discutem as diferenças entre a linguagem humana e a linguagem animal,
outro assunto frequentemente abordado em manuais de Linguística a partir do
clássico texto do linguista francês Emile Benveniste intitulado “Comunicação animal
e linguagem humana” (2006). Por meio da corriqueira comparação entre homens e
macacos, Encontro com a linguagem (1977, p. 49-51) propõe como exercícios
discussões a respeito das consequências sociais da não aquisição da linguagem,
do retrocesso das sociedades humanas se desprovidas de linguagem e, ainda, o

570
que chama bastante a atenção, desenvolve uma explicação teórica sobre o aparelho
fonador do ser humano, uma descrição dos órgãos e uma reflexão sobre a natureza
da linguagem.
Salientamos, por fim, que Encontro com a linguagem é um livro didático que
reproduz, por meio de suas escolhas teórico-metodológicas, a concepção de
linguagem vigente nos anos 70, em que a língua é vista como um conjunto de signos
que se combinam segundo regras e buscam, então, transmitir uma mensagem,
informações de um emissor a um receptor. É natural, portanto, que encontremos em
suas páginas o acesso a ciências, como a Linguística, por exemplo, que elucidem o
funcionamento da linguagem humana, descrevendo e explicando a estrutura e o uso
das diferentes línguas, neste caso específico, da língua portuguesa.

Considerações finais
Os três princípios de Koerner apontados anteriormente permitem que o
historiógrafo da linguística situe seu material de análise como um documento
histórico, na medida em que define um clima de opinião específico que gerou esse
documento, em que direciona o pesquisador para um tratamento de natureza,
podemos assim dizer, filológica desse documento (uma vez que o procura entender
em sua natureza específica), em que estabelece possibilidades de circunscrição do
documento em uma corrente histórica de relações em torno de continuidades e
descontinuidades. Empregamos esses três princípios nas considerações sobre
ensino de língua nas décadas de 1960 e 1970 (contextualizando um clima de opinião
específico), no tratamento do material em sua imanência como documento histórico
e, por fim, em interpretações que estabeleceram um diálogo de continuidade entre
o material didático analisado, seu contexto de produção e divulgação e teorias que
seriam algumas décadas mais tarde difundidas e amplamente adotadas no ensino
de língua portuguesa.
Desse modo, um determinado material de análise pode ser circunscrito a um
espaço social e histórico específico que lhe permitiu não só sua produção, mas
também sua circulação em uma esfera de saberes, que o validou, da mesma forma,
como um veiculador de um tipo de conhecimento que alcançou seu capital simbólico

571
em sua época. Assim é que se pode falar que o livro didático é um reflexo material
de seu tempo histórico.

Produto de uma época em que a Linguística de fato começava a influenciar


outras esferas de saber (além da universitária), podemos ver no livro Encontro com
a linguagem a presença de teóricos da ciência da linguagem e, sobretudo, a
presença do reconhecimento da dimensão comunicativa da linguagem como
aspecto pertinente a ser considerado na educação básica. Essa dimensão
comunicativa era privilegiada em um contexto social e político, presença militar no
poder nos anos 1970, que reforçou não exatamente um caráter intelectual formador
e questionador no ensino de língua, mas uma diretriz que reforçava o valor
instrumental do conhecimento, com objetivos práticos a serem alcançados na
formação dos alunos, reforçando o ensino como o meio de acesso a um uso
adequado da língua. Além desse aspecto, presente no livro analisado no tratamento
destacado da comunicação humana (ancorado em teóricos da linguística e de
elementos da teoria da comunicação então em voga), cabe destacar também que
Encontro com a linguagem já nos oferece uma visão do que seria a presença muito
mais destacada da ciência da linguagem no ensino de língua portuguesa, aspecto
que ganharia evidência a partir dos anos 1980 e 1990.

Referências Bibliográficas
BENVENISTE, E. Comunicação animal e linguagem humana. In: Problemas de
Linguística Geral 1. Campinas: Pontes, 2006. p. 60-67.
BRAIT, E.; NEGRINI, J.L. ; LOURENÇO, N.R. Encontro com a linguagem 2º grau
volume 1. São Paulo: Atual Editora, 1977.
KOERNER, E.F.K. Quatro décadas de historiografia linguística: estudos
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572
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573
A MEMÓRIA E A HISTÓRIA DO 25 DE ABRIL A PARTIR DOS RELATOS DE
MÚSICOS E ESCRITORES PORTUGUESES

Ludmila Jones Arruda 207

O regime adotado por António de Oliveira Salazar a partir de 1926 deixou


cicatrizes não somente na vida de muitas pessoas que vivenciaram esse período,
mas também profundas marcas em um país que, atualmente carrega vestígios de
um governo opressor. O país, que ficou adormecido por quase quarenta anos, sendo
sustentado pelo Mito do Salazarismo (MARTINS, 2014), tinha a oportunidade de
apagar os fantasmas do passado (CRUZEIRO, 2014), criar uma nova identidade,
seguir novos rumos e construir uma nova história. Com a Revolução dos Cravos,
em 1974, esperava-se que a nação pudesse se desenvolver e se consolidar como
uma das grandes potências europeias, mas as esperanças foram se esvaindo uma
vez que as mudanças não tiveram o efeito desejado.
Foi na década de 20, após um período de instabilidade econômica, que
Portugal inicia uma das mais duradouras ditaduras do mundo ocidental, chefiado
por António Salazar, governando ininterruptamente por trinta e seis anos, (de 1933-
1968), sendo mais tarde substituído por Marcelo Caetano até o fim do regime (1968-
1974). Com a entrada de Salazar em 1926 como ministro de Finanças, muitas
mudanças foram feitas e em pouco tempo, deteve o déficit, revalorizou a moeda
local – o escudo – e extinguiu a dívida pública. Foi nomeado Presidente do
Conselho, lugar que ocupou até 1968, quando, por motivos de saúde, foi sucedido
por Marcelo Caetano. A postura adotada pelo primeiro Ministro era descrita como
“anticomunista, antiliberal e antidemocrática” (AUGUSTO, 2011, p. 21), ele passou
a ter o controle de tudo o que ocorria e veiculava no país, criando a censura em
1933, e a Política de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) – sendo mais tarde
Política Internacional de Defesa do Estado (PIDE). A partir de 1951, com a reforma
constitucional, as colônias passaram a ser chamadas de “províncias ultramarinas”,
por pressão externa, com o objetivo de mostrar que tais terras eram de fato parte

207
Doutoranda da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo – Bolsista da Capes-PROSUP

574
da nação portuguesa sem a possibilidade de se desvencilharem delas. Na década
de cinquenta Salazar começou a ter problemas com a questão colonial: Além da
Índia, com a pressão pela posse das terras de Goa, Damão e Diu, grupos
independentistas de Guiné, Cabo Verde, Moçambique e Angola começaram a
surgir. A partir de 1961, começa a guerra colonial e seu governo começou a
enfraquecer. Para Portugal “a guerra representou um esforço humano enorme: 800
mil recrutados entre 1961-74, 6340 mortos, 112.205 feridos ou incapacitados;
49.422 combatentes em 1961, 149.090 em 1973)” (GOMEZ, 2011, p. 86). A guerra
colonial tomava até 40% do orçamento do estado, e muitos jovens protestaram pelo
país, sendo em grande parte representados por músicos, escritores e jornalistas,
que, muitas vezes eram perseguidos, advertidos ou ainda, presos pela PIDE.
Foi nesse período, no fim da década de 60 e no início dos anos 70, que a
música começou a ser utilizada como um instrumento de resistência contra tudo
aquilo que o povo não concordava. Dois grandes músicos foram precursores do
Canto de Intervenção: José Afonso, conhecido como Zeca Afonso, cuja canção mais
importante foi a utilizada como senha para o Golpe Militar de 1974, “Grândola, Vila
Morena” e também Adriano Correia de Oliveira, ao lançar “Trova do Vento que
Passa” em 1963. As canções tiveram um papel fundamental de espalhar as críticas
e conscientizar o povo das injustiças do governo, e o poder de unir as pessoas para
um mesmo ideal, o que fazia com que o governo se preocupasse com a repercussão
e muitas vezes proibiam a circulação de discos que continham letras que
difamassem o regime. “As canções de intervenção fizeram parte de uma revolução
silenciosa que ajudou a preparar a revolução militar que haveria de despoletar em
Abril de 1974” (VISEU, 2014). Outros músicos e cantores também conhecidos na
época que usaram suas vozes para criticar o sistema político, e que serão tratados
no presente trabalho são José Jorge Letria, Sérgio Godinho e Francisco Fanhais.
Estes três cantores foram entrevistados pela pesquisadora no ano de 2014, em
Portugal, com o objetivo de reunir informações sobre a visão deles da época e suas
expectativas.

575
Os Cantores Entrevistados

José Jorge Letria foi um dos mais novos cantores de intervenção da época.
Nascido em Cascais, formou-se em teatro, é jornalista desde 1970, e já trabalhou
em jornais como Diário de Lisboa, República, Musicalíssimo, o diário e JL. É também
escritor, com muitos livros publicados, inclusive para crianças e adolescentes e
atualmente é presidente da Sociedade Portuguesa dos Autores. Foi quando entrou
na faculdade que começou a ter consciência política, por influência dos amigos e da
situação que o país vivia no momento, em 1968. Quando começou a cantar, na
adolescência, suas músicas eram variadas, mas em seguida, sob a influência de
amigos, começou a compor suas próprias letras, sendo algumas delas de cunho
político e social. Foram nessas composições que os cantores denunciavam os
problemas políticos, o governo e a vontade de mudança, sendo muitas vezes,
perseguidos e interrogados pela PIDE e Letria, foi interrogado pela polícia política
uma vez e tinha vários processos nos arquivos da PIDE. Em uma entrevista para
Eduardo Raposo (2014), Letria afirma que o regime começou a perceber, nessa
época, que eles surgiram como “porta-vozes” da mudança, e de como a canção foi
“um instrumento poderoso de consciencialização política” (RAPOSO, 2014, p. 125).
Letria teve grande importância não só no papel da música, como também foi um dos
poucos a se preparar realmente para o 25 de abril, o que lhe trouxe uma certa
ansiedade e incertezas. Como jornalista do República, ele sabia do plano do golpe
militar e da canção-senha a ser tocada naquela noite, e o disco “Cantigas de Maio”
de Zeca Afonso, foi arranjado por ele, visto que na Rádio o disco estava inacessível.
Sérgio Godinho sempre se dedicou à música, área que até hoje faz sucesso.
Nasceu em Porto em uma família que já era crítica do governo salazarista. Quando
mais jovem, entre os anos 60 e 70, mudou-se para Genebra para estudar, mas
nunca chegou a concluir nenhum curso. Seu primeiro álbum, “Os Sobreviventes”, é
lançado em 1971, juntamente com o Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e
José Mário Branco. Uma de suas músicas da época mais conhecidas é “Liberdade”,
do disco “À Queima Roupa”, lançado em 1974, e tem o seguinte refrão: “Só há
liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação; só há

576
liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir, quando pertencer ao
povo o que o povo quer produzir”. Godinho continuou se dedicando à música
enquanto esteve fora de Portugal, e por ter ficado tantos anos fora de seu país, se
interessou muito pelas músicas estrangeiras e raramente pelas portuguesas. Voltou
ao país após a queda do regime, e a partir daí esteve livre para continuar sua
profissão de músico também dentro de Portugal, profissão que até hoje exerce com
muito sucesso, fazendo shows por todo o país.
O último cantor desta pesquisa, Francisco Fanhais, nasceu em 1941 na
Praia do Ribatejo, filho de médico que apoiava o regime salazarista. A partir dos 10
anos começou a frequentar os Seminários de Santarém e Almada e em 1965 foi
ordenado padre. Foi também professor no Colégio Diocesano de Torres Novas e no
Seminário Liceal de Penafirme. Foi na época de 1968 que ele começou a ter
consciência política, e percebeu a injustiça da realidade social e da guerra. Nesse
período ele conheceu os cantores como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira,
José Jorge Letria, José Barata-Moura, etc, e juntou-se a eles em suas músicas e
canções de intervenção. Ele participou, com Zeca Afonso, da gravação de Grândola,
Vila Morena, canção que foi senha para o golpe militar do 25 de abril. Outros padres,
assim como ele, também denunciavam em suas funções a falta de liberdade, porém,
não o fizeram de maneira preparada e combinada; faziam porque acreditavam que
esse ato era o certo perante suas crenças, fazendo com que as pessoas tomassem
consciência dos malefícios que o governo trazia ao país. Como padre que tomou
posição contra a guerra e a falta de liberdade, suas ações foram denunciadas pela
PIDE/DGS e em seguida, ficou impedido de exercer as suas funções de padre, de
professor e músico. Para Fanhais, a canção de intervenção teve “um papel bastante
agregador pelo seu aspecto lúdico e capacidade de mobilização na luta pelo fim da
ditadura” (RAPOSO, 2014, p. 71). Com a proibição, ele mudou-se para a França e
lá permaneceu até o fim do regime e ao regressar a Portugal, voltou a ser professor
e atualmente, é presidente da Associação José Afonso (AJA), associação erguida
em memória do cantor, morto em 1987.

A reconstrução da memória

577
Para trazer à memória a fase da ditadura e o 25 de abril, esta parte do artigo
contará com trechos retirados em obras documentadas, autobiografias e entrevistas
feitas com os cantores Francisco Fanhais, Sérgio Godinho e o também jornalista e
escritor José Jorge Letria. É importante assinalar que as entrevistas, tanto orais
como escritas, ocorreram em grande parte mais de quarenta anos após a revolução,
a memória de cada um deles não pode ser dada como algo totalmente “fiel” ao que
de fato aconteceu. Além disso, verifica-se a diferença entre a idade deles durante
os anos 70, e, por serem tão jovens, seus pensamentos, sentimentos e impressões
acerca do momento certamente mudaram ao longo desses anos ou foram afetados
por outros tantos acontecimentos que sucederam no país ou na vida pessoal de
cada um. Ainda assim, é possível ter uma ideia do que eles vivenciaram e almejaram
enquanto jovens que lutavam pela liberdade de seu país. Como indivíduos inseridos
em “grupos de referência” suas memórias foram construídas em grupo, sendo um
trabalho tanto do sujeito como coletivo. Esses grupos são grupos os quais os
cantores pertenciam na época em que participavam, ativamente, do processo de
críticas ao governo, compartilhando pensamentos, sentimentos, e vivenciando
situações em grupo, por estarem engajados em um mesmo processo de luta. Dessa
forma, esses pensamentos podem ser compartilhados, construídos em conjunto,
embora, como sujeitos individuais, muitos pontos de vistas podem ser diferentes.
Como nas palavras de Halbwachs, reproduzidas por Schmidt e Mahfoud (1993),
se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança,
mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de nossa
evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada,
não somente pela mesma pessoa, mas por várias. (p. 25)

São essas experiências e convivência em conjunto que continuam fortes até


os dias atuais, pois além de trazerem à memória situações aos quais
compartilharam com os amigos, há muitos lugares que eles também frequentavam
que trazem à lembrança esses momentos, como universidades, programas de tv,
rádio, palcos e inúmeros shows que partilhavam suas músicas. Embora algumas
lembranças tenham sido apagadas, muitas delas ainda estão vivas na memória que
hoje eles reconstroem.

578
A memória, para cada um deles, é a imagem que eles têm do passado, cada
um à sua maneira, sendo diferentes os pontos de vista e a perspectiva da realidade
que eles enfrentam. É na memória que eles guardam suas verdades, suas
percepções e as histórias vividas de uma forma diferente da que é contada pelos
historiadores. Contudo, é preciso identificar em que medida a memória possa ter
sido afetada pelas ocorrências posteriores na vida de cada um deles, ou ainda, se
o tempo possa ter apagado alguns detalhes sobre o passado. Traverso (2009)
assinala que “a memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos
adquiridos posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por
experiências que se sobrepõem à primeira e modificam a recordação. ” (p. 23); e se
caracteriza como algo que está em constante modificação, não sendo nunca
cristalizada. Dessa forma, conclui-se que qualquer material, documento ou uma
autobiografia que se utilize apenas resquícios da memória para reconstruir um
evento, uma fase acontecida num passado distante ou recente, ele será afetado
pelas ocorrências posteriores, e estarão sujeitos à uma representação não
totalmente fiel do que realmente aconteceu. Por esse motivo, Letria, ao reescrever
sobre o 25 de abril a partir de suas memórias vividas na época, quando tinha em
torno de 20 anos, mostra claramente em seus relatos, que a sua memória, com o
passar dos anos, pode ter falhado em algumas situações. Em seu livro “E Tudo Era
Possível” (2013) logo nas primeiras páginas ele ressalta o “problema” de se
documentar algo apenas por meio da memória:
A memória, nesse exercício de expurgo e preservação, tornou-se seletiva,
o que não significa que o tempo a tenha mantido absolutamente fiel. Mas
a memória, não sendo um cão, não tem o dever de ser fiel. Basta-lhe ser
coerente e limpa, sem vocação para adulterar ou fantasiar.[...] Não são
memórias literárias, musicais ou jornalísticas. São, ao mesmo tempo, muito
mais e muito menos do que isso, por paradoxal que pareça, pois quem tão
intensamente viveu tantas coisas ao mesmo tempo acaba sempre por
omitir muito mais do que poderia revelar (pp. 15, 18)

A memória, sendo seletiva, filtrou apenas os fragmentos que, de alguma


forma, foram expressivos para a testemunha. Em seu livro “Uma Noite Fez-se Abril”
(1999), ele recupera em seus relatos os sentimentos, as emoções, as esperanças e
os sonhos, sem a preocupação de escrever História. A história é uma elaboração
do passado, e ao escrevê-la, os historiadores utilizam provas, evidências, relatos

579
científicos e documentos, com datas, nomes e desdobramentos da história sem
expressarem emoções, sonhos, sentimentos de nenhuma figura política ou alguém
que tenha sido parte do acontecimento, por estarem foram do alcance e do tempo
do historiador. Precisam manter o distanciamento e a imparcialidade requerida por
ele para que, de certa forma, possa mostrar credibilidade no seu trabalho. Quando
os relatos são feitos por pessoas que foram vítimas ou testemunhas de um
importante acontecimento, são feitos por meio da memória, e todas as emoções, as
experiências e sentimentos estão sendo mostrados, dando uma ideia de
proximidade com o leitor. Além disso, são relatos subjetivos, visto por uma pessoa,
mostrando apenas um lado da história, que talvez possa ser diferente de outros que
também participaram de tal acontecimento, trazendo, dessa forma, diferentes
emoções, experiências, pontos de vista referentes a um único assunto. É importante
que o historiador leve em consideração os relatos de uma vítima ou testemunha,
mas não deve transformá-los numa perspectiva da escrita da História (TRAVERSO,
2009). Ainda é muito difícil para um Historiador separar esses dois aspectos na hora
de escrever: “É normalmente muito difícil, para os historiadores que trabalham sobre
fontes orais, encontrar o equilíbrio justo entre empatia e distanciação e entre o
reconhecimento das singularidades e a perspectiva em geral” (p. 28). Para Catroga
(2009), a memória tem o objetivo de atestar a veracidade de que é narrado,
enquanto a história é movida por uma finalidade veritativa que precisa de
comprovação para confirmar suas interpretações. Nora (2003) atesta que a memória
“é a vida”, é singular, subjetiva, e a história é objetiva – pode ser ainda uma
representação incompleta do passado; tem uma visão secular. São essas emoções
e sensações não vistas pela História que podemos perceber nas entrevistas orais e
nos relatos que Letria, Godinho e Fanhais demonstraram ao contar suas
experiências. Para facilitar a visualização segue uma tabela feita com as principais
declarações dadas sobre três períodos da história pelos três cantores em diferentes
veículos de informação:

580
PORTUGAL Antes da Revolução 25 de abril Após a Queda do
Regime

José “privação de Liberdade”. dúvidas, incertezas – As canções poderiam


“visão angustiada, crítica sem medo. voltar a ser um
Jorge e receosa” de seu país. “concretização de “estandarte de luta, de
Letria Criticava a guerra colonial um sonho”; “o dia combate para transformar
– uma “guerra sem mais feliz da minha o país”.
futuro”. vida”

“falta de liberdade”, Momento de


Francisco
tínhamos um “governo surpresa, choque; Viu Portugal em
Fanhais opressor”. Criticava a dúvida “retrocesso”
guerra colonial. - “dupla alegria”

“Ter liberdade exige


Sérgio Saiu cedo do país com o Surpresa;
“responsabilidade
objetivo de não participar retorno ao país.
Godinho individual e coletiva”. A
da guerra colonial.
música para os dias
atuais: “Vampiros”

Como descrito na tabela, Letria, via um Portugal amordaçado e limitado.


Percebeu, como jovem, a falta de informações de quando queria-se algo mais
profundo, que “não havia condições de liberdade”; era uma “época de privação de
liberdade”, o que fazia com que ele tivesse uma “visão angustiada, crítica, e
receosa” de seu país. Foi essa visão e a falta de liberdade que o levou a denunciar
por meio da música aquilo que percebia que podia mudar em seu país. Denunciava
principalmente a guerra, a falta de liberdade e os fluxos migratórios. Foi justamente
a guerra colonial que afetou muitos jovens da época, por serem obrigados a lutar e
a arriscar suas vidas numa guerra “sem futuro”. Ele recorda na entrevista que um
amigo teve a sua vida ceifada enquanto lutava e outros dois amigos foram feridos
na guerra.
Fanhais também relembra muitas situações durante a época salazarista e
como ele fazia para denunciar o governo. Sendo padre, na época, acreditava que
denunciar o governo fazia parte de sua caminhada como cristão, “para ser fiel ao
evangelho” que acredita, e dessa forma, entrar “em conflito com a hierarquia
eclesiástica”, não podia se calar diante da injustiça. E ele revela a dificuldade que
tinha de se fazer ouvido, a dúvida de que a situação podia de fato mudar: “era muito

581
duro lutar contra uma parede de cimento, tentar destruir a cabeçada, não é? Nós
ficamos com a testa ferida e a parede não mexe um milímetro.” Quando ele entrou
para o grupo de cantores de intervenção, após cantar em um programa chamado
Zip Zip no lugar de José Afonso, que não pôde ir, ele percebeu que tinha começado
a adentrar em um “caminho arriscado”:
Eu sabia que estava a entrar num caminho arriscado, mas pensei comigo:
eles [amigos cantores] têm família, mulher e filhos e não se recolhem; eu
não tenho nada a perder, não tenho mulher, nem filhos, então porque eu
não ia andar com eles, a trabalhar com a música que eu tanto gosto?
(Entrevista)

Fanhais e Godinho foram dois que precisaram emigrar para que pudessem
ter uma perspectiva diferente de vida. Enquanto Godinho procurava ter liberdade,
trabalhar e viajar por países como Suíça, França, Holanda e Canadá, e fugir da
convocação para a guerra colonial, Fanhais foi obrigado a sair do país, após ter suas
atividades proibidas pela PIDE, para conseguir outra forma de sustento.
Já sobre o 25 de Abril, Letria tem relatos em duas de suas obras e revela o
quanto esse dia foi marcante para ele. Parte dessa felicidade, deve-se ao fato de
ele saber com antecedência o que poderia se passar naquela madrugada:
Uma noite incendiada pelas dúvidas de que não sabia se alguma vez
chegaria a ter tempo para ter certezas. [...] Era a madrugada de uma quinta-
feira que parecia estar talhada para não ver a história. [...] Medo? Não, não
tinha medo. Não tinha idade para ter medo. (LETRIA, 1999, p. 21)

As sensações estão presentes em vários trechos do relato, trazendo ao leitor


uma ideia mais palpável do que realmente aconteceu e do que os jovens àquela
altura, deveriam estar sentindo naquele momento de incerteza. Em algumas partes,
o “medo” não parece estar presente, mas em outras, percebemos como o “medo”
era parte de uma incerteza, um sentimento de não acontecer o que mais se
esperavam naquele momento: “Mais dúvidas que certezas e até o medo tinha medo
de sentir” (p. 48). Outro trecho importante do que se lembra no 25 de abril, foi o
momento em que as portas da prisão se abriram e que pôde finalmente rever alguns
de seus amigos:
Nessa noite estive junto da prisão de Caxias quando se abriram as portas
e pude abraçar alguns amigos que ali se encontravam há meses ou anos.
Assisti comovido à libertação de militantes de esquerda como José
Tengarrinha, Luís Moita ou Sérgio Ribeiro, entre muitos outros. (LETRIA,
2013, p. 164 )

582
Letria explica que o 25 de abril representou a “concretização de um sonho”,
“o dia mais feliz” da sua vida, sendo o grande objetivo acabar com a guerra colonial
e ter possibilidade de se viver sem precisar fazer uma guerra. Na parte final de sua
entrevista oral, ele sustenta a importância da música como forma de denúncia do
governo, e que seria fundamental que as canções voltassem a ser um estandarte
de luta, de combate, a serem usadas como forma de transformar um país. Neste dia
histórico e festivo para Portugal, Fanhais, que já estava vivendo na França, relembra
que só ficou sabendo do 25 de abril através de amigos, o que foi um “choque”:
“Amigo, já sabe o que se passa lá em Portugal? Uma revolução... está tudo do
avesso!”. Atordoado com a notícia, ficou desconfiado de que não fosse ainda a tão
sonhada por eles: “seria uma revolução de esquerda ou de direita? Quem está por
trás de tudo isso?” Mas relembra a “dupla alegria” que sentiu ao ligar o rádio para
saber de mais detalhes, e perceber que, além da queda do regime, as músicas de
seus “amigos cantores” estavam tocando, e ainda, a canção utilizada como “senha”
tinha sido a do Zeca Afonso, o qual ele próprio ajudou a gravar. “Peguei o comboio
já no dia 28 e dia 29 já estava em Portugal”.
Após o 25 de abril, os cantores também têm lembranças parecidas com o que
veio depois: “uma febre”. Sérgio Godinho explica numa entrevista a sensação
parecida com o que ocorreu em maio de 68, com o movimento estudantil em Paris:
Foi um abanão nas estruturas e tudo tão espontâneo, cresceu tão depressa
e que ao mesmo tempo se diluiu tão depressa, embora tenha deixado
marcas perenes, a maneira de estar na sociedade, sobretudo a europeia.
Quando vim e assisti ao entusiasmo no 25 de abril e ao sentimento de que
as conquistas eram irreversíveis, lembrei-me muito das certezas que havia
no Maio de 68 (RAPOSO, 2014, p.229).

Ele ainda dizia: “a liberdade só faz sentido se for preenchida com conteúdo,
por isso que só há liberdade quando houver ‘pão’”. A liberdade também traz
“responsabilidade individual e coletiva” (entrevista). Francisco Fanhais se recorda
das inúmeras manifestações pelo país e ressalta o desânimo quando percebeu que
tudo aquilo que tinham sonhado com o 25 abril não se concretizou: “pouco a pouco
fomos percebendo o retrocesso de tudo o que sonhamos”. José Jorge Letria afima
que seria importante que as canções voltassem com este carácter de transformar e
mobilizar o país, que tivessem ainda esse papel de luta de combate. Sérgio Godinho

583
afirma que uma das canções que se relacionaria com os tempos atuais seria
“Vampiros” de Zeca Afonso.
É interessante perceber, após a leitura e as entrevistas, que muitos cantores
compartilham os mesmos sentimentos e as mesmas sensações, embora tenham
passado por histórias diferentes ao longo desses anos. Letria, por ter permanecido
em Portugal durante os anos que antecederam o 25 de abril e ter vivido
intensamente a madrugada do dia 25, foi o que mais mostrou suas sensações ao
longo de todas as entrevistas e relatos feitos sobre o dia. O fato de ser escritor e
documentar desde 1999 o que ocorreu, parte de sua memória está também
registrada com mais intensidade, a ponto de levar o leitor a compreender os medos,
as sensações, as frustrações e as emoções que os jovens da época carregaram
nesses dias. Os três revelaram também a frustração sobre o fato de Portugal não
ter se desenvolvido da maneira que tanto esperavam naquele dia 25 de abril. A
memória de cada um deles hoje reflete também o que atualmente vem fazendo para
preservá-la: Letria reconstruiu sua memória ao escrever livros sobre sua trajetória
no 25 de abril, sendo o último deles lançado em 2013 e Fanhais, logo após a morte
do cantor e amigo José Afonso, reergueu uma associação onde são realizadas as
exposições, apresentações, lançamento de livros e CDs para que a memória
daquele tempo e do grande nome do 25 de abril nunca seja esquecida.

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VISEU, Albano. Simbologia das Palavras. Lisboa: Chiado Editora, 2014

585
A NOSTALGIA NO DISCURSO MERCADOLÓGICO: UMA ANÁLISE CRÍTICA À
LUZ DA SEMIÓTICA DISCURSIVA DE LINHA FRANCESA

Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa208


Alessandra de Sá Mello da Costa209

Introdução

Nos últimos anos, a literatura de Administração de empresas aponta que os


temas história, memória e tradição vêm sendo utilizados estrategicamente pelas
organizações como forma de fortalecer a marca e a identidade das empresas no
mercado; de contribuir para a gestão de uma melhor comunicação interna e externa;
e de desenvolver mecanismos que viabilizem o autoconhecimento da organização
por meio do resgate de processos, princípios e valores empresariais.
De forma mais específica, este interesse também pode ser identificado na
área de marketing, que se aproxima do tema a partir da apropriação do conceito de
nostalgia. Marketing nostálgico, retromarketing com foco no consumidor,
retrobranding e nostalgia boom são algumas manifestações da abordagem
mercadológica do tema. Com efeito, o atual contexto de consumo é marcado pela
globalização e por rápidas e sucessivas inovações tecnológicas que reduziram o
ciclo de vida dos produtos; entretanto, de forma aparentemente paradoxal, as
empresas parecem ter abraçado a influência crescente da nostalgia no
desenvolvimento e no design de produtos, bem como na comunicação publicitária.
São exemplos desta tendência produtos como o New Beetle da Volkswagen,
eletrodomésticos com design retrô, MP3 players que simulam toca-discos e o revival
de séries de cinema, como a continuação de Star Wars.

208
Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Professor Adjunto I da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
209
Doutorado em Doutorado em Administração pela EBAPE - Fundação Getulio Vargas, Brasil. Colaborador
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração

586
Neste contexto, Stephen Brown, Robert V. Kozinets e John F. Sherry Jr.
publicaram, em 2003, no Journal of Marketing, o artigo Teaching Old Brands New
Tricks: Retro Branding and the Revival of Brand Meaning, texto fundamental para o
campo de estudos denominado como marketing nostálgico. No trabalho em
questão, os autores propõem o composto de marketing para a gestão de “marcas
retrô ou nostálgicas” (Allegory, Arcadia, Aura e Antinomy), baseados, em especial,
em uma leitura/adaptação de conceitos apresentados na obra de Walter Benjamin,
pensador vinculado à escola de Frankfurt.
Tendo em vista o pano de fundo apresentado, o presente artigo – no
momento de sua apresentação no Congresso Letras em Rede 2015, ainda em fase
de desenvolvimento - tem como objetivos: a) discutir a apropriação dos conceitos
de Benjamin por Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003), apontando possíveis
problemas na transposição feita pelos autores do pensamento do filósofo alemão
para o contexto contemporâneo de mercado; e b) apresentar o “marketing
nostálgico”, na perspectiva da semiótica discursiva de linha francesa, como um
discurso mítico que constrói sentido a partir da oposição de base tradição vs.
modernidade. A reflexão desenvolvida neste trabalho, situada na fronteira entre os
estudos de Linguística, Comunicação Social e Marketing, espera enriquecer o
diálogo existente entre as áreas e, sobretudo, contribuir para a leitura crítica dos
discursos publicitário e de marketing.
O presente trabalho enquadra-se no projeto “História, memória e tradição no
discurso publicitário”, coordenado pelos autores deste artigo e apoiado pelo CNPq,
pela FAPERJ e pela PUC-Rio, sob a forma de bolsas de iniciação científica e verbas
para pesquisa. Iniciada em 2012, a pesquisa apresenta diversos produtos e
desdobramentos. O presente texto abordará apenas o contexto teórico e as futuras
etapas do processo de pesquisa em andamento.

587
Mídia de Massa, Discurso Publicitário e História

Conforme discutido por Costa e Pessôa (2014), a sociedade contemporânea


tem no consumo um conceito central não apenas da esfera econômica, mas,
também da expressão individual e do estabelecimento das relações sociais entre os
indivíduos (BELK, 1988). Nesse cenário, o discurso publicitário (aqui entendido
como “a face mais visível do marketing” e como articulador de narrativas do
consumo), estabelece “uma cumplicidade entre a esfera da produção com sua
serialidade, impessoalidade e sequencialidade e a esfera do consumo com sua
emotividade, significação e humanidade” (ROCHA, 1995, pg. 154).
A publicidade, no sentido concebido nos dias de hoje, emerge como
fenômeno específico no século XIX, a reboque da evolução do sistema de produção
capitalista. No momento de sua concepção, a publicidade concentrou-se em
descrever os produtos com base em seus valores de uso e, pela força das
informações e descrições elogiosas, em estimular o desejo de compra. Em meados
do século XX, com a implantação da denominada “sociedade de consumo” no
Ocidente, a publicidade atingiu o atual grau de relevância socioeconômica e
desenvolveu, definitivamente, sua dimensão simbólica. Nesse processo, a imagem
criada pela publicidade para os produtos e serviços substituiu a materialidade do
objeto e as mensagens passaram a se situar preferencialmente no plano do
imaginário (BAUDRILLARD, 1991).
Desse modo, a publicidade, destinada em suas origens a suscitar o consumo
dos bens produzidos, converte-se ela mesma em objeto de consumo: a descrição
da utilidade do produto é substituída pela sua descrição afetiva e imaginária,
gerenciando a distribuição social de valores – como a sofisticação, a segurança e a
beleza – que permitem a classificação dos indivíduos e grupos (ROCHA, 1995;
PESSÔA, 2013).
Conforme observa Carvalho (2002), a mensagem publicitária não se limita ao
mundo dos sonhos, mas concilia o princípio do prazer com o da realidade, impondo
valores, mitos, ideais e outras elaborações simbólicas, utilizando os recursos
próprios da língua que lhe serve de veículo. Para Semprini (2006), o caráter abstrato

588
e desmaterializado de uma parte crescente do consumo contemporâneo encontra
nas marcas e na comunicação publicitária seu meio natural de expressão. Uma das
principais propriedades da marca é sustentar uma rede de atributos cognitivos e
simbólicos no interior da qual o produto pode encontrar um sentido e um vetor de
projeção.
Pode-se, portanto, falar de um “mercado de mitos” (HOLT, 2005),
caracterizado nem tanto pela competição entre produtos (e, portanto, satisfação de
necessidades funcionais), mas pela competição entre identidades de marcas que
oferecem ao consumidor mitos que resolvem contradições culturais. Essa mediação
simbólica, uma construção linguística, é aceita como natural pelos indivíduos, o que
facilita a absorção da mitologia criada ou reproduzida pela publicidade, conforme
ensina Barthes (1980):
Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não
ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma
equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm,
para ele, relações naturais. Pode-se exprimir esta confusão de um outro modo: todo o
sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a
significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema factual, ao
passo que é apenas um sistema semiológico (BARTHES, 1980, p.223).

Direcionando a análise ao tema do presente trabalho, pode-se argumentar


que a narrativa publicitária que evoca a história de uma organização ou de
determinada categoria de consumo constrói imagens do passado (ainda que
“atualizadas” do ponto de vista tecnológico, do design ou de outra variável) que
passam a ser consumidas – elas próprias, em complemento às marcas ou produtos
aos quais estão a serviço - pelos indivíduos, passando a compor um imaginário do
passado. De acordo com Barbosa (2007, p.16), por exemplo, pode-se pensar em
cinco eixos de análise quando se busca melhor compreender a relação entre meios
de comunicação e história, quais sejam:
os estudos que se utilizam de uma perspectiva meramente factual; os que
priorizam as modificações e a estrutura interna dos jornais como fator de
mudança do curso da história; os que enfocam os meios de comunicação como
portadores de conteúdos políticos e ideológicos; os que enfatizam o contexto
histórico, desconsiderando a dimensão interna do meio [de comunicação] e a
lógica própria do universo comunicacional; e, (...) um quinto grupo que considera
a dimensão processual da história e da comunicação (...) no qual ganha relevo o
conteúdo, o produtor das mensagens e a forma como o público entende os sinais
emitidos pelos meios.

589
É a partir desse quadro teórico que o projeto de pesquisa analisa a
apropriação dos temas história, memória e tradição pelo discurso publicitário das
organizações; neste trabalho especificamente, tomando como objeto a nostalgia nos
discursos publicitários e de marketing. Na perspectiva de Rowlinson et al (2010,
p.13), as corporações recorrentemente se apropriam de várias formas de memória
social e coletiva da sociedade, lembrando, relembrando e legitimando o passado
"em uma série de documentos e eventos organizacionais disponíveis publicamente,
tais como relatórios anuais, comunicados de imprensa, páginas da web, revistas,
eventos corporativos, comemorações de centenário, artefatos, produtos,
lembranças, decoração e edifícios". Assim, ao veicular, na mídia de massa,
campanhas publicitárias que materializam o seu passado, as organizações
contribuem para os processos de construção da memória social e, também, de
legitimação dos meios de comunicação como lugares de memória.

Problematizando o conceito de “Marketing Nostálgico”

Stephen Brown, Robert V. Kozinets e John F. Sherry Jr. publicaram, em 2003,


no Journal of Marketing, o artigo Teaching Old Brands New Tricks: Retro Branding
and the Revival of Brand Meaning, texto fundamental para o campo de estudos
denominado como marketing nostálgico. No trabalho em questão, os autores
propõem o composto de marketing para a gestão de “marcas retrô ou nostálgicas”
(Allegory, Arcadia, Aura e Antinomy), baseados, em especial, em uma leitura de
conceitos apresentados na obra de Walter Benjamin, pensador vinculado à escola
de Frankfurt. Surge, portanto, o primeiro desafio deste trabalho: discutir a
apropriação dos conceitos de Benjamin por Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003),
apontando possíveis problemas na transposição feita pelos autores do pensamento
do filósofo alemão para o contexto contemporâneo de mercado.
Com efeito, os autores citados baseiam-se em especial nos conceitos
apresentados por Benjamin (2000) no texto seminal A obra de arte na época de sua

590
reprodutibilidade técnica, publicado originalmente em 1936. Ainda que Brown,
Kozinets e Sherry Jr (2003) tenham observado e respeitado a grande distância entre
os contextos enunciativos da obra de Benjamin e sua proposição de composto do
marketing nostálgico, haveriam os autores cometido o erro de descontextualizar o
pensamento do filósofo alemão?
A análise em questão apresenta-se complexa, pois, além das “obras de arte”,
os objetos cotidianos, os bens de consumo, as tecnologias ultrapassadas e mesmo
certos modismos esquecidos, também foram alvo da atenção de Benjamin.
Considerando-se o pensamento de Benjamin como representativo das primeiras
décadas do Séc. XX (o autor nasceu em 1892 e suicidou-se em 1940), quando o
capitalismo já apresentava parte de sua configuração atual, os autores do presente
trabalho pretendem analisar a transposição conceitual evitando a tentação da
“crítica fácil” de que Benjamin foi um crítico severo do capitalismo que teve suas
ideias apropriadas por autores contemporâneos de marketing. O que se pretende é,
para aquém ou além da ideologia dos autores, avaliar a pertinência teórica da
proposição do composto de marketing nostálgico.
O segundo objetivo do trabalho é apresentar o “marketing nostálgico”, na
perspectiva da semiótica discursiva de linha francesa, como um discurso mítico que
constrói sentido a partir da oposição de base tradição vs. modernidade.
Para entender a proposta, é necessário retomar a definição dos termos do
composto do marketing nostálgico segundo Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003):
- Alegoria: alegorias de marca (ou de marketing) são narrativas simbólicas
ou metáforas estendidas. A alegoria é frequentemente usada em publicidade ao
promover histórias didáticas que evocam e oferecem resoluções para estados de
conflito moral do consumidor. As alegorias são dinâmicas, se alteram em resposta
aos gostos e tendências populares.
- Arcadia: evocação de um sentido “quase utópico” em relação a mundos e
comunidades do passado. A ideia do passado como um tempo especial, um “lugar”
mágico, ainda que atualizado pela mais recente tecnologia, é parte integrante do
marketing nostálgico.

591
- Aura: diz respeito à presença de um poderoso sentido de “autenticidade” da
marca. De maneira geral, a busca dos consumidores por autenticidade é um dos
pilares do marketing contemporâneo, sendo a essência das marcas percebida pelos
consumidores por seus atributos considerados únicos, algo que faz parte do “DNA
distintivo” de uma marca. No marketing nostálgico, a aura se apresenta na forma
como o consumidor dialoga e confronta as marcas nostálgicas com sua
autenticidade, seu passado e sua essência.
- Antinomia: paradoxo não passível de solução “que repousa no coração da
filosofia de Benjamin”. O filósofo considerava o progresso científico e tecnológico
inexorável como a causa fundamental do desejo humano de retornar a tempos mais
simples, mais lentos e menos estressantes. No marketing nostálgico, este paradoxo
inerente se reflete na presença simultânea do novo e do velho, da tradição e da
tecnologia, do primitivismo e do progresso, do igual e do diferente.
O conceito central para a leitura semiótica do marketing nostálgico seria a
“Antinomia”. Ainda que se possa argumentar a favor da proposição de um paradoxo
não passível de solução no pensamento de Benjamin, o discurso publicitário – sob
o prisma da semiótica greimasiana – não raro se apresenta como um discurso
mítico, no sentido proposto por Claude Lévi-Strauss, e utilizado por Greimas, de um
discurso no qual a lógica narrativa visa a estabelecer a conciliação de dois termos
contrários de uma categoria. Portanto, os autores do presente texto defendem que
o marketing nostálgico, entendido como discurso, conciliaria a tradição e a
modernidade, resolvendo o paradoxo apontado por Brown, Kozinets e Sherry Jr
(2003).
Tal interpretação dialoga com outros trabalhos. Floch (1990), em seu estudo
da publicidade francesa de automóveis apresenta exemplo cabal dessa lógica. Mais
recentemente, Pessôa (2013), inspirado em Floch (1990), discute o caso da
publicidade brasileira de seguros.
A dificuldade dessa etapa do trabalho está na “separação metodológica”
entre o pensamento de Benjamin (que supostamente apontaria para o paradoxo
insolúvel), a interpretação dessas ideias por Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003) e,
finalmente, o entendimento do marketing nostálgico como um discurso mítico.

592
Tendo em vista que os autores de marketing citados não adotam a perspectiva da
semiótica greimasiana, deve-se tomar as devidas precauções para que os mesmos
não sejam criticados a partir de um pressuposto epistemológico estranho ao seu
trabalho, apontando para um vício de “descontextualização”.
Finalmente, vale observar que a oposição tradição vs. modernidade é
fundamental no debate das ciências sociais e humanas, tema que será aprofundado
na presente pesquisa.

Considerações finais
Os autores agradecem aos organizadores do Congresso Letras em Rede
2015 pela oportunidade de apresentar este trabalho ainda em fase de
desenvolvimento. O debate em torno das ideias aqui apresentadas foi muito rico e
esperamos apresentar avanços e conclusões em futuras edições do evento.

Referências Bibliográficas
BARBOSA, M. Meios de comunicação e história: um universo de possíveis. In:
RIBEIRO, A.P.G.; FERREIRA, L.M.A. Mídia e Memória: a produção de sentidos nos
meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980.
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Edições 70, 1991.
BELK, R.W. Possessions and the extended self. Journal of Consumer Research,
v.15, p.139-165, 1988.
BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In:
ADORNO et ali. Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
BROWN, S.; KOZINETS, R. V.; SHERRY, J. F. Teaching Old Brand New Tricks:
Retro Branding and the Revival of Brand Meaning. Journal of Marketing, v. 67, n. 3,
p. 19-33.
CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2002.

593
COSTA, A. M.; PESSÔA, L.A.G. de P. Os Meios de Comunicação Como um Lugar
de Memória? História, Memória e Tradição no Discurso Publicitário na Revista Veja.
XXXVIII Encontro ANPAD. Anais... Rio de Janeiro, 2014.
FLOCH, J.M. Sémiotique, Marketing et Communication: sous les signes, les
stratégies. Paris: PUF, 1990.
HOLT, D. Como as Marcas se Tornam Ícones: os Princípios do Branding Cultural.
São Paulo: Cultrix, 2005
PESSÔA, L. A. G. de P. Narrativas da segurança no discurso publicitário: um estudo
semiótico. São Paulo: Editora Mackenzie, 2013.
ROCHA, E. A sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro:
Mauad, 1995.
ROWLINSON, M; BOOTH, C.; DELAHAYE, A.; POCTER, S. Social remembering
and organizational memory. Organization Studies, v.31, n.1, p. 69-87, 2010.
SEMPRINI, A. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na sociedade
contemporânea. São Paulo: Estação das Letras, 2006.

594
A REVELAÇÃO DO AMA-DOR NAS FOTOGRAFIAS DE GEORGES PEREC E
ÉDOUARD LEVÉ210

Manlio M. Speranzini211

Introdução

Para esta comunicação nos aproximamos de um trabalho do escritor e artista


Édouard Levé (1965-2007) para buscarmos compreender um evento incomum no
campo da expressão pessoal do escritor Georges Perec (1936-1982): o ensaio
fotográfico. Fazemos isso para avançar na formulação da noção de ‘Ama-Dor’
enquanto ferramenta produtiva no entendimento de uma produção artística
contemporânea de referência autobiográfica e que tem na infelicidade uma força
estimulante.
Enquanto processo de formulação em andamento indicaremos algumas figuras que
nos permitem pensar em variantes e/ou sutilezas sobre as quais agiria a noção
proposta. Passaremos rapidamente pelas figuras do ‘amador protocolar’ e do
‘amador exemplar’ para nos determos na figura do ‘amador de fato’.

O Amador Protocolar
Como sentido-primeiro da palavra ‘amador’ adotamos aquilo que Roland Barthes
(2004, p. 208) explica em ‘Réquichot e Seu Corpo’:

O amador não é aquele que tem um saber menor, uma técnica imperfeita
[...], define-se melhor assim: é aquele que não exibe, aquele que não se
faz ouvir. O sentido desta ocultação é o seguinte: o amador só busca
produzir seu próprio prazer (nada impedindo que, além disso, esse
prazer seja também o nosso, sem que ele o saiba), e esse prazer não é
desviado para nenhuma histeria... Além do Amador, termina o prazer puro
(livre de qualquer neurose) e começa o imaginário, isto é, o artista: o artista
goza, sem dúvida mas sob a condição de ser visto, de ser ouvido, sob
a condição de ter um público, seu prazer deve compor uma imago, que
é o discurso do Outro sobre o que o artista faz. (grifos nossos)

210
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - Brasil.
211
Pós-Doutor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), FALE/ UFMG, Linha de
pesquisa: Literatura, outras artes e mídias. Supervisão Profa. Dra. Márcia Arbex.

595
Nessa definição, Barthes contrapõe a figura do amador à do artista, aquele que age
e se mobiliza em função de uma demanda externa a ele, regida pela exibição e por
protocolos, desejos e necessidades que não são necessariamente seus. Em sendo
‘aquele que não se mostra’ – o que de certa forma configura o ‘anônimo’ - e que ‘só
busca produzir seu próprio prazer’, o amador protocolar só pode nos interessar
enquanto ideia, conceito, já que não podendo nomeá-lo e não tendo acesso à sua
produção, seus estímulos e referências, não dispomos de informações para
contextualizações, análises e comparações. Para localizar o amador que interessa
à pesquisa é que pensamos a figura do ‘amador exemplar’ – que continuaria a ser
‘aquele que é guiado pelo próprio prazer e não se exibe’ - e que nos é revelado pela
obra de ficção.

O Amador Exemplar
A manifestação mais importante da figura do ‘amador exemplar’ – aquele que produz
por e para seu bel prazer e nos é apresentado pela ficção – se apresenta na obra
perecquiana através de Percival Bartlebooth de La vie mode d’emploi [A Vida
manual do usuário] e que poderia servir de paradigma para a noção proposta.
Bartlebooth é um milionário inglês que decide ainda jovem se dedicar a um projeto
artístico que o ocuparia por cinquenta anos212. Mas ainda que seu processo de
trabalho seja descrito em minúcias ao longo do livro de Perec e não haja dúvidas
quanto ao ‘amadorismo’ do seu empreendimento, o resultado desse esforço e o que
lhe serve de estímulo não é apresentado ao leitor. Por essa razão recorremos à obra
de Édouard Levé, artista que, embora com uma carreira muito curta, teve uma
produção híbrida entre literatura e fotografia que dialoga de diversas maneiras com
a de Perec.
Em 2002 Levé publicou Œuvres [Obras] – livro que enumera e apresenta a descrição
de obras de arte que ‘seu autor teve a ideia, mas que não realizou’, compondo assim

212 Para mais detalhes sobre o projeto artístico de


Bartlebooth cf. PEREC, Georges. La Vie mode d’emploi. Paris:
France Loisirs, 1979. Chapitre XXVI, Bartlebooth 1, pp. 152-158.

596
um Catálogo de Arte utópico, ou, como Levé afirma numa entrevista: ‘um programa
de vida por realizar’213.
Se as ações de Levé se restringissem unicamente a esse livro, sua iniciativa poderia
se igualar à de Bartlebooth, mas ele ampliou a potencialidade do que listou em
Œuvres ao tomar algumas das 533 obras descritas para executá-las. Encontramos
assim na obra de nº 55 a descrição de um grande livro de fotografias que
apresentaria a entrada de 739 cidades francesas que tem por nome um substantivo
que é ao mesmo tempo próprio e comum.
No livro ‘Angoisse. Reconstitutions’214 [Angústia. Reconstituições], Édouard Levé
efetiva parcialmente o projeto descrito em Œuvres e visita unicamente a cidade de
Angoisse. Sem qualquer texto, o ensaio fotográfico Angoisse divide o espaço do
livro com outro ensaio – Reconstitutions -, e é composto por 17 imagens de páginas
inteiras e uma lista de legendas ao final. A primeira fotografia – que também aparece
na capa – exibe a placa com o nome da cidade de Angoisse. Tudo na imagem é
fixo, dando a impressão de uma composição cenográfica. A atenção do observador
pula da placa central para o entorno e vice-versa sem que isso unifique a imagem
(difícil imaginar/aceitar que a palavra ‘angoisse’ (fr.) disposta numa placa no centro
da imagem possa designar outra coisa que não ela mesma: a angústia!). Já, nas
outras imagens (sem a placa da primeira imagem), a placidez e o estado cenográfico
permanecem nos lembrando o que Barthes, em A Câmara Clara (1997, p. 66),
entende por ‘fotografia unária’: aquela que tem tudo para ser banal, sem qualquer
distúrbio, emoção ou surpresa, apenas informação. Aquilo que unifica essas
imagens neutras e impessoais (quase anônimas) do ensaio só se efetiva ao final
quando se percebe na lista das legendas (LEVÉ, 2008, s/ nº) que o elemento comum
a elas é exatamente a palavra que está no centro da primeira imagem, e que é
usada para nomear a cidade e ‘qualificar’ tudo o que a compõe:

213 Para entender a amplitude da relação da obra desse artista com a de Perec e conhecer as obras de Levé
citadas nesta comunicação, cf. SPERANZINI, Manlio M.. A pesquisa (in)finita das coisas. Georges Perec e a arte
do desimportante. 2011. Tese de Doutorado, (inédita). FFLCH/USP, São Paulo, 2011. Capítulo 3.2.1. Édouard
Levé e o neutro, pp. 151-159. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8146/tde-
26032012-175238/pt-br.php.> Acesso em 20 agosto 2015.
214 Ibid., Capítulo 3.4.2. Angústia: uma fotografia literária, pp. 190-198.

597
Entrada de Angústia
Casa de Angústia. Mercearia de Angústia
Casa de Angústia
Escola de Angústia. Monumento aos mortos de Angústia
Discoteca de Angústia
Campo de esportes de Angústia
Prefeitura de Angústia. Igreja de Angústia
Bar de Angústia
Restaurante de Angústia
Cemitério de Angústia. Túmulo de Angústia
Angústia à noite
Saída de Angústia 215

Dessa forma, no ensaio de Levé todas as imagens acabam duplamente


assombradas pela palavra ‘angoisse’: primeiro, por aquilo que ela localiza (uma
cidade) e, segundo, por aquilo que ela significa (um sentimento impreciso de mal-
estar). Essa forma ambígua e recorrente é promotora de uma série que poderia ser
infinita, re-alimentando continuamente um inventário inesgotável de tudo que faz
parte, de maneira permanente ou passageira, do território assinalado.

O Amador de fato
Em abril de 1979 Georges Perec embarca num navio cargueiro que o levaria da
França a Nova York. Ele havia decidido fazer essa viagem de navio como forma de
preparação para o documentário que ele filmaria a seguir com Robert Bober: “Récits
d’Ellis Island, Histoires d’errance et d’espoir”216 [Narrativas da Ilha de Ellis, Histórias
de Errância e de Esperança]. Durante o trajeto Perec pensava tomar conhecimento
da documentação levantada para a elaboração do filme, concluir o roteiro e ainda
experimentar o sentido de deslocamento dos imigrantes que, no final do século XIX
e início do XX, abandonavam seus países de origem para começar vida nova do

215Entrée d’Angoisse / Maison d’Angoisse. Épicerie d’Angoisse / Maison d’Angoisse / École d’Angoisse.
Monument aux morts d’Angoisse / Discothèque d’Angoisse / Terrain de sports d’Angoisse / Mairie
d’Angoisse. Église d’Angoisse / Bar d’Angoisse / Restaurant d’Angoisse / Cimetière d’Angoisse. Tombe
d’Angoisse / Angoisse de nuit / Sortie d’Angoisse.
216 PEREC, Georges. Récits d’Ellis Island. Les Lieux d’une Fugue. Vol. 1. 2 DVD’s e 1 CD. Paris : INA, 2007.

598
outro lado do Atlântico 217. Perec, muito provavelmente pela primeira vez, começou
a tirar polaroides já no segundo dia de viagem, produzindo em torno de 50 imagens.
Christelle Reggiani, em ‘L’Écriture photographique de Georges Perec’, salienta que
a fotografia está presente na obra de Perec desde seu primeiro livro, Les choses, e
que ela desempenha diversos papéis ao longo de toda a sua obra: de simples objeto
que marca uma posição no texto até referência importante para descrições
minuciosas que estimulam sua memória a recuperar fatos perdidos – como ocorre,
por exemplo, em W ou le souvenir d’enfance. Para todas essas iniciativas Perec
sempre havia recorrido a acervos pessoais, revistas ou a parcerias que estabelecia
com fotógrafos. Dito isso, entendemos o conjunto de polaroides feitas durante a
travessia do Atlântico como a atividade de um ‘amador de fato’ – aquela que se
efetiva por vontade própria e que é conduzida por um prazer incerto.

O tempo compartilhado
Reconhecida por Henri Van Lier em ‘Philosophie de la Photographie’ (1983) como
‘uma fábrica química em miniatura’, a máquina fotográfica Polaroide não utilizava
filme e sensibilizava diretamente um papel quimicamente preparado, fazendo com
que a máquina produzisse, segundos após o disparo da foto, uma cópia padrão com
a imagem de 8 x 8 cm. Pedro Vasques, em ‘Polaroid – O domínio do imaginário’
(1986), destaca o deslumbramento que era para o público amador ver surgir diante
dos olhos e à luz do dia – como se fosse do nada -, uma imagem tomando corpo.
Isso permitia àquele que fotografava algo totalmente novo enquanto sensação: se a
fotografia analógica só podia ser comparada com a lembrança que o fotógrafo tinha
do momento em que fizera a fotografia, a polaroide era comparada imediatamente
com o real fotografado. Além disso, a polaroide não exigia uma grande expertise:
segundo o mesmo Pedro Vasquez, a polaroide era uma ‘câmera à prova de idiotas’
que oferecia um produto acabado a todo operador, mesmo àqueles avessos à
tecnologia. É importante também salientar que a fotografia instantânea tinha

217 Ellis Island foi o


principal centro de acolhimento e triagem para todo imigrante pobre que chegasse de navio
com o objetivo de ingressar nos Estados Unidos entre 1892 e 1924. Cf. PEREC, Chapitre I, L’Île des larmes,
2005, pp. 11-24.

599
adquirido um potencial estético equivalente ao desenho e à pintura, já que ela podia
acompanhar ‘o tempo compartilhado’ do fazer do artista. Sabendo disso, podemos
supor que Perec, em seu processo de trabalho durante a viagem, escrevia ao
mesmo tempo em que fotografava, e vice-versa, se aproveitando do estímulo das
imagens que produzia para se lembrar (sua história pessoal), imaginar (a vida em
Ellis Island), projetar (o roteiro do documentário que faria com Robert Bober) e
pensar na natureza da representação (as relações entre a palavra, a imagem e o
plano do real).

Uma Iniciativa Modesta


O tema da série de polaroides de Perec é a vista do mar a partir do convés do navio
em que viajava e os elementos recorrentes presentes nessas imagens são: o mar,
o céu, os containeres, a janela, o cordame e a balaustrada. O único comentário que
temos de Perec sobre essas fotografias nos é dado pelo artista Jacques Poli218: um
ano depois da viagem, Perec se encontrou com ele e eles trataram da possibilidade
de fazer um trabalho conjunto219. Nesse momento, Perec chegou a comentar que,
de certa forma, essas fotografias se aproximavam, mesmo que de maneira
simbólica, dos questionamentos sobre a ‘busca de identidade’ que ele vinha
empreendendo ao longo de sua obra.
A primeira imagem da série é a mais radical: a não ser por uma leve tonalidade
amarelada, não existe qualquer outro detalhe. Superexposição, ou, um nevoeiro
muito denso? Nada se pode afirmar. O caso é que, ao não descartar essa imagem
e indicá-la como o início do ensaio, Perec definia o ponto de partida para a leitura
de todo o conjunto: a fotografia se igualava assim a uma folha de papel em branco
pronta para receber os rastros da luz, ou da escrita...
No final dos anos 90, é descoberto nos arquivos do escritor o caderno de notas
utilizado durante sua viagem de navio (TEM, p. 42) e onde se lê:

218 Cf. Jacques Poli. De 11 x (11 + 11) + 11 à l’Aître Saint-Maclou. In : TEM, 1997, pp. 9-10.
219 Perec daria logo depois a Jacques Poli um álbum contendo a série de 39 polaroides, numeradas e ordenadas

sequencialmente.

600
Quinta-feira, 26 de abril de 1979 / Acordei às 7 horas. [...] Tirei três fotos: a
1ª completamente branca, a segunda levada pelo vento. A 3ª está correta,
mas é preciso olhar bem de perto para ver uma terra no horizonte. [...] Foto
nº 6 tirada de frente para o sol (mesmo assim interessante, por causa dos
containers). 220

Se antes de conhecermos essas anotações, pensávamos que as ‘falhas’ das fotos


de Perec eram apenas o resultado do uso incorreto e inconsequente do
equipamento fotográfico, após a leitura dessas anotações é possível afirmar que
Perec buscava impor um apagamento que, ao invés de re-velar outros detalhes da
imagem, velaria sua informação. Essas ‘imagens incertas’ se assemelham assim
às imagens emprestadas que Perec tomou dos versos de Raymond Queneau para
compor as duas epígrafes de seu livro autobiográfico W ou le souvenir d’enfance:
“Essa névoa insana onde se agitam as sombras, / como poderei clareá-la?”221
(PEREC, 2003a, p. 11), “Essa névoa insana onde se agitam as sombras, / - é lá
então que está o por vir?”222 (Idem, p. 91).

Conclusão: As imagens veladas do Ama-Dor


A partir do ensaio Angoisse de Édouard Levé, entendemos ser possível pensar que
Perec tomou suas polaroides para confrontá-las com o espaço observado,
resignificando o entorno e vice-versa (fig. 1). Nessa situação, essas polaroides
apagadas podem ter servido de tela para algumas das imagens que mais o afligiam:
a de um filho de imigrantes poloneses que vieram para a França nos anos 20 e
acabaram morrendo durante a Segunda Grande Guerra; a de um leitor apaixonado
pelas aventuras marítimas de Jules Verne; a do autor de W ou le souvenir d’enfance,
livro de dois conteúdos intercalados que, na parte ficcional, narra a aventura que
termina em naufrágio no qual morre a mãe que, de porto em porto, buscava a cura
para seu filho surdo-mudo, solitário e apático...

220Levé à sept heures. [...] Pris trois photos: la 1ère complètement blanche, la seconde emportée par le vent. La
3e est correcte, mais il faut vraiment la regarder de près pour voir une terre à l’horizon. […] Photo Nº 6 prise
face au soleil (intéressante q[uan]d m[ême] à cause des containers).
221 Cette brume insensée où s’agitent des ombres, / comment pourrais-je l’éclaircir?
222 Cette brume insensée où s’agitent des ombres, / - est-ce donc là mon avenir?

601
O sentido exato dessa série de
polaroides é do universo da
intimidade do seu autor, fazendo
pensar no que Henri Van Lier (op.
cit., p. 81) escreve sobre esse tipo
de fotografia: enquanto que a
fotografia analógica, que era
registrada em filme, permitia
ampliações, efeitos de reprodução
e tiragens infinitas que não
alteravam a matriz inicial,
representando assim as
possibilidades de uma ‘vida
aberta’, a polaroide era um objeto
único, pequeno, acanhado, Figura 1 – Simulação. (Foto do autor).

limitado e não reproduzível,


fazendo desse tipo de fotografia uma ‘vida fechada’ (exatamente como entendemos
o campo das ações do amador).
Pensando ainda no ensaio de Levé, também imaginamos que, para as polaroides
de Perec, haveria legendas que poderiam repetir um nome que tanto designaria um
lugar como apresentaria algum tipo de disjunção que retomasse, por exemplo, a
imagem que ele fixara em W ou le souvenir d’enfance (2003a, p. 89), e que mais
tarde ele explicaria assim:

Eu sei que isso que é importante é que no meio de W tenha isso... o


símbolo da ausência, que é a separação de meus pais, essa perda... [...]
Efetivamente, todo o tempo, há esse tipo de figura que retorna, mas isso,
isso é uma coisa que se encontra nos livros, mas... Eu não sei como dizer...
é por isso que escrevo. 223
E ainda :

223 Je sais que ce qui est important c’est qu’au milieu de W il y ait ceci... le signe de l’absence, qui est la
séparation de mes parents, ça perte… […]. Effectivement, tout le temps, il y a ce type de figure qui revient, mais
ça, c’est une chose qui se trouve dans les livres mais… Je ne sais pas comment dire… c’est pour ça que j’écris.
Entretien Georges Perec/Bernard Pous. (1981). In : PEREC, 2003b, p. 193.

602
[...] no meio de W há três pontinhos que são o que eu nunca direi, porque
outras palavras virão a seguir, substituí-lo. 224

A noção de Ama-Dor se revela então no exercício exaustivo e constante do


artista em se aproximar das suas fontes para retomar as imagens que o perturbam
e o mobilizam – sempre de maneira a evitar a repetição tediosa e o esgotamento.
Está aí seu prazer. É que, despreocupado com o que o mundo pode ver dele, o
artista enquanto ‘amador de fato’ se permite a aventura de re-ver o mundo para se
conhecer, tirando da dor desse embate o conhecimento que lhe permite fazer o que
mais gosta: se re-escrever.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Réquichot e Seu Corpo. In: O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2004, pp. 189-213.
_____. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
LEVÉ, Édouard. Reconstitutions. Angoisse. Paris: Nicolas Chaudun, 2008.
______. Œuvres. Paris: P.O.L, 2002.
PEREC, Georges. 39 polaroïds. In : regarde de tous tes yeux, regarde, L’art
contemporain de G. Perec. Nantes: Joseph K, 2008, pp. 67-73.
______. Ellis Island. Paris: P.O.L., 2005.
______. W ou le souvenir d’enfance. Paris: Denoël, 2003a.
______. Entretiens et Conférences, v. 2. Édition critique établie par Dominique
Bertelli et Mireille Ribière. Nantes: Joseph K, 2003b.
REGGIANI, Christelle. Perec : une poétique de la photographie. In: Littérature,
N°129, 2003. Matières du roman, pp. 77-106.
______. L’écriture photographique de Georges Perec. In : regarde de tous tes yeux,
regarde, L’art contemporain de G. Perec. Nantes: Joseph K, 2008, pp. 60-66.

224[…] au milieu de W, il y a trois petits points qui sont ce que jamais je ne dirai, parce que d’autres paroles
viendront ensuite, le remplacer. Georges Perec. « À propos de la description ». (1981). In : PEREC, 2003b, p.
239.

603
TEM. Texte en main, nº 12. Perec, Polaroïds. Printemps 1997. École Régional de
Beaux-Arts de Rouen.
VAN LIER, Henri. Le polaroïd SX 70 : le retour du corps. In : Philosophie de la
Photographie. In : Les Cahiers de la Photographie, 1983, pp. 30-32. Disponível em:
http://www.anthropogenie.com/anthropogenie_locale/semiotique/philosophie_photo
graphie.pdf. Acesso em 20 agosto 2015.
VASQUEZ, Pedro. Polaroid – O domínio do imaginário. In: Fotografia. Reflexos e
Reflexões. Porto Alegre: L&PM, 1986, pp. 87-112.

604
BENJAMIM EM LIVRO E FILME:
A PERSONAGEM PÓS-MODERNA E SUA REPRESENTAÇÃO

Márcia Moreira Pereira225

Introdução

Um dos nomes mais conhecidos da intelectualidade brasileira, Chico Buarque


marcou época não só com suas letras de música com temática amorosa e social,
mas também com obras literárias, entre as quais estão Estorvo (1991), Benjamim
(1995), Budapeste (2003), as três vencedoras do Prêmio Jabuti, e Leite Derramado
(2009). Suas obras são marcadas por fortes traços contemporâneos, tratando, entre
outras coisas, de “itinerários errantes, sujeitos geograficamente deslocados e
perdidos; a literatura da errância, eis um grande tema da contemporaneidade”
(NINA, 2011, p. 259).
Em se tratando de literatura pós-moderna, autores como Chico Buarque,
Marcelino Freire, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, entre outros, provam, com sua
escrita, que a violência, a criminalidade e a periferia estão presentes de modo
constante no cotidiano das grandes cidades, assim como a desigualdade e a
injustiça social. Tudo isso se reflete, de modo intenso, na personalidade das
personagens de seus romances, que se tornam multifacetados, assim como o
espaço urbano em que circulam.
Personagens sem rumo, sem estrutura e sem identidade própria marcam a
narrativa contemporânea, caracterizada, na atual produção literária brasileira, pela
ausência de fórmulas ou regras, de limites identitários. Nota-se essa disposição
narrativa nas obras de Chico Buarque, onde as estruturas de conteúdo e forma são
colocadas em xeque. Todas essas questões têm relação direta com sua produção
literária, em especial quando comparamos seu livro Benjamim, de 1995, com a

225 Doutoranda em Letra pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

605
adaptação fílmica homônima, dirigida por Monique Gardenberg 2004, objeto desse
estudo.
Apesar de sua prosa multifacetada e nada convencional, em pelo menos um
aspecto parece não haver discordância: as personagens de Chico Buarque vivem
uma desestabilização identitária, resultando em sua constante inquietação, o que
cria uma impressão de que elas vivem aprisionadas em uma “camisa de força” e em
busca contínua de liberdade, a qual se revela sempre tardia e muitas vezes
impossível. Ao entrar em contato com o universo dessas personagens, percebemos
o quanto o autor investe na desorganização de seus mundos, na complexidade de
vozes, na multiplicidade de suas ações, não raras vezes sem sentido.
Nas obras de Chico Buarque, notamos indivíduos agindo, mesmo que
contrariados, em consonância com tudo aquilo que a sociedade e sua dinâmica
impõem. Esse mosaico identitário tem forte nuances decorrentes das identidades
fragmentadas contemporâneas, instaurando a chamada crise de identidade,
considerada, segundo Stuart Hall, "parte de um processo mais amplo da mudança,
que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas
e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social” (HALL, 2003, p. 7).
As personagens e até o espaço nas obras de Chico Buarque parecem
caminhar ao encontro do nada: cada passo, cada decisão, cada lugar se multiplica,
não há um único lugar, um único espaço, pois a própria narrativa parece também
levar o leitor para esse universo instável, o universo do não-lugar, que, por
congregar em si todos os lugares, acarreta, de certo modo, na anulação do próprio
lugar e na instauração de seu avesso (AUGÉ, 1994 p. 36).

Indubitavelmente há uma espécie de vazio nas "verdades" que as


personagens buscam - o duvidoso é se essa busca, essa angústia e esse
desencontro são herdados das relações sociais em que cada personagem transita.
Temos a impressão de que o homem contemporâneo representado nas
personagens do romance de Chico Buarque vive entre a euforia e a liberdade, mas
que, no desencontro desses sentimentos, surge a angústia.

606
O objetivo deste trabalho é, assim, analisar como a personagem principal da
obra Benjamim é retratada no filme de mesmo nome. Na narrativa literária,
Benjamim Zambraia, nome do protagonista, é um indivíduo com sérias dificuldades
em relacionar seu presente e seu passado; o protagonista vive numa sociedade pós-
trauma, buscando, a partir de um dado acontecimento, reparar, de algum modo,
questões que não foram bem resolvidas em seu passado. Tanto em Benjamim-livro
como em Benjamim-filme, as personagens estão “sempre em trânsito”, seus
espaços são moventes, há uma busca incessante para definir e delinear qual é seu
território. Neste estudo, limitar-nos-emos a analisar apenas à adaptação da
personagem principal, na passagem da narrativa literária para a narrativa fílmica.

Para este trabalho, em especial, elegemos o capítulo seis da obra e faremos


uma comparação desse capítulo com um fragmento do filme. Em ambos, Benjamim
é um ex-modelo fotográfico que vive no final da década de 80 – a obra literária se
divide em dois tempos, final dos anos 60 e final dos anos 80 –, apresentando
características de um sujeito pós-moderno, pois vive em um momento de
transformação social, mediado pelos meios tecnológicos de comunicação que
estavam, naquela época, em franco desenvolvimento (SANTOS, 2000). Neste
universo complexo e dinâmico, a personagem leva uma vida solitária e fragmentária,
típica de um indivíduo que não se adaptou as essas novas transformações. Sua
vida, contudo, dá uma reviravolta quando conhece Ariela Masé, a figura da jovem
que o remete ao seu passado fracassado com Castana Beatriz, possível mãe de
Ariela.

607
Personagem em Benjamim(s)

Tratando das personagens de ficção, Brait lembra que “os recursos


selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres fictícios que
dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor através de uma personagem”
(BRAIT, 1987, p.70). Em um romance, por exemplo, a caracterização, os atos e os
pensamentos de uma personagem podem ser descritos de modo minucioso pelo
autor. O que dizer, a esse respeito, quando se trata de um filme - em vez de um
romance - e de um diretor - em vez de um autor? Considerando que, de acordo com
Robert Stam, na narrativa literária encontramos personagens e na narrativa fílmica
encontramos intérpretes (STAM, 2006), cumpre ainda perguntar: como seria a
adaptação dessa personagem em uma adaptação cinematográfica? Para Jan-Luc
Godard, “o chato em escrever é que nunca se sabe se é para dizer ‘quando saí
chovia’ ou ‘chovia quando saí’. Em cinema, é simples: se mostram os dois ao mesmo
tempo” (apud BRITO, 2006 p. 12).

No capítulo seis do livro, Benjamin aguarda a vinda de Ariela, a quem havia


convidado para viver com ele; neste capítulo, há a uma indecisão de Ariela: ao
pensar se aceita o convite ou não, ela perambula pela cidade em busca de uma
resposta para o convite e para ela mesma. Enquanto isso, Benjamim a espera,
ansioso. A narrativa é marcada por flashbacks: enquanto aguarda Ariela, Benjamim
relembra quando, em sua juventude, passou três anos procurando,
incansavelmente, o paradeiro de Castanha Beatriz. Nessa volta ao passado,
Benjamin recorda quando, ainda jovem, foi chamado pelo pai de Castana para ouvir
um pedido dele:

o doutor Campoceleste quisera suplicar a Benjamim que se abstivesse de


procurar Castana Beatriz (...) o doutor sabia de fonte sigilosa que os passos
de Benjamin eram vigiados; as autoridades apostavam que ele,
inadvertidamente, terminaria por levá-los a Castana Beatriz e seu concubino.
(BUARQUE, 1995, p. 136).

608
No filme, a sequência de acontecimentos, não são exatamente com a
sequência do livro, mas foram realizadas de acordo com a obra: no trecho acima
citado, a adaptação foi fiel ao encontro entre Benjamim e doutor Campoceleste,
havendo apenas uma pequena mudança para dar mais dramaticidade à cena (o
doutor pega na mão de Benjamin e é ele mesmo quem sussurra aquelas palavras
ao protagonista); já no livro, foi uma enfermeira quem transmitiu o recado. Na cena
há, ainda, na chegada de Benjamim ao quarto do enfermo, uma sequência de
transição do plano geral para o primeiro plano (entre Benjamin e doutor
Campoceleste): ao responder sobre o paradeiro de Castana, Benjamin fica em
primeiríssimo plano, com uma música "comovente" de fundo, dando ênfase à
dramaticidade e gravidade do momento, o que faz com que o protagonista adquira
uma dimensão dramática ainda maior; na sequência, o que confere expressividade
ao pedido de doutor Campoceleste é a mudança de câmera para o plano de detalhe,
focando o aperto de mão do doente, e em seguida, sua morte, assim como no livro.

No livro, há ainda a lembrança das visões de Benjamim convivendo com a


repressão da década de 60 e sua tentativa que "clarear" o presente com a chegada
de Ariela. Benjamim, à espera de Ariela, relembra o quanto procurou por sua mãe,
Castana, e o fim do encontro com doutor Campoceleste: “E hoje, ao percorrer uma
rua já percorrida no passado, Benjamin Zambraia tem do passado uma impressão
tão nítida, que a atual paisagem mais lhe parece uma reminiscência” (BUARQUE,
1995, p. 137). Esse trecho do livro é representado de modo muito apropriado no
filme: assim que Benjamim sai da casa do doutor Campoceleste, vai para sua
própria casa e testemunha, no caminho, a repressão policial - há um embate entre
o povo protestando nas ruas e a truculência da polícia. Notamos, mais uma vez,
tanto na temática da obra quando na adaptação do filme, a inquietação constante
de Benjamim e seu passado mal resolvido, com várias sequências intercaladas, em
ambos (filme e livro), entre as lembranças do passado e as do presente de
Benjamim, demonstrando a incapacidade do protagonista em reagir aos
acontecimentos. Esse fato confirma o que dissemos acima, acerca da
caracterização da personagem em ambos os suportes analisados, como

609
personagem tipicamente pós-moderna. Na narrativa literária, temos o tempo todo, a
impressão de que há uma "câmera fora dele filmando seus movimentos" (MELLO,
2010, s.p.), fato que o filme consegue transmitir com precisão, pois as sequências
de cenas foram elaboradas a partir desse mesmo prisma.

Ainda na sequência do livro, as lembranças de Benjamim são cada vez mais


difusas: a possibilidade de rever seu passado e livrar-se da culpa é algo obsessivo
em sua mente, como na passagem em que ele se lembra de quando, ainda jovem,
sob o efeito do pedido de doutor Campoceleste, passou cerca de um mês trancado
em casa; ao sair, pediu a um conhecido taxista (Barretinho) - o mesmo motorista
que costumava atender seus pedidos anteriores, como quando o levara a uma praça
onde tinha avistado Castana - que o levasse ao cinema. Numa narrativa não linear,
esse momento é intercalado com a espera de Ariela por Benjamim, que lamenta o
fato de não ter uma secretária eletrônica para saber se foi procurado enquanto
esteve ausente. Em meio às lembranças, recorda-se do dia que avistou Castana,
“Ela surgia de repente, por detrás de um caminhão,e entrou decidida na agência
dos correios. Benjamim olhou os pedestres, que não o olhavam, olhou a cabine da
polícia, abandonada, mergulhou no táxi e mandou Barretinho ligar o motor”
(BUARQUE, 1995, p. 139).

O ônibus em que está Castana é seguido pelo táxi e, para surpresa de


Benjamim, ela encontra, em frente a um sobrado, o professor Douglas, intelectual
de esquerda, procurado pela ditadura. Benjamim os avista de longe e guarda o local
para voltar e ver Castana outras vezes, porém, ao sair, se depara com dois homens,
supostamente policiais, que o revistam e mandam o taxista (Zilé) o levar para casa:

antecipou-se ao Zilé em direção ao táxi, sentou-se no banco traseiro e fechou a


janela, como medo de ouvir o início do tiroteio. Dali ao largo do Elefante [onde
Benjamin morava] foram trinta minutos, durante os quais o Zilé não disse uma
palavra. Em casa, Benjamin sentou-se defronte ao telefone durante longo tempo,
sabendo, como sabe hoje, que ele não tocaria; nem precisava tocar porque, à
força de ficar fitado, o aparelho já trazia embutida a trágica notícia. Da mesma
forma que hoje, depois de arrancar o fio da parede, Benjamin leva o fone ao
ouvindo e ainda é capaz de escutar a voz de Areila: ‘não faz mal'. (BUARQUE,
1995, p. 142).

610
No filme, as sequência de cenas acima transcritas foi composta por
adições e reduções: há uma redução, por exemplo, da cena em que Benjami
,procura Castana: diferentemente do que ocorre no livro, o espectador assiste à
cena em que o taxista leva Benjamim ao cinema, mas não àquela em que ele
passeia com o protagonista na praça; em seguida, há um corte de cena onde já
aparece Castana descendo do ônibus e Benjamim seguindo-a, no táxi. Interessante
e expressivo é notar, por todo filme, que quando há cenas do passado de Benjamim,
as cores são todas "vivas", mais fortes do que as cenas do presente, talvez porque
o protagonista tenha resistência em viver seu presente, já que o passado lhe surge
de modo mais "vivo" e intenso.

A cena seguinte já é totalmente fiel ao livro, com Benjamim vendo, à espreita,


o encontro entre Castana e seu amado - ao virar as costas, ele encontra os policiais
que pedem seus documentos e o mandam embora, também chamado o taxista de
Zilé, assim como no livro. A cena é toda envolta por uma música em tom de mistério,
a câmera alternando entre primeiro plano (Castana e Prof. Douglas) e o
primeiríssimo plano para Benjamim, dando-lhe o tom de descoberta: Benjamim
acabara de saber onde os amantes se escondiam. Nesse momento há uma adição,
que se fez fundamental para o entendimento do espectador: o casal tinha um filho,
e a criança é representada nos braços de uma amiga (diferentemente do livro), com
o mesmo casal levando um brinquedo até ela; nesse momento, entra a polícia e
ouve-se, apenas, o disparar das armas.

Na sequência da narrativa literária, após o episódio relatado, há a narração


de Benjamim sentado, em frente ao telefone, aguardando a notícia da morte, no
passado, e esperando a ligação de Ariela, no presente. Passado e presente se
encontram, e Benjamim continua esperando a mesma mulher, na expectativa
angustiante de reencontrar seu passado. O filme fez uma adição fundamental nessa
passagem no livro: após "entregar" o esconderijo de Castana e seu amante,
Benjamim volta para casa, tranca a porta e se vê ao espelho, desesperando-se e
passando a chorar e gritar: nesse momento, a câmera é posta em frente ao espelho,
levando o espectador - do mesmo modo que Benjamim - a se ver diante dele, como

611
se, assim, ambos fossem o culpado pela morte de Castana. O espelho fica turvo,
embaçado, sujo, e a câmera projeta, lentamente, ainda através do espelho,
Benjamim atirando alguns objetos e o deixando em pedaços, assim como ele
próprio. O espelho fica estilhaçado, reproduzindo metaforicamente tanto o efeito
produzido nos corpos fuzilados quanto a condição emocional e psicológica de
Benjamim, tomado pela dor e pela culpa. A câmera, através do espelho, reflete
Benjamim: ambos estão "quebrados" em vários pedaços; com um giro panorâmico
para a direita, a câmera mostra Benjamim, agora sem a imagem do espelho,
sofrendo, atirado ao chão. A câmera volta ao plano geral e, nesse momento, vemos
que as cores do quarto são vermelho e branco... guerra e paz: a cena é sonorizada
por uma música dos anos 60 e, na sequência, por um choro de bebê. Há uma
mudança de cena, trazendo Benjamin para o presente, na mesma casa de tons
brancos, limpando as lágrimas com uma echarpe vermelha que foi de Castana. Aqui,
a câmera faz um travelling, acentuando a dor no rosto de Benjamin, que relembra
que seus amigos o abandonaram por o considerarem um traidor. A sobreposição
dessas imagens no filme faz com que o espectador sinta ou, pelo menos, se comova
com a agonia de Benjamim, pois, como lembra Bernardet , “ternura ou tristeza não
são expressas pela pelo filme; elas resultam da reação do espectador diante da
justaposição de duas imagens” (BERNARDET, 1984 p. 49).

Talvez, a grande lição da adaptação dessa cena, seja acentuar a culpa de


Benjamim. Se o espectador, até o momento, ainda não percebeu tal fato, ficará
extremamente claro no momento em que a imagem de Benjamim é refletida pelo
espelho e no momento que seu reflexo é quebrado, destruído por ele mesmo. Jean
Chevalier, em seu Dicionário dos Símbolos, apresenta alguns significados da
representação dos espelhos: “o que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o
conteúdo do coração e da consciência. Ele é, com efeito, símbolo da sabedoria e
do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do espírito obscurecido
pela ignorância” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2002 p.73). Portanto, a cena
retrata, de modo singular, a culpa de Benjamim, e, dali para diante, seu "mundo
impedido que não supera o passado" (MELLO, 2010, s.p.). Vê-se, a partir da cena,

612
que é o desfecho do livro e do filme, o quanto o futuro de Benjamim era dominado
pelo efeito da culpa.

Conclusão

Na cena escolhida para este trabalho, temos, além do desfecho da obra, o


embate crucial entre o antes e agora, entre o passado e presente, que marcaram,
de modo único, a vida de Benjamim. Se, assim como afirmou PELLEGRINI (2003),
a diferença entre literatura e cinema é que a primeira se faz com palavras e a
segunda se faz com imagens, a adaptação cinematográfica de Benjamim foi muito
bem sucedida, pois conseguiu, em imagens, transmitir aquilo que Chico Buarque,
magistralmente, soube conduzir em palavras.

A soma entre a culpa e a incapacidade de transformar o mundo é um dos


possíveis sentidos da obra, o que é representado de modo espetacular no filme. A
narrativa fílmica foi fiel à não linearidade da obra, à representação da perda de
referências e às (des)identidades das personagens, sobretudo do protagonista. A
cena que foi eleita para este estudo, demonstra, no livro e no filme, o quanto a
personagem principal, Benjamim Zambraia, age em consonância com o espaço
degrado em que vive - a transformação presente nas duas décadas em que o
protagonista viveu, marca, de modo singular, sua existência. Nas narrativas aqui
analisadas, o começo da obra é seu próprio fim, simbolizando uma circularidade
espaço-temporal própria de nossa contemporaneidade pós-moderna. Portanto, se
uma das marcas ideológicas da livro Benjamim é demonstrar o quanto a mudança
de épocas conturbadas - onde o sujeito não se "encaixa" e, por isso, acaba
perdendo sua identidade - pode levá-lo à anulação de sua própria existência, o filme
também coseguiu, à sua maneira, traduzir tal marca.

613
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGÉ. Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.


Campinas: Papirus, 1994.
BENJAMIM. Direção: Monique Gardenberg. Roteiro: Monique Gardenberg, Jorge
Furtado e Glênio Póvoas. Produção: Natascha & Dueto Filmes. 2004.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Ática, 1984.
BUARQUE, Chico. Benjamim. Companhia das Letras: São Paulo, 1995.
BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006.
BRITO, João Batista. Literatura no cinema. São Paulo: Unimarco, 2006.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2002.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
MELLO, Heitor Ferraz. "Alegorias do vazio: a obra de Chico Buarque". Revista Cult,
São Paulo, jul. 2010, s.p.
NINA, Claudia. "Mapeamento: uma reflexão sobre as pesquisas propostas". In:
OLIVEIRA, Alexandre et alii. Deslocamentos críticos. São Paulo: Itaú
Cultural/Babel, 2011, p. 255-266.
PELLEGRINI, Tânia. “Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações”.
In: PELLEGRINI, Tânia et alli. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora
Senac, 2003, p. 15-34.
SANTOS. Jair Ferreira dos. O que é pós-modernismo. São Paulo: Brasiliense, 2000.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, 2006.

614
A FÁBULA TRADICIONAL COMO UM SILOGISMO INDUTIVO

Márcio Thamos226

1. Introdução

Tradicionalmente a fábula é tida como uma espécie de texto didático, do qual,


a partir de um exemplo narrado, uma pequena “história de bichos”, infere-se um
preceito moral, uma asserção de caráter universal. Assim, costuma-se reconhecer
que a fábula divide-se em duas partes, a história e a moral. A primeira constitui um
discurso narrativo, e a outra um discurso de caráter dissertativo que interpreta o
significado daquela.
À luz da moderna análise linguística, uma tal visão da fábula revela-se
insuficiente, pois,

A consequência dessa tomada de posição dos estudos ditos humanísticos


na tradição é que o aspecto propriamente discursivo da fábula, muito bem
sugerido, embora não desenvolvido pela denominação, passa a plano
secundário, para dar lugar a especulações conteudísticas pouco ou nada
consentâneas, insiste-se, das preocupações com a linguagem. (LIMA,
1984, p. 61).

Partindo das ideias desenvolvidas no ensaio pioneiro de Alceu Dias Lima, “A


Forma da fábula”, citado acima, procura-se aqui explorar um aspecto simples, mas,
ao que parece, pouco observado na fábula: seu caráter lógico-discursivo, isto é, a
estrutura silogística que se percebe em sua organização como enunciado.

2. A sintaxe discursiva da fábula

Do ponto de vista sintáxico, a fábula pode ser definida como uma figura de
linguagem ou, poderíamos dizer, como uma espécie de macrofigura, já que se trata,

226
Professor da Área de Latim do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP,
Câmpus de Araraquara, credenciado no PPG em Estudos Literários da mesma Instituição.

615
conforme demonstra A. D. Lima (1984), de um recurso de expressão composto de
maneira peculiar, a partir da relação formal de três discursos: um figurativo, a
historieta narrada, um temático, a moral inferida, e ainda um outro a que o autor
denomina metalinguístico, a conexão sintáxica entre os dois primeiros, para o qual
reclama a devida atenção.
A comum explicitação dos discursos figurativo e temático nos textos de
fábula, ou seja, sua manifestação inequívoca no enunciado, bem como a
preocupação voltada apenas a questões relativas ao conteúdo, fez com que o
discurso metalinguístico fosse deixado de lado ou simplesmente não percebido nas
análises tradicionais de fábulas. Compreende-se que isso assim seja, dada a
relativamente pequena extensão do discurso metalinguístico, quando se manifesta
em frases do tipo “esta fábula ensina que” ou tão somente “moral:”, e sobretudo
quando se exprime apenas em termos suprassegmentais, no caso, a natural
mudança de tom na passagem da história para a moral ou vice-versa.
Assim, virtualmente, o discurso moral vem sempre acompanhado do
metalinguístico, que estabelece a conexão interpretativa entre aquele e o discurso
narrativo. Esse arranjo sintáxico tridiscursivo estará sempre presente na estrutura
da fábula, pois, sendo de natureza formal, reconstrói-se logicamente, isto é, por
implicação, ainda que nem todos os seus termos constituintes estejam explicitados
no corpo do enunciado.
Apesar disso, ou talvez se devesse dizer, por isso mesmo, a sintaxe
discursiva não constitui a especificidade da fábula como texto literário. Afinal,

não é esse um comportamento normal de todo aquele que discorre, que


discursa, por tempo mais ou menos longo sobre qualquer assunto? Qual o
orador (sacro, forense, parlamentar), qual o professor, o conferencista, que
não joga com esses dois procedimentos, que não equilibra
estrategicamente a doutrina e o exemplo, a frase séria e o dito chistoso?
(LIMA, 1984, p. 68).

Um tal arranjo discursivo não determina uma espécie narrativa, mas sim, uma
espécie de figura retórica composta, uma macrofigura de linguagem, que pode ser
usada como recurso expressivo em qualquer contexto, pois a justaposição de um

616
discurso figurativo e um temático é procedimento comum na construção discursiva
em geral.

3. A semântica discursiva da fábula

O que caracteriza a fábula como espécie narrativa é, como esclarece A. D.


Lima, sua estrutura semântica discursiva. No texto da fábula comparecem atores
humanos e não-humanos que, distribuídos de acordo com essas duas categorias,
instalam-se no enunciado da história ou no da moral. No discurso figurativo, o da
história, tem-se sempre atores não-humanos, ainda que antropomorfizados. No
discurso temático, sempre atores humanos, figuratizados ou não.
Atores não-humanos respondem por ações não-humanas, ou melhor, de
tipos humanos, isto é, ações que podem caracterizar um estereótipo humano, mas
não o humano em toda sua complexidade. Assim é que esses atores, mesmo
quando figuratizados por pessoas, por apresentarem em seu núcleo sêmico o traço
/humano/, não deixam de ser considerados não-humanos. Atores humanos
respondem por virtuais ações humanas, uma vez que o discurso moral sempre se
refere de modo abstrato e abrangente ao mundo dos homens.
Na fábula, o discurso figurativo cria o efeito de sentido desumanização, o que
o faz ser visto sempre como uma “história de bichos”, enquanto o discurso temático
promove a ideia de reumanização, ao projetar-se sobre o “homem humano”. A
fábula, como espécie narrativa, caracteriza-se justamente por esse procedimento
semântico de des/re-umanização operado pelos discursos figurativo e temático.
Esses resultados a que chega A. D. Lima estudando a constituição discursiva
da fábula fornecem subsídios que permitem apreender sua estrutura silogística,
como veremos em seguida.

4. A estrutura silogística da fábula

Voltando agora a pensar no enunciado fabulístico como procedimento


retórico, é possível notar que a fábula tradicional, à qual podemos chamar esopiana,

617
apresenta uma configuração lógico-discursiva própria, que lhe confere também
certa especificidade, construindo-se a partir de um argumento silogístico. Nessa
estruturação, como se verá, o discurso metalinguístico desempenha um papel
fundamental.
O silogismo é um procedimento básico de lógica formal. Apresenta-se como
um raciocínio composto por três proposições organizadas de tal modo que a
terceira, chamada conclusão, é inferida logicamente das duas primeiras, chamadas
premissas maior e menor. Essa atividade cognitiva que se exprime explicitamente
por palavras deve associar ou reunir por relação lógica dois termos extremos, o
maior e o menor, através de um termo médio. A conclusão ou dedução, nesse caso,
é uma proposição que estava implícita na relação entre um termo de maior extensão
e outro de menor extensão.
De acordo com Nicola Abbagnano,

O caráter mediato do S[ilogismo]. decorre do fato de ser a contrapartida


lógico-linguística do conceito metafísico de substância. Em virtude disto, a
relação entre duas determinações de uma coisa só pode ser estabelecida
com base naquilo que a coisa é necessariamente: sua substância (2007,
p. 896-897 – “silogismo”).

Há uma série de regras na construção das proposições e em suas relações


que devem ser observadas para que um silogismo possa ser considerado válido.
De acordo com a “posição” que o termo médio ocupa nas premissas, formam-se
quatro tipos básicos de silogismo, chamados então figuras. Portanto, “o S[ilogismo].
tem três termos, a saber o sujeito e o predicado da conclusão e o termo médio, mas
é a função do termo médio que determina as diferentes figuras do silogismo”
(ABBAGNANO, 2007, p. 897 – “silogismo”). A figura de silogismo que Aristóteles
considerava a mais perfeita é aquela em que na constituição das premissas “o termo
médio é sujeito na maior e predicado na menor” (CHAUI, p. 371). Um exemplo desse
tipo clássico de silogismo poderia ser:

Todo homem é mortal (premissa maior).


Fedro é um homem (premissa menor).
Logo, Fedro é mortal (conclusão).

618
Na premissa maior, o termo médio, representado pela noção “homem”,
sujeito da proposição, recebe como atributo o termo maior, representado pela noção
“mortal”; e na premissa menor, o mesmo termo médio torna-se predicado do termo
menor, representado pelo nome próprio “Fedro”. Assim, na conclusão, conduzida
por essa mediação, o termo maior se associa como atributo ao termo menor. Nesse
exemplo, ser “homem”, noção que desempenha o papel de termo médio, é a
substância de Fedro e, portanto, a causa ou razão de sua “mortalidade”.
O processo de conhecimento que assim se instaura com o desenvolvimento
do silogismo é de tipo dedutivo. Trata-se de um raciocínio que vai do universal ao
particular, de tal modo que uma proposição mais restrita deriva de outra mais geral,
na qual, por inferência, ela já estava contida. Por isso, pode-se afirmar que “A
definição aristotélica de silogismo coincide com a definição geral de dedução”
(ABBAGNANO, 2007, p. 233 – “dedução”).
A teoria aristotélica do silogismo foi revista, incorporada ou questionada por
diversos pensadores desde a Antiguidade, mantendo sempre seu prestígio no
campo da lógica. Somente já nos tempos modernos, perderá a supremacia para a
lógica matemática, que passa a dominar desde a segunda metade do século XIX,
prevalendo assim a famosa crítica de John Locke (1632-1704), segundo a qual o
silogismo

não descobre nem ideias nem a correlação entre ideias, que só a mente
pode perceber, mas "demonstra apenas que, se a ideia do meio concorda
com as outras a que se refere imediatamente de ambos os lados, então
essas duas ideias distantes (ou das extremidades) certamente concordam"
(ABBAGNANO, 2007, p. 899 – “silogismo”).

Assim, superando a concepção substancialista de Aristóteles e atendo-se tão


somente à concordância dos termos admitida por Locke, é possível notar que a
fábula esopiana, do ponto de vista de sua organização formal, se reduz facilmente
a um argumento silogístico. Contudo, por conta de seu peculiar arranjo tridiscursivo,
apresenta-se não como o clássico raciocínio de caráter dedutivo, mas seguindo
justamente o caminho contrário, mostra-se como um silogismo indutivo, isto é, como
um raciocínio que vai do particular ao universal.

619
A fim de verificar esse procedimento, vejam-se a seguir, como exemplos,
duas famosas fábulas de Fedro, autor romano da época imperial. Apresentam-se
aqui as traduções de José Dejalma Dezotti que constam do livro A tradição da fábula
(DEZOTTI, 2003):

A raposa e as uvas
Forçada pela fome, uma raposa tentava apanhar um cacho de uva
numa alta videira, saltando com todas as suas forças.
Como não conseguisse alcançá-lo, afastando-se, diz:
“Ainda não estás maduro; não quero comer-te verde.”
Os que desdenham com palavras as coisas que não conseguem fazer,
deverão aplicar a si este exemplo.
(DEZOTTI, 2003, p. 87).

O cão que levava um pedaço


de carne por um rio
Perde merecidamente o próprio quem cobiça o alheio.
Um cão levava a nado por um rio um pedaço de carne,
quando viu, no espelho das águas, sua própria imagem;
julgando ser uma outra presa levada por um outro cão,
quis arrebatá-la; porém sua avidez foi lograda:
não só deixou cair o alimento que trazia na boca,
como também, é claro, não pôde pegar o que cobiçava.
(DEZOTTI, 2003, p. 77).

Como vimos, de acordo com o processo de dedução aristotélica, partindo de


uma proposição geral aceita como verdadeira, chega-se a uma proposição particular
como resultado necessário do raciocínio. Como se disse, desprezando a
necessidade de um caráter substancial reconhecível no termo médio, exigência da
teoria aristotélica, os silogismos dedutivos implicados nas fábulas acima poderiam
ser assim enunciados:

A RAPOSA E AS UVAS
Quem despreza com palavras aquilo que não pode fazer é ridículo.
A raposa (é quem) despreza com palavras aquilo que não pode fazer.
Logo, a raposa é ridícula.

O CÃO QUE LEVAVA UM PEDAÇO DE CARNE POR UM RIO


Quem cobiça o alheio perde o próprio.
O cão (é quem) cobiça o alheio.

620
Logo, o cão perde o próprio.

Contudo, nesse caso, a premissa maior é a proposição de sentido mais geral,


ou abstrato, da qual se infere a conclusão, uma proposição de sentido mais
particular, ou concreto. Esse movimento do raciocínio, que parte do geral para atingir
o particular não corresponde de fato ao sentido textual da fábula. Nesta, a partir de
um exemplo concreto, a narrativa, infere-se um preceito abstrato, a moral, ou seja,
o raciocínio se organiza discursivamente de modo a proceder do particular ao
universal. O silogismo dedutivo, fazendo o movimento contrário, não equivale, como
se vê, ao procedimento da fábula como um “ato de fala”.
Levando-se em conta a instância da enunciação, que propriamente aqui nos
interessa, é de notar que ao se apresentar como um exemplo que ilustra um preceito
moral, a fábula, como discurso, assume ares de um raciocínio indutivo, partindo do
caso particular para atingir o geral – é esse o sentido claro que se reconhece na
fábula (e que lhe valeu tradicionalmente o rótulo de “texto didático”, do qual se extrai
certo ensinamento como lição).
Com efeito, voltando aos exemplos analisados, dos quais apresentamos
acima as deduções silogísticas, reconhecemos as seguintes configurações
discursivas, que correspondem propriamente a silogismos indutivos:

A RAPOSA E AS UVAS
A raposa (é quem) despreza com palavras aquilo que não pode fazer.
A raposa é ridícula.
Logo, quem despreza com palavras aquilo que não pode fazer é ridículo.

O CÃO QUE LEVAVA UM PEDAÇO DE CARNE POR UM RIO


O cão (é quem) cobiça o alheio.
O cão perde o próprio.
Logo, quem cobiça o alheio perde o próprio.

No silogismo indutivo, partindo de antecedentes mais particulares ou


concretos, chega-se a uma conclusão mais geral ou abstrata. Essa proposição de
caráter geral, abstrato, corresponde ao discurso temático da fábula, a moral da
história. Percebe-se que o elemento responsável pela configuração da fábula como
um silogismo indutivo é o discurso metalinguístico, equivalente da expressão “logo”

621
que acompanha a conclusão de qualquer silogismo. Assim como o discurso
metalinguístico pode assumir nas manifestações fabulísticas concretas as mais
diversas expressões, variantes da fórmula “esta fábula ensina que”, também o
conectivo “logo” que antecede a proposição conclusiva do silogismo poderia
exprimir-se por enunciados do tipo “portanto”, “por conseguinte”, “assim conclui-se
que”.
Como aponta A. D. Lima (1984, p. 64), o discurso metalinguístico

é sintaxicamente exterior tanto à história em si quanto à moral da fábula.


Sem o recurso aos conceitos postos à disposição pela teoria da
enunciação, não há nenhuma possibilidade de explicação metodológica
desse discurso na economia de uma fábula.

Do mesmo modo, a expressão “logo”, que aparece tradicionalmente nos


argumentos silogísticos, como é claro, não pertence às premissas e embora
acompanhe sempre a conclusão é também um elemento exterior a ela. Na verdade,
trata-se de um discurso metalinguístico, que compõe a forma do silogismo, e como
tal constitui uma evidente marca da enunciação. Na expressão “esta fábula mostra
que”, o enunciador do discurso, o “eu” que fala, inadvertidamente se revela, trazendo
à tona o efeito de subjetividade. Assim também, no silogismo, a expressão “logo”
trai, por assim dizer, o efeito de neutralidade que a operação lógica pretendia criar,
ao chamar a atenção para o “ato de fala” que está em processo. Basta notar que,
no contexto do silogismo, o conectivo “logo” vale o mesmo que dizer “isto significa
que” ou “as premissas mostram que”. Com efeito, percebe-se aí a presença do
enunciador, que é quem de fato conduz o raciocínio verbal, fazendo uma inferência
a partir da relação entre os antecedentes.
É importante notar que, no caso da fábula, o discurso metalinguístico
acompanha sempre a moral, conferindo, portanto, ao discurso temático o cunho de
uma conclusão generalizante, inferida por processo indutivo, a partir da
apresentação de um exemplo narrativo particularizante, o discurso figurativo.
De acordo ainda com M. Chaui (2002, p. 374), a diferença entre a dedução e
a indução

622
é o que leva Aristóteles, na teoria do conhecimento, a dizer que a ordem
da investigação é diferente da ordem da exposição ou demonstração: a
investigação se faz por indução e a demonstração, por dedução.

A indução, portanto, poderia ser usada em exercícios de dialética ou com fins


persuasivos, “mas não constitui ciência porque a ciência é necessariamente
demonstrativa” (ABBAGNANO, 2007, p. 557 – “indução”). Nesse sentido, deve-se
salientar, a fábula, seguindo a estrutura de um silogismo indutivo, confirma-se como
pertencente à retórica. Aliás, não há nisso novidade, pois, “O fato de Aristóteles ter
tratado da fábula em uma obra como a Retórica já deixa entrever que, para ele, a
fábula é um componente da arte retórica” (DEZOTTI, 1988, p. 8).
Assim, pode-se entender que a fábula tradicional, à maneira de um silogismo
indutivo, traça o percurso da investigação dialética, num exercício de persuasão
retórica, que pretende levar à aquisição de um conhecimento empírico, a moral, a
partir da observação de um exemplo mítico-imaginativo, a narrativa fabular.

Referências bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5a. ed. (revista e ampliada). Tradução


da 1a. edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução
e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles
(vol. 1). 2a. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
DEZOTTI, Maria Celeste Consolin. A fábula esópica anônima: uma contribuição ao
estudo dos “atos de fábula”. 225f. Dissertação (Mestrado em Letras). Instituto de
Letras, Ciências Sociais e Educação da UNESP, Araraquara, 1988.
DEZOTTI, Maria Celeste Consolin (org.). A tradição da fábula: de Esopo a La
Fontaine. Brasília: UnB / São Paulo: IOE, 2003.
LIMA, Alceu Dias. A Forma da fábula: estudo de semântica discursiva. Significação:
revista brasileira de semiótica, Araraquara, n. 4, p. 60-69, 1984.

623
O DISCURSO MESSIÂNICO DE EDIR MACEDO SOB UMA PERSPECTIVA
MIDIÁTICA: EU NÃO ACEITO A INJUSTIÇA DE JESUS!

Marcus Túlio Tomé Catunda227


Introdução

Este trabalho, focado na análise crítica do discurso religioso da Igreja


Universal do Reino de Deus – IURD, procura identificar a maneira como o uso da
língua é manipulado na construção sociocognitiva da ideologia iurdiana para guiar
os fiéis por um percurso que os conduz à crença de que podem ter suas vidas
mudadas. Nesse sentido, se justifica pela necessidade de compreender as
transformações sociais, culturais, econômicas e políticas, entre outras, que levam
aos modelos globalizados de organizações humanas e, consequentemente, às
novas formas de manifestação da espiritualidade e crença.

Lastreado no discurso, o problema investiga a inter-relação entre Sociedade,


Cognição e Discurso buscando entender a força discursiva que guia a mente dos
fiéis para aceitarem as crenças propostas e o modo como elas os levam a crer na
transformação de suas vidas.

Para tanto, tem como objetivo geral contribuir com os estudos do Discurso
Religioso e, ancorados neste, os específicos, que buscam: desvendar como o
discurso iurdiano é veiculado na internet para converter a população; situar a
proposta messiânica de Edir Macedo no seu Discurso Religioso e; mostrar a
contribuição do discurso da fé para promover uma experiência religiosa
transformadora de vidas.

A investigação aqui proposta é qualitativa e adota um procedimento teórico-


analítico, cujo material de análise foi coletado do periódico Folha Universal e do
discurso oral do Bispo Edir Macedo, retirado da internet.

227
Faculdade Martha Falcão – DeVry Brasil

624
O aporte teórico compõe-se de resultados apresentados pela Análise Crítica
do Discurso - ACD, que exige inter e multidisciplinaridade; portanto, além das suas
vertentes Sociocognitiva, com van Dijk (1997), e Social, com Fairclough (2001) e
Thompson (2011), ampara-se na Sociologia de Max Weber (2002), que, nessa
dialética, contribui com a Teoria da Ação Social e a Tipologia Ideal de dominação.

A ACD entende o discurso em três dimensões principais: a) o uso da língua;


b) a comunicação de crenças e c) a interação em situações sociais. Também propõe
que analisar o discurso com visão crítica tem por objetivo denunciar de que maneira
o que é construído no e pelo discurso guia a mente dos participantes (CF Van DIJK
1997).

Os resultados aqui apresentados são parciais e participam de uma pesquisa


mais ampla a respeito do Discurso Religioso da Igreja Universal do Reino de Deus
– IURD.

A pesquisa apresenta dois pressupostos: o primeiro, de que a IURD constrói


um discurso eficiente por contar com um forte aparato midiático; o segundo, que
Edir Macedo apresenta uma proposta messiânica referenciada nas dimensões
weberianas do patriarca, do burocrata e do líder carismático, desconstruindo a figura
de Jesus.

Para fins deste artigo, o corpus escolhido para análise foi o vídeo do culto da
Igreja Universal publicado na internet no dia 17 de dezembro de 2012 228, onde
Macedo expõe seu pensamento sobre o milagre da transformação da água em
vinho, também conhecido como o milagre das bodas de Canaã.

Nessa direção, por estar o corpus dentro do contexto midiático, com apelo
jornalístico, recorre-se a Catunda (2014), para retratar o texto jornalístico:

O texto jornalístico, a partir da sequência argumentativa, objetiva conduzir


a leitura do público-leitor, fazendo com que ele se identifique com o ponto
de vista do enunciador. Por isso, durante o processamento da informação
recebida no uso efetivo da língua, dependendo de como o fato noticioso é

228
https://www.youtube.com/watch?v=o_GZM_ug8xk

625
focalizado no mundo, ocorre apagamento do processo histórico (com a
modificação do discurso). Dessa maneira, a representação do fato
noticioso apresenta características sociais e ideológicas capazes de
influenciar a formação da opinião do leitor. (CATUNDA, 2014, P. 3).

1. O aparato midiático de Edir Macedo na dimensão weberiana

O aparato midiático que dispõe o bispo Edir Macedo contribui para o


sucesso da construção de sua ideologia ao proporcionar-lhe a projeção das figuras
de líder carismático (sedutor messiânico), burocrata (empresário bem-sucedido) e
patriarca (social). Neste contexto, Macedo forja relações entre a imagem que
constrói sobre si e a de um novo Messias, mais eficiente, mais objetivo, mais
generalista e, acima de tudo, mais justo que Jesus.

Como exemplos do referido aparato destacam-se:

 Jornal semanal Folha Universal (com tiragem física de 1. 707.250


exemplares), que circula gratuitamente na frente de todas as igrejas e
templos da IURD espalhados pelo Brasil, em estações de trem, metrô,
ônibus, entre outros locais de grande circulação, além da internet, no sítio
http://www.universal.org/folha-universal;
 Canal IURDTV, no sítio https://www.youtube.com/user/fabioggfb, onde
são postados vídeos que promovem a igreja de Macedo;
 Rede Record de comunicação, que agrupa emissoras de rádio e televisão
espalhadas por todo o Brasil.
 Universal Produções – Unipro, editora responsável pela publicação de
livros de interesse da Igreja Universal, onde se destacam as obras de Edir
Macedo, incluindo sua autobiografia.

No discurso que constrói, o dono da Universal apresenta várias orientações,


instruções e comparações eficientes que servem para guiar as inferências dos fiéis
rumo à desconstrução da figura representativa de Jesus Cristo, colocando em
dúvida a extensão e a importância de seu primeiro milagre. Para tanto, tematiza a

626
fé na prosperidade e no messianismo, colocando-se como o salvador. Dessa forma,
o referente é tematizado, onde é o tema que cria um estado de coisa diferente para
o referente.

Por extensão, Macedo intensifica sua proposta messiânica manifestando-se


nas dimensões weberianas, já que, ao estar representado no papel social de
salvador/Messias do capitalismo tardio dentro da estrutura da sociedade, com o
acatamento popular, salva o povo da doença, da solidão, da miséria, da frustração,
dos vícios, entre outros, proporcionando uma mudança na vida dos seus
seguidores.

A história do Brasil, no entanto, mostra que todos aqueles personagens que


sugeriram discursivamente uma proposta messiânica, real ou metaforicamente,
foram exterminados, já que se opuseram ao Estado como revolucionários e
salvadores do povo. Nesse cenário, destacam-se Padre Cícero, João Maria
(Contestado) e Antônio Conselheiro. No caso de Edir Macedo, existe um pacto entre
ele e o Estado, os grupos políticos e os estratos mais altos do poder social, onde
presta serviços relevantes à população, influenciando em resultados de eleições
para o Parlamento e para o Executivo; dessa maneira, não é exterminado. O bispo,
portanto, ocupa, de modo simultâneo, o papel do Messias na estrutura institucional
da Igreja Universal e na macroestrutura da sociedade. Por outro lado, o Estado,
apesar de não aparentar ter consciência da relevante ocupação institucional que a
Igreja Universal tem na estrutura social, acaba aceitando-a, por ser ele quem rege
essa tal estrutura.

2. Edir Macedo e a tentativa de desconstruir o primeiro milagre de Jesus

Em um vídeo publicado na internet em 17 de dezembro de 2012, Macedo


tenta, em um culto da Igreja Universal, desconstruir o primeiro milagre de Cristo,
onde ocorreu a transformação da água em vinho, conhecido como o milagre das
bodas de Canaã. Na publicação, o bispo procura desacreditar e inutilizar o evento

627
bíblico, colocando-se como alternativa para os milagres efetivamente eficientes e
úteis aos fiéis.

Abaixo, transcrição completa da passagem bíblica a que se refere Macedo:


[1] E, ao terceiro dia, fizeram-se umas bodas em Caná da Galileia; e
estava ali a mãe de Jesus.
[2] E foi também convidado Jesus e os seus discípulos para as bodas.
[3] E, faltando vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Não têm vinho.
[4] Disse-lhe Jesus: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada
a minha hora.
[5] Sua mãe disse aos serventes: Fazei tudo quanto ele vos disser.
[6] E estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos
judeus, e em cada uma cabiam dois ou três almudes.
[7] Disse-lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até
em cima.
[8] E disse-lhes: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E levaram.
[9] E, logo que o mestre-sala provou a água feita vinho (não sabendo de
onde viera, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água),
chamou o mestre-sala ao esposo,
[10] E disse-lhe: Todo o homem põe primeiro o vinho bom e, quando já
têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom
vinho.
[11] Jesus principiou assim os seus sinais em Caná da Galileia, e
manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele. (João, 2:1-11)

A narrativa bíblica dá conta do primeiro milagre de Jesus, onde a referência


que o apóstolo João faz à manifestação da Sua glória, através do milagre da
transformação da água em vinho, desperta em seus discípulos a divindade de
Jesus:

Jesus principiou assim os seus sinais [...] e manifestou a sua glória; e os


seus discípulos creram nele. (João, 2:11).

O bispo Edir Macedo, porém, usa a passagem das Bodas de Canaã para
desacreditar Jesus e se apresentar como o verdadeiro messias, como mostra a
transcrição do culto iurdiano:

[...] O primeiro milagre que Jesus realizou foi num dia de casamento, foi
numa festa de casamento, quando Ele transformou a água em vinho. Eu
fiquei perguntando... meu Deus, o primeiro milagre que o Senhor faz não é
a cura de um enfermo, não é a libertação de um oprimido, não é a salvação
de um ser humano... o Senhor transformou água em vinho. E essa água
em vinho quê que fez? Alegrou apenas os convidados daquela festa de
casamento. Mais nada! Não fez mais nada! Ou fez?

Qual foi o benefício que a transformação de água para vinho trouxe para o
reino de Deus? Qual foi? Fala, pessoal! Houve algum benefício? Não! Aí

628
eu fiquei pensando... meu Deus! É justo que o Senhor tenha transformado
água em vinho sem beneficiar qualquer pessoa para o reino de Deus,
enquanto há pessoas cujas vidas se mantêm como águas poluídas,
podres, na realidade, e que, apesar de crerem em Ti, ainda continuam com
a mesma qualidade de vida, a mesma que tinham, miserável, mesquinha,
infeliz, triste, mal humorada? É justo isso? É justo que o Senhor tenha
transformado água em vinho e não tenha transformado a vida de uma
pessoa para uma nova criatura?

Eu não aceito isso. Eu não aceito essa situação. A minha inteligência se


nega a aceitar essa situação. Mas foi o Senhor quem fez isso, eu sei que
o Senhor fez isso, mas, particularmente, o meu coração, diante do
conhecimento que nós temos da Tua palavra, da justiça de Deus... não
passa na minha cabeça uma coisa que... eu não aceito. É inaceitável que
Ele tenha transformado água em vinho e não tenha transformado a vida
das pessoas que têm crido nEle. Sejamos honestos... sim ou não?
Concordam comigo?

Então! É sobre isso que nós queremos que você entenda. Nós temos uma
proposta: Amanhã, às seis da tarde nós estaremos falando sobre isso.
Amanhã às seis da tarde nós vamos ter a Santa Ceia, a primeira Santa
Ceia do ano e nós estaremos fazendo uma proposta: A proposta de
transformação de vida. Não e nada com respeito a... Eu quero realizar meu
sonho de casamento, eu quero ganhar mais dinheiro, eu quero passar no
vestibular, eu quero isso, eu quero... Nada disso! Essa não é a proposta.
Isso nós não estaremos focando. Nós vamos focar a transformação total
da vida das pessoas que continuam, mesmo crendo em Deus, vivendo uma
vida desgraçada. Essa é a minha proposta. Então, eu estou convidando,
convocando todas as pessoas, todas as pessoas que me ouvem eu estou
convocando para que juntos nós venhamos fazer um desafio com Deus,
porque não é justo, não é aceitável que nós creiamos, aceitemos Jesus
transformando água em vinho e não transforme a vida das pessoas que
estão vivendo avida desgraçada.

3. Discussões e resultados parciais

A partir da análise do vídeo acima transcrito, os resultados obtidos até o


momento identificam 9 estratégias que servem para, ao mesmo tempo, desconstruir
a deidade de Cristo e construir a proposta messiânica de Edir Macedo:

3.1 Estratégia I: Criticar, minimizando, a importância e os efeitos do milagre

Macedo indefine tempo e espaço para o milagre de Jesus, informando,


somente, que foi operado em um dia de casamento, em uma festa restrita aos noivos
e seus convidados. Em seguida, quando relaciona o verbo transformar a operar
milagre, o faz de modo opositivo ao significado de milagre que vem construindo e

629
atribuindo a Cristo, levando à compreensão de que o milagre feito por Jesus tem
pouca importância, sugerindo tratar-se de “simples” modificação de água em vinho.

Apesar de não modificar a macronarrativa do evento bíblico, o bispo induz a


audiência à modificação da categoria do milagre, guiando a inferência de que o
vinho é uma substância capaz de levar os participantes da festa a nada além de um
estado de alegria, ou seja, embriaguez. Trata-se, portanto, de um milagre com
pouca importância, se comparado ao que ele próprio seria capaz de operar:

[...] Eu fiquei perguntando... meu Deus, o primeiro milagre que o Senhor


faz não é a cura de um enfermo, não é a libertação de um oprimido, não é
a salvação de um ser humano... o Senhor transformou água em vinho. E
essa água em vinho quê que fez? Alegrou apenas os convidados daquela
festa de casamento. Mais nada! Não fez mais nada! Ou fez?

3.2 Estratégia II: Lançar dúvidas sobre a extensão e o valor divino do milagre de
Cristo

Neste ponto, por mais uma vez, o pastor questiona o nível de importância do
milagre, envolvendo a plateia em um ambiente de mais dúvidas e introduzindo em
sua fala mais perguntas retóricas, que levam o público a ter a sensação de
participação em um diálogo ideologicamente convergente para os objetivos do
Bispo:

[...] E essa água em vinho, quê que fez? Alegrou apenas os convidados
daquela festa de casamento. Mais nada! Não fez mais nada! Ou fez?

Qual foi o benefício que a transformação de água para vinho trouxe para o
reino de Deus? Qual foi? Fala, pessoal! Houve algum benefício? Não! [...]

3.3 Estratégia III: Apontar a injustiça de Cristo

Para obter maior sucesso, Macedo repreende Cristo diante da igreja,


dialogando com Ele e questionando a Sua in-justiça; reforça que a transformação
feita por Jesus foi injusta por não beneficiar pessoas para o reino de Deus, em sua
totalidade, mas só um pequeno grupo. Dessa maneira, leva os fiéis a inferirem que
não vale à pena crer que o milagre de Jesus é suficiente para merecer crédito, já
que se restringe a poucos, de forma seletiva e injusta. Some-se a isso o fato de que,

630
segundo Edir, enquanto o Nazareno transforma água em vinho, existem pessoas
que se mantêm como estão, ou seja, com as vidas em ruina, apesar de crerem Nele:

[...]Aí eu fiquei pensando... meu Deus! É justo que o Senhor tenha


transformado água em vinho sem beneficiar qualquer pessoa para o reino
de Deus, enquanto há pessoas cujas vidas se mantêm como águas
poluídas, podres, na realidade, e que, apesar de crerem em Ti, ainda
continuam com a mesma qualidade de vida; a mesma que tinham;
miserável, mesquinha, infeliz, triste, mal humorada? É justo isso? É justo
que o Senhor tenha transformado água em vinho e não tenha transformado
a vida de uma pessoa para uma nova criatura?

3.4 Estratégia IV: Mostrar-se inconformado

Neste ponto, o líder da Universal se impõe com a autoridade de um justiceiro


ao defender os cristãos de um falso profeta, não aceitando “essa situação”:

[...] Eu não aceito isso. Eu não aceito essa situação. A minha inteligência
se nega a aceitar essa situação [...]

3.5 Estratégia V: Relevar, promovendo uma trégua

Com aparente ar de respeito (ou temor?), o locutor já não direciona sua fala
somente ao auditório (segunda pessoa), mas também a Jesus (terceira pessoa),
criando um momento de trégua, sobriedade e aparente submissão:

[...] Mas foi o Senhor quem fez isso, eu sei que o Senhor fez isso [...]

3.6 Estratégia VI: Colocar-se acima de Cristo, julgando Seus atos e


questionando a validade da Sua santidade diante da igreja

Prosseguindo, atrai para si a importância e o núcleo das atenções envolvidas,


invocando o conhecimento que tem sobre a palavra e a justiça de Deus para, de
acordo com seu entendimento, não aceitar o milagre, pois não transformou as vidas
dos crentes.

Edir Macedo se coloca acima de Deus, invocando a honestidade que atribui


ao público para persuadi-lo e atraí-lo para a legitimidade de seu discurso, ratificando
a ideia de que Deus, embora dotado de sublimes poderes, foi capaz de operar
somente um singelo milagre:

631
[...] mas, particularmente, o meu coração, diante do conhecimento que nós
temos da Tua palavra, da justiça de Deus... não passa na minha cabeça
uma coisa que... eu não aceito. É inaceitável que Ele tenha transformado
água em vinho e não tenha transformado a vida das pessoas que têm crido
nEle. Sejamos honestos... sim ou não? Concordam comigo?

3.7 Estratégia VII: Apresentar sua proposta de transformação de vida, sem fazer
menção a Jesus

O presidente da IURD apresenta, na sequência, proposta de transformação


de vida para as seis da tarde do dia seguinte, quando será realizada na igreja
uma das representações mais significativas para o mundo cristão. Na
oportunidade, enfatiza que se trata da primeira Santa Ceia 229 do ano. Neste
momento, não faz mais menção a Jesus:

Então! É sobre isso que nós queremos que você entenda[...] Nós temos
uma proposta: Amanhã, às seis da tarde nós estaremos falando sobre isso.
Amanhã às seis da tarde nós vamos ter a Santa Ceia, a primeira Santa
Ceia do ano e nós estaremos fazendo uma proposta: A proposta de
transformação de vida [...]

3.8 Estratégia VIII: Enfatizar que sua proposta não é a de uma simples mudança,
mas sim a transformação total da vida das pessoas

Prosseguindo para o desfecho de sua construção discursiva acerca da


transformação de vidas, inicia com uma negação sobre os possíveis tipos de
transformação que podem fazer parte do que esperam os fiéis e que não serão
promovidos. Para tanto, utiliza ludicamente a primeira pessoa do singular para
identificar a segunda pessoa, que no caso, é a plateia. Informa novamente que a
proposta não é a de uma simples mudança, mas sim a transformação total da vida
das pessoas que continuam vivendo na desgraça, apesar de crerem em Deus.
Nesse momento, Macedo usa a palavra Deus (já desacreditado) em oposição ao
Nós (o Macedo Messias), que ganha reforço no Minha, antecedendo proposta.

229A Santa Ceia é uma das reuniões mais aguardadas e significativas para os frequentadores de igrejas cristãs,
dado o seu simbolismo. No caso da Igreja Universal, é onde ocorrem as maiores frequências dos fiéis. Trata-
se de um evento grandioso e aguardado por todos.

632
Após a desconstrução da figura de Jesus, usa a primeira pessoa do singular
para convidar e convocar (repetindo as palavras convocando e todas) o auditório
a, juntamente com ele, desafiarem Deus a retificar o Seu milagre, transformando a
vida dos que se fizerem presentes na reunião da Santa Ceia:

[...] Nós vamos focar a transformação total da vida das pessoas que
continuam, mesmo crendo em Deus230, vivendo uma vida desgraçada.
Essa é a minha proposta[...]

3.9 Estratégia IX: Deixar evidente aos que o ouvem o poder que tem, já que não
só é capaz de questionar Jesus, mas também de repreendê-lo, pôr em
dúvida a Sua justiça, desafiá-lo e submete-lo às suas determinações

O orador, aqui, deixa claro aos que o ouvem o seu poder divino, já que
questiona Jesus, O repreende, põe em dúvida a Sua justiça, O desafia e, finalmente,
O submete às suas determinações:

[...] Então, eu estou convidando, convocando todas as pessoas, todas as


pessoas que me ouvem eu estou convocando para que juntos nós
venhamos fazer um desafio com Deus, porque não é justo, não é
aceitável que nós creiamos, aceitemos Jesus transformando água em
vinho e não transforme a vida das pessoas que estão vivendo a vida
desgraçada.

Dessa forma, conclui-se que a ideologia iurdiana se manifesta de forma


eficiente através de diversas mídias, onde se incluem os vídeos que reproduzem os
cultos da igreja (na internet), auxiliando na orientação da mente dos fiéis rumo à
realização pessoal e à sensação de felicidade através da aceitação de um novo
Messias e da transformação de vidas.

Considerações finais

Até o momento, os resultados obtidos indicam que o Bispo Macedo/IURD


difunde o seu discurso através de um forte aparato midiático que contribui para a
associação da própria imagem à imagem do messias contemporâneo,

230Agora, Macedo usa a palavra Deus (já desacreditado) em oposição ao Nós (o Macedo Messias), que ganha
reforço no Minha, antecedendo proposta.

633
desconstruindo a deidade de Jesus Cristo. Com isso, legitima o discurso da fé, que
orienta a conversão das massas e transforma vidas.

Referências

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WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo: Centauro, 2002.

634
O ENSINO DE LEITURA LITERÁRIA E A DEMOCRATIZAÇÃO
DA ESCOLA PÚBLICA

Maria de Fátima Xavier da Anunciação de Almeida231

Introdução

Neste trabalho, apresentamos alguns pontos de reflexão que estamos


realizando numa pesquisa em andamento, na qual buscamos conhecer alguns
saberes que os egressos do Curso de Letras de uma Universidade pública de Mato
Grosso do Sul trazem em suas vozes com relação ao ensino de leitura literária,
voltada à educação básica, para, assim, verificar e compreender quais os saberes
foram, efetivamente, apreendidos por 13 professores recém-formados em 2013.
Nesse sentido, trazemos uma perspectiva histórica sobre o ensino de leitura
literária, que se configura por meio da literatura infanto-juvenil, dos anos finais do
ensino fundamental e do ensino médio, ofertado pela escola brasileira, mediado
pelo/a professor/a de língua e de literatura, para compreendermos a importância
desse ensino no país. Para tanto, vamos relacioná-la, primeiramente, à denominada
“crise” desse ensino, por conseguinte, à democratização da escola pública, e às
transformações ocorridas a partir do século XX nas Ciências da Linguagem e
Humanas e assim, demostrar o seu caráter humanizador e valor estético.
Esclarecemos que o ensino de leitura literária é neste texto entendido como
aquele que diz respeito ao ensino de leitura do texto literário (LAJOLO, 1994;
PAULINO, 2015[2005]; COLOMBER, 2007[2005]; REZENDE, 2013), aquele
ensinado na escola regular por um professor de Português. Optamos pelo referido
termo para delimitá-lo e diferenciá-lo do ensino de leitura de modo geral, já que nos
anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, no Brasil, as práticas
pedagógicas de língua materna centram-se em atividades que envolvem o texto
(diversos gêneros discursivos e tipos) em suas faces de leitura e de produção de
sentidos.

231
UFMS/UPM

635
A “crise” do ensino de leitura e de literatura: em busca de respostas
possíveis

O discurso da “crise da leitura” e do ensino de literatura, pós-68, na Europa,


principalmente na França, pode ser compreendido como a crise de um paradigma
de conhecimento, logo, de visão de mundo em mudança. É a desvalorização da arte
pela ciência. A arte da palavra, a literatura, vai perdendo o lugar de alavanca dos
grupos sociais de prestígio, que estão no poder, dentro de um contexto capitalista,
que não atribui o mesmo valor ao conhecimento literário. Não há mais a
preocupação de formação literária para galgar o status social. Questiona-se a
função da literatura dentro das Universidades europeias, logo, para que ensinar
literatura na escola, nas modalidades de educação: ensino fundamental, médio e
superior? Na pauta, estava a crítica à sacralização da literatura e dos considerados
clássicos, era uma crítica social e política, própria do momento, para questionar a
“Academia”.
Essas transformações das concepções de conhecimento e de literatura no
contexto francês vão influenciar alguns dos intelectuais e dos professores
universitários brasileiros, principalmente, da USP e da Unicamp, instituições que
formaram muitos docentes em nível de Pós-graduação na área da linguagem,
incluindo os estudos linguísticos e literários, cuja influência será marcante no pensar
o ensino da leitura e da literatura no país, já que as produções acadêmicas
(pesquisa, livros, artigos) e a abertura de espaços de discussão e reflexão do ensino
de língua materna e da leitura acontecem além de outros centros acadêmicos do
país, na USP, com a criação da Associação de Professores de Língua e Literatura
(1975) e com a criação do primeiro Congresso de Leitura do Brasil – Cole, na década
de 1980, na Unicamp.
Diante desse contexto, vimos que, nas décadas de 1970 aos anos 2000,
alguns pesquisadores e professores especialistas, como Rocco (1981), Leite (1983),
Lajolo (1994[1983]), Zilberman 1988[1982]), Geraldi (2004[1982]), Soares
(2005[1986]), Perrotti (1990) e Cosson (2012 [2006]), dentre outros, vão discutir e
refletir a respeito da crise do ensino de língua e de literatura no país.

636
Os especialistas citados analisam cada um a seu modo o que compreendem
pela “crise” do ensino de língua e de literatura. Por meio dessas análises, podemos
compreendê-la como: (i) uma transformação sócio-cultural, em que novos
paradigmas surgem, voltados à construção do conhecimento científico nas áreas
das ciências da linguagem e das ciências humanas, interferindo na forma de
conceber o ensino da leitura/literatura e o ensino de língua portuguesa no Brasil; (ii)
um efeito da aceleração do processo de democratização da educação às camadas
populares no país; (iii) resultado da transformação dos valores culturais atribuídos à
leitura literária por um novo público (leitor), que entra para a escola pública; (iv)
consequência das condições materiais de acesso à obra literária. Neste caso,
principalmente alunos da escola básica das classes populares não tiveram acesso
à leitura literária pela condição socioeconômica em que se encontravam.

A “crise” do ensino de língua e de leitura literária frente ao processo de


democratização da escola pública

Distante do tempo sócio-histórico dos pontos de reflexões dos especialistas,


anteriormente apresentados, e do que poderia ser a “crise” do ensino de língua e de
literatura, compreendemos, inspirados pelo pensamento de Soares (2005[1986]) em
seu livro Linguagem e escola: uma perspectiva social, que:
O processo de democratização do ensino, resposta às reivindicações das
camadas populares por mais amplas oportunidades educacionais,
concretizou-se em crescimento quantitativo e diversificação do alunado. A
escola, que até então se destinava apenas às camadas socialmente mais
favorecidas, foi, dessa forma, conquistada pelas camadas populares. Ora,
exatamente, porque, historicamente, sua destinação eram as classes
favorecidas, a escola sempre privilegiou – e, a despeito da democratização
do ensino, continua a privilegiar – a cultura e a linguagem dessas classes,
que [...] são diferentes da cultura e da linguagem das classes
desfavorecidas. Não se tendo reformulado para seus novos objetivos e sua
nova função, a escola é que vem gerando o conflito, a crise, que é resultado
de transformações quantitativas – maior número de alunos – e, sobretudo,
qualitativas – distância cultural e lingüística entre os alunos a que ela
tradicionalmente vinha servindo e os novos alunos que conquistaram o
direito de também serem por ela servidos. (SOARES, 2005[1986], p. 68-
69)

Assim, o discurso acerca da crise do ensino de língua, de leitura de modo


geral, e da leitura de literatura, dos anos 80, inicia-se no país, justamente quando

637
as classes populares, também, começam a ter acesso à escola pública, quando se
acelera o processo de democratização da educação.
Desse modo, constatamos que, na verdade, não se trata de uma crise do
ensino de língua e de literatura, mas de uma transformação dos valores
culturais/ideológicos, antes de um grupo dominante, agora em redimensionamento,
já que destinado a um novo público, o qual não frequentava a escola pública. Outra
explicação é a transformação dos paradigmas inerentes à construção do
conhecimento científico nas áreas das Ciências da Linguagem (concepções de
língua, leitura e de literatura) e nas Ciências Humanas e Sociais (concepções de
educação, homem e de sociedade) que vão interferir no modo de pensar o ensino
de língua e de literatura no Brasil.
Ao revisitarmos partes da história da “produção da escola pública” no país e
os novos paradigmas das Ciências da Linguagem e das Ciências Humanas e
Sociais, podemos confirmar a tese exposta.
Encontramos um dos marcos de luta, que deu início à proposição de
democratização da escola pública, no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
cujas reivindicações configuravam-se na busca de uma escola laica, gratuita e para
todos e, representou um evento fundador do discurso de democratização do ensino,
no país, a partir do ano de 1932.
O Manifesto e suas proposições trazem novos ideais à educação brasileira,
luta-se por uma escola pública, questiona-se a educação tradicional, no lugar desta
se propõe uma “Escola Nova”. Nessa expressão, conforme Vidal (2013, p. 582),
estavam diferentes métodos como centros de interesse, métodos de projetos,
sistema platoon ou qualquer outra proposta educativa que se associasse ao
interesse e à experiência da criança, bem como à sua participação ativa na
construção do conhecimento. “Sob o signo do novo, a fórmula capitalizava o anseio
de rompimento com as práticas sociais, políticas e educacionais instaladas até
então na República, ancorando-se em um desejo disseminado de mudança.”
(VIDAL, 2013, p. 582)
Diante das mudanças política, ideológica e pedagógica que se propunham a
partir das manifestações dos Pioneiros da Educação, em 1932, inicia-se no Brasil

638
uma lenta conquista do povo ao acesso à escola pública, para ter o direito à
cidadania, à alfabetização, à leitura, também, da literatura.
Bittar e Bittar (2012, p. 163), em análises a respeito da consolidação da
escola pública brasileira a partir de 1930 aos anos 2000, apresentam-nos que houve
expansão física dela, no período de 1964-1985 (Ditatura Militar), todavia, essa
escola é “Sem dúvidas, das crianças das camadas populares; a escola em que
funcionava o turno intermediário, com pouco mais de três horas de permanência na
sala de aula, mal aparelhada, mal mobiliada, sem biblioteca, precariamente
construída [...]”. Diferente de uma escola anterior à década de 1930, que era
destinada, principalmente, à elite e que, portanto, funcionava em diferentes
condições.
Com a Constituição brasileira de 1988, a educação se torna “direito público
subjetivo” de todo cidadão, um passo importante para consolidar a democratização
da escola pública no país. A partir dessa época, vamos acompanhar a crescente
oferta de vagas, nessa escola, a crianças, a jovens e a adultos analfabetos.
Em 2008, 97,9% de crianças de 7 a 14 anos estavam frequentando a escola,
segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD),
todavia, até hoje, não atingimos a universalização do direito à alfabetização, pois
ainda temos que considerar o alto índice de alfabetismo funcional existente no país.
Apesar da expansão quantitativa de vagas, atualmente, discute-se no Brasil, a
qualidade dessa educação ofertada a tantos brasileiros.
Diante do exposto, não há como negar que a escola pública brasileira é
popular, pois se destina à maioria da população. Já a escola particular, esta está
destinada a outra clientela, que pode pagar por sua educação.
A mudança de perfil de leitor-aluno das classes populares vai influenciar no
gosto ou não pela leitura do texto literário, porque esse público pode atribuir valores
diferentes ao que é literatura, ao que é a leitura literária. Ele deverá aprender a
valorizá-las. E a escola é um dos principais lugares onde se dá o acesso à leitura
do texto literário a esse leitor.

639
A “crise” no ensino de leitura literária e no ensino de linguagem na escola: as
transformações dos paradigmas de conhecimentos

Outra explicação para o discurso da “crise” do ensino de leitura, incluindo a


da leitura do texto literário e da “crise” do ensino linguagem na escola, são as
mudanças dos paradigmas de conhecimento ocorridas, particularmente, nas áreas
das Ciências da Linguagem, Teoria da Literatura e das Ciências Humanas, que vão
favorecer a crítica a esse ensino por alguns intelectuais brasileiros, a partir da
década de 1970.
O livro O texto na sala de aula, organizado pelo prof. Wanderley Geraldi, da
Universidade Estadual de Campinas, nos anos de 1980, é uma das obras para
verificarmos o início das mudanças nas concepções de língua e de literatura no país
e a proposição de novos paradigmas para repensar esse ensino. Na referida obra,
encontramos a crítica ao ensino de língua e de literatura tradicional e ainda às novas
correntes de pensamento acerca desse ensino. Ela apresenta artigos do próprio
organizador, de Milton José de Almeida, Lígia Chiappini de Moraes Leite, Haquira
Osakabe, Sírio Possenti, Lilian Lopes Martin da Silva, Maria Nilma Goes da Fonseca
e de Luiz Percival Leme Britto.
Por meio das reflexões dos autores citados, vimos as principais mudanças
trazidas pelas ideias expostas na área de língua e de literatura, seja pelo ensino da
leitura literária, seja na produção de texto. O texto na sala de aula, por meio de seus
autores, aponta os problemas teórico-metodológicos do ensino de língua e de
literatura na escola básica brasileira, principalmente nos textos de Geraldi
(2004[1982]), podemos encontrar o desenho de uma pedagogia da leitura literária
voltada a alunos da 5ª a 8ª séries. Contudo, naquele contexto, início dos anos 80, a
crítica ao modo como a escola ensinava a língua e a literatura traria mais eco caso
atentasse para a mudança do público leitor-aluno e a do leitor-formador (professor
de Português), especialmente da escola pública.
Isso posto, tratemos de algumas transformações advindas da Teoria da
Literatura que, também influenciaram no modo como os especialistas da área do
ensino de língua e de literatura conceberam - e concebem - o que é leitura e

640
literatura no país e o fato de, por meio dessas transformações, fazerem a crítica a
esse ensino a partir do final da década de 1970.
No final do século XIX e início do século XX, nos estudos da literatura, tem
início, segundo Souza (2011, p. 36)

[...] a crise das linhas-mestras do pensamento filosófico e científico


marcantes do século XIX, o historicismo – atitude que vê na história,
entendida como evolução contínua e linear, a instância decisiva para a
explicação tanto da natureza quanto da sociedade – e positivismo – atitude
que faz a apologia da ciência, entendida como um conhecimento neutro e
objetivo, cujo critério de validade é a adequação aos fatos observáveis.
(Grifos do autor)

Surgem, então, novas correntes de investigações que questionam o


historicismo e o positivismo nesses estudos. O que se pretende, para o mesmo
autor, diferentemente da perspectiva do século XIX [modelos biográfico-psicológico;
sociológico e filológico].

Alerta-nos Souza (2011) que são inúmeras as correntes contemporâneas de


investigação da literatura, empenhadas em controvérsias relativas a métodos e
conceitos que seria mais adequado tratar de teorias da literatura no plural. “No
entanto, cedendo ao costume, admitamos que há só uma teoria da literatura,
subdividida em inúmeros orientações frequentemente antagônicas as quais
estamos chamando de ‘correntes” (SOUZA, 2011, p. 58).

As correntes identificadas pelo autor são: as textualistas, as fenomenológicas


e as sociológicas. As textualistas privilegiam as análises do texto, propondo-se à
consideração imanente da literatura. São representantes dessa linha a estilística, o
formalismo eslavo, a escola morfológica alemã, o new criticismo, o estruturalismo e
a poética gerativa. No grupo das fenomenológicas, que giram em torno da filosofia
fenomenológica, por influência, principalmente do filósofo Martin Heidegger, temos
a teoria fenomenológica dos estratos, a escola de Zurique e a crítica ontológica-
hermenêutica. Nas sociológicas, em que predominam as preocupações ético-
políticas, estão a crítica existencialista, a crítica marxista, a crítica sociológica e a
estética da recepção. Resumidamente, por meio das palavras de Eagleton (1997, p.
102), a história da teoria da literatura teve três fases: “[...] uma preocupação com o

641
autor (romantismo e séc. XIX); uma preocupação exclusiva com o texto (Nova
Crítica) e uma acentuada transferência de atenção para o leitor [...]”.
Numa perspectiva sociológica, para pensar o valor humanizador e estético
da leitura literária, lançamos mão do pensamento de Candido (1995) e de Jauss
(2002) por meio dos pressupostos da estética da recepção. Humanização em
Candido (1995) é
[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos e
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura
desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna
mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante
(CANDIDO, 1995, p. 249).

A natureza estética supera a dicotomia que se estabelece ao ler um texto


literário: o trabalho e o prazer, pois segundo Jauss (2002)
[...] por um lado, prazer e trabalho formam, de fato, uma velha oposição,
atribuída desde a Antigüidade ao conceito de experiência estética. À
medida que o prazer estético se libera da obrigação prática do trabalho e
das necessidades naturais do cotidiano, funda uma função social que
sempre caracterizou a experiência estética. Por outro lado, a experiência
estética não era, desde o princípio, oposta ao conhecimento e à ação
(JAUSS, 2002, p. 95).

Desse modo, o para quê ensinar a leitura literária na escola atual passa pela
oportunidade de os alunos lerem, pelo conhecimento e pelo prazer, para se
constituírem em seres humanos mais reflexivos e críticos, sensíveis às causas da
natureza, da sociedade e do outro.

Considerações finais

Finalizamos o nosso texto reforçando a defesa para explicar o que poderia


ser a “crise” do ensino de leitura literária e da língua na escola brasileira: as
transformações dos paradigmas de conhecimento das áreas das Ciências Humanas
(Linguística e áreas correlatas, Teorias de Educação e Teoria da Literatura)
interferiram no modo como os críticos analisaram esse ensino. Não podemos
desconsiderar, também, o momento histórico-social e econômico em que
aconteceram essas críticas: a partir do final dos anos de 1970, prosseguindo nos

642
anos de 1980, de 1990 até os anos 2000. Mas o que fazer com a crítica ao ensino
da leitura literária na escola brasileira? A utopia de uma escola pública de qualidade
e de um ensino de língua e de literatura como direito é mais forte. É possível
transformar a crítica em propostas para a mudança dessa realidade tão complexa,
como já fizeram tantos especialistas, como Geraldi (2004); Bordini e Aguiar (1988);
Cosson (2012); Soares (2005); Mortatti (2014); Zilberman (1988); Lajolo (1988;
1994), dentre outros importantes pensadores.

Todavia, sabemos que o modo de produção capitalista e a influência de um


pequeno grupo, no poder, ditam prescrições, que são políticas, para a organização
do ensino de leitura literária, fato este que interfere diretamente no trabalho do
docente de língua e literatura na escola de educação básica no país. Esse
profissional não é totalmente autônomo diante dessas coerções sociais e
ideológicas, que são postas em diferentes contextos históricos do país.

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ZILBERMAN, Regina (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do
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645
LUSOFONIA E OBRIGATORIEDADE DO ENSINO DA HISTÓRIA DA
CULTURA AFROBRASILEIRA (LEI 11.645)

Maria do Rosário Abreu e Sousa 232

Introdução

Por ter a língua um papel simbólico e político, o conceito de lusofonia vem


sendo questionado. Tal qual a anglofonia, a francofonia e a hispanofonia, cujos
radicais remetem à Inglaterra à França e à Espanha, a lusofonia remete a luso,
lusitano, ou seja, relativo a Portugal. Mais, remete aos impérios coloniais desses
países, vigentes até a segunda metade do século XX e consequentemente ao
eurocentrismo.
Contudo, ideologias eurocêntricas foram sendo desconstruídas ao longo do
tempo, e no caso do Brasil, logo após a independência iniciou-se a discussão acerca
da identidade da língua falada no Brasil. Brotaram duas vertentes opostas: a
primeira, de caráter lusitanizante e a segunda, que enfatizava as diferenças entre a
língua falada no Brasil e a falada em Portugal.
Essa oposição expressar-se-ia entre outros, através das críticas ao escritor
José de Alencar
acusado pelos defensores do purismo lusitano de pouco vernáculo, pois seu texto
estaria inçado de americanismos ou brasileirismos. Nessa época chamavam-se
de americanismos ou brasileirismos particularidades lexicais ou gramaticais da
língua portuguesa falada no Brasil. O termo tinha forte conteúdo pejorativo [...]
Alencar não poderia nunca admitir que a literatura brasileira reproduzisse os
cânones linguísticos portugueses. Deveria ela incorporar a variante linguística
que se falava agora no país independente. A independência linguística dos
padrões portugueses era tão importante quanto a independência política. Esta
proposta está na base da longa tradição de discussões sobre o estatuto da língua
nacional que perpassa todo o século XlX e chega até o modernismo. (
FIORIN,2010, p.28-29).
Nesse sentido, em carta endereçada a Guimarães Rosa em 11 de junho de
1946 (Arq. JGR- IEB/USP Cx4cp24), um leitor, ao comentar suas impressões de
leitura sobre o livro de estreia do escritor, Sagarana, lançado em 04 de abril de 1946,

232
Doutora em Letras\ Universidade de Ribeirão Preto

646
evidencia o papel simbólico e político da língua, e por tabela da literatura, como
constituintes de peso na construção da identidade nacional.

O meu desejo de levar-lhe pessoalmente um forte abraço pelo prazer que me deu
a leitura de “Sagarana”, não foi realizado ainda. O atraso atormenta-me
diariamente a culpa, embora involuntária, mas o abraço há de ser dado para
tranquilizar-me a consciência, e, estou certo, de que o meu amigo irá
compreender-me e desculpar-me. [...]. Acabo de ler a crítica do Eloy Pontes sobre
o seu livro, e tive o prazer de ver o autor de “Sagarana” julgado pelo nosso melhor
comentarista, que o classificou como um dos grandes escritores brasileiros que –
“... se contam pelos dedos e... ainda sobram dedos...” Mas há para mim no seu
livro um mérito que há dias fiz ressaltar em conversa com amigos – citei-o como
exemplo do que é nosso, como atestado inconfundível da nossa literatura
brasileira, do vocabulário brasileiro e de tudo quanto podemos oferecer para
provar que nos emancipamos há muito do português criando e usando um idioma
nosso. Sempre me insurgi contra a idéia da convenção esdrúxula que a nossa
Academia assinou com a de Portugal, no sentido de unificar a língua portuguesa.
Porque se, já nos afastamos em tudo e por tudo de nossos colonizadores,
superando-os até na linguagem? Por isso senti-me com a leitura de “Sagarana”
inteiramente num ambiente brasileiro, vivi nas suas páginas a vida simples do
Brasil com sua índole própria completamente afastado e divorciado de tudo
quanto cheira a estrangeiro. Muito bem disse Eloy Pontes, que um português ao
ler “Sagarana” muito vagamente o entenderia. É isso mesmo meu amigo, seu livro
é brasileiro puro, nada tem de reminiscência do velho Portugal. (Arq JGR-
IEB/USP Cx4cp24).

Se a política pombalina fez desaparecer do território brasileiro a língua geral,


mescla das línguas indígenas e portuguesa, conferindo à segunda, o estatuto de
língua oficial e materna, o mesmo não aconteceu com as ex-colônias africanas
onde as línguas nacionais têm forte presença e a língua portuguesa

tornou-se paradoxal. Abandonando a situação de língua de subjugação, o


português nascia como língua de unidade nacional cobrindo nações plurilíngues
e funcionando como bandeira: o português em Moçambique, do Rovuna ao
Maputo, em declaração de independência; o português de Guiné-Bissau
confrontando-se com o francês de países limítrofes; o português de Angola
permitindo o entendimento entre falantes de vivíssimas línguas nacionais; o
português em Cabo Verde e em São Tomé, a par de línguas crioulas cheias de
vigor, como veículo de comunicação com o exterior e sinal de diferença em
relação aos povos circundantes. Em África a língua portuguesa oficial é uma
opção política, uma atitude nacional e tem, no momento presente, uma estreita
ligação com a sobrevivência dos territórios como países independentes.
(MATEUS,M. 1999 p. 17).

Se o português é língua materna no Brasil (ressalvando-se os poucos


falantes de línguas indígenas ) e em Portugal, o mesmo não ocorre nos países
africanos de língua oficial portuguesa. Portanto, o espaço lusófono, plurilíngue e

647
multiétnico, justifica-se apenas se concebido como comunidade supranacional em
que não cabe ao aspecto linguístico

a responsabilidade de servir de denominador comum da lusofonia. Por isso é


imprescindível pensar-se em uma área cultural lusófona, considerando história,
mitos, ritos, costumes, valores... e todos os demais elementos que colaboram na
construção identitária de cada país onde também se fala o português [...] A
lusofonia e a comunidade lusófona só farão sentido quando de lado a lado se
respeitarem (e para respeitar é preciso conhecer) as experiências, os valores
particulares, a especificidade cultural , o modo próprio de experenciar a realidade
e a visão de mundo que cada comunidade vem fixando na sua norma do
português – é essa a perspectiva a adotar para o entendimento da construção de
uma possível identidade lusófona. (BASTOS; BRITO, 2006 p.74-75).

Nesse sentido, em entrevista publicada na Revista Língua em julho de 2012,


perguntado sobre o intercâmbio cultural entre o Brasil e os países africanos de fala
portuguesa, o escritor angolano Pepetela assinala o crescimento do intercâmbio
comercial. O mesmo não aconteceu no âmbito cultural - teatro, cinema, literatura e
música -, embora há alguns anos atrás houvesse convívio maior com Chico
Buarque, Gilberto Gil e Djavan, com destaque a Martinho da Vila, ainda hoje
bastante conhecido em Angola.
Pepetela assinalou também o forte impacto da presença das redes brasileiras
de televisão (Globo, Record e Bandeirantes) cuja consequência mais visível talvez
seja o crescimento do Brasil no imaginário angolano. Alimentada pelas telenovelas,
a visão positiva do Brasil e dos brasileiros, faz com que angolanos queiram
conhecer o Brasil. A relação é, portanto, desequilibrada, uma vez que existe muito
mais angolano interessado no Brasil do que o inverso. Agora talvez comecem a
saber mais, porque passou a ser obrigatório estudar a África nas escolas brasileiras
(PEPETELA, 2012 p. 12-13).

Promulgada em 10 de março de 2008, a Lei 11.645 altera a Lei 9.394 de 20


de dezembro de 1996 modificada pela Lei 0.639 de 9 de janeiro de 2003, tornando
obrigatório o ensino da “História da Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nos currículos
do Ensino Fundamental e Médio das redes pública e particular do Brasil. Em seus
artigos a Lei estabelece que o conteúdo programático

648
Incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir do estudo desses dois grupos
étnicos, como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira
e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história
do Brasil.
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
acesso em 06/102012)

A fim de suprir a deficiência de formação do professorado brasileiro nesses


conteúdos, as editoras veem publicando inúmeros títulos – principalmente de livros
paradidáticos direcionados ao público infanto-juvenil - , cuja temática é o continente
africano.

Assim, o objetivo deste artigo é discutir catálogos impressos de livros


paradidáticos direcionados ao público infanto-juvenil a fim de averiguar em que
medida a lei 11.645 efetivamente está proporcionando uma abertura para que a
comunidade lusófona brasileira e africana se (re)conheça.

Direcionados principalmente ao público adulto, potenciais compradores de


livros infanto-juvenis, ao circularem no ambiente escolar os catálogos cumprem o
papel de auxiliar professores na indicação de livros a serem adquiridos por alunos
ou para compor bibliotecas escolares. Mais, ajudam educadores a selecionar livros
cujos conteúdos estejam de acordo com a legislação, como por exemplo os
Parâmetros Curriculares Nacionais ou a Lei 11.645.

Esta pesquisa analisou catálogos impressos do ano de 2012 de livros


paradidáticos direcionados ao público infantil e juvenil de nove grandes editoras. A
tabela abaixo mostra na primeira coluna o total de títulos de cada editora, a segunda
coluna recorta daquele total os títulos cuja temática é o continente africano e na
terceira coluna elenca o número de títulos de temática africana que tratam da
lusofonia.

Tabela 1

649
Editora Número Número Número de títulos
de de títulos sobre países
títulos com temática africanos
africana lusófonos
Brasil 235 2 1
Cia das Letrinhas 467 17 0
FTD 571 9 2
Global 425 1 0
Larousse Jr 209 4 2
Melhoramentos 281 5 0
Moderna 571 8 2
Paulinas 394 6 1
Saraiva 313 4 0

Se a temática africana comparece em todas as editoras – até por força da lei


11.645 -, totalizando o número de 56 títulos, o mesmo não ocorre quando se divide
este grupo – temas africanos – no subgrupo países africanos de língua oficial
portuguesa: apenas 6 títulos. Tal fato parece apontar para o desconhecimento do
conceito de lusofonia, ou em conhecendo-o, à pouca importância atribuída a ele
pelos editores ou ainda a um certo desconforto que este termo possa causar por
remeter ao antigo império português e ao eurocentrismo.

TABELA 2
TÍTULO AUTOR ILUSTRADOR EDITORA
África Eterna Rui de Oliveira Rui de Oliveira FTD
Rogério
Em Angola tem? No
Andrade Jô Oliveira FTD
Brasil também!
Barbosa
Rogério
Não chore ainda não Andrade Ciça Fittipaldi Larousse Jr
Barbosa

650
Moderna
Moçambique Júlio Emílio Braz Cárcamo

Avelino Guedes e
Bia na África Ricardo Dreguer Moderna
Rogério Borges

Karingana Wa
Karingana:histórias que Rogério A.
Maurício Veneza Paulinas
me contaram em Barbosa
Moçambique

Nesse sentido é interessante observar que a palavra “lusofonia” não aparece


em nenhum dos resumos dos títulos da tabela acima, e quando se quer destacar o
fato de ser a língua portuguesa um elemento de identificação entre o Brasil e
determinados países africanos, recorre-se a expressões como “ o idioma português
na África” (Catálogo FTD 2012 p.24); “a África que fala português [...] os países
africanos que partilham conosco o idioma” (Catálogo Moderna, p.23).
Cabe aqui um parênteses para assinalar que a palavra “lusofonia” foi
encontrada uma única vez no resumo do livro Quem tem boca vai ao Timor! Uma
aventura pelo mundo da língua portuguesa, de autoria de Beto Junqueira.

Beto e Carminha são primos que moram muito longe um do outro – ele no Brasil,
ela em Portugal. Ambos falam o mesmo idioma, mas vivem se provocando por
conta das diferenças entre as variantes europeia e brasileira da Língua
Portuguesa. Em uma emocionante viagem pelos países que falam português,
esses dois lelés da cuca, ou giras, irão protagonizar uma narrativa que é bué da
fixe, ou seja, muito legal! Os leitores se divertirão com as pistas e brincadeiras do
livro, além de aprender um pouco mais sobre a lusofonia e o principal elemento
que nos une a tantos outros países no mundo: o idioma português (CATÁLOGO
Editora Brasil 2012, p.10).

Diferentemente dos títulos expressos na tabela 2 - diretamente relacionados


à lei 11.645 - em que a língua portuguesa desempenha um papel secundário, uma
vez que ela é apenas o instrumento através do qual aspectos do continente africano
serão abordados, o subtítulo – “Uma aventura pelo mundo da língua portuguesa”
– parece indicar que o protagonismo é da língua portuguesa e suas variantes mundo
afora, sendo o Timor Leste um dos muitos países que falam português por onde os
personagens viajarão. Aqui, a palavra “lusofonia” parece não remeter

651
exclusivamente a Portugal ou valorizar aspectos lusitanizantes da língua, haja vista
o destaque dado a expressões como “lelé da cuca”, “gira” e “ bué da fixe”.
Voltando para o subgrupo dos títulos cuja temática são os países africanos
de língua oficial portuguesa, verifica-se que apenas dois livros trazem no título o
nome dos países: Em Angola tem? No Brasil também! (CATÁLOGO Editora FTD
2012 p.134) e Moçambique (CATÁLOGO Editora Moderna, 2012 p. 23
No resumo do livro Em Angola tem? No Brasil também! (Catálogo Editora
FTD 2012, p. 134) não é mencionado o fato de que em Angola também se fala
português. Contudo, isto fica implícito por conta do gênero epistolar, escolhido pelo
autor para informar sobre as trocas culturais entre os dois países.
Aqui, o pacto epistolar que consiste em ler e responder a carta, pressupondo
pois uma troca, dialoga perfeitamente com o tema do livro que são as trocas
culturais entre Brasil e Angola, com destaque para a religiões afro-brasileiras, ainda
hoje alvo de preconceitos.
Nesse sentido, é importante observar que além da língua, outro legado
cultural europeu importante, a religião cristã, também aparece de modo indireto: é
no natal, que os dois personagens trocam presentes, não sem motivo, camisas das
seleções de futebol de Angola e do Brasil. Tal desfecho faz lembrar o final do filme
Entre os muros da escola de autoria de Laurent Cantet, em que o choque entre as
culturas francesa, e de suas ex-colônias, parece ter sido amortizada, quando no
final, todos, professores franceses e alunos oriundos das ex-colônias, jogam uma
animada pelada.
O segundo livro cujo título nomeia o país é Moçambique (Catálogo Editora
Moderna, 2012 p.23), que, ao contrário do anterior, menciona o fato de no país se
falar português, sugerindo que talvez esse dado possa não ser conhecido pelo leitor.
Justifica também a escolha do país pelo fato de ele não ser banhado pelo oceano
Atlântico, o que em princípio dificultaria o intercâmbio cultural com o Brasil.
Moçambique também é contemplado com outro título que se debruça
exclusivamente sobre o país: Karingana Wa Karingana (CATÁLOGO Edições
Paulinas, 2012 p.8). Trata-se de dois contos cuja recolha aconteceu nas escolas
moçambicanas, e cujo relato oral partiu das próprias crianças.

652
Tal contexto permite ao leitor do resumo supor que os contos foram relatados
em português. Contudo, ao escolher uma das muitas línguas moçambicanas -
possivelmente uma língua materna -, para dar título ao livro, o autor parece sinalizar
para o futuro leitor do livro, a importância das línguas autóctones, cujo peso na
construção da identidade cultural moçambicana, não pode ser menosprezado.
Embora não trate exclusivamente de Angola, uma vez que a personagem
principal viaja também pelo Egito e pelo Quênia, o livro Bia na África (CATÁLOGO
Editora Moderna p. 41), da série Viagens de Bia, enfatiza os fortes laços culturais
que unem os dois países. Embora o resumo não mencione que em Angola também
se fala português, o fato de a personagem central morar um ano nesse país, ao
contrário do Egito e do Quênia, onde a protagonista parece ter feito apenas viagens
de recreio, apontam para importância dos laços culturais Brasil- Angola, que
ombreariam a grandiosidade da civilização egípcia e a exuberância da flora e fauna
quenianas.
BIA NA ÁFRICA
Série viagens de Bia
Um passeio pelo Egito: pirâmides, múmias e influência árabe
Um passeio pelo Quênia: conhecendo um lugar muito especial
Morando um ano em Angola: origens e costumes de nossos antepassados, que
vieram como escravos para o Brasil. (CATÁLOGO Editora Moderna p. 41).

A Guiné-Bissau é o terceiro país a ter um livro dedicado exclusivamente a


ele, e novamente não se menciona o fato de ser a língua portuguesa falada no país,
mas destaca-se a presença de vocabulário autóctone.
Não chore ainda não é um bonito conto de amor e esperança. A história revela
aspectos da cultura africana e traz algumas palavras do vocabulário da região.
(CATÁLOGO Editora Larousse Jr, 2012 p.40 ).

Verificou-se até aqui que foram dedicados dois livros a Angola, outros dois
para Moçambique e um para a Guiné-Bissau. Ficam faltando portanto Cabo Verde
e São Tomé e Príncipe, que, possivelmente apareçam em passant no livro África
eterna cujo objetivo é proporcionar “um panorama do continente africano: as
regiões; as florestas e a fauna; os aspectos humanos econômicos e culturais; o
idioma português na África e o legado da África no Brasil” (CATÁLOGO Editora FTD,
2012 p. 24).

653
É preciso remarcar que o professor que quiser trabalhar com livros
paradidáticos cujo tema são os países africanos de língua oficial portuguesa, nem
sempre poderá guiar-se pelos resumos dos livros publicados nos catálogos. Este é
o caso de pelo menos dois livros, um de Ruth Rocha e outro de Rogério Barbosa
Andrade cujos títulos ... Que eu vou para Angola... e outras histórias e Histórias que
nos contaram em Luanda indicam que o conteúdo dos mesmos é o país africano.
Mas, após a leitura dos resumos, fica a dúvida se realmente os livros são sobre
Angola, uma vez que nos resumos, ao contrário dos títulos, não há nenhuma
referência ao país, apenas ao enredo das narrativas.
Um dos aspectos que mais chamam a atenção nos catálogos é o destaque
dado `a competência dos autores. Dos seis títulos cuja temática são os países
africanos de língua oficial portuguesa, quatro destacam esse aspecto.
África eterna apresenta um panorama do continente africano [...] Fruto de
minuciosa pesquisa e cotejamento de fontes, por vezes divergentes, a obra
mostra a diversidade do continente, contrapondo-as a visões simplistas e
estereotipadas. (CATÁLOGO Editora FTD, 2012 p. 24).
Rogério Barbosa, especialista em literatura africana, traz aos leitores uma lenda
originária da Guiné-Bissau. (CATÁLOGO Editora Larousse Jr, 2012 p.40)
Moçambique fez parte durante muito tempo de um dos maiores interesses de
Júlio Emílio Braz: a África como um todo e a África que fala português, em
particular. (CATÁLOGO Editora Moderna, 2012 p. 23).
Estudioso da literatura oral de vários povos do continente africano, Rogério
apresenta dois contos recolhidos do relato oral de crianças moçambicanas na
escola. (CATÁLOGO Edições Paulinas, 2012 p.8)

Tal força dada à competência autoral parece apontar para a fragilidade da


formação dos professores, que, por força da lei 11.645 se viram compelidos a
ministrar conteúdos para os quais não foram devidamente capacitados em cursos
de licenciatura.
Nesse contexto entra em cena a indústria editorial.
Assim, um livro que aspira ao circuito escolar é circundado – no catálogo que
deve promove-lo junto aos professores – de um conjunto de informações que só
constam no catálogo por corresponderem à imagem que os editores fazem do
que é e do que não é relevante para o professor que adotará o livro (LAJOLO,
1994 p.29).

Nesse sentido, o reduzido número de títulos cujo tema são os países


africanos de língua oficial portuguesa, permite supor que a lusofonia ainda é um

654
conceito pouco conhecido, e, talvez só venha a sê-lo tal qual a história da África e
sua influência na formação do Brasil, por força de uma lei.
Por outro lado, é inegável que a lei 11645, embora timidamente, está
começando a difundir a cultura dos países africanos de língua oficial portuguesa nas
escolas brasileiras, embora, como já mencionado, até o momento, livros sobre Cabo
Verde e São Tomé e Príncipe continuem ausentes dos catálogos de livros
paradidáticos das grandes editoras brasileiras...

REFERÊNCIAS

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Universidade de São Paulo (USP).
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portuguesa cultura e identidade nacional. São Paulo: IP-PUC-SP; EDUC, 2010.
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da Moeda, 2002.
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PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA Casa Civil
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Brasil . Literatura Ensino Fundamental l 2012.
Companhia das Letrinhas. Catálogo 2012.
FTD. Literatura e apoio didático juvenil e infantil 2012/2013.
Global. Catálogo editora Global Infantil e juvenil 2012.
Larousse Júnior e Jovem. Catálogo de literatura infanto-juvenil 2011/2012

655
Melhoramentos. Catálogo Juvenil Ensino Fundamental II e Ensino Médio
2012/2013.
Moderna Ensino Fundamental II, Ensino Médio 2012.
Paulinas. Literatura infanto-juvenil 2012.
Saraiva. Literatura juvenil Ensino Fundamental II 2012.

656
ENTRE A PALAVRA E A IMAGEM: INTERSECÇÕES MACHADIANAS

Maria Eloísa de Souza Ivan233

INTRODUÇÃO

Conforme Antonio Candido (2000), a literatura é um sistema vivo de obras,


agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes
a vivem, “decifrando-a”, “aceitando-a”, “deformando-a”. A obra de arte não é um
produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo,
registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o
outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação
literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.
O ensaísta comenta que somos tentados a considerar a obra literária como
algo incondicionado, que existe em si e por si, agindo sobre nós graças a uma força
própria que dispensa explicações. Mas, ainda segundo o crítico literário, é preciso
dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz
de exprimir a sua originalidade (que o delimita e o especifica entre todos), mas
também alguém que desempenha um papel social, ocupando uma posição relativa
ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos seus leitores.
A matéria e a forma da sua obra dependerão, em parte, da consonância ao meio,
caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público. Uma leitura
embasada somente na história dos movimentos literários, em que não se estabelece
a relação entre autor-obra-leitor, não se apresenta à realidade contemporânea, pois
a Literatura deve ser compreendida e interpretada por meio de uma leitura dialógica,
contextualizada e, sobretudo, interdisciplinar.
Entendemos, assim, que a leitura, sob essa perspectiva, torna-se mais
compreensível e prazerosa para o leitor, já que ele poderá relacionar esses textos
a outros textos, estabelecendo o diálogo intertextual entre textos, autores e leitores,

233
Doutora em Letras,Estudos Literários, pela UPM, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/SP.
Professora titular do Curso de Letras e outros do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF).

657
pois uma obra só existe verdadeiramente por meio das leituras que dela são feitas.
São essas leituras que vão atualizar de maneira específica – em função da
atualidade e dos conhecimentos dos leitores – os sentidos dessa obra e suas
relações com o mundo.
Nesse contexto, é notável as constantes discussões em torno da leitura e da
formação de leitores críticos; o que oferecer a esse leitor, quanto oferecer, como
oferecer são questionamentos frequentes no âmbito do ensino e da pesquisa.
Assim, com o avanço das novas tecnologias e das diferentes mídias visuais e
digitais, é compreensível que novas formas de leitura se apresentem e que a
imagem se destaque como importante elo entre leitura e leitor, principalmente no
que se refere às adaptações de obras literárias clássicas para HQ. E é do diálogo
dessa nova linguagem com o clássico Machado de Assis que apresentamos nossas
reflexões, pois as constantes releituras do texto machadiano, por diferentes mídias,
ratificam sua modernidade e propõem ao leitor uma reflexão para o que está para
além da linha, buscando os sentidos velados nas entrelinhas do texto, ratificando a
contemporaneidade e universalidade do texto machadiano e a sua capacidade para
manter viva uma conversa com o leitor atual.
Desse modo, este trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura
comparada do conto O alienista (1882), de Machado de Assis, objeto de estudo
desta pesquisa, e de sua versão adaptada para HQ (2008), por Cesar Lobo e Luiz
Antonio Aguiar. Essa abordagem parte de um viés dos estudos dos gêneros
discursivos e das reflexões bakhtinianas acerca do dialogismo, estilo,
intertextualidade e interdiscursividade, bem como das discussões propostas por
Jauss na teoria da Estética da Recepção.

658
“O ALIENISTA” EM HQ: UMA LEITURA COMPARADA

Bakhtin (2002), nas páginas iniciais do capítulo em que fala sobre o discurso
em Dostoiévski, comenta que a linguagem só vive na comunicação dialógica
daqueles que a usam, afirmando que é precisamente nessa comunicação dialógica
que se constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. “[...] Toda a vida da
linguagem seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática,
a científica, a artística, etc) está impregnada de relações dialógicas [...]” (BAKHTIN,
2002, p. 183).
Para Bakhtin (2003), é no contato, na interação da linguagem que se
realizam as diferentes formas de enunciação e, por conseguinte, os gêneros:

[..] Toda ampliação da linguagem literária à custa das diversas camadas


extraliterárias da língua nacional está intimamente ligada à penetração da
linguagem literária em todos os gêneros (literários, científico, publiscísticos,
de conversação, etc), em maior ou menor grau, também dos novos
procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu
acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma
reconstrução e uma renovação mais substancial dos gêneros do discurso
(BAKHTIN, 2003, p. 268).

Machado (2005) destaca que Bakhtin concebe o gênero como algo que não
pode ser pensado fora da dimensão espacio-temporal, logo, todas as formas de
discursos são orientadas por esses dois elementos. O gênero adquire, então, nessa
perspectiva, uma existência cultural, como Bakhtin procura demonstrar na sua teoria
do cronotopo, pois o gênero da teoria do dialogismo está inserido na cultura em
relação a qual se manifesta como “memória criativa”.
Nesse sentido, podemos dizer que as obras como todos os sistemas da
cultura, são fenômenos marcados pela mobilidade no tempo e no espaço. Bakhtin
entende que as obras vivem num grande tempo porque são capazes de romper os
limites do presente onde surgem e mais, reportam-se tanto ao passado quanto ao
futuro: “ É no processo de sua vida póstuma que as obras se enriquecem com novos
significados, novos sentidos: assim as obras deixam de ser o que eram na época
de sua criação [...]” (BAKHTIN, apud MACHADO, 2005,p. 160).

659
Para nossa abordagem, é necessário que se destaque, ainda, dentro
das reflexões de Bakhtin, o conceito de estilo. E na obra Estética da criação verbal,
encontramos importantes reflexões do filósofo da linguagem acerca de estilo. Para
definir os gêneros discursivos, um dos aspectos destacados pelo pensador da
linguagem é o fato de que eles transitam por todas as atividades humanas e devem
ser pensados, culturalmente, a partir de temas, formas de composição e estilo.

[...] As mudanças históricas dos estilos de linguagem estão


indissoluvelmente ligadas às mudanças dos gêneros do discurso. A
linguagem literária é um sistema dinâmico e complexo de estilos de
linguagem; o peso específico desses estilos e sua inter-relação no sistema
da linguagem literária estão em mudança permanente [...] Onde há estilo
há gênero. A passagem do estilo de um gênero para outro não só modifica
o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como destrói
ou renova tal gênero (BAKHTIN, 2003, p. 267 e 8).

Portanto, falar em estilo pela concepção bakhtiniana implica falar de


sujeitos que instauram discursos a partir de seus enunciados concretos, que fazem
história e são a ela submetidos. Assim, a singularidade estará, necessariamente,
em diálogo com o coletivo em que textos verbais, visuais, verbo-visuais, deixam ver,
em seu conjunto, os demais participantes da interação e por força do diálogo incide
sobre o passado e o futuro.
Diante do exposto, podemos afirmar que nossa proposta de leitura do
conto “O alienista” (1882), de Machado de Assis, comparativamente à sua versão
em HQ, adaptada por Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar (2008), vai ao encontro das
reflexões de Bakhtin, pois, seja pela linguagem verbal ou verbo visual, notamos um
diálogo estabelecido entre o conto machadiano e essa versão em HQ, o que nos
permite dizer que há um entrecruzar de vozes que atravessa o tempo e o espaço e
mesmo que se revele um outro gênero, sob uma nova roupagem, utilizando-se dos
seus próprios recursos estruturais e estilísticos, há, ainda assim, no conjunto do todo
do discurso, a presença dos demais participantes dessa interação revelados pelo
discurso machadiano.
A tendência atual de se adaptar os clássicos da literatura para as HQs
vem cumprindo um grande interesse do setor editorial, que afirma que tal
procedimento desempenha um papel importante na aproximação entre o texto

660
clássico e um maior número de leitores. A adaptação em HQ de “O alienista”, feita
por Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar, foi publicada em 2008, pela Editora Ática e
compõe a série Clássicos Brasileiros em HQ.
Nesta adaptação, os autores produzem uma versão autoral, e em vez de
reproduzirem o texto e ilustrá-lo mecanicamente, recriam-no vertido para a
linguagem e ação exigidas pelos quadrinhos, justamente por se tratar de um novo
suporte, recriando a história de maneira que as cenas de ação e também o humor
corrosivo de Machado de Assis ganhem emoção em cores.
Segundo os adaptadores, a elaboração de HQs exige que se estabeleça um
diálogo muito bem trabalhado entre roteiro e desenho, respeitando as exigências do
gênero e, numa adaptação como esta, há, ainda, um terceiro elemento bastante
importante: o texto original. Lobo e Aguiar (2008) comentam que para buscar a
linguagem dos quadrinhos, ou seja, para fazer uma boa história em quadrinhos, o
texto deve ficar mais curto e acessível e, pensando nisso, os autores criaram um
personagem especial que abre a história e é revelado nas duas primeiras páginas,
que aparecem em preto-e-branco. Para os autores, trata-se de um “duplo” do próprio
Simão Bacamarte, com a intenção de melhor interpretar o espírito que entendiam
haver na história e no personagem. No roteiro, ele ganhou um nome: Alienista
Alienado, ou AA.
No que se refere a Machado de Assis, podemos dizer que a figura do duplo
não é novidade, já tendo aparecido em contos como “O espelho”, ou ainda sendo
representado na figura do narrador intruso que mantém um diálogo intenso com o
leitor. O conto “O alienista” (1881/1882) compõe a coletânea Papéis avulsos e é um
dos mais representativos na produção do autor. A coletânea representa para o
gênero a mesma revolução que, para o romance, significaram as Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881). A temática central do conto é a loucura, que
conduz o leitor a uma eterna reflexão sobre os limites entre a insanidade e a razão.
Preocupação constante da temática machadiana, a loucura surge em “O
alienista” também como uma forma de provocação ao contexto vigente em que
imperavam as ideias cientificistas que procuravam explicar todo o comportamento
humano por meio da ciência. A refinada ironia machadiana se materializa tanto no

661
discurso do narrador heterodiegético, como no discurso do protagonista, Simão
Bacarmarte, que resolve construir uma Casa de Orates para abrigar todos os loucos
da pequena Itaguaí. Investido do poder absoluto e tirano conferido pela ciência,
Simão Bacamarte tenta manter uma cidade inteira sob seus comandos alienados.
O conto “O alienista” (1882) estabelece várias relações dialógicas, com
diferentes textos e discursos, contudo, para este estudo, por questões estruturais
de limite de páginas, destacamos apenas três cenas em que demonstramos a leitura
comparada entre a versão em HQ e o texto machadiano.
Partindo do pressuposto de que uma obra literária opera não somente no
momento em que surge, mas segue relacionando-se com o passado e daí opera-se
a mudança de horizonte, não podemos deixar de relacionar “O alienista” (1882) com
o momento político-histórico e social em que surge.
Conforme já dissemos, a temática central do conto propõe ao leitor a eterna
reflexão sobre os limites entre a insanidade e a razão; mas, também o poder da
palavra, o poder exercido pela ciência e as relações estabelecidas na sociedade são
questionamentos os quais podem ser vistos no texto. As personagens do conto
machadiano retratam, por meio de bajulação, clientelismo e oportunismos o
contexto político do Brasil do final do século XIX e que permanece tão atual em
nossos tempos. Também é evidente no conto o poder das teorias científico-
evolucionistas, positivistas e sócio-darwinistas trazidas da Europa que, naquele
contexto, indicariam as respostas para todos os males de uma civilização em busca
do progresso.
Logo no início do conto, o ceticismo machadiano em relação à ciência é
materializado pela voz do narrador heterodiegético, pois na cena em que o médico
Simão Bacamarte faz a escolha de sua esposa, não a escolhe por suas virtudes
interiores, mas sim por seus atributos fisiológicos:

D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem,


digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso,e excelente
vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes.
Se além dessas prendas,- únicas dignas da preocupação de um sábio. D.
Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a
Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na
contemplação exclusiva e vulgar da consorte (ASSIS, 1988, p. 9).

662
A ironia se revela uma vez mais como importante recurso estilístico do
discurso machadiano; Simão Bacamarte escolhe como sua mulher D. Evarista, com
a finalidade de procriação, e ela, por sua vez, não é capaz de lhe conceder o filho
desejado; diante do fato, o médico afirma que a ciência poderá curar o fato de que
a dinastia dos Bacamartes se extinguirá: “[...] Mas a ciência tem o inefável dom de
curar todas as mágoas; o médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da
medicina [..]” (ASSIS, 1988, p. 10).
Em relação aos aspectos estruturais da HQ, Vanoye (1998) afirma que
a relação entre as palavras e as imagens são bastante complexas, pois a história
em quadrinhos envolve uma técnica narrativa que consiste em contar uma estória,
que comunica uma mensagem por meio de dois canais: a imagem e o texto, assim,
pode-se dizer que na história em quadrinhos são veiculadas duas mensagens: uma
icônia e outra linguística, o relacionamento dessas duas mensagens constitui a
mensagem global.
Na adaptação para a HQ da cena do conto machadiano acima
transcrita, temos Dona Evarista sendo apresentada como uma mulher que não
corresponde aos padrões de beleza da época, mas não é tão mal afeiçoada assim,
revelando um certo ar de sedução e contentamento nos olhos da mulher vestida de
noiva; por meio das cores e das expressões conferidas às imagens o rigor do
discurso do narrador machadiano é, em certa medida, diluído; quanto ao discurso
do narrador, este é representado pelas falas das personagens, nos balões típicos
da fala, que também compõem a estrutura da HQ e servem como importante recurso
para dar dinamicidade ao texto.
Ainda do capítulo I, destacamos a cena em que Simão Bacamarte, médico
ilustre, casado e sem filhos, resolve entregar-se de corpo e alma aos estudos da
ciência e reflete sobre a situação dos loucos da cidade, que eram trancafiados em
suas casas. Bacamarte resolve, então, construir uma casa de Orates e para tal feito
vai até a Câmara de Vereadores defender sua ideia, esta que é aceita e aprovada
pelos governantes, desde que para isso fosse deliberada criação de um novo
imposto.

663
Dali foi à câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a
com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-la ao que pedira,
votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento,
alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi
fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí [..] Uma vez empoçado da
licença começou logo a construir a casa (ASSIS, 1988, p. 11).

É preciso chamar a atenção para a condição visionária de Machado de Assis,


pois a situação apresentada pelo conto do século XIX, tristemente, reflete-se no
panorama político brasileiro contemporâneo. É com ironia cortante que Machado de
Assis caracteriza seu discurso para falar da política brasileira.
Em relação à adaptação para o gênero HQ, ao analisarmos o mesmo
trecho, percebemos que o conto também se apropria da ironia como recurso
discursivo e por meio das linguagens verbal e icônica oferece um atributo a mais
para o leitor que pode “visualizar” a estória, uma vez que Lobo (2008) é minucioso
na caracterização imagética do século XIX. Claro que recursos como os balões
utilizados pela versão em HQ permitem delimitar de maneira mais explícita o
pensamento das personagens, fazendo as adequações as quais os autores
consideraram necessárias: “Até hoje, nobres vereadores, todo louco furioso fica
trancado num cubículo qualquer dentro de casa. Maltratado, desnutrido,
abandonado na escuridão até que a morte generosamente venha encerrar seu
tormento (LOBO; AGUIAR, p. 10)”. Um outro exemplo do recurso verbo-visual
utilizado pelos adaptadores é o momento em que Bacamarte , ao sair da Câmara,
depois de conseguir a autorização para a construção da casa de Orates, é aclamado
pelo povo; esse aspecto não se evidencia no discurso machadiano e embora na
HQ não fique explícito pela linguagem verbal o momento em que o narrador comenta
não ter sido fácil achar a matéria para a criação de um novo imposto, na adaptação,
a ironia torna-se presente por meio dessa linguagem verbovisual.
Portanto, a apropriação realizada pelos adaptadores retoma o texto base e
atualiza-o, ou o reinventa, possibilitando um novo olhar, uma nova leitura sobre o
texto machadiano. Muda-se o gênero, muda-se também o estilo.
Uma última cena que merece destaque é a que compõe o capítulo seis, “A
rebelião”. Nele, merece destaque outra personagem do conto, Porfírio. Podemos

664
entender tal personagem como o oportunista e aquele que busca a ascensão ao
poder a qualquer preço. É a representação do que podemos identificar no cenário
político atual das alianças políticas, aquele que se alia a certas pessoas para a
tomada de poder e quando está investido dele alia-se a outras pessoas que lhe
sejam mais vantajosas. Porfírio liderou uma rebelião contra o poder vigente, visando
à tomada de poder pelo povo, queria a derrubada da Casa Verde: “ [...] O barbeiro
depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um
mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde
– “essa Bastilha da razão humana” (ASSIS, 1988, p. 31).
Neste capítulo, percebemos que ao mesmo tempo em que há a crítica ao
poder sem limites e ditatorial representado por Bacamarte, o Alienista, estabelece
uma relação dialógica com o contexto da Revolução Francesa, assim, por analogia,
podemos entender que a Casa Verde é a representação da Bastilha tomada pelos
franceses na época da revolução, sendo evidente a relação intertextual estabelecida
entre o conto e esse contexto histórico.
Na versão apresentada pela Ática, há uma nota de rodapé explicativa que
situa o leitor acerca desse momento da história mundial. Nessa nota, é explicado ao
leitor que “essa Bastilha da razão humana” é um convite à derrubada da Casa
Verde, porque a Bastilha, assim como a Casa Verde, fora transformada em prisão
e assim tornara-se o símbolo da tirania e da opressão monárquica, “a queda da
Bastilha” marca o início da Revolução Francesa.
Especialmente nesses capítulos do conto em que ocorrem a revolução e a
tomada do poder, podemos verificar que os adaptadores, na HQ, exploram,
sobremaneira, o recurso das imagens, tanto que em vez das notas de rodapé, o
narrador explica o que foi a queda da Bastilha por meio das imagens, destacando-
se a representação do quadro “A Liberdade Guiando o Povo”, de 1830, do pintor
francês Eugène Delacroix , estabelecendo a relação intertextual e, portanto,
interdiscursiva com a Revolução Francesa. A intertextualidade presente na HQ é
explícita, pois há trechos em que aparecem palavras de ordem em língua francesa,
típicas da Revolução, enquanto no texto machadiano não aparecem – “Allons!

665
Enfants de la patrie! Le jour de gloire est arrivé! Contre nous de la tyrannie” (LOBO;
AGUIAR, 2008, p. 26).
O leitor, por meio do discurso aliado às imagens, pode ter a dimensão do que
foi a revolução dos canjicas; isso porque os adaptadores souberam explorar com
originalidade os recursos da linguagem escrita e integrar essa linguagem em uma
mensagem específica que é a da HQ.

Considerações finais
Reiterando o discurso machadiano e sua constante discussão em
relação à condição humana, O alienista (1882) é obra que desperta diversos
questionamentos e conduz o leitor à reflexão, a desejar mais. Dele, como da obra
machadiana como um todo, saímos com a sensação de que algo ficou por dizer e
que é preciso debruçar-se sobre essa palavra plurissignificativa.
Para nós, a adaptação para a HQ cumpre seu papel ao manter-se fiel ao seu
estilo, ao seu gênero, oferecendo ao leitor uma arranjo bem construído e por que
não dizer provocador; por meio das imagens, oferece ao leitor um outro suporte de
leitura. Acreditamos sim que as linguagens verbal e a verbo-visual evidenciam a
desterritorialização das mídias em nosso cotidiano e revelam os efeitos de sentido
criados por esse novo texto/discurso machadiano, provocando no leitor o interesse
em conhecer o clássico Machado de Assis.
Acreditamos ser papel do professor levar ao conhecimento do aluno as
versões adaptadas não apenas do conto em pauta, como também dos outros
clássicos da Literatura Brasileira. Contudo, deve aproximar o aluno do texto original,
pois, conforme já dito, trata-se de um clássico e como tal proporciona o alargamento
de horizontes do leitor e sua leitura passa a ser consequência de um processo de
interação entre a magia da poesia e a vida do homem comum, modernamente
desprovido de heroísmo, mas ainda à procura do sonho e da fantasia.

Referências
ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

666
BRAIT, Beth. Estilo. In:_______(Org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2008.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:______Vários escritos. São
Paulo: Duas Cidades, 1977.

FACIOLI, Valentim. Várias histórias para um homem célebre. In:______. Machado


de Assis.São Paulo: Ática, 1982. (Coleção escritores brasileiros: Antologia e
estudos).
FIORIN, José Luiz.. Polifonia textual e discursiva. In:_____BARROS, Diana Luz
Pessoa de; FIORIN, José Luiz(Orgs.). Dialogismo, polifonia ,intertextualidade: em
torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp,2003.
______. Os Gêneros do discurso. In: FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento
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Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.
Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
LOBO, César; AGUIAR, Luiz Antonio. O alienista. São Paulo: Ática, 2008.
MACHADO, Irene. Gêneros Discursivos. In: BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: conceitos-
chave.São Paulo: Contexto, 2008.
RIEDEL, Dirce Côrtes. Razão contra sandice. In_______: Machado de Assis. São
Paulo: Ática, 1982. (Coleção escritores brasileiros: Antologia e estudos).
VANOYE, Francis. Linguagem e expressão gráfica e pictória. In______: Usos da
linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. 11. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.

667
LITERATURA E CINEMA

Maria Enísia Soares de Souza 234

INTRODUÇÃO
A compreensão da adaptação como reescrita da história com as técnicas do cinema
e a comparação com as técnicas e a magia da narrativa literária, objeto de análise
da pesquisa, representam o norte da investigação que se pretende policêntrica e
multiperspectiva, isto é, há entre literatura e cinema uma relação intertextual
explícita, vínculos declarados, ainda que no filme a narrativa apresente certo
aspecto de autonomia, isso porque cada uma das manifestações linguísticas ocupa
e conduz a narrativa a seu modo, com estilo que lhes é próprio.
Quanto à estrutura textual, organizamos o texto em duas partes. Na primeira,
cuidamos de registrar flashes da história do cinema, cuidando para apresentar o
cinema e sua especificidade, na segunda, a relação entre cinema e literatura,
fazendo registros de conceitos importantes para compreender que tanto literatura
quanto cinema são, ao mesmo tempo, manifestações, linguísticas, culturais e
artísticas.
A orientação metodológica da análise é o da literatura comparada, nos termos de
Nitrini (2010), porque esta consiste num conjunto de estudos que versam sobre
revisitação à história original, retomada de discussões acerca de conceitos
fundamentais sobre uma e outra manifestação artística (no caso, literatura e
cinema), pontuando a influência, imitação e originalidade.
Terminado o estudo, esperamos ter registradas as características importantes
dessa relação – literatura e cinema - os recursos da adaptação, de modo particular
a linguagem, o espaço, o tempo e as ações próprias da renovação da arte literária
escrita.

234 Docente da Faculdade Metropolitana – Porto Velho – RO

668
História do cinema
Segundo Sirino (2004), o nascimento oficial do cinema foi em 28 de dezembro de
1895, no subsolo do Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris, onde o
industrial Lionês Antonie Lumière promoveu a primeira exibição pública do filme de
seus filhos Auguste e Louis Lumière: “A chegada do trem na estação de Ciotat”.
Apesar de uma sequência simples, a cena de um trem vindo na direção da câmera,
na época, causou espanto entre os espectadores, assustando-os de tal forma que
reagiram como se o trem fosse atravessar a tela e atropelá-los.
A autora nos traz ainda que os irmãos Lumière talvez, inconscientemente, criaram
um meio de expressão importante que, no final do século XIX, começa a ser
trabalhado como arte pelas mãos do francês Georges Mièles, um ilusionista que
percebeu a potencialidade que tinha uma câmera de filmar. Entretanto, através de
um acidente no momento de uma filmagem, a câmera parou. Ao voltou a funcionar,
Mièles continuou a filmar normalmente e, quando do filme concluído, constatou que
os objetos e as pessoas não ocupavam mais as mesmas posições. Como ilusionista
que era, percebeu que fazendo paradas sistemáticas, poderia substituir e
desaparecer certos elementos. Assim, Mièles criou as trucagens, que possibilitaram
fazer de seus filmes espetáculos de pura magia (SIRINO, 2004).
Percebemos que a ilusão foi e é o ponto forte do cinema, que une magia e vários
truques registrados pelas câmeras, e que o seu funcionamento data do século XIX,
daí ficou conhecido como a sétima arte, a forma de expressão simultânea à vida,
isto é, a vida passa da realidade às telas como num piscar de olhos.
O cinema evoluiu rapidamente. Em pouco mais de um século, desde sua primeira
exibição, tornou-se uma indústria forte, estando presente e atuando em muitos
momentos históricos da humanidade. Foram relevantes para a elaboração da
linguagem cinematográfica, o desenvolvimento de estruturas narrativas e a sua
relação com o espaço e com a montagem, que tem o sentido de dar a síntese ao
produto final (SIRINO, 2004).
Segundo a autora, o ritmo do cinema se justifica no fato de registrar os movimentos
históricos importantes, o que tornou o cinema uma forte indústria. As características

669
da linguagem, narrativa, o tempo e o espaço, assim como na literatura foram
relevantes para o sucesso dessa indústria de contar histórias.
Salientamos que, embora o cinema atualmente possa ser visto como um veículo
predominantemente de entretenimento, prevalece, ainda, seu caráter da busca
daquela sociedade burguesa que procura desenvolver máquinas e técnicas que
pudessem expressar um universo cultural a sua imagem, impondo às demais
sociedades o domínio cultural, ideológico, estético (SIRINO, 2004).
A priori, sabemos que um filme é uma história ou estória contada através de
imagens. O cinema, nesse sentido, pode ser considerado como a arte do real, já
que a realidade é imposta com toda força, não importando se esta realidade seja
apenas uma ilusão da verdade, o fato é que se tem a impressão de que é
verdadeiro o que se vê na tela (SIRINO, 2004).
É o jogo de imagens no ato de contar uma história que encanta no cinema, hoje com
muitos outros recursos do que os do seu início. Além dos movimentos, tem-se a
trilha sonora, os efeitos reais – como retorno ao tempo, construção de cidades
cinematográficas, há a iluminação e toda um estudo de falas e figurino de épocas.
Essa arte ocupa no mundo um espaço inimaginável entre as diversas sociedades.
No final do século XIX, em praticamente todos os países da Europa e dos Estados
Unidos, houve estudos e pesquisas para a produção de imagens em movimento.
Nesse período, já havia a pintura figurativa e a fotografia que davam conta de
mostrar imagens como se fossem reais. Esse período é também o ícone da
ascensão da burguesia, quando a Revolução Industrial transformava a produção,
as relações de trabalho, a sociedade. O cinema, especificamente, foi um veículo
que ganhou muito com os avanços industriais desse período histórico,
principalmente com a implantação da energia elétrica, do telefone, do avião. A partir
dos anos sessenta do século XX, a história, que até então só se fazia com
documentos através de escritos sobre a reconstrução do fato histórico, passa a se
afirmar e a admitir a utilização do cinema como documento (SIRINO, 2004).
É natural que o surgimento de um evento como o cinema esteja relacionado à
história da Revolução Industrial e da “nova” classe social da época – a burguesia,
cujos interesses econômicos eram o de participar, mais efetivamente, das decisões

670
políticas, o de pertencer a uma classe com poder e, consequentemente, o de ter
seus espaços ampliados.
Na França, o movimento pelo cinema foi liderado por Marc Ferro historiador da
Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa. O historiador passou a observar o
filme como agente transformador da história e como registro histórico. Salienta-se
que, atualmente, o cinema é visto como um produto da Indústria Cultural,
predominantemente de entretenimento (SIRINO, 2004).
A partir dessa época, o cinema passou a representar mais uma forma de registro,
de guardar na “memória” episódios. O suporte papel não era mais a única forma de
registros de acontecimentos. O cinema também armazenava ideias, com um
fantástico diferencial, o de repetir cenas, o de mostrar imagens e fatos no momento
em que aconteceram, com riqueza de detalhes que o papel não conseguia guardar.
O surgimento do cinema permitiu e ampliou o acesso de uma parte da sociedade
menos privilegiada a uma arte de natureza mais popular, uma vez que o mercado
cinematográfico se direcionava democraticamente, como espetáculo, a um grande
público. Um aspecto importante advindo da democratização das técnicas
fotográficas e depois das cinematográficas consiste no “crescimento do patrimônio
das imagens: a fotografia permite ver um grande número de coisas que escapam
não só à percepção, mas também à atenção visual” (ARGAN, 2000, p. 79-80). A
urgência dos tempos modernos trouxe, assim, o aprimoramento da tecnologia na
apreensão das imagens e derivada delas são as técnicas que deram origem ao
cinema; mas não só o aprimoramento das técnicas de tratamento da imagem sofreu
alterações. O espectador também se tornou diferente, assim como sua percepção
do tempo e do espaço em que a narrativa fílmica surgia.
Em determinado momento da história cinematográfica, o cinema foi considerado por
alguns críticos como uma arte impura, pois apresentava aspectos de artes mais
antigas como a literatura, a pintura, o teatro, assim como a música. Stam (2009, p.
49), aponta ponta em seu livro “Introdução à Teoria do Cinema” que, “desde o
surgimento do cinema como meio, os analistas têm buscado por sua “essência”,
seus atributos exclusivos e distintos”.
Em meados dos anos 1950, Bazin (1991, p. 840), utilizou o termo

671
cinema impuro” ao considerar o diálogo do cinema com outras artes
intrinsecamente inevitável e de extrema importância para o
processo de evolução cinematográfica. Quando o autor escreveu
seu ensaio sobre o tema, a adaptação era considerada como “o
quebra-galho mais vergonhoso pela crítica moderna.

A impureza a que se refere o autor está relacionada à adaptação, à


possibilidade de o cinema denegrir, minorar, descaracterizar a arte que toma como
objeto de adaptação. Nas palavras de Bazin (1991), ainda que inevitável, o diálogo
que o cinema faz com outra arte, no caso em tela, com a literatura, não passa de
“quebra galho”, de desconfiguração da obra original.

Literatura e cinema
Literatura e cinema são linguagens, cada uma com suas formas de expressão
constituindo-se agentes na promoção das leituras e interpretações sociais,
históricas e culturais. Salienta-se, contudo, que, no contexto de ensino de literatura,
a utilização de filmes complementa a compreensão e nunca a substituição da leitura
(CURADO, 2012).
O início do cinema está relacionado ao movimento de pessoas e veículos, ao
registro de cenas e à simultaneidade de fatos. É isso que difere a literatura do
cinema. Aquela deixa por conta do leitor a movimentação das cenas, a imaginação
e a construção de sentido, este apresenta real e concreta a movimentação, dá pouca
vazão à imaginação, trabalha ainda com cores, recursos sonoros e figurinistas.
Carrière (1995, p. 21) assente que o cinema é uma experiência aberta, em
permanente autodescoberta, uma linguagem que está sempre criando formas e se
enriquecendo, fugindo constantemente das regras que tentam aprisioná-la em
cânones que tendem à rigidez do dogmatismo cristalizado em conceitos.
Segundo Costa (1989, p. 27), o cinema é: “Uma linguagem com suas regras e suas
convenções. É uma linguagem que tem parentesco com a literatura, possuindo em
comum o uso da palavra das personagens e a finalidade de contar histórias [...]”.
O texto literário possui relação com o leitor de forma isolada e tem como matéria-
prima a linguagem e não a imagem, ao contrário do filme que é feito para projeções

672
em salas escuras, onde atinge um público determinado, porque o cinema “não pode
existir sem o mínimo de audiência imediata” (BAZIN, 1999, p. 100).
Convém salientar, contudo, que “a diferença dos dois meios não se reduz entre a
linguagem escrita e visual” [...]. Mas àquilo que é próprio de cada um deles.
Assim, se o cinema, com todo aparato que dispõe, tem “dificuldade em fazer
determinadas coisas que a literatura faz”, o inverso também é verdadeiro
(JOHNSON, 2003, p. 42).
Mitry (2002, p. 167), afirma:
Se o cinema e a literatura procuram criar mundos humanos, “temos
de sentir o cerne de cada criação [...] porque a literatura nos faz
sentir o mundo de modo abstrato, por meio de palavras e figuras do
discurso”, ao passo que o cinema “é um processo de percepção
bruta”.

Daí a impossibilidade de uma verdadeira adaptação. Segundo Metz (1980),


o cinema tornou-se uma máquina de contar histórias, ultrapassando a expectativa
de seus criadores, os irmãos Lumiére.
Para Müller (2007, p. 78) literatura e cinema devem ser:
Entendidos como mídias que se interrelacionam de modos
diversos, dentro de um universo midiático bastante amplo, que
inclui mídias diversas, como a tradição oral, a canção popular, o
rádio, a imprensa escrita, a televisão, as artes visuais, a internet, o
videogame, etc.

Além destas influências, preferências/contaminações mais ou menos


indiretas, surgem, de vez em quando, intromissões explícitas do cinematográfico na
literatura ou vice-versa. Essas contaminações, muitas vezes, alijam o texto literário,
adulteram as ideias de tal modo quem a transcriação cinematográfica fica inferior à
literatura. Em geral, isso acontece porque o cineasta intenciona a sublimação
declarada de um escritor em particular.
A maior parte dos teóricos lamenta que o cinema, no afã de narrar
uma história, apele à literatura, por acreditar que a película perde
aquilo que chamam de “específico fílmico”. Entretanto, como “o que
interessa ao homem é seu próprio drama que, de certa maneira, já
se encontra pronto na literatura, o cinema volta-se para essa arte
em busca de fundamento às histórias que ele quer contar”
(CAMPOS, 2003, p. 43). Ou, então, apropria-se da literatura, porque
ela “é um sistema ou subsistema integrante do sistema cultural mais

673
amplo, que permite estabelecer relações com outras artes ou
mídias” (CAMARGO, 2003, p. 9, In: CURADO, 2012, p. 1).

Quando se faz um filme, na maioria dos casos, o realizador parte para a sua
organização, tendo como base um argumento escrito original ou, muito
frequentemente, adaptado de um texto literário - interessa, em particular, aos
estudos comparados esta última categoria -, que contém as linhas gerais da história
e os diálogos.
Nos estudos do texto literário, é habitual ter-se em conta uma, ou várias, das
instâncias ou dimensões da literatura, a saber: o autor, enquanto ser social, doador
e produtor do texto; o contexto; um período literário, um movimento - que é
identificador de uma forma natural da literatura ou um gênero -; o texto em cuja
dimensão está a temática, os modos de articulação entre tema e discurso; a cultura
ali representada e, por último, o leitor, que é o responsável pela produção de
sentidos. Esse um conjunto de envolvidos no texto literário abre possibilidades de
análise que possa servir, metodologicamente, como ponto de partida aos Estudos
de Literatura e Cinema.
Para Johnson (2003), as relações entre o cinema e a literatura são complexas
e se caracterizam, sobretudo, pela intertextualidade e, citando Avellar, diz que “o
que leva o cinema à literatura é uma quase certeza de que é impossível apanhar
aquilo que está no livro e colocá-lo, de forma literária, no filme” (AVELLAR apud
JOHNSON, 2003, p. 41, In: CURADO, 2012, p. 1).
Segundo Johnson (2003, p. 42, In: CURADO, 2012, p. 1), a “insistência à
fidelidade é um falso problema, porque ignora a dinâmica do campo de produção
em que os meios estão inseridos”. Isso, na nossa concepção se explica pela
literatura ser a arte da palavra, pelo seu material ser é a palavra. Partindo das
experiências pessoais e sociais que vivem o artista, ele transcreve ou recria a
realidade, dando origem a uma supra-realidade ou a uma realidade ficcional. Ao
transcrever a realidade se pode usar a imaginação, tanto o autor como o leitor, são
livres para recriar livremente a realidade ao escrever e ao ler o texto. Passar do
papel para o cinema “essa realidade” escrita pelo autor da literatura acarreta
alteração da forma de ver o real, uma vez que o cineasta é outro sujeito, pertence a

674
outro mundo e tem formas de ver as coisas diferenciadas do escritor do texto
original.
Aguiar (2003, p. 119) observa que grande parte das produções
cinematográficas do século XX “seguiu ou perseguiu enredos e personagens
consolidados primeiro na literatura”. O estudioso acredita que isso ocorra em razão
do prestígio de determinados autores e obras. Assim, estaria, em tese, assegurado
o sucesso das películas provenientes de textos já consagrados.
Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem, na película,
suas crenças, seus objetivos e seus estilos. Assim, eles buscam ou aproximar, ou
traduzir, ou equivaler, ou dialogar, ou corresponder, ou adaptar o texto literário ao
cinematográfico, observando as possibilidades de imbricamento de um meio com o
outro, tendo em vista aquilo que desejam expressar. Nem sempre essa
sobreposição consegue “aproximar” as duas artes mantendo o enraizamento da
obra literária. O que parece acontecer, nesse caso, é que o cineasta, como se
estivesse com uma tesoura à mão, saísse fazendo recortes daquilo que lhe
interessa e, posteriormente, iniciasse o processo de colagem e, nessa atividade,
permitisse a si o descarte e/ou o acréscimo de partes na história.
Isso pode ser explicar nas palavras de Bazin (1999, p. 82-83) que defende
que os textos literários não devem ser tratados como “sinopses bem desenvolvidas”,
porque “seguir o livro página por página é algo diferente e outros valores estão em
jogo e que o objetivo do cineasta não deve ser o de transcrever para a tela uma obra
cuja transcendência ele reconhece a priori”.
O autor acima mencionado acredita que as afinidades com o cinema e a
literatura acontecem em virtude da convergência estética existente entre esses
meios de expressão. Para o crítico, por mais absurdas que sejam as adaptações,
“elas não podem causar danos ao original junto à minoria que o conhece e os
ignorantes, ou se contentarão com o filme ou terão vontade de conhecer o modelo,
e isso é um ganho para a literatura” (BAZIN, 1999, p. 93).
Diante da transformação do texto literário para o cinematográfico, Bazin
aponta que tanto a literatura quanto o cinema têm diferenças de “estruturas
estéticas” e tais diferenças “tornam mais delicadas a procura e equivalências do

675
cinema com o texto literário, [requerendo] mais invenção e imaginação por parte do
cineasta” (BAZIN, 1999, p. 95). O teórico observa que “há cineastas que se esforçam
por uma equivalência integral do texto literário e tentam não se inspirar no livro, mas
adaptá-lo ou traduzi-lo para a tela” (BAZIN, 1999, p. 93).
Sobre essa discussão, Xavier (2003, p. 62) afirma que a transformação do
texto literário para o cinematográfico tem várias dimensões, sendo uma delas a
“fidelidade” ao texto de origem. “Isso, entretanto, para o estudioso, é infundado, uma
vez que “o livro e o filme nele baseado são como dois extremos de um processo que
comporta alterações em função da encenação da palavra escrita e do silêncio da
leitura”.
A passagem de uma arte a outra, a chamada adaptação, de acordo com
Guimarães (2003, p. 111) coloca em discussão problemas ainda sem soluções entre
as expressões artísticas, visto que “os limites entre cultura de massa e erudita, o
original e a cópia são sempre redefinidos [porque] as adaptações estabelecem uma
zona de conflito entre formas culturais diferentes voltadas para públicos diferentes
e heterogêneos”. Nesse caso, Mitry (2002) é mais enfático. Para ele, o cinema é
contrário à literatura: enquanto esta se organiza no mundo, aquele é o mundo que
se organiza em uma narrativa. Indiferentemente ao nome que se dê ao transpor o
texto literário para o cinematográfico, é fato que as películas partem da palavra para
se redimensionarem em imagens.
O que está em jogo é que “o cinema tornou-se a forma de arte definidora da
experiência temporal da modernidade” (CHARNEY, 2000, p. 324. In: FILETTI, s/d,
p. 33). O homem do século XX foi suspenso pela fotografia e, logo depois, pela
imagem em movimento.

Desde o início dos tempos, o homem sempre desejou reproduzir o


movimento das imagens. E o cinema nasce causando sensações
indescritíveis aos espectadores: [...] Nunca o mundo foi tão ávido e pródigo
de imagens como hoje. O aparato tecnológico-organizativo da economia
industrial não limita, e sim potencia a função da imagem. [...] Sem a
informação por meio da imagem, não existiria uma cultura de massa.
(ARGAN, 2000, p. 509).

É necessário enfatizar como teóricos de períodos distintos se posicionam de


maneira diferente, de acordo com o contexto histórico a qual estão inseridos.

676
Enquanto Bazin se preocupava com a defesa da adaptação, Stam analisa como
acontece o diálogo entre o cinema e a literatura. Hoje em dia, não se questiona mais
a aceitação “influência” da literatura no cinema; e o uso do termo já foi descartado
pelos teóricos da atualidade (SCHLÖGL, 2011).
Stam (2008) não se preocupa com a questão da “influência”, muito menos da
fidelidade da adaptação em relação à sua obra de origem. O que o autor sugere é
que, eventualmente, um texto possa gerar diversas “leituras” ao abordar aspectos
diferentes de um romance. Assim, uma obra pode motivar variadas adaptações
(SCHLÖGL, 2011).

Considerações finais
A literatura em comparação ao cinema é muito mais pura e incentivadora do
imaginário humano e da plenitude emocional. O cinema, por sua vez, ocupa-se com
a transposição e a reescritura de obras originais com certo apelo ao visual, o que
nem sempre mantém conceitos e ideias. A alteração se dá por meio dos elementos
próprios da cinematografia como as montagens e as combinações de linguagens,
sobretudo o som, a luz, a imagem, as cores e ações. Nesse caso, pode se dizer que
o cinema não tem a obrigação com a fidelidade ao texto literário que é fruto de
adaptação.
A atuação do cinema e a imbricação com a literatura, entre os diversos teóricos, a
quem recorremos para a elaboração deste artigo, é assunto polêmico, mas é preciso
dizer que a discussão de cada um culmina na ideia de que o texto literário é arte
com pureza, já o cinema é arte com linguagem conativa, com recursos e
movimentos que atribuem à ficção poder real, principalmente pela capacidade de
movimentação.
Queremos destacar, neste estudo comparado, que com a adaptação de uma obra
literária ao cinema, outras e novas possibilidades de leitura de um texto ficam
garantidas e isso talvez baste para considerarmos o cinema como um porta voz,
como responsável por permitir à massa o acesso a uma arte – a literatura – tão
prejudicada por tantos recursos midiáticos que têm distanciados os estudantes da
leitura da boa literatura.

677
Referências
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São Paulo: Senac, Instituto Itaú Cultural, 2003.
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Proggeto e Destino. Tradução: Marcos Bagno.
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Paulo: Brasiliense. Texto Xerocopiado. 1999. p. 83-104.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Trad. Fernando Albagli
e Benjamim Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema. São Paulo: Globo, 1989.
CURADO, Maria Eugênia. Literatura e cinema: adaptação, tradução, diálogo,
correspondência ou transformação? São Paulo: PUC, 2012.
FILETTI, Elisandra. Um olhar interdisciplinar sobre cinema e literatura. Revista Solta
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adaptação de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et all. (2003) Literatura, cinema e
televisão. São Paulo: Editora Senac. São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003.
JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas
I n Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Senac, Instituto Itaú Cultural, 2003.
METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo: Perspectiva, 1980.
MITRY, Jean (2002) In: ANDREW, James Dudley (2002) As principais teorias do
cinema: uma introdução. Tradução de Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
MÜLLER, Adalberto. “Além da literatura, aquém do cinema? considerações sobre a
intermidialidade.” In: MACHADO Jr. (et al). Estudos de cinema. São Paulo:
Annablume; Socine, 2007.
SCHLÖGL, Larissa. O diálogo entre o cinema e a literatura: reflexões sobre as
adaptações na história do cinema. (Comunicação) Guarapuava: Unicentro, 2011.
SIRINO, Salete Paulina Machado. Cinema Brasileiro: o Cinema Nacional produzido
a partir da Literatura Brasileira e uma reflexão sobre suas possibilidades educativas.

678
2004, 179 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Ponta Grossa, estado do Paraná.
STAM, Robert. A literatura através do cinema - Realismo, magia e a arte da
adaptação. Tradução de Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo
Horizonte: UFMG, 2008.
XAVIER. Ismail. (Org.) A experiência do cinema: antologia. 4. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2003.

679
O ESTUDO DO SILÊNCIO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA PERSONAGEM
MACABÉA: UMA REFLEXÃO

Maria Júlia Santos Duarte235

Introdução

Diante da proposta da materialidade simbólica e especifica do silêncio na interação


é necessário analisar a relação discursiva das pessoas com o silêncio e com as
palavras, de modo a entender a produção de sentido no universo discursivo da
linguagem.
Assim, a partir dos estudos acerca do silêncio, da linguagem e do discurso propostos
em Orlandi (1999, 1997) e Le Breton (1997), postula-se que o silêncio é contínuo e
há sempre ainda sentidos a dizer. Nessa linha investigativa Gadet e Pêcheux (2004,
p.14) lembram que o sujeito falante é visto em um sentido mais amplo como
utilizador da linguagem e historicamente situado.
Diante dessa perspectiva, conhecer as palavras favorece o saber fazer uso da
linguagem. Essa afirmativa simbolicamente representa os signos como uma das
maneiras de organizar um pensamento, um sentimento, uma intenção. Tal ordem
compreende que toda ausência também é presença, no sentido de tratar-se de um
signo não verbal. Mediante essa interpretação é preciso compreender o que é dito
além da ausência da linguagem.
É necessário, contudo, desmistificar que o silêncio representa apenas a ausência
da fala, ou a falta da linguagem. Essa interpretação está distante da realidade visto
que o silêncio é a presença de significação que traz uma complexidade de
questionamento ao interlocutor.
Assim, o silêncio possui um significado próprio em si mesmo. Esse dizer algo pode
ser frágil, pois o silêncio não é um código estabelecido pelos sujeitos do discurso,
mas explica-se na produção de sentido da linguagem e do silêncio no discurso.

235 Mestrado em Linguística pela Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil

680
Na interação o silêncio ocupa um espaço que pode remeter ao respeito, à prudência,
à cautela. Com base nas considerações expostas acima o problema de pesquisa
deste artigo se identifica com a seguinte pergunta: Como a materialidade discursiva
do silêncio produz sentido no texto literário? Assim, o presente artigo tem como
objetivo examinar as manifestações de silêncio em Macabéa, personagem principal
da obra A hora da estrela, Lispector (1997).
A escolha desta obra deu-se especificamente por se tratar de uma das mais
conhecidas da literatura brasileira em que a protagonista apresenta falta de
autonomia no uso com as palavras na relação de sentido entre: discurso, linguagem
e silêncio. As análises serão realizadas em conformidade com os estudos instituídos
conforme já citados anteriormente por: Pêcheux, Le Breton, e Orlandi, onde se
destaca a importância do sujeito e sua formação discursiva.

Língua, Linguagem e Silêncio


De acordo com Brandão (2004, p.7) qualquer estudo da linguagem é hoje, de
alguma forma, tributário de Saussure. Nesse sentido, nos postulados saussurianos
a língua não pode ser confundida com a linguagem, é somente uma parte
determinada, e seguramente essencial daquela. É, ao mesmo tempo, um produto
social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias,
adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos,
que:
Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de
diferentes domínios, ao mesmo tempo física fisiológica e psíquica, ela pertence
além disso, ao domínio individual ao domínio social; não se deixa classificar em
nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade
(SAUSSURE, 1995, p.17).

Com base nas teorias supracitadas a língua pode ser entendida como um sistema
homogêneo, um conjunto de signos exterior aos indivíduos que deve ser estudada
separada da fala e se constitui como um agente transformador da linguagem.
Gadet e Pêcheux (2004) teorizam a linguagem materializada na ideologia e como
essa última se manifesta na linguagem. Para eles, o discurso é um objeto sócio-

681
histórico concebido como efeito de sentido entre locutores, representa um lugar de
particularidade onde a interação se concretiza.
Nesse campo de investigação, os autores consideram a linguagem um sistema
sujeito à ambiguidade e compreende a discursividade como a inserção dos efeitos
da materialidade da língua na história e na relação sujeito linguagem. Em seu
estudo, Pêcheux sugere um novo suporte teórico para a ideologia. Esse suporte se
baseia na análise das formas materiais. Para tanto, a materialidade específica da
ideologia é o discurso e a materialidade deste é a língua.
O estudo da língua em Orlandi (1999) se ampara no saber que não há neutralidade
nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. Partindo dessa
perspectiva, a estudiosa da linguagem segue alguns critérios para explicar como a
língua se manifesta no discurso.
Essa manifestação indica palavra em movimento, prática de linguagem onde se
observa o homem falando. Nesse estudo, a linguagem é concebida como
manifestação entre o homem e a realidade natural e social. Deve se entender que
nessa teoria a língua é representada pela produção de sentido.
Orlandi (1999) orienta que a condição da linguagem é a incompletude visto que nem
sujeitos nem sentidos são completos. Essa incompletude atesta a abertura do
simbólico, pois a falta é também o lugar de possível descoberta. Nessa perspectiva
considera que dizer não é propriedade particular, dessa maneira, as palavras não
são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. Portanto tomar a palavra
é um ato social com todas as implicações.
O ato de silenciar pode ser entendido como resistência. Nesse sentido, Le Breton
(1997) argumenta que o silêncio tem vestígio arqueológico na medida em que
estrangula um intruso: a palavra. Seu estudo aborda também como a linguagem e
a comunicação são as contrafaces do não dito, do pensado e do segredo, do calar-
se.
Em sua tese as palavras e o silêncio misturam-se para chegar a um intercambio. É
sabido que no universo da comunicação não existe lugar para o silêncio, visto que,
os sujeitos encontram-se o tempo todo coagidos a proferir uma palavra, a esboçar
um pensamento.

682
No discurso, cada palavra organiza o silêncio à sua maneira e dá um impulso próprio
à troca. Nessa direção teórica, para Le Breton (1997) nenhuma palavra é emitida
sem encontrar outro sujeito que a receba. Embora não haja resposta, não encontre
outro sujeito para recebê-la ou um sinal que foi percebida. A palavra uma vez dirigida
faz parte do mundo da subjetividade de cada sujeito e pode vir a representar parte
do seu mundo interior.
Nesse sentido, o silêncio é um modo de diferenciamento do encontro na altura de
situações incertas, acompanha uma observação difusa que mede a pertinência,
ou não, da palavra. É mais ou menos pesado conforme as circunstâncias, mas
apresenta-se como uma peneira, estabelecendo a transição entre dois mundos
(LE BRETON, 1997, p.35).

O silêncio é uma matéria prima da palavra cuja função é relatar os acontecimentos


que assinalam constantemente como um fio da existência do sujeito. O argumento
do pesquisador referente a silêncio apresenta uma teoria em que a “relatividade do
estatuto social da palavra suscita evidentemente, a realidade das classificações de
tagarelice ou silêncio que no plano crítico, se atribui aos indivíduos”. Le Breton
(1997, p.57).
Vale refletir que atualmente a sociedade apresenta-se comunicante ao mesmo
tempo essa comunicação, em alguns momentos, surge empobrecida de sentido nas
mensagens que cercam a imediatez das comunicações em massa.
No estudo dos conceitos que cercam o silêncio encontra-se o argumento indicador
que esse está ligado ao domínio de si, o seu uso apropriado está ligado a uma ética
social. Essa ética participa do enraizamento propício dos homens em sociedade.
No mundo da interação a presença do silêncio conquista um conceito hierárquico
que representa uma situação de dualidade, na qual um lado da interação fala
demais, enquanto a outra parte da comunicação silencia. Essa situação estabelece
maior presença do falante no sujeito que se manteve silencioso, prestando atenção.
A linguagem e o silêncio se misturam na expressividade da palavra. Essa relação
configura a existência de controle na troca de comunicação, ou seja, quem controla
a comunicação, na realidade, controla emocionalmente a si mesmo.
Silenciar não deve ser avaliado apenas pela leitura do não saber o que diz. O não
dito envereda para a construção do conhecimento, no sentido de interpretar o falar

683
do outro. Seria, de acordo com Orlandi (1999, p.39), o lugar a partir do qual fala o
sujeito é constitutivo do que ele diz.
Outra consideração no tocante ao estudo do silêncio é a situação em que o calado
afasta-se da linguagem para escapar das obrigações do vínculo social. Nos estudos
de Orlandi (1997, p.12) há sentido no silêncio, mas esse, nos conceitos da autora,
foi relegado a uma posição secundária como excrescência como resto da
linguagem.
O imaginário social destinou lugar subalterno ao silêncio. A partir dessa reflexão o
imaginário social pode ser considerado tanto parte da retórica da dominação, como
parte da retórica do oprimido (ORLANDI, 1997, p.31).
Para compreensão da linguagem é necessário entender o silêncio para além da
dimensão política e considerar que o silêncio é fundante, é a matéria significante
por excelência, um continuum significante. Chega-se a conclusão que o real da
significação de acordo com Orlandi (1997) é o silêncio.
Através da observação de diferentes discursos é possível reconhecer fatos que
indicam a importância do silêncio e como compreendê-lo. Em suma, o silêncio faz
parte da constituição do sujeito e do sentido.
Finalmente, entende-se que encontrar o espaço do silêncio permite refletir
diferentes concepções para se entender como em determinadas situações de
comunicação o silêncio ocupa um lugar ambíguo nos hábitos culturais.

Gênero Literário e Gênero Romance


Para Marcuschi (2008, p.147) o estudo dos gêneros textuais não é novo. No
Ocidente já se pesquisa há pelo menos vinte e cinco séculos se considerarmos que
esse estudo iniciou-se com Platão. Diante dessa reflexão, segundo o autor, hoje o
que se tem é uma nova visão, do mesmo tema, de maneira que seria ingenuidade
imaginar que foi somente no século XX que se iniciaram os estudos com gêneros
textuais.
Diante de tais postulados, Marcuschi (2008, p.155) explica que o gênero textual são
textos que se encontram em situações comunicativas recorrentes, são também

684
aqueles os quais o leitor os encontra na vida diária em formas textuais escritas ou
orais.
Quanto aos estudos a respeito de literatura, Bakhtin (2010, p.71) indica alguns
conceitos relacionados ao gênero romance. Suas contribuições orientam que, por
muito tempo, o romance foi somente objeto de análise abstratamente ideológica de
apreciação publicistas. Esses analistas costumavam fazer considerações sem
princípio valorativo quanto à importância do gênero. Nesse contexto, o romance é a
diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de língua e
de vozes individuais (BAKHTIN, 2010, p.75).

Apresentação e análise do Corpus

A obra de Lispector (1920-1997) destaca-se como uma presença original do terceiro


tempo modernista da geração de 1945, como se convencionou denominar a
literatura brasileira do pós-guerra, no século XX. Seu último romance, A hora da
estrela, segundo Castro (2001) foi publicado dois meses antes de a autora morrer.
Essa obra é construída em volta da personagem Macabéa.
Criadora de uma literatura que focalizou a angústia do homem massacrado por meio
de narrativas psicológicas, aparentemente de pura introspecção e fabulação
filosófica, a obra de Clarice questiona o mundo organizado e a cultura dominante.
Trata-se de uma produção capaz de migrar de gênero, espaço e tempo dentro de
um ritmo sem fixar ou rotular quaisquer paradigmas do processo de criação literária.
Nesse sentido, é possível observar que a obra A hora da estrela figura aspectos de
uma escrita em que a narrativa não pertence à esfera da linearidade, tampouco
estabelece uma ordem cronológica temporal, destaca-se a peculiaridade da
negação da linguagem.
A marca do indizível na literatura clariciana apresenta-se sob a descentralização da
narrativa que é, sobretudo, um trajeto significativo de sua escrita. A hora da estrela
narra a historia da datilografa alagoana Macabéa de linguagem fragmentada,
desnuda e minguada que migra para o Rio de Janeiro e vive a penumbra do exílio
em si mesma.

685
É sabido que os autores delegam voz às personagens e através de fragmentos
discursivos a linguagem circula no processo de constituição de sentido do sujeito,
da escrita e da própria história. Desse modo, examinaremos as manifestações de
silêncio em Macabéa, nos fragmentos236 escolhidos para este artigo.

...Ela que devia ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem
nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano
primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra
por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça
ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não
aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda
do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada diria:
“desiguinar”.

Fragmento 1: A hora da estrela, Página 15.

...que ela era incompetente. Incompetente para a vida.


Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da
espécie de ausência que tinha de si mesma.
...nada argumentou em seu próprio favor, quando o chefe da firma de
representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela
parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade
que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela errou
demais na datilografia, alem de sujar invariavelmente o papel. Quanto à moça,
achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosa a
seu escondidamente amado chefe:
-Me desculpe o aborrecimento.

Fragmento 2: A hora da estrela, Páginas 24-25.

236Para facilitar a compreensão, uma vez que se trata de um romance, denominaremos fragmentos utilizados
para o corpus. Convém notar, entretanto que escolhemos somente alguns fragmentos do romance A hora da
estrela.

686
Nos fragmentos escolhidos para esta análise, o narrador apresenta ao leitor a
fragilidade da protagonista.
Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem
nenhuma datilografia, já que escreve tão mal só tinha até o terceiro ano
primário. (LISPECTOR, 1998, p.15).
O olhar do narrador terce de maneira oblíqua, de relance uma personagem
esvaziada, construída por fios tênues. A condição de Macabéa cria um cruzamento
de ausência e forma um silenciar: é datilógrafa, essa conquista lhe confere um
condição de semi-alfabetizada que escreve muito mal. A falta de instrução nega-lhe
autonomia com as palavras e a obriga viver na ignorância, na ausência de
linguagem, no silêncio de maneira que o lugar ocupado por ela é nenhum.
Neste contexto de pobreza humana, vestido de chita, ...só tinha até o terceiro
ano primário (LISPECTOR, 1998, p.15). caracterizam um luxo na instabilidade, no
processo de constituição do sujeito. A construção fragmentada a falta de segurança
indicam uma linguagem desnuda, migrada como a própria personagem em letra por
letra, curso ralo (LISPECTOR, 1998, p.15).
Através desses exemplos confirma-se a angústia existencial de Macabéa, sua vida
marginalizada socialmente.
Gadet e Pêcheux (2004, p.29) argumentam que as palavras são imitações do
mundo. Nesse sentido, a experiência de Macabéa com a linguagem denota
inconsciência de sua condição desajustada na cidade grande. Quanto ao narrador,
apropria-se das palavras ironicamente para configurá-la:
...incompetente. Incompetente para a vida (LISPECTOR, 1998, p.24).
Torna-se subempregada e recebe crítica de seu chefe por apresentar péssimas
páginas datilografadas na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda
e redonda do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada
diria:“desiguinar” (LISPECTOR, 1998, p.15).
Esta ousadia linguística que cerca a dificuldade da personagem com a linguagem
escrita indica sua limitação social, aponta uma vivência deslocada socialmente.
Le Breton (1997, p.57) postula “que o silêncio afasta-se do convívio social e não
deixa de incomodar, se a palavra é comum e circula com fluidez” Diante da

687
perspectiva do silêncio como manifestação para a leitura, verifica-se a incapacidade
da protagonista que vive clandestinamente de forma ínfima em si mesma, numa
espécie de pobreza mental e material. Só vagamente tomava conhecimento da
espécie de ausência que tinha de si mesma. (LISPECTOR, 1998, p.24).Faltava-lhe
o jeito de se ajeitar /ausência de... si mesma/ nada argumentou em seu próprio favor.
(LISPECTOR, 1998, p.24).
Em todos esses exemplos o interlocutor percebe um acúmulo de negação, um vazio,
de alguém com dificuldade em lidar com as palavras. A incapacidade de manifestar-
se. Em avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com
sua cara de tola, rosto que pedia tapa) (LISPECTOR, 1998, p.25).
Essa gratuidade que a personifica desligada do mundo, não apresenta memória no
passado, não existe presente ou dignidade.
Nos estudos de Orlandi (1997, p.31) o silêncio é o real no discurso. Esse argumento
indica as condições sociais que determinam os sentidos do sujeito, em A hora da
estrela, Macabéa necessita de um artifício de sobrevivência. Ela não tem espaço, é
minorizada, é clandestina em si mesma, não consegue chegar à compreensão,
conforme exemplo: nada argumentou em seu próprio favor (LISPECTOR, 1998,
p.24).
Macabéa representa sem retoque o empobrecimento cultural, o não ser, a
dificuldade em lidar com palavras. Por outro lado, todas essas características que a
colocam desprovida de pensamento, e de palavras, por um momento tornam-se
menores, quando a personagem se mostra cerimoniosa e com respeito.
Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou
cerimoniosa a seu escondidamente amado chefe. (LISPECTOR, 1998, p.25).

Diante de certas expressões negativas que retratam a personagem, ao se mostrar


cerimoniosa, ousar pensar para responder, distorce a ideia de insignificância e
limitação que a cercam.
Em seu estudo, Orlandi (1997, p.39) situa que o silêncio é o mediador das relações
entre linguagem, mundo e pensamento. O universo discursivo de Macabéa é
construído pelo silêncio, por não saber pensar, contudo, diante da grosseria do
chefe da firma, a personagem acostumada à dimensão de sublimidade desconstrói

688
sua insegurança marginalizada e tem uma saída honrosa ao interagir, dialogar e
fazer uso da linguagem em: -Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1998,
p.25).
Para Orlandi (1997, p.35), a linguagem supõe a transformação da matéria por
excelência (silêncio) em significados apreensíveis verbalizáveis. Assim, Macabéa
ao fazer uso da linguagem se constrói de significado.

Considerações Finais
A relação discursiva das pessoas com o silêncio é um convite a se pensar o ato das
palavras como um espaço para o não dito. Nesse sentido, o anonimato da
personagem não é tocado pelo narrador, de modo que permanece o silêncio.
Conforme Orlandi (1997), o silêncio é o real do discurso, assim o silêncio de
Macabéa adquire sentidos diferentes. E pode ser interpretado de forma
contraditória.
Percebemos que o narrador se posiciona com uma linguagem negativa ao se referi
a personagem. E essa se mantém indiferente, uma vez que não tem habilidade com
o dizer, seu silêncio pode inclusive ser entendido como um ato de resistência e
apontar: rejeição ao mundo que a despreza.
É justamente no movimento da ausência de linguagem e nos múltiplos sentidos do
silêncio e da aparente fragilidade de Macabéa que se encontra a construção de
sentidos. Portanto, observa-se que a personagem não encontra um lugar de
existência e identidade nem no meio rural de origem nem na cidade grande. O
silêncio de Macabea pode ser interpretado como uma condição de sobrevivência
em um universo inóspito, no qual a personagem não se adapta.

Referências
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. Trad.
Aurora Fontes Bernadini, 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

689
CASTRO, Dácio Antônio de. Clarice Lispector A hora da estrela. São Paulo: Anglo,
2001.
GADET, Françoise. & PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível discurso na história
da linguística. Trad. Bethania Mariani e Maria Elizabeth Gonçalves Chaves de Mello.
Campinas, SP: Pontes, 2004.
LE BRETON, David. Do Silêncio. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p.11-28.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso. Princípios & Procedimentos.
Campinas, SP: Pontes, 1999.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 4ºed.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Trad. de Antonio Chelini,
José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1995. P.17.

690
UMA ESCRITORA CONSAGRADA E UM LIVRO NÃO COMPREENDIDO:
NOTAS SOBRE O LUSTRE, DE CLARICE LISPECTOR

Mariângela Alonso237

Introdução

A publicação da primeira obra de Clarice Lispector, Perto do coração


selvagem (1944), revela uma personalidade literária delineada por uma escrita
transgressora. O ritmo tenso da narrativa, fruto da pesquisa de linguagem que
transmitia uma interpretação pessoal do mundo, fez do romance de Clarice
Lispector uma obra de exceção. Atualmente, tanto no Brasil quanto no exterior o
universo de leituras em torno da obra clariciana tende a indicar o manancial de
sentido inesgotável de sua escrita, contabilizada por uma vasta fortuna crítica.
Configura-se, portanto, desafiadora e espinhosa toda e qualquer empreitada
analítica em torno de sua pena.
Entretanto, decorridos setenta e um anos da estreia de Lispector em nossas
letras, continua latente a avaliação da crítica em torno de seu segundo romance, O
lustre, publicado em 1946. Escrito entre os meses de março de 1943, no Rio de
Janeiro, a novembro de 1944, em Nápoles, Itália, O lustre representa uma das obras
menos estudadas, comentadas e traduzidas de Clarice Lispector, jamais recebendo
da crítica uma avaliação mais completa e satisfatória quanto às outras produções
da autora. Embora seja constantemente comparado à trajetória de Joana, de Perto
do coração selvagem, o itinerário da personagem Virgínia em O lustre é diverso e
desintegrado. Os dois romances guardam semelhanças por narrarem a história de
personagens femininas, desde a infância até a maturidade. Porém, diferentemente
de Joana, Virgínia não possui contornos psicológicos definidos, nem mesmo as
feições atuantes de Joana.
Dentre os nomes da crítica literária no início dos anos 40 que destacaram a
recepção do trabalho de Clarice Lispector estão Álvaro Lins, Sérgio Milliet, Antonio
Candido e Oswald de Andrade. Os dois primeiros conceberam a narrativa de O
lustre como inacabada ou mutilada, inscrevendo a obra da escritora no campo da

237 Pós-doutorado em Literatura Brasileira/USP

691
chamada literatura feminina. No que tange à visão de Lins, o potencial de lirismo e
narcisismo seriam os principais motes do livro, inerentes ao “temperamento
feminino” da literatura de Lispector. Embora a crítica de Álvaro Lins intua as
mudanças que estão no horizonte da escrita clariciana, não soube avaliá-las em sua
profundidade. Além disso, as leituras de Lins e Milliet abordam a segunda obra em
comparação com a primeira, ressaltando o aspecto de descontinuidade presente
nas categorias espaciais e temporais da narrativa. Diferentemente destes
apontamentos, as vozes de Antonio Candido e Oswald de Andrade destacaram o
inacabamento como um dos aspectos inovadores do romance, propiciando o
diálogo com as posições de Umberto Eco (2005) em torno das principais
características das obras de arte modernas.
Percebe-se, portanto, que a segunda narrativa não pôde ser compreendida
em sua totalidade, principalmente devido às injustas e lacônicas comparações com
a obra de estreia. Assim, pretendemos analisar o lugar de O lustre na produção
clariciana, procurando discutir as leituras dos críticos severos ou complacentes que
analisaram sua escrita, guiando-nos pelos estudos de Umberto Eco e Roland
Barthes (2007) em torno da obra moderna, sua resistência às totalizações e suas
configurações diante de um novo leitor.

Vozes da crítica

Escrito entre os meses de março de 1943, no Rio de Janeiro, e novembro de 1944,


em Nápoles, Itália, O lustre representa uma das obras menos estudadas,
comentadas e traduzidas de Clarice Lispector, jamais recebendo da crítica uma
avaliação mais completa e satisfatória quanto às outras produções da autora.
A narrativa de O lustre aborda a história de Virgínia, desde sua infância vivida
na propriedade rural de Granja Quieta, no vilarejo de Brejo Alto, até sua maturidade
e ida para a cidade grande, onde morrerá tragicamente por atropelamento. Na obra,
a trajetória da personagem é marcada pelos deslocamentos espaciais entre o
campo e a cidade e sua inadaptação a qualquer um destes lugares.
Além de Virgínia, a família é formada pelos irmãos Daniel e Esmeralda, os
pais e a avó. Com Daniel, Virgínia mantém uma estranha relação, pautada pela

692
submissão e admiração; o irmão é o criador da Sociedade das Sombras, brincadeira
provinda de um pacto, sediada ao mesmo tempo na mata e no porão da casa, com
os propósitos de percorrer o campo e atingir a solidão das trevas da noite, entre
outras coisas. Ressalta-se ainda a figura da velha Cecília, a qual prevê a morte
trágica de Virgínia logo no início do enredo. Na cidade surgem Vicente, Adriano e
Miguel, homens com quem Virgínia tem amores conturbados e relações frustradas.
Embora seja constantemente comparado à trajetória de Joana, de Perto do
coração selvagem, o itinerário de Virgínia, diferentemente, é desintegrado. Os dois
romances guardam semelhanças por narrarem a história de personagens femininas,
desde a infância até a maturidade. Ao contrário de Joana, porém, Virgínia não
possui contornos psicológicos muito bem definidos, nem mesmo feições atuantes.
Em relação a este aspecto, concordamos com os apontamentos de Regina Pontieri
(1999), que observa aspectos de continuidade e ruptura em O lustre, tendo em vista
o percurso circular iniciado pela autora com a primeira obra: “Continuidade do
enfoque no sujeito. Ruptura porque Virgínia, a personagem a partir da qual a
realidade ficcional se constrói, já não tem fortes características próprias como ocorre
em Perto do coração selvagem com Joana” (Pontieri: 1999, 25).
Tal configuração psíquica de Virgínia é evidenciada logo no início do
romance, quando o narrador enuncia: “Ela seria fluida durante toda a vida”
(LISPECTOR: 1999, 9). A fluidez da protagonista foi exaustivamente discutida pela
crítica como aspecto indicador de sua pusilanimidade diante da vida prática, bem
como de sua inadaptação aos lugares e de seus desejos também fluidos.
A cena inicial é construída em torno da sugestão de um afogamento, uma vez
que Virgínia e o irmão Daniel observam do alto de uma ponte um chapéu arrastado
pela correnteza do rio e decidem calar-se a respeito, pactuando um segredo tão
bem guardado quanto à grafia da palavra no texto, a qual surge como “afog...”:
– Não podemos contar a ninguém, sussurrou finalmente Virgínia, a voz
distante e vertiginosa.
– Sim ... – mesmo Daniel se assustara e concordava ... as águas
continuavam correndo. – Nem que nos perguntem sobre o afog...
– Sim! Quase gritou Virgínia... calaram-se com força, os olhos
engrandecidos e ferozes. (LISPECTOR: 1999, 9-10)

693
Tem início, então, um processo vertiginoso vivido pela personagem, que,
debruçada sobre a ponte, experimenta em devaneios o conhecimento da morte
advinda das águas turvas. A cena é decisiva por consubstanciar no romance os
semas da água e do chapéu, ambos ligados à ideia de morte, os quais retornarão
em diversos momentos da trajetória de Virgínia, tais como no enterro da avó, no
fim do relacionamento com Vicente e na morte por atropelamento na cidade, entre
outros. Além disso, o lustre, que dá título à obra, “como um grande e trêmulo
cálice d’água” (LISPECTOR: 1999, 255) representa o que restara do passado
pomposo de outros tempos, na grande sala vazia e decadente do casarão de
Granja Quieta.

Destacando o aspecto do inacabamento como uma espécie de defeito ou


problema, Álvaro Lins escreve em 1963 o ensaio “A experiência incompleta: Clarisse
Lispector”, publicado em Os mortos de sobrecasaca. Alguns trechos do estudo
deixam bastante claro seu posicionamento:
Já se disse da arte do romance que é um espelho, uma imagem da vida.
No moderno romance psicológico, o espelho está partido, e a arte do
romancista consiste em dar unidade aos fragmentos. O romance da Sra.
Clarisse Lispector está cheio de imagens, mas sem unidade íntima. Aqui
estão pedaços de um grande romance, mas não o grande romance que a
autora, sem dúvida poderá escrever mais tarde (LINS: 1963, 191).

No entanto, Lins acaba por inaugurar, nos estudos claricianos, uma vertente
da fortuna crítica, instaurada sobremaneira no campo da chamada literatura
feminina.
Já Antonio Candido, acertadamente, apenas aponta para o inacabamento,
como um dos aspectos inovadores do primeiro romance: “Se não valesse por outros
motivos, o livro de Clarice Lispector valeria como tentativa, e é como tal que
devemos julgá-lo, porque nele a realização é nitidamente inferior ao propósito”
(CANDIDO: 1970, 128).
O que esse primeiro grupo aponta como defeito ou problema, ou seja, o
inacabamento, será o que posteriormente figurará como uma das principais
características das obras de arte modernas. Conforme indica Umberto Eco (2005)
sobre as obras modernas: “nenhuma obra de arte é realmente ‘fechada’, pois cada
uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de ‘leituras’

694
possíveis” (Eco: 2005, 88), uma vez que tal “abertura [...] funda-se na dúplice
natureza da organização comunicativa de uma forma estética e na típica natureza
transativa do processo de compreensão” (ECO: 2005, 88).
Em 1973 Benedito Nunes aposta na hipótese do inacabamento como algo
constitutivo e consciente do projeto de escrita da autora. Logo no primeiro capítulo,
Nunes constata: “Três são os aspectos fundamentais que se conjugam em Perto do
coração selvagem: o aprofundamento introspectivo, a alternância temporal dos
episódios e o caráter inacabado da narrativa” (NUNES: 1973, 3). No que tange ao
primeiro aspecto, salienta o estudioso:

[...] a introspecção é o fadário de Joana. Por uma espécie de necessidade


inelutável, quanto mais ela se observa, mais se distancia de seu próprio
ser. A reflexão contínua a que se entrega corta-lhe a espontaneidade dos
sentimentos e incompatibiliza-a com a fruição pura e simples da vida
(NUNES: 1973, 3).

A respeito do terceiro aspecto (o inacabamento), Nunes lembra que a


personagem Joana “continua [...] nessa viagem, que deixa a narrativa suspensa à
possibilidade de uma busca que recomeça, a errância da personagem. O
inacabamento da narrativa reduplica a existência inacabada da protagonista”
(NUNES: 1973, 8).
O aparente silêncio dos críticos a respeito de O lustre chamou a atenção da
própria escritora, conforme demonstrado nas missivas enviadas à irmã Tânia, em
abril de 1946, quando se encontrava no exterior: “Que é que há sobre O lustre?
Espero sempre notícias” (LISPECTOR: 2007, 108).
Clarice refere-se a um dos artigos elaborados logo após a publicação de O
lustre, no caso, à “crítica de impressões” 238
de Álvaro Lins, em maio de 1946. O
crítico reproduz os apontamentos já expressos em texto acerca de Perto do coração
selvagem, enfatizando o aspecto de incompletude do romance, bem como o jogo
inusitado de “palavras no ar”, que acaba por gerar uma escrita com excesso de
verbalismo: “[...] inflação de adjetivos na frente e nas costas dos substantivos, com
o gosto da palavra pela palavra a gerar um verdadeiro verbalismo” (Lins: 1946, não

238
Expressão utilizada por Olga de Sá em A escritura de Clarice Lispector (2000).

695
paginado). Para Lins, assim como o primeiro romance da autora, O lustre também
se revela como incompleto, ou “mutilado”:

[...] romances mutilados e incompletos, são os dois livros publicados pela


Sra. Clarisse Lispector, transmitindo ambos nas últimas páginas a
sensação de que alguma coisa essencial deixou de ser captada ou
dominada pela autora no processo de arte de ficção (LINS: 1963, 192).

Além disso, o crítico o considera “com as mesmas consideráveis qualidades


e as mesmas deficiências essenciais” (LINS: 1963, 192), ao se referir à “fisionomia
psicológica de Joana”, para ele similar à de Virgínia.
Abordando a segunda obra em comparação com a primeira, a crítica de Álvaro
Lins recai sobre o aspecto de descontinuidade presente nas categorias espaciais e
temporais da narrativa, salientando, com isso, a “falha” da ficcionista: “[...] alguma
coisa essencial deixou de ser captada ou dominada pela autora no processo da arte
de ficção” (LINS: 1946, não paginado).
Embora a nota de Álvaro Lins intua as mudanças que estão no horizonte da
escrita de Clarice Lispector, este não soube avaliá-las em sua profundidade,
contribuindo com a herança lacunar da crítica em relação ao segundo romance.
Em fevereiro de 1946, Sérgio Milliet registra em seu Diário crítico alguns
apontamentos acerca da escrita de O lustre, destacando o “estilo exuberante de
imagens” e a “volúpia da palavra”, elementos que se expandem “numa permanente,
e por vezes exaustiva, sinfonia” (MILLIET: 1981, 41) no romance em questão. Além
disso, equipara a narrativa de O lustre com a obra de estreia, ao observar “a mesma
procura de fixação do imponderável e do diferente que caracteriza Perto do coração
selvagem” (MILLIET: 1981, 40).
Contudo, Milliet desaprova a repetição estilística contida em O lustre,
procedimento que considera supérfluo e, por vezes, contribuinte do que considera
como “perigo da fórmula” (MILLIET: 1981, 41), ou seja, como um aspecto insistente
e desgastante de estilo. Desse modo, o estudioso coloca a repetição como
elemento enfraquecedor da escrita clariciana, preferindo salientar o poder inventivo
das imagens: “Se com isso perde o romance alguma solidez, principalmente alguma
geometria ganha, e muito, em luminosidade” (MILLIET: 1981, 42).

696
Contestamos a posição do crítico, uma vez que a repetição sistemática surge
muitas vezes na obra clariciana como procedimento primordial para a escritora
pensar a própria escrita, como se pode notar na crônica Explicação que não se
explica239, texto de natureza metalinguística, em que tece reflexões em torno da
elaboração dos contos de Laços de família: “[...] a repetição me é agradável, e
repetição acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena
enjoada diz alguma coisa” (Lispector: 1999, 240). Nesse sentido, a repetição atua
como um dos desafios à narrativa clariciana, ao mesmo tempo em que invoca a
compreensão do texto, lançando a ele um olhar mais crítico e diferenciado. Como
bem observa Compagnon: “[...] interpretar um texto é sempre, inevitavelmente, com
a identidade, produzir a diferença, com o mesmo, produzir o outro: descobrimos
diferenças sobre um fundo de repetições” (Compagnon: 1999, 68). Portanto, a
argumentação de Sérgio Milliet aponta para “um persistente preconceito contra os
processos conscientes de experiência com a linguagem” (SÁ: 2000, 32), uma vez
que a repetição tem lugar privilegiado na obra de Clarice Lispector e seus
procedimentos corroboram uma ficção errática, em constante tecimento.
Em julho de 1946, é a vez de Gilda de Mello e Souza abordar o romance,
observando a “linguagem anímica” e os “processos poéticos” presentes em O lustre
como fatores comprometedores da escrita: “O empréstimo de processos de outros
gêneros raras vezes é enriquecimento. Esposando os processos poéticos, não teria
O lustre traído, de certa maneira, a característica principal do romance, que é ser
discursivo?” (SOUZA: 1989, 172).
Na visão de Gilda, o livro de Clarice Lispector faz parte da linhagem dos
“romances simbólicos”, na esteira das obras de Georges Bernanos (1888-1948) e
Franz Kafka (1883-1924), as quais “[...] corporificam, por assim dizer, os problemas
mais essenciais do indivíduo, de uma situação ou de uma época [...] atingindo
através dessa personalização uma força e um poder extraordinariamente mais
fortes” (SOUZA: 1989, 173).
A estudiosa atenta ainda para os qualificativos empregados em excesso pela
escritora, os quais tendem a desfuncionalizar a escrita, em claro sinal de

239 Publicado no Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1969.

697
rebuscamento: “Nisso reside, aliás, a majestade barroca com que avança pelos
problemas mais complicados, tentando resolvê-los” (SOUZA: 1989, 173).
Semelhante à posição de Milliet, Gilda de Mello e Souza salienta o “abuso de
qualificativos”, além de não reconhecer o intercâmbio dos gêneros como
procedimento fértil para a escrita do romance.
É compreensível que os estudos acima mencionados respondam a uma
época ou contexto em que o trabalho crítico desejava avaliar e situar a escrita
clariciana a partir de certa rigidez normativa. Constantemente, a crítica atual tem
tomado por base a leitura canônica destes críticos, desconhecendo um grande
número de outros ensaios e artigos que dão corpo à fortuna crítica do romance, tal
como o texto intitulado O lustre: um romance não como os outros, de Maurício
Vasques para o jornal Dom Casmurro, em fevereiro de 1946. Para o crítico, a força
do livro de Lispector estaria na subversão das “regras da linguística” ao conciliar
qualidades e situações antagônicas no discurso, viabilizadas pela tentativa da
escrita quanto à “definição de situações indefinidas e incompreensíveis, mas das
quais está a vida cheia” (VASQUES: 1946, 2). Por explorar sentimentos
genericamente constantes da alma humana, Vasques denomina o segundo livro
como “romance universal” (VASQUES: 1946, 2).
Em março de 1946, Almeida Salles escreve um artigo no rodapé de crítica do
jornal carioca A manhã, contrariando as opiniões dos outros críticos ao posicionar-
se em relação ao uso excessivo dos adjetivos no romance: “Nunca na nossa
literatura usou-se o adjetivo com esse poder obsedante de perfuração das
aparências e de apreensão dos movimentos mais esquivos dos seres” (ALMEIDA
SALLES: 1946, 1). Considerando O lustre como obra propícia para discutir e otimizar
novas possibilidades de leitura do romance moderno brasileiro, Almeida Salles
envereda sua leitura pelos caminhos inenarráveis do texto de Lispector, valorizando,
na captação da realidade, os efeitos visuais e auditivos, os quais se afinam com o
intrigante silêncio da personagem Virgínia: “Não contar, não descrever, mas
registrar de dentro da personagem, com uma receptividade sensível e isenta de
prejuízo crítico, as sensações diretas, a gama das relações entre os sentidos e as
coisas” (ALMEIDA SALLES: 1946, 1).

698
Considerações finais

A escrita de Clarice Lispector tende à recusa ou condição de obra fechada e


acabada. Roland Barthes, em Crítica e verdade, refere-se à noção de acabamento,
salientando:

[...] somente a obra pode ser acabada, isto é, apresentar-se como uma
pergunta inteira: pois acabar uma obra não pode ser outra coisa senão a
deter no momento em que ela vai significar alguma coisa, no momento em
que, de pergunta, ela vai transformar-se em resposta; é preciso construir a
obra como um sistema completo de significação, e entretanto, que essa
significação seja desiludida (BARTHES: 2007, 75).

Comumente ligada à vida e ao nascimento, líquido amniótico 240, a água, tal como
um espelho deformante, propicia o encontro com a morte e o embate com a
linguagem em O lustre, na medida em que movimenta no discurso conexões
imprevistas da ordem do insólito. A autora desloca o plano da ação para a esfera
anímica, buscando captar as experiências sensíveis e inteligíveis da
personagem. O que resta desta escrita é a “visão de míope” (SOUZA: 1980, 79),
pormenorizada pelo apelo a nuances e miríades fragmentárias de informações e
vivências. Assim, o texto viabiliza-se por meio de longos períodos, com
paradoxos e parataxes, de modo a traduzir a dificuldade de existir de Virgínia.
Ainda que a vida da personagem seja descrita em etapas e progressões lineares,
o discurso apresenta-se de modo fragmentário e elíptico, cujas mudanças
bruscas, com fatos narrados de modo incompleto e lacunar, difundem no texto
uma espécie de dinâmica que tensiona a liquidez deformante da água, cujo signo
se acopla a imagens grotescas, gerando a convivência entre vida e morte, fluxo
e corte, fluidez e embate, claridade e sombreamento, e — por que não ? — Eros
e Thanatos. Tais imagens caracterizam-se por aspectos desagregadores, os
quais negam a essência líquida e/ou fluida do sema da água. Trata-se de uma
escrita que acena, em última análise, para uma falência situada no âmago da

240 Cf. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 427-430.

699
própria linguagem, a pontos impossíveis e impronunciáveis, ainda que
desenhados e meramente circunscritos no discurso.
Segundo Plínio Prado Júnior, tal impossibilidade caracterizaria a “estética do
fracasso”, ou seja, uma escrita que procuraria dar forma ao incomensurável:
“através do esforço e do malogro de sua linguagem, ela [a escritura] faz sentir
que algo escapa e resta não determinado, não apresentado, ela inscreve uma
ausência, alude ao que se evola” (PRADO JÚNIOR: 1989, 24-25). Justifica-se aí
o aspecto de inacabamento observado na construção da personagem Virgínia,
bem como a ausência de meios de demarcação de sentido de muitas cenas do
romance.

Referências

ALMEIDA SALLES. Rodapé de crítica: O lustre. A manhã. 31 de Março de 1946. p.


1.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: CANDIDO, Antonio. Vários
escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. p. 123-131.
COMPAGNON, Antoine. O autor. In: COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria:
literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 47-96.
ECO, Umberto. A obra aberta: forma e indeterminações nas poéticas
contemporâneas. Tradução Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2005.
LINS, Álvaro. A experiência incompleta: Clarisse Lispector. In: Os mortos de
sobrecasaca: ensaios e estudos (1940-1960). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963. p. 186-193.
______. Jornal de crítica: romances. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 17 de maio
de 1946.
LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
______. Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
MILLIET, Sérgio. Diário crítico. Vol. 4. São Paulo: Martins, 1981.

700
NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973.
PONTIERI, Regina Lúcia. Clarice Lispector: uma poética do olhar. Cotia: Ateliê
Editorial, 1999.
PRADO-JÚNIOR, Plínio. O impronunciável: notas sobre um fracasso sublime.
Remate de Males, Campinas, n.9, 1989. p. 21-29.
SOUZA, Gilda de Mello e. O lustre. Remate de males. n. 9. 1989. p. 171-175.
______. MELLO e SOUZA, Gilda de. O vertiginoso relance. In: MELLO e SOUZA,
Gilda de. O baile das quatro artes: exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades,
1980. p. 79-91.
VASQUES, Maurício. O lustre: um romance não como os outros. Dom Casmurro. 6
de abril de 1946. p. 2.

AS AGRURAS DO SERTÃO SOB VÁRIAS PERSPECTIVAS DA

701
ARTE BRASILEIRA

Marleide Santana Paes241

Introdução

Umas das obras mais célebres sobre o sertanejo nordestino é Os Sertões


escrito em 1902 por Euclides da Cunha, cinco anos após o famigerado massacre
ocorrido na Guerra de Canudos. Esta obra foi uma das primeiras a evidenciar os
problemas políticos sociais e econômicos do sertão nordestino.
Três décadas depois, as mesmas agruras sertanejas relatadas na obra
euclidiana, foram romanceadas por Graciliano Ramos e Raquel de Queiros, nas
respectivas obras Vidas Secas e O Quinze. No campo da música, inúmeras são as
composições que evidenciam o ambiente inóspito nordestino. Um dos cantores que
mais explorou esta temática do retirante fugindo da seca na “terra ignota” foi Luis
Gonzaga.
As dificuldades dos sertanejos, o drama do vaqueiro que sai de sua terra para
escapar da fome e da seca, também são temas que se fazem presentes nas obras
de Elomar Figueira Mello. As agruras da vida do sertanejo, bem como o espaço
inóspito à sobrevivência digna do ser humano aparecem em todas as obras que
serão analisadas neste trabalho, todavia tais questões serão efetivamente
exploradas na análise do álbum Fantasia Leigas para um Rio Seco, composto em
1981.

Sertão: “Terra Ignota”

Quando escreveu Os Sertões, em 1902, Euclides da Cunha pautou-se na


supremacia da ciência para entender o sertanejo como sujeito histórico-social. Em
sua obra, ele discorre sobre a geografia do sertão e tenta explicar a partir desta o
clima totalmente inóspito ao homem sertanejo que recalcitrante teima em não o

241Doutoranda em Letras- UPM. Orientada pela Professora Doutora Glória Carneiro do Amaral: Professora
livre-docente da Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.

702
abandonar. O posicionamento de Euclides da Cunha em relação à geografia do
Sertão evidencia que apenas a ciência seria capaz de explicar as relações sociais,
psicológicas e econômicas do homem do sertanejo.
O termo “Terra ignota” foi cunhado pelo teórico Luis Costa Lima para se referir
ao sertão descrito por Euclides da Cunha. Segundo o teórico, a literatura aparece
em Os Sertões como “ornato”. Costa Lima destaca que a linguagem poética foi
utilizada por Euclides da Cunha como um “aliviar de tensões” diante da perplexidade
de se contemplar as agruras de uma “terra ignota”. O crítico literário explica como
se dá o exaurir de tensão diante das rudes paisagens sertanejas que Euclides da
Cunha precisa descrever: “pela torção literária, é esvaziada a tensão que quase se
torna insuportável - há uma ciência capaz de dizer de tão estranha terra sujeita a
tamanhas oscilações?” (sic) (COSTA LIMA, 1997, p. 153).
O autor de Os Sertões concebe o habitante do sertão como produto
resultante de inúmeros cruzamentos. Em sua visão, preponderantemente
positivista, o sertanejo é uma “sub-raça”, empecilho ao progresso civilizatório, uma
vez que a “mistura de portugueses, índios e negros constitui um problema
representativo de involução biológica. Para Euclides da Cunha, a religiosidade do
sertanejo era tão mestiça quanto o mesmo. O sertanejo era, por conseguinte,
desprovido da “capacidade orgânica de se afeiçoar a situação mais alta”, uma vez
que é “um caso de anacronismo psíquico ideativo”. Por isso, a respeito do sertanejo
o autor assegura: “deixa-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas”,
sua “religião mestiça” seria resultante do intercruzamento cultural-religioso feito a
partir do “antropismo selvagem, o animismo do africano e o aspecto emocional da
raça superior”. (CUNHA, 2009, p.135-136; p. 145-146).
Desse modo, ao manter estreito vínculo com as correntes científicas
emergentes nos finais do século XIX, Euclides da Cunha constrói seu pensamento
sob as leis do determinismo e da hereditariedade. Por isso, os seus delineamentos
positivistas o fazem compreender o sertanejo como um ser dotado de apego servil
a terra, alienado fatalmente a um ambiente de clima pouco receptivo ao homem que,
diante das agruras oferecidas pelo meio, se apega a: “todas as profecias esdrúxulas
de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões e as penitencias”.

703
Euclides da Cunha concebe estas “manifestações complexas de religiosidade
indefinida”, explicáveis biologicamente, a partir da “fraqueza de consciência” de um
povo que na sua concepção é o “resumo degenerativo de três raças”. (CUNHA,
2009, p. 198).
Na década de 1930, os sérios problemas sociais ocasionados pela seca e
pela falta de assistência política para as regiões do nordeste do Brasil, serão
explorados mais uma vez. Agora a partir das ficções de Graciliano Ramos em Vidas
Secas e Rachel de Queiros em O Quinze. Estas obras foram escritas na chamada
literatura modernista de segunda fase, denominada pela tradição literária como
romance social e/ou literatura engajada. As personagens Fabiano e Chico Bento,
respectivamente dos dois últimos autores supracitados, representam os muitos
sertanejos que ao longo da história do sertão nordestino brasileiro foram e ainda
são segregados social e politicamente. Eles representam os milhares de nordestinos
que a todo ano são varridos do sertão. Como diz o narrador de Vidas Secas a
respeito de Fabiano: “A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo,
à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca”. (RAMOS, 2009.
p. 8)
A narrativa de Graciliano evidencia que a fome, a miséria e a falta de
dignidade humana, não se configuram como uma exceção na vida do sertanejo,
antes, é uma realidade que o acompanha insistentemente. Quando o romance
começa, Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia estão se retirando
porque há um período de estiagem muito extenso na região em que vivem, conforme
a citação a seguir: “o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinha deixado os
caminhos cheios de espinhos seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a
lama seca e rachada que escaldava os pés”. (RAMOS, 2009. p 03.). Conforme
podemos verificar, Fabiano e a família saem errantes, em busca de água. No
desenrolar da narrativa, a chuva vem e os retirantes têm a oportunidade de plantar
em uma terra abandona.
Quando tudo parece sob controle e a família faz planos para melhorar a
sofrida vida, eis que aparece um suposto dono da terra que os explora por algum
período e depois os abandonam a própria sorte com a chegada do outro período de

704
estiagem. A narrativa de Graciliano Ramos deixa evidências de que a vida precária
do sertanejo não está condicionada apenas aos fatores climáticos, mas também aos
de ordem social.
O vaqueiro Chico Bento, por sua vez, experimenta a realidade da seca como
um agente desintegrador de sua família, quando membro a membro se dispersa do
grupo e são tangidos para lugares longínquos, entregues à própria sorte, em busca
da sobrevivência. O romance termina e a família de Chico Bento não é restaurada,
cada membro foi se perdendo pelas veredas do sertão assolado pela fome. O ponto
alto da tragédia na trama de Rachel de Queiros é a morte de Josias, um dos filhos
do casal. A criança morre após comer uma “manipepa”, mandioca brava, imprópria
para consumo humano:

Lá se tinha ficado Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz
de dois paus amarrados, feitas pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que
chorar de fome, estrada a fora, não tinha mais alguns anos de à frente da
vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz.
(QUEIROS, 1986, p 27)

Josias era um privilegiado, descansou das agruras da vida antes dos outros
miseráveis da família, provavelmente fadados ao mesmo destino: nascer, viver e
morrer como bicho.
Sob a ótica de Nelson Werneck Sodré, os anos decorrentes entre 1930 e
1935 tiveram “grandes criações literárias” às quais estavam imbuídas de
“imprescindível valor”, bem como de estudos sobre o Brasil cuja “variedade singular
de temas” estava ligada às questões políticas e sociais: “O tema político e social
figura como destaque, e as controvérsias surgem acaloradas [...] É a época da ficção
documentária e liberalista desvendando o terrível quadro da população abandonada
e explorada secularmente” (SODRÉ, 1987, p. 44-5).
No gênero musical, a temática do homem e suas relações com as
inclementes condições climáticas do Nordeste, também foram cantadas. Um dos
nomes de maior destaque é o cantor Luis Gonzaga; nas composições “Asa Branca”
(1947) e a Triste Partida, ele revela a angústia do homem que se vê obrigado a

705
deixar suas terras e muitas vezes, a família para ir “tentar a sorte’ em outras
paragens:

Que braseiro, que fornaia


Nem um pé de plantação
Por falta d’agua perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão.

Como vemos, mais uma vez a seca é abordada na arte para retratar a vida
sertaneja assolada pela seca. A música de Luis Gonzaga é um misto de dor do eu
- lírico pela partida forçada de suas terras e também a esperança de que aquele
sofrimento é temporário. Em Asa Branca, o eu - lírico compara a terra seca e ardente
do Nordeste à fogueira de São João, mas resignado com a inevitável partida, só lhe
resta sonhar com o dia do regresso para sua “pátria”, o sertão:
Hoje longe muitas léguas
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra eu voltar pro meu sertão

A fé do sertanejo aparece na composição “A triste partida”. O eu - lírico


insiste em aguardar até o limiar de sua resistência física para abandonar a terra.
Depois de meses rezando, fazendo simpatias para saber se a chuva virá, ele não
encontra alternativa que não seja a de partir.

Meu Deus, meu Deus


Setembro passou
Outubro e Novembro
Já estamos em Dezembro
Meu Deus, que é de nós,
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz.

Em diálogo com estes gêneros, as artes plásticas também transpõem para a


pintura a triste condição do sertanejo fugindo da fome ocasionada pela seca. Os
Retirantes (1944), do pintor Cândido Portinari retratou a tríade da morte: seca, fome
e desnutrição.

706
As causas (desigualdade social/seca) nos direcionam à consequência
(morte). Os urubus que aparecem na parte de cima da tela, contrastando com o céu
sem nuvens e o chão com pequenas manchas brancas sugerindo ossos espalhados
pelo solo corroboram para entendermos que a iminente morte é um fato concreto
no futuro daquela família. Sendo assim, os elementos desigualdade social e fome
são contundentes para que na tela se perceba o horror de seres humanos
degradados a condição de mortos vivos. Esta sensação de deterioração humana,
sentida na tela, também pode ser notada nas outras obras supracitadas, sobretudo
em O Quinze. O cenário desumano transposto para a pintura lembra a
desafortunada família de Chico Bento sendo varrida pela seca e tragada pela morte:
[...] arquejando penosamente, estava um dos meninos de Chico Bento, o
Josias. O ventre lhe inchara como um balão. O rosto intumescera, os lábios
arroxeados e entreabertos deixavam passar um sopro cansado e angustioso
[...] A criança era só osso e pele: o relevo do ventre inchado formava quase
um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco de defunto,
empretecido e malcheiroso. (QUEIROS, 1986. p. 23-4)

Conforme podemos verificar, os mais diversificados gêneros de circulação


ligados à arte procuraram a seu modo mencionar os problemas sociais que afligem
a região do nordeste brasileiro desde seus primeiros anos de povoamento. Todas
as composições são carregadas de muita dramaticidade e por si denunciam
intencionalmente ou não os problemas sociais nordestinos. Estes artistas, cada
uma ao seu modo, ratificaram que este pedaço de geografia, em muitos casos,

707
constitui-se uma terra ignota divorciada do restante do país por muitos motivos que
são bem mais perniciosos que os fatores climáticos.

Fantasia leiga para um rio seco: lembranças de um astro tirano:

Consoante assinalamos nas partes introdutórias desse trabalho, estas


agruras nordestinas também foram interpretadas na voz de Elomar Figueira Mello.
Fantasia leiga para um rio seco (1981) é um poema narrativo que teve seu primeiro
registro sinfônico feito pela Orquestra Sinfônica da Bahia. A composição relata a
saga consciente do retirante para a morte que fatalmente o espera antes de chegar
ao seu destino. A dramaticidade do poema é potencializada pelo cenário de horror
que semelhante às obras já citadas, também revela a degradação humana diante
da fome. A história narrada remete aos acontecimentos da seca ocorrida em 1890,
popularmente conhecida por “fome do noventinha”. Esta história, como muitas
outras foi ouvida inúmeras vezes pelo autor quando o mesmo ainda era uma criança.
A fome e o horror que assolaram a população na época, ainda hoje são contados e
recontados oralmente pelo povo do sertão.

Fantasia Leiga para um rio Seco segue o modelo do poema épico e narra a
história de um retirante que depois de perder mulher e filho na “fome noventinha”
parte do sertão em direção à região denominada de mata-cipó. O poema narrado é
dividido em cinco cantos, a saber: a abertura intitulada “Incelença para a terra que

708
o sol matou”, 2º canto “tirana”, 3º canto “parcela” 4º cato “contradança” e 5º canto
“amarração”.
A obra apresenta todas as asperezas que o ser humano pode sofrer quando
privado da água, bem mais essencial à vida. Na abertura do poema já se tem o
canto fúnebre, “as incelença” para a terra.

Levanto meus olhos


Pela terra seca
só vejo tristeza
quidi solaçao
eu’a ossada branca
fulorano o chão
e o passu- Rei, rei do manjá
deu bênça à Morte práavisá
prus urubu de ôtros lugá
qui Vince logo pru jantá

Observem que o mesmo cenário que aparece nos versos acima, também
nos remete a imagens reproduzidas na tela de Candido Portinari, sobretudo “a
ossada branca/fulorano o chão” e a mobilização dos urubus de outros lugares que
serão convidados para o iminente banquete. Os únicos seres robustos naquele
cenário são estas aves. Elas são indícios de morte ou véspera de morte. O convite
para o manjar é feito pelo “passu- Rei, rei do manjá”, referência provável aos urubus
locais que diante de tanta morte, podem convidar outros companheiros, de regiões
mais longínquas, para se refestelarem também nas carcaças dos retirantes que
sucumbem no meio de suas jornadas.
Destrinchando as nuanças de Fantasia leiga para um seco é possível
perceber que o tom narrativo da obra estabelece um diálogo harmonioso com todas
as obras acima mencionadas que já abordaram da temática da seca. O próprio título
do álbum já dialoga com a retirada de Fabiano e a família que passam por um leito
de rio seco, conforme aparece na citação de Vidas Secas: “fazia horas que pisavam
a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés”. (RAMOS, 2009. p
03).
A religiosidade do sertanejo com seus ritos e mitos, apontada por Euclides
da Cunha como sinal de “fraqueza de consciência, também aparece no poema-

709
narrado. Obviamente, não com o mesmo posicionamento do autor de Os Sertões.
Quando Elomar Figueira Mello opta por inserir o ritual fúnebre na obra, ele
oportunamente resgata uma tradição secular que existe no sertão, a saber, o louvor
ao morto. Cantar o morto é a um só tempo lamentar sua partida e celebrar a sua
memória. Segundo a tradição popular nordestina, as “incelença” são lamentos
direcionados a quem ou está agonizando diante da morte, ou a alguém que acabou
de morrer.
Contrariando a tradição, no poema de Elomar Figueira Mello, o canto fúnebre,
é direcionado à terra aniquilada pelo sol que neste contexto se configura como um
implacável inimigo da mesma e de tudo que sobre ela está. Homens, vegetação e
animais, todos se tornam vítimas do carrasco astro:

Mais o sol malvado


quemô os imbuzêro
os bode e os carnêro
toda a criação
tudo o sol quemô

O segundo canto por sua vez, narra a dor “tirana”, sentimento de perda e
saudade do lugar e das pessoas amadas. Neste canto, conhecemos a saga do
retirante que depois da morte da mulher e do filho sai sertão a fora ciente de que
sua sina é sucumbir perante a morte semelhante aos seus entes queridos. A
personagem é desprovida de esperança. Sabe que seu destino está fatalmente
traçado pela seca, uma vez que “todos qui fôro num voltaro tão nos ceus":

prú vai-num-torna
prá num voltá mais aqui
in terra istranha
e morrê longe do sertão

No terceiro canto intitulado “Parcela” o retirante prossegue sua caminhada


sentindo desertor de sua pátria: "abaldonano as patra do sertão", porém está culpa
é atenuada pela certeza de que ele, igual a sua família, morrerá sem cumprir sua
jornada: "do vai-num torna num se volta não". O 4º canto, sob o título de
“Contradança” tem apenas a presença da orquestra, nada se diz acerca da

710
caminhada do sertanejo retirante, a debilidade física e moral de um sertanejo
“despatriado” do seu sertão é revelada apenas pelos sons eruditos que conseguem
revelar toda dramaticidade omitida em palavras neste canto. Somente no último
canto que sabemos que a sina do desafortunado retirante se cumpriu. Apesar de
esse último canto ter boa parte orquestrada, o refrão revela que o momento da morte
do retirante chegou. Ciente disso, ele se despede da vegetação do seu sertão:

Cadê os pé do imbuzêro
qui flora todo ano
nas baxada
e nas vereda
mana mia
cadê os pé d’imbu
meu mano
adeus pé dos imbuzêro

A tragédia já anunciada no início do poema efetiva-se no último canto quando


transpassado pela fome, sede e cansaço o retirante contempla seus entes queridos
descansando na glória de Deus. Daqui da terra morta, o retirante usa suas últimas
forças para se despedir do “imbuzêro”, símbolo de subsistência do sertanejo. Ele
também, o “pé de imbuzêro” foi vítima da tirania do astro rei. A resistente árvore
também sucumbiu perante a tirania do sol. O “imbuzêro, não “fulorou” este ano.

Vejo o céu se abrino


Ela e o minino
Tão drumino
Na Santa Glória
de Deus

Em Fantasia leiga para um rio seco é possível observarmos que


poeticamente, amalgamando o erudito e o popular, o autor também fala desse
sertão historicamente segregado. Estas dificuldades políticas e sociais apontadas
nos diversificados gêneros ao longo da história não são capazes, porém de ofuscar
as tradições religiosas e culturais do homem sertanejo que se ornamenta, se atavia,
se mobiliza em várias ocasiões do ano para saudar seus padroeiros, para pedir
chuva aos céus. É desse sertão contraditório, em que vida e morte parecem andar

711
de mãos dadas que Elomar Figueira Mello dá vida as suas personagens, seja para
falar do sertão físico, seja para falar do sertão mítico.

REFERÊNCIAS
CUNHA, Euclides. Os Sertões. Campanha de Canudos. 3ª Edição São Paulo:
Editora Ediouro. 2009.
GONZAGA, Luiz. Triste Partida. 50 anos de Chão. Vol. 4. Disponível em:
http://letras.mus.br/luiz-gonzaga/82378/ (00h09min)
_________________. Asa Branca. gravadora RCA. 1989. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cWiJL0_yj9c (00h03min)
LIMA, Luiz Costa. A Construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1997.
MELLO. Elomar Figueira. Fantasia Leiga para um Rio Seco. Álbum/Disco vinil.
Orquestração e regência: Lindenbergue Cardoso. Direção de Produção: Carlos
Pitta. Edição: Fundação Cultural do Estado da Bahia. Gravadora do Rio Gavião,
1981. (46 min.)
_____________________. Porteira Oficial de Elomar. Disponível em:
http://www.elomar.com.br/index.html
PORTINARI, Cândido. Os Retirantes. 1942. 550x589cm. Disponível
em:https://www.google.com.br/search?q=portinari+os+retirantes&es_sm=93&tbm=i
sch&imgil=qcfZ9wFPKHVYCM%253A%253Bi4ew5FcuvlXTGM%253Bhttp%25253
A%25. Acesso em: 15/04/2015 às 17h35min.
QUEIROZ, Raquel. O Quinze. 35º edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 107º edição. Rio de Janeiro. São Paulo: Record,
2009.
SODRÉ, Nelson Werneck. Literatura e História no Brasil Contemporâneo. Série
Revisão 28. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1987.

712
O LEITOR E O FANTÁSTICO EM A QUEDA DA CASA DE USHER:
LABIRÍNTICOS DE UMA NARRATIVA EM TRANSE

Marli Lobo Silva242


Introdução

[...] não sou louco – e, com muita certeza não sonho... Talvez mais tarde
se encontre uma inteligência que reduza o meu fantasma ao estado de
lugar – comum – alguma inteligência mais calma, mais lógica e muito
menos excitável do que a minha, que não achará nas circunstâncias que
narro com terror senão uma comum sucessão de causas e efeitos muito
naturais.
EDGAR ALLAN POE

A literatura fantástica tem sido objeto de muitos estudos, por isso mesmo
chegar a uma definição do que ela seja é tão impreciso quanto à própria amplitude
do gênero. Estabelecer, portanto, uma relação limítrofe dos critérios que aproxima
um entendimento dessa literatura é experienciar o “jogo de representação”
construído pela projeção artística que a narrativa fantástica evidencia. Todorov
afirma que o “fantástico se define a partir do efeito de incerteza e da hesitação
provocada no leitor face a um acontecimento sobrenatural”. Edgar Allan Poe se
nutre dessa incerteza e hesitação quando dá forma a uma narrativa ambientada na
vaguidão e no impreciso, explorando o que de melhor o fantástico propõe: a “dupla
ruptura, o da ordem do cotidiano e a do sobrenatural”. (BESSIÉRE apud
CALASANS, 1988, p.27).
Dessa forma, ao considerar que para Edgar Allan Poe “escrever era compor”
a integralidade do efeito do conto de “A queda da Casa de Usher” vai além de um
plano de construção de uma mente inquieta como a de seu autor, cuja narrativa nos
seduzem não pela rede de intrigas, mas pelo silêncio fantasmagórico quando
percorridos pela ótica do narrador nas imagens lúgubres dos arredores da mansão
secular. Partindo desse pressuposto, as linhas de força da poética poeana tornam-
se indissociável os campos crítico-ficcional, uma vez que buscar os deslindes de
seu fazer poético tornar-se-á imprescindível uma aproximação de seu campo de
construção narrativa, uma vez que esta deve partir da intenção de obter certo efeito,

242 PUC-GO

713
para o qual o autor “inventará os incidentes, combinando-os da maneira que melhor
ajude a conseguir o efeito preconcebido” (POE, 1993, p. 72).
A narrativa ficcional abre suas primeiras páginas com o elemento fantástico,
onde logo de início Roderick Usher, opta por não enterrar o corpo da irmã e pede
ajuda ao seu amigo para manter o corpo de Madelene em um dos cômodos
subterrâneos da casa. Na sequencia o narrador começa a andar em círculo pelo
quarto estremecendo a cada rajada de vento da tempestade que principiava. De
repente ouve passos, era Usher que adentrava em seu quarto com uma lâmpada,
sua fisionomia sinistra era aterrorizante. Nesse instante o leitor percebe o
sentimento de angustia do narrador através da narrativa em meio aos
acontecimentos perturbadores produzidos por este.
Numa tentativa de acalma Roderick o narrador ler um de seus romances
preferidos intitulado Mad Trist, de Sir Launcelot Cunning243. Tem-se nessa iniciativa
uma interferência do autor ao leitor, por que lhe fornece subsídios intertextuais
suficientes a conduzi-lo ao deslinde da trama.
O fim da narrativa é uma evidencia desatenuante que lhe agrega as
características intrigantes da obra: a irmã de Usher que até então o leitor acreditava
estar morta, adentra na sala sinistra e sobrenatural; ela fixa o olhar no irmão
caminha em sua direção e atira-se sobre ele, que sucumbe num ataque fulminante.
Diante dessa dúbia realidade, o narrador desesperado foge da mansão e de longe,
ainda aturdido contempla-a ruir sob um forte estrondo, pondo fim a tudo e a todos.
Em “A queda da Casa de Usher244”, a relação de diálogo entre leitor e obra
ocorre de forma subjetiva e torna “inseparável a perspectiva da recepção da

1
Obra fictícia inventada pelo próprio Poe tão somente com o propósito de contribuir como um artifício narrativo
do conto em estudo.
2
Publicado em 1839, no Burton’s Gentleman’s Magazine com o título original Tales of the grotesque and
arabesque, foi revisada em 1840 para integrar o volume Histórias Extraordinárias. Segundo pesquisas,
“arabesco” apresenta duas definições: a primeira faz referência a uma elaborada combinação de formas
geométricas semelhantes às de animais e plantas. São elementos da arte islâmica, normalmente usados para
enfeitar as paredes das mesquitas. A segunda faz referência ao ato de rabiscar de forma pouco legível. C om
relação à obra de Edgar Allan Poe, o “grotesco” corresponderia às narrativas satíricas, e o “arabesco” às
narrativas de terror, que causam calafrios no leitor. A primeira definição de “arabesco” foi usada por Poe no
ensaio “Filosofia do mobiliário”, no qual discorre sobre arquitetura. Em sentido literário “arabesco”, significa
algo exótico e misterioso; no conto “A queda da casa de Usher”, foi usado para descrever a aparência do
aristocrata Roderick Usher.

714
perspectiva da produção”. Isto ocorre pela maneira como o leitor é conduzido a um
cenário místico e assombroso, produtor do medo e suspense, acentuando
sobremaneira a expectativa do produzindo uma interação dialógica da obra.

Durante todo aquele pesado, sombrio e silene dia outonal, em que as


nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando,
sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente
tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do
melancólico Solar de Usher. Não sei como foi, mas ao primeiro olhar sobre
o edifício invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável, digo
insuportável porque o sentimento não era aliviado por qualquer dessas
semi-agradáveis, porque poéticas, sensações com que a mente recebe
comumente até mesmo as mais cruéis imagens naturais de desolação e
de terror. (POE, 1965, p. 244).

Observa-se que nessa passagem do conto, o diálogo caracterizado pela


interação entre o leitor e a obra, sem com isso, subtraí-lo da sua realidade. Exemplo
disso, as circunstâncias situacionais e gradativas proporcionadas pela obra leva-o
a essa experiência sui generis. Isso ocorre porque a leitura cria uma dimensão
ficcional que a torna subjetiva. O verbo dizer, aludido no fragmento, caracteriza esse
ponto de contato com o leitor, promovendo um diálogo entre ambos.
Os níveis discursivos expressos no conto “A queda da Casa de Usher”,
induz a uma ação deliberada do texto onde uma sucessão de ocorrências, situadas
estrategicamente, obriga uma tomada de posição por parte do leitor num percurso
labiríntico, enigmático e sugestivo, em que cada peça do “jogo” tem sua importância
e função na decifração dos fatos.
Quanto ao narrador do conto, este desperta as mais estranhas sensações,
pois ao imergir nesse universo espectral, compartilha com o leitor suas angústias e
perturbações num pacto em que irá perscrutar o desenrolar de acontecimentos não
ditos, mas sugeridos ao longo da trama, observados por meio de pistas deixadas ao
longo do texto no intuito de despertar a atenção do leitor à sua objetivação em
diferentes momentos na trama.
Outro elemento fantástico que merece atenção no conto, “A queda da Casa
de Usher” é o estranho. De acordo com Todorov (2010), o estranho tem duas
origens. A primeira constitui-se de coincidências, pois está ligada ao sobrenatural
para sugerir, sem que necessariamente seja aceita. Ao citar “A queda da Casa de

715
Usher, por exemplo, poderia parecer sobrenatural os elementos estéticos; a
ressurreição de Lady Madeleine, a queda da casa e a morte dos irmãos; no entanto
Poe explica de forma racional que tais acontecimentos são sugeridos. Já a segunda
origem mostra que os elementos que provocam a impressão de estranheza não
estão relacionados ao fantástico, mas ao que poderia desencadear uma
“experiência dos limites”, estando esta, portanto, dentro dos padrões da obra de
Edgar Allan Poe.
Assim sendo, é necessário notar que não só pelos temas que propôs como
pelas técnicas que elaborou Poe já se aproxima do fantástico, pois o “desenredo”
enigmático elaborado pelo autor provoca o sentimento de mistério e absurdo no
texto onde sua constituição faz-se primeiramente mediante uma alusão digressiva,
quando o narrador interrompe a narrativa para relembrar fatos reminiscentes à
infância ao lado de Usher e deixa claro ao leitor que pouco conhecia de seu amigo.
“Sua reserva sempre fora excessiva e constante”. (POE, 1965, p. 245). O narrador,
como melhor amigo de Usher, de alguma forma, lhe era distante, todavia
conhecedor de alguns acontecimentos importantes relacionados ao amigo.
Mencionar que “sabia” de outros fatos relacionados à família de seu amigo,
denota um “insight” ao leitor, que investido do papel de observador apenas espreita
a partir de sua percepção o desenrolar dos fatos. “Sabia, contudo, que sua família
das mais antigas, se tornara notada desde tempos imemoriais por uma particular
sensibilidade de temperamento, manifestando-se, através de longas eras” (POE,
1965, p.245).
O narrador, ao fazer menção aos acontecimentos dos antepassados de
Usher, induz o leitor, imprecisamente sobre outros episódios desencadeadores da
trama. Segundo Lúcia Santaella (1989), essa imprecisão em Poe ocorre pelo fato
de o contista não produzir enredos, mas “desenredos”, uma vez que o mesmo
propõe ao leitor um quebra-cabeça, um enigma para ser desvendado (p. 158).
Em outro momento, aguçando ainda mais o leitor, o narrador faz menção a
fatos decorrentes das enfermidades dos irmãos que poderão desencadear, ou não,
outras percepções do leitor a partir dos enigmas referidos estrategicamente no texto,
com o propósito de despertar o leitor para a revelação dos mesmos.

716
Eu conhecia também o fato, muito digno de nota, de que o tronco da família
Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer
época, um ramo duradouro; em outras palavras, a família inteira só se
perpetuava por descendência direta e assim permanecerá sempre, com
variações muito efêmeras e sem importância. Era essa deficiência,
pensava eu, enquanto a mente examinava a concordância perfeita do
aspecto da propriedade com o caráter exato de seus habitantes, e
enquanto especulava sobre a possível influência que aquela, no longo
decorrer dos séculos, poderia ter exercido sobre estes, era essa deficiência
talvez, de um ramo colateral, e a consequente transmissão em linha reta,
de pai a filho, do nome e do patrimônio, que afinal tanto identificaram
ambos. (POE, 1965, p. 245).

Tal fato promove um retrospecto ainda maior na trama, numa tentativa do


leitor em atar as pontas dessa história. Quando o narrador menciona a relação direta
entre membros familiares, leva o leitor a perceber outras pistas sugeridas na trama
com o intuito de uma melhor compreensão desses fatos dicotômicos contrapostos,
mas que se completam, resultando em novos sentidos. Mais do que despertar o
interesse do leitor, essas pistas deixadas deliberadamente, e em pontos
estratégicos da trama, provocam um retrospecto, e fazem com que uma nova
interpretação seja feita pelo leitor.
Supõe-se que essa releitura, mais do que encontrar o fio condutor dessa
trama, possibilita ao leitor chegar num melhor entendimento a partir dessas pistas:
em determinado momento num diálogo com o narrador percebe-se o peso dado às
palavras resignadas de Usher ao dizer:

Devo morrer nesta loucura deplorável. Estarei perdido assim, assim e não
de outra maneira. Temo os acontecimentos do futuro, não por si mesmos,
mas por seus resultados. Estremeço ao pensar em algum incidente,
mesmo o mais trivial, que possa influir sobre essa intolerável agitação da
alma. Na verdade, não tenho horror ao perigo, exceto no seu efeito positivo:
o terror. Nessa situação enervante e lastimável, sinto que chegará, mais
cedo ou mais tarde, o período em que deverei abandonar, ao mesmo
tempo, a vida e a razão, em alguma luta com esse fantasma lúgubre: o
Medo. (POE, 1965, p.248).

Em face dos conflitos que assolam a alma de Roderick, seu temor aos
acontecimentos futuros dados às consequências de tais atos, quais seriam esses
acontecimentos e esses fatos? Ele já os premeditava? Tais indagações sinalizam a
curiosidade do narrador, que o vê como um ser enredado em sua própria inércia,
numa luta vã com seus próprios fantasmas.

717
Nesse momento Usher deixa entender ao narrador, por meio de frases
dispersas, outra característica peculiar de sua condição mental: é que o mesmo
estava preso a determinados atos supersticiosos com relação ao lugar em que
morava, do qual jamais se afastara, e alude acerca de uma influência dita
“tenebrosa” preferindo não a especificar, pois ela representa um sofrimento há muito
constituído, estando além da compreensão comum.

Fiquei sabendo, ademais, a intervalos e por meio de frases quebradas e


equívocas, de outro traço singular de sua condição mental. Ele estava preso
a certas impressões supersticiosas com relação ao prédio em que morava e
de onde, por muitos anos, nunca se afastara, e com relação a uma influência
cuja força hipotética era exposta em termos demasiado tenebrosos para
serem aqui repetidos; influência que certas particularidades apenas de forma
e de substância do seu Solar familiar, através de longos sofrimentos, dizia e
le, exerciam sobre seu espírito; efeito que o físico das paredes e torreões
cinzentos e do sóbrio pântano em que esse conjunto se espelhava, afinal,
produzira sobre o moral de sua existência. (POE, 1965, p. 248).

Com isso, vemos que as pistas suplantadas no texto promovem uma


retomada reflexiva nesse universo vago, impreciso que é a obra de Edgar Allan Poe.
Vê-se que a preferência de Poe pelo indefinido, pelo sugestivo, advém de sua
capacidade de inserir-nos aos mais profundos recônditos senso-perceptivo e
abstrair de lá uma verdade artística, dada as infinitas possibilidades que o texto
literário suscita. Essa indefinição constitui para Poe, uma forma deliberada de busca
a novos conhecimentos nesse campo múltiplo de possibilidades, onde fendas
semelhando olhos ficam à espera de alguém que ajude a desvendá-lo.
Em um dos pontos de sua doutrina poética, Poe sugere que o conto deve
partir da intenção de obter certo efeito, para o qual o autor inventará incidentes
recombinando-os da melhor forma para que ajudem a conseguir os efeitos
pretendidos; exemplo disso é o poema “The Haunted Palace”245, o palácio
assombrado posto estrategicamente no meio da narrativa com o intuito de quebrar
o fluxo narrativo, configura-se num construto deliberado, como a chave de
decifração da trama. A propósito sobre isso Lovecraft explica que.

245
O palácio assombrado é composto por Edgar Allan Poe e publicado em abril de 1839 na revista Baltimore
Museum. No conto Roderick Usher também é poeta, o que pode ser compreendido como alter ego do autor
empírico. No limite da desrazão Usher declama o poema para o narrador ao som de uma guitarra, propiciando
fortes momentos na narrativa.

718
O fantástico se situa na experiência do leitor real, que deve ser a do medo,
da intensidade emocional provocada pela intriga. A atmosfera é a coisa
mais importante, pois o critério definitivo de autenticidade do fantástico não
é a estrutura da intriga, mas a criação de uma impressão específica. [...] o
conto fantástico não é julgado tanto em relação às intenções do autor e os
mecanismos da intriga, mas em função da intensidade emocional que ele
provoca [...] um conto é fantástico se o leitor experimenta um profundo
senso de pavor e o contato com potências e esferas desconhecidas
(LOVECRAFT, p. 18).

Os pontos confluentes são os fundamentos dessa construção poética de


Edgar Allan Poe, mas também o que pode diferenciá-los. No conto em estudo, o
poema enseja uma correspondência mútua de fatos alusivos, onde um retrospecto
ao olhar atento do leitor justifica a sua revelação. Tem-se, por exemplo, a reflexão
do narrador ao se referir a casa como um edifício de poucos indícios de fragilidade;
no entanto basta um olhar atento e minucioso de um observador para descobrir uma
fenda mal perceptível que se estenderá do teto da fachada, descendo em zigue-
zague pela parede de forma a perder-se nas águas soturnas do lago.
Em suma, a estrutura do poema ocorre numa projeção similar à fenda
relacionada no conto, os elementos centrais figuram como termos essenciais à
compreensão da trama, e o tema aludido no poema numa referência ao do conto.
Enfim, o poema é a “fenda” à espera da compreensão do conto é também a chave
que nas mãos do leitor pode desvendar o enigma proposto pelo narrador. “Quem
aqui penetrar, conquistador será; Quem o dragão matar, o escudo ganhará”. Será
esse o prêmio do leitor? Quem será esse leitor?
É sabido que Poe propõe narrativas emblemáticas e que isto exige do leitor
mais que uma interpretação, mas uma percepção arguta da obra e de seus
mecanismos como base de compreensão, pois espera que o leitor, ao perceber,
também desempenhe uma função dentro da obra, que é desvendá-la. Santaella
(1989) observa essa importante função do leitor, cuja tarefa é desvendar o texto.
Vejamos:

Por trás de cada escrito de Poe esconde-se a trama sutil (web-work, como
ele nos diz em “Usher”) de um narrador irônico que lá está a rir do leitor ou
para o leitor. Do leitor que ficou preso na armadilha do terror, enredado nas
suas teias, sem delas conseguir escapar, ou escapando por interpretações
mistificantes e fitichizantes de sua obra. Para o leitor que conseguir seguir
as pegadas do seu jogo, livrando-se do fetiche de uma leitura
contemplativa e de evasão, porque se lança ao desafio de decifrar os

719
meandros de um outro texto, formado por camadas subterrâneas e, ao
mesmo tempo, contidas de modo inverso na dimensão superficial do terror.
(SANTAELLA, 1987, p.188).

Dada a sua genialidade e a constituição de uma escrita igualmente


engenhosa, Poe certamente requer mais que um leitor modelo, mas um leitor que
vê a obra como elo entre diferentes modos de interpretação ante a forma dupla e o
jogo constante a que está submetida à trama.
O leitor de Poe é conduzido pela figura emblemática do narrador que pouco
ou nada sabe, e só percebe ou pressente os fatos como observador e partícipe,
numa espécie de jogo labiríntico, aonde os fatos irão se justapor numa estranha
iminência decifratória. O narrador segue manifestando a angústia e a perturbação
que o assombram ao contemplar a casa e os arredores:

Contemplei o panorama em minha frente – a casa simples e os aspectos


simples da paisagem da propriedade, as paredes soturnas, as janelas
vazias, semelhando a olhos, uns poucos canteiros de caniços e uns poucos
troncos brancos de árvores mortas, com extrema depressão de alma que
só posso comparar, com propriedade, a qualquer sensação terrena,
lembrando os instantes após o sonho de ópio, para quem dele desperta, a
amarga recaída na via cotidiana, o terrível tombar do véu. Havia um
enregelamento, uma tontura uma enfermidade de coração, uma irreparável
tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia
forçar a transformar-se em qualquer coisa de sublime. Que era – parei para
pensar - que era o que tanto me perturbava à contemplação do solar de
Usher? (POE, 1991, p. 244).

Suas inquietações decorrem das sensações estranhas que o envolvem, o


mistério de tudo que cerca a casa, tudo remete a um terror inaudível, inexplicável,
uma latência que nem mesmo o questionamento levantado por ele oferece uma
resposta plausível às suas inquietações e incertezas. A recepção é
caracteristicamente subjacente ao processo de produção da narrativa. Com isso sua
compreensão dos fatos é fielmente subordinada ao ponto de vista do autor, pois as
impressões de ambos se conflitam constantemente.
Cortázar (1993), diz que a técnica de Poe em apresentar o “presente e
inequívoco” corresponde, na prática, à sua teoria do efeito para atrair a atenção do
leitor. Poe escreve seus contos para “dominar, para submeter o leitor no plano
imaginativo e espiritual”. Uma vez que as linhas de força da poética poeana tornam
precisa esses elementos constituintes da narrativa curta. Cortázar revela ainda o

720
ponto central do método de Poe, qual seja, o de subordinar os incidentes à intenção
de obter um efeito único, ou seja, “o efeito obtido depende, em suma, de episódios
ou de atmosferas que escapam originariamente ao seu domínio” (Cortázar, 1993, p.
172).
A expressão “Que era”, exposta na citação acima reforça esse domínio
quando o narrador assegura o contato com o leitor ao despertá-lo por meio de suas
inquietações, conduzindo-o de certa forma através das impressões baseadas no
medo que a atmosfera da casa lhe provoca e que também são as do leitor, que a
princípio desconhece essas impressões construídas ao longo da narrativa e que
somados a outros acontecimentos conduzirão todo o deslinde da trama.
Desvendar o jogo do texto de Edgar Allan Poe requer um leitor atento, capaz
de inferir e mergulhar nas profundezas do outro, trazendo a lume o enigma
desvendado. Ao revelar o método de Poe, Cortázar (1993), diz que os incidentes
são subordinados à intenção de obter um efeito único e que tal prática se dá em
quase toda produção literária de Poe.
Assim, o conto “A queda da Casa de Usher” mais que um divisor de águas
traz as marcas de sua peculiaridade, a despeito daquilo que comumente almejam
manifestar no leitor. O texto é um quebra-cabeça e o que Poe quer do leitor é que
este decifre a trama.
A narrativa imputa características subjetivas, e testemunha os fatos a partir
do ponto de vista do narrador-testemunha, sem, contudo. deixar de influenciar a
interpretação do leitor, pois ainda que ao longo do texto sua visão seja um resultado
da visão do narrador não o impede de produzir sua própria interpretação. Ademais,
suas expectativas são constantemente mediadas pelas observações daquele que
assume claramente o papel de conhecedor e informante dos acontecimentos da
trama.
As expectativas produzidas pelo caráter espectral da obra são
constantemente sentidas quando sugerem a existência de forças psíquicas e
sobrenaturais capazes de despertar sentimentos e reações de terror, tanto pelo
narrador quanto pelo leitor. Esse horizonte de expectativas dos sujeitos agentes do

721
diálogo textual se completam inserindo-os no ambiente místico e misterioso do
conto como veremos.

Opresso, como certamente estava diante daquela segunda e muito


extraordinária coincidência, por mil sensações contraditórias, em que
predominavam o espanto e o extremo terror, mantive ainda suficiente
presença de espírito para impedir-me de excitar, por qualquer observação,
a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza alguma
de que ele houvesse notado os sons em questão, embora certamente uma
estranha alteração, durante os últimos minutos, se houvesse operado na
sua atitude (POE, 1965, p. 256).

Como se vê nessa parte do conto, o estranho assume o elemento


desencadeador do efeito, uma vez que a obra exerce de maneira imperativa a
exteriorização de sentimentos temíveis pelo homem, provocando uma ruptura com
a realidade, o que desencadeia o efeito de incerteza e hesitação no leitor perante o
acontecimento sobrenatural.
O fantástico é que norteia toda a narrativa do conto “A queda da Casa de
Usher”, onde seu efeito vem da aura de mistério e vaguidão que Poe coloca de
forma intencional e nessa ambiência o leitor luta para estabelecer uma lógica e por
não conseguir fica inerte. Nesse caso, ambos, narrador e leitor perdem-se
debatendo-se numa luta vã, o primeiro no interior da trama, este, no interior do texto,
onde as forças externas desconhecidas, que aparece no conto, responde pela
literatura fantástica, e vai muito além dos fatos inexplicáveis. Logo, que seja a
própria literatura fantástica redentora de seus demônios.

Referências Bibliográficas

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. Valise de Cronópio. 2ª ed. São


Paulo: Perspectiva, 1993.

_____. Do conto breve e seus arredores. Valise de Cronópio. 2a ed. São Paulo:
Perspectiva, 1993.

_____. Poe: o poeta, o narrador e o crítico. Valise de Cronópio. 2a ed. São Paulo:
Perspectiva, 1993.

LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. Tradução Celso M.


Parciornik. São Paulo. Iluminuras. 2007.

722
POE, Edgar Alan. A queda da casa de Usher. Ficção completa, poesia & ensaio.
Trad. Oscar Mendes. Rio de janeiro: Globo, 1987.

_____. Poemas e Ensaios. Traduzidos por Oscar Mendes e Milton Amado. 2ª ed.
Rio de Janeiro. Globo, 1987.

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo. Ed. Ática. 1988.

SANTAELLA, Lúcia. Edgar Allan Poe: o que em mim sonhou está pensando. In:
POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Tradução José Paulo
Paes. São Paulo: Circulo do livro, 1987.

TODOROV, Tzvetan. O estranho e o maravilhoso. Introdução à literatura fantástica.


2ª ed. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2003.

_____. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectivas 2010

723
CORPUS DE TEXTOS GRAMATICAIS DA LÍNGUA PORTUGUESA (CTGLP):
O COMPÊNDIO DA GRAMMATICA PHILOSOPHICA DA LINGUA
PORTUGUEZA DE ANTONIO DA COSTA DUARTE

Marli Quadros Leite 246


Raquel do Nascimento Marques247

Introdução

Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Corpus de textos gramaticais


da Língua Portuguesa (CTGLP), que tem como objetivo estabelecer nova
representação da história da terminologia linguística portuguesa e brasileira, tanto
sob um ângulo conceitual e terminológico quanto lexical e etimológico. Nesse
contexto, apresentaremos a descrição da última edição de o Compendio da
Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, publicada em 1877, de autoria do
padre maranhense Antonio da Costa Duarte.
O Compendio da Grammatica desempenhou um papel pioneiro na criação de
gramáticas portuguesas elaboradas no Brasil no século XIX e teve seis edições. A
1ª edição veio a lume em 1829 com o título Compendio da Grammatica Portugueza.
A segunda, de 1840, bem como as demais, acrescentada, ganha no título o
qualificativo “filosófica” e passa a ser denominada Compendio da Grammatica
Philosophica da Lingua Portugueza, aludindo, assim, a Grammatica philosophica da
lingua portugueza de Jerônimo Soares Barbosa, uma de suas mais importantes
fontes, publicada em 1822. Na 6ª edição da gramática de Costa Duarte, saída do
prelo em 1877, lê-se no prefácio que o autor era lente de Grammatica Philosophica
e Análise dos Clássicos no Liceu do Maranhão. Além disso, fica-se sabendo que,
pela qualidade da obra, a Congregação tornou-a oficial não só ali, como também
nas escolas de primeiras letras da província.
Destinada ao ensino elementar, esta obra pedagógica, apresenta a maioria
dos exemplos forjados pelo autor, todavia também encontramos exemplos retirados

246 USP/CNPq
247 Mestrado/USP/CAPES

724
da literatura, bem como exemplos tomados da Grammatica Philosophica de Soares
Barbosa.
No que diz respeito às classes de palavras, Antonio da Costa Duarte refere-
se à cinco partes elementares da oração: nome substantivo, nome adjetivo, verbo,
preposição e conjunção. O gramático não considera a interjeição uma classe de
palavra porque esta, por si só, equivale a uma oração. Além disso, Costa Duarte
inclui o artigo, o pronome e o numeral na classe dos adjetivos. Quando à influência
exercida, essa obra inspirou gramáticas posteriores, como a Gramática elementar
da língua portuguesa, de Oliveira Conduru, cuja 1ª edição saiu dos prelos, no
Maranhão, em 1840.
Apresentamos a seguir uma ficha que será publicada em francês, no site
CTLF (Corpus de textes linguistiques fondamentaux), integrando uma base de
registros que descreve as principais obras de gramáticos e linguístas, da
antiguidade ao século XX. Na ficha aqui apresentada, inserimos informações que
dizem respeito à obra do padre diocesano Antonio da Costa Duarte, Compendio da
grammatica philosophica da lingua portugueza, publicada em 1877.
Ficha descritiva da obra

COMPENDIO DA GRAMMATICA PHILOSOPHICA DA LINGUA PORTUGUEZA


(1877) de Antonio da Costa Duarte

Acesso ao 1ª edição - Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin


texto Localização - RBM 1108
6ª edição

http://www.cultura.ma.gov.br/portal/bpbl/acervodigital/Main.ph
p?MagID=37&MagNo=126

Período Século XIX

Nome do autor Duarte, Antonio da Costa

Datação do Nasceu no final do século XVIII - ?


autor

Biografia do
Nasceu na capitania, depois província do Maranhão, no final do
autor século XVIII. Foi presbítero do hábito de São Pedro, lente de

725
gramática filosófica da língua portuguesa e análise dos
clássicos e escreveu o Compendio da Grammatica Portugueza
(1829) para uso das escolas de primeiras letras, ordenado,
segundo a doutrina dos melhores gramáticos, oferecido ao
presidente da província do Maranhão, Candido José de Araújo
Vianna e o Compendio da Grammatica Philosophica da Lingua
Portugueza (1840), escolhida pela congregação do liceu do
Maranhão para uso do mesmo liceu. (Blake, 1883)

Título da obra Compêndio da Grammatica Philosophica da Lingua


Portugueza.

Anotações A obra vem com o subtítulo “Escolhida pela congregação do


sobre o Título liceu do Maranhão para uso do mesmo, e das aulas de
primeiras letras da província”.

Tipo da obra Pedagógica, destinada ao ensino elementar.

Tipo indexado Gramática filosófica; Gramática particular.

Original (data, 1829, Maranhão.


local)

Período Século XIX

Datação, 1829, Maranhão.


localização,
primeira
edição

Edição Maranhão, 1ª ed., Tipografia Nacional, 1829


utilizada Maranhão, 6ª ed., Tipografia do editor, 1877

Volumetria 1ª ed. 98 páginas mais uma folha sem número com parte do
índice e a errata.
19 x 12 cm
1962 caracteres por página
6ª ed. 146 páginas mais uma folha do índice sem número.
1536 caracteres por página

Número de 1ª ed. aproximadamente 192.276 caracteres.


caracteres
6ª ed. aproximadamente 224.256 caracteres.

726
Seis edições
Edições e
difusão

Língua(s) Português
alvo(s)

Metalinguage Português
m

Língua dos Português


exemplos
Definição e divisão da Grammatica [9]; Da Orthoepia [ib] – I.
Sumário da
Dos sons e das Letras que os representão [ib], II. Dos
obra
Dithongos e das Syllabas [13], III. Dos Signaes da escriptura
que regulão a boa leitura dos vocabulos [16], IV. Dos Signaes
que regulão a boa leitura de um discurso [19], V. Da Prosodia
[20], VI. Das Figuras de Dicção [22]; Da Etymologia [26],
I. Das partes elementares da oração, e do discurso [ib], II. Do
Genero dos nomes substantivos [30], III. Da Variação dos
Nomes [32], IV. Divisão dos Nomes Adjectivos [34], V. Dos
Adjectivos Determinativos [36], VI. Dos Demonstrativos
Pessoaes [38], VII. Dos Demonstrativos Puros [p. 40], VIII. Dos
Demonstrativos Conjunctivos [42], IX. Dos Determinativos de
Quantidade [44]*, X. Dos Adjectivos Explicativos e Restrictivos
[47], XI. Dos Gráos de augmento na significação dos Adjectivos
[ib], XII. Das Terminações dos Adjetivos [49], XIII. Do Verbo
[51], Conjugação do Verbos Ser, Estar, Haver, e Ter [64]**, XIV.
Do Verbo Adjectivo [73], XV. Conjugação do Verbo Adjectivo na
sua voz Activa [79], Das tres conjugações regulares [80]***,
XVI. Conjugação do Verbo Adjectivo na sua Voz Passiva, e
Media ou Reflexiva [89], XVII. Dos verbos Irregulares e
Defectivos [90], Conjugação dos Verbos Irregulares [91], XVIII.
Da Preposição [94], XIX. Do Adverbio [97], XX. Da Conjuncção
[100], XXI. Das Interjeições [101]; Da Syntaxe [102]; I. Dos
Elementos essenciaes da Oração [103], II. Da Concordancia
Regular [107], III. Da Concordancia Irregular por Syllepse [109],
IV. Da Regencia Regular [112], Vocativo [113], Complemento
Objectivo [114], Complemento Terminativo [115], Complemento
Restrictivo [ib], Complemento Circumstancial [ib], V. Da
Regencia Irregular por Ellypse [116]; Da Construcção [119], I.
Da Construcção Direita [120], II. Da Construcção Invertida
[122], III. Da Construcção Transposta [124]; Orthographia
[128], I. Regras Communs a todas as Orthographias [130], II.
Regras proprias da Orthographia Etymologica e Uzual [134], III.
Da Orthografia Filosofica ou da Pronunciasão [140], IV. Da
Pontuação [142], V. De mais alguns Signaes da Escriptura [145]

727
Objetivos do Ensino do idioma nas escolas de primeiras letras.
autor

Interesse geral O Compendio de Grammatica desempenhou um papel pioneiro


na criação de gramáticas portuguesas elaboradas no Brasil, no
século XIX. Por sua qualidade, esta gramática elementar foi
utilizada nas escolas de primeiras letras da província do
Maranhão.

Partes do Costa Duarte apresenta cinco partes elementares da oração:


discurso nome substantivo, nome adjetivo, verbo, preposição e
conjunção. O gramático não considera a interjeição como uma
parte da oração porque, muitas vezes, esta equivale a uma
oração e, inclui o artigo, o pronome e o numeral na classe dos
adjetivos.

Corpus Há exemplos forjados pelo autor, exemplos tomados de


ilustrativo Jerônimo Soares Barbosa, bem como exemplos literários.

Indicações
O Compendio de grammatica da lingua portugueza teve seis
complementar
edições. A partir da segunda edição, a gramática é intitulada de
es
“philosophica”, fazendo alusão a uma de suas mais importantes
fontes: a Grammatica philosophica da lingua portugueza ou
principios de grammatica geral applicados a nossa linguagem
de Jerônimo Soares Barbosa, 1822.

* No índice da 1ª edição consta « Dos Demonstrativos de


Quantidade »; porém, consta da gramática a denominação
usada é « Dos Determinativos de Quantidade », sendo o
conteúdo o mesmo.
** Consta da 1ª edição «Conjugação do verbo substantivo ».
*** Não consta da 1ª edição.

Influências de Duarte da Costa não cita explicitamente suas fontes; todavia,


obras faz alusão “a um distinto gramático”, “o mesmo autor”, “o dito
anteriores autor”, referindo-se ao gramático Jerônimo Soares Barbosa.

Influência Gramática elementar da língua portuguesa (Felipe Benício de


exercida Oliveira Conduru, 1840), notadamente

Referências
bibliográficas ARAÚJO, Antônio Martins de. A linguística portuguesa e o
grupo maranhense. In: Revista da Academia Brasileira de

728
Filologia. II (II). ISSN 1676-1545, Rio de Janeiro, 2003.
Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/2/012.pdf

ARAÚJO, Antônio Martins de. As concepções linguísticas das


duas primeiras gramáticas maranhenses. In: Revista da
Academia Brasileira de Filologia. III (III). ISSN 1676-1545, Rio
de Janeiro, 2004-2005.
Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/3/026.pdf

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario


bibliographico brazileiro. vol. 1. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1883. Disponível em
https://archive.org/stream/diccionariobibl02blakgoog#page/n16
8/mode/2up

Autor da ficha Leite, Marli Quadros


Marques, Raquel do Nascimento

Criação ou Junho 2014


publicação

Considerações finais

O presente trabalho é o resultado de uma primeira fase do projeto de


pesquisa do Corpus de textos gramaticais da Língua Portuguesa (CTGLP), que
consiste em fornecer informações objetivas sobre as gramáticas brasileiras através
de uma ficha, a partir da qual será possível ter acesso a informações gerais sobre
obras importantes para a história da gramaticografia brasileira, bem como a uma
bibliografia complementar.
Em toda a gramática é possível observar o quanto Costa Duarte aproxima,
ou tenta aproximar sua obra da Grammatica Philosophica de Soares Barbosa, não
apenas no que diz respeito à parte conceitual filosófica, mas também quanto à
estrutura formal, apesar de o gramático maranhense mostrar-se bem mais conciso
em relação à Soares Barbosa.
Por fim, o trabalho de descrição desta obra é importante para este projeto,
haja vista a relevância do Compendio de Grammatica Philosophica para a
gramaticografia brasileira.

729
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Antônio Martins de. A linguística portuguesa e o grupo maranhense. In:
Revista da Academia Brasileira de Filologia. II (II). ISSN 1676-1545, Rio de Janeiro,
2003. Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/2/012.pdf
_______. As concepções linguísticas das duas primeiras gramáticas maranhenses.
In: Revista da Academia Brasileira de Filologia. III (III). ISSN 1676-1545, Rio de
Janeiro, 2004-2005.
Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/3/026.pdf
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro.
vol. 1. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883. Disponível em
https://archive.org/stream/diccionariobibl02blakgoog#page/n168/mode/2up

730
DUAS FORÇAS (IN)CONGRUENTES: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER E O
DIREITO A PALAVRA EM MENINAS, DE MARIA TERESA HORTA

Mauro Dunder248
Nicole Guim de Oliveira249
Introdução

A obra de Maria Teresa Horta é conhecida por problematizar as relações de


gênero naturalizadas em nossa sociedade. Ao longo de sua carreira, a autora
escreveu livros tanto de prosa como de poesia que nitidamente dialogam com as
teorias feministas. Ora, não entendemos a literatura como um objeto isolado do
mundo. Ao contrário, pensamos as criações artísticas em consonância com seu
contexto histórico-social, de modo que seja possível um diálogo entre as
manifestações literárias e as ciências humanas.
Uma obra artística, por si só, não tem nenhuma importância real no mundo.
Essa importância se dá no contato entre obra e leitores. Temos, muitas vezes, a
ideia de que obras literárias são a representação de um mundo real ou imaginário.
Acreditamos, porém, que a literatura não se limita a ser simples representação.
Obras literárias tem um potencial ativo na sociedade na medida em que levam seus
leitores a questionar a realidade, seja através do choque, seja através do
reconhecimento.
O que encontramos na obra de Maria Teresa Horta é esse constante
questionamento sobre os papéis femininos na sociedade, seus desdobramentos e
riscos:
Depois das palavras estão as palavras, caminho ou atalho ou trilho por
onde escapa o pensamento, num desassossego, num avassalamento,
numa invenção de outros universos e céus antigos, onde se misturam
planetas, nebulosas, mundos inventados, habitados pela estranheza de
seres mínimos ou de monstruosos animais cruentos [...]. (HORTA: 2009)

248 Professor Assistente do curso de Letras das Faculdades Metropolitanas Unidas. Doutor em Letras
(Literatura Portuguesa) pela USP; membro do Grupo de Pesquisa “Literatura Portuguesa de Autoria Feminina”
(USP/CNPq).
249 Mestranda em Letras (Literatura Portuguesa) pela USP; membro do Grupo de Pesquisa “Literatura

Portuguesa de Autoria Feminina” (USP/CNPq).

731
As palavras são responsáveis pela construção da realidade e pelos diferentes
modos como podemos enxergá-la e subvertê-la. No livro Meninas, como em grande
parte da obra de Maria Teresa Horta, deparamo-nos com um tópico constante: o
direito das mulheres à palavra num contexto de violência a que estão sujeitas a todo
momento.
A figura da mulher é frequente objeto do discurso masculino dominante. Esse
discurso implica delimitação de papéis, principalmente os que se consideram, via
de regra, femininos, que buscam aprisionar as mulheres em categorias estanques
e limitadas. “E a menina entra para dentro de cada palavra e existe mesmo antes
de nascer [...]” (Idem). Como sugerem as palavras de Maria Teresa Horta, a vivência
feminina é territorializada pelo sistema patriarcal antes que a mulher, como sujeito,
tenha entendimento sobre si e sobre suas inúmeras possibilidades de existência.
Em condição de objeto do discurso dominante, o qual carrega, muito mais do que
representação imagética, uma teia de conceitos e pressupostos comportamentais,
as palavras tornam-se jaulas e grades que condenam as mulheres à subalternidade.
“No início ela chorara muito. Ainda na barriga da mãe, porque isso é dado a
acontecer a quem como ela comporta a diversidade, a diferença; voraz, desacertada
no mundo que a pretenderá mudar, a sufocará e a acanhará tanto, que por vezes
parece querer tirar-lhe o ar do peitinho liso, de tão justa que a vida lhe fica.”. Para a
mulher, desde antes do nascimento, estar em posição de alteridade com relação ao
eixo central do patriarcado torna-se confronto. É estar sufocada por palavras não
ditas, guardadas para dentro, e imersa num universo de palavras limitadoras
impostas para si sem o seu consentimento.
Em primeira instância, a violência e silenciamento aos quais as mulheres
estão sujeitas no sistema patriarcal passam pelo corpo e pela sexualidade. Carole
S. Vance, em seu texto “El placer y el peligro: hacia una política de la sexualidad”
(1989), considera que a sexualidade feminina é, no contexto da vida em uma
sociedade em que comportamento e conjunto de valores são pautados pelo
masculino, uma esfera constantemente colocada entre o prazer e o perigo, visto que
na sociedade patriarcal a mulher não tem direito ao próprio corpo sem que esse fato
desencadeie uma condição de violência. O corpo feminino, para não ser violentado,

732
deveria seguir determinadas regras sociais, que não correspondem
necessariamente aos desejos da maioria das mulheres. No universo mapeado em
Meninas, essa questão torna-se crucial, especialmente no que tange à dinâmica das
palavras, como matéria e como objeto da representação literária; afinal, estereótipos
sociais são exatamente palavras que aprisionam a figura feminina e criam sentidos
estanques para uma existência que se deseja fluida e divergente do discurso
dominante.
“Depois das palavras vêm as palavras, os nomes, as expressões lídimas, a
dar forma e sentido a tudo, âmago, interioridade.” Nesse sentido, a condição da
mulher na ficção de Maria Teresa Horta consubstancia, ao mesmo tempo,
representação e instrumento de combate. Nela, não só a existência feminina
pretende ser oposta ao discurso que lhe é imposto, como também são opostas as
palavras que dão sentido a tudo, “pois, mesmo sendo proibida a árvore do
conhecimento, ela comeu o seu fruto, aquele que lhe dá a entender a sua condição”.
Apropriar-se da palavra, na obra de Horta, geralmente é um ato associado
não apenas ao direito que o sujeito feminino tem sobre si próprio. É também dar voz
a uma perspectiva que por tanto tempo ficou silenciada e apagada da História,
espaço quase que exclusivamente masculino. Nesse sentido, o conjunto de
narrativas de Meninas corresponde perfeitamente à ideia fundamental do conceito
de metaficção historiográfica, como o formulam Linda Hutcheon e Bella Josef: como
toda narrativa, a História constitui apenas uma possibilidade de narrar;
tradicionalmente, essa visão é pautada pela visão dominante do ponto de vista
masculino. À mulher resta a janela, "os cortinados", espaço de marginalização e
confinamento. Essa posição, porém, não a impede de reescrever a história a partir
de sua perspectiva e de sua condição: nesse sentido, em grande parte da literatura
de autoria feminina, a escrita ganha espaço quando a fala é silenciada.
É no universo literário que se criarão as linhas de fuga que ultrapassam o
limite imposto pelo sistema à existência e à voz da mulher. Por ser suscetível a - e
viabilizador de - transformações no ponto de vista pelo qual uma narrativa se
constitui, é a narrativa de ficção terreno fértil para o desafio da narrativa unilateral e
dominante - nesse caso, a voz feminina que se abriga na ficção literária contrapõe-

733
se ao oficial discurso sócio-histórico. Nas palavras da narradora de Maria Teresa
Horta, "Depois das palavras vêm as palavras dos versos, dos poemas, o universo
da escrita onde a menina se acoita, sabendo seu lugar de salvação e descobrindo
seu assombro."

Referências Bibliográficas
HORTA, Maria Teresa. Meninas. Lisboa: Leya, 2014.
VANCE, Carole. “El placer y el peligro: hacia una política de la sexualidad”. In Placer
y peligro. Madrid: Hablan las mujeres, 1989.

734
O SOM COMO IMAGEM:
A ORALIDADE COMO INSTRUMENTO PARA SE REFLETIR OS SENTIDOS
CONSTITUÍDOS PELA MEMÓRIA CULTURAL

Mirtes de Moraes250

Introdução

Inserido no propósito de que a construção da memória cultural parte do tempo


presente, o trabalho: O som como imagem: A oralidade como instrumento para se
refletir os sentidos constituídos pela memória cultural busca pensar algumas formas
de linguagens marcadas por oralidades no espaço urbano. Hoje assistimos de forma
cotidiana cenas de pessoas em frente de lojas populares se utilizando de
microfones, apitos, megafones chamando a atenção de diversas pessoas que
circulam nesses espaços públicos. Feirantes que ganham no grito expressões
criativas, percebe-se deste modo o tom marcante da oralidade nas ruas que se
entrelaça com uma forma de comunicação social, ou seja, a maneira que a
linguagem atinge o receptor.
Centrado nessa preocupação em divulgar alguma coisa dizer em alta voz,
surgiu o interesse pelo estudo do pregoeiro, trabalhadores urbanos do início do
século XX que ainda resistem em alguns bairros da cidade de São Paulo e que
chamavam a atenção pela sua sonoridade criativa.
Deste modo, esse trabalho tem como objetivo analisar expressões orais
marcadas pela sonoridade urbana, estabelecendo uma interface com a memória
social. A proposta insere na investigação de uma memória sonora demarcada pela
oralidade individual dos trabalhadores urbanos na cidade de São Paulo.a pesquisa
pretende mostrar que ao mesmo tempo em que os trabalhadores chamavam a
atenção do seu público consumidor a partir de sons singulares é possível
estabelecer uma construção da memória social a partir dessas sonoridades. Para
tanto buscou uma documentação pautada nos relatos registrados por memorialistas,

250
Doutora em História Social pela PUC-SP. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) do
Centro de Comunicação e Letras (CCL) nos cursos de Publicidade e Propaganda e Jornalismo.

735
procurando deste modo resgatar a tensão marcada pelo sentido transformativo da
cidade de São Paulo do começo do século XX.
Partindo ainda da ideia das sonoridades criativas o trabalho pretende também
transitar por uma forma de mensagem musicada, conhecida como jingle em que a
partir da memorização de um refrão simples a música e consequentemente o
produto é facilmente lembrado.
“O tempo passa, o tempo voa...”
Quem nasceu na década de 70, com certeza já ouviu o jingle acima e de
forma imediata é possível acrescentar sem que o uso da razão interfira ...“e a
poupança Bamerindus continua numa boa ...” 251 Passaram aproximadamente
quarenta anos e quando essa música é cantada sua letra é automaticamente
rememorada conectando por sua vez na imagem. O som dá forma ao objeto. Nesse
caso, a um serviço.
É com essa definição que o jingle trouxe sua mensagem publicitária de forma
musicada em que a base de sua elaboração se dá através de um refrão simples, de
curta duração, que é lembrado com facilidade.
Coloca-se dessa forma, um dispositivo usado através da linguagem e
sonorização que ganha representação imagética sem na verdade ter a presença da
imagem em si. Esse instrumento usado como forma de propaganda acompanhou a
entrada do rádio como veículo de comunicação social, aparelho que conduzia suas
mensagens por meio das sonoridades.
Na década de 30, Ademar Casé, precursor do rádio, criou o Programa Casé,
programa de variedades veiculou o primeiro jingle no Brasil anunciando a padaria
Bragança:
Oh, padeiro desta rua, tenha sempre na lembrança, não me traga outro
pão que não seja o pão Bragança;
Pão inimigo da fome. Fome inimiga do pão, enquanto os dois não se
matam, a gente não fica na mão;

251
O jingle fora criado originalmente para o banco no início da década de 1970, com letra de Teresa Souza e
música de Walter Santos, foi resgatado vinte anos depois para a interpretação do grupo “Os três do Rio”.

736
De noite, quando me deito e faço a oração, peço com todo o respeito
que nunca me falte o pão.

Antonio Nássara, um dos redatores do programa compôs o jingle ‘Padaria


Bragança’ buscou sua ideia na nacionalidade do dono da padaria, fez três
quadrinhas em ritmo de fado, que foram cantadas com sotaque português na voz
de Luís Barbosa.
Porém, quando se ouve hoje o jingle supracitado percebe-se que há uma fala bem
pronunciada destacando algumas paradas em determinadas sílabas, não é
exatamente uma forma melódica, mas sim no processo narrativo que se constrói
articulado ao processo de construção da memória num campo relacional entre
receptor e transmissor.
No ensaio, O narrador, o pensador Walter Benjamim coloca que para que
haja uma forma de comunicação é necessário que se tenha quem fale e quem
escute, e num âmbito social, que esta fala encontre um grupo de referência, assim,
a narração é tratada como instrumento de continuidade do processo histórico, as
experiências narradas estão relacionadas a uma finalidade e a construção da
memória está associada ao ato de lembrar. (BENJAMIM,1975)

Depois de um sonho bom


A gente levanta
Toma aquele banho
Escova os dentinhos
E na hora de tomar café
É o Café Seleto
Que a mamãe prepara
Com todo carinho
Café Seleto tem
sabor delicioso
Cafezinho gostoso
É o Café Seleto
Café Se---le---to
Café Sele--to

No jingle destacado acima se percebe o entrelaçamento a questões


cotidianas situações que promovem conforto e segurança (sonho bom, banho e

737
escovar os dentes) todas essas situações são verbalizadas por uma voz infantil que
traduz a necessidade de um acolhimento e ao mesmo tempo a satisfação de ter sido
protegida. A figura da mãe assume essa função através do cuidado e o carinho em
preparar o café. Lembrar momentos da infância se atrela a construção do processo
da memória social e isso pode ser acompanhado a uma forma de disseminação da
letra. Na década de setenta e oitenta o café seleto tornou-se hino das excursões de
ônibus da escola disseminando nas vozes a produção da imagem.

Sonoridades urbanas
A letra e a melodia entram num processo de rememoração, assim, tendo
como referência a oralidade como instrumento para se refletir os sentidos
constituídos pela memória cultural pode-se pensar a figura sonora do pregoeiro,
trabalhadores urbanos, que pela maneira ritmada anunciavam seus produtos nas
ruas

Survetinho, survetón,
Survetinho de limón
Quem não tem o dez tostão
Não toma sorvete não.
Sorvete Iaiá
(Lembranças do Sr. Abel – BOSI, 2010; p.131)

Assim é possível perceber que as falas urbanas sinalizam uma grande


quantidade de trabalhadores ambulantes que anunciavam e vendiam vários tipos
de produtos nas ruas, tratam-se das sonoridades urbanas, popularmente
conhecidos como pregões.

[...]o pregão revela uma tendência inapelável para transformar-se em


música, uma vez que o apregoador, ao ir descobrindo aos poucos as
amplas possibilidades da modulação da sua voz, acaba invariavelmente
cantando em bom sentido os nomes dos artigos que tem para vender ou
que deseja comprar(TINHORÃO, 2013).

Percebe-se que o processo transformativo de cidade interage com os seus


movimentos e sons, por meio de relatos memorialistas é possível dar vozes a esses
personagens da história que muitas vezes ficaram marginalizados pela história

738
oficial, assim os barulhos provocados por vendedores com as falas musicadas,
ritmadas e engraçadas, assim como assobios, buzinas, apitos, gaitas, sinos entre
outros objetos que pudessem emitir sons, mostram o cotidiano urbano em ritmo
transformativo.
Às 6 horas da manhã bateu à porta seu José leiteiro. Tazia às costas a lata
de leite das vacas do estábulo. Vinham também duas vacas e dois
bezerros. Narcisa trouxe de dentro o copo de vidro graduado e o caldeirão.
Seu José fez o bezerro chupar a teta da vaca, e se pôs a mondá-lo,
jorrando o leite no copo graduado. Encheu o litro e despejou no caldeirão.
(AMERICANO,1957:p.111)

Havia ainda os vendedores de leite ou de cabra com seus respectivos


animais puxados por uma corda. As campainhas que os mamíferos traziam
ao pescoço anunciavam-lhes de longe a aproximação. (PENTEADO, 2003:
p.209)

Observa-se que através da sonoridade de sinos, gritos e assovios que os


pregoeiros despertavam a atenção para a clientela há também a questão da
memória auditiva desse público, ou seja, ao escutar de longe o som típico de um
tipo de vendedor construía-se uma memória social de seu produto e do vendedor

O formaggio! Olha o formaggio! É o barateiro, o barateiro!”


(Lembranças de Sr. Ariosto – BOSI, 2010; p.105)

O substantivo masculino pregoeiro, origina-se do verbo apregoar que se


traduz em: divulgar alguma coisa dizer em alta voz, alardear252. Assim,na tentativa
de atrair a atenção de um número significativo de pessoas, os pregoeiros
inventavam modos criativos de explorar a curiosidade dos demais clientes com
frases típicas e versos para ajudar na venda.

“Fraternité, Égualité, lafalilité de lá familité”

O memorialista Jorge Americano observa que o vendedor não era francês e


nem sabia falar a língua, mas era o vassoureiro preferido das donas de casa e, de
longe, já se ouvia um grito estridente anunciando que estava a caminho.

252Segundo a definição do dicionário Houaiss pregoeiro, s.m. é o que divulga alguma coisa, o que lança em
pregão, origina-se do verbo apregoar que se traduz em: divulgar alguma coisa dizer em alta voz, alardear.

739
Ó pizzaiolo , é cávora! Alitche e pomarola! (PENTEADO, 2003; p.208)

Percebe-se que a musicalidade está presente na oralidade desses


trabalhadores ambulantes, e as palavras ritmadas ganham sotaques internacionais,
desta forma, pode-se enveredar que muitos desses trabalhadores eram imigrantes.
Assim, apropriando-se do quesito da oralidade, e com a consequente sonoridade
urbana destacada pelos vendedores ambulantes imigrantes empregadas pelo uso
dos pregões, pode-se construir uma história pelos sons.
Desde os anos 60, se dissemina um movimento historiográfico que tem como
origem o grupo de historiadores ligados à revista Annales d’HistoireÉconomique et
Sociale, surgida em 1929, na França, essa revista surgiu como reação aos
paradigmas no século XIX em que a história era baseada nos grandes
acontecimentos e nas fontes documentais oficiais, restrita à política. (BURKE,1994).
Em contraposição a essa história factual, o historiador Fernand
Braudel,(segunda geração de historiadores dos Annales) coloca que os fatos são
como espumas nas ondas do mar, ou seja, os fatos não existem isoladamente, e
sim constituem um tecido, têm uma organização na qual desempenham o papel de
causa, fins, acasos e cabe ao historiador “reencontrar essa
organização.(BRAUDEL,2013).
Assim, propõe-se realizar um revisionamento nos instrumentos de pesquisa
com a finalidade de ampliar o conhecimento e o processo histórico e os
procedimentos metodológicos, em que as fontes não se reduzem apenas aos
documentos oficiais mas sim na diversidade de materiais que são encontrados em
fontes imagéticas,orais, corporais, de gênero, e, como é o caso desse trabalho, em
fontes sonoras. (BURKE,1994).
Inserido nessa vertente na Nova História, os sons são vistos como vestígios
que deixam suas marcas e uma história que se reconstrói nos traços, rastros e
nesse caso nos ruídos para se pensar o universo cultural e a construção da memória
social

740
Para tanto buscou uma documentação pautada nos relatos registrados pelos
memorialistas, um material sonoro, e que por meio dele fosse realizado um estudo
dos processos históricos envolvendo a oralidade e memória.
Em 1927, o escritor Antônio de Alcântara Machado retrata conversas
centradas em acontecimentos miúdos da vida diária contadas no salão de barbearia
de Nicolino e do Sr. Salvador – “Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 réis. Cabelo:
600 réis. Serviço Garantido:
- Bom dia!
Nicolino Fior d’Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando
outro branco, se sentando no fundo à espera dos fregueses. Sem dar confiança.
Também seu Salvador nem ligou.
A navalha ia e vinha no couro esticado.
- São Paulo corre hoje! É o cem contos!
O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.
- Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado
o crime de ontem, Salvador? Banditismo indecente.
- Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.
- Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanhã
está solto. Privação de sentidos. Júri indecente, meu Deus do céu! Salvador,
Salvador... – cuidado aí que tem uma espinha – este país está perdido!
- Todos dizem.
Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza
(MACHADO,2001)

A barbearia assim assumia um dos espaços de encontro de homens que


colocavam em pauta conversas relacionadas às noticias dos jornais, desta forma é
possível perceber a relação de envolvimento entre as pessoas comuns e as
questões governamentais sendo traduzidas no inalterável chavão: este país está
perdido!
Assinando como JuóBananére, Alexandre Machado fez sua estreia no dia 14
de outubro de 1911 no número 10 do semanário O Pirralho, periódico literário,
político e de humor. Misturando os códigos ortográficos do idioma português e
italiano, quebrando a sintaxe de um deles, inventando palavras com semelhanças
fonéticas ou ainda usando uma sobreposição caótica dos dois idiomas se colocava
como a maneira dos barbeiros da praça do Bexiga, um dos redutos italianos daquela
época, comentava fatos corriqueiros e políticos através da sátira. (FONSECA,
2001).
Eh! Mamma mia! Si non fosse os intaliano, chesperanza! No tenia né uma casa
chique come quellache fiz agora o Garonelloinzima a rua Martigno Francesco.

741
També si non fosse os intaliano non teria né u larghe Du Arrusá, né o Bó Retiro, né
as cumpaniadioperette do Vitale e né o Bertini Che també é u
miglioreingraziatoditutto o mundo interinho.
També o “garadura” furo os intalianocheindiscobriro (garadura, bonde elétrico)
Eh! Mache si pensa cheZanBaolo furo tuttavita como oggi? Stómoltosinganatus si
signore!
Primiere, quanominho avó xigó que inzima o Brasile só tenia a ladere do
Abaix’oPigues, o larghe Du Arrusá e o barro da Liberdá.
A Villa Buarca, a Barafunda, o Bó retiro stavotuttocopertoc’aomattavirgia [mata
virgem]. També a Luiz e també a Bixiga.
D’Abaix’o a ponte do viadutto era tutto gapino e teniamoltospassarignocheio Ivã
tuttosdidi magna cidignomatácostilingo. (Revista O Pirralho, 20/04/1912) 253

Assim pode-se perceber que sua escrita estava pautada na tentativa de imitar
a oralidade que ouvia dos italianos das ruas. Nota-se também como o cronista está
registrando processos transformativos da cidade de São Paulo, dessa forma sua
narrativa recorre ao tempo vivido, o tempo subjetivo da memória que entra em
tensão com um novo tempo, o tempo das novas tecnologias, dos monumentos
históricos, dos lugares da memória (NORA, 1993).
Juó Bananére mostra de forma singular a sonoridade seja ela marcada pela
sua caricatura verbal representada na mistura do idioma ítalo-brasileiro, mas
também se articula com os barulhos da cidade que se misturam entre os pregoeiros
na cidade.
Assim é possível perceber que a inspiração de JuóBananére estava nas ruas,
as falas urbanas sinalizam uma grande quantidade de trabalhadores ambulantes
que anunciavam e vendiam vários tipos de produtos nas ruas, tratam-se das
sonoridades urbanas popularmente conhecidos como pregões.
Percebe-se que o processo transformativo de cidade interage com os seus
movimentos e sons, por meio de relatos memorialistas é possível dar vozes a esses
personagens da história que muitas vezes ficaram marginalizados pela história

253 Eh! Nossa Senhora! Se não fossem os italianos, que esperança, não teria nenhuma casa chique como aquela
que fez agora o coronel na rua...
Também se não fossem os italianos não teria nem o Largo do Arouche, nem o Bom Retiro, nem as companhias
de ópera do Vitale e nem o Bertini que também é o melhor de todo o mundo. Também o bonde foram os
italianos que descobriram. Mas quem pensa que São Paulo sempre foi tudo como é hoje? Estão tudo enganados,
sim senhor! Primeiro quando minha vó chegou ao Brasil só tinha a ladeira do Piques, o largo do Arouche e o
bairro da Liberdade.
A Vila Buarque, a Barra Funda, o Bom Retiro, estavam cobertos pela mata virgem. Também a Luz e também o
Bexiga. Debaixo da ponte do viaduto era tudo capim e tinha muitos passarinhos que eu ia dar o que comer
cedinho e matá-los com estilingue.

742
oficial, assim os barulhos provocados por vendedores com a falas musicadas,
ritmadas e engraçadas, assim como assobios, buzinas, apitos, gaitas, sinos entre
outros objetos que pudessem emitir sons, mostram o cotidiano urbano em ritmo
transformativo.

Considerações Finais
Desta forma, esse artigo se objetivou a analisar expressões orais marcadas
pelas sonoridades, estabelecendo assim uma interface com a memória social.
Percebe-se que ao mesmo tempo em que a letra do jingle aparece de fácil
memorização por parte do ouvinte há também a participação do mesmo para
acompanhar a melodia ritmada promovendo desta forma uma maior assimilação da
letra e consequentemente a lembrança tanto da música como do produto.
Segundo o pesquisador da canção brasileira Luiz Tatit (1999), a regularidade
rítmica e melódica favorece o aparecimento de peças musicais que privilegiam o
refrão e os temas recorrentes. O refrão, elemento básico da canção popular
massiva, pode ser definido como um modelo melódico ou rítmico de fácil assimilação
que tem como objetivo principal sua memorização por parte do ouvinte e a
participação do receptor no ato de audição, sendo repetido várias vezes ao longo
da canção. Nesse ponto, é possível, por exemplo, perceber uma articulação entre
as estratégias técnicas, mercadológicas e plásticas do formato canção, uma vez que
a repetição ligada à memorização está conectada à circulação da música.
Do mesmo modo pode-se observar através da linguagem musicalizada dos
pregoeiros uma tentativa de associar o som ao vendedor, e por sua vez, o vendedor
ao produto a ser comercializado. Embora o trajeto aqui apresentado tenha tido esse
itinerário, não se pode esquecer que juntamente a esse percurso está a construção
e a formação da memória social.
Nos dias atuais, as mudanças são cada vez mais velozes dificultando desta
forma a cristalização do tempo. A melodia que enlaça a oralidade trabalha com um
processo de memorização em que é possível regressar a um tempo passado
através das sonoridades que são recordadas por meio dos registros sonoros,
contribuindo desta forma para a construção da memória cultural.

743
Referências Bibliográficas

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MORAIS, Valdenir, Máximo de. Propaganda radiofônica: estudo do processo de


realização. São Paulo, Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicações e
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NORA, Pierre. Mémorie e Histoire. Paris: Guillimard, 1984.
PENTEADO, Jacob. Belenzinho 1910: Retrato de uma época. São Paulo: Carrenho
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744
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TINHORÃO, Jose Ramos. Os sons que vem da rua. São Paulo: Editora 34, 2013.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

745
DE ROUSSEAU A DRUMMOND: A BUSCA DA EXPRESSÃO DO EU

Natália Pedroni Carminatti254

Introdução

Octavio Paz, em O arco e a lira (1956), define a poesia como uma operação
hábil a modificar o mundo. E Paz não termina por aí: discorre sobre poesia e sua
finalidade de criar outro mundo. Nessa perspectiva, intenta-se desenvolver, no
presente artigo, a pertinência do trabalho poético na arquitetura da personalidade
do filósofo de Genebra, Jean-Jacques Rousseau, especialmente, em sua derradeira
obra autobiográfica Les rêveries du promeneur solitaire (1782), bem como apontar
a função poética em sua vida social e em sua obra. Além disso, pretende-se
aproximar Carlos Drummond de Andrade ao precursor da modernidade, a fim de
obter uma visão singular da poesia moderna, sustentada a partir da interioridade e
da filosofia. É evidente que os textos de Rousseau se apresentam em discursos
filósofos, todavia, essa última obra rompe com os modelos clássicos vigentes e se
constrói em prosa poética.
Rousseau não é apenas o “pai da modernidade”, mas o fundador de uma
forma muito particular e inédita de imbricar prosa e poesia. Les rêveries du
promeneur solitaire, o último volume constituinte da trilogia autobiográfica do filósofo
iluminista, que compreende: Les confessions, Les dialogues, ou Rousseau juge de
Jean-Jacques e Les rêveries du promeneur solitaire, foi publicado postumamente,
em 1782, tendo em vista sua morte em Ermenonville (1778). Carlos Drummond de
Andrade, poeta moderno, a princípio parece distanciar-se de Jean-Jacques
Rousseau, porém o interesse de ambos em voltar à poesia sobre si, interrogando-
se como ser e como fazer, os aproxima e os define enquanto modernos.

254 Doutoranda em Estudos Literários. UNESP – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e
Letras – Pós-graduação em Estudos Literários. Araraquara- SP – Brasil. Bolsista do CNPQ.

746
Poesia e reflexão

O poeta que se configurou com um dos mais emblemáticos representantes


da poesia moderna no Brasil, aproxima-se do filósofo de Genebra, Jean-Jacques
Rousseau, no que tange à sua tendência para fabricar poemas reflexivos. Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), o poeta-prosador, estreia em 1930, com
Alguma Poesia, produção que lhe consagrou como um dos nossos maiores poetas
modernistas. “Começou gauche, com uma humildade em que se misturavam a
timidez e a tendência à comunhão. E essa tendência domina afinal, tornando-se o
traço característico de sua fisionomia moral e artística”. (COUTINHO, 1978, p.10,
grifo do autor). A luta de Drummond assemelhava-se à luta de Rousseau: era o
conflito pela vivacidade. Rousseau buscava, em seus derradeiros dias, dar sentido
a uma existência que sempre estivera em crise e Drummond esforçava-se em
testemunhar, segundo Afrânio Coutinho (1978), a dor do mundo.
Um pré-romântico, outro moderno. Duas existências que se completam e
pesquisam a mesma explicação: a expressão do eu. A mistura de gêneros em
Rousseau também é observada no estilo drummondiano, a subjetividade preenche
a lírica com cargas emocionais e reflexivas e é “[...] o adensamento do lirismo pelo
esforço meditativo, que casa um esquema de ideias à expressão dos sentimentos.
Os românticos foram nesse caminho há muito tempo; é preciso ver o que fez dele
um dos modernos, Drummond”. (ARRIGUCCI JR, 2002, p.16). Dessa forma,
evidencia-se que o Romantismo e o Modernismo estão conjugados. Se formos mais
categóricos, dizemos que o primeiro foi a potência motriz para o desenvolvimento
do segundo.
Nesse retorno evocativo ao passado, ou melhor, a Jean-Jacques Rousseau,
Drummond recupera a “poesia itinerante” de que fala Antônio Candido em “O poeta
itinerante” (1993). Trata-se de um retorno àquela poesia experimentada por
Rousseau nas Rêveries, ou seja, a poesia voltada a si, centralizada no próprio Eu.
De acordo com Davi Arrigucci,

muito dessa força, força de escavação do Eu sobre o Eu até a sua raiz no


mundo, deriva do movimento rotativo do eixo do pensamento sobre si

747
mesmo, da infinitude da reflexão de origem romântica. (ARRIGUCCI JR,
2002, p.65).

É fácil entender o porquê da proximidade desses dois escritores: ambos


possuem refletidas em sua técnica poética as incertezas provocadas pelo
sentimento de existência e pela incapacidade de dominar o pensamento,
conduzindo-os à intensa reflexão. Atentemo-nos ao poema “No meio do caminho”
de Drummond:

No meio do caminho tinha uma pedra


Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra. (DRUMMOND, 2013, p.36).

Um dos poemas mais discutidos da carreira filosófico-literária de Carlos


Drummond de Andrade, “No meio do caminho”, como declarara Arrigucci, provocou
um vendaval de questionamentos nos anos 30. A taxa reflexiva do poema intrigou
os poetas da “Intentona Modernista”, pois esses julgavam que a realidade da
estética já havia sido consolidada e não tangia trabalhar com esse aspecto, leia-se,
com a reflexão de si. A temática de uma simples pedra, no meio do caminho,
vislumbrava um problema muito maior: os obstáculos postos, todos os dias, na vida
dos seres humanos. Esse era o propósito de Drummond, e poucos foram aqueles
que souberam enxergar isso. De certo modo, como Rousseau, Drummond recusou
algumas orientações antes consideradas exemplares à escrita literária e cuidou de
tratar de si.
Da relação espetacular entre esses dois autores modernos nasce a
imprescindibilidade de relacioná-los ao Romantismo, já que as realizações mais
plenas de Rousseau, como também de Drummond, apoiam-se na categoria
filosófica e metafísica difundidas no movimento. As retinas fatigadas de Carlos são
símbolo do não-poder, do não-saber responder às perguntas mais banais da
existência. A fadiga não é apenas física, é relativa à alma. A pedra reflete o

748
desconcerto da psique, isto é, esse empecilho que incidiu na essência de
Drummond. Aqui, Drummond associa-se novamente a Rousseau, no que diz
respeito à ideia de caminhante solitário. Tanto um quanto o outro se deparam com
um contratempo que executa impulsivas modificações em suas condutas. “A pedra
é o que move o poeta à reflexão e à procura da poesia, que ela, entretanto, barra,
obrigando-o ao círculo infernal da busca sem fim, a retornar indefinidamente”.
(ARRIGUCCI JR, 2002, p.73).
O modo como Drummond tece sua poesia faz pensar na própria sensibilidade
do poeta. A dificuldade encontrada por ele em avançar devido à pedra no meio do
caminho nada mais é que o seu impedimento, a sua fraqueza face aos obstáculos
rotineiros. As palavras repetidas reforçam essa impassibilidade do escritor diante
das indagações metafísicas. Sentimento e reflexão, projetos da escola romântica,
são retomados por Carlos Drummond de Andrade em suas poesias que têm o Eu
como ideal de criação.
Vale ressaltar que não só o poemeto “No meio do caminho” segue a linha
romântica reflexiva: o “Poema de sete faces”, que abre o volume Alguma poesia
(1930), possui importância singular nesse veio de interpretação da poesia
drummondiana. Dediquemo-nos a ele:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem nas sombras
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.

749
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo. (DRUMMOND, 2013, p.11)

Inicialmente, acentua-se a multiplicidade do Eu no “Poema de sete faces”.


Drummond trabalha com “sete diferentes eus”, tendo em vista que em cada uma
das estrofes do poema distingue-se um eu do anteriormente anunciado. A mesma
impressão que se tem durante a leitura dos Devaneios de Rousseau. Estrofes
independentes, no caso de Drummond, e caminhadas autônomas em Rousseau.
Não obstante, primeiramente, constata-se um “eu” perdido, desvinculado dos outros
“eus”, impossibilitando a edificação de uma intersecção entre essas
“personalidades”. Porém, seguindo a leitura do poema, percebe-se a relação
harmônica concretizada entres os possíveis “eus”. A reflexão presente no texto é
relativa a essa incongruência de “eus” que afloram de acordo com as situações,
dialogando com a falta e com a impossibilidade inerente ao homem de se concluir.
O diálogo permanente de Drummond com a poesia romântica é estabelecido
por meio do sentimento e da reflexão que o poeta faz de si. A imensidão de
pensamentos voltados ao próprio eu sintetiza a ideia central do poema. Carlos
Drummond de Andrade esforça-se em dizer aquilo que é de interesse do coração.
A escolha lexical solidifica sua tentativa. Para Arrigucci (2002, p.41):

Na verdade, o coração é lugar da falta (da “falta que ama”, a que o poeta
vai aludir muito mais tarde), pois se abre para o espaço da desmesura, da
infinitude, o sem-fim do sentimento, onde a linguagem (a poesia),
reconhecendo-se pela reflexão, dá com o seu limite.

A vastidão do mundo de que fala Drummond representa a impotência do


homem perante o emocional, ou seja, o não controle de si, do inconsciente. O
ocultamento do eu, em “sete distintos eus”, figura a inaptidão do poeta em ser
concluso, totalizante. O homem, ao longo de toda sua existência, vive em uma
constante luta entre o ser e o querer ser. O coração, como enuncia Arrigucci, é o
lugar da falta e a poesia por versar sobre a condição humana, reconhece essa falta,
por intermédio da reflexão de si. Dessa maneira, o elo ao coração do poeta é

750
estabelecido pelo sentimento, tema subjacente a todas as estrofes do poema.
Embora, a unidade do poema tenha sido construída em níveis antinômicos e a
poesia se aproxima do movimento modernista, porque se expressa em linguagem
coloquial, e não segue os preceitos clássicos de estilo, no desconexo e no diferente,
vemos um Drummond buscando a integração de si: “Sob a face vistosa das
variações, subjaz ainda algum desejo de uniformidade ou ordenação”. (ARRIGUCCI
JR, 2002, p.39).

Considerações finais
No decorrer deste artigo pretendeu-se refletir a possível ligação entre o
filósofo do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau, e o poeta modernista, Carlos
Drummond de Andrade. O entrelaçamento de Drummond ao Romantismo permitiu
associá-lo a Rousseau. Boa parte dos conflitos específicos da poesia
drummondiana é compreendida pela herança romântica perceptível em sua obra. A
dificuldade encontrada por Drummond, de transpor em palavras aquilo que é
peculiar ao coração, foi a mesma enfrentada por Rousseau no processo de escritura
das Rêveries: obra em que conjuga emoções e sentimentos, ao discurso filosófico
e racional do “Século das Luzes”. Com isso, a poesia, apesar de exteriorizar o
impulso interno, preocupa-se em representar o universal, aquilo que é sui generis
ao homem.
Sendo assim, o Eu cresce com a linguagem e a poesia na inconstante busca
de si reflete a procura dos autores de si próprios. O Eu coloca-se em reflexão sob a
escolha de palavras que possam exprimir seus quereres. Além do mais, observa-se
a necessidade de ambos os escritores em evidenciar a maldição que recai sobre
eles, basta lembrar que Rousseau nas Confissões (1782/1789) culpa-se por ter
custado à vida a sua mãe, já que ela teria falecido em seu parto e Drummond, de
maneira semelhante, afirma que seu nascimento teria sido anunciado por um “anjo
torto”.
Enfim, tudo isso nos pareceu pertinente para efetivar o enlace entre
Rousseau e Drummond, importantes articuladores do fazer poético. Coube à poesia,
primeira manifestação humana da linguagem, expressar esses momentos reflexivos

751
dos poetas, desconcertados frente ao mundo. O ideal romântico, mais uma vez,
contrapunha-se a realidade impetuosa. A saída era fazer da palavra o lugar de
mediação entre o ser e o querer ser.

Referências Bibliográficas

ADORNO, T.W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de


literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: 34,
2003, pp. 65-89.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia; posfácio de Eucanaã Ferraz.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ARRIGUCCI JR, Davi. Coração Partido. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
FAUSTINO, M. Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977.
MORETTO, F. M. L. Prefácio. In: ROUSSEAU, J. -J. Os devaneios do caminhante
solitário. Tradução de Fúlvia Maria Luiza Moretto. Brasília: Ed. UnB, 1986. p.7-17.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, Col. Logos, 1982.
ROUSSEAU, J.-J. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução de Fúlvia Maria
Luiza Moretto. Brasília: Ed. UNB, 1986.
______. Les rêveries du promeneur solitaire. Paris: Gallimard, (Folio Classique),
1972.
STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: GB, 1972.

752
CONVERSA COM FERNANDO PESSOA, DE CARLOS FELIPE MOISÉS: O
POETA NO ENSINO MÉDIO

Patrícia A. Beraldo Romano255

A recepção crítica da obra poética de Fernando Pessoa: pessoas de Pessoa

Se a poesia é um gênero literário que incomoda alguns alunos, a poesia de


Fernando Pessoa pode afastar definitivamente o jovem desse gênero caso o
professor não exerça seu papel de mediador entre o texto pessoano e o jovem leitor.
Fernando Pessoa é um poeta excêntrico, um solitário na multidão, um múltiplo
solitário, um multiplicador de “eus”, um obstinado, um fing(e/i-dor) de fingidores, um
mestre, um discípulo, um excessivo, um transbordante, um homônimo, muitos
heterônimos, enfim, como bem definiu Perrone-Moisés (2001): um “aquém do eu,
além do outro”256.
Toda vida de Fernando Pessoa se resume em literatura, numa literatura de
dimensões gigantescas tanto quanto a de Camões, o poeta que Pessoa desejou
superar. É Pessoa considerado hoje um dos maiores poetas que a Língua
Portuguesa produziu e autor de obra poética e em prosa marcadas por profunda
complexidade. Além disso, a vida pessoal do poeta sempre foi permeada de
paroximos, para evitarmos a palavra mistério, o que torna mais enigmática boa parte
de sua produção que, embora insistentemente estudada, ainda é insuficientemente
compreendida. Pessoa não é simplesmente o poeta de sentimentos e sensações,
mas também o das dúvidas, das insistentes e incômodas perguntas que o ser
humano vive a se fazer e para as quais não encontra respostas satisfatórias, apenas
mais perguntas.

Pessoa nos impele a pensar, a raciocinar, e não apenas a experimentar


sentimentos e sensações –pensar e raciocinar sempre na direção de
dúvidas e perplexidades que, sutilmente analisadas por ele, conduzem a
mais dúvidas, que só fazem conduzir a mais dúvidas. Ceticismo e

255 Universidade Presbiteriana Mackenzie/Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará/Capes


256
Título da obra de Leyla Perrone-Moisés sobre Fernando Pessoa.

753
relativismo seriam os vetores do seu “pensamento” (MOISÉS, 2001,
pp.272-273).

Fernando Pessoa publicou apenas uma obra em vida, Mensagem. Livro


fininho em número de folhas, mas muito denso em conteúdo. Todo restante de sua
extensa obra ficou dispersa e transformou-se em material para os estudiosos que,
incansavelmente, se debruçam nas poesias de seus heterônimos, as famosas
personalidades poéticas inventadas por Pessoa: “No dia 8 de março de 1914, o
denominado Fernando Pessoa explode em três poetas diferentes: um mestre
bucólico (Alberto Caeiro), um neoclássico estóico (Ricardo Reis), um poeta futurista
(Álvaro de Campos) (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 26).
É justamente a questão da heteronímia o grande mistério instigante da obra
do poeta de mútliplas faces, todas desdobradas da dele que, segundo ainda
Perrone-Moisés, seria também um desdobramento: “Nenhum dos heterônimos e
nem mesmo o ortônimo é ‘ele-mesmo’” (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 30). O poeta,
nesse processo de multiplicar-se, parecia expressar o seu desejo por sentir e
enxergar a realidade do mundo da forma mais aguçada possível, já que escrevera:
“Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados, / Ser a mesma
coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, / Realizar em si toda a
humanidade de todos os momentos/ Num só momento difuso, profuso, completo e
longínquo” (PESSOA, 1965, p. 344).
Estamos, portanto, diante de um poeta absolutamente completo. E, por isso,
é que advogamos aqui a necessidade de que sua obra seja levada, com mais
frequência, para a sala de aula, em especial, para a do Ensino Médio, momento em
que nosso aluno já é capaz de tecer reflexões sobre os questionamentos que a
poesia de Pessoa é capaz de suscitar. Isso sem falar na herança cultural a que
nossos alunos têm direito e a que a obra de Fernando Pessoa pertence. Também
lembramos aqui o quanto a arte literária de Pessoa pode contribuir para formarmos
jovens incomodados com a fragmentação de mundo e de ideias a que todos
estamos submetidos e, portanto, questionadores do sistema. Lembramos, assim, as
palavras de Felipe Moisés ao tratar de Pessoa e de sua poesia:
É um poeta que não se limita a expressar sentimentos, como é hábito em
nossa tradição lírica, mas insiste em se questionar, e à realidade em redor,

754
pondo em xeque, uma a uma, as aparentes verdades e valores em que se
apoia a civilização que ainda é, substancialmente, a nossa. Dessa postura
brota uma poesia intelectualizada, cética e relativista, mas vazada em
linguagem clara, direta, repleta de paradoxos; uma poesia que nos induz a
pensar e a duvidar, ajudando-nos a conhecer melhor a nós mesmos e ao
mundo em que vivemos; uma poesia que abre caminhos insuspeitados,
oferecidos ao anseio comum de avaliar os limites da condição humana e
encontrar um sentido firme para a existência, tão mais digna quanto mais
lúcida e consciente (MOISÉS, 2001, p. 264).

Em virtude de reconhecermos em Fernando Pessoa um dos poetas da mais


alta preocupação com questões humanas e filosóficas é que propomos, a seguir,
uma alternativa para apresentá-lo ao jovem leitor do Ensino Médio.

Conversa com Fernando Pessoa, de Carlos Felipe Moisés

A partir de nossa experiência com aulas no Ensino Médio ao longo de mais


de dez anos, pudemos perceber que os livros didáticos apresentam Fernando
Pessoa apenas como um encarte sobre o que acontece em Portugal enquanto no
Brasil se desenrola o Modernismo e a Semana de Arte Moderna. Se o professor
utilizar livro de literatura brasileira e outro de literatura portuguesa é possível que
haja um espaço maior para tratar o assunto (os sistemas apostilados geralmente se
apresentam dessa forma também), entretanto, se a obra for compactada (literatura
brasileira e portuguesa juntas) ou obra com estudos linguísticos e literários em
volume único, geralmente a opção existente nas escolas estaduais, a chance de se
encontrar um estudo mais detalhado do poeta é mínima. Uma das raras maneiras
de recuperá-lo, nos últimos anos, tem sido o aparecimento, em alguns exames de
vestibulares da região Sudeste, como os da Fuvest e Unicamp, de alguma de suas
obras na lista de leituras obrigatórias para esses exames.
Percebemos que Fernando Pessoa tem ficado à margem dos estudos
literários desenvolvidos no Ensino Médio, a não ser que o professor seja um
apaixonado por sua poesia e acabe por inseri-la, de alguma forma, no programa que
ele executa em sala de aula. Nesse sentido, acreditamos que a obra do professor,
escritor e crítico literário Carlos Felipe Moisés, Conversa com Fernando Pessoa:
entrevista e antologia, publicada pela Ática, em 2007, surge como uma alternativa
interessante para que o poeta chegue ao jovem leitor do Ensino Médio. Explicamos.

755
A obra de Felipe Moisés foi elaborada para dialogar com o jovem leitor. O
autor cria um narrador-personagem, Marcos Siqueira, que acabou de ganhar o
primeiro lugar de um prêmio sobre uma pesquisa a respeito da vida e obra de
Fernando Pessoa. O prêmio a ser recebido é o direito de entrevistar o poeta! Sim, é
isso mesmo. O leitor de Fernando Pessoa sabe que isso seria impossível, já que
Pessoa morreu em 1935, portanto, a história do prêmio, que parece real, num
primeiro momento, já é ficção e essa artimanha, a nosso ver, é uma proximidade
primeira entre as poesias de Pessoa, que serão apresentadas na sequência da
obra, e o jovem leitor pouco afeito, na maioria das vezes, ao conteúdo dessas
poesias.
Marcos Siqueira, logo no primeiro parágrafo do texto, se aproxima do leitor
por sua linguagem descontraída e jovem. Vejamos: “A gente passou quase o ano
inteiro em cima do Fernando Pessoa, todo mundo aprendeu e curtiu pra caramba e
ninguém tem dúvida: valeu a pena demais! (Já sei: ‘Tudo vale a pena, se a alma
não é pequena’, certo?)” (MOISÉS, 2007, p.11). Um ano estudando a poesia de
Pessoa é uma proposta muito interessante e é o resultado disso, através de um bate
papo bastante descontraído com o poeta das múltiplas faces, que o jovem leitor
encontrará nas páginas que seguem da obra de Felipe Moisés. Se o jovem acha a
poesia de Pessoa difícil (e acha mesmo, pois ela é difícil inclusive para os adultos,
conforme lembrará o próprio Moisés ao final da obra, na parte “Ao Leitor” 257), Marcos
Siqueira também acha, entretanto vê nessa dificuldade um desafio que o levará ao
prazer de compreender um pouco mais a arte do poeta:

Vou dizer, curto e grosso: ninguém é obrigado a entender tudo, acho


mesmo que ninguém é capaz de entender tudo, nem a professora: ela foi
a primeira a reconhecer isso. Então, cada um entende o que pode e, se
não for bobo, presta atenção no que o outro tem a dizer. O meu caso, por
exemplo. No começo não entendi quase nada—o tal do Pessoa às vezes
é complicado mesmo. Mas não desisti, fui em frente e até reli, muita coisa,
mais de uma vez. Aos poucos fui entendendo. Como? Primeiro, prestando
mais atenção nas palavras; segundo, não tendo preguiça de consultar o
dicionário; terceiro, não tendo vergonha de trocar ideias com os colegas.

257
“Fernando Pessoa é um poeta difícil e complicado? É, não vou negar... Principalmente o Ricardo Reis e a
Mensagem... E isso não quer dizer que as outras partes da obra sejam fáceis, não é mesmo? Então, confirmo:
Pessoa é um poeta difícil. Mas, se não fosse assim, alguém estaria interessado nele a vida toda, como tantos
críticos e leitores? Além disso, qual poeta (bom poeta, quero dizer) não é pelo menos um pouco difícil? “
(MOISÉS, 2007, p. 180)

756
Cheguei a uma conclusão: se ler e entender poesia fosse fácil, não ia ter
graça nenhuma. Entender alguma coisa, depois ir aprofundando aos
poucos, foi um tremendo desafio. Eu gosto de desafio e, na turma, quem
não gostava passou a gostar. Pode crer, é um barato! (MOISÉS, 2007,
p.10, grifos nossos).

Vemos nesse excerto, no trecho em itálico, o caminho a ser percorrido,


inicialmente, pelo professor ao pretender explorar a arte literária de Pessoa (bem
como de qualquer outro autor) e esse caminho conduz ao que o crítico Harold Bloom
advoga sobre o prazer de se ler um texto literário, afirmação com a qual estamos
plenamente de acordo e acreditamos ser o objetivo de qualquer docente que se
propõe a formar leitores em potencial:

Lemos, intensamente, por várias razões, a maioria das quais conhecidas:


porque, na vida real, não temos condições de “conhecer” tantas pessoas,
com tanta intimidade; porque precisamos nos conhecer melhor; porque
necessitamos de conhecimento, não apenas de terceiros e de nós
mesmos, mas das coisas da vida. Contudo, o motivo mais marcante, mais
autêntico, que nos leva a ler, com seriedade [...] é a busca de um sofrido
prazer (BLOOM, 2001, p. 25).

Um prazer capaz de transformar jovens em leitores verdadeiros, não


pseudoleitores apenas para responderem a questões de leitura de livros didáticos
ou a perguntas de vestibulares, mas sim leitores insatisfeitos e eternamente vorazes
por descobrirem os eternos e sempre novos mundos existentes dentro das obras
literárias. Para atingir o prazer a que Bloom se refere é necessário enfrentar o
mundo incógnito das palavras, o hermetismo das idéias e a busca por tentar
desvendá-las. Enfim, esse caminho Siqueira trilha durante um ano no colégio, junto
com seus colegas de turma e vai, ao final, descobrir “o barato” que pode ser a
viagem pela poesia de Fernando Pessoa. Contar como tudo isso ocorreu é o objetivo
do rapaz e fazer com que o jovem leitor se torne seu companheiro nessa empreitada
prazerosa: “A intenção, minha e da turma toda, é muito simples: que você passe a
gostar de Fernando Pessoa e sinta a curiosidade de ler o restante da obra. Ou, se
já gostava, que passe a gostar ainda mais” (MOISÉS, 2007, p. 11).
Na sequência do texto de Moisés, teremos um quadro de vida e obra do poeta
e a tão esperada entrevista. Na verdade, ela é que toma conta de todo o livro. O
leitor conhece Pessoa e suas ideias, bem como seus heterônimos e ortônimo,

757
através do bate-papo que Siqueira trava com o poeta na tão esperada entrevista
que o rapaz recebeu como prêmio. Essa entrevista está dividida em capítulos que
dão conta das ideias gerais do poeta, sua vida, a origem de seus heterônimos
(“Navegar é preciso; viver não é preciso”); a seguir, capítulos dessa entrevista para
cada um dos três mais famosos heterônimos, incluindo o ortônimo Fernando Pessoa
como uma espécie de heterônimo de si mesmo (“Poemas de Alberto Caeiro”,
“Poemas de Ricardo Reis”, “Poemas de Fernando Pessoa Ele-mesmo”, “Poemas
de Álvaro de Campos”). Nesses capítulos temos, primeiro, a apresentação de uma
coletânea, sempre muito ricamente escolhida, de poesias dos heterônimos (e
apresentar o texto literário antes de qualquer crítica é sempre muito bem-vindo) e,
na sequência, a entrevista com o poeta a respeito da concepção das ideias
existentes nas figuras de cada heterônimo. Posterior a esses capítulos,
encontramos um segundo recado do narrador Marcos Siqueira (o primeiro abre o
livro, conforme já salientamos anteriormente) a respeito da obra Mensagem:
compreendê-la requer um esforço bastante grande e são necessárias, de acordo
com a entrevista à frente dada por Pessoa, apreender três condições previamente
apresentadas por Siqueira.
Esse “aviso” evita, por exemplo, o “desconcerto” que a obra Mensagem gera
em um leitor pouco afeito à poesia. Não advogamos aqui que devemos ler qualquer
obra seguindo a “dicas”, apenas acreditamos que o texto de Moisés pode contribuir
para termos leitores, jovens, apaixonados pelos textos de Fernando Pessoa.
Finalmente, entramos em “Poemas de Mensagem” e na última parte da entrevista
que finaliza a obra.
Acreditamos que essa obra possa ser oferecida a alunos de Ensino Médio ou
ainda a alunos dos últimos anos do Fundamental, dependerá da proposta a ser
elaborada pelo professor e da maturidade da turma de alunos. Também pensamos
que a obra poderá servir de desfrute para o professor que quer conhecer melhor
Fernando Pessoa e que vai utilizá-la para montar projeto semelhante ao da trajetória
da professora de Marcos Siqueira ao propor um trabalho inicial de pesquisa aos
alunos a respeito do homem e do poeta Pessoa. Assim, os próprios alunos é que
descobrirão de quem se trata tal figura literária. Essa é uma possibilidade que o

758
professor tem de explorar o livro sem que os alunos o tenham, se houver, por
exemplo, dificuldades financeiras para que a sala toda adquira a obra.
Caso essa dificuldade não exista, ou seja, os alunos todos possam adquirir a
obra, o professor pode elaborar uma proposta que contemple a leitura do texto de
Moisés por etapas, ou seja, por heterônimo, detendo-se em cada um dos capítulos
específicos e esmiuçando a discussão oferecida pelo próprio Pessoa criado por
Moisés. Na verdade, na entrevista, o bate-papo entre Siqueira e Pessoa, o leitor
encontra a linguagem descontraída do jovem e suas sinceridades quando acha
muito difícil entender as ideias do poeta ao lado da linguagem mais reservada e
polida de um Pessoa sorumbático e ensimesmado. Felipe Moisés tem o cuidado de
manter as características de Pessoa na criação da personagem entrevistada
Fernando Pessoa. Fazemos questão de reproduzir aqui, trecho exemplificativo:

[Fernando Pessoa]: ---O que posso dizer-te, em reforço do que já antes


dissera, é que a Mensagem enfeixa, de certo, todo o meu sentimento
patriótico. Mas o que vem a ser, em mim, e para mim, este sentimento? É
o sentimento de que não existem, na vida humana, senão três realidades
sociais: o Indivíduo, a Nação, a Humanidade. Tudo o mais é ficção. São
ficções a Família, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. O Indivíduo e a
Humanidade são lugares; a Nação, o caminho entre eles. É através da
fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que
gradualmente nos sublimamos, ou podemos sublimar-nos, até à
fraternidade com todos os homens.
[Marcos Siqueira]: ---Beleza! E é por isso que o livro termina com aquela
saudação em latim ‘Valete, Fratres’? ‘Fratres’ quer dizer ‘irmãos’, é o
sentimento da fraternidade, né? (MOISÉS, 2007, p. 176).

Esse compromisso com a criação da personagem Fernando Pessoa é


fundamental para que o aluno compreenda a figura do poeta na sua complexidade
existencial. Robert Bréchon, em obra sobre a biografia do poeta, define:

Pessoa pertence a uma categoria intermédia entre a dos jovens loucos que
queimam a vida (Kleist, Mozart, Rimbaud, Van Gogh) e a dos velhos sábios
que destilam a sua gota a gota, para recolher a essência do tempo
(Voltaire, Goethe). (BRÉCHON, 1999, p. 20)

A seguir, o professor pode dividir os alunos em grupos e explorar


detalhadamente cada um dos heterônimos a partir das respostas de Pessoa às
perguntas (às vezes, comentários) de Marcos Siqueira. Com esse exercício o
professor ainda pode dialogar com outras disciplinas, como História (a história de

759
Portugal e dos seus reis, as Grandes navegações, as origens de Lisboa), Geografia
(o espaço geográfico de Lisboa, a política portuguesa na época das grandes
navegações, as rotas marítimas, a política portuguesa no início do século XX, a
ditadura de Salazar, o Quinto Império), Matemática e Física (os instrumentos usados
nas navegações e as medidas), isso se pensarmos apenas na parte que discute
Mensagem, porque para as outras partes as discussões são infinitas e a literatura
funcionaria verdadeiramente como o “carro-chefe” de um projeto transdisciplinar,
cuja problemática-eixo poderia ser a complexidade do ser humano irradiada a partir
da obra poética de Fernando Pessoa.
Assim sendo, acreditamos que, independentemente de a obra de Moisés ser
utilizada apenas pelo professor ou pela turma toda de alunos, os resultados
advindos de sua leitura e posterior atividade será bastante enriquecedora tanto para
o professor como para os alunos. A chance de um aluno se sentir mais à vontade
com a obra de Pessoa depois de tê-la conhecido, inicialmente, pela de Felipe
Moisés, é muito grande e é para isso que serve um texto destinado ao público
infantojuvenil, para que, futuramente, os jovens cheguem com mais prazer aos
inúmeros outros textos de Pessoa e de poetas tão complexos como ele.

Considerações Finais
Muito da nossa herança literária não chega à escola, ou por desconhecimento
do professor ou porque esse profissional não sabe como apresentar o texto literário
ao aluno. Um dos autores em língua portuguesa praticamente esquecido nesse
contexto é Fernando Pessoa. Na tentativa de auxiliar o professor a apresentar esse
importante nome da literatura portuguesa é que sugerimos em nosso texto a leitura
e posterior atividade com a obra de Felipe Moisés Conversa com Fernando Pessoa:
entrevista e antologia. Acreditamos que essa obra, elaborada por um dos mais
significativos críticos brasileiros de Fernando Pessoa, venha a ajudar o professor a
conhecer um pouco mais da vida e das ideias do poeta português e a,
posteriormente, inserir as poesias de Pessoa na pessoa dos alunos do ensino
básico, mais especificamente do Ensino Médio. Assim, temos certeza de que, “se a
alma não é pequena”, vale a pena a leitura da antologia comentada de Felipe Moisés

760
e sua posterior inserção em sala de aula e, certamente, ela será apenas o início de
um prazer a ser descoberto pelos alunos, por um poeta que representou um caso
sui generis na literatura mundial porque, não se contentando com sua poesia, criou
personagens poéticas com plena autonomia de linguagem, estilo e temática,
conforme o poeta-heterônimo Álvaro de Campos nos lembra: “Multipliquei-me, para
me sentir,/ Para me sentir, precisei sentir tudo,/ Transbordei, não fiz senão
extravasar-me,/ Despi-me, entreguei-me,/ E há em cada canto da minha alma um
altar a um deus diferente” (PESSOA, 1965, p. 345). E é esse deleite pela poesia de
Pessoa que queremos que o aluno descubra, inicialmente, em Conversa com
Fernando Pessoa.

Referências Bibliográficas
BLOOM, H. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
BRÉCHON, R. Fernando Pessoa, estranho estrangeiro: uma biografia. 2. ed. Rio de
Janeiro: Record, 1999.
MOISÉS, C. F. Conversa com Fernando Pessoa: entrevista e antologia. São Paulo:
Ática, 2007.
-----. O Desconcerto do Mundo: do Renascimento ao Surrealismo. São Paulo:
Escrituras Editora, 2001.
PERRONE-MOISÉS, L. Aquém do eu, além do outro. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.

761
UNINVITED – O ENCONTRO DIALÓGICO ENTRE A MÚSICA E A LITERATURA
VAMPÍRICA DE BRAM STOKER

Patricia Hradec258

Introdução

O presente artigo tem por objetivo demonstrar o encontro dialógico entre duas
obras distintas: o romance de Bram Stoker, Drácula, escrito em 1897 e a música
Uninvited da cantora Alanis Morissette de 1998.
Partindo do pressuposto bakhtiniano que toda palavra dialoga com outra,
havendo uma relação de um discurso com outro inerente à constituição do próprio
discurso, não é descabido pensar em uma música dialogando com a literatura.
Através da interdiscursividade teremos o que Bakhtin chama de “orientação
dialógica” que “é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. [...]”
(BAKHTIN: 1988,88). Fenômeno este que é encontrado tanto na música quanto no
romance.
Bakhtin esclarece que “[...] o discurso escrito é de certa maneira parte
integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma
coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio,
etc. [...]” (BAKHTIN: 2006,126). Desta forma podemos entender que o texto escrito
está imbricado em uma discussão ideológica na medida em que a letra da música
pode se encaixar com o texto literário, constituindo-se assim uma resposta ao
romance.
[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor. (BAKHTIN: 2006,115 – grifo do autor)

258Professora de Literatura Inglesa e Norte Americana da Faculdade Anhanguera de Guarulhos e Mestra em


Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

762
O livro Drácula de Bram Stoker, escrito em 1897, relata a história de um casal
que de diferentes maneiras encontra-se com o conde Drácula, um vampiro
sanguinário. A narrativa é em forma de diários e relatos entre os personagens.
Jonathan Harker é um agente imobiliário inglês e tem a missão de ajudar o
conde na compra de uma propriedade e para organizar a transação viaja até o
castelo do conde situado em um distrito na fronteira de “[...] três estados –
Transilvânia, Moldávia e Bucóvina – entre os montes Cárpatos [...] uma das regiões
mais selvagens e inexploradas da Europa. [...]” (STOKER: 2012,227). Harker é
convidado a permanecer, mas depois percebe que é feito prisioneiro. Algum tempo
depois consegue fugir do castelo e volta para os braços de sua noiva, Mina. Mina
por sua vez também irá encontrar o vampiro, só que desta vez em Londres.
Já a música da cantora canadense Alanis Morissette intitulada Uninvited foi
escrita para compor a trilha sonora do filme “City of Angels” (Cidade dos Anjos)
lançado em 1998 estrelado pelos atores Nicholas Cage e Megan Ryan, uma
refilmagem de “Der Himmel über Berlin” (Asas do Desejo) de 1987 do diretor Win
Wenders.
O título da música nos chama a atenção pelo fato de que a tradução da
palavra uninvited é não convidado, ou ainda não aceito. Podemos pensar na obra
de Stoker, visto que o vampiro precisa ser convidado para entrar na casa ou mesmo
na vida de alguém.
Fazer o convite ao vampiro é uma reminiscência do vampiro grego
“Barabarlakos”, que saia de sua tumba e vagava de casa em casa, batendo para
verificar quem responderia ao seu chamado. Se a pessoa da casa não respondesse
imediatamente, o vampiro não perderia tempo e iria embora para bater em outra
casa. Por conta disso, é costumeiro na Grécia não abrir a porta ao primeiro toque
da campainha, deve-se esperar pelo segundo (BANE: 2010, 32).
O fato de a música ser intitulada uninvited demonstra esse impedimento, essa
não entrada do vampiro, é como se o poeta-locutor barrasse e não permitisse a
entrada do outro em sua vida.
Outro fato curioso é que o romance de Stoker iria se chamar “Undead” ou
seja, “não morto” indicando assim a condição de morto-vivo do vampiro. A partícula

763
inglesa “un-” indica contradição, negação e podemos observar no decorrer da
música várias palavras com esta partícula de negação como unfortunate,
unchartered, unworthy259. Temos ainda uma outra palavra na música strangely260
que também poderíamos substituir por unfamiliar261. Todas estas negativas criam
uma atmosfera negativa, tétrica que compõe não apenas a letra como também a
melodia composta por quatro notas de piano.
Na música temos um direcionamento do discurso e podemos dizer que é uma
estilização, porque segundo José Luiz Fiorin (1999) cita: “A estilização é a
reprodução do conjunto de procedimentos do “discurso do outrem”, isto é, do estilo
de outrem.” (BARROS e FIORIN: 1999, 31). É usado por diversas vezes o pronome
pessoal you (você) indicando que há uma referência, uma direção a um outro. É
como se fosse a resposta a uma outra pessoa. Fazendo um paralelo com o romance
de Stoker, temos relatos de Mina direcionados ao noivo Jonathan, portanto
podemos dizer que a música poderia muito bem preencher o espaço entre Mina e o
vampiro, poderia muito bem ser a resposta de Mina a este vampiro usurpador.
Outro conceito observado na música é o que Bakhtin explica como diatribe,
ou seja, “[...] gênero interno dialogado, construído habitualmente em forma de
diálogo com um interlocutor ausente, fato que levou a dialogização do próprio
processo de discurso e pensamento.” (BAKHTIN: 1997, 109). Observamos na
música este conceito na medida em que há uma exposição de ideias mas não há
uma resposta por parte do interlocutor, por exemplo: “Like anyone would be / I am
flattered by your fascination with me / [...] / But you / you’re not allowed / you’re
uninvited / an unfortunate slight / [...]”262. Há um direcionamento para alguém mas
não há uma resposta.

259
Infeliz, inexplorado, não valioso (Tradução livre)

260
Estranhamente (Tradução livre)

261
Não familiar (Tradução livre)

262
Como qualquer pessoa poderia estar / Eu estou lisonjeada pela sua fascinação em mim / [...] / Mas você /
Você não é aceito / Você não é convidado / Um infeliz insulto / (Tradução livre)

764
Ainda quando na música lemos: “I don’t think you unworthy / I need a moment
to deliberate”263 podemos entender que há alguém esperando uma resposta para a
decisão que será tomada, mas este alguém não se manifesta em momento algum.
Há ainda outra menção na música que podemos comparar com a obra
literária: “Must be strangely exciting / To watch the stoic squirm”264. A música fala de
uma satisfação em ver alguém que é firme ficar inquieto. Neste sentido, Mina Haker
escreve: “Durante toda a minha vida relembrarei com satisfação aquele momento
de dissolução final, pois, naquele instante, houve uma expressão de paz no rosto
do Conde, expressão esta que eu jamais imaginaria poder existir ali.” (STOKER:
2012, 532).
A música continua: “Must be somewhat heartening / To watch shepherd meet
shepherd”265. O fato de ser encorajante assistir um líder encontrar outro líder nos
remete a figura tanto de Drácula quanto do professor Van Helsing, figuras
antagônicas presentes no texto de Stoker.
Drácula é o líder de seu clã, formado por três mulheres vampiras que
apareceram para Jonathan Harker no castelo do conde. No “Memorando do dr. Van
Helsing” lemos: “Sabia que teria de encontrar pelo menos três túmulos habitados;
[...] Havia um grande túmulo, mais imponente do que os outros; [...] Aquele era o lar
do Rei-Vampiro, gerador de muitos outros. [...]” (STOKER: 2012, 528).
Já o professor Van Helsing é o erudito conhecedor de vampiros. No “Diário
de Mina Harker” lemos: “[...] O professor Van Helsing ocupou a cabeceira da mesa,
pois o dr. Seward lhe designara esse lugar quando o viu entrar na sala. [...]”
(STOKER: 2012, 419). O fato de Van Helsing ser colocado na cabeceira da mesa
indica uma posição privilegiada perante os demais, ele é a autoridade designada
inclusive por outro doutor para combater o vampiro. Ser nomeado professor indica
que é o indivíduo versado, perito e experiente, é o inquestionável líder da cruzada
instituída para aniquilar os vampiros. Lemos as palavras do professor Van Helsing:

263
Eu não acho que você não valha a pena / Eu preciso de um momento para considerar (a proposta) (Tradução
livre)
264 Deve ser estranhamente excitante / Assistir a inquietação de quem é firme (Tradução livre)
265
Deve ser de alguma forma encorajante / Assistir um líder encontrar (outro) líder (Tradução livre)

765
“Os vampiros realmente existem, e temos provas disso. Se durante longos anos não
tivesse ensinado o liberalismo à minha mente, só teria acreditado ao ver fatos
concretos. Ah, se soubesse antes o que agora sei, [...]” (STOKER: 2012, 420).
Na música temos também: “Like any unchartered territory / I must seem
greatly intriguing”266. Na música há a menção do ser intrigante pelo fato de ser uma
incógnita para o outro, um território inexplorado em termos simbólico. Podemos
lembrar que o conde Drácula era estrangeiro para Mina assim como ela constituía
costumes, ideias e vivências diferentes daquelas do conde, daí podemos pensar na
fascinação do conde por ela e vice-versa. No diário de Mina Harker lemos:

[…] A névoa tornou-se cada vez mais espessa, e percebi que não
penetrava pela janela, mas surgia pela fresta da porta, semelhante à
fumaça ou como vapor de água fervente. Intensificou-se cada vez mais e
pareceu se concentrar no quarto como uma nuven em forma de coluna,
acima da qual a chama do gás brilhava como um olho vermelho. [...] o fogo
estava no olho vermelho, que começou a me fascinar. [...] (STOKER: 2012,
437)

Há ainda um outro trecho da música que diz: "You speak of my Love / Like
you have experienced love like mine before”267. Temos aqui um amor como se já
tivesse sido vivido. E neste ponto podemos nos lembrar da figura de Drácula, pois
como ele mesmo comenta: “[...] já comandei nações, fiz intrigas e lutei por elas
centenas de anos antes [...]” (STOKER: 2012, p.460). Ser o vampiro a criatura a
atravessar séculos de existência deixa-nos margem para pensar neste amor
anterior, neste amor já experimentado antes.
Este amor é demonstrado ainda nas palavras de Drácula quando se dirige a
Mina: “agora me pertence; é carne da minha carne, sangue do meu sangue.
Pertence à minha família [...] mais tarde será minha companheira e ajudante [...]
todos eles terão de submeter-se à sua vontade. [...]” (STOKER: 2012, 460).
Notamos que é um amor possessivo, mas que em contra partida dará certo poder
para Mina, porque segundo o vampiro todos iriam submeter-se à sua vontade.

266 Como qualquer território inexplorado / Eu devo parecer bem intrigante (Tradução livre)

267 Você fala do meu amor / Como se já estivesse experimentado o amor como o meu antes (Tradução livre)

766
No encerramento da música temos: “I don’t think you unworthy / I need a
moment to deliberate”268. Isso corrobora com a ideia de que a proposta de Drácula
poderia ser cogitada, Mina poderia ter o poder vampírico caso quisesse.
Sendo assim, pudemos verificar como uma música pode estar em
consonância com a literatura, especificamente com uma obra clássica, mesmo
tendo sido escrita em épocas e contextos diferentes. A música pode muito bem
dialogar com o texto conforme já demonstrado, há pontos convergentes que
possibilitam este diálogo.
Estar sempre atento aos diálogos existentes e pensar em formas de observar
o mundo ao redor, seja por meio de uma obra literária, um quadro, uma música,
corrobora para o conceito bakhtiniano da reflexão e refração das obras. Um obra
está ligada a outra por diferentes maneiras e dialoga entre si, basta ficarmos atentos
aos diálogos.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara


Frateschi Vieira. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
________. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 2. ed. rev.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora
F. Bernardini. São Paulo: Ed. Unesp/Hucitec, 1988.
BANE, Theresa. Encyclopedia of Vampire Mythology. North Carolina: McFarland &
Company, 2010.
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Org.) Dialogismo, polifonia e
intertextualidade em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 1999.
STOKER, Bram. Drácula: o vampiro da noite. Tradução de Maria L. Lago Bittencourt.
2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

268
Eu não acho que você não valha a pena / Eu preciso de um momento para considerar (a proposta)
(Tradução livre)

767
PRIVACIDADE E REDES SOCIAIS: ESPETÁCULO E VIGILÂNCIA

Patricio Dugnani269

Introdução

Não sei se me faço entender. Mas percebo meu corpo estendido por
distâncias que nunca poderia imaginar em minha infância de TV preto & branco,
seletor de canais e Bombril na antena do rádio. Percebo efeitos preconizados por
Mcluhan: a retribalização pelos meios de comunicação, a mensagem dos meios e
suas transformações na comunicação e na percepção do homem, enfim, já posso
mesmo vislumbrar a aldeia global. Percebo a clareza e capacidade visionária do
autor citado e vejo também a mentalidade por vezes limitada de certa fatia da
intelectualidade, que entorpecida pela crítica aos meios de comunicação, acabaram
deixando de lado um pensamento importante para se compreender as
transformações do século XX. Entendo, concordo por vezes e admiro: mesmo as
críticas aos meios de comunicação. Porém, não consigo embalar meus sonhos, e
não é por causa da violência que cerca, principalmente, as grandes cidades. Afinal,
são tantos os olhos que estão imbuídos em preservar a minha integridade física,
que posso até mesmo dormir iludidamente seguro. Não, não é a insegurança que
me preocupa, pelo contrário, são os muitos olhares que têm me incomodado.
A segurança tem criado uma estranha paranóia na percepção do homem.
São tantas câmeras e sistemas de segurança em constante vigilância, que já podem
fazer o homem sentir-se num Reality Show contínuo, mas sem direito a prêmio. E o
pior está por vir, o poder que esse saber confere à sociedade: “o poder
disciplinador”, as “microfísicas do poder”. Penso em Michel Foucault, principalmente
em seu Vigiar e Punir e vejo o panoptismo tomando conta de nossas vidas, com o
nosso consentimento e benção, tudo em nome da segurança e, também, pelo amor
a um hedonismo espetacular. Alguém assistiu ao filme V de vingança (2006)?
Sempre em nome de um bem e de uma promessa de liberdade, se cometem as

269 Universidade Presbiteriana Mackenzie

768
piores atrocidades (desculpe pelo chavão, mas ele se encaixa a esse discurso). Por
tudo isso, ando um pouco inquieto, em meus sonhos, em meus dias.
Por tudo isso, nesse texto, pretende-se refletir, não somente sobre a
vigilância tão presente em nossos dias, mas sobre a perda da privacidade,
conseqüência que vem emaranhada nas à questão da segurança. Pretende-se
também, analisar o consentimento social quanto à questão dessa perda do espaço
pessoal, em contraposição à extravagante postura de escancarar as intimidades por
meio de blogs, redes sociais e reality shows. Esse deslumbramento por aparecer,
por tornar-se visível, o hedonismo espetacular característico de nossa pós-
modernidade, nos faz lembrar do deslumbramento fatal que Narciso diante à sua
imagem refletida. Essas relações criam, assim, um espetáculo da vida privada, uma
“Sociedade do Espetáculo”, como afirmou Guy Debord (2007), essa transformação
de tudo em mercadoria total. A partir dessas reflexões pretende-se traçar um perfil
do sujeito pós-moderno, relacionando a privacidade, o anonimato, o espaço
pessoal, com a obsessão contemporânea pelo espetáculo, pelo prazer, pela
aparência e as consequências desse processo na construção do espaço pós-
moderno.

O sujeito pós-moderno
Para iniciar as reflexões, cabe, antes de tudo, alicerçar alguns conceitos,
definindo a origem e influências que se farão presentes nesse texto. Primeiramente,
partiremos do conceito de sujeito pós-moderno esboçado por Stuart Hall, onde se
verifica essa tendência descentralizada que o sujeito contemporâneo apresenta.
Tendência que nasceu das complexidades e transformações dinâmicas que a
velocidade e a fragmentação moderna desenvolveram com a sociedade:

(...) o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma


identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados
nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2004, p.12-13)

769
Ou seja, a construção da identidade cultural contemporânea não se pretende
mais fixa e imutável, apoiada em estruturas racionais fantasiosamente imutáveis,
mas sim uma construção dinâmica, mais flexível, adaptada à velocidade das
transformações complexas que nos são apresentadas diariamente. Toda essa rede
de transformações sígnicas, tem uma relação íntima com o avanço tecnológico e os
novos meios de comunicação – meios de comunicação em massa e mais
recentemente a internet - que despejam novos conceitos sobre o sujeito,
principalmente no século XX, modificando a sua percepção do mundo. Pois os
“efeitos da tecnologia não ocorrem aos níveis das opiniões e dos conceitos: eles se
manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas da percepção (...).”
(MCLUHAN, 1974, p. 34).
A partir desse conceito de identidade cultural na pós-modernidade e do
sujeito pós-moderno, analisaremos a sua relação com as questões crescentes de
vigilância, falta de privacidade e espetáculo.

Vigilância e privacidade
“Controlo o computador e o celular do meu gato para ver com quem ele conversa.
Assim me sinto segura de que não apronta por aí. Estou paranóica?”
Revista Nova, edição 450, ano 35, nº 22, novembro de 2007

A partir desse relato, retirado de uma revista, percebe-se que esse modelo
de vigilância e sua relação com o poder já está acomodado em nosso imaginário, o
que faz com que essa invasão de privacidade se torne comum e, totalmente
justificável. Essa naturalização da lógica social cria um mito (BARTHES, 1999) que
nos é apresentado como aparentemente óbvio, podendo, mesmo, ser vista em uma
revista de grande circulação sem o menor constrangimento. Essa construção
ideológica de um mito, essa naturalização da história que empresta significados de
outros signos de maneira arbitrária é muito bem observada por Roland Barthes, em
sua obra Mitologias (1999) e reflete muito bem esse processo descrito de achar que
a vigilância do privado é natural. Terry Eagleton descreve esse processo das
Mitologias de Barthes da seguinte maneira:

770
Vimos que muitas vezes se sente que a ideologia implica uma
“naturalização” da realidade social, e esta é outra área em que a
contribuição semiótica foi especialmente esclarecedora. Para o
Roland Barthes de Mitologias (1957), o mito (ou ideologia) é o que
transforma a história em Natureza emprestando a signos arbitrários
um conjunto de conotações aparentemente óbvio, inalterável
(EAGLETON, p.176, 1997).

Não é surpreendente que essa vigilância entre pessoas comuns, sem


nenhuma tecnologia especial se torne algo tão cotidiano? A privacidade,
aparentemente não vale mais nada, pois se ninguém invadir a minha, não me faço
por rogado, disponibilizo em sites de relacionamento toda a minha vida particular,
deixo-me vigiar pelos milhões de olhos que freqüentam a rede todos os dias. Se já
passamos, segundo Marshall Mcluhan pela Era de Gutenberg, pela Era da
Eletricidade e estamos na Era da Informação, acredito que estejamos avançando
para a era da vigilância.
Mcluhan propôs uma Aldeia Global, que surgiria pela comunicação. Mas
nota-se que ela não veio apenas pela comunicação somente, mas pela unificação
do mercado mundial. Transformando tudo em mercadoria total, a unificação das
aldeias será muito mais eficiente para nossa sociedade do valorização do consumo,
se “(...) unificar a terra como mercado mundial” (DEBORD, 2007, p.29). Mesmo as
atitudes diferentes, rebeldias e inovações já estão previstas e padronizadas. O
espetáculo do mercado é total: “O espetáculo é o momento em que a mercadoria
ocupou totalmente a vida social.” (DEBORD, 2007, p.30).
Entenda-se espetáculo, segundo Guy Debord (2007), como a expressão da
inversão do real transformado em produto. A coisificação da realidade, sua ilusão,
sua padronização, sua unificação em torno de uma mercadoria total que acaba
aparecendo como o próprio real: “A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o
espetáculo é sua manifestação geral.” (DEBORD, 2007, p.33).
Tendo em vista essa reflexão, percebe-se que: sim, o avanço tecnológico
possibilitou a extensão da percepção dos homens, possibilitando também que a
vigilância exercida por cada ser humano aumente. Esse poder que cada ser humano
exerce de forma disciplinadora - as “microfísicas do poder” - se torna mais eficiente

771
e afeta os nossos mais, outrora, escondidos segredos, delegando poder às funções
disciplinadoras, a partir do saber íntimo de cada pessoa.
Ao mesmo tempo, essa devassidão dos segredos, aparentemente já não é
repreensível, pois, de forma espetacular, os freqüentadores dessa aldeia global
virtual já não se preocupam com seu anonimato, escancarando suas intimidades
para milhões de internautas. Porém essa atitude parece não se tornar uma reflexão
social. Funes, o memorioso (BORGES, p.105, 1999 ) e toda a sua informação
parece não continuar transformando essa informação em uma forma de pensar
sobre os fenômenos atuais, mas apenas acumulação de centenas, quiçá milhares
de arquivos amontoados nos bits de memória de um computador.
Com isso, essa devassidão de intimidades deverá provocar alguns efeitos
que já começam a serem sentidos em nossos dias. Na próxima unidade refletiremos
sobre alguns efeitos que a perda do anonimato, a vigilância virtual constante e o
deslumbramento pelo espetáculo poderão causar nas relações pessoais de nossa
sociedade.

Espetáculo e privacidade
Não desconfiando da sinceridade do isolamento de Greta Garbo, que buscou
o anonimato e fez a escolha mais estranha que uma pessoa pública e venerada
como deusa, um mito cinematográfico, poderia fazer: a solidão, o esquecimento.
Esse ato não parece nem passar pela cabeça da maior parte das celebridades e
dos milhões de anônimos que querem ser ouvidos a qualquer preço. Como o suicida
que grita do alto do edifício, para chamar a atenção, os anônimos contemporâneos
esvaziam a sua patética vida – e a dos outros - nas páginas dos blogs, credes
sociais, ou em vídeos do Youtube, para fazer parte do grande espetáculo circense
que se tornou a vida privada. Parece que a capacidade de adaptação e “celebração
móvel” (HALL, 2004, p.13) do sujeito pós-moderno, tornou-o um exibicionismo,
exercendo seu voyerismo para se destacar dos iguais. Essa ação acaba
construindo, assim, a identidade do sujeito pós-moderno por uma diferença –
lembrando que, mesmo a diferença na contemporaneidade, não passa de um
padrão, um produto, de uma mercadoria, uma “(...) revolta puramente espetacular:

772
isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria”, (DEBORD, 2007,
p.40).
Essa diferença é, aparentemente, apenas conseguida pelos holofotes e fotos
em qualquer revista de fofocas das celebridades, ou pelas vidas apresentadas na
rede. Toda essa celebração do vazio, dos gestos superficiais e da coisificação da
vida, não passa de uma tentativa de se tornar visível, se tornar notável. Nunca o
“querer ser” da sociedade teve tanta gula. Após transformarem tudo em mercadoria,
agora se avança sobre a intimidade, fazendo com que se torne um produto
admirável e espetacular.
O anonimato parece ser pior que o escárnio mundial. Ou ainda não se
percebeu que já não se pode estar só, fisicamente, mesmo mantendo-se o homem
simbolicamente sozinho.
“Condenaram a privacidade à morte” (SIQUEIRA, 2008, p.90) e por um ato
exibicionista pode-se pagar um alto preço:

Em 2002, então com 15 anos, o garoto de Guerra nas Estrelas gravou


em vídeo a si mesmo bradindo uma vara para recuperação de bolas
de golfe, que fingia ser um sabre de luz. [...] O vídeo foi encontrado
por algum fã sarcástico, que o colocou em um sitre de vídeos na
internet. Ele tornou-se um sucesso imediato para uma multidão de fãs.
Por toda a rede de “blogueiros”, as pessoas começaram a zombar
dele, por ser gorducho, desajeitado e ridículo. [...] Uma coisa é ser
alvo de caçoada na escola, outra é ser ridicularizado por uma multidão
globalizada. O adolescente saiu da escola e teve de procurar ajuda
psicológica. (SOLOVE, 2008, p. 83)

Esse adolescente tornou-se a partir desse momento uma “vedete” (DEBORD,


2006, p. 40), um objeto de identificação, uma lei da sociedade do espetáculo, pois
se transforma em uma mercadoria total; uma coisa aparente, mas sem profundidade
que deverá pagar por sua transparência global: “Aparecendo no espetáculo como
modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-
se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas.” (DEBORD, 2006, p.40)
De certa forma, todos são vedetes, em uma sociedade regida pelos olhares,
pelas câmeras, pois todos participam do espetáculo com os conteúdos diferentes,
diferenças padronizadas. Todos estão a construir essa imensa rede de vigilância
(voltado para si mesmo, como o mercado). A rede, democraticamente participativa,

773
onde cada um pode ser autor de sua programação, é ao mesmo tempo
aparentemente livre, porém incapaz de fugir da padronização, da alienação onde
todos estão mergulhados: “[...] toda realidade individual tornou-se social,
diretamente dependente da força social, moldada por ela.” (DEBORD, 2006, p.18)
Nesse processo de identificação, busca-se compensar o estilhaçamento, a
fragmentação que as especializações trouxeram ao humano pós-moderno. O mais
estranho é que, poucos querem se preservar desse escancarar da vida privada, na
verdade, ao que parecem, todos querem participar desse espetáculo, ser engolido
por ele, tornar-se produto, mercadoria superficial e padronizada.

O poder e a privacidade
Pretende-se, nesse ato do espetáculo, traçar um paralelo do funcionamento
da vigilância pelas câmeras de filmagem e pela rede, com o Panóptico de Benthan,
apresentado por Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2005).
O Panóptico foi um centro penitenciário planejado por Jeremy Bentham, em
1791, que visava criar um local ideal para se manter os condenados em permanente
vigilância. Ele consiste basicamente em uma torre central, cercada por celas
retangulares, onde os presos ficariam confinados. Nessa torre, o vigia, teria total
acesso às ações de todos que estivessem nas selas, mas impediria que os mesmos
soubessem se estão sendo observados. Basicamente, os presos, sem saber se
estão sendo vigiados, ou quando estão sob os olhares atentos dos guardas,
manteriam a ordem, pela simples suposição de uma vigilância constante. Essa
presença constante do olhar disciplinador conferiria poder aos que estão na posição
de vigias.
O panóptico tem um funcionamento de vigilância constante e invisibilidade,
semelhante ao olho do Grande Irmão, do livro 1984, de George Orwell; também faz
lembrar muito o funcionamento do reality shows, e equivale aos milhares de
câmeras espalhadas, que escancaram a vida privada e compõem-se como sendo
os olhos sempre atentos de Argos.

Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em


capacidade de penetração no comportamento dos homens; um

774
aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder,
descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as
superfícies onde este se exerça. (FOUCAULT, 2005, p. 169)

Um caso interessante de vigilância constante que podemos citar, para ilustrar


esse fenômeno, cada vez mais freqüente em nossos dias, é a estratégia de
“pesquisa de público sem autorização” que o site de busca Google realiza nas “redes
sociais” diariamente. Com seus milhões de acessos diários e através do
levantamento dos interesses desses acessos e compras, o site é capaz de traçar
um perfil de comportamento do consumidor e apresentar os momentos em que é
mais freqüente a busca por determinadas palavras. Isso confere à empresa o poder
de selecionar e combinar os resultados das pesquisas realizadas, para produção,
por exemplo, de campanhas publicitárias mais eficazes, mas também, confere a
quem está observando, um poder de vigilância extraordinário sobre grandes massas
populacionais. Dessa forma, o uso indevido dessas informações, poderá, ou já pode
estar criando, ou, quem sabe, já criou um mecanismo de vigilância semelhante ao
panóptico de Benthan, analisado por Michel Foucault.
Lembrando que apenas citamos um exemplo de vigilância possível em
nossos dias, podemos refletir pela quantidade imensa de sistemas de vigilância –
olhos de Argos - que estão observando as nossas ações diariamente. Esse saber
sobre a vida cotidiana poderá conferir um grande poder a qualquer instituição que
se apresente nesse momento. Ou seja, a nossa perda de privacidade, pelo potencial
de vigilância que as novas tecnologias são capazes de desenvolver, acarreta num
grande saber que confere grande poder, construindo um panóptico virtual que nem
Benthan, ou mesmo Foucault foram capazes de imaginar, onde todos estão imersos
e cujos resultados são imprevisíveis.
Esse fenômeno foi alertado por Jerome Dobson, presidente da Sociedade
Geográfica Americana, em uma entrevista dada em 2009, ao repórter Rafael Garcia
da Folha de São Paulo. Essa questão da vigilância contínua, não mais pela visão
ilusória e institucionalizada de um Big Brother, mas de um movimento mais radical
e expressivo de vigilância de tudo e de todos, efetuada por cada ser vivente,, capaz

775
de acessar a internet, ou alguma câmera de vigilância. Mais eficiente que o Big
Brother, seria o Little Brother.

Há grande diferença entre o Big Brother de George Orwel e aquilo que


está acontecendo hoje. Primeiro, o perigo do qual eu falo não é
necessariamente hierárquico, imposto pelo governo aos indivíduos. O
que estou dizendo é que há muito mais "Little Brothers" mundo afora.
(DOBSON in GARCIA, 2009)

O Little Brother se caracteriza por materializa em cada um de nós, que


acabamos por vigiar e invadir a vida dos outros, interferindo e criticando o
comportamento dos outros. Fazemos isso quando observamos nossos filhos no
circuito fechado de escolas, principalmente anterior ao ensino fundamental.
Fazemos isso quando investigamos a vida das pessoas nas redes sociais, ou
quando damos audiência em programas que devassam a vida privada alheia. Todos
acabamos por construir esse grande panóptico virtual. E essa habilidade de
vigilância compartilhada e contínua é muito mais eficiente que qualquer instituição
que pudesse se aproximar do formato do Big Brother de Orwell.

A habilidade de uma pessoa vigiar outra não é hierárquica, e abre


caminho para vários tipos de relações de poder em que maridos
controlam esposas, patrões controlam empregados, etc. O que
acontece é que isso é uma forma de vigilância muito mais propensa a
ser aceita do que propostas anteriores, como o Big Brother. Ela é uma
forma muito mais eficiente e apresenta uma ameaça não só à
privacidade, mas à liberdade pessoal. É a maior ameaça já
experimentada pelos humanos às liberdades individuais. (DOBSON in
GARCIA, 2009)

Enfim, a vigilância se tornou um problema constante, pois não é somente


para a vigilância, nem tão pouco exclusivamente para segurança que ela existe.
Esse discurso acabou se tornando uma justificativa para esse processo, uma
desculpa esfarrapada para vigiar e punir. Mas essa vigilância acaba por se tornar
uma importante estratégia para o consumo, para o mercado, como Zygmunt
Bauman apresenta:

A vigilância suaviza-se especialmente no reino do consumo. Velhas


amarras se afrouxam à medida que fragmentos de dados pessoais

776
obtidos para um objetivo são facilmente usados com outro fim.
(BAUMAN, 2013, p. 10)

A vigilância se espalha, espalha seus modelos de comportamento, para além


do contato físico, mas pela rede de olhares e nós fazemos parte dessa rede, que
acaba por padronizar costumes e atentar contra as diferenças que fujam do modelo
mercadoria. É importante que nos mantenhamos vigilantes, para poder nos manter
coisas, para preservar-nos como mercadoria à mostra nas gôndolas dos mercados
que se tornou a vida privada.

Conclusão

Um sujeito fragmentado, apaixonado por sua auto-imagem, hedonista e


voyer, em busca de diferenças, para que possa negociar sua privacidade para um
mercado ávido de vidas a serem comentadas, consumidas e descartadas.
Dessa forma, somando-se o espaço totalmente observado, os olhos de
Argos, o potencial tecnológico para manter esse sujeito em evidência, seguro e
vigiado, temos um quadro perfeito para construir um imenso panóptico virtual, onde
ao invés da vigilância de prisioneiros condenados, teremos a observação de
pseudo-prisioneiros, não mais julgados, mas gratos pelo foco de atenção de algum
olho mágico, de alguma câmera que o transforme da condição ignóbil de
espectador, para a condição de espetáculo, mesmo que pelo preço de sua
privacidade. Ou seja, a coisificação dos momentos íntimos do homem, a
transformação desse espaço em espetáculo, a transformação do homem em
mercadoria total, podem levar esse sujeito a um ostracismo muito pior que o
anonimato, um consumo rápido e o esquecimento.
Dessa forma, é necessário manter a atenção para os aparentes prazeres e
confortos das novas tecnologias, para não confundirmos segurança, contato, com
vigilância e espetáculo.

777
Referências bibliográficas
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SOLOVE, D. J. Fim da Privacidade. Portugal: Revista Scientific American Brasil,
Outubro de 2008. ano 6, nº 77, p.83 a 87.

778
GÊNEROS E IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUA: FERRAMENTAS
DIDÁTICAS NA ESCRITA/REESCRITA DO GÊNERO RESENHA

Paulo da Silva Lima 270

Introdução

No presente artigo apresentamos parte de uma experiência com a produção


do gênero resenha, desenvolvida em uma escola pública a partir de um projeto de
extensão ligado à Universidade Federal do Pará, no campus de Marabá. Em tal
pesquisa, planejamos e desenvolvemos uma sequência didática com uma turma de
alunos do 2º ano do Ensino Médio, objetivando a produção e veiculação de uma
resenha no mural da escola e em um blog.
Nosso objetivo é demonstrar que quando a produção textual é norteada pela
ferramenta sequência didática, os alunos têm reais possibilidades de desenvolver
as capacidades de linguagem inerentes ao gênero trabalhado. Para isso, nos
embasamos em autores como Machado et ali (2004), Dolz et alii (2010), Bronckart
(2007), entre outros.
Assim, na parte inicial deste artigo, apresentamos algumas considerações
sobre o modelo didático do gênero resenha. Em seguida, tecemos considerações a
respeito do contexto da pesquisa e no terceiro tópico fazemos a análise das
capacidades de linguagem presentes na primeira e última versão da resenha
produzida por um dos alunos envolvidos na pesquisa.

O modelo didático do gênero resenha


O modelo didático de um gênero é construído levando-se em consideração
conhecimentos formulados no domínio da pesquisa científica e por especialistas.
Assim, para a elaboração de um trabalho didático com um determinado gênero é
preciso considerar os saberes teóricos, as finalidades e objetivos da escola no

270 UFMA

779
processo de ensino-aprendizagem e transformar esses conhecimentos em algo
coerente com os propósitos de ensino.
Em nosso caso, nos pautamos na pesquisa de Machado et al. (2004) que
afirmam ser a resenha um gênero que:

Pode ser chamado por outros nomes como resenha crítica, e que exige
que os textos que a ele pertençam tragam as informações centrais sobre
os conteúdos e sobre outros aspectos de outro(s) texto(s) lido(s) – como
por exemplo, sobre seu contexto de produção e recepção, sua organização
global, suas relações com outros textos etc. – , e que, além disso, tragam
comentários do resenhista não apenas sobre os conteúdos, mas também
sobre todos esses aspectos (MACHADO et al. 2004, p. 14).

A resenha, ao que se tem visto, é bastante utilizada no meio acadêmico,


principalmente nos cursos de graduação. Além disso, professores da educação
básica também costumam trabalhar com esse gênero, não só na disciplina de língua
portuguesa, mas também em outras com o objetivo de que os alunos desenvolvam
a capacidade de sumarizar e de tecer comentários sobre um determinado texto
(filme, documentário, etc.).
Em nosso caso, o objeto de referência para a produção da resenha foi o filme
Sociedade dos poetas mortos do diretor Peter Weir. Assim, determinados alunos da
segunda série do Ensino Médio que assistiram ao filme e têm conhecimento sobre
as capacidades de linguagem necessárias para produção de uma resenha
escreveram um texto pertencente a esse gênero com o objetivo de estimular outras
pessoas a se interessarem pelo longa-metragem.

Contextualização da pesquisa
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa-ação que desenvolvemos no
ano de 2013, entre os meses de abril e maio, em uma escola pública da cidade de
Marabá-PA, com 32 alunos do 2º ano do Ensino Médio. Para isso, contamos com a
colaboração de um professor que nos cedeu uma turma para realizar uma proposta
de produção textual (gênero resenha), por meio da ferramenta Sequência Didática
(SD). É importante mencionar que para a correção dos textos tomamos como base
uma lista de constatações/controle que trazia as principais características do
gênero.

780
No entendimento de Dolz et al. (2010), a SD é uma ferramenta didática capaz
de proporcionar um trabalho com a oralidade ou a escrita de forma sistemática,
podendo levar os alunos a desenvolverem com mais proficiência as capacidades de
linguagem inerentes ao gênero tomado como objeto de ensino. Esse, portanto, foi
nosso objetivo principal, buscar meios para auxiliar os estudantes na produção do
referido gênero de forma proficiente dentro de um contexto de produção.
Vale ressaltar que para o referido autor e seus colaboradores qualquer
trabalho com a produção textual só faz sentido se, de fato, houver uma produção de
linguagem efetiva, ou seja, é preciso que ao final desse procedimento didático as
produções dos estudantes sejam lidas, na escola ou fora dela, efetivando uma ação
de linguagem. Em nosso trabalho, procuramos realizar isso, já que no final da SD
os alunos tiveram suas resenhas expostas no mural da escola e publicadas no blog
da Faculdade de Estudos da Linguagem (FAEL-UFPA).

A produção da resenha no ensino médio: relato de uma experiência

Nesse tópico, analisaremos as versões inicial e final da resenha produzida


por um dos alunos (nomeado de B-1) envolvido na pesquisa. Na análise textual,
buscaremos descrever o que é posto no contexto de produção (capacidades de
ação), na planificação textual (capacidades discursivas) e nos mecanismos de
textualização e enunciativos (capacidades linguístico-discursivas). Para facilitar o
entendimento das análises, mostraremos em um quadro a resenha produzida pelo
estudante e a correção que fizemos com base na lista de constatações.
1ª produção do aluno B-1 (16 anos) Lista de constatações

A Sociedade dos Poetas Mortos de: Peter  Selecionou, em parte, as informações


Weir principais, possibilitando ao leitor fazer uma
avaliação da compreensão global do filme.
Quando o carismático professor de inglês Passa a imagem de quem compreendeu o
John Keating chega para lecionar num rígido filme;
colégio para rapazes, seus métodos de ensino  Faz algumas apreciações sobre o filme por
pouco convencionais transformam a rotina do meio de adjetivos, substantivos: um dos
currículo tradicional e arcaico. Com humor e mais comoventes; Dramático, poético
sabedoria, Keating inspira seus alunos a sensível;
seguirem os próprios sonhos e a viverem vidas  Seu texto pode ser considerado uma
extraordinárias. Sociedade Dos Poetas resenha;
Mortos, um dos mais comoventes campeões  Está adequado aos leitores e ao veículo de
de bilheterias dos últimos anos, emocionou o publicação;

781
público e a crítica com seus desempenhos  Sua resenha apresenta organizadores
brilhantes, sua história arrebatadora e sua lógicos que guiam o leitor na organização do
grande produção. discurso: Quando; e; com; mas; se; até;
Dramático, poético e sensível do início ao  Procurou ser polido em suas críticas,
fim, o filme “Sociedade Dos Poetas Mortos” foi evitando agressões ao diretor do filme:
nomeado como um dos melhores filmes poderia ter ficado ótimo se o diretor...;
realizados na década de noventa. Narra um  Sua subjetividade é expressa com a
drama que se desenrola em meados de 1959, utilização de expressões em 1ª pessoa:
num internato masculino chamado Academia para mim; seu fosse dar uma nota. O uso da
de Welton. O início da história é marcado por primeira pessoa do singular pode causar um
uma solenidade, na qual podemos assistir a efeito de opinião particular e não uma
entrada dos alunos, impecavelmente vestidos característica do filme. Isso pode não
de forma clássica e austera. Esses entram garantir maior veracidade ao discurso;
empunhando estandartes com brasão da  Você evitou a repetição desnecessária de
instituição e as palavras que compõem os algumas palavras, mas poderia ter
princípios da escola: tradição, honra, disciplina substituído (ótimo) na linha 26 por (melhor)
e excelência. e no penúltimo parágrafo há uso excessivo
O filme foi bom, poderia dizer otimo, mas da palavra filme;
poderia ter ficado otimo se o diretor do filme  Há verbos traduzindo o que o diretor do filme
Peter Weir muda-se alguns roteiros do filme, produziu na obra (emocionou o público; foi
como na parte de que o aluno Neil Perry não nomeado; O início da história é marcado);
estive-se morrido, mais para mim o filme foi  Há frase truncada com uso indevido de (de)
bom como já havia dito, e se eu fosse dar uma ao invés de (em) na linha 31. Falta acentuar
nota para o filme seria 9,5. a palavra (otimo) nas linhas 25 e 26. Usa
No começo não gostei muito do filme, mas indevidamente a flexão verbal no pretérito
a cada capítulo que passava eu achava o filme imperfeito do subjuntivo (muda-se; estive-
cada vez mais interessante, e um filme que se). Existe erro de ortografia em (mais –
ajuda até agente um pouco. linha 29), deveria ser (mas). O último
período fica incompleto, pois não se sabe
em que o filme ajuda seus telespectadores.

Produção final Lista de constatações

A sociedade dos Poetas Mortos de: Peter  Você selecionou algumas informações
Weir principais, de forma que o leitor possa
avaliar sua compreensão global do filme.
Sociedade dos Poetas Mortos. Produção de Conseguiu passar a imagem de alguém que
Peter Weir. EUA: Abril Video, 1989. Filme (128 compreendeu adequadamente a obra.
min).  Você apresenta algumas apreciações sobre
O filme Sociedade dos Poetas Mortos se o filme por meio de adjetivos, substantivos,
passa em uma escola/internato masculino mas não explora isso com mais veemência.
chamado Welton. Esse internato tem um  Seu texto pode ser considerado uma
modelo marcado por tempo determinado para resenha. Há indicações do filme, do diretor,
cada função e espaço racionalizado, tendo temática e contextualização.
como finalidade a educação tradicional,  Está adequado aos leitores e ao veículo de
baseada nos princípios da Tradição, Honra, publicação.
Disciplina e Excelência.  Sua resenha apresenta organizadores
São esses princípios que levam os pais a lógicos (por, para, como, e, que, até, Devido
escolherem o internato como uma condição de a, assim, etc.) que guiam o leitor
que seus filhos ingressem nas melhores organizando o discurso e estabelecendo
universidades. O estilo pedagógico adotado é relações (sintático-semânticas) entre frases
de saber especifico: o cientifico. Os cursos e entre parágrafos.
mais valorizados são Medicina, Direito e

782
Engenharia: já a Literatura e a Arte Dramática  Você procurou ser polido em suas críticas,
não são de tanta importância. Isso fica bem evitando agressões ao diretor do filme e,
visível numa cena em que o aluno Neil não com isso, assegurar neutralidade emocional
consegue convencer o pai, que exige que ele ao texto.
deixe suas atividades como redator do anuário  Você conseguiu expressar sua
escolar, e até quando o pai aborda-o depois de subjetividade sem utilizar expressões em 1ª
descobrir que esta participando de uma peça pessoa (eu acho, eu acredito),
teatral. demonstrando não uma opinião particular,
O que a gente nota muito também é que a mas uma característica do filme.
imagem feminina é prevalecida pela razão  Você evitou a repetição desnecessária de
masculina. Prova disso é quando o pai de Neil algumas palavras utilizando para isso
fala sobre a decepção e tristeza que ele irá recursos coesivos distintos (esse internato,
causa à sua mãe se insistir nas ideias de esse princípios, Isso, etc.).
abandonar o ingresso na Medicina pra cursar  Há verbos traduzindo o que o diretor do filme
Arte Dramática. O que fica marcado é que o produziu na obra. Tais verbos mostram a
sexo feminino possui um poder menor que o estrutura e organização do filme (se passa,
oposto. Devido a essa opressão por parte do tem um modelo, levam os pais, Neil não
pai, e a omissão materna, Neil comete suicídio consegue convencer o pai, etc.).
por se sentir impossibilitado de realizar seus  Há problemas de acentuação nas linhas (14,
sonhos. Indo de frente assim com as idéias do 21) e do uso do verbo no infinitivo na linha
professor Keating. Esses atos fazem com que (26).
o professor Keating se torne um novo modelo
de educação, não seguindo assim o currículo
padronizado e ensinando os alunos a
pensarem por si mesmos.
É por isso que Sociedade dos Poetas
Mortos é considerado um filme brilhante, já
que nos faz perceber o quanto o papel do
professor perante os alunos é importante, pois
como educador este deve estimular a
formação dos cidadãos, em mais que isso: que
sejamos críticos, criativos e pensadores.

Nesta produção, logo após o título, diferentemente do que foi posto na


primeira versão, há uma apresentação da obra, como se fosse uma ficha técnica,
sendo informado o nome, diretor, ano de produção e duração do filme (Sociedade
dos poetas mortos. Produção de Peter Weir. EUA: Abril Vídeo, 1989. Filme (128
min).). Essas informações, embora venham abaixo do título da resenha, parece não
se configurarem como o primeiro parágrafo do texto. Assim, no parágrafo inicial o
agente-produtor faz um breve resumo do filme, expondo dados importantes com a
pretensão de ambientar o leitor sobre a história. Isso pode ser notado quando se
menciona sobre o sistema de ensino do internato (internato masculino/ tendo como
finalidade a educação tradicional, etc.).
No parágrafo seguinte, o resenhista continua a descrever o local onde se
passa o drama, frisando no modelo de ensino daquela escola tradicional. Para isso,

783
o autor cita partes do filme, tentando representar o sistema pedagógico da academia
Welton (São esses princípios que levam os pais a escolherem o internato/Os cursos
mais valorizados são Medicina, Direito e Engenharia/ já a Literatura e a Arte
dramática não são de tanta importância).
No terceiro parágrafo, há uma avaliação do agente-produtor, afirmando que
na obra a figura feminina é sucumbida pela masculina e para sustentar sua posição,
descreve partes do filme como em (quando o pai de Neil fala sobre a decepção e
tristeza que irá causar a sua mãe se insistir nas ideias...). Em seguida emite mais
uma avalição sobre isso ao mencionar (O que fica marcado é que o sexo feminino
possui um poder menor que o oposto). Ainda nesse parágrafo relata que devido à
opressão dos pais o garoto acaba cometendo suicídio. No final dessa parte é feita
uma referência ao professor Keating e seu método de ensino que vai de encontro
às formas tradicionais de educação.
No último parágrafo, o autor faz uma avaliação do filme, ao asseverar que
este é considerado uma obra brilhante e que mostra a importância da figura do
professor na vida dos alunos. Isso corrobora o que afirma Machado (2003), ao dizer
que na resenha as avaliações costumam ser feitas por meio de adjetivos e verbos,
fato que ocorre em nosso texto de análise (filme brilhante/ nos faz perceber o
quanto). No final há mais uma avaliação sobre o longa, estratégia utilizada para
persuadir os leitores e convencê-los a assistir ao filme (mais que isso: que sejamos
críticos, criativos e pensadores).
Como se observa na resenha, diferentemente do que aconteceu no primeiro
texto, não há unidades linguísticas remetendo ao momento de produção e ao
agente-produtor/destinatário. No entanto, há o uso de a gente, no sentido de nós
inclusivo, que representa os telespectadores da obra em geral e não o produtor da
resenha e um leitor/telespectador particular.
Assim como na primeira produção, a segunda é composta por sequências
que apresentam as partes do filme julgadas pelo produtor como adequadas para
levar o leitor a se interessar pelo longa. Por isso, o primeiro parágrafo é construído
por meio de sequências descritivas que apresentam algumas características da
obra. Para isso são usados verbos no tempo presente, pois uma das qualidades

784
dessa tipologia textual é ser construída de forma concreta e estática, sem
progressão temporal. Isso se nota em (O filme se passa/ Esse internato tem um
modelo).
O início do segundo parágrafo também é marcado por uma sequência
descritiva, usada para dar detalhes sobre a academia Welton e guiar o leitor pelas
partes do texto, dando a este um panorama do filme. Isso acontece em (São esses
princípios que levam os pais a escolherem o internato/ O estilo pedagógico adotado
é de saber específico: científico). Há também uma sequência descritiva usada para
retratar o fato de o internato não dar valor à Literatura e à Arte Dramática. Para isso
o resenhista menciona algumas cenas do filme (Isso fica bem visível numa cena em
que o aluno Neil...). Nesse parágrafo, as sequências descritivas são construídas
com a predominância de verbos de estado e no presente, sem marcar uma
progressão temporal (São, que levam, fica, consegue, exige, aborda-o).
No terceiro parágrafo encontramos sequências argumentativas seguidas de
descritivas, já que estas são usadas como prova do que é asseverado pelo autor a
respeito da obra. Isso é posto em trechos como (O que a gente nota também é que
a figura feminina é prevalecida pela razão masculina. Prova disso é quando o pai
de Neil fala sobre...). Nesse excerto, tanto no primeiro como segundo período,
percebe-se o uso de verbos de estado e no tempo presente, característica essa
dessas tipologias textuais. Além disso, observa-se que a sequência descritiva
apresenta o marcador narrativo-descritivo (quando).
Há nesse parágrafo ainda outra sequência argumentativa (O que fica
marcado é que o sexo feminino possui um poder menor que o oposto) que serve
como uma avaliação do autor da resenha. Nesse parágrafo também há duas
sequências explicativas, uma que mostra o porquê do personagem Neil ter se
suicidado (Neil comete suicídio por se sentir impossibilitado de realizar seus sonhos)
e outra que explana o fato de o professor Keating ser considerado um novo modelo
de educação (Esses fatos fazem com que o professor Keating se torne um novo
modelo de educação, não seguindo assim o currículo padronizado...).
No último parágrafo há uma avaliação introduzida por meio de uma sequência
argumentativa, cujo objetivo é fazer o leitor convencer-se de que o filme realmente

785
é interessante e vale a pena assisti-lo (É por isso que Sociedade dos poetas mortos
é considerado um filme brilhante, já que nos faz perceber o quanto... ).
Com relação às capacidades linguístico-discursivas, pode-se identificar no
texto que o processo de referenciação no primeiro parágrafo é estabelecido por meio
de anáfora nominal e elipse (Esse internato/ tendo como), recuperando o objeto de
discurso uma escola/internato. No segundo parágrafo existem as anáforas nominais
(esses princípios) remetendo aos termos Tradição, Honra, Disciplina e Excelência,
(seus filhos) recuperando pais. Há também anáforas pronominais como (Isso),
fazendo referência à prioridade que se dá na escola a disciplinas voltadas para o
Direito, à Medicina e à Engenharia, (que) como pronome relativo, fazendo remissão
a pai, (ele) e (aborda-o) recuperando Neil. Há ainda anáforas nominais que se ligam
ao objeto-de-discurso o internato como (Os cursos mais valorizados/ O estilo
pedagógico) e uma repetição do mesmo termo em (o pai).
No terceiro parágrafo o processo de referenciação se dá por meio de
anáforas pronominais e nominais como: (disso/ ele/ seus sonhos/ essa opressão/
esses atos/ sua mãe/ Neil/ o professor Keating). No último parágrafo a referenciação
é feita pelo uso das anáforas nominais (Sociedade dos poetas mortos/ um filme
brilhante), do pronome dêitico intratextual (este), do pronome (isso) e da elipse (que
sejamos).
No que diz respeito ao processo de conexão, observa-se que as séries
isotópicas são ligadas por meio de nexos lógicos, estabelecendo a coesão e
coerência do texto. Isso se nota no primeiro parágrafo em (determinado para cada
função e espaço tradicional, tendo como finalidade). No segundo parágrafo
encontramos o nexo (de que) com função de finalidade em (uma condição de que
seus filhos ingressem nas melhores universidades). Há a inserção do (que) como
conjunção integrante em (que exige que ele deixe suas atividades). O operador
argumentativo (até) é posto na função de escala argumentativa, ou seja, como
elemento que marca um argumento mais forte (e até quando o pai aborda-o depois
de descobrir...). Nesse excerto há também a presença dos marcadores descritivo-
narrativos quando e depois de que guiam o leitor nas partes que descrevem a obra.

786
No penúltimo parágrafo encontra-se o que como conjunção integrante (O que
a gente nota também é que a imagem feminina é prevalecida), o quando na função
de marcador temporal (Prova disso é quando o pai), o se com função de
condicionalidade (sobre a decepção que ele irá causar a sua mãe se insistir nas
ideias...). Nesse terceiro parágrafo também o operador devido aparece com função
de causa e consequência em (Devido a essa opressão por parte do pai, e a omissão
materna, Neil comete suicídio por se sentir impossibilitado...). O assim é usado para
conclusão de ideias em (Indo de frente assim com as ideias do professor/ não
seguindo assim o currículo padronizado e ensinando os alunos...). Neste exemplo,
o e serve como nexo que liga argumentos para uma mesma conclusão.
No último parágrafo o elemento por isso é usado para introduzir uma
conclusão relacionada a argumentos apresentados anteriormente (É por isso que
Sociedade dos poetas mortos é considerado...), em seguida a inserção de já que
com função de explicação relativa ao argumento anterior (é considerado um filme
brilhante, já que nos faz perceber...). Na parte final da resenha o pois e o que
também são utilizados com a função de conclusão em (pois como educador este
deve estimular/ em mais que isso: que sejamos críticos, criativos e pensadores.).
No que diz respeito aos mecanismos enunciativos, pôde-se depreender no
texto que existem modalizações que servem como mecanismos avaliativos da obra
resenhada. Isso pode ser notado no terceiro parágrafo quando o resenhista, por
meio de a gente (nós inclusivo: telespectadores do filme em geral), afirma que na
história a imagem masculina se sobrepõe à feminina (O que a gente nota muito
também é que a imagem feminina é prevalecida pela razão masculina). Nesse caso
temos uma modalização lógica, já que um elemento do conteúdo temático é avaliado
com base no mundo objetivo, sendo essa apreciação da obra considerada como
algo certo ou atestado. Pode-se considerar também nessa parte da resenha que o
trecho (Esses atos fazem com que o professor Keating se torne um novo modelo de
educação, não seguindo assim o currículo padronizado) é uma modalização
pragmática, pois contribui para a explicitação de um aspecto da responsabilidade
de um personagem do filme em relação às ações que ele mesmo é agente.

787
No último parágrafo há uma modalização lógica usada para emitir um juízo
de valor sobre o filme, ancorando-se no mundo objetivo e apresentando o elemento
avaliado como certo. Isso é identificado em (É por isso que Sociedade dos poetas
mortos é considerado um filme brilhante, já que nos faz perceber o quanto o papel
do professor perante os alunos é importante). Além disso, existe uma modalização
deôntica que avalia um elemento do conteúdo temático com base em valores
constitutivos do mundo social (pois como educador este deve estimular a formação
dos cidadãos). Nesse excerto tem-se um juízo de valor que afirma que o professor
tem a obrigação social de estimular seus alunos a se tornarem verdadeiros
cidadãos.
Com relação às vozes enunciativas, identifica-se, no terceiro parágrafo, a voz
do próprio autor diluída por meio do nós inclusivo, causando um efeito de sentido
no qual a voz assumida em 1ª pessoa do plural atenua a subjetividade, pois quem
fala não é o locutor empírico, mas os telespectadores do drama de forma geral (O
que a gente nota muito também é que). Há também nessa parte da resenha a voz
do personagem Neil emitida por meio de um verbo dicendi (Neil fala sobre a
decepção e tristeza que ele). No último parágrafo encontramos dois casos em que
a voz do resenhista, por meio de expressões em 1ª pessoa do plural, atenua a
subjetividade de quem é autor empírico do texto (já que nos faz perceber/ que
sejamos criativos).

Considerações finais

No presente artigo procuramos demonstrar que o trabalho com o gênero por


meio de atividades modulares, como a sequência didática, é capaz de proporcionar
aos estudantes um conhecimento maior em relação às capacidades de linguagem
operadas na produção de textos. Como visto, por meio das quatro fases da SD,
pudemos trabalhar com os alunos as três capacidades de linguagem, conforme
Bronckart (2007), envolvidas na elaboração do gênero resenha.
Além disso, com nossa proposta de produção textual os estudantes, de fato,
escreveram textos para leitores reais dentro de uma situação discursiva, pois ao
final da SD todas as resenhas foram expostas e lidas no mural da escola, além de

788
terem sido publicadas no blog da FAEL. Com isso, procuramos seguir as
orientações dos PCN, já que nestes se apregoa que o texto se torne um mecanismo
enunciativo/dialógico no contexto escolar ou em outras instâncias.
Na análise das resenhas, pôde-se verificar a importância da avaliação
formativa no processo de produção textual, pois em muitos casos nessa atividade o
professor se prende apenas aos problemas microestruturais, ou seja, somente se
propõe a corrigir as questões de natureza gramatical sem que isso represente algo
significativo no processo de reescrita. Assim, ao propormos uma correção com base
na lista de constatações, criamos uma forma de interagir com o aluno a respeito de
seu texto. Por isso, em nossa intervenção levamos em consideração não somente
as questões gramaticais, mas também outras de ordem macroestruturais. Além
disso, é necessário que o estudante sinta-se um autor que escreve para um leitor
real e que veja o professor como um parceiro em todas as etapas que envolvam a
produção de um texto.

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Mercado de Letras, 2010.

789
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RUIZ, E. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010.

790
BUZZMARKETING

Perrotti Pietrangelo Pasquale 271

Introdução

Para conseguir ser eficaz num mundo concorrencial como atualmente o


conhecemos é necessário buscar meios, táticas e estratégias diferenciadas e
comunicação que consiga ser percebida e que permita transmitir sua mensagem
num meio cada vez mais poluído visual e auditivamente.
Quanto mais o mercado se apresenta saturado maior é o número de novas
formas de apresentar os produtos e serviços de maneira a serem diferenciados
daqueles dos concorrentes.
Muitas estratégias de marketing foram criadas com a finalidade de fazer com
que o consumidor distinga um produto ou serviço determinado entre a infinidade de
produtos e/ou serviços ofertados ao mercado. É isso levou ao desenvolvimento de
diferentes modalidades de marketings como o marketing de guerrilha, o marketing
de influência, o street marketing e mais recentemente o marketing viral.
O marketing viral é uma estratégia de marketing que leva um grande número
de indivíduos a comentar a propaganda de determinado produto ou serviço, pela
sua curiosidade ou diferença, com um grande número de pessoas que podem ser
potenciais clientes do produto ou serviço. Recebeu esta denominação pela
capacidade que tem de em um pequeno intervalo de tempo ser repassado a outras
pessoas, ou seja, de contaminar como os vírus das doenças.
Um novo marketing surgiu há não muito tempo e recebeu a denominação
de buzzmarketing, ele tem como base a comunicação realizada pessoa-a-pessoa,
mas é mais do que o marketing boca-a-boca.

271Administrador de Empresas, Psicanalista, Doutor em Administração pela FEA-USP, Mestre em


Administração pela Columbia University, Pós-graduado em Finanças pela UNIVILLE, Sócio-consultor da
MIND Consultoria Empresarial. Professor e Coordenador de Atividades Complementares do Centro de
Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor de diversos livros, entre eles
Comunicação Integrada de Marketing, Marketing Business to Business Administração de Vendas e o
Dicionário de Termos de Marketing.

791
Diferentes tipos de marketing

De acordo com Chetochine (2006, 4), “nos recebemos 1800 mensagens


publicitárias diariamente, e apenas 15 delas chamam nossa atenção”. O mesmo
autor afirma que o comportamento do tele-espectador tem mudado de tal forma que
atualmente mais de 25% muda de canal no momento dos comerciais.
Godin (2000), chama a atenção para o fato de que a utilização do marketing
de intervenção, ou seja, aquele que bombardeia o cliente procurando desviar a
atenção dele para a mensagem de forma a convencê-lo a adquirir o produto ou
serviço que está sendo oferecido, está com os dias contados, e, portanto as
empresas fornecedoras deverão buscar novas formas de comunicação.
É o próprio Godin (2000), quem afirma que para ter sucesso as empresas
devem passar a utilizar o marketing de permissão, ou seja, aquele que considera o
que o potencial cliente quer saber.
Difícil é achar o caminho para sem agredir o consumidor por meio do
marketing de intervenção passar para o marketing de permissão, mantendo ou
ainda vendendo cada vez mais. A primeira ideia que vem é a de utilizar meios como
o telefone celular e o computador para enviar mensagens que sejam divertidas,
interessantes ou diferentes e que possam chamar atenção e até quanto possível
personalizadas. O receptor não deve sentir-se pressionado pela mensagem, mas
informado, de tal forma que imprevistas as mensagens não sejam ignoradas, mas
ao mesmo tempo não sejam consideradas invasivas.
Os adeptos do marketing viral consideram que o envio de mensagem ou
videoclipe que seja interessante, intrigante e que desperte o riso, a um público alvo
bem definido, levará esse público a repassá-lo para amigos, parentes e conhecidos
que por sua vez poderão encaminhá-lo a outros conhecidos, ampliando a cadeia de
divulgação.
Para Rosen (2001), a melhor maneira de vender produtos ou serviços por
meio do marketing de permissão é os consumidores comentarem entre si, isto é

792
fazer com que os próprios consumidores se transformem em veículos de
comunicação.
Ainda segundo o mesmo autor o buzzmarketing é um marketing de permissão
em que os clientes passam as informações de um para outro, fazendo um zumbido
(buzz), como fazem as abelhas, quando se deslocam de flor em flor. Para que isso
aconteça é preciso que haja alguma coisa importante ou curiosa a comentar em
relação a um produto ou serviço. Essa ação encontra mais facilidade nos dias atuais,
pois pode se utilizar de meios como a internet, o telefone celular e as redes sociais.

Buzzmarketing

A palavra buzzmarketing, encontra respaldo no fato de buzz poder ser


traduzido por “burburinho” ou “buchicho”, isto é o que as pessoas fazem ao comentar
com as outras sobre um acontecimento ou evento que lhes tenha interessado.
O buzzmarketing é o marketing que dissemina o produto ou serviço por meio
da divulgação realizada pelas cadeias de consumidores, devido à utilização de
conteúdos bem humorados, diferentes, que se utilizam da emotividade ou
inusitados, gerando condições para um crescimento da demanda de forma
exponencial.
Um problema do marketing viral é que após alguns contatos, por mais
interessante que seja o fato, o produto ou o serviço, sua comunicação diminui e
acaba sendo descontinuada. Para eliminar esse problema é preciso que o
buzzmarketing conte com clientes evangelistas. Sabe-se que muitos clientes
gostam de comentar sobre o produto ou serviço adquirido por eles, mostrando suas
vantagens.
Desenvolver evangelistas é, portanto buscar esses clientes que gostam de
ser os primeiros a adquirirem os produtos ou serviços e a comentarem com seus
amigos ou parentes sobre as vantagens de suas compras. Dessa forma entende-se
que o buzzmarketing não é o boca-a-boca, pois esse procedimento repassa as
informações a um número limitado de potenciais clientes, mas faz uso desse

793
processo, pois sem o boca-a-boca não há buzzmarketing, mas dessa vez com base
em evangelistas.
A palavra evangelista, de acordo com (MCCONNEL e HUBA, 2006, p. 3), tem
como base “naquele que traz as boas novas”.

Os componentes do buzzmarketing evangelista


Para que os evangelistas divulguem, uma ideia, um produto ou serviço é
necessário que exista uma causa, ou seja, alguma coisa que ele passa a conhecer
e tenha interesse em divulgar. Para que isso ocorra é necessário que ele seja o
primeiro a descobrir e que possa passar adiante a novidade.

A ideia-vírus
Para Godin (2000), a ideia-vírus consiste em uma ideia intrigante, irresistível,
que chama muito a atenção e, que conduz ao desejo de ser compartilhada com
conhecidos, amigos, parentes e até pessoas em um primeiro encontro que estejam,
por exemplo, em um lugar de compras e que as pessoas começam a conversar
sobre as qualidades ou vantagens de determinados produtos ou serviços.
A ideia-virus por surpreender é logo passada para uma ou várias pessoas,
criando um “buchicho” que leva ao contagio de outras pessoas, porém essa ideia
deve ser fácil de entender e retransmitir, suave, pois não deve haver agressividade
e deve ser passada muito rapidamente para não haver perda do interesse do
receptor, além disso, deve ser contagiosa, deve ser tão interessante e divertida que
o receptor se sinta motivado a repassá-la para outras pessoas.

Fatores de fixação
Consistem em palavras e imagens que provocam influência, que defendem
ou ressaltam a qualidade do produto ou serviço e são o gancho e o contágio.
O Gancho
É a palavra, termo ou situação que permite ao evangelista iniciar a conversa
sobre o produto ou serviço que ele quer comentar. O gancho deve ser constituído

794
por uma qualidade ou aspecto que tem a capacidade de surpreender levando as
pessoas a querer saber mais sobre o produto, serviço ou ideia.
O Contágio
Como numa doença a transmissão do vírus para ser feita precisa contar com
uma série de fatores, dentre os quais se destacam: o vetor; o meio; o contexto; o
alvo; o modelo de desenvolvimento do contágio.
O Vetor
O significado biológico de vetor é “ser vivo que pode transmitir parasitas,
bactérias ou vírus a outro ser vivo”.
Em marketing considera-se vetor a pessoa ou grupo de pessoas que
divulgam uma mensagem tornando conhecido por outro grupo de pessoas o
benefício, a qualidade e/ou as vantagens de determinado produto ou serviço.
O meio
Considera-se o meio de acordo com o Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa “o ambiente onde se vive”.
Chetochine (2006, 28), considera que em “buzzmarketing e evangelização,
fala-se em comunidade como sendo o lugar onde se pode produzir evangelização”.
Atualmente são consideradas quatro tipos de comunidades, quais sejam: a)
comunidades de objeto - são consideradas aquelas em que o vetor realiza suas
atividades com frequência; b) comunidades formais - consideram-se neste caso as
associações, as organizações e outros locais onde os participantes trocam ideias e
opiniões e onde são discutidos diversos assuntos em reuniões comemorativas,
almoços ou outras atividades festivas; c) comunidades de circunstâncias -
consistem em locais em que as pessoas se encontram circunstancialmente, como
nos supermercados, escolas, cultos, estações de trens ou metro, onde discutem
diversos assuntos; d) comunidades on-line - comunidades mais recentes compostas
por pessoas que pertencem a associações ou utilizam-se da web para trocar ideias
e obter informações.

795
O contexto
De acordo com o Aurélio, Dicionário da Língua Portuguesa, contexto é um
“conjunto de circunstâncias que acompanham um acontecimento: julgar um fato em
seu contexto histórico”.
São considerados quatro contextos: a) contextos naturais ou de calendário -
estão ligados a eventos determinados, como por exemplo, dia dos namorados, dia
das mães, dia das crianças, entre outros; b) contextos institucionais - estes estão
relacionados a eventos muito importantes como a copa do mundo de futebol, a
formula 1 do automobilismo; c) contextos de atualidade - contam-se entre os
contextos mais marcantes e cobertos pela mídia, entre eles as catástrofes naturais,
como ciclones, tsunamis, inundações, entre outras; d) contextos artificiais - são
situações criadas artificialmente pelas empresas interessadas no buzzmarketing,
gerando condições para os evangelistas realizarem seu trabalho de divulgação.

O alvo
O alvo a ser atingido pelo buzzmarketing é fazer com que os evangelistas,
isto é consumidores de um determinado produto, serviço ou defensores de uma
ideia possam repassá-la com sucesso a outras pessoas interessadas em adquirir
um produto ou serviço do mesmo tipo que o evangelista consome ou uma ideia
defendida pelo evangelista.
No caso do Buzzmarketing os evangelistas ou vetores são os consumidores
de determinado produto, serviço ou ideia e podem ser classificados quando
considerados em função do seu comportamento de compra em: a) inovadores -
consumidores que gostam de ser os primeiros a desfrutarem de um novo produto
ou serviço; b) adotantes imediatos – são considerados importantes para a
influência de outras pessoas, pois são respeitados e suas sugestões
consideradas; c) maioria imediata – é constituída por consumidores cuidadosos,
que só adquirem o produto ou serviço após ser comprovado pelos adotantes
imediatos; d) maioria tardia – é composta por consumidores cautelosos e que não
gostam de correr riscos. São conservadores e tem dificuldade em mudar seus
hábitos; e) retardatários – são consumidores conservadores que não gostam de

796
inovações e só vão adquirir o produto ou serviço quando a maioria já está fazendo
uso dele.

Criando clientes evangelistas


No marketing de intervenção que é quando a propaganda tradicional é
utilizada, todo o processo consiste em mostrar as vantagens do produto ou serviço
e levar o potencial cliente a crer que terá vantagens somente se adquirir aquela
marca de produto ou de serviço.
No caso do Marketing de Permissão, necessita-se da permissão do potencial
consumidor para apresentar os produtos e serviços, deve-se ter claro o que ele
deseja saber e o momento em que se apresenta essa necessidade.
No buzzmarketing, que é uma forma de marketing de permissão, o elemento
fundamental é o evangelista que vai dar credibilidade a mensagem e que pode
tornar o produto ou serviço desejado ou evitado.

Características do evangelista
Evangelista é aquela pessoa que está sempre comentando sobre aquele
filme, produto, serviço ou até político e consegue convencer o interlocutor das
vantagens de ser um consumidor como ele. Como não ganha nada em convencer
o interlocutor nem está vendendo qualquer coisa, mas apenas apresenta
recomendações sinceras ele é considerado extremamente confiável.
Um evangelista pode ser reconhecido com facilidade, pois a maioria
apresenta comumente as seguintes características: a) acreditam nos produtos ou
serviços que compram; b) recomendam os produtos ou serviços que adquiriram
para colegas, amigos ou parentes; c) elogiam as qualidades dos produtos ou
serviços livremente, não aceitam imposições do fornecedor, pois eles creem no que
afirmam; d) reclamam diretamente com o fornecedor quando percebem que a
qualidade do produto mudou ou está deixando a desejar, mas não deixam de
adquirir o produto ou serviço; e) são altruístas, divulgam pelo prazer de divulgar,
pois creem no que divulgam; f) são emotivos, todo o seu ser transmite o que querem

797
dizer de tal forma que o ouvinte se sente participante na história contada e com isso
encantam os ouvintes.

O modelo de desenvolvimento do contágio

Várias são as vantagens de contar com o buzzmarketing para divulgação de


produtos ou serviços, destacando-se entre elas: a) custa menos que a propaganda
convencional, pois não há necessidade de pagar aos evangelistas, eles atuam por
ter uma crença e vontade de repassa-la a outras pessoas; b) é mais eficaz que a
propaganda convencional, pois é mais crível, já que os evangelistas não têm
interesses na marca que estão divulgando, pois não representam a empresa, nem
os produtos ou serviços; c) é uma transmissão interessante e divertida, pois os
envolvidos creem no que dizem e eles são consumidores do que estão divulgando;
d) é difícil de ser combatida pela concorrência, pois é realizada por consumidores
para consumidores.
Os clientes tornam-se evangelistas de organizações que atuam segundo
princípios dos quais se destacam: a) receber e dar feed-back aos clientes sobre
qualquer assunto que os mesmos queiram tratar; b) partilhar o conhecimento
livremente sem dificultar ou criar empecilhos; c) desenvolver formas de criar o
buchicho; d) encorajar o desenvolvimento de comunidades; e) estabelecer ofertas
especiais e menores preços para interessar os potenciais clientes; f) determinar uma
causa que possa caracterizar o interesse da organização em ajudar a criar melhores
condições para o mundo ou o setor empresarial de interesse.
Os evangelistas são considerados os melhores vendedores, pois conhecem
o seu público alvo, o que lhe permite encontrar pessoas com as mesmas
necessidades ou desejos que os deles com maior facilidade e rapidez.
Os evangelistas têm conhecimentos diferenciados, pois sabem onde seus
potenciais clientes moram e trabalham e, também conseguem apresentar uma
proposta de valor na linguagem adequada ao potencial cliente por todos os
conhecimentos anteriormente apresentados. Além disso, de acordo com McConnel
e Huba (2006) o “evangelismo é baseado na lealdade às pessoas e não as coisas”.

798
A empresa que quer se utilizar desse tipo de marketing deve: a) descobrir
quem são os formadores de opinião e atuar por meio deles; b) apresentar sempre,
qualquer produto ou serviço novo ou modificações introduzidas nos produtos ou
serviços existentes, primeiramente a esses evangelistas; c) realizar reuniões onde
os evangelistas podem se reunir e trazer outras pessoas de forma a ampliar o grupo
de evangelistas e de pessoas interessadas na empresa, produtos e serviços; d)
presentear utilizadores de seus produtos formadores de opinião para mantê-los
sempre do lado da empresa; e) levar em conta que as pessoas compram mais
quando estão se divertindo; f) envolver-se com causas que apresentam os valores
da organização; g) premiar os funcionários pelo bom atendimento dos clientes e não
pela quantidade vendida; h) prover para que as políticas da organização estejam
em sintonia com as prioridades da clientela.

Considerações finais

A grande diferença entre o marketing de intervenção e o buzzmarketing é que


o primeiro tem as vendas baseadas no principio de convencer o cliente a adquirir o
que é bom para o fornecedor, enquanto que o segundo encontra base no que é bom
para o cliente. No marketing de intervenção o fornecedor procura convencer o
potencial cliente de que ele deseja o produto ofertado, enquanto que no
buzzmarketing é ofertado o que o cliente tem interesse.
Para as organizações é muito mais importante manter os clientes do que
desenvolver novos, pois a aquisição de um novo cliente custa 5 (cinco) vezes mais
do que a manutenção do existente.
O evangelista vai apresentar um produto, serviço ou ideia a um potencial
cliente tendo como base o que ele está interessado.
Os motivos que condicionam o funcionamento do buzzmarketing são: a) o
divulgador do produto, serviço ou ideia é amigo, parente ou conhecido do potencial
cliente; b) a sugestão de produto, serviço ou ideia não é diretamente do fornecedor,
mas de uma pessoa independente e que não ganha por fazer isso; c) a mensagem
é crível e diretamente comunicada ao interessado; d) o valor do produto, serviço ou

799
ideia é personalizado para o potencial cliente; e) o evangelista explica para o
potencial cliente o valor do produto, serviço ou ideia da melhor forma para que seja
totalmente entendido pelo receptor, utilizando para isso a linguagem adequada a
aquela pessoa de forma inquestionável.
A transmissão de mensagem do evangelista elimina os ruídos da
propaganda, individualiza a mensagem e além do mais é favorecida pela
proximidade entre o emissor e o receptor, pois é sabido que amigos, conhecidos ou
familiares se influenciam mutuamente.
Outra situação vantajosa para o evangelista que o torna melhor vendedor e
que ele pode encontrar pessoas com as mesmas necessidades ou desejos que os
dele com maior facilidade e rapidez.
Os evangelistas têm conhecimentos diferenciados, pois sabem onde seus
potenciais clientes moram e trabalham e, também conseguem apresentar uma
proposta de valor na linguagem adequada ao potencial cliente por todos os
conhecimentos anteriormente apresentados. Além disso, de acordo com McConnel
e Huba (2006) o “evangelismo é baseado na lealdade às pessoas e não as coisas”.

Referências Bibliográficas

CHETOCHINE, Georges. Buzzmarketing: sua marca na boca do cliente. São Paulo:


Financial Times, Prentice Hall, 2006.
GODIN, Seth. Permission marketing. New York: Simon & Schuster, 1999.
GODIN, Seth. Unleashing the ideavirus. New York: Do You Zoom, Inc., 2000.
MCCONNEL, Ben; HUBA, Jackie. Buzzmarketing: criando clientes evangelistas.
São Paulo: MBooks: 2006.
ROSEN, Emanuel. The anatomy of buzz: how to create word-of-mouth marketing,
.New York: Doubleday, 2001.

800
ESPIRAL DO SILÊNCIO E EDUCAÇÃO BANCÁRIA: UMA ANÁLISE DAS
APROXIMAÇÃOES ENTRE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO

Rafael Fonseca Santos272


Silas Daniel dos Santos 273

Jornalismo e educação: consonâncias

O jornalismo, em sua essência, é a intermediação dos membros de uma


sociedade entre si. Em citação aos ‘Cânones do Jornalismo”, adotado pelo Comitê
de Ética da “American Society of Newspaper Editors”, Fortes (2005) salienta:
A função primária dos jornais é comunicar à raça humana o que seus membros
fazem, sentem e pensam. O jornalismo, portanto, exige de seus praticantes o
mais amplo alcance de inteligência, de conhecimento e de experiência, assim
como poderes naturais e treinados de observação e raciocínio. As suas
oportunidades como cronista estão indissoluvelmente ligadas a suas obrigações
como professor e intérprete. (FORTES, 2005, p.23-24).

Essa afirmação é altamente representativa, uma vez que suscita a


aproximação do fazer jornalístico com a educação. O jornalismo funciona como
instrumento educacional e o jornalista, como professor: é necessário, portanto, que
ele entenda seu papel social e aja com a mesma responsabilidade exigida de seu
par dentro de uma sala de aula.

Assim, é possível perceber que o jornalismo tem forte atuação na educação


da sociedade. Além de levar ao conhecimento público notícias e reportagens, o
jornalismo é determinante para a própria formação da opinião pública. Sem entrar
em maiores detalhes sobre a natureza da opinião pública (que não é o foco deste
trabalho), cabe ressaltar que as salas de aula são fundamentais para sua
compreensão e constituição. E aqui se encontra o primeiro grande ponto
convergente das duas áreas.

272
Doutorando e mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Jornalismo pela
mesma instituição, na qual também leciona nos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda.
273
Doutorando em Letras e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

801
Paulo Freire, talvez o maior educador brasileiro, defende a educação como
promoção do sujeito, como instrumento de mudança pessoal e social. Para ele, a
educação tem que promover a conscientização do educando, o que gera crítica
social (mudança na opinião pública) e, consequentemente, mudança social. O ato
de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo. (FREIRE, 2011, p.12).

Mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam


perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o
de “ler” a sua realidade, o que não será possível se não tomam a história nas
mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos. (FREIRE, 2011, p.20).

Colocar a educação como práxis de posicionamento frente ao mundo é dizer


que ela é constituinte da opinião pública, uma vez que a criticidade levantada em tal
posicionamento alicerça a construção social de opiniões sobre diferentes assuntos.
Em outras palavras, Freire fixa o conhecimento junto ao processo de
conscientização do indivíduo em sociedade. Estabelece a fonte do aprendizado fora
do ambiente de sala de aula, na vivência e história de cada educando.

Paulo Freire preocupa-se, por toda sua obra, em despertar uma possibilidade
de educação dialógica e libertadora. Dialógica porque a educação deve ser
construída a partir da troca de experiências entre o educador e o educando.
Libertadora porque, para ele, a sociedade brasileira vive em um sistema dicotômico,
dividido em opressores e oprimidos (daí sua obra mais conhecida intitular-se
“Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 1987)) e a educação em seu ver é elemento-
chave para transformação dessa estratificação.
O bom jornalismo é também elemento-chave para essa transformação. Com
o avanço das populações e das complexidades sociais, o jornalismo assume um
papel que a comunicação interpessoal direta já não era capaz de suprir. Assim, ele
abraça a função de amplificador coletivo da educação que se dá no âmbito
particular. Há definições que dão conta da notícia como aquilo que o público precisa
conhecer. Dessa maneira, pode-se traduzir o jornalista não apenas como emissor
de notícias, mas como próprio meio pelo qual a mensagem chega ao seu receptor.
Se essa mensagem é conscientizadora, intrigante e formadora da criticidade do

802
receptor, então o jornalismo cumpriu seu papel comunicacional de transformação
social. Torna-se possível, por intermédio dos veículos de comunicação de massa,
por exemplo, ter acesso no Brasil a avanços científicos que se dão no Japão, ou
aos mais novos conceitos filosófico-políticos levantados na Alemanha.
Por outro lado, ainda dentro desta perspectiva, o jornalismo pode funcionar
como instrumento de dominação. Pode ser uma ferramenta de manutenção do
poder e não de contestação. O opressor, quando domina o processo
comunicacional do jornalismo, usa-se deste poder para manter ou aumentar sua
opressão. O resultado, nesse cenário, é o da desinformação, em que o leitor
(receptor da mensagem) não apreende ou não recebe em sua totalidade a
informação almejada.
No melhor dos casos (escreve Schulz) ele é informado superficialmente sobre os
fatos, personagens e temas em destaque que dominam as discussões dos
assuntos atuais. Não está capacitado a elaborar um conhecimento acumulativo e
uma compreensão duradoura dos contextos políticos. (KUNCZIK, 2001, p.326).

O jornalismo exige, em sua natureza, leitores críticos. Essa é a razão do


jornalismo ter sido por anos um local de debate dos poderosos somente, já que por
séculos sociedades eram massificadamente analfabetas. Está aqui uma pista para
se compreender o porquê de tão poucas notícias e informações na grande mídia
sobre a periferia e sobre os oprimidos. O jornalismo se tornou um espaço das elites:
alimentado, comandado e direcionado por elas. A apropriação desse meio por parte
do oprimido é basilar para a transformação social. Sem essa apropriação, grande
parte da população cai na Espiral do Silêncio, assim definida por Noelle-Neumann
(1995):

La teoria de la espiral del silencio se apoya en el supuesto de que la sociedad - y


no sólo los grupos en que los miembros se conocen mutuamente - amenaza con
el aislamiento y la exclusión a los individuos que se desvían del consenso. Los
individuos, por su parte, tienen un miedo en gran medida subconsciente al
aislamiento, probablemente determinado genéticamente. Este miedo al
aislamiento hace que la gente intente comprobar constantemente qué opiniones
y modos de comportamiento son aprobados o desaprobados en su medio, y qué
opiniones y formas de comportamiento están ganando o perdiendo fuerza.
274
(NOELLE-NEUMANN, 1955, p.179-180).

274
“A teoria da espiral do silêncio se apoia na suposição de que a sociedade – e não apenas os grupos em que
os membros se conhecem mutuamente – corre o risco de isolamento e de exclusão dos indivíduos que se desviem

803
A teoria da Espiral do Silêncio baseia-se na observação de que quando um
determinado assunto é amplamente difundido nos meios de comunicação de massa,
ele uniformiza a opinião pública e faz com que opiniões contrárias percam força,
esvaindo-se até que caiam em uma espiral de silêncio. A razão principal desse
processo, segundo Noelle-Neumann, é o medo da rejeição que assume o controle
das mentes opositoras, forçando-as a se calarem.

Essa teoria permite analisar o lado negativo do papel educacional do


jornalismo. Assim como o jornalismo pode ser uma ferramenta libertária, se nas
mãos do povo, ele também pode assumir o ofício de arma repressora e
mantenedora do status quo, se nas mãos dos opressores.
Dentro de uma perspectiva semelhante, mas tomando por base o ambiente
de sala de aula, Freire (2011) fala em cultura do silêncio ao referir-se aos
asentamientos chilenos, onde a população local, sem educação, aceitava calada o
próprio destino opressivo. A alfabetização (e, portanto, a educação) surge como
propulsor de uma criticidade ensurdecedora, que quebra o silêncio em sua mais
profunda raiz.
Daí que se inclinem a formas de ação vertical, paternalista, em lugar de estimular
a tomada de decisão dos camponeses. Desta maneira, reativando a “cultura do
silêncio” e mantendo os camponeses no estado de dependência, não contribuem
em nada para superação de sua percepção fatalista em face das situações limite;
superação desta percepção fatalista por outra, crítica, capaz de divisar mais além
destas situações, o que chamamos de “inédito viável”. (FREIRE, 2011, p.48).

A dialogicidade, para Paulo Freire, no processo de ensino-aprendizagem se


torna fundamental para o processo de conscientização do educando. Para ele, a
relação entre professor e aluno deve ser horizontal, respeitando a bagagem
intelecto-cultural dos participantes no processo. Esse método dialógico é o que
permite o crescimento crítico e desafiador de novas atitudes frente ao mundo.

do consenso. Os indivíduos, por sua vez, têm um medo em grande medida subconsciente do isolamento,
provavelmente determinado geneticamente. Este medo do isolamento faz com que as pessoas tentem comprovar
constantemente quais opiniões e modos de comportamento são aprovados ou desaprovados em seu meio, e quais
opiniões e formas de comportamento estão ganhando ou perdendo força” (tradução minha).

804
Em contraposição a essa educação positiva, há a que Freire chamou de
educação bancária. Neste modelo, a escola é um mecanismo mantenedor do status
do sistema de mais-valia, em que o aluno é apenas recebe o que se “deposita” de
conhecimento nele, a fim de “retirar” (exigir) depois de um determinado tempo que
ele tenha aprendido todo o conteúdo. Sob esse panorama, educação bancária e
jornalismo dominado pela elite opressora caminham juntos.

Transformação possível
Pensar nos vértices da educação com o jornalismo é pensar nas relações
sociais de poder. Vê-se a urgência da discussão acerca dos caminhos que a
sociedade brasileira tomou para suas salas de aula, bem como dos que percorreu
nas redações. Levantar questionamentos sobre a práxis de ambas as áreas é crucial
para o desenvolvimento de um país mais justo. Dar voz ao povo (uma das definições
do próprio jornalismo) se mostrou um possível caminho para libertação dos
oprimidos. Entretanto, só é possível dar voz ao povo a partir de uma mudança
radical dos métodos escolares.
Interessante notar que, tanto para Paulo Freire quanto para Noelle-Neuman,
o silêncio é uma ferramenta de opressão e massificação da opinião pública. O
silêncio se torna, por isso, um ponto convergente de dominação nas duas áreas.
Permitir, capacitar e incentivar o grito dos oprimidos é tarefa impreterível.
Naturalmente, numa linha profética, a educação se instauraria como método de
ação transformadora. Como práxis política a serviço da permanente libertação
dos seres humanos, que não se dá, repitamos, nas suas consciências apenas,
mas na radical modificação das estruturas em cujo processo se transformam as
consciências. (FREIRE, 2011, p.204-205);
A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão mais verdadeira
quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres
humanos, a de sua expressividade. (FREIRE, 2011, p.33).

Portanto, o silêncio não é possível na educação, assim como no bom


jornalismo. A expressividade social é necessária para libertação dos oprimidos, para
o crescimento do fraco, para emancipação do pobre. Para uma sociedade mais
justa. Para uma sociedade justa. Inédito viável?

805
Referências Bibliográficas
FORTES, Leandro. Jornalismo investigativo. São Paulo :Contexto, 2005.
FREIRE, Paulo. Ação Cultura Para Liberdade e Outros Escritos. 14ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2011.
____________. Pedagogia do Oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo: Norte e Sul: Manual de Comunicação.
2ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. La espiral del silencio. Paidós, 1995.

806
ASTROBIOLOGIA E LITERATURA – A FICÇÃO CIENTÍFICA COMO UMA
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR NA DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA E NO
INCENTIVO À LEITURA

Rafael Kobata Kimura275

Astrobiologia e a Ficção Científica

A Astrobiologia é um ramo da Astronomia que estuda a vida dentro do


contexto cósmico. Três questões fundamentais norteiam essa ciência: “como a vida
se iniciou e evoluiu?”, “existe vida em outro lugar do universo?” e “qual é o futuro da
vida na Terra?” (Des Marais et al., 2008). Das três questões, a primeira e a última
obviamente nos dizem respeito, se referem ao nosso eterno e irrequieto
questionamento “de onde viemos e para onde vamos?”. A segunda questão, que
convenientemente poderia ser reescrita como “estamos sós no universo?”, ainda
nos diz respeito, não unicamente como uma curiosidade (que por certo é imensa),
mas também com relação à nossa identidade; estudar vidas em outros planetas não
significa lidar com uma realidade alheia ao lugar onde vivemos, como se tudo
pertencesse a uma realidade alternativa. Como a única forma de vida que
conhecemos é a que vivenciamos e presenciamos aqui na Terra, ela é a base
fundamental (e por enquanto a única do ponto de vista empírico) de todas as
reflexões acerca de uma vida alienígena. Dessa forma, conhecer a nós mesmos e
o lugar em que vivemos é o ponto de partida primário e essencial para qualquer
discussão que envolva formas de vida alienígenas.
O nome Astrobiologia naturalmente nos leva a pensar na junção da
Astronomia com a Biologia. De fato, estas duas ciências estão intimamente
relacionadas, mas é mais do que isso, ela envolve uma vasta gama de
conhecimentos das mais diversas áreas. Por exemplo, para que um planeta possa
conter vida, a qual se denomina habitável, imagina-se que sejam necessários uma
porção de água líquida, uma atmosfera e uma fonte de energia (e.g. Heller e
Armstrong, 2014). Com essas simples afirmações, uma infinidade de

275 Unip /EACH-USP

807
questionamentos pode ser levantada. Por que os seres vivos necessitam de água?
Como um planeta pode reter água líquida? Em que condições a água se encontra
líquida? Por que alguns planetas têm atmosfera e outros não? Somente essas
perguntas, deixa óbvio que para responde-las é necessário abordar temas de
Química, Biologia, Física em suas mais diversas subáreas. Não sendo, também
irreal, considerar uma possível interface com as disciplinas das ciências mais
“humanas” como História, Geografia e Filosofia, em questões como, por exemplo,
“como uma civilização se desenvolveria sob circunstâncias diferentes da que a
humanidade se desenvolveu?”.
Assim, a Astrobiologia possui intrinsecamente um caráter interdisciplinar.
Não é necessário assumir ou impor, ela simplesmente é. E como explorar todas
essas potencialidades como uma forma de divulgar a ciência? A proposta deste
trabalho é pautada em um ponto ainda dentro do contexto da interdisciplinaridade:
a relação entre a ciência e a arte. Jacob Bronowski, um poeta e também matemático,
argumenta que a ciência e a literatura têm a imaginação como uma raiz comum, da
qual se desenvolvem e florescem juntas (Bronowski, 1998). O autor argumenta
ainda que é falaciosa a noção de que a ciência é feita puramente da razão,
desprovida de imaginação; nas palavras dele “prejudicamos a educação das
crianças quando as habituamos a separar a razão da imaginação, apenas pela
conveniência do horário escolar” (abid, p. 38).
Assim, se pudermos explorar as ciências através das artes, estaremos
conduzindo o aprendizado pelos trilhos da imaginação e, por isso, concebendo-as
em um nível mais fundamental. Com o intuito de estabelecer essa relação entre
ciência e arte, este projeto idealiza a utilização da literatura no gênero Ficção
Científica como a ferramenta de trabalho.
Dentro desse contexto, de valorar tanto a ciência quanto a arte, um dos
aspectos mais interessantes da Ficção Científica (FC) é o que se chama de
estranhamento cognitivo, expressão formada por duas palavras que apresentam
dois conceitos distintos, mas que são indissociáveis em uma obra de FC. O
estranhamento surge daquilo que está fora da esfera do tangível, do que é
experimentado e esperado normalmente, é uma sensação que provém daquilo que

808
causa um impacto por não ser familiar. A fantasia, os mitos, as lendas, as fábulas
também apresentam esse estranhamento; porém, na FC, está associado a uma
cognição, ou seja, ele é justificado dentro de um discurso científico que,
independentemente de fornecer uma justificativa válida ou não, baseia-se nos
métodos e nas premissas da ciência para torna-lo aceitável (SUVIN, 1979).
O estranhamento cognitivo é também sedutor, instigante, capaz de impingir
um encanto profundo, um sentimento que os críticos de FC costumam chamar de
“sense of wonder” (sentido de maravilhoso) (e.g. SUVIN, 1979; GILLETT, 1998;
CAUSO, 2003). Ítalo Calvino, escritor que considerava Galileu como um dos
fundadores da literatura italiana, expressa esse sentimento de encanto na seguinte
passagem:

Quando eu leio Galileu eu gosto de procurar pelas passagens nas quais


ele fala sobre a lua. É a primeira vez que a lua se torna um objeto real para
a humanidade, e ela é minuciosamente descrita como algo tangível, assim
que a lua aparece sente-se um tipo de rarefação, quase de levitação, na
linguagem de Galileu. Eleva-se com ela em um estado encantado de
suspensão. (CALVINO, 1997, p.31-32)

Não é só o que os olhos veem que gera o encantamento, mas como o objeto
de observação é descrito. É nessa relação entre a arte como expressão dos
sentimentos humanos e da ciência como uma forma de entender a natureza que a
FC é capaz de trazer um deleite profundo, de “quase levitação”.
Torna-se claro nesse ponto que a FC pode ser uma porta de entrada para um
interesse mais agudo na ciência, ao laureá-la pelos olhos imaginativos dos
escritores. Calvino, na citação transcrita acima, deixa claro que não foi somente a
lua vista por um telescópio que o encantava, mas principalmente o modo como
Galileu foi capaz de descrevê-la. Mas essa porta não é de mão-única, Bronowski
dizia que a arte e a ciência possuem uma raiz em comum e não que uma está na
raiz da outra. Desse modo, se a literatura pode ser um grande incentivo ao
conhecimento científico, não há porque não pensar o contrário, que a ciência pode
também ser um convite para o mundo da literatura.

809
O projeto LUCIA
O principal objetivo da pesquisa aqui apresentada foi entender a
potencialidade que a Astrobiologia associada à literatura pela FC pode ter na
divulgação a ciência e no incentivo à leitura. Para aproximar teoria e prática,
algumas atividades foram preparadas para serem aplicadas em um Clube de Leitura
(CL).
O CL é um espaço que foi criado para discutir literatura e ciências. Ele foi
organizado pelo nosso grupo de pesquisa e pela escola municipal Arquiteto Luís
Saia. Foi desenvolvida e idealizada a partir de um modelo norte-americano
denominado Literature Circle (Daniels, 2002) e de um modelo brasileiro, mais
comumente referido como Clube do Livro (Reis, 2009). O público alvo foi os
estudantes das séries finais do Ensino Fundamental (8º e 9º ano, estudantes com
idades entre 12 e 14 anos) em uma escola municipal da cidade de São Paulo (SP –
Brasil). Os encontros do clube ocorreram no 1º semestre de 2015, eram semanais
e no contraturno das aulas, às sextas-feiras das 12:00 às 13:30. Foram trabalhados
com dois grupos de estudantes, um no primeiro bimestre e outro no segundo.
Idealizado inicialmente para atender até 25 estudantes, a média de estudantes
participantes girou em torno de dez alunos.
Embora os encontros tenham ocorrido em território da educação formal, as
atividades podem ser classificadas como “intervenções não-formais em um
ambiente formal”, pois, apesar de terem sido realizadas em sala de aula, com a
participação dos alunos e professores da escola, a adesão dos participantes foi
voluntária, houve liberdade na escolha do conteúdo e da forma de exposição por
parte dos aplicadores.
Além dos alunos, professores da escola e dos idealizadores do projeto, o CL
contou também com a participação de um grupo de monitores, formado por
estudantes de graduação. Esses monitores, tiveram uma participação ativa tanto no
desenvolvimento das atividades, como em sua aplicação, fazendo o papel de
mediadores nos encontros do clube e exercendo papel importante na coleta de
dados.
As atividades foram propostas em três frentes com temas sempre

810
relacionados à ciência, mas com focos distintos. Uma das frentes trabalhou mais a
questão do humor, com o uso do livro “O Guia do Mochileiro das Galáxias” de
Douglas Adams, outra frente teve como foco a relação entre ciência e fantasia, e
usou o livro “O Ladrão de Raios” de Rick Riordan. A frente no qual este trabalho se
insere, focou-se mais em livros Hard Science Fiction, em especial aqueles que
continham planetas fictícios. “Duna”, livro de Frank Herbert e “O Cair da Noite” de
Robert Silverberg e Isaac Asimov, foram dois livros utilizados nessa frente.

Divulgação Científica e Incentivo à Leitura

Especificamente para os propósitos da pesquisa relatada neste trabalho,


duas atividades foram realizadas no CL, uma utilizando o livro “Duna” de Frank
Herbert e outra o livro “O Cair da Noite” de Robert Silverberg e Isaac Asimov. Ambos
possuem um tema fortemente relacionado com a Astrobiologia.
Em “Duna”, todo o enredo se passa em Arrakis, um planeta-deserto, de
ambiente hostil, mas ambicionado pelos poderosos devido a um produto único em
toda a galáxia, chamada de especiaria. As condições difíceis de sobrevivência, as
peculiaridades do povo nativo, as intrigas entre as famílias que disputam a posse
do planeta, são alguns dos temas tratados no livro que carregam em si diversos
elementos científicos que podem ser utilizados para uma discussão interdisciplinar
em diferentes graus de profundidade. Biologia, Astronomia, Meteorologia são
frequentemente tratados, porém, imersos no enredo, emergindo pelo contexto.
Na atividade realizada com o “Duna”, foi possível constatar que, para a faixa
etária, a leitura se mostrou difícil por aspectos inesperados, como termos
estrangeiros, neologismos e conjugações verbais no tempo pretérito-mais-que-
perfeito. Apesar da compreensão difícil, com a ajuda dos monitores, foi possível
passar aos estudantes as ideias básicas passadas pelo texto. Com o trecho lido, a
intenção era contextualizar e motivar os alunos para a próxima ação, mais
direcionada para uma discussão de ciência. Com o tema “se você tivesse que viver
em um planeta-deserto, o que você teria que fazer para sobreviver?” foi feita uma
roda de discussão, onde os estudantes tentavam buscar respostas, enquanto os

811
monitores refutavam e discutiam as possíveis soluções. Nessa dinâmica, foi
possível conduzir a partir da leitura uma discussão descontraída e bastante
profunda sobre temas científicos que abordavam principalmente a questão da
sobrevivência e da adaptação. Houve participação da maioria dos estudantes, que
deram ideias, discutiram e apresentaram em seus discursos tanto referências ao
trecho do livro como indagações e informações científicas. A interdisciplinaridade
ficou bastante evidente nessas discussões. Como exemplo, pode-se citar que a
Biologia foi mencionada quando um estudante se pôs a explicar espontaneamente
por que os cactos possuem espinhos, enfatizando que não é só para proteção, mas
para evitar a transpiração. A Ecologia (e também assunto da Química e da
Meteorologia) foi mencionada quando foi discutida a origem do oxigênio em um
planeta que não tem oceanos (como na Terra, cuja maior parte do oxigênio da
atmosfera vem das algas marinhas). Na Física, os alunos indagaram de onde
poderiam obter energia (dos ventos, da água em movimento, das fezes). E houve
até um pouco de História, quando um dos monitores mencionou que em alguns
bunkers da Alemanha, construídos durante a Segunda Guerra eram providos de
sistemas de geração de energia a partir do biogás.
No livro “O Cair da Noite” a história se passa em um planeta fictício chamado
Kalgash. Esse planeta é rodeado por seis sóis que rodeiam os céus de tal forma
que os seus habitantes dificilmente veem a escuridão da noite. Tal evento ocorre
apenas a cada 2049 anos em uma combinação improvável da configuração dos
astros no céu. Em um mundo onde as pessoas não conhecem a noite, a escuridão
pode trazer pânico e loucura. É sob essa tensão que a história se desenrola, onde
cientistas confrontam o fanatismo religioso e o senso comum para tentar evitar que
uma catástrofe aconteça. Assinado por Robert Silverberg e com a marca indelével
de Isaac Asimov, o livro representa a ciência com fidelidade, tanto em seus
conceitos científicos, como na representação da vida acadêmica.
Na atividade apresentada no CL, a leitura do “O Cair da Noite” foi feita pelos
monitores que buscaram trazer à narrativa um tom mais dramático. Cabe relatar que
tal objetivo não se cumpriu, o nervosismo dos monitores prejudicou a intenção inicial
e a leitura foi mais mecânica e monótona do que se pretendia. Amparada pela

812
leitura, foi feita uma roda de discussões cujo tema dessa vez eram os exoplanetas
(planetas fora do sistema solar). A turma de alunos se mostrou interessada, mas
interagiu menos, com poucas perguntas e colocações espontâneas. Foram
discutidos temas como sistemas planetários com configurações alternativas,
movimentos de rotação e translação, habitabilidade (em que condições seres
humanos podem viver? Em um planeta com tantos sóis não seria quente demais?).
O objetivo das atividades relatadas era testar o potencial da FC e a
atratividade da Astrobiologia no incentivo à ciência. Visto também que o tema é
chamativo, havia a expectativa de que a discussão científica também despertasse
o interesse dos alunos na leitura dos livros, cuja leitura no encontro se restringiu a
algumas páginas. Os dois livros foram adquiridos pela escola e foram
disponibilizados para empréstimo. O “Duna” a princípio não foi retirado por nenhum
aluno, o principal motivo pode ser resumido na frase proferida por uma das
estudantes: “eu precisaria de um ano pra ler esse livro inteiro”. No final do semestre,
uma aluna pediu para levar o livro para as férias. No entanto, até a presente data
não tivemos um retorno de suas impressões. O “Cair da Noite” foi retirado por três
alunos diferentes. Um deles retornou o livro logo após a leitura dos primeiros
capítulos alegando que “não tinha gostado muito”. Dois, no entanto, leram o livro na
íntegra e souberam explicar com bastante desenvoltura do que o livro se tratava e
souberam enaltecer aspectos científicos como “o livro fala também de Arqueologia,
foi inesperado, mais muito interessante”.

Conclusões e Perspectivas Futuras

Neste trabalho, foram descritas várias razões que apontam a Astrobiologia


como um tema instigante e de caráter intrinsecamente interdisciplinar. Como meio
de explorar a sua potencialidade educativa, a ficção científica com forte temática na
Astrobiologia foi levada a um Clube de Leitura. A intenção era não só divulgar a
ciência, mas também, a partir do encanto que a ciência provoca, instigar os alunos
a lerem mais.

813
Não apresentamos aqui um sistema consistente de coleta e análise de dados,
algo que deve ser feito mais adiante com uma observação mais planejada e acurada
e um montante maior de dados. No entanto, apenas pela observação do
comportamento dos estudantes e pelo desenvolvimento do material de trabalho, foi
possível verificar que de fato a Astrobiologia carrega em si um enorme potencial
educativo, tanto no que diz respeito a instigar a curiosidade como em seu tratamento
interdisciplinar. Pautadas na espontaneidade, as rodas de discussões passaram por
vários assuntos de diferentes ramos do saber, com um especial destaque para a
Astronomia e Biologia, mas também abarcando Geologia, Física, Meteorologia e até
mesmo, em um relance, um pouco de História.
A retirada de livros, principalmente o “O Cair da Noite” também foi uma mostra
de que abordar a ciência fazendo uso da Ficção Científica pode ser um
impulsionador da vontade de ler.
O Clube de Leitura está em seu primeiro ano e tem sido melhorado a cada
momento, com uma autorreflexão constante. Em trabalhos futuros, outros livros
podem ser utilizados como o “Perdido em Marte” de Andy Weir, a série Lucky Starr
de Isaac Asimov. Uma coleta de dados mais consistente e quantificada também
deve ser empregada em atividades futuras.

Obras Citadas

O Cair da Noite
SILVERBERG, R e ASIMOV, I.. O Cair da Noite, Rio de Janeiro: Record, 1992.

Duna
HERBERT, F. Duna, São Paulo: Aleph, 2010.
O Guia do Mochileiro das Galáxias
ADAMS, D., O Guia dos Mochileiros das Galáxias, Rio de Janeiro: Sextante, 2010.
O Ladrão de Raios
RIORDAN, R., O Ladrão de Raios, Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2008.
Perdido em Marte
WEIR, A., Perdido em Marte, São Paulo: Arqueiro, 2014.
Lucky Starr

814
ASIMOV, I., O Robô de Júpiter, São Paulo: Hemus, 1987.

Referências Bibliográficas

BRONOWSKI, J.; O Olho Visionário: Ensaios Sobre Arte, Literatura e Ciência;


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
CALVINO, I. Two Interviews on Science and Literature’ em The Literature Machine:
Essays, London: Vintage, 1997.
CAUSO, R. S.; Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil 1875 a 1950; Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2003.
DANIELS, H.; Literature Circles: Voice and Choice in Book Clubs and Reading
Groups, Portland-Maine: Stenhouse Publishers, 2002.
DES MARAIS, D. J.; Nuth, J. A., III.; Allamandola, L. J.; The NASA Astrobiology
Roadmap; 2014; v. 8-4, p. 715-730
GILLETT, S. L.; World Building; Cincinnati, Ohio: Writer’s Digest Books, 1996.
HELLER, R. e ARMSTRONG, J.; Superhabitable Worlds; Astrobiology; 2014, v. 14,
p. 50-66
REIS, Luzia de M. R., O Clube do Livro, São Paulo: Ed. Globo, 2009.
SUVIN, D.; Metamorphoses of Science Fiction, New Haven e Londres: Yale
University Press, 1979.

815
O FRASCO ABERTO: ANÁLISE DE CONTOS DE JAIME BAYLY E CAIO
FERNANDO ABREU

Raul Ignacio V. Arriagada276

Introdução

O presente estudo pretende analisar dois contos: “Extrañando a Diego” e


“Aqueles dois” de dois autores latino-americanos que souberam retratar em suas
narrativas temas como a pós-modernidade e o homoerotismo. O primeiro é Jaime
Bayly, escritor e jornalista peruano. O segundo, Caio Fernando Abreu, escritor e
cronista brasileiro. O interesse por estes dois autores e seus contos reside no fato
de terem a capacidade de questionar, desestabilizar e perturbar em sua narrativa.
O primeiro, pela sua obscenidade explícita; o segundo, pela poesia que existe,
mesmo onde o ser humano pode ser baixo e obscuro. Em ambos, a temática sexual
continua sendo a grande hipocrisia da humanidade.
Ainda que a sexualidade seja um dos temas abordados, mais precisamente
a homossexualidade, os dois autores não se desvencilham do seu ethos. Pelo
contrário, sabem-se inseridos num mundo fragmentado, de ideologias fracassadas,
de valores invertidos, de utopias abandonadas. O resultado é a descrição de uma
sociedade cínica, hipócrita, consumista e amoral.
Mas não estamos diante de dois autores que simplesmente elaboram uma
trama e jogam esses elementos citados de modo aleatório. Estamos na presença
de dois escritores que dialogam com a tradição literária e com a contemporaneidade
(cinema, música, televisão etc). O resultado é uma escrita nova e revigorante.

276 Universidade Presbiteriana Mackenzie

816
Contextualizando o homem pós-moderno na narrativa de Bayly e Abreu

O escritor chileno José Donoso dizia que o escritor não é uma pessoa comum
qualquer. É sempre um marginalizado com poder: o poder de aceitar a dor de suas
limitações e convertê-las em literatura (apud PACHECO, 2005, p. 312). É
justamente essa a abordagem feita por Bayly e Abreu em seus contos, olhar o
mundo e traduzi-lo por meio das palavras. Os personagens dos autores vagueiam
por metrópoles feias, super-povoadas, invadidas por mensagens publicitárias. São
seres em busca de uma identidade e, nessa busca, são humanamente
contraditórios. Infelizmente, “a identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia” (HALL, 2004, p.13). As sociedades pós-modernas estão
em constante mudança. Essa rapidez de transformação e de aniquilamento do que
até ontem era tido como certo, transformou o homem em um individuo que relativiza
tudo. Já nada mais é concreto, imutável ou duradouro.

Bayly faz seu relato direto do redemoinho da era da globalização. Já não


existe mais o escritor local que escreve somente para a sua comunidade, sua
cidade ou país. Ele faz parte de

uma era em que as fronteiras encontram-se menos explícitas e as


influências tão globais que acabam criando um novo tipo de artista:
não o sujeito de nenhum lugar mas, ao contrário, o sujeito do aqui e
agora. Essa nova sensibilidade artística (...) tem menos a ver com a
nacionalidade e mais a ver com a empatia. Em vez de buscar captar
a essência de uma aldeia para nos mostrar o mundo, essas almas
globais estão, talvez, buscando compreender a essência do mundo e,
dessa forma, nos ajudando a desconstruir e, mais importante, dar
importância à nossa própria aldeia (FUGUET, 2005, pp. 102 e 103).

Reside em Caio Fernando Abreu e em Jaime Bayly uma coragem que


poucos autores têm, a de assumir a homossexualidade. Luiz Mott, antropólogo e
estudioso da homossexualidade afirma que “Ainda hoje, raros são os
homossexuais no Brasil que têm a ousadia de escrever na primeira pessoa”
(MOTT, 2003, p.9).
Bayly e Abreu, a exemplo de Oscar Wilde, não têm medo de ousar dizer o
nome de quem amam. Os contos que analisaremos atestam isso. A pesquisa
demonstrará a influência de outros autores em sua escrita, que reconheceremos na

817
intertextualidade presente, assim como a do cinema e de ícones da cultura pop;
fundamentais para dialogar com a contemporaneidade e para delinear o perfil das
personagens dos contos. Para este estudo, definimos intertextualidade segundo
Roland Barthes: […]“se trata, en efecto, de esa idea de hacer anónimo al autor, de
divorciarlo de su texto, que puede considerarse como la proyección de textos
anteriores en virtud de derivaciones, de transformaciones y hasta de parodias y
plagios” (apud CALVET, 2001, p. 194)

Conto e intertextualidade

Embora seja tema de debate entre estudiosos, e tenha “um conceito


nebuloso” segundo Cleusa Rios Passos, esta investigação não se empenhará no
debate sobre a definição de conto. Para este estudo, a definição literária dada por
Adda-Nari M. Alves e Angélica Mello nos servem perfeitamente:

El cuento suele caracterizarse como relato de poca extensión (…) El cuento


literario es una narración corta que combina de forma admirable la sencillez
de la historia con la intensidad expresiva. Es tan rico en temas y estilos que
resulta especialmente difícil señalar en él características que no sean su
brevedad, si comparado con la novela. Sin embargo y, con cierta reserva,
indicaremos dos aspectos comunes a cualquiera: carácter de síntesis y
prolongada tensión (2001, p. 109).

O “conceito nebuloso” assinalado por Rios ocorre porque para a autora o


conto, “comparado ao romance, configura-se breve e condensado, estando em
certos casos, próximo de outra forma de grande presença histórica, mas de perfil
igualmente difícil, a novela” (PASSOS, 2001, p. 67).
A discussão levantada é pertinente na análise de “Aqueles dois” de Caio
Fernando Abreu. Ao dividir a história de Raul e Saul em seis partes, parece que
estamos lendo uma novela. E, talvez, tenha sido essa a intenção do escritor, de que
seu conto tivesse ares de uma novela curta. A divisão também aparece no conto de
Bayly, dividido em três partes. A diferença é que neste, a divisão parece seguir uma
ordem: na primeira parte temos a apresentação das personagens; o clímax, na
segunda; e o desfecho, na terceira. No conto de Abreu, os capítulos vão num
crescendo no sentido da densidade das personagens, que são apresentadas para

818
nós através de relações intertextuais (cinema, música). Na última parte do conto
temos o clímax e o desfecho.
Ambos os contos possuem particularidades que Rios aponta como
fundamentais na estrutura de um conto: a unidade de sentido e um núcleo sólido.
Ainda que os dois autores dialoguem com a contemporaneidade e com as
referências culturais, elas estão a serviço da construção do conto, de desenhar as
personagens, de descrever melhor a trama. Não existem quebras ou ruídos que
desconstruam a narrativa. Nesse sentido, os dois contos seguem uma linha
tradicional.
A narração do conto “Extrañando a Diego” é feita em primeira pessoa, o
narrador (Felipe) é a personagem principal. Ele realiza as ações que relata: “El
primer recuerdo que tengo de Diego es una vez, hace años, que lo vi montando
bicicleta por el malecón de Miraflores” (BAYLY, 1996, p. 223).

Em “Aqueles dois” o conto é construído em terceira pessoa, o narrador não


participa dos fatos que narra. Narra a trama como um observador externo: “Eram
dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela
cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste (...)” (ABREU, 1989, p.
147).

Contexto histórico e social em que foram escritos os contos

É importante ressaltar que os dois contos foram escritos num momento de


transição política na América Latina. Na década de 1980 do século passado as
ditaduras militares estavam desmoronando e os ares democráticos começavam a
soprar no continente. Esse dado é relevante porque a censura imposta aos meios
de comunicação e aos intelectuais durante tanto tempo finalmente foi abolida e os
artistas, políticos e demais formadores de opinião puderam finalmente publicar e
dizer o que pensavam sem esperar sanções.
Outro dado que merece destaque e que, de certa forma, estava atrelado à
censura e à repressão militar é a questão da homossexualidade. A

819
redemocratização fez com que ativistas pudessem lutar pelos direitos gays longe da
clandestinidade. Na análise dos contos de Bayly e Abreu estabeleceu-se adotar a
palavra homoerótico ao invés de homossexual. A definição homoerótica é dada pelo
psicanalista e professor Jurandir Freire Costa (1992). Segundo ele, a palavra
homossexualismo está vinculada a valores oitocentistas (como alusão a doença,
desvio, anormalidade e perversão), enquanto homoerotismo se distancia desses
conceitos porque procura descrever melhor as práticas e desejos dos homens que
fazem sexo com homens. E é justamente esse matiz que os respectivos autores,
Bayly e Abreu, quiseram abordar. Não se trata de uma literatura engajada ou
militante pelas minorias sexuais, no sentido tradicional da palavra, mas têm como
eixo central a perspectiva homossexual masculina. É nela que os autores se apoiam
para descrever a sociedade à qual pertencem, e são seu pretexto para explorá-la
de modo critico.
Um terceiro ponto é fundamental para a compreensão dos contos: o
crescimento desenfreado das cidades. Ainda durante a vigência das ditaduras, as
grandes cidades latino-americanas se tornaram verdadeiras metrópoles. O fato
merece atenção: em muitas cidades o êxodo rural é promovido pelo emprego nas
indústrias e melhores condições de vida e trabalho na cidade. Contudo, e apesar
disso, o que muitos encontram ao chegar nelas é o oposto: o desemprego e a
marginalidade. O inchaço das cidades promove abismos sociais intransponíveis: de
um lado, uma minoria branca, donos do poder e do dinheiro; do outro, uma massa
de miseráveis analfabetos que procurar sobreviver no caos urbano.
A metrópole acaba por tornar-se um local inóspito, cruel e solitário. Cientes
desse fato, Abreu e Bayly encontrarão nesse cenário o local certo para desfilar suas
personagens e suas angústias e, por meio dessas, fazer críticas sociais. É também
o cenário adequado para retratar o homem pós-moderno, fragmentado, órfão de
uma identidade integradora, segura e impermeável.
Finalmente, os dois contos à sua maneira procuram a ruptura com a tradição
literária, de modo especial com o chamado Boom da literatura latino-americana e
seu Realismo Mágico que revelou ao mundo o talento de autores como Gabriel
García Márquez. Se por um lado o Boom latino-americano tornou a literatura do

820
continente evidente no mundo inteiro, por outro aprisionou nesse rótulo a geração
que publicaria nas décadas de 1980 e 1990.
Contudo, as realidades que o continente apresentava (derrocada das
ditaduras, inflação em alta, endividamento das nações americanas com o FMI –
Fundo Monetário Mundial, explosão demográfica, processo de redemocratização,
crescimento das cidades, etc) impeliram os novos autores literários a rechaçar a
fusão de realidade com a suposta mágica do continente. Outras preocupações
permeavam os autores como o desemprego, a violência e a vivência do homem
urbano num espaço claustrofóbico. Essas inquietações levaram à publicação de
obras que dialogaram com essa nova realidade. Uma delas foi a emblemática
coletânea McOndo (organizada por Alberto Fuguet e Sergio Gómez, 1996), onde foi
originalmente publicado “Esperando a Diego” de Bayly. Para Fuguet a geração
McOndo “es una nueva generación literaria que es post-todo: post-modernismo,
post-yuppie, post-comunismo, post-babyboom [sic], post-capa de ozono. Aquí no
hay realismo mágico, hay realismo virtual” (FUGUET, 1996, 12).

“Extrañando a Diego” de Jaime Bayly

Jaime Bayly escreveu “Extrañando a Diego” na década de 1990 e foi incluído


na coletânea McOndo (1996). É um conto perturbador, que narra uma relação
homoerótica obsessiva entre dois jovens burgueses limenhos. Bayly revela ser um
escritor ágil, econômico na descrição, pontuado por diálogos obscenos onde não há
espaço para meias-palavras.

Me llevó a mi departamento (…) Quería darle un beso. No me atrevía. Llegó


a mi depa. Cuadró. Apagó el motor. Subimos a mi depa. No bien entramos,
nos besamos. Sin decir una palabra, nos quitamos la ropa (...). No se puso condón. No
me importó (BAYLY, 1996, p.226).

“Extrañando a Diego” é um conto veloz, cheio de informações no qual Bayly


cria diálogos divertidos ao inserir comparações com ídolos do cinema, da música e
da televisão, tal como acontece na atualidade com os jovens. E, como num seriado

821
televisivo, o leitor encontra-se, entre uma linha e outra, em vários ambientes: a
academia de ginástica, a discoteca, o quarto, a praia, Miami etc.
Ao escrever o conto, Bayly nos situou numa realidade peruana que não tem
escapatória. Lima é uma cidade claustrofobia que asfixia seus personagens.
Nesse cenário, retrata uma burguesia limenha, suscitando no leitor o riso nervoso
e a indignação diante das atitudes individualistas de seus personagens. Felipe e
Diego, os protagonistas, são desprezíveis, sendo quase impossível simpatizar com
eles. Irresponsáveis e alienados, eles correspondem ao perfeito perfil desenhado
pela hipermodernidade: hedonistas, niilistas, narcisistas. Em “Extrañando a Diego”,
Bayly faz referências à cultura pop para construir e definir seus personagens
principais: “Era un dios. Parecía Brando (hace cuarenta años)” (BAYLY, 1996, p.
224).

Comparativamente, a narrativa de Bayly se aproxima com a de Jean Genet.


Bayly possui a centelha da amoralidade, que não se contenta apenas com o
rascunho de umas breves frases, mas vai fundo, descrevendo detalhes, tornando-
se assim um fiel discípulo do mestre francês, o escritor “maldito”.

“Aqueles dois” de Caio Fernando Abreu

No conto “Aqueles dois” (Morangos mofados, 1989) Caio Fernando Abreu


lança um olhar severo às relações sociais permeadas pelo oportunismo, inveja,
ódio, hipocrisia e preconceito. É o encontro da solidão de dois homens: Raul e
Saul, funcionários de uma mesma empresa que moram sozinhos numa capital e
que pouco a pouco começam a se aproximar estabelecendo laços de amizade e
que, nas entrelinhas, deixa transparecer o surgimento de uma paixão homoerótica.

Os nomes dos dois protagonistas soam simpáticos ao serem tão parecidos:


Raul e Saul. Nesse jogo dos nomes podemos constatar como desde um princípio
havia um destino preparado para os dois. A palavra alma em inglês é soul, e ela
rima com Saul e Raul. A fluência da língua inglesa do autor permite que esse jogo
lexical faça todo sentido. É o encontro de almas gêmeas.

822
Na análise da trama percebe-se como o autor constrói suas personagens
através de referências culturais: música, arte, cinema e literatura. Dessa forma, Raul
e Saul revelam uma delicadeza e sensibilidade artística que os aproximará. Raul
cantava boleros e tinha um sabiá chamado Carlos Gardel; Saul tinha cadernos de
desenho e um livro de reproduções de Van Gogh, além de uma reprodução do
mesmo pintor na parede. Ambos gostavam de cinema. A solidão dos personagens
se constrói a partir desses objetos e habilidades artísticas: Raul tem a companhia
do sabiá, companheiro que ouve em silêncio os boleros que ele toca e canta no
violão, revelando um personagem romântico; Saul tem a reprodução de Van Gogh
na parede. Tal descrição revela um personagem sensível, um homem capaz de ver
num quadro o espelho do seu quarto.

Afetivamente, Raul e Saul já não querem se envolver com o sexo oposto, o


fracasso do casamento de um e o rompimento do noivado do outro, fazem com que
se sintam bem estando sós, mas na verdade não é bem assim: (...) gostavam de
estar assim, agora, sós, donos de suas própias vidas. Embora, isso não disseram,
não soubessem o que fazer com elas” (ABREU, 1989, p.150).

O que começou como uma apresentação formal entre ambos aos poucos foi
crescendo, principalmente quando a conversa sobre o filme Infâmia e a paixão em
comum pelo cinema os aproximou. Altos, belos e jovens, eram assediados pelas
moças da repartição, mas o frio e feio ambiente de trabalho, o desencanto com as
mulheres e a descoberta de afinidades entre eles foi tecendo “uma estranha e
secreta harmonia” (ABREU, 1989, p.148).

Nesse aspecto e comparando com a relação entre Felipe e Diego em


“Extrañando a Diego” de Bayly, vemos como os narradores descrevem cada qual a
sua maneira a relação homoerótica. Para Bayly, é uma relação fundamentada no
sexo: é violenta e ultra passional. Para Abreu, é tranquila, onde primeiro os valores
da amizade precedem o sexual. A linguagem também se diferencia ao narrar a
relação das personagens. A de Bayly é uma narração violenta, irônica, chula; a de
Caio, afetuosa, procurando a cumplicidade do leitor, conduzindo-o por uma trama
em que ele, assim como as personagens, vão descobrindo aos poucos os

823
verdadeiros sentimentos dos protagonistas. Caio seduz com sua linguagem de
suave fluidez e com a intertextualidade presente no conto, que permite ao leitor fazer
outras leituras. Ainda que a linguagem virulenta de Bayly tenha sua justificativa e
seja ela mesma uma marca de seu autor, é inevitável a comparação uma vez que
este estudo pretende aproximar e examinar particularidades de cada conto.

“Aqueles dois” pretende narrar como a intolerância está carregada de ódio e


inveja, e que por trás desses sentimentos vis se esconde a mediocridade das
pessoas, a banalidade de suas vidas. Raul e Saul são os protagonistas vitimados
pela virulência alheia, mas que saem incólumes dessa tempestade de cinismo
revelando a pequenez das pessoas do seu entorno.

Considerações finais

Os contos analisados nos oferecem um rico quadro da realidade que nos


cerca, sem, no entanto, soarem datados. Retratar a realidade oferece às vezes esse
risco. Mas Bayly e Abreu vão muito além. Escritores hábeis, percebemos a potência
em suas narrativas e, no fundo, retratam conflitos que ainda permeiam o ser
humano: solidão, amor, inveja, ódio e vingança. Munidos desses ingredientes nos
oferecem duas pérolas literárias que nos conectam com nossos questionamentos e
desafios, porque há muito para desentranhar. Assim como um frasco aberto que
libera no ar sua fragrância, os dois contos oferecem muito mais daquilo que se
percebe superficialmente e nisso reside sua riqueza, o diálogo que estabelece com
os valores sociais e a forma como reagimos a eles. Nesse sentido, como toda obra
de arte, procura nos confrontar e inquietar. Difícil é ficar indiferente.

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826
CULTURAS EM CONTATO: BRASIL E EUA, VARGAS E ROOSEVELT

Regina Paula Ambrogi Avelar277

Introdução

Quando duas ou mais culturas entram em contato de maneira a produzir


influências múltiplas – sejam essas igualitárias ou desproporcionais – erigem muitos
questionamentos acerca de como essas influências se geraram. No caso da
evidente atuação cultural dos EUA no Brasil, as ações, dentre elas as culturais, seus
mecanismos e meandros fazem parte do imaginário coletivo e do questionamento
de estudiosos, cientistas e historiadores ao longo do tempo. O presente artigo
objetiva pontuar momentos, ações, episódios, práticas culturais, políticas públicas,
etc. do contexto histórico da época do contato entre as culturas norte-americana e
brasileira no momento da presidência de Franklin Delano Roosevelt e Getúlio
Dornelles Vargas, no início do século XX. Tais presidentes adotaram posturas que
fizeram com que a opinião pública das populações de seus países mudasse com
respeito aos EUA e ao Brasil em sua relação mútua. Analisaremos tais situações
por meio de uma teoria abordada pelos chamados Estudos Culturais, em específico
pelo viés do conceito de “guerras de língua ou batalhas de língua” (language wars)
proposto por Jeff Lewis.278
Os EUA mantiveram uma política de isolacionismo desde a sua formação
como nação até o início do século XX e a I Guerra Mundial, momento do crash da
Bolsa de Nova Iorque em 1929. A posição isolacionista era a ideia de que os EUA
deveriam manter-se neutros quanto a assuntos estrangeiros. Tal ideia foi defendida
por um dos fundadores do país, em seu discurso de posse, o primeiro presidente
norte-americano, George Washington, em 1789.
No início da década de 1930 devido à Grande Depressão, o país se viu diante
de uma nova postura. Frank Delano Roosevelt era o presidente do país nessa
época, mais precisamente de 1933 a 1945, ou seja, por doze anos consecutivos,

277 Doutoranda e mestre pela Universidade Presbiteriana Mackenzie


278
O termo foi traduzido em tradução-livre pela autora

827
até a sua morte. Seu primeiro mandato foi marcado pelo entusiasmo gerado pela
franca e rápida recuperação econômica do país após momentos econômicos tão
penosos. Já seu segundo mandato se viu marcado pela entrada dos EUA na II
Guerra Mundial e pela Política do New Deal, ou uma Nova Conduta, na prática, uma
política de amplas dimensões, que visava a infusão cultural norte-americana nas
Américas, e dar início a uma nova postura no continente para fazer com que os EUA
se tornassem o novo centro econômico mundial. Esta política foi feita com um
cuidadoso planejamento de penetração ideológico-econômico-cultural de conquista
de mercado, que nada teve de aleatória ou despropositada.
O interesse dos EUA em diminuir a influência europeia em todo o continente
das Américas, em especial no Brasil, se deu devido ao difícil contexto econômico
enfrentado pelo país e pelo mundo antes, durante e pós-guerra, havendo a
necessidade de se encontrar alternativas econômicas que gerassem a reconstrução
financeira após o crash. O Brasil na época era um país essencialmente agrário,
exportador de café, que passava por momentos econômicos turbulentos devido ao
declínio do preço internacional desta commodity.
Getúlio Vargas foi presidente do Brasil entre 1930 - 1945 e novamente entre
1951 e 1954, quando cometeu suicídio. No total foram 24 anos de governo. Seu
governo foi dividido em quatro grandes fases: o Governo Provisório (1930-1934); o
Governo Constitucional (1934-1937); o Estado Novo (1937-1945) e o Segundo
Governo (1951-1954). Foi presidente eleito pela Constituinte de 1934, ditador entre
1937 e 1945, no momento histórico conhecido por Estado Novo. Foi chefe civil da
revolução que assolou o Brasil conhecida por Revolução de 1930. Não concluiu seu
último mandato por ter sido praticamente deposto em agosto de 1954 pelos
militares. Vargas jogou com os dois lados, o germânico e o americano: o Brasil
comprava armas e máquinas alemãs pelo sistema de compensação que
incomodava os EUA; já em meados dos anos 40, em 1935, o governo brasileiro fez
um acordo para uma compensação informal com a Alemanha, apesar de ter
assinado um tratado de comércio bilateral com os Estados Unidos.
Roosevelt combateu esse comércio de compensação proposto pela
Alemanha com sua Nova Conduta – que combatia a troca de produtos por produtos,

828
sem a necessidade de intermediação de moedas fortes como a libra ou o dólar, aliás
escassas tanto na América Latina como na própria Alemanha -, instituiu o livre-
comércio; realizou um trabalho político-diplomático no continente por meio de
conferências interamericanas, além de procurar concordância com militares latino-
americanos para seus planos de defesa das Américas.
Seu segundo mandato viu o programa doméstico de recuperação econômica
eclipsado por um novo perigo pouco percebido pela maioria dos americanos: os
planos expansionistas dos regimes totalitários no Japão, Itália e Alemanha, o que
fez com que em 1940, na campanha presidencial, se evidenciasse que havia no
país poucos seguidores da posição isolacionista. No mesmo ano, em agosto,
Roosevelt criou um Bureau, ou um Birô. Inicialmente com o nome de Escritório para
a Coordenação de Relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas
Americanas (Office for Coordinations of Commercial and Cultural Relations between
the American Republics), teve depois seu nome simplificado para Escritório de
Coordenação de Assuntos Interamericanos (Office of the Coordinator of Inter-
American Affairs), chefiado pelo jovem norte-americano Nelson Rockefeller, tal
Bureau era munido de instrumentos para atingir os fins de enfrentar o desafio do
Eixo no plano internacional e consolidar o Estado norte-americano como grande
potência.
Rockefeller foi designado para o cargo devido a sua influência política e por
ter conhecimento de que o sucesso econômico de uma empresa se dá por causa
de uma base ideológica consistente de acordo com as ideias de Antonio Pedro Tota,
autor que investiga as bases do intercâmbio cultural Brasil/EUA em seu livro O
Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da segunda guerra.
Devido ao citado flerte de Vargas com o Eixo, o autor alega que Rockefeller articulou
um serviço de inteligência para investigar as ações brasileiras:

Tinha, portanto, a consciência de que o sucesso no campo econômico


tornava necessária uma base sólida no campo ideológico. E, para ele,
a comunicação incluía o serviço de inteligência. Em outras palavras,
significava também espionagem. Não era gratuita a amizade de Nelson
Rockefeller com J. Edgar Hoover, o temido chefe do FBI. (TOTA, 2000:
54).

829
Tanto a organização, quanto as capacidades de empreender e planejar suas
ações são características que os demais povos do mundo constantemente
destacam como genuinamente norte-americanas, ou simplesmente “americanas”
como eles mesmos se intitulam. Com o Bureau não foi diferente, ele comportava
quatro divisões básicas: a de comunicações, a de relações culturais, a de saúde e
a comercial/financeira, em três áreas interligadas de informações, saúde e
alimentação. A divisão de informações era a mais importante do ponto de vista da
penetração cultural e ideológica e compreendia as seguintes seções: imprensa,
rádio, filmes, análises de opinião publica e ciência/educação. A divisão de saúde
planejava ajudar nos problemas de saúde do hemisfério, tais como controle da
malária, prover assistência médica aos trabalhadores, treinamento de médicos e
enfermeiras, distribuição de literatura médica e bolsas de treinamento nos EUA.
Tais ações tinham como propósito a defesa dos interesses norte-americanos,
pois os planejadores americanos sabiam que seu governo iria provavelmente enviar
forças militares para certos lugares da América Latina que não teriam boas
condições sanitárias, e era preciso assegurar a saúde de seus soldados. Além do
mais, algumas regiões latino-americanas seriam decisivas do ponto de vista do
fornecimento de materiais estratégicos, como borracha, ferro, manganês, cristais de
quartzo etc.; e era vital assegurar as melhores condições de trabalho nessas
regiões, isso incluiria também a divisão dos alimentos que ao fim e a cabo, ficaram
restritas à distribuição de sementes e produção direta de alimentos (verduras,
legumes, ovos e carne) em áreas selecionadas do continente com o mesmo intuito
de assegurar às unidades militares americanas, e dos outros países, alimentação
em áreas estratégicas, como na Amazônia e no nordeste brasileiro, mais
precisamente em Natal.
As atividades da agência criada por Rockefeller tinham duas importantes
incumbências: difundir entre os americanos uma imagem positiva dos países latino-
americanos, em especial do Brasil, e convencer os brasileiros de que os EUA
sempre foram amigos do Brasil, pelos meios de comunicação de massa, que se
consolidavam nos anos 40. Nos EUA esta propaganda era direta, nas rádios havia
comerciais que diziam: “Sempre que você tomar um café brasileiro, você estará

830
comprando a Política da Boa Vizinhança. Compre café brasileiro... se você for a
favor da Política da Boa Vizinhança.” (TOTA, 2000: 109). A Política da Boa
Vizinhança (Good Neighbor Policy) era um dos desdobramentos da New Deal Policy
e, como bons vizinhos, o socorro em caso de invasão era uma das práticas vigentes
da época. Em resposta a uma pesquisa que perguntava exatamente se os EUA
deveriam socorrer o Brasil em caso de ameaça por uma potência, em 1939, 27,1%
dos entrevistados disseram que sim e 53,7% que não; já em 1940, 36,3% disseram
que sim e 40% que não, o que significa que boa parte dos americanos aderiu à
Política da Boa Vizinhança (TOTA, 2000: 110) e que as técnicas adotadas de
convencimento da opinião pública estavam se consolidando.
No ano de 1941, os EUA ainda não estavam ativamente envolvidos na
guerra, a situação mudou com o episódio de Pearl Harbor – em que uma base norte-
americana ali situada foi atacada pelos japoneses, danificando 21 navios e 347
aviões, matando 2403 pessoas em média e feriando outras 1178 - em dezembro
desse ano. Como mencionado, a influência germânica na América Latina
preocupava os EUA o que fez o país adotar uma outra política conhecida por
“porrete grande” (big stick), que relacionava a ideia de que as potências europeias
não tinham o direito de intervir ou de tentar recolonizar a América, ou “Doutrina
Monroe” – “América para os americanos” -, com a política exterior feita pelo
presidente George Washington quando presidente dos EUA (1789 -1797), que
apesar de isolacionista, defendia a ideia de que os EUA tinham um papel protetor
em relação ao conjunto das Américas.
Com a constatação por parte dos políticos norte-americanos de que as
grandes nações europeias estavam conquistando rapidamente os locais
desocupados do planeta, começou a haver a necessidade de modificação da
posição isolacionista da nação, o que levou aos Estados Unidos intervirem política
e militarmente várias vezes em países do continente sempre que julgaram estar
ameaçados seus interesses políticos ou econômicos. Moura assim define a política
big stick: “Esse intervencionismo declarado foi chamado de big stick, inspirado numa
frase famosa do presidente Theodore Roosevelt sobre a política americana para o
continente. ” (MOURA, 1986: 16).

831
Os ataques à base de Pearl Harbor fizeram parte de um momento decisivo
(turning point) nessa mudança de postura e de opinião pública quanto à quebra da
postura isolacionista do país. Jornais da época reportam que os ataques foram
transmitidos pelas rádios americanas e mobilizaram a opinião pública que começava
de fato a abandonar a posição isolacionista de tantos séculos. O ataque permitiu
uma mobilização militar acelerada gerando reações extremas na população norte-
americana, cuja opinião pública via-se claramente transformada:

À medida que eram divulgados pelas emissoras radiofônicas


americanas os detalhes dos ataques japoneses no Havaí, Midway,
Wake e Guam, naquele dia que o Presidente Roosevelt chamaria de
“um dia viverá na infâmia”, a incredulidade foi-se transformando em
ódio. No dia 8 de dezembro, o Congresso declarou estado de guerra
contra o Japão: três dias mais tarde, a Alemanha e a Itália declaram
guerra aos Estados Unidos. (CINCOTTA, 1994: 268).

Outro incidente (TOTA, 2000: 42) que pode ter contribuído para a mudança
da opinião pública norte-americana com relação à política isolacionista foi um em
que Roosevelt enviou, em março de 1939, uma mensagem a Hitler, pedindo que a
Alemanha não invadisse cerca de vinte países, nomeados um a um. Imagens da
época mostram Hitler lendo a mensagem no Reichstag e alta cúpula nazista rindo,
às gargalhadas, do presidente americano.
Já Gerson Moura, historiador e cientista político brasileiro privilegia a
perspectiva da penetração cultural norte-americana em seus estudos, em especial
no livro Tio Sam chega ao Brasil, de 1986. Moura recolhe evidências em sua obra
que defendem a hipótese de que houve um planejamento e uma estratégia adotada
pelos EUA para essa difusão cultural, como vemos no excerto: “[...] esse processo
de exportação cultural era parte integrante de uma estratégia mais ampla, que
procurava assegurar no plano internacional o alinhamento do Brasil (e da América
Latina) aos EUA [...] centro de um novo sistema de poder no plano internacional.”
(MOURA, 1986: 11-12). A década de 1940 foi marcada pela presença cultural
maciça dos EUA no Brasil e pela infusão do American way of life (“o jeito de viver
norte-americano”) em nossas vidas. A presença econômica já se fazia presente
pelas ações e estratégias traçadas pelo Bureau, algumas das quais aqui pontuadas,
além dos muitos produtos culturais como filmes e músicas que aqui chegavam e

832
insuflavam os valores culturais daquele povo em nós. Tal conjunto de ações acabou
por modificar nossa maneira de ver, sentir e nos expressar no mundo, em outras
palavras, modificou nossa cultura:
A presença econômica, menos visível, era bem anterior e certas
manifestações culturais, como o cinema de Hollywood, já inculcavam
valores e ampliavam mercados no Brasil. Mas a década de 40 é notável
pela presença cultural maciça dos Estados Unidos, entendendo-se
cultura no sentido amplo dos padrões de comportamento, das
substância dos veículos de comunicação social, das expressões
artísticas e dos modelos de conhecimento técnico e saber científico. O
traço comum às mudanças que então ocorriam no Brasil na maneira de
ver, sentir, explicar e expressar o mundo era a marcante influência que
aquelas mudanças recebiam do “American way of life”. (MOURA, 1986:
8).

Na prática, foi a partir da década de 1940 que os brasileiros passaram a


substituir os sucos de frutas tropicais por coca-cola, trocar os sorvetes caseiros e
de sorveterias nacionais por Kibon, aprenderam a mascar chiclets, passaram a ouvir
fox trot, jazz e o boogie-woogie, a ver mais filmes de Hollywood e a voar nas asas
da Panair (Pan American). Os brasileiros começaram a usar palavras novas,
inglesas, que foram se incorporando à língua falada e escrita como resultado da
Política de Boa Vizinhança (Good Neighbor Policy) e da New Deal, o que levou a
uma diferença de infusão cultural, favorecendo a penetração da cultura americana
no Brasil. O imperialismo norte-americano teve, desde então, um sucesso sem
precedentes na exportação de padrões de comportamento, hábitos de consumo e
gostos artísticos, como vemos no mundo hoje em dia, muito devido a consolidação
dos meios de comunicação em massa a partir da década de 1940, o que
praticamente universalizou o American way of life a partir da década de 1950.
Agora como se deu esse bem-sucedido processo de penetração cultural de
lá para cá? Qual era o contexto econômico-cultural do Brasil naquela época? O
Presidente Getúlio Vargas, assim como Roosevelt, era uma político e administrador,
líder de massas e impulsionador de projetos sendo associado constantemente à
centralização do poder em escala nacional, ao combate da fragmentação do país
pelas revoluções, conferindo ao Brasil uma unidade nacional; foi responsável por
um processo de aceleração da industrialização, urbanização e menor dependência
do país às políticas agropecuárias de exportação, comuns as épocas anteriores a si

833
(SILVA; CACHAPUZ e LAMARÃO, 2004:13). Ainda segundo publicação oficial do
BNDS (Banco Nacional do Desenvolvimento Social) de 2004 do Governo Lula,
Vargas era amado e odiado com a mesma paixão, pois personificou o nacionalismo,
o trabalhismo e a ideia de um Estado forte:
Vargas simplesmente fez o povo brasileiro acreditar em si mesmo.
Autoestima e serena percepção de identidade nacional são ingredientes
vitais para a construção do futuro como projeto. Representou na política
a coroação do Movimento de Arte Moderna, que descobriu o Brasil para
si mesmo. (SILVA; CACHAPUZ e LAMARÃO, 2004:11).

Boris Fausto, historiador brasileiro e biógrafo de Vargas, aborda, em sua


obra, a polêmica de amor e ódio do povo brasileiro em relação ao presidente Vargas.
Diz que um dos paradoxos da personalidade de Vargas que mais chamou a atenção,
foi o de que ele mais que qualquer outro, combater o regionalismo e a autonomia
dos estados, em nome da centralização do poder, mas sem nunca deixar de ser um
gaúcho. Sobre sua personalidade e forma de agir na política, como a implementação
de uma política trabalhista, afirma que a veneração a Vargas se deu devido ao seu
nacionalismo e o ódio devido ao seu autoritarismo:
Em torno de sua personalidade e de sua ação política, ergueram-se um
culto e uma repulsa. O culto foi tecido com a imagem do homem que
esteve à frente das transformações econômicas e sociais, como um
nacionalista que resistiu aos trustes estrangeiros, como o primeiro
estadista a vir em socorro dos “humildes”, implantando no país uma
legislação trabalhista. A repulsa batia em teclas pessoais – a frieza, o
caráter dissimulado – e em traços negativos do homem público, entre
eles o autoritarismo, que atingiu sua plena forma no Estado Novo, e a
manipulação assistencialista dos trabalhadores. (FAUSTO, 2006: 12-
13).

De 1905 a 1929, o Brasil era essencialmente agrário e presenciou o apogeu


da economia cafeeira. Após a morte de Vargas, no governo de Juscelino Kubitschek
(1956-1961) e nos subsequentes, no período que abrangeu os anos de 1955 aos
de 1979, houve o momento da industrialização pesada no país. Vargas foi
responsável por esse momento de transição econômica. Getúlio adotou medidas
protecionistas da indústria nacional até os anos de 1937/1939; o aumento em média
da indústria nacional foi de 11% anuais. Isso mudou radicalmente no início da
década de 1940 com a execução das atividades do Birô Panamericano e sua difusão
da cultura norte-americana. A partir de então, Vargas começou a se preocupar com
os gargalos nacionais de transporte e energia, o que o fez adotar uma política

834
financeira conservadora até os anos 1945. Há destaque também ao fato de Vargas
ter, em 1930, baixado um decreto em que exigia que as empresas nacionais
tivessem em seus quadros dois terços de trabalhadores nacionais em uma época
de intensos contingentes imigrantes provocados pelas guerras. Houve, então, a
centralização do poder no plano institucional, a dissolução do Congresso e dos
legislativos estaduais e municipais e as muitas substituições de governantes eleitos
por interventores federais nomeados.
Já no campo ideológico, há a ênfase dos autores para o caráter nacionalista
do governante que defendia o objetivo de ampliar a siderurgia, nacionalizar a
exploração de riquezas naturais, e defender a soberania e complexo problema da
defesa nacional. As atuações de Vargas no campo trabalhista e social foram
intensas. Em 1930, ainda no Governo Provisório, criou o Ministério do Trabalho; em
1937, já no Estado Novo, uma nova lei de sindicalização; em 1940, instituiu o salário
mínimo garantido pelo Estado; em 1942, o imposto sindical compulsório e o SENAI
(Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), subordinado à CNI (Confederação
Nacional da Indústria) - voltada para o aperfeiçoamento profissional dos
trabalhadores brasileiros. O ápice desta política trabalhista se deu em 1943 com a
CLT – Consolidação das Leis de Trabalho.
Fausto destaca as medidas assecuratórias de direitos e o enquadramento
das organizações sindicais em medidas regulatórias, entre 1931 e 1932, foram
estabelecidas as modalidades de concessão de férias, houve a criação da Carteira
Profissional, a regulamentação da carga horária do trabalho no comércio e na
indústria, além do próprio trabalho de mulheres e dos menores. A Justiça do
Trabalho foi prevista na Constituição de 1934, mas sua regulamentação só se deu
em 1941, já no Estado Novo.
Pontuamos neste artigo, brevemente, os episódios, ações, medidas, práticas
culturais, políticas públicas etc. dos contextos histórico-culturais vividos no início do
século XX nos EUA e no Brasil com a finalidade de tentarmos entender o que
ocorreu no momento do contato entre as duas culturas e como se deu a mudança
de paradigma que colocou os EUA e sua forma de viver no centro de nossa
realidade. Como passamos a ser mais como eles e deixamos de ser tão

835
genuinamente nós? Como houve uma transformação em nossa cultura, uma trans-
culturalidade.
Quando tomamos os Estudos Culturais como base teórica de investigação,
nos deparamos com a escorregadia ideia de transculturalismo, que pode ser
entendida, dentre várias outras maneiras, como uma problemática em torno das
culturas contemporâneas em termos de relacionamento, produção de sentido, etc.
O transculturalismo visa a iluminar os gradientes de cultura e as maneiras que os
grupos sociais “criam” e “distribuem” seus sentidos, as formas de interação entre os
grupos sociais e como esses experienciam suas tensões. Em outras palavras, o
transculturalismo enfatiza a natureza transitória da cultura, assim como o seu poder
de transformação. Em particular, ele considera as formas em que as intituladas
“guerras da língua” (language wars) são moldadas e conduzidas historicamente.
Essas guerras criam as condições de estabilidade e de instabilidade, enquanto os
indivíduos e grupos congregam, se comunicam e procuram afirmar seus interesses
materiais e semióticos sobre os demais (LEWIS, 2002: 13).
Poderíamos assumir que as culturas são formadas em torno destas
“guerras”, que operam em meio a todos os níveis sociais e podem ser mais ou
menos severas em termos de resultados semióticos, pessoais e materiais. As
guerras, parte inevitável do engajamento humano, são constituídas por “lutas para
significar” (“struggle to signify”): os indivíduos e os grupos sociais se engajam em
guerras ao tentarem se comunicar, formar comunidades, ao maximizarem
gratificações pessoais e até ao criarem limites (LEWIS, 2002: 13). Em suma, as
estratégias linguísticas são implementadas com a finalidade de constituir
associações pessoais ou sociais, ou com a finalidade de atacarem outros indivíduos
e associações para controlar, gerenciar ou destruir os demais.
O transculturalismo, por essa visão, aceita que a linguagem e a materialidade
interagem continuamente dentro de um locus instável de condições históricas
específicas. Jeff Lewis adverte, no entanto, que o nosso acesso e nosso
conhecimento acerca desse material e de suas condições de produção são
definidos historicamente e necessariamente filtrados pelo nosso grau de
comprometimento com a linguagem e com as “guerras da língua” que ali se

836
instauram. A isso, Lewis acrescenta que as guerras da língua tornam-se mais
fecundas e intensas de acordo com a proximidade entre os grupos sociais, o que
faz com que o transculturalismo se encaixe claramente nos debates atuais acerca
de globalização e internacionalização (LEWIS, 2002: 14).
Devido ao planejamento e ao conhecimento de que para o sucesso da
conquista de um novo mercado deve-se ter um cuidadoso plano de dominação
ideológica, ao fim e ao cabo, pelo menos naquele momento histórico, houve,
praticamente, uma infusão de valore culturais e econômicos norte-americanos,
como também conclui Moura em seu texto:
A boa vizinhança se apresentava como uma avenida larga e de mão
dupla, isto é, um intercâmbio de valores culturais entre as duas
sociedades. Na prática, a fantástica diferença de recursos de difusão
cultural dos dois países produziu uma influência de direção
praticamente única, de lá para cá. (MOURA, 1986: 9).

Concluímos, assim, que as modificações em uma ou mais culturas se dão


por meio do contato, do conhecimento do EU e do OUTRO, da diferenciação do que
é cada um deles e dos embates, ou guerras, em todas as suas feições, que tentam
fazer a sua maneira de ver as coisas, ou a sua forma de significar, prevalecer sobre
as demais. Há uma inevitável tensão no contato entre culturas diferentes, devido
aos arsenais que cada lado contém para impor a sua verdade, a sua maneira de
ser, ver, sentir, enfim, impor sua cultura. Mas há trocas também. Cada lado, sem
embargo, deixa marcas, modificações, maneiras de agir, sentir e pensar na cultura
do outro, formando uma nova cultura, tanto no nível dos indivíduos quanto dos
grupos sociais a que pertencem. Isso é parte inevitável do engajamento humano e
estudar para tentar compreender as origens dessas trocas sócio-econômico-
culturais é algo estimulante, prazeroso, complexo e instigador para os que se
aventuram nessa seara.

Referências Bibliográficas
CINCOTTA, H. Perfil da História dos EUA. (trad. Márcia Biato). Washington: Editora
Departamento de Estado dos EUA, 1994.
FAUSTO, B. Getúlio Vargas. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

837
LEWIS, J. From Culturalism to Transculturalism. In: Iowa Journal of Cultural Studies
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MOURA, G. Tio Sam chega ao Brasil. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SILVA, R. M; CACHAPUZ, P. B.; LAMARÃO, S. (org.) Getúlio Vargas e seu tempo.
Rio de Janeiro: BNDS, 2005.
TOTA, A. P. O Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da
segunda guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

838
A ESCRITA DE SI E OS BASTIDORES DA CRIAÇÃO LITERÁRIA EM CARTAS
A UN JOVEM POETA, DE RAINER MARIA RILKE, E CARTAS A UN JOVEN
NOVELISTA, DE MARIO VARGAS LLOSA: APROXIMAÇÕES

Regina Kohlrausch279

Cartas a un joven poeta, de Rainer Maria Rilke, compõe-se de dez cartas


escritas para Franz Xaver Kappus, responsável por essa publicação após a morte
do poeta, cujo prologo data de 1929. A troca correspondência teve seu início no final
de 1902 e terminou em 1908. Conforme Kappus (1929)280, no final do outono de
1902, quando estava sentado no parque da Academia Militar de Wiener-Neustadt
lendo a obra “Poesias de Rainer Maria Rilke” foi abordado pelo capelão da
Academia, senhor Horacek, quem lhe contou que o poeta estudou no Pritaneo militar
de Sankt-Poelten, concluída a etapa de quatro anos de estudo, ingressou na Escola
militar superior situada em Maehrisch-Weisskirchenna Academia, de onde saiu em
função de sua fragilidade física, indo estudar em Praga 281. Após essa conversa com
Horacek, Kappus decidiu enviar uma carta acompanhada de suas poesias para
Rilke, cuja resposta chegou depois de muitas semanas:

Pasaron largas semanas antes que me llegara la respuesta. La que recibí


al fin llevaba, en sobre azul, sello de Paris y pesaba mucho en la mano. La
letra del sobre, clara, bella y segura, volvía a hallarse en las hojas de la
carta, desde la primera a la última linea. Mi correspondencia con Rilke, que
empezó así, duró hasta 1908. (KAPPUS, 1929 (1980), p. 16)

A troca de correspondência foi encerrada porque Kappus seguiu outros


caminhos que o levaram a afastar-se do poeta. A publicação de dez cartas, depois
a morte de Rilke poeta, segundo Kappus (1929, p. 17), “valen para el conocimiento
de ese universo en que vivió y creó Rainer Maria Rilke; valen para los que crecen y

279 Professora titular da Faculdade de Letras da PUCRS, com atuação na Graduação e Pós-Graduação. Mestre
e Doutora em Letras, Teoria da Literatura, pela PUCRS. Realizou se estágio pós-doutoral na Universidade de
Vigo, Espanha, em 2010-2011, com bolsa CAPES-Fundación Carolina. Desenvolve projetos de pesquisa junto
aos DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS e desde 2012 coordena o Grupo de
Pesquisa Escritores Sulinos.
280
Apresentação da primeira edição da obra Cartas a un jovnm poeta, datada “Berlim, junio de 1929”, que
acompanha a edição traduzida por José María Valverde, da Alianza editorial de 1980.
281
KAPPUS, 1929 (1980), p. 15-16.

839
se forman, para los que mañana se formarán. Pero cuando un príncipe va a hablar,
hay que hacer silencio”.
A sequência organizada começa com a carta do dia 17 de fevereiro de 1903,
situada em Paris, a primeira, seguida da carta do dia 05 de abril, a segunda, escrita
em Viareggio, Pisa, Itália, em resposta à carta enviada por Kappus em 24 de
fevereiro de 1903; a terceira carta é de 23 de abril também em resposta à carta
recebida, enviada também da Itália; a quarta carta data de 16 de julho de 1903,
situada “provisoriamente em Worpswede (Bremen)” respondendo à carta do dia 02
de maio de 1903; a quinta carta é de 29 de outubro de 1903, escrita em Roma,
respondendo à carta de 29 de agosto; a sexta carta é do dia 23 de dezembro de
1903, também de Roma, escrita com a intenção de desejar Feliz Natal e Ano Novo;
a sétima carta é de 14 de maio de 1904, escrita também em Roma, respondendo a
uma carta anterior, sem mencionar a data, cujo atraso deve-se ao estado de saúde
de Rilke; a oitava carta é de 12 de agosto de 1904, escrita em Borgeby Gard, Suécia,
com a intenção de falar ao senhor Kappus e confortá-lo sobre algo não muito claro
no texto; a nona carta é de 04 de novembro de 1904, escrita em Furuborg, Suécia,
em resposta a uma carta anterior, bastante curta, porque o remetente diz estar
cansado porque já escreveu muitas cartas nesse dia; a décima e última carta
publicada é de 26 de dezembro de 1908, também respondendo a uma carta anterior,
felicitando a Kappus pelo local onde se encontra naquele ano. Destaca-se que o
espaçamento de quatro anos entre a nona e a décima carta publicadas não tem
nenhuma nota explicativa sobre tal situação, mas é possível inferir que esse
distanciamento se deve não porque ocorreu uma pausa na troca de cartas, mas pela
própria seleção do conjunto de correspondência recebida por Franz Xaver Kappus,
ou seja, ele publicou algumas e não o conjunto. Salienta-se também que estamos
diante somente de uma correspondência recebida e não da enviada, fato este que
não prejudica a compreensão do conteúdo da carta enviada, pois, como é próprio
do gênero carta, há as referências sobre a carta recebida ou há menções que
permitem inferir o conteúdo da correspondência anterior.
Cartas a un joven novelista, de Mario Vargas Llosa, publicada em 2011,
compõe-se de doze cartas, todas elas tituladas, sem data de localização,

840
antecedidas de um prólogo e finalizadas com um índice onomástico de autores.
“Una discreta autobiografia”, que abre a sequência de cartas, Vargas Llosa
esclarece:

Éste no es un manual para aprender a escribir, algo que los verdaderos


escritores aprenden por sí mismos. Es un ensayo sobre la manera como
nacen y se escriben las novelas, según mi experiencia personal, que no
tiene por qué ser idéntica ni siquiera parecida a la de otros novelistas.
(VARGAS LLOSA, 2011, p. 09)

Llosa explica ainda que essa obra foi escrita “a sugerencia de un editor que
se proponía publicar una colección en la que practicantes veteranos de diversas
disciplinas se dirigían a un supuesto discípulos para confiarle los secretos de suo
oficio” (2011, p. 09). No entanto, o projeto não se efetivou, mas Vargas Llosa gostou
da ideia porque “me llevó a reflexionar sobre o que venía haciendo desde hacía
muchos años – contar historias – y éste es el resultado” (Ibidem). Ao concluir sua
apresentação, afirma: escribí todos estos capítulos en pocos meses, aprovechando
notas y apuntes que me habían servido para dar conferencias o seminarios sobre
mis autores favoritos. Se trata, pues, de un libro muy personal y, en cierto modo, de
una discreta autobiografia” (VARGAS LLOSA, p. 1-10).
Convém destacar que ao afirmar que “se trata de una discreta autobiografia”,
Llosa autoriza que se leia e se caracterize seu texto como autobiográfico, ou seja,
as experiências relatadas nas cartas são originárias de sua experiência diária como
escritor, confirmando a possibilidade de se ler a correspondência como “escrita de
si”, porque revela o próprio eu nessa escrita. Por outro lado, no início do texto, ao
afirmar que o livro é “un ensayo” sobre a maneira como nascem e se escrevem os
romances, de acordo com sua experiência pessoal, sugere um caráter mais
acadêmico sobre seu processo de criação literária, seguindo, mesmo assim, o
caráter confessional, ou seja, a escrita de si.
As cartas que compõe o livro, da primeira à última, doze ao todo, estão
direcionadas a um amigo “querido” ou “estimado”, tendo como ponto de partida a
carta recebida anteriormente, isto é, são cartas respostas encerradas sempre com
“un abrazo”, “un abrazo y hasta pronto, espero”, “un cordial saludo y hasta pronto”,

841
“un fuerte abrazo”, “hasta pronto”, “un abrazo y hasta la próxima”, “mucha suerte”,
revelando uma relação cordial entre emissor e destinatário.
Partindo dessa apresentação das obras, a presente comunicação volta-se
para a análise comparativa dos textos, mais especificamente para a primeira carta
de cada um dos livros, visando identificar os processos intertextuais, com destaque
às diferenças e às semelhanças no que se refere ao processo de criação literária,
levando em conta o período de produção e o destinatário das respectivas cartas.
Tal proposição tem como base o texto “A escrita de si”, de Michel Foucault (1969),
e a possibilidade de estudo da correspondência a partir de três perspectivas
sinalizadas por Marcos Antonio de Moraes (2007) em “Epistolografia e crítica
genética”.
Para Foucault (2006, p. 149-159), a carta “é algo mais do que um
adestramento de si próprio pela escrita, por intermédio dos conselhos e opiniões
que se dão ao outro”, porque “ela constitui também uma certa maneira de cada um
se manifestar a si próprio e aos outros”. Afirma ainda que a carta, “faz o escritor
“presente” àquele a quem a dirige”, porque escrever é “mostrar-se, dar-se a ver,
fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”, ela é, por isso, “simultaneamente um
olhar que se volta para o destinatário e uma maneira de o remetente se oferecer ao
seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Por meio dela, “abrimo-nos ao olhar dos
outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus interior”. Seguindo tal
raciocínio, Foucault explica que o trabalho que a carta opera sobre o destinatário,
que também é efetuado sobre o escritor pela própria carta que envia, implica uma
“introspecção” entendida como “uma abertura de si que se dá ao outro”.
No âmbito do estudo do gênero epistolar, Moraes (2007, p. 30), diz que a
correspondência de escritores, artistas plásticos, músicos e intelectuais das
diversas áreas de conhecimento abre-se para “três perspectivas de estudo”. A
primeira possibilidade de exploração do gênero epistolar consiste em “recuperar na
carta a expressão testemunhal que define um perfil biográfico” porque, segundo
Moraes, “confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um
artista, contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que
ajudam a compreender os meandros da criação literária”. A segunda perspectiva é

842
a que oportuniza “apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um
determinado período”, porque “as estratégias de divulgação de um projeto estético,
as dissensões nos grupos e os comentários acerca da produção contemporânea
aos diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística tem
raízes profundas nos ‘bastidores’, onde, muitas vezes, situam-se as linhas de força
do movimento”, explica Moraes. A terceira possibilidade interpretativa é a que “vê o
gênero epistolar como ‘arquivo de criação’, espaço onde se encontram fixadas a
gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião
do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo a sua eventual
reelaboração”.
Como dito anteriormente, as cartas publicadas em cada um dos livros têm
como ponto de partida uma carta recebida, ou seja, trata-se de uma carta-resposta.
Em Rilke, a resposta começa “Su carta me ha alcanzado hace sólo pocos días”,
seguida de agradecimento pela confiança depositada e de uma advertência sobre a
dificuldade de avaliar adequadamente os versos enviados porque

Las cosas no son tan todas tan palpables y decibles como nos querrían
hacer creer casi siempre la mayor parte de los hechos son indecibles, se
cumplen en un âmbito que nunca ha hollado una palabra; y lo más indecible
de todo son las obras de arte, realidades misteriosas, cuya existencia
perdura junto a la nuestra, que desaparece (p. 21).

Feita essa advertência, Rilke passa a comentar os “versos” enviados:

Sus versos no tienen una manera de ser propia, pero sí son callados y
escondidos arranques hacia lo personal. Con máxima claridad lo percebo
esto en la última poesía, Mi alma. Ahí, algo propio quiere llegar a ser
palabra y melodía. Y en la hermosa poesía A Leopardi crece quizá una
especie de parentesco com aquel gran solitario. Apesar de eso, estos
poemas todavís no son nada por sí mismos, nada independiente, ni aun el
último y el dedicado a Leopardi. La amable carta que usted acompaña no
deja de explicarme algunos defectos que noté en la lectura de sus versos,
sin poder darle su nombre propio. (p. 22)

Conforme citação, ao mesmo tempo que se posiciona sobre os poemas


enviados, mostrando sua inconsistência enquanto expressão de sentimento,
assume para si, atendendo ao pedido – “puesto que usted me há permitido
aconsejarle” –, o papel de conselheiro, apesar da convicção de que “nadie puede

843
aconsejarle ni ayudarle, nadie”, apresentando sugestões sobre onde buscar ou
encontrar o conteúdo poético pretendido. A primeira coisa a fazer é buscar dentro
de si a necessidade de escrever:

Hay sólo un medio. Entre en usted. Examine ese fundamento que usted
llama escribir; ponga a prueba si extiende sus raíces hasta el lugar más
profundo de su corazón; reconozca si se morirá usted si se le privara de
escribir. Esto, sobre todo: pregúntese en la hora más silenciosa de su
noche: ¿debo escribir? Excave en sí mismo, en busca de una respuesta
profunda. (p. 22).

Se resposta a essa pergunta for positiva, Rilke aconselha, então, seguir em


frente e construir sua vida “según esa necesidad: su vida, entrando hasta su hora
más indiferente y pequena, debe ser un signo y un testimonio de ese impulso” (p.23).
Sugere, por isso, que seu destinatário, senhor Kappus, se aproxime da natureza e
tente “como el primer hombre, decir lo que ve y lo que experimenta y ama y
pierde”(p. 23). Aconselha ainda que não escreva poesias de amor e que se afaste
dessas formas que são habituais porque “son las más dificiles, porque hace falta
una gran fuerza madura para dar algo propio donde se establecen en la multitud
tradiciones buenas y, en parte, brillantes”. Ao mesmo tempo em que orienta para
afastar-se dessas formas e desses temas gerai, orienta voltar-se para aquilo que a
sua vida cotidiana oferece:

describa sus melancolías y deseos, los pensamientos fugaces y la fe en


alguna belleza; descríbalo todo con sinceridad interior, tranquila, humilde,
y use, para expresarlo, las cosas de su ambiente, las imágenes de sus
sueños y los objetos de su recuerdo. Si su vida cotidiana le parece pobre,
no se queje de ella; quéjese de usted mismo, dígase que no es bastante
poeta como para conjurar sus riquezas: pues para los creadores no hay
pobreza ni lugar pobre e indiferente. (p. 23).

Na sequência, Rilke insiste também na recuperação do passado, buscando


“hacer emerger las sumergidas sensaciones de ese ancho pasado; su personalidad
se consolidará, su soledad se ensanchará y se hará una estancia en penumbra, en
que se oye pasar de largo, a lo lejos, el estrépito de los demás”, (p. 24). Para ele,
se desse olhar para dentro de si se transformar em versos não há necessidade de
“preguntar a nadie si son buenos versos”, porque “una obra de arte es buena cuando
brota de la necesidad. En esa índole de su origen está su juicio: no hay outro”, (p.24).

844
Reitera, então, que ele não saberia dar outro conselho a não ser este: “entrar en sí
mismo y examinar las profundidades de que brota su vida: en ese manantial
encontrará usted la respuesta a la pregunta si debe crear. (...) Pues el creador debe
ser un mundo para sí mismo, y encontrarlo todo en sí y en la naturaleza a que se ha
adherido”, (p. 24).
Em direção ao fechamento da carta, Rilke comenta sobre a possibilidade de
uma resposta contrária, ou seja, se depois de voltar-se para dentro de si e perceber
que poderia viver sem escrever, a viagem não terá sido em vão, porque a partir daí
“su vida encontrará caminhos propios, y le deseo que sean buenos, ricos y amplios,
mucho más de lo que puedo decir”. Para terminar, escreve Rilke,

sólo querría aconsejarle todavía que vaya creciendo tranquilo y serio a


través de su evolucción: no podría producir un destrozo más violento que
mirando afuera y esperando de fuera una respuesta a preguntas a las que
sólo puede contestar, acaso, su más íntimo sentir en su hora más
silenciosa. (p. 25).

Antes de se despedir de Kappus, Rilke ainda comenta sobre o professor


Horacek: “conservo hacia ese sabio, tan digno de afecto, un gran respeto y un
agradecimiento que dura a través de los años”; informa que está devolvendo os
versos enviados e agradece “la grandeza y la cordialidad de su confianza”, graças
a qual, “mediante esta respuesta sincera, dada según mi mejor saber, he tratado de
hacerme un poco más digno de lo que, como desconocido, soy realmente” (25).
Da mesma forma que Rilke, Vargas Llosa, na primeira carta, intitulada
“Parábola de la solitaria”, começa dizendo

Su carta me ha emocionado, porque, a través de ella, me he visto yo mismo


a mis cartoze años, en la grisácea Lima de la ditadura del general Odría,
exaltado con la ilusión de llegar a ser un día un escritor, y deprimido por no
saber qué pasos dar, por dónde comenzar a cristalizar en obras esa
vocación que sentía como un mandato perentorio: escribir historias que
deslumbraran a sus lectores como me habían deslumbrado a mí las de
esos escritores que empezaba a instalar en mi panteón privado: Faulkner,
Hemingway, Malraux, Dos Passos, Camus, Sartre.” (VARGAS LLOSA,
2011, p. 11).

Afirma que sempre teve vontade de escrever para alguns deles e pedir
orientação sobre como ser escritor, mas que nunca escreveu

845
por timidez, o, acaso, por esse pesimismo inhibitorio – ¿para qué
escribirles, si sé que ninguno se dignará a contestarme? – que suele
frustrar las vocaciones de muchos jóvenes en países donde la literatura no
significa gran cosa para la mayoría y sobrevive las márgenes de la vida
social, como quehacer casi clandestino (VARGAS LLOSA, 2011, p. 11).

Após explicar porque nunca escreveu aos autores, diz ao seu interlocutor que
ter escrito a ele é um bom começo para a aventura que ele almeja empreender e da
qual espera, mesmo sem ter dito na carta, tantas maravilhas. Alerta ainda para que
“no cuente demasiado con ello, ni se haga muchas ilusiones en cuanto al éxito”,
porque, segundo Llosa, quien ve en el éxito el estímulo esencial de su vocación es
probable que vea frustrado su sueño y confunda la vocación literaria con la vocación
por el relumbron y los beneficios económicos que a ciertos escritores (muy
contados) depara la literatura (p. 12).
Na sequência, esclarece que entre as muitas incertezas, tem como certo que
o escritor “siente íntimamente que escribir es lo mejor que le ha pasado y puede
pasarle, pues escribir significa para él la mejor manera posible de vivir, con
prescindencia de las consecuencias sociales, políticas o económicas que puede
lograr mediante lo que escribe (Ibidem). Prossegue falando sobre a vocação como
ponto de partida para a produção artística, aproveitando para refletir sobre essa
predisposição ao exercício literário e o momento da decisão de tornar-se escritor,
como deve ser o caso do seu correspondente:

ése es el momento que usted vive ahora: la difícil y apasionante


circunstancia em que debe decidir si, además de contentarse com fantasiar
uma realidade fictícia, la materializará mediante la escrcitura. Si decide
hacerlo, habrá dado um passo importantíssimo, desde luego, aunque ello
no le garantisse aún nada sobre su futuro de escritor. Pero empeñarse em
serlo, decidirse a orientar la vida propia em función de esse proyecto, es
ya uma manera – la única posible – de empezar a serlo (VARGAS LLOSA,
2011, p. 14-15).

Segue comentando sobre esse assunto no decorrer de duas páginas


trazendo alguns exemplos para, então, retomar a carta recebida: “volvamos a lo
específico. Usted ha sentido en su fuero interno esa predisposición y a ella ha
superpuesto un acto de voluntad y decidido dedicarse a la literatura. ¿Y ahora, qué?,
que serve para que ele dê continuidade ao tema da vocação, retomando uma
história de seu amigo José María e reiterando, a partir de citações diversas, seu

846
ponto de vista e sugerindo leituras que poderão auxiliar seu destinatário, entre elas
a correspondência de Flaubert, da mesma forma que ajudou a ele quando escrevia
seus primeiros livros.
Para finalizar, chamando seu correspondente de “mi amigo” se despede,
porque “esta carta se ha prolongado más de lo recomendable, para un género – el
epistolar – cuya virtud principal debería ser precisamente la brevedad, así que me
despido. Un abrazo.
Levando, portanto, em consideração as duas cartas apresentadas acima,
verifica-se a presença da intertextualidade entre as duas obras: há um texto primeiro
que serve de modelo para o texto segundo, no sentido não de rebaixar o modelo,
mas de validar um formato, neste caso, o gênero epistolar. Ao usar como ponto de
partida a resposta a uma carta recebida, ambos remetentes assumem para si a
posição de orientador ou conselheiro sobre a criação literária, mais especificamente,
no que se refere à decisão de ser um escritor: Rilke é mais direto, porque diz que a
primeira coisa a fazer é refletir se realmente esse é o desejo, enquanto que Llosa
diz que sabe que seu correspondente está passando por este momento decisivo e
que depende dele esta decisão. Tal postura está em consonância com a afirmação
de Foucault de que a carta constitui uma forma de cada um manifestar a si próprio
e aos outros, ou seja, ao sugerir a reflexão sobre a importância da escrita para o
outro, serve como reforço para o próprio convencimento e validação daquilo que
está fazendo. Confirma também sua presença para aquele a quem se dirige
oferecendo-se ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz.
Convém, salientar, no entanto, que em nenhuma das cartas há a revelação
da vida individual, mas a expressão acerca do ato de escrever, em concordância
com a possibilidade de explorar o gênero epistolar como um modo de compreender
e/ou conhecer os meandros da criação literária do(s) autor(es), postulado por
Moraes.
No que concerne às diferenças entre Rilke e Vargas Llosa, partindo apenas
da primeira carta, pode-se apontar o fato de que Rilke está mais envolvido com a
avaliação dos textos ou dos versos enviados, com o aconselhamento sobre a
importância da reflexão para definir se é isso que realmente seu destinatário almeja

847
como futuro de vida e sobre onde buscar a matéria para a sua obra poética. Vargas
Llosa, por outro lado, assume um papel mais formal, no sentido de apresentar uma
série de referências para sinalizar, como uma das condições, a vocação para
ingressar ou seguir a carreira de escritor, atendendo aquilo que é seu propósito com
esse livro: um ensaio sobre a maneira como nascem e se escrevem os romances,
de acordo com sua experiência pessoal.
Nesse sentido, à guisa de uma conclusão parcial, pode-se dizer que a carta
de Rilke, publicada por decisão do destinatário das cartas, é mais pessoal, é mais
pontual e nomeadamente direcionada, pois seu correspondente é um sujeito real,
enquanto que Llosa, cujo texto foi formatado, a partir de uma decisão pessoal, no
gênero epistolar, como alternativa para relatar seu processo de criação literária e
assim assumir para si um papel de conselheiro literário, criando uma espécie de
“arquivo literário”, sugerido por Moraes, como espaço onde se encontram fixadas
processos e etapas de produção literária, situando-se, por isso, numa relação
menos pessoal com seu destinatário, um sujeito desconhecido, na linha de um
Leitor-Modelo, postulado por Umberto Eco, criado exclusivamente para essa obra.
Ao proceder dessa forma, ou seja, como um formato para escrever sobre os
bastidores da criação literária, Llosa atualiza e valida o gênero epistolar como
espaço da escrita de si.

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849
A IDENTIDADE BRASILEIRA NO DISCURSO PORTUGUÊS DO
MORGADO DE MATEUS

Renata Ferreira Munhoz 282

Introdução

O período entre os anos de 1765 e 1775, em que Dom Luís António de Sousa
Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, atuou como Governador e Capitão-General
da capitania de São Paulo, representa importante marco para a configuração da
identidade linguística brasileira. Sua gestão administrativa tem grande relevância
por dois motivos precípuos. Em primeiro lugar, sua nomeação a Governador visava
a restaurar a autonomia política da capitania de São Paulo, extinta desde 1748. Em
segundo lugar, a administração do Morgado de Mateus visava a aplicar a política
pombalina em terras brasileiras. Tal política portuguesa foi a responsável pela
implantação oficial da Língua Portuguesa no Brasil colonial, em detrimento da
“Língua Geral”, empregada por grande parte da população no período.
A adoção da Língua Portuguesa foi, portanto, o resultado de uma medida
política, com vistas à manutenção do colonialismo na América Portuguesa. Esse
esforço administrativo deve ser entendido mais pelo viés econômico, uma vez que
o Brasil representava a principal fonte de riquezas da metrópole portuguesa, do que
cultural. Portugal, no final do século XVIII, encontrava-se em situação de decadência
econômica devido do ouro brasileiro que já não era tão abundante na região mineira.
Para tratar da implantação oficial da Língua Portuguesa na capitania de São
Paulo, serão trabalhados documentos administrativos originais trocados entre o
Morgado de Mateus, enquanto representante da Coroa portuguesa no ultramar, e
seus superiores no Reino.

282 FFLCH/USP

850
Os primórdios da identidade linguística brasileira

Parte-se, pois, da análise de documentação política oficial para compreender


a construção da identidade linguística na colônia do Brasil. Destaca-se o fato de o
discurso setecentista ter por proposta precípua veicular os ditames monárquicos e,
por consequência, legitimar as ideologias subjacentes a esses ditames.
Consideram-se originais todos os documentos controlados pelos autores
intelectuais. Para melhor ilustrar o trâmite documental, toma-se como exemplo uma
carta produzida pelo Governador de São Paulo a ser enviado ao primeiro Ministro
do Reino, o Marquês de Pombal. Primeiramente, o Morgado de Mateus ditaria seu
texto a um de seus secretários ou escrivães profissionais empregados em sua
Secretaria de governo. Nesse sentido, o Morgado seria o “autor intelectual”, aquele
que definiu o conteúdo semântico a ser veiculado na correspondência. Ao passo
que o responsável pela grafia manual do documento seria o seu “autor material”.
Embora a imprensa já fosse uma realidade, as correspondências
administrativas permaneciam manuscritas. Ademais, até a vinda da Família Real ao
Brasil, era proibida a produção tipográfica nas colônias portuguesas. É certo que um
texto manuscrito produzido pelo punho de um terceiro pode conter influência da
língua do escriba no discurso redigido. No entanto, a assinatura autógrafa do autor
intelectual denota sua aquiescência em relação ao conteúdo e à forma como o
discurso seria endereçado ao interlocutor. No caso em análise, a assinatura do
Morgado de Mateus legitimava as informações que seriam transmitidas na Europa.
Vale ressaltar que, diferente da maioria dos outros governantes, o Morgado
de Mateus produziu muitos documentos grafados por seu próprio punho. Essa
prática pode demonstrar tanto a tentativa de comprovar sua atividade na capitania,
reforçando seu ethos como Governador; quanto comprovar sua tese, de que havia
poucos funcionários hábeis à arte de debuxar na região. O fato é que seu zelo de
acompanhar a produção escrita de sua Secretaria de perto permitia que mantivesse
o controle dos discursos veiculados. Evitavam-se, com isso, mal-entendidos
desnecessários e prejudiciais a sua gestão. Comprava-se assim, que “o controle
social se dá por meio do controle do discurso e de sua produção, afinal quanto

851
menos poderosa for uma pessoa, menos o seu acesso às formas de escrita.” (VAN
DIJK, 2012, p. 44).
Cabe retomar brevemente a contextualização histórica mencionando que, de
acordo com Salgado (1985, p. 45), na segunda metade do século XVIII a economia
portuguesa apresentava quadro de decadência desde 1762, como consequência da
crise do ouro brasileiro. Assim, durante o reinado de D. José I, Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, assumiu como primeiro ministro a
administração colonial portuguesa, em busca de fortalecer a estrutura militar e
econômica colonial. Como menciona Bellotto (2007, p. 24), São Paulo sobrevivia a
um enfraquecimento demográfico, econômico e político, resultante da perda das
zonas mineiras e de sua subordinação desde 1748 à capitania do Rio de Janeiro.
Por isso, em 1765, teve restaurada sua autonomia com a nomeação do Morgado de
Mateus para Governador, a fim de combater o domínio espanhol, propor a
militarização, a exploração territorial e o fomento patente na política econômica e na
urbanização.
Dessa forma, o Morgado de Mateus governou São Paulo entre os anos de
1765 e 1775 e, apoiado nos princípios racionalistas em voga no seu tempo, além de
exímio administrador de seus bens pessoais, foi um exemplo de esforço na
ordenação e na descrição documental, o que ainda hoje se reflete na maneira e no
estado de conservação dos documentos arquivados.
O domínio da escrita representava o poder em um tempo em que o analfabetismo
era fator dominante na sociedade. “Quando quase toda a Europa era iletrada,
dividida e subalimentada, não escapava a ninguém que escrever é prescrever;
instruir, conduzir; e transmitir, submeter.” (DEBRAY, 1983, p. 23). Devido ao
caráter oficial e à formação dos interlocutores (o Morgado de Mateus teve sua
formação, desde a infância, no Castelo de Viana sob a influência da linhagem
nobre e da tradição militar do avô materno, D. Luís António de Sousa Botelho
Mourão), a documentação administrativa mantém a marca da formalidade,
exigida na esfera da correspondência pública, com fórmulas diplomáticas e
tratativas honoríficas. Isso porque, segundo Van Dijk (2012, p. 119), além do

852
status social garantido pelas posições políticas, a base de poder é representada
pelos recursos simbólicos do acesso à comunicação e ao discurso público.
Sendo assim, do mesmo modo que o Morgado de Mateus, o Conde de Oeiras
empregava a norma culta da Língua Portuguesa com vistas à “hipercorreção
estratégica daqueles que se ‘colocam na altura’, tirando um proveito suplementar
da distância que eles adquirem, com a estrita correção” (BOURDIEU, 1983, p. 167).
Como critério adicional, a exemplo dos demais governantes, empregava a polidez,
entendida “como um conjunto de normas sociais, estabelecidas por cada sociedade,
que regulam o comportamento adequado de seus membros, proibindo algumas
formas de conduta e favorecendo outras” (MARCOTULIO, 2008, p. 61).
O notável reforço conferido pelo Morgado de Mateus ao estabelecimento da
Língua Portuguesa na região configurou-se, pois, de acordo com as medidas
políticas impostas por seu superior, o Marquês de Pombal, homem forte do reinado
de Dom José I. Diluída na proposta de civilização dos índios do Diretório283
(ALMEIDA, 1997) está a obrigatoriedade da Língua Portuguesa284 em todo o
território do Brasil, a chamada “América Portuguesa”.
Para tanto, o primeiro parágrafo do Diretório orienta que o Diretor responsável
pelo trabalho de “aldeamento” dos índios teria de ter, dentre outras características
como “bons costumes, zelo, prudência e verdade”, a ciência da língua.
O conhecimento da Língua Portuguesa representava necessidade tão
impositiva no combate ao uso da “língua geral” 285, que se abria uma exceção de
gênero:

283
“Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade
não mandar o contrário”, publicado em 3 de maio de 1757 e transformado em lei em 17 de agosto de 1758.
Como lei, vigorou até 1798 a fim de orientar o comportamento dos colonizadores em relação aos indígenas.

284
“[...] será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da
Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às
Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas
Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado
em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado.”
(Parágrafo 6).

285
De acordo com Freire (2004), a “língua geral” representou o que pode ser entendido como o “dialeto
colonial” da América Portuguesa. Seria um conjunto de línguas oriundas do tupi-guarani com traços regionais
específicos.

853
No caso porém de não haver nas Povoações Pessoa alguma, que possa
ser Mestra de Meninas, poderão estas até a idade de dez anos serem
instruídas na Escola dos Meninos, onde aprenderão a Doutrina Cristã, a
ler, e escrever, para que juntamente com as infalíveis verdades da nossa
Sagrada Religião adquiram com maior facilidade o uso da Língua
Portuguesa. (Parágrafo 8 do Diretório)

Em detrimento dos escravos africanos286, que permaneciam considerados


seres inferiores aos brancos, o Diretório propunha uma integração dos índios aos
colonos portugueses.
O “problema do confronto linguístico” (CHARAUDEAU, 2006, p. 115) não
consta de forma explícita na documentação oficial administrativa, uma vez que os
interlocutores possuem o “direito à palavra, isto é, à linguagem legítima como
linguagem autorizada, como linguagem de autoridade” (BOURDIEU, 1983, p. 161).
Por serem os documentos manuscritos, segundo Silva (1989, p. 41), fiéis
“informantes” para a depreensão de dados linguísticos e culturais de um
determinado período, emprega-se como ponto de partida os estudos referentes à
Filologia, que visam à preservação fidedigna dos manuscritos. Primeiramente, a
função substantiva de manutenção do documento será empregada por meio da
apresentação de seu texto original. A seguir, as breves análises utilizarão as funções
adjetiva, com a retomada de dados do texto, e a transcendente, com observações
que extrapolam o conteúdo veiculado.
Trata-se da carta número 2505 (ARRUDA, 2002), datada de 7 de julho de
1770, enviada pelo Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras, posterior Marquês de
Pombal, comunicando ter sido obrigado a despedir os criados, tendo comprado dois
mulatos para os substituir. Pede opinião sobre o que fazer com tais escravos quando
regressasse à corte. Explica que se os vender, ficaria sem ter quem o servisse. No
entanto, se os levar, perdê-los-ia igualmente, uma vez que os escravos quando
ficavam forros não gostavam de servir mais ao seu senhor.

286
“[...] escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo talvez com a infâmia, e vileza deste nome,
persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a
respeito dos Pretos da Costa da África. E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios
este abominável abuso, seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns homens, que o
mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo
o emprego honorífico: Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma chame Negros aos
Índios, nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam” (Parágrafo 10).

854
Para que a cultura e língua presentes nos documentos manuscritos possam
ser preservadas, empregam-se os conhecimentos filológicos em busca da
transcrição que, segundo Cambraia (2005, p. 19), “é uma maneira de resguardar a
memória de uma sociedade através da restituição, conservação e fixação dos textos
escritos ao longo do tempo”. Assim, no intuito de permitir e facilitar a leitura da carta
manuscrita selecionada para análise, apresenta-se sua edição “semidiplomática”
justalinear, em que se mantém a grafia original, desenvolvendo-se as abreviaturas,
ao lado de sua reprodução fac-similar:
Illustríssimo eExcelentíssimoSenhor
AVossaExcelência henotorio, como prevarica=
raõ os meos creados depois que vim para estaCapitania,
evendome pre
cizado aos apartar do meo Serviço, fiquei na necessidade de
comprar
dous mulatos, para me servirem na Cuzinha, ena Copa; naõ
será di=
ficultoso de expressar aVossaExcelência, o quanto me
custaria aos fazer apren=
der nestas alturas paraficarem habeis depoder remediar
aquella falta:
hoje estouja acostumado com elles, enaõ hefacil achar outros
creados, que
substituaõ este ministerio, por que absolutamente os naõ ha,
por serem os
comeres, deque se alimentaõ nestas terras, muito diferentes
dos que se uzaõ
nesse Reyno
Nestes termos ExcelentíssimoSenhor me heide
achar muito imbaraçado,
na occasiaõ, em que VossaExcelência quizer mandarme
recolher; porque naõ haven=
do outros creados, para que apelar, sevender estes escravos,
fico sem ter quẽ
mesirva, ese os levar na minha comitiva, perderei igualmente
os mesmos
escravos, eo seoServiço; porque de ordinario, ficandoforros,
nunca gostaõ
deservir aseo Senhor.
SoVossaExcelência nesta duvida he quem pode dar algu͂
remedio por aquelle modo, que lheparecer, naõ servirá de
exemplo, nem
desconveniente aoReal Serviço, nem contrario as piissimas
intençoens de
Sua MagestadeDeos guarde aVossaExcelência muitos
annos Saõ Paulo a7 deIu=
lho de1770
Illustríssimo e ExcelentíssimoSenhor Conde deOeyras
DeVossaExcelência
Cativo emenor Creado DomLuis Antonio deSouza

A análise da carta será feita a partir dos pressupostos teóricos da Teoria da


Avaliatividade, formulada por Martin e White (2005) com base na Linguística
Sistêmico Funcional (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). A Teoria subdivide-se

855
em três tópicos principais com ramificações secundárias: Atitude (Afeto,
Julgamento e Apreciação), Gradação (Força e Foco) e Engajamento (Expansão
e Contração dialógica). Ao longo da breve análise discursiva, o texto será
mapeado nessas categorias a fim de que fim de que se compreendam aspectos
da ideologia vigente no momento da produção documental, bem como a
perspectiva da (inter)subjetividade no discurso. Entende-se “ideologia” de acordo
com Van Dijk (2012, p. 28), como o conjunto dos sistemas de representações
mentais socialmente partilhadas que controlam os modelos mentais de cada
indivíduo. A intersubjetividade, por sua vez, “mostra a relação estabelecida entre
o sujeito enunciador e um outro sujeito em relação ao conteúdo proposicional.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 336).
Após a fórmula de saudação inicial com a tratativa honorífica “Ilustríssimo e
Excelentíssimo Senhor”, o autor inicia seu texto com o Engajamento de
Contração dialógica de Afirmação “A Vossa Excelência é notório” a introduzir sua
tese. A ordem indireta da proposição comprova o destaque atribuído ao
interlocutor, colocando-o à frente do que será dito. Por meio da afirmação, o autor
evita posicionamentos contrários de seu leitor, demonstrando que seu dizer é
algo evidente e verificável na realidade.
Apesar da grafia do verbo “prevaricar” aparentando significar futuro, seu tempo
é o pretérito, indicando que seus criados passaram a comportar-se dessa forma
após sua vinda à capitania. Como pressuposto está o fato de que antes
comportavam-se bem e que as condições do novo local teriam alterado essa
postura.
As atitudes dos antigos criados justificaram a compra de dois escravos a quem
afirma ter tido trabalho em ensinar os ofícios na cozinha. Por meio do
Engajamento de Contração dialógica de Negação, “naõ é fácil achar outros
criados que substituam este ministério”, invoca a possibilidade de substituição
para comprovar sua dificuldade. Explica, a seguir, o motivo da dificuldade:
“porque absolutamente os não há, por serem os comeres de que se alimentam
nestas terras muito diferentes dos que se usam nesse Reino”. Novamente fecha
o escopo da crença de existirem outros escravos capazes de trabalharem na

856
cozinha pela Negação “os não há”. O autor emprega o termo “absolutamente”,
Gradação de Foco, em que prototipifica os habitantes, atribuindo-lhes o
Julgamento negativo de Capacidade como não aptos a cozinharem da maneira
desejada.
Entretanto, a culpa não é de todo atribuída aos habitantes. Afinal, são “os
comeres, de que se alimentam nestas terras, muito diferentes dos que se usam
nesse Reino.” A marca de ideologia evidencia-se pela comparação entre a forma
como se alimentam na capitania e no Reino. Mesmo sem juízo explícito de valor,
a Apreciação “diferentes” intensificada pela Gradação de Força “muito” denota o
patamar superior em que a alimentação dos portugueses é colocada.
O autor vislumbra que no futuro, quando tiver de retornar a Portugal, achar-se-á
“muito embaraçado”. Essa marca de Julgamento de Estima Social negativo que
o autor atribui a si mesmo não é de sua responsabilidade. O motivo da situação
é o conflito que observa em relação a seus escravos: “não havendo outros
creados para que apelar, se vender estes escravos, fico sem ter quem me sirva;
e, se os levar na minha comitiva, perderei igualmente os mesmos escravos e o
seu serviço”. Ao ratificar a ausência de criadagem na capitania, reforça a
dificuldade de empreender a longa viagem de volta a Portugal sem ter criados.
Apresenta o motivo central de sua carta, o pedido de conselho sobre como agir
com seus escravos. Tratava-se das possibilidades de vendê-los aqui e viajar sem
criados, ou manter o investimento e os perder quando se tornassem livres ao
adentrarem em Portugal, onde a escravidão fora abolida em 1761. A dúvida
fundamenta-se no Julgamento de Estima Social negativo atribuído, mais uma
vez, aos escravos: “ficando forros, nunca gostam de servir a seu Senhor.” Nota-
se que ao tornarem-se “forros”, seus antigos “donos” não seriam mais seus
“senhores”. Apesar disso, o autor organiza sua proposição de modo a
subentender que permaneceria senhor de seus antigos escravos, atribuindo a
eles a falta de vontade de servir pelo Julgamento de Estima Social de Tenacidade
negativo. Embora o conceito não seja afirmado de maneira categórica, sendo
antecedido pela ponderação “de ordinário”, indicava-se a alta probabilidade do
fato. Essa probabilidade é reforçada pelo termo “nunca” a indicar o grau mais

857
baixo da frequência. Dessa maneira, os escravos nunca gostavam de
permanecer servindo por livre vontade. A ideologia escravocrata evidencia-se,
pois, nesta carta.
Encerra-se a correspondência com o Julgamento de Estima Social de
Capacidade de seu interlocutor, ao afirmar que “Só Vossa Excelência nesta
dúvida é quem pode dar algum remédio”. Colocado acima dos demais e do
próprio autor, que se rebaixa diante de seu correspondente, o Conde de Oeiras
é definido pela Gradação de Foco como o único de quem se pode esperar uma
solução ao dilema.
Para manter seu ethos de prestatividade e isenção de interesses pessoais, o
autor afirma que não deseja agir de modo “desconveniente ao Real Serviço, nem
contrário às piíssimas intenções de Sua Majestade”. A essa conclusão, emenda-
se o fecho da carta, com a fórmula de saudação final “Deus guarde a Vossa
Excelência muitos anos” com o qual se encerram grande parte das espécies
diplomáticas reservadas ao trâmite administrativo no período, tais como cartas e
ofícios.

Considerações finais
Diante das profícuas possibilidades de análise dos discursos oficiais
setecentistas, intencionou-se apontar como se construiu a identidade linguística no
território do Brasil, a partir da segunda metade do século XVIII. Para tanto,
apresentaram-se, embora sucintamente, características que auxiliam a
compreensão do discurso produzido no período.
Selecionaram-se marcas de avaliatividade por permitirem que se construa com
mais propriedade a análise do discurso construído no documento administrativo
oficial, entendendo-se “análise do discurso” sucintamente enquanto “a relação entre
texto e contexto” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 44).
Assim, o presente trabalho visou a analisar a linguagem empregada na carta
setecentista, de modo a estabelecê-la como um “tecido”, apontando a complexidade
do entrelaçamento de fatores como “as condições de sua instauração, o seu

858
contexto social e, em particular, a estrutura do grupo no qual se realiza”
(BOURDIEU, 1983, p. 163).
Em uma carta de um único fólio, que trata de assunto cotidiano, apresentam-
se ideologias como a monárquica de veio escravocrata. Ao veicular tais ideologias,
o autor trabalha a intersubjetividade, com a manutenção de seu ethos frente ao
interlocutor.
Por se tratar de documentação oficial, é certo que se tratava da linguagem e
do discurso legitimados e tidos como modelares no período. Entende-se, portanto,
que esse tipo de registro linguístico, marcadamente ideológico, serviu de suporte à
construção da identidade linguística brasileira, sobretudo no momento de
implantação oficial da Língua Portuguesa no Brasil.

Referências bibliográficas

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do século XVIII. Brasília: UnB, 1997.
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do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2ª ed. São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2007.
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2005.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.
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discurso. Coord. Trad. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2008.
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FREIRE, José Ribamar Bessa. Rio Babel – a história das línguas na Amazônia. Rio
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859
MARCOTULIO, Leonardo Lennertz. A preservação das faces e a construção da
imagem no discurso político do marquês do Lavradio: as formas de tratamento como
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Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
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MARTIN, James & WHITE, Peter. The Language of Evaluation: appraisal in English.
London: Palgrave/Macmillan, 2005.
VAN DIJK, Teun Adrianus. Discurso e Poder. São Paulo: Editora Contexto, 2012.

860
ASPECTOS COGNITIVOS DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NA
INTERAÇÃO VIRTUAL

Renata Palumbo287
Solange Ugo Luques288

Introdução

O modo como compreendemos o mundo e, consecutivamente, como falamos


a respeito dele e agimos sobre ele insere-se em um processo dinâmico e interativo
de construção de modelos mentais passíveis às transformações por que passam os
seres humanos na sociedade durante suas experiências. As práticas da linguagem,
nas e pelas quais os seres humanos se engajam via internet, a fim de dar sentido,
criar e agir no campo da educação, não estão apartadas desses processos
sociocognitivos e interacionais.
Essa afirmação apoia-se, sobretudo, em pesquisas acerca do texto e do
discurso (Cavalcante, Pinheiro, Lins, Lima, 2010) e destes juntos à interação
(Fávero, Jubran, Hilgert, Barros, Toscana, Andrade, Crescitelli, Galembeck, Aquino,
2010; Marcuschi, 2007), nas quais texto e discurso são entendidos como
indissociáveis e definidos pelo uso e suas condições de produção específicas.
Desse modo, tomam parte da enunciação também os fatores socioculturais e os
processos interativos de maneira unívoca.
Apoiamo-nos também em Marcuschi (2007) quando ele propõe o termo
cognição contingenciada como a forma de cognição “que se dá diretamente na
elaboração mental vinculada a situações concretas colaborativamente trabalhadas
na interação contextualizada”289. Nessa acepção, o efeito de sentido não é um dado
inscrito no texto, mas fruto direto da construção colaborativa e situada.
É nessa direção que propomos uma interface entre investigações acerca das
questões de texto-discurso e pesquisas sobre a cognição nas quais se levem em
consideração a tríade linguagem, cognição e sociedade, isto é, que consideram o

287 FMU
288 USP
289 Grifos nossos.

861
papel importante do jogo interacional nos processamentos cognitivos. Neste
trabalho, selecionamos também os estudos de Fauconnier e Turner (2002),
Fauconnier (2005), dentre os existentes290, em razão de acreditarmos que eles nos
possam fornecer subsídios para examinarmos o processamento interacional-
discursivo em um Fórum online de conteúdo público, a negociação de sentidos e a
compreensão das informações veiculadas.
O fórum do qual foi retirado nosso corpus trata-se do ‘Portal do Professor’,
ambiente que faz parte do site oficial do MEC, Ministério de Educação e Cultura.
Esse fórum, ativo no momento da coleta, em 15/02/2015, é assíncrono e aberto a
participantes que se cadastram no site. Faz parte da seção em que se propõe o
tópico ‘Tecnologias Educacionais’ e o subtópico “Uso ético e responsável da
internet”. 291
A abertura da discussão ocorreu em 02/06/2011 por Rodrigo Nejm, psicólogo
na Safernet Brasil, que apresentou a proposta do ambiente via discurso escrito,
acompanhado de um vídeo explicativo de 13min10s de duração. Especificamente,
atentamo-nos para o discurso escrito e as ocorrências de formulações linguísticas,
indicativas de inputs e mesclas, das quais partiu o encaminhamento de alguns
segmentos da interação.
Ainda a respeito do lugar da produção do corpus sob análise, salientamos
que para o internauta participar da discussão, disponibilizou-se um vídeo, na seção
FÓRUNS, no qual foi informada a necessidade de cadastro no portal, da escolha de
um fórum e da modalidade de participação: comentar postagens de outros usuários
ou responder ao tópico sob um dos títulos: Argumentação, Contra-argumentação,
Contribuição, Dúvida, Explicação, Questionamento, Relato ou Solicitação.

Discurso pedagógico na sociedade em rede

290 Van Dijk (2010) também propõe uma abordagem na qual se integram linguagem, cognição e sociedade a
partir das noções de Modelos Mentais e Modelos de Contexto, partindo de outra perspectiva.
291 Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/ListarMensagensForum.html?idTopico=118>

862
As novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) estão
provocando significativas transformações nas sociedades, em seus modos de
organização, de produção e comercialização de bens, de diversão e, ainda, de
ensino-aprendizagem. Sobre este último ponto, Passarelli (1995), Braga (2013),
Marcuschi e Xavier (2010) afirmam que a escola não pode ignorar a nova
configuração que se apresenta nos ambientes virtuais, devido, sobretudo, às suas
características de interatividade e multimodalidade, que trazem para a prática
pedagógica “formas mais dinâmicas de implementar modos colaborativos ou
reflexivos de ensinar e aprender”. (Braga, 2013, p. 58). Nessa direção, tem-se que
conhecer e explorar criativa e planejadamente os novos recursos da internet se
torna significativo às práticas educativas e à produção do conhecimento na
atualidade.
Em especial, a possibilidade de se constituírem espaços de debate e
discussão via Fórum online trouxe mecanismos peculiares ao processamento
discursivo e interacional tanto para professores quanto alunos, sobremaneira no que
corresponde às regras circunscritas na interação tradicional e às criadas em alguns
ambientes em que os papéis sociais e o modo de ação / reação recebem influência
da configuração do ambiente virtual.
Nesse viés, dada a criação de novos meios de interagir a distância, é possível
afirmar que os espaços interacionais online vêm (re)significando maneiras de agir
na mídia e, consecutivamente, no modo de lidar com o conhecimento ou mesmo
construí-lo nas e pelas linguagens, já que esses ambientes propiciam que os
participantes procedam ativamente no momento em que acessam, discutem,
arquivam e recuperam informações, em tempos e espaços diversos. É nesse
sentido que o processamento interacional-discursivo dado em diversos ambientes
virtuais merece atenção no campo da pesquisa, já que está em constante mudança
devido a se ajustar às diferentes situações sociais promovidas pela rede por conta
de ter tomado parte do caráter dinâmico da atual sociedade conectada.
Pode-se dizer que algumas especificidades da interação virtual aproximam-
se daquelas que ocorrem em situações face a face, em razão de haver um contexto

863
situacional específico, um campo de ação comum e indivíduos atuantes. Para
Fávero, Andrade e Aquino (1998), a interação caracteriza-se:

[...] por situar-se em um contexto em cujo âmbito se estabelece um campo


de ação comum no qual os sujeitos envolvidos podem entrar em contato
entre si. Torna-se, portanto, fundamental a capacidade de ação de cada
indivíduo, que deve estar apto a influir no desenvolvimento sucessivo da
interação, determinando-o com sua atuação: cada ação de um sujeito deve
constituir a premissa das ações realizadas posteriormente pelos demais.

Como deve ocorrer em qualquer situação interacional, no que diz respeito à


funcionalidade interna do processamento textual-interativo, no Fórum online é
preciso que haja entrosamento entre os interactantes em ocasião de suas falas, de
modo que eles articulem seus turnos em torno de um foco referencial, uma vez que
“cada ação de um sujeito deve constituir a premissa das ações realizadas
posteriormente pelos demais” (Fávero, Andrade e Aquino, 1998, p.69). O
desdobramento da interação, portanto, é efetivado por meio de um processo de
coautoria, em que o princípio de cooperação, tal como apresentado por Grice
(1975), torna-se fundamental.
Kenski (2001) entende que o Fórum virtual é um espaço diferenciado de
aprendizagem, pois, por ser também assíncrono e proporcionar a todos os
envolvidos no processo de discussão de determinado tópico uma participação
democrática, permite que as mensagens postadas possam ser recuperadas e
rediscutidas a qualquer momento. Tendo em vista que o campo de ação comum,
em que sujeitos se envolvem para fins comunicativos específicos, ganha
particularidades à medida que se reconfigura o lugar de produção, de recepção e
de circulação do discurso, pressupõe-se que o estudo do processamento
interacional e discursivo, em ambientes de hipermídia, deva considerar a
multimodalidade e a mudança comportamental do participante como incorporadas
também ao processo de construção de sentido.
Nessa direção, salienta-se que, embora também a interação face a face se
constitua pela multimodalidade, o entorno espaço-temporal e sócio-histórico que
unem os participantes, na interação assíncrona de um fórum online, alia-se a um
jogo multissensorial estimulado pela tecnologia, tal como é possibilidade de ver e

864
rever um vídeo, a disposição da página (layout), o acesso à informação divulgada
há mais tempo.
Além do mais, pode-se dizer que a configuração que se dá à dada interação
efetivada em um Fórum Educativo aberto e online – regras estabelecidas, perfis
heterogêneos dos participantes, leitura não linear das informações, conversas
assíncronas etc. – permite um campo de ação discursiva e de construção do
conhecimento peculiar, se comparada a situações de troca verbal em que os
participantes se encontram in praesentia também pelo fato de haver nessas últimas
situações interativas mecanismos de intervenções, utilizados para que o
envolvimento interpessoal ocorra de maneira alinhada aos objetivos previstos, os
quais são diferentes daqueles estabelecidos no Fórum online.
A respeito desses mecanismos de intervenção, pode-se afirmar que
determinadas formulações linguísticas e procedimentos interacionais, no Fórum
online, cumprem o papel de chamar a atenção dos participantes para a necessidade
de se voltar ao debate sugerido. No corpus sob análise, observamos alguns
procedimentos, enunciados em (1) e (2):
(1)
R. N.
Membro
Re: Uso ético e responsável da internet
Contribuição
Olá, Gostaria de retomar as discussões e aproveitar para ampliar o convite sobre as
oficinas de formação de multiplicadores que a SaferNet está inciando em 10 capitais em
cooperação com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, COnanda
e com apoio da SECAD/MEC. [...]
11/04/2012

(2)
R. N.
Re: Uso ético e responsável da internet
Contribuição
Olá, muito interessante o relato dos usos éticos que fazem das tecnologias no âmbito
escolar. Gostaráimos de aproveitar para comunicar a estamos agora com um novo canal
de Orientação Psicológica para situações relacionada à internet.[...]
12/09/2012

Os segmentos (1), de 11/04/2012, e (2), de 12/09/2012, constituem exemplos


de intervenções do psicólogo R. N., que, apesar de se nomear ‘membro’ igualmente
aos outros participantes - provavelmente uma estratégia para estabelecer a simetria
na interação -, é o criador do fórum e também toma parte das discussões como uma

865
espécie de mediador. A seleção lexical “retomar as discussões” (1) evidencia o
objetivo de retornar ao tópico proposto: “Uso ético e responsável da internet”, o qual
o participante faz questão de lembrar sempre que se manifesta, diferentemente dos
demais.
Interessante examinar, também, o papel da cortesia nesses momentos em
que o mediador enuncia, a fim de intervir no debate. Utilizaram-se formas verbais
no futuro do pretérito, como “Gostaria de retomar” (1) e “Gostaráimos [sic] de
aproveitar” (2), respectivamente, em primeira pessoa do singular e do plural. No
último caso, R.N. faz menção à “SaferNet”- uma associação civil que desenvolve
projetos sociais voltados ao combate da pornografia infantil – e ‘aproveita’ para
anunciar um novo meio online de orientação psicológica referente ao uso da
internet.
Também constitui uma estratégia cortês de intervir o segmento “Olá, muito
interessante o relato dos usos éticos que fazem das tecnologias no âmbito escolar”
(2). Como a interação online não se dá por meio de gestos físicos de apresentação,
pode-se dizer que enaltecer a contribuição dos demais membros é uma forma de
criar empatia e ganhar a atenção deles antes de cumprir o propósito de divulgar a
informação sobre o canal www.HelpLine.org.br, lançado pela associação que R.N.
representa.
Tais análises dos procedimentos de intervenção fazem-no reforçar a ideia de
que, durante o processamento interativo-discursivo – o qual pode ser tomado como
uma prática fundada na manutenção de acordos por meio de negociações – os
participantes agem e reagem conforme o que cada qual compreende do
procedimento linguístico do outro, fazendo que o responsável pelo fórum online
tenha de monitorar a interação e fazer as intervenções necessárias. A fim de se
entender melhor a respeito desse processo de compreensão e (re) ação discursiva
localmente situada e inerente ao desenvolvimento da interação, buscamos
relacionar os conceitos da Teoria da Mesclagem (Faconnier e Turner, 2002) aos da
interação e discurso. Tal discussão é apresentada na sequência.

866
Teoria da Mesclagem aplicada ao jogo interacional online

Fauconnier e Turner (2002), Fauconnier (2005) propõem uma teoria voltada


para a noção de mesclagem conceitual, para explicar os processos cognitivos que
estão por detrás das metáforas conceptuais – das associações entre domínio-alvo
e domínio-fonte – discutidas nos estudos de Lakoff e Johnson (1980/2003, 1999),
isto é, buscam examinar o que acontece nos bastidores da cognição, sem
desconsiderar, por exemplo, o contexto situacional particular. Pode-se afirmar, pois,
que eles apresentam uma abordagem integrada dos processos cognitivos, na qual
se fazem entender a compreensão e o sentido que se dá às coisas como algo em
construção, também efetivados em ocasião do processamento discursivo e
interacional.
Em consonância com Militão (2009), a Teoria da Mesclagem (TM) pode-nos
fornecer condições de uma interface com as pesquisas acerca do texto e do
discurso, colaborando para analisá-los. A autora (2009, p. 304) acredita:

[...] ser a Teoria da Mesclagem Conceitual uma boa proposta para se


analisar o processamento de textos, seja ele por via da leitura ou da escrita.
Isso porque ela leva em consideração aspectos interacionais e
sociocomunicativos no desenho do mapeamento conceitual que os sujeitos
fazem ao executar suas tarefas.
Em especial, as diversas interações sociais via internet e as ações e reações
discursivas dos participantes, de modo síncrono ou assíncrono, promovem
articulações cognitivas, por vezes, singulares, a permitir criações de conceitos
(mesclagens) e, consecutivamente, inovações em termos linguísticos e de
categorias organizadoras do conhecimento humano. Nessa direção, mais do que
participantes de um Fórum educativo, os internautas tornam-se construtores
colaborativos de conceitos relacionados ao campo pedagógico, de maneira a
alcançar ampla visibilidade.
O dinamismo desses encontros e a construção contínua de conversas
contrapontuais podem reforçar a ideia de Marcuschi (2007) de não existir um mundo
naturalmente categorizado. Assim também, a de Fauconnier & Turner (2002) de que
sentidos são produzidos de modo contínuo por meio de mesclagens conceituais e
não de identificações factuais.

867
Importa-nos salientar que, na TM, as mesclagens constituem novos espaços
mentais (espaços de mesclas) a partir da combinação entre entidades de no mínimo
dois espaços mentais ou construtos mentais efêmeros292 (espaços de input293ou
espaços primários 1 e 2), estruturados tipicamente por frames/modelos cognitivos –
conhecimento esquematizado a longo prazo – e interconectados. Caso seja ativado
o frame, “Fazendo uma trilha”, uma pessoa pode lembrar-se de quando ela fez uma
trilha em determinado lugar e tempo, a partir de um conhecimento de longo prazo
específico e esquematizado - espaço mental (Facounnier, Turner, 2002). Tal
memória pode ser ativada em outras ocasiões, a partir de outros frames, tomando
parte de outros processos de compreensão de fatos locais.
De natureza semântico-pragmática, esses espaços são constituintes do
discurso e, concomitantemente, da referenciação. Nas palavras de Fauconnier
(2005, p. 291): “Os espaços mentais são pequenos conjuntos de memória de
trabalho que construímos enquanto pensamos e falamos. Nós os conectamos entre
si e também os relacionamos a conhecimentos mais estáveis”. Os domínios
conceituais propostos (estáveis e locais) pela TM consistem de conhecimentos
prévios estruturados no escopo social. Os estáveis correspondem às memórias
sociais e individuais a partir das quais conhecimentos locais são estruturados.
Existem, na primeira categoria, os Modelos Cognitivos Idealizados (MCI),
delineados, reproduzidos e renegociados na sociedade, e as Molduras
Comunicativas, relacionadas aos elementos da interação, tais como os papéis
sociais, as identidades, o encontro, etc.
Nesse processo cognitivo associativo, incluem-se projeções de cerca de
quinze ou dezesseis relações vitais – entre as quais estão incluídos situação social,
tempo e espaço, causa-efeito, parte-todo, identidade e representação – que levam

292Na Teoria da Mesclagem Conceitual, pressupõe-se que há uma conexão neuronal estruturada, que foi
denominada espaço mental.

293 Para Feltes (2009, p.156), os espaços de mesclas “substituem, de certo modo, as expressões ‘domínio-
fonte’ e ‘domínio-alvo’ no modelo bidimensional proposto por Lakoff e Johnson (1980) e Lakoff (1987)”. Grady,
Oakley e Soulson (1999), por sua vez, afirmam que esses espaços mentais não correspondem exatamente aos
domínios de Lakoff e Johnson, em razão de as estruturas dos espaços de input servirem ao espaço de mescla,
diferentemente da tese da unidirecionalidade dos autores da Teoria da Metáfora Conceptual.

868
a acabamentos de sentido, não estáticos, à compreensão daquilo com o qual nos
deparamos em nossas trocas sociais. Há, portanto, um conjunto de memórias
prontas, que pode ser ativado localmente e relacionado às informações postas em
discurso.
No que diz respeito aos encontros em Fóruns educativos via internet, as
atitudes responsivas de seus participantes devem-se à noção que eles têm sobre
interações dessa ordem (Molduras Comunicativas) e às memórias sociais e
individuais correspondentes ao tópico discutido. Tendo em vista que se tende a
estabelecer um debate de ideias nessas situações, o modo pelo qual cada um
apresenta seu posicionamento pode levar a certas mesclagens ou reforçar
conjuntos de conceitos genéricos, preexistentes acerca da questão levantada. Mais
do que isso, os inputs e os espaços de mescla ativados pelos participantes
conduzem a dinâmica evolutiva da interação verbal.
Nessa acepção, postula-se que seleções lexicais cumprem o papel de
operadores dos construtos/espaços mentais. É na situação interacional que se
selecionam formulações as quais agem como ativadores de acesso e de
identificação das informações postas no discurso. Como também, a apresentação
de dadas seleções lexicais pode ser pista indicativa de espaços mentais ativados,
assim como diz Fauconnier (2005, p.291): “[...] conhecimentos linguísticos e
gramaticais fornecem muitas evidências para essas atividades mentais implícitas e
para as conexões dos espaços mentais”.
Em específico, no corpus sob análise, na abertura do Fórum, há um vídeo e
um discurso escrito nos quais se apresentam os objetivos da interação, assim como
é possível observar em (03) nas partes destacadas:

(03) Abertura do Fórum em dois de junho de 2011


Sabemos o quanto a rápida evolução das Tecnologias de Comunicação e Informação –
TIC tem transformado o cotidiano da escola e das crianças e adolescentes. Para desfrutar
das muitas oportunidades trazidas pelas TIC é preciso educar para um uso responsável,
crítico e consciente dos riscos. Nos parece urgente discutir alternativas pedagógicas que
auxiliem no trabalho com os temas: sexualidade na era digital; Ciberbullying; exposição da
intimidade e acesso à conteúdos impróprios e violentos. Estes são temas transversais e
precisamos desmistificar a ideia de que segurança na Internet é assunto apenas do
professor de informática ou especialistas. Discutiremos a utilização dos recursos
pedagógicos criados pela SaferNet para este tema (vídeos, histórias em quadrinhos,

869
reportagens e sugestões de aulas disponíveis no Portal do Professor), desejando estimular
a criação de novos recursos e projetos a partir deste Fórum.

Entende-se que a proposta se volta para uma discussão de caráter


pedagógico, com o propósito de profissionais da área educacional criarem
mecanismos pelos quais discutam com seus alunos temas sobre os perigos da
internet, em especial, os recursos criados pela SaferNet. Pode-se examinar que, em
vários momentos, a interação desenvolve-se de maneira a trilhar outros caminhos.
A segurança no uso da internet é o que se destaca em algumas respostas, em
especial, a exposição pública de alunos. Localizamos procedimentos dessa ordem
em (02), (03) e (04):
(04)
Contribuição – A.F. – 10-12-2012
Muito interessante este assunto sobre exposição da intimidade e conteúdos muitos vezes
impróprios para idade, onde muitas vezes colocamos nossos alunos à exposições. Acho
que devemos sim sempre pedir autorização dos pais para publicar qualquer conteúdo na
net, pois muitas vezes não sabemos o perigo que estamos correndo colocando fotos ou
dados pessoais sobre a criança. Devemos estar sempre atentos a isso para segurança de
nossos pequenos.

(05)
Contra-argumentação – C.P. – 31-10-2014
A., olá! Pedir a autorização dos país é dever, pois existe lei acerca disso. Na verdade, creio
que o risco maior seja quando os próprios alunos - mesmo os menores - fazem um uso
inadequado das redes sociais e eles mesmos fazem a exposição deles e de outros.

Em (04), examina-se que houve identificação com apenas um dos temas


propostos inicialmente, “exposição da intimidade e acesso a conteúdos impróprios
e violentos” e foram ativados os inputs: perigo, internet, relação professor-aluno.
Nestes, entende-se que os frames da participante direcionam-na a um
conhecimento prévio estruturado no escopo social “perigo da exposição dos alunos
na internet”.
Na sequência, observa-se, a partir das formulações “muitas vezes colocamos
nossos alunos a exposições” e “devemos pedir autorização dos pais”, que se ativa
uma memória voltada para sua experiência particular (conhecimento local) –
sobretudo, indicado por meio da seleção lexical “nós”, pronome inclusivo – que leva
a participante a uma dada compreensão da situação em discussão e a um
posicionamento, um novo conceito relacionado à segurança: “a necessidade de
autorização dos pais”. Pode-se afirmar que o foco referencial do debate altera-se à

870
medida que associações cognitivas da participante (conhecimentos social e local)
são realizadas.
Fauconnier (2005) aponta para o fato de que os espaços mentais tomam
parte da dinâmica completa das situações comunicativas, inclusive, dos falares dos
participantes. Afirma que nos ajustamos ao desdobramento do discurso, de maneira
a procedermos a mudanças de espaços mentais – atitudes de ativação, desativação
e relações. Nessa direção, o autor assinala que “enquanto pensa ou fala, você está
metaforicamente se movendo de um espaço mental para outro e mudando de
pontos”.
No segmento (5), examina-se que o procedimento anterior, de (2), opera
como condutor do jogo interacional. Nesta parte, selecionada como contra-
argumentação, ativam-se os inputs “perigo”, “internet”, “lei sobre a exposição da
imagem da criança”, os quais fundamentam sua argumentação. Nessa direção, há
pistas das relações vitais no processo cognitivo associativo, propostas pelos autores
da TM (situação social, tempo e espaço, causa-efeito, parte-todo, identidade e
representação), pelas quais o encaminhamento da interação do fórum é conduzido.
Primeiramente, a réplica ocorre dois anos após o posicionamento de (4), de 2012
para 2014. Neste ano, pode-se dizer que a discussão acerca da segurança na
internet está mais propagada mundialmente, por exemplo, houve o encontro de
chefes de Estado que culminou na criação do Marco Civil da Internet em abril de
2014. Assim é que o contexto histórico-social influencia as relações de causa e
efeito, de identidade, de representação etc, fazendo que, do ponto de vista
sociocognitivo e discursivo, o processamento de interações assíncronas dessa
ordem está submetido a mudanças constantes de espaços mentais e a mesclas dos
participantes.
Militão (2009) cita-nos algumas seleções lexicais indicativas da ativação de
um novo espaço mental por introduzirem uma nova rede de representação, tais
como os verbos dicendi, sintagmas nominais que se correlacionam a verbos,
formulações de tempo e de espaço, além de outras marcas, como parênteses,
aspas, travessão. No processamento discursivo, tais seleções permitem que haja
relações entre os espaços de input, a permitir que se crie um terceiro, em outras

871
palavras, pode ocorrer “uma mescla dos espaços que lhe serviram de input” (op.cit.,
p. 311).
Em relação à construção de sentido implicada na atividade de
compreensão, tem-se que ocorre um mapeamento parcial de no mínimo dois
espaços de input, de modo a projetar o que é comum para um terceiro espaço, o de
mescla. A estrutura compartilhada dos inputs passa por um processo de
compressão, em que perpassam as relações vitais já citadas neste trabalho, a gerar
um quarto espaço denominado genérico. Assim é que se cria uma rede de
integração conceitual, de no mínimo quatro espaços, por meio de equiparações e
projeções.
Os pressupostos discutidos ajudam-nos a entender como se dá a interação
e a prática discursiva no fórum online. Temos que, em (4) e (5), foi-se negociando
sentido acerca do papel do professor – incluir fotos de alunos ou não, pedir
autorização, ter cautela. O processo de compressão possui, portanto, um caráter
individual e dinâmico nessas interações, de maneira a intervir no foco referencial do
debate e, também, a criar e recriar os referentes ativados, podendo chegar a um
espaço genérico coletivo ou não.
Para Fauconnier (2005), as compressões tornam as informações mais
acessíveis e inteligíveis, facilitando a criação de novas conexões. É como se os
participantes de uma interação não precisassem expor toda a complexidade de um
acontecimento para compreender, por exemplo, uma formulação metafórica, pois
há, entre outras, relações de tempo e espaço, causa e efeito, etc., que são reduzidas
em um evento único.
Interessa-nos salientar que, além de poder colaborar com os estudos de
ordem discursiva, os postulados da TM vêm contribuindo no que se refere aos
processos de aprendizagem. Dreyfus, Gupta, Redish (2015), do departamento de
física da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, dizem que essa
perspectiva está sendo utilizada na educação de física para explicar os processos
pelos quais estudantes, por meio de analogias, aprendem ideias abstratas.
Nessa direção, tal como indicamos, tem-se que a atividade inerente ao ser
humano de (re)significar o mundo se realiza nas práticas discursivas, nas quais

872
objetos de discurso são (re)construídos na interação. Trata-se de uma atividade
dinâmica, adaptativa e contínua de construção de sentidos e não de uma
representação fixa, assim como já confirmaram teorias do discurso e da
referenciação (Cavalcante, Pinheiro, Lins, Lima, 2010; Marcuschi, 2007; entre
outros). Pode-se dizer que a noção de representação da TM vai ao encontro desse
postulado na medida em que se afirma que tais representações são resultantes da
articulação de domínios mais estáveis – como os Modelos Cognitivos Idealizados –
e de domínios locais, realizada pela linguagem, a qual é entendida como um
caminho para a construção de sentidos.

Conclusão
Após a discussão teórica e a análise de segmentos de um Fórum online,
pudemos observar que as seleções lexicais permitem identificação e servem como
condutores da ativação de espaços mentais, responsáveis pelo encaminhamento
da interação verbal. Sendo assim, a ação discursivo-cognitiva de um participante
opera como condutor do jogo interacional.
Nessa direção, examinamos também que o foco referencial do debate altera-
se à medida que associações cognitivas dos participantes (conhecimentos social e
local) são realizadas, o que nos faz entender que o processamento de interações
assíncronas, tal como a de um Fórum online, está submetido a mudanças
constantes de espaços mentais e a mesclas dos participantes inseridos em
momentos sócio-históricos distintos.

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875
PÍLADES E ORESTES, DE MACHADO DE ASSIS: UM ESTUDO DIALÓGICO.

Rinaldo Pereira de Souza 294

Introdução

Para Leyla Perrone Moisés (1978), “Em todos os tempos, o texto literário
surgiu relacionado com outros textos anteriores ou contemporâneos, a literatura
sempre nasceu da e na literatura”. Esse recurso de referência é característica do
discurso literário. Desde sempre o escritor recorre às obras de outros tempos para
escrever, “beber na fonte” do berço cultural. Nessa perspectiva, este artigo propõe
analisar, tendo os referenciais teóricos sobre dialogismo e heteroglossia com base
nos estudos bakhtinianos, o conto Pílades e Orestes, do contador de história do
Cosme Velho, que era um assíduo leitor das obras clássicas.
O conto Pílades e Orestes pertence ao livro Relíquias de casa velha, de
Machado de Assis, seu penúltimo trabalho literário, publicado em 1906. Nele consta
além de contos, o famoso poema “A Carolina”, dedicado à mulher, já falecida;
Páginas críticas e comemorativas: “Gonçalves Dias”, “Um livro”, “Eduardo Prado”,
“Antônio José”; e ainda duas peças de teatro: “Não consultes médico” e “Lição de
Botânica”. Enfim, uma miscelânea, conforme declara Marta de Senna (2008),
conjunto de textos de gêneros diversos. Os dois últimos textos são os contos
Anedota do Cabriolé e Pílades e Orestes, ambos com temáticas de tabu social. O
primeiro sobre incesto e o segundo sobre homoafetividade.
Nota-se logo pelo título e em outros dois momentos da narrativa a referência
ao mito Pílades e Orestes, personagens das tragédias gregas Coéforas, de Ésquilo;
Electra, de Eurípedes; Electra, de Sófocles e Orestes, de Eurípedes, do século V
antes de Cristo.
Nestas obras gregas, Electra, irmã de Orestes, entrega-o com apenas dez
anos de idade a um antigo criado para que este o leve para Fócida, casa de seus
tios, Estófio e Anaxíbia, para ser criado e cuidado, devido aos desmandos e

294 Doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).

876
maltratos de Clitemnestra, sua mãe, e Egisto, que assassinaram seu pai
Agamêmnon. Quando adulto, retorna a Argos, juntamente com o primo e amigo
inseparável Pílades a fim de vingar a morte de seu pai. É ajudado por Electra que o
introduz no palácio e pelo amigo Pílades, que o anima a agir no momento em que
hesita cometer o matricídio, diante dos seios desnudos da mãe suplicante. Após a
execução, o primo continua ao seu lado para ajudá-lo a sobreviver e auxiliá-lo a
suportar as consequências de seus atos. Pílades representa o protótipo do amigo
fiel.
De modo sucinto a história de Machado é a seguinte: o narrador
heterodiegético conta a história de Quintanilha e Gonçalves, amigos formados em
Direito, que se reencontram depois de alguns anos, quando o primeiro desiste da
carreira de deputado provincial para receber e viver da herança deixada pelo tio.
Logo de início, sente-se indeciso e hesita a aceitar, mas o amigo o encoraja. A
amizade dos dois, as contribuições, os presentes, o carinho principalmente por parte
de Quintanilha é tamanha que causa comentários, como: “– Aí está, deixa os
parentes para se meter com estranhos; há de ver o fim que leva”. (2008, p. 226).
Percebe-se, nesta marca discursiva, que o próprio narrador antecipa para seu “leitor
sagaz” (2008, p. 234) o fim trágico da personagem.
Nessa rotina de doações, na volta de uma viagem patrocinada por
Quintanilha, a relação se abala, devido a um retrato de ambos, produzido por um
artista. Gonçalves não gostou do quadro e chamou-o de ignorante, por não perceber
a má qualidade do desenho. Com o falecimento da esposa de um parente,
Quintanilha aproxima-se da família e tem a possibilidade de casar-se com a filha do
parente. Mas outra vez Gonçalves consegue apoderar-se e destruir o intento do
parceiro, desse modo, se casa com a mulher que o parceiro desejava e ainda herda
os bens, que Quintanilha havia lhe deixado em testamento. Quintanilha morre em
virtude de uma bala perdida, alienado da realidade política (Revolta da Armada, de
1893), quando levava doces aos afilhados, filhos do amigo.
Segundo Mikhail Bakhtin, “toda linguagem, seja qual for o seu campo de
emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.) está
impregnada de relações dialógicas” (1997, p. 183). Observa-se então, que o

877
dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do
discurso. Os discursos estão “impregnados” de outros textos, mesmo que eles não
se manifestem no fio do discurso e, ainda que a neutralidade seja desejada, sempre
se traz marcas de outros discursos.
Constitui-se também como dialogismo a heteroglossia, caracterizada pela
diversidade de vozes com perspectivas individuais e sociais que entram em um
campo de tensão e reflexões. O discurso dialógico permite a heteroglossia e,
consequentemente, amplia o leque de significados da palavra. O diálogo entre as
diversas vozes promove o encontro do “eu” com o “outro’’ no processo em que o
discurso torna-se público (BARROS, 1994).
Dessas duas perspectivas dialógicas, parte-se à análise, a primeira sobre as
semelhanças e os distanciamentos promovidos por Machado ao basear-se na
tragédia grega e a segunda a heteroglossia: as vozes como forma de identificação
dos seres presentes no conto.
Como já foi mencionado, percebe-se a referência pelo título ao nomear o
conto com os nomes do mito, Pílades e Orestes, mas a narrativa de Machado
nomeia as personagens de Quintanilha e Gonçalves, respectivamente.
E em outros dois momentos da narrativa mostram-se os nomes das
personagens gregas a primeira ao caracterizar a amizade: “A união dos dois era tal
que uma senhora chamava-lhes os casadinhos de fresco, e um letrado, Pílades e
Orestes” (p. 230), designando à parceria incomum entre dois homens.
E no final da narrativa: “Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo
grego. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele”. (p. 240),
trecho que aponta de modo fidedigno à fonte de inspiração, uma vez que a
personagem Orestes comete o matricídio, vivendo sem remorsos, na história grega
e na de Machado sucumbe à esperança do amigo de tê-lo contigo, e Pílades que
praticamente não fala na tragédia grega, agora também se torna mudo ao ter
aniquilado seu desejo e também por sido baleado e morto.
O trágico presentifica-se em ambos os textos, sendo que no mito grego, o
herói estava condicionado frente às consequências esmagadoras em que não se
poderia evitar; na narrativa machadiana o herói mergulha para a destruição por

878
culpa de seus próprios atos e ações, o que torna inevitável um determinado fim. Na
narrativa grega o enfoque é na personagem Orestes, o que difere da machadiana,
que gravita em torno de Pílades.
A amizade entre ambas as personagens verifica-se nas duas narrativas. O
que distancia, da precedente, é que não há o não uso dessa aproximação, desse
relacionamento para um personagem se beneficiar do outro. No mito, eles são
primos e na história de Machado, são amigos.
Como se vê o escritor brasileiro usa a técnica de apropriação do mito para a
elaboração de um texto que exprime elementos de sua própria cultura, via
antropofagismo, pela ressignificação dos referenciais diegéticos, havendo assim,
pontos de convergência, mas principalmente de distanciamento, pois o intuito é
contar uma história a sua maneira.
O diálogo entre texto tratado pelos teóricos não se refere somente aos pontos
de convergências, naquilo que é idêntico ao texto precedente, é também o
distanciamento, divergência, embate, como pontua Bakhtin “Cada enunciado deve
ser visto como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado
campo: [...] ele os rejeita, confirma completa, baseia-se neles submetendo-os como
conhecidos, de certo modo os leva em conta” (2003, p. 297). Desse modo, a
narrativa em análise apresenta as temáticas de tragédia, mito e amizade de forma
dialógica aproximando e distanciando.
O autor utiliza como estratégia de composição da narrativa um narrador
heterodiegético que com distanciamento dos fatos narrados possui posição
privilegiada de observação e condição para refletir sobre a situação vivenciada pelas
personagens. Como se observa no fragmento:

Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a impressão que davam os dous


juntos, não que se parecessem. Ao contrário, Quintanilha tinha o rosto
redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo
alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente. Acresce que eram
quase da mesma idade. A ideia da paternidade nascia das maneiras com
que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em carinhos,
cautelas e pensamentos. (ASSIS, 2008, p. 225)

879
Cabe a este narrador apresentar as características físicas e psicológicas das
personagens para o leitor. Como se observa, “Quintanilha tinha o rosto redondo,
Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro”. Nota-
se na descrição a supremacia do estilo europeu de Gonçalves e a inferioridade de
Quintanilha pelo estilo latino, e o desejo deste em ter consigo o estilo valorizado
culturalmente.
Com o uso dessa perspectiva de construção, onde o narrador centraliza nele
as descrições e ações, um discurso autoritário, monofônico, pois não dá autonomia
de voz às personagens, como destaca Bakhtin: “o sentido total e conclusivo da vida
e da morte de cada personagem revela-se somente no campo de visão do autor e
apenas à custa de seu excedente sobre cada uma das personagens, vale dizer, à
custa daquilo que a própria personagem não pode ver nem entender” (BAKHTIN,
2008, p. 80).
Desse modo as personagens não falam por si mesmas, suas falas
expressando os desejos e angústias são revelados pelo narrador, na maioria das
vezes, por meio de um verbo dicendi.
O conto se inicia com o enunciado: “Quintanilha engendrou Gonçalves”, nele
se percebe o estilo controlador e conhecedor de toda ação do narrador e sua
inclinação em atribuir à culpa pela derrota da personagem central a ela mesma. O
verbo “engendrar” significa, segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua
Portuguesa, “dar origem a”, “gerar”, “produzir”, ou então, “inventar”, “imaginar”
(FERREIRA, 1986, p. 654), portanto de antemão antecipa para o leitor, que
Quintanilha agiu de forma a transformar Gonçalves em homem interesseiro, visto
sua fraqueza emocional e também pela subserviência ao parceiro.
Para suprir sua dependência emocional Quintanilha oferecia ao amigo uma
qualidade de vida que este não possuía por conta própria, bons charutos, bons
jantares, bons espetáculos, livros novos, viagens de férias, empréstimos. Esta
atitude ia além de uma simples amizade, como destaca o narrador: “Um pai não se
desfaria mais em carinho, cautelas e pensamentos” (2008, p. 225) e “Quintanilha
acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter como ele” (2008, p. 227).

880
Enquanto o companheiro Orestes é descrito como uma pessoa que deseja
se dar bem na vida, tanto financeiramente quanto emocionalmente, visualiza-se o
aniquilamento da autoestima de Quintanilha para satisfazer os desejos do outro.
Para tanto estimula o parceiro a aceitar a herança para obtê-la depois, e até ser
capaz de desposar a pretensa noiva do amigo.
Vê-se nessas caracterizações uma relação assimétrica enquanto um busca
uma relação homoafetiva o outro deseja ascender socialmente.
O narrador apesar de não nomear claramente a relação das duas
personagens, evidencia nas entrelinhas a homoafetividade: “A vida que viviam os
dous, era a mais unida deste mundo”, (2008, p. 227) e “casadinhos de fresco” (2008,
p. 230), deixa para o “leitor sagaz” a condição de fazer tal leitura.
Esta relação homoafetiva é pautada no interesse, na exploração do outro, ou
melhor, na “compra e venda”, prática de relacionamento corriqueira na sociedade
contemporânea, baseada exclusivamente no individualismo e na negação do
“outro”.
A representação do relacionamento de um casal que foge à norma da
sociedade, formado por pessoas com interesses diferentes e estruturado na
exploração do “outro”, longe do ideal e do heteronormativo se descortina por meio
das vozes presentes na narrativa, a do narrador e também das personagens
protagonistas, Quintanilha e Orestes. Como se observa o jogo de interesses no
fragmento em que Gonçalves insinua a acabar com a amizade para evitar os
comentários maldosos:

Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo a Gonçalves, indignado.


Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o ânimo; não valia a pena
irritar-se por ditinhos.
— Uma só cousa desejo, continuou, é que nos separemos, para que
se não diga...
— Que se não diga o quê? É boa! Tinha que ver, se eu passava a
escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns peraltas sem-
vergonha!
— Não fale assim, Quintanilha. Você é grosseiro com seus
parentes.
— Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei de viver com as
pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que o que
querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser,

881
menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou
você está... está aborrecido de mim?
— Eu? Tinha graça.
— Pois então?
— Mas é ...
— Não é tal! (ASSIS, 2008, p. 227)

A presença das várias vozes discursivas da cultura dispostas na narrativa,


mesmo tendo o narrador delimitando e determinando quem diz, denomina-se de
heteroglossia, pois mostra a realidade heterogênea da linguagem, em virtude da
presença da multiplicidade de vozes (de “línguas sociais”, “o plurilinguísmo real”,
“dialogismo”) se refere também à qualidade intrínseca da linguagem.
Essas vozes, no texto, são dissonantes, uma vez que cada uma se posiciona
de uma maneira, com o objetivo de identificar o ser na narrativa. O “outro” com estilo
de vida totalmente diferente, no caso de Quintanilha que se anula para satisfazer os
desejos do parceiro e Gonçalves sabedor da deficiência de autoconfiança de
Quintanilha, usa-a em benefício próprio.
A falta de simetria dos parceiros, os diálogos desencontrados e o confronto
entre as vozes “engendraram” o fim trágico do nosso protagonista Quintanilha. Fim
este, ocasionado não só pelas decisões tomadas a partir de um mutismo
angustiado, preso a um afeto unilateral e devoção submissa, quanto ao exacerbado
desejo de conquista social, nada comedido, do companheiro Orestes. A narrativa
revela a violência, a exploração do homem pelo seu próximo, algo comum nas
relações pessoais do século XIX.
Apesar da atração e prática homoafetivas sempre terem existido, suas formas
particulares de significação variaram ao longo do tempo. Entre os gregos, possuía
um caráter didático/iniciático, encarado como normal e inclusive exaltada, conforme
os diálogos platônicos de O Banquete.
Na sociedade brasileira do século XIX, momento de produção do conto, a
relação homossexual é vista, a partir da visão religiosa, como pecado de sodomia e
com os desdobramentos da Revolução Francesa, a prática sexual que transgredia
a “ideal” era vista como manifestação patológica, de acordo com Jean-Philippe
Catonné, em A sexualidade, ontem e hoje.

882
Desse modo, diante da circunstância temporal, moral e social e
principalmente a pessoal de Gonçalves, que deseja ascensão social, a qualquer
custo, instala-se a impossibilidade de concretização do relacionamento
homoafetivo.
Machado de Assis por meio do diálogo com a obra trágica grega compõe uma
narrativa à moda brasileira. Por meio de uma inversão de enfoque em relação à
referência, trata de modo sutil sobre a relação homoafetiva, baseada no jogo de
interesses e exploração do “outro”.
O que chama atenção é a impressão e o questionamento do nosso maior
escritor a respeito da temática, ao desvelar nas vozes discursivas da narrativa, o
drama vivenciado das “pessoas/personagens” envolvidas na relação. Um narrador,
às vezes, não confiável, que insinua a presença de um jogo de desejos; a
personagem central que sofre aniquilamento da autoestima pela idealização do
“outro”, e este se beneficia com a fraqueza daquele. Enfim, é um convite à leitura
do conto.

Referências bibliográficas

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preparada por Marta de Senna. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A Teoria do Romance).
Trad. Aurora Fornoni Bernardini et alii. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
________. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 2008/1981.
________. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. Pref. Tzvetan Todorov.
4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem:


Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad.
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

883
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos. São Paulo:
Duas Cidades, 1970.
CATONNÉ, Jean-Philippe. A sexualidade, ontem e hoje. Trad. Michele Íris Koralck.
São Paulo: Cortez, 1994.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. FIORIN, José Luiz (Org.) Dialogismo, polifonia,
intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1994.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de
Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
MACIEL, Jessé dos Santos. Pílades e Orestes: A sedução das Faces Mudas.
Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar. Quadrimestral, número 09.
Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2006.
MOISÉS, Leyla Perrone. Texto, Crítica, Escritura. São Paulo: Ática, 1978.
SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras. Ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o
pensamento. Trad. Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP,
1990.

Referências web

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Homocultura e escrita pós-identitária. Terra roxa e outras terras. Revista de estudos
literários. Volume 7 (2006). Disponível em:
http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol7/7_3.pdf. Acesso em: 10 de abril de
2015.
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do século XIX. Disponível em:
http://publicacoes.unigranrio.com.br/index.php/reihm/article/view/350/335. Acesso
em 10 de abril de 2015.

884
SILVA, André Luiz Barros da Silva. Entre Bento e Flora: a muda cautela de
Quintanilha em “Pílades e Orestes”. Disponível em:
http://www.idelberavelar.com/abralic/txt_29.pdf. Acesso em 10 de abril de 2015.

885
ASPECTOS DE INCOMPLETUDE E AMBIGUIDADE EM “O PIROTÉCNICO
ZACARIAS”, DE MURILO RUBIÃO

Rita de Cássia Silva Dionísio Santos 295

Introdução

Não fosse o ceticismo dos homens, recusando-se


aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar
a ambição de construir uma nova existência.
(Murilo Rubião, Obras completas, p. 11)

Com este texto que nos serve de epígrafe, extraído do conto “O pirotécnico
Zacarias”296, de Murilo Rubião, iniciamos a nossa comunicação perguntando-nos: é
possível se compreender, como uma síntese, os mundos contrários da vida e da
morte? Até que ponto são passíveis de racionalização as afirmações de um homem
que confessa ter tido a vida interrompida por um atropelamento mas que, ainda
assim, defunto, “não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos
vivos” (Rubião, 2010, p. 18)?
O escritor mineiro Murilo Rubião (1916–1991, MG) é considerado como
precursor da nossa literatura fantástica. Autor de uma obra singular, composta de
trinta e duas narrativas curtas já publicadas e uma “ainda inédita e numerosos textos
em fase de produção – rabiscados, rascunhados e inacabados” (Garcia, 2013, p,
11) – Murilo Rubião tinha como hábito reescrever insistentemente os seus contos
antes de publicá-los. Estudiosos afirmam que a opção pelo insólito assinala o
percurso criativo do escritor mineiro. Mas, que aspectos de sua contística
possibilitariam nomear como fantásticas as narrativas deste autor? Quais os
elementos estéticos que nos permitem visualizar em seus textos as substâncias
inabituais que configurariam o fantástico?

295Doutora em Literatura (UnB); Mestre em Letras: Estudos Literários (UFMG). Professora da Graduação em
Letras e dos Programas de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários e Mestrado Profissional em Letras da
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. Membro do GT Vertentes do Insólito Ficcional da
ANPOLL.

296 A versão que utilizamos integra as Obras completas do autor (Companhia das Letras, 2010).

886
E é a partir de algumas “considerações teóricas” (tomando, aqui,
emprestadas as expressões usadas por David Roas e Maria Cristina Batalha nos
títulos de seus trabalhos, os quais citaremos a seguir), que esta comunicação tem
como objetivo analisar algumas imagens insólitas do conto “O pirotécnico Zacarias”.
Tzvetan Todorov, em seu livro Introdução à literatura fantástica (Perspectiva,
2010), propõe a seguinte definição para o gênero fantástico:

[...] o fantástico se fundamenta essencialmente numa hesitação do leitor –


um leitor que se identifica com a personagem principal – quanto à natureza
de um acontecimento estranho. Esta hesitação pode se resolver seja
porque se admite que o acontecimento pertence à realidade; seja porque
se decide que é fruto da imaginação ou resultado de uma ilusão; em outros
termos, pode-se decidir se o acontecimento é ou não é. Por outro lado, o
fantástico exige um certo tipo de leitura: sem o que, arriscamo-nos a
resvalar ou para alegoria ou para a poesia. (TODOROV, 2010, p. 166.)

Além dessa declaração, Todorov afirma, também, que o fantástico configura-


se como “uma certa reação diante do sobrenatural”; que “o fantástico permite
franquear certos limites inacessíveis quando a ele não se recorre e que é um meio
de combate contra uma e outra censura: os desmandos sexuais, por exemplo,
podem ser melhor aceitos por qualquer espécie de censura se forem inscritos por
conta do diabo; e, ainda, que “a função do sobrenatural é subtrair o texto à ação da
lei e com isto mesmo transgredi-la (Todorov, 2010, p. 166, 167 e 169,
respectivamente).
Contudo, David Roas, em seu livro A ameaça do fantástico: aproximações
teóricas (Editora UNESP, 2014), afirma que, para Todorov, essa definição é
problemática, pois reduz o fantástico a ser simples limite entre os gêneros estranho
e maravilhoso; em conclusão, para Todorov, o fantástico seria uma categoria
evanescente que se definiria pela percepção ambígua que o leitor implícito tem dos
acontecimentos relatados, e que este compartilha com o narrador ou com algum dos
personagens. Contudo, o crítico espanhol declara que essa definição é vaga e
restringe o fantástico, uma vez que exclui muitas narrativas em que o sobrenatural
tem uma existência efetiva; isto é, em que não há vacilação possível, uma vez que
só se pode aceitar uma explicação sobrenatural dos fatos (Roas, 2014, p. 41-42).
Roas declara, ainda, que a narrativa fantástica se ambienta em uma realidade

887
cotidiana que ela mesma constrói com técnicas realistas e, ao mesmo tempo,
destrói, de forma a inserir nela outra realidade, incompreensível para a primeira –
técnicas que coincidem claramente com as fórmulas utilizadas em todos os textos
realistas para conferir verossimilhança à história narrada, para afirmar a
referencialidade do texto (Roas, 2014, p. 54). Nessa perspectiva, o fantástico é um
modo narrativo que provém do código realista, mas que ao mesmo tempo supõe
uma transformação, uma transgressão desse código:

Os elementos que povoam o conto fantástico participam da


verossimilhança própria da narração realista e unicamente a irrupção,
como eixo central da história, do acontecimento inexplicável é que marca
a diferenciação essencial entre o realista e o fantástico. (ROAS, 2014, p.
54.)

Nas narrativas fantásticas, os eventos costumam ser descritos de maneira


realista, verossímil.
Maria Cristina Batalha, em seu texto Literatura Fantástica: Aproximações
Teóricas (2012), interroga-se se o fantástico se configuraria com um gênero ou
como uma forma de narrar. A pesquisadora lembra que até Todorov,

[...] a crítica referia-se ao gênero como correspondendo a toda narrativa de


fatos que não pertencem ao mundo do real, contrariando a realidade que
nos cerca. Essa definição abrangente servia tanto para designar os
acontecimentos que o autor apresentava como imaginados ou sonhados,
quanto os que eram apresentados como reais, mas que não poderiam
ocorrer no nosso mundo, e sobre os quais o escritor deixava pairar a
ambiguidade a respeito de sua natureza. (BATALHA, 2012, p. 10. Grifo
nosso.)

Para Batalha, o “fantástico” se define por específico modo de narrar, com


raízes históricas claras, e que se realizaria através de temas e procedimentos
retóricos emprestados a outros gêneros e subgêneros, e que foi a partir do século
XVII que se impôs como uma forma genérica nova. Mas, lembra a pesquisadora,
sabe-se que não há uma unanimidade entre os teóricos do assunto quanto às
classificações de “modo” e “gênero”. Para Charles Nodier, por exemplo, o fantástico
seria a expressão do refúgio contra a desilusão provocada pela dura realidade do
mundo e, para ele, o termo abarcaria todas as áreas da imaginação poética. O que
evidencia – conforme Batalha – que, em seu nascedouro, o fantástico era tomado

888
em seu sentido amplo, ou seja, era percebido como sinônimo de maravilhoso. A
ensaísta declara, ainda, que “no relato fantástico, tanto o real explicável, como o
irreal não são excludentes entre si, mas sim representam duas ordens que se
mostram incapazes de dar conta do acontecimento estranho” (Batalha, 2012, p. 15.)
Assim, a partir dessas leituras, vejamos o que nos apresenta o texto de Murilo
Rubião:

Raras são as vezes que, nas conversas de amigos meus, ou de pessoas


das minhas relações, não surja esta pergunta. Teria morrido o pirotécnico
Zacarias?
A esse respeito as opiniões são divergentes. Uns acham que estou vivo –
o morto tinha apenas alguma semelhança comigo. Outros, mais
supersticiosos, acreditam que a minha morte pertence ao rol dos fatos
consumados e o indivíduo a quem andam chamando Zacarias não passa
de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro humano. Ainda há
os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não aceitam o
cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas alguém
muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se Zacarias morreu, o seu corpo não foi
enterrado. (RUBIÃO, 2010, p. 14. Grifo nosso.)

Narrado em primeira pessoa, já nos primeiros parágrafos, este relato põe em


dúvida a materialidade dessa experiência e o nosso olhar de leitor que assim o
constituiria.
Entre esses aspectos – a materialidade da experiência e a nossa participação
na constituição do seu sentido – interpõem-se ondas de volubilidade que colocam
em xeque a (in)crível história de um sujeito sobre o qual não se tem certeza se está
vivo ou morto.
Ressalta-se que, a seguir, o personagem afirma ser a única pessoa
autorizada a prestar esclarecimentos sobre o assunto. Contudo, as sucessivas
cenas descritas – não raro, assinaladas por um evidente cromatismo impressionista
– revelam a insustentabilidade de suas afirmações e argumentos, uma vez que em
nenhum lugar, nenhum jornal, nenhum documento (que seriam, pode-se dizer, uma
forma de legitimar essas suas evocações memorialísticas) teria dado conta de sua
morte, nenhum necrológio lhe teria sido dedicado.
A breve narrativa, de apenas sete páginas, subdivide-se em dez blocos, os
quais revelam uma certa desordem interior de seu narrador personagem. Chamam-

889
nos a atenção, especialmente, o primeiro parágrafo do bloco dois e o último
parágrafo do bloco quatro, os quais passamos a citar:

A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso,


cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a
densas fitas de sangue. Sangue pastoso com pigmentos amarelados, de
um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor. (Rubião, 2010, p. 14. Grifo
nosso.)

A princípio foi azul, depois verde, amarelo e negro. Um negro espesso,


cheio de listras vermelhas, de um vermelho compacto, semelhante a
densas fitas de sangue. Sangue pastoso, com pigmentos amarelados, de
um amarelo esverdeado, quase sem cor. (RUBIÃO, 2010, p. 16)

O primeiro fragmento diz respeito ao exato momento em que o personagem


é morto, vítima de um atropelamento, enquanto caminhava sozinho pela Estrada do
Acaba Mundo.
Referências históricas sobre a cidade de Belo Horizonte 297, no Estado de
Minas Gerais, dão notícia de que assim se chamava a estrada de acesso a uma das
cinco pedreiras (a Pedreira do Acaba Mundo) que circundavam o local escolhido
para a construção da nova capital mineira, no final do século XIX, na região sul,
hoje, saída para a cidade de Nova Lima.
Isso é interessante, pois, pensando que em uma obra de arte, em um texto
literário, os detalhes ganham importantes relevos, resta-nos evidenciada a
pertinência desse epíteto, em especial por se encontrar em um relato de um vivo-
morto-vivo – e, ainda, que a primeira edição deste conto, em 1974 (em um livro que,
finalmente, tornou o autor conhecido publicamente, após quase trinta anos depois
de ter lançado o seu primeiro livro, em 1947) – é a época de agudizaçao da Ditadura
Militar brasileira. Lembramos que Estrada do Acaba Mundo é uma imagem,
digamos, metalinguisticamente elaborada, e parece emparelhar, confundir,
dissolver os limites das dimensões da vida e da morte, pois que, na situação em que
a personagem se encontra, estaria, sim, em vias de que o seu mundo se acabasse.
O parágrafo repetido adiante precede um aforismo, o qual produz um efeito
de reflexão filosófica – do personagem, mas que reverbera para fora do texto,

297Lembramos que é nesta cidade de Belo Horizonte que o escritor escreve grande parte de sua ficção,
escolhendo, inclusive, os seus cenários para a elaboração narrativa.

890
atingindo o leitor – sobre o sentido da vida: “Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar
bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausente de homens.”
(Rubião, 2010, p. 16.) Ora, parece (dizer-nos o texto): o que importa o estar vivo ou
morto – quase vivo ou quase morto – se não é possível encontrar nessas extensões
da existência/não existência justificativas para o ser e o devir?
Destaca-se, também, uma outra imagem que corrobora a natureza insólita
desta narrativa: atropelado, o corpo ensanguentado, sem vida, não anula as
faculdades mentais e cognitivas do personagem narrador, e nem a sua consciência
das circunstâncias. Aliás, em um debate entre os jovens que o atropelaram sobre
que destino dariam ao corpo – o qual não poderia representar nenhum empecilho
ao programa daquela noite – Zacarias intromete-se, revelando preocupação (sim,
preocupação!) com o que aconteceria ao seu corpo, por exemplo, se fosse lançado
em um despenhadeiro: “ficar jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas,
tornava-se para mim uma ideia insuportável” (RUBIÃO, 2010, p. 17).
O seu corpo poderia...
Pensemos, pois: se a um vivo, o que mais atemoriza é a morte, ou o risco de
morte, o que um morto temeria? Isso é, certamente, aterrador, uma vez que a morte
não lhe subtrai a consciência dos vivos (promovendo um desconforto, em função da
complexidade que essa situação poderia implicar).
Assim, ao final, Zacarias, o pirotécnico, o artista que arranja e organiza
metódica e tecnicamente fogos de artifício (ou de guerra) para provocar um
espetáculo, para iluminar um espaço com explosão de cores e luzes – apresenta-
se, ele próprio, como uma espécie de contemplação mágica, capaz de produzir em
nós, leitores, a sensação de engano dos nossos sentidos: “Teria morrido o
pirotécnico Zacarias?” (RUBIÃO, 2010, p. 14.)
Encontramo-nos, portanto, diante de uma metáfora ou metonímia das
dimensões, que aqui se apresentam intercambiáveis, da vida e da morte?

891
Considerações finais

Verifica-se, portanto, a estranheza inexplicada do protagonismo de um


personagem narrador morto-vivo que irrompe em um cenário cotidiano (realista),
impelindo a narrativa para uma condição inusitada e desconfortável.
Assim, a análise deste conto possibilita entrever as manifestações estéticas
da incerteza: Rubião concede à sua arte literária um viés insólito, pelos aspectos de
incompletude e ambiguidade298 que caracterizam o personagem Zacarias, o qual é
marcado por uma condição de identidade oscilante de “quase” morto e “quase” vivo.

Referências Bibliográficas

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Guinsburg).

298Lembramos que a expressão “incompletude e ambiguidade”, que comparece em nosso título encontra-se
no ensaio da Maria Cristina Batalha – apesar de que, aqui, não nos debruçamos sobre o que a ensaísta discute
nesse aspecto.

892
A VIOLÊNCIA E O INSÓLITO EM EL MATERIAL HUMANO,

DE RODRIGO REY ROSA

Rodrigo de Freitas Faqueri299

Introdução

Contrária aos critérios de estudo estabelecidos por outras ciências, a


Literatura é o processo imaginário que tece e rege as regras de análise. Bastazin
(2006: 37) afirma que o “trabalho com a palavra origina ideias que, entretecidas,
criam o objeto poético”. Desse modo, ao entretecerem-se e entrecruzarem-se, as
palavras adquirem novos sentidos e formas, metamorfoseando-se com a tessitura
do texto na diversidade do mundo, dos povos, das culturas.
Voltando-se o olhar para a literatura hispano-americana a partir da segunda
metade do século XX, percebem-se novos caminhos traçados pelos diversos
autores presentes neste referido século. A produção literária se abre em muitos
caminhos distintos, nos quais vemos a poesia do chileno Pablo Neruda, que é às
vezes passional, às vezes política; os ensaios de Octavio Paz; a prosa intelectual
de Borges e seus infinitos labirintos; os contos geniais de Cortázar, que usa de forma
magistral o absurdo em muitas de suas narrativas; e o realismo mágico de Gabriel
García Márquez e a representação simbólica da América latina por meio da criação,
desenvolvimento e total decadência de Macondo.
Nos anos seguintes, depois deste boom literário, o que deixa suas marcas na
produçãoo cultural hispano-americana é a ditadura. Surge, então, na América
Central, uma literatura de testimonio (testemunho) que permaneceu por muitos anos
como uma das representações mais fortes e característica dos guerrilheiros locais
e de suas memórias de guerra contra os governos repressores.
Nos países do “Istmo”, as narrativas produzidas após esse período (“post-
testimonios”), se fazem valer da necessidade de reconstruir e evidenciar o cenário
dessas nações assim como a necessidade de se estruturar parâmetros para uma

299Doutorando no curso de pós-graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie,


São Paulo. Professor Adjunto da Universidade Paulista (Unip).

893
condição humana devastada e perseguida pelas sombras de um passado recente
tenebroso. Assim, dentro deste panorama, encontram-se as obras do escritor
guatemalteco Rodrigo Rey Rosa.
Nascido na Guatemala em 1958, Rey Rosa é um dos novos nomes da
literatura centro-americana (e hispano-americana) contemporânea. É um autor que
traz uma perspectiva renovadora para a literatura do Istmo e busca novas temáticas
que se fazem presentes nesta parte do continente. Destaca-se por sua
originalidade, sobriedade e aparente transparência em seus escritos que buscam
trazer o sentimento que está presente na atualidade na América Central: os períodos
das guerras civis, o sofrimento, a desilusão e o desengano pós-guerra, entre outros
elementos que parecem ser retratados com maior grau em suas narrativas como a
violência e uma desesperança filosófica.
Sendo assim, esta breve pesquisa objetiva analisar a obra El Material
Humano ([2009] 2011) a fim de se evidenciar uma narrativa baseada na estética da
violência, a partir das imagens presentes no texto e na própria construção da
narrativa proposta pelo autor guatemalteco, buscando também propiciar um
possível diálogo com o gênero fantástico no tanger dos traços de um insólito
ocasionado pelo absurdo da realidade.
A perspectiva fantástica apresentada nesta pesquisa parece ser utilizada pelo
autor não só para se enfatizar as denúncias presentes na narrativa em relação à
história da Guatemala, mas também para proporcionar uma reflexão sobre a
pluralidade de sentidos ocasionada pelas construções imagéticas do insólito. Em El
Material Humano, Rey Rosa traz indícios de que a narrativa será autobiográfica
pelas semelhanças existentes entre a vida do autor e do narrador. Entretanto, com
o desenvolvimento da trama, o real e o ficcional mesclam-se nas ações e
indagações do protagonista, fazendo com que a aproximação com o real seja posta
em cheque pelo absurdo que se pode encontrar no cotidiano descrito no enredo.

894
Cultura e estética da violência

No início da década de 1990, a narrativa centro-americana se transforma em


um “espaço”, no qual a própria literatura se mostra com características relacionadas
à violência em diversos graus e expressões:
La narrativa centroamericana a partir de la década de 1990 […] tiene de
relacionarse con la violencia en tanto que dinamiza las dimensiones de las
representaciones, las reacciones y los desplazamientos de la violencia en
sus más diversas facetas hasta convertirse en un acto de violencia. Está
claro que el corpus de esta literatura permanece abierto, y que incluye una
gran cantidad de autores, obras y tipos de textos, desde sex, drugs and
(no, no rock’n roll, sino) salsa hasta la novela negra y la novela policiaca,
una forma cada vez más popular en la región, siendo su cercanía con los
medios masivos más que evidente en cuanto a lo que a las técnicas
narrativas se refiere. (MACKENBACH e WALLNER, 2008: 10)

Dentro deste cenário contrastivo e tenso da América Central, surgem autores


que pretendem mostrar um retrato contundente de seus países e de suas
realidades, agregando um novo estilo em sua narrativa, que por sua vez é marcado,
em algumas ocasiões, pela precisão e pela agilidade e, em outras, pela imagem da
cidade como locus terribilis, onde todos os pesadelos parecem se concentrar nela e
se questiona como é possível sobreviver em um ambiente tão inóspito (Mackenbach
e Wallner, 2008).
Rey Rosa é um escritor do período denominado “postguerra”. Na Guatemala,
entre 1960 até 1996, época na qual se passaram duas guerras civis, se estima que
mais de duzentas e cinquenta mil pessoas morreram e mais de um milhão tenha
desaparecido, sendo estes conflitos colocados entre os mais cruéis na história das
guerras civis sucedidas no século XX. Assim, parece-se construir uma mentalidade
de mostrar a nova realidade do país e da região a partir de novas estratégias escritas
que percorrem o cenário e as indagações atuais:
[...] por un lado, la incorporación de elementos de la cultura popular urbana
que aparece muchas veces vinculada a la sátira, el humor y la ironía,
estrategias que apuntan a la particular importancia que se le otorga a la
oralidad y a su escenificación en los textos escritos. Por otro lado, destaca
en un amplio corpus narrativo la presencia de diversos elementos propios
de la novela policiaca tradicional y de la novela negra, como el motivo del
crimen y la presencia/ausencia del detective, que son constantemente
subvertidos y parodiados. También podemos mencionar una presencia
destacada de los mass media como la televisión, la radio y la prensa
(especialmente la prensa amarillista). (MACKENBACH e WALLNER, 2008:
8)

895
Assim, surge a ideia da cultura da violência e a estética da violência que se
propõe destacar neste artigo. Tem-se como definição da expressão cultura da
violência como o legado histórico da violência e sua consequente aceitação na
dinâmica cotidiana normal de um determinado lugar ou país. Aceitam-se a
impunidade generalizada, o autoritarismo vigente e constante, a militarização da
cultura cidadã, um sistema judiciário fraco e inoperante, que se manifesta a partir
das próprias ações do Estado e em sua relação com a população e que gera uma
“cultura do silêncio” exatamente pela ineficiência do sistema forense, pela violência
praticada pelo poder Executivo e pela resposta negativa da própria população a
todos esses acontecimentos (CUEVAS MOLINA, 2012: 147).
Nesta cultura se vê a violência como a única maneira viável como resposta
aos conflitos encontrados na sociedade. Assim, considera-se normal e aceitável
responder à violência cotidiana a que alguém está submetido com a própria violência
para se defender ou reagir à primeira violência exposta. Põem-se nos dois lados da
moeda a mesma marca e a exata igualdade entre os signos.
Seguindo este pensamento, pode-se dizer que as narrativas centro-
americanas vão se construindo por meio de diversos elementos que costumam
representar uma violência estrutural direta/indireta e que a dinâmica da produção
narrativa a partir da década de 1990 busca interagir profundamente com as os
exemplos de manifestações da violência cotidiana da região:
En forma directa y breve se muestran múltiples elementos que pueden ser
recorridos como constantes dentro de la producción narrativa
centroamericana que emerge a partir de la década de 1990 y que pueden
organizarse dinámicamente desde la interacción de al menos las siguientes
dimensiones: las representaciones de la violencia, las reacciones ante la
violencia, los desplazamientos de la violencia y la literatura como violencia.
(MACKENBACH e WALLNER, 2008: 82)

Pensando na literatura como violência, conforme exposto pelos autores,


pode-se dimensionar o conceito da estética da violência, pois a violência neste
momento não é somente mais uma temática, mas também é parte de uma estrutura
de narratividade presente nos textos produzidos na América Central a partir de 1990.
Walter Benjamin foi um dos primeiros a chamar a atenção das democracias
ocidentais para o perigo da estética na política. Para o autor, quando Hitler

896
encomendou filmes sobre a Alemanha e sobre a SS, o Führer transformou os
aspectos estéticos existentes na política e incorporou uma nova definição ao termo
em questão.
O mesmo parecer ter acontecido com a estética da violência, pois a barbárie
se tornou natural e milhões puderam expor seus instintos selvagens sem
consciência de culpa. Atualmente, a estética da violência sobrevive e possui grande
força. Não mais como um ritual cruel de genocídios e extermínios ao som de
canções populares, mas também estetizados pelos media. A imprensa em geral e a
televisão “mercantilizam” a violência como um produto racionalmente vendável, da
mesma forma, sem consciência de culpa. O horror, a destruição, as mutilações, etc.
se tornaram um bom prato para um público sedente por sangue. Assim, na estética
da violência, a própria violência parece deslocar-se, segundo, Wallner (2003: 140):

hacia el espacio existencial, hacia el uso de un lenguaje que arremete


contra el lector y a la utilización de “estrategias escriturales” que rompen
los órdenes tradicionales en el nivel formal. Se trata de una estética que
pretende resolverse en una agresividad que da la impresión de ser gratuita .

Para o escritor alemão Ottmar Ette (2005), sobre a nova literatura como
experimentação de uma nova estética, existem as definições de “literatura de pós-
guerra”, “narrativa da violência”, “estética do terror e do cinismo” e a “literatura do
desencanto”.
Em suas narrativas, além do enigma presente, Rey Rosa trabalha a temática
da violência que transcende a realidade e se magnetiza na ficção focada na
circunstância da Guatemala em pós-guerra e o absurdo narrado em uma prosa de
grau zero que traduz a desesperança filosófica em seus contos e também em seus
romances (GUTIÉRREZ, 2008).

897
El Material Humano ([2009] 2011)

Em El material humano ([2009] 2011), além da violência claramente exposta,


a postura de Rey Rosa ao construir seu narrador propõe-se a eliminação da fronteira
entre a realidade e a ficção e habilita a possibilidade de esses dois universos se
misturarem a ponto de se não se poder distingui-los claramente por conta do
absurdo que existente no cotidiano do narrador-protagonista e de suas experiências:

Moviéndose en las arenas movedizas entre la realidad y la ficción, el


narrador-protagonista relata su experiencia, entre kafkiana y borgeana, de
investigar en un archivo policial. Evocamos a Kafka y a Borges porque la
experiencia se ve y se interpreta en clave literaria, al intercalarse en el
diario del narrador citas de varios autores en forma de comentario o
reflexión. (JASTRZĘBSKA, 2012: 7)

Na obra analisada, o narrador-protagonista traz algumas citações de


escritores conhecidos, como Kafka, Borges e Albert Camus, assim como as suas
experiências pessoais como investigador para analisar um arquivo policial. Assim,
o real e o ficcional se emaranharam na narrativa. Segundo a autora polonesa (2012:
7), Rey Rosa traz essa característica de literariedade, enfatizando suas influências
e tendências assim como seu contexto histórico para eliminar as barreiras entre o
real e o imaginário.
As soluções propostas pelo narrador aos enigmas de sua investigação
parecem se multiplicar trazer novos rumos à narrativa ao invés de responder aos
questionamentos presentes. A estruturação dos enigmas que aprecem na narrativa
por conta dos acontecimentos curiosos em torno dos arquivos policiais pesquisados
propõe pensar-se no jardim borgeano dos senderos que se birfuncan e no detetive
que imagina seu trabalho como a movimentação de um labirinto infinito. As dúvidas
que envolvem o narrador e inclusive seus medos diante de telefonemas no meio da
noite e sonhos confusos não parecem ser solucionados, mas sim multiplicados por
variantes presentes no enredo. O próprio narrador não aclara seus questionamentos
e chega a propor o seguinte:
Inesperadamente me pergunto que tipo de Minotauro pode se esconder
num labirinto como este. Talvez seja um traço de pensamento hereditário
acreditar que todo labirinto tem seu Minotauro. Si este não o tivesse, eu
poderia cair na tentação de inventá-lo. (REY ROSA, 2011: 58)

898
Nesta narrativa, ao construir seu narrador-protagonista e a história que o
involucra, Rey Rosa parece fazer com que se elimine a fronteira entre a realidade e
a ficção. A personagem principal, que não traz um nome próprio declarado,
apresenta semelhanças com o próprio autor: ambos recebem a permissão de
estudar os arquivos policiais da Polícia Nacional Guatemalteca encontrados no
porão de um hospital militar em 2006. A nota de abertura do livro também parece
buscar uma aproximação forte com a realidade: “Embora não pareça, embora não
queira parecer, esta é uma obra de ficção.” (REY ROSA, 2011: 7). A nota final,
porém, colocada no livro traz um caráter ambíguo e gera uma dúvida sobre a
veracidade do texto: “Alguns personagens pediram que seus nomes fossem
alterados.” (REY ROSA, 2011: 182).
Dividida em cadernetas e cadernos de anotações, a narrativa se produz,
aparentemente, como um relato das experiências e das descobertas do narrador-
protagonista no Arquivo do antigo Palácio da Polícia. Entretanto, os relatos sobre os
arquivos se misturam com experiências do cotidiano vividas além dos papéis
achados e do lugar que os guarda. O narrador intercala sonhos e situações em
sequências que, por serem apresentados em fragmentos de dias como em um diário
e não em um texto fluído, trazem uma perspectiva de alinearidade dentro da
realidade cosntruída na trama ao mesmo tempo em que a violência transborda nas
palavras escritas e nas próprias ações narradas:
Durante um dos intervalos (enquanto arquivistas e policiais jogam futebol
amistosamente), examino os restos de automóveis acumulados ali ao
longo de meio século. Um Renault partido ao meio me chama a atenção; e
a fuselagem de um teco-teco Cessna – que deve ter caído, imagino, dentro
do perímetro da cidade. O vento levanta um pequeno redemoinho de pó de
cor creme.
Um alarme contra roubo soa em algum lugar. (REY ROSA, 2009: 44)

Neste trecho destacado e em vários outros, as imagens que são construídas


na narrativa se contrapõem entre a calma e a agressividade, quase sempre a
primeira sendo transgredida pela agressividade direta ou indireta dos fatos ocorridos
que refletem a violência pertencente ao texto.
Além disso, a violência também parece permitir a construção do insólito
dentro da narrativa a partir dos sonhos tidos pelo protagonista e pelo absurdo

899
narrado, por exemplo, nos motivos de fichamento de guatemaltecos nos arquivos
policiais por “delitos comuns”:
Sarceño O. Juan. Nasce em 1925. Jardineiro. Mora com sua irmã. Fichado
em 1945 (Governo da Revolução) por dançar tango na cervejaria «El
Gaucho», onde isso é proibido.
Rosales Vidal Francisco. Nasce em 1925. Tipógrafo. Fichado em 1940
por jogar bola em via pública.
Pineda C. Marta. Nasce em 1914. Sem domicílio fixo. Fichada em 1945
por exercer o amor livre clandestino. Outros dados: mulher insuportável e
insolente. Vive sozinha.
Carranza Ávila Rosa María. Nasce em 1920. Serviços domésticos.
Fichada em 1944 por cometer adultério em sua casa.
García Aceituno Francisca. Nasce em 1925. Profissão: seu sexo. Fichada
em 1940 por vender doces sem alvará.
Aceytuno Salvador Luis Fabio. Nasce em 1920 em Santa Cruz, El
Quiché. Fichado em 1939 por coabitar com uma porca.
Cabrera David (filho de Rómulo Zamora e Socorro Zamora). Nasce em
1925. Sem profissão. Fichado em 1934 por implorar a caridade pública.
Izil Yaguas José Juan. Nasce em (ignora a data). Vive sozinho e sem
domicílio fixo. Fichado em 1938 por não usar avental para vender pão.
Valdés P. Sergio Estuardo. Nasce em 1931. Fotógrafo. Fichado em 1952
por soltar um urubu dentro do Teatro Capitol.
Novales Dolores. Nasce em 1919. Hondurenha (Puerto Cortez). Fichada
em 1955 por desejar deixar a prostituição e submeter-se à vida honrada.
(REY ROSA, 2011: 25-36)

Nesta parte do texto, tem-se não só a simples descrição de pessoas que


foram fichadas, mas sim a violência desnecessária e abusiva da polícia
guatemalteca da época que beira o absurdo e o irracional, pois os fatos relatados
são de atitudes presentes no cotidiano e que eram levadas ao extremo a ponto de
fazer com que tais pessoas fossem consideradas culpadas por seus atos comuns.
Os motivos pelos quais as pessoas são anotadas nos arquivos chegam a beirar o
cômico porque, dentro de uma realidade racional, tais atos não seriam postos como
delitos, talvez, no máximo, como desvios de condutas morais estabelecidos na
sociedade, mas não transgressões severas de leis cruciais do Estado. É a violência
gratuita e desnecessária à qual se submeteram as pessoas fichadas e a que se
submete o próprio protagonista. O narrador, após enumeram essas fichas, faz uma
declaração importante:
Não seria prudente chegar a qualquer conclusão tomando por base a
enumeração caótica e caprichosa de uma série de fichas policiais que só
resistiram ao tempo e à intempérie por acaso; [...] Mas a série mostra a
índole arbitrária e muitas vezes perversa de nosso típico e original sistema
de justiça, que assentou as bases para a violência irrompida nos país nos
anos 1980 e cujas sequelas ainda vivemos. (REY ROSA, 2011: 39)

900
Quando seu estudo começa a trazer à tona a violência do Estado por meio
da polícia, suspendem o seu acesso aos arquivos por tempo indeterminado e sem
uma explicação plausível. Além disso, durante o período de sua investigação no
Arquivo, o narrador relata diversas vezes em que ligam para sua casa, porém
ninguém diz nada, a ponto de desenvolver o desejo do narrador em fugir para outro
país por medo de represálias mais fortes que lhe levem a perder a vida:
Após alguns meses trabalhando no Arquivo, penso que posso ser ouvido
cada vez que falo ao telefone (principalmente no celular). Uma coisa que o
chefe me disse outro dia, sobre não ser conveniente discutir minha
suspensão por telefone, reforça meu receio. (REY ROSA, 2011: 70)
[...] O telefone começou a tocar por volta das duas da manhã. Levantei-me
para atender, mas não havia ninguém na linha. Isso se repetiu pelo menos
cinco vezes. Pensei que se tratava de um engano, talvez a programação
equivocada de algum serviço de teledespertador. (2011: 76)
[...] Fiquei mais um tempo acordado lendo e-mails e depois fui para a cama.
Pouco depois o telefone tocou, levantei para atender, e nada. Deitei
novamente e dormi. (2011: 97)
[...] Um pouco mais tarde, o telefone tocou. No início, não se ouviu nada.
Depois, uma risadinha que parecia de uma velha, e só posso qualificar de
maligna. O número, “não identificado”. De repente, sinto ânsia e corro para
o banheiro. (2011: 145)
[...] O telefone toca. Atendo. “Não vá alvoroçar o formigueiro”, diz alguém.
Depois, click, a linha morta. (2001: 157)
[...] Telefonema silencioso ontem, por volta das duas da manhã. Pía estava
comigo, o que me inquieta ainda mais. (2011: 174)
[...] Quase meia-noite. Dois telefonemas, um imediatamente depois do
outro. No outro extremo da linha, silêncio, talvez barulho de chuva, mas
não está chovendo esta noite sobre a Cidade de Guatemala. (2011: 189)

Os relatos dos telefonemas são intercalados com cenas do cotidiano do


narrador que sente a necessidade de se precaver quanto à sua vida e à sua família.
As constantes ligações silenciosas deixam não só a personagem, mas também o
leitor com a sensação de que alguém/algo está vigiando a narrativa contada. As
descrições dos sonhos que o protagonista tem durante as noites, também reforçam
um tom desesperador e agonizante na narrativa que acabam se transformando em
uma agressividade da própria escrita. Os questionamentos feitos, os pensamentos
filosóficos expostos e discutidos e as dúvidas da condição humana se transformam
em uma agressividade, escrita e conceitual, dentro da narrativa. Os
questionamentos levantados pelo protagonista parecem levantar hipóteses que
ultrapassam o sentido racional da realidade diante de um ato de violência, pois seus
sonhos são aterrorizantes assim como a sua realidade na Guatemala.

901
O absurdo trazido por essa realidade violenta parece representar o que o
protagonista põe como explicação para tentar compreender as atrocidades
praticadas pelo ditador Ubico quando mandava matar pessoas primeiro e depois
averiguava se eram culpadas ou não: Sadismo histórico. Realismo sádico. (REY
ROSA, 2011: 53).
Portanto, pode-se concluir a partir desta breve análise sobre o romance
apresentado que Rey Rosa parece trazer seus textos dentro de contextos que
pretendem eliminar as barreiras entre o real e o imaginário, utilizando-se do absurdo
para mesclar estes dois mundos que parecem transbordar uma violência também
absurda, mas assustadoramente cotidiana. Sua escrita apresenta uma estrutura
narrativa engendrada a partir do jogo com as palavras e seus significados,
propiciando ao leitor um caminho construído por veredas múltiplas, além de um
processo de indagação sobre o aceitável e o normal a partir dos questionamentos
contidos em suas narrativas.

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WALLNER, Alexandra Ortiz. Trazar Un Itinerario De Lectura: (Des)Figuraciones De
La Violencia En Una Novela Guatemalteca. Costa Rica: Revista Inter Sedes, 2003.

903
ANALISE, SOBRE A ÓTICA PUBLICITÁRIA CONTEMPORÂNEA, DO ANUNCIO
IMPRESSO “DUPLA POMADA DAS SULTANAS E ÁGUA CARMINATIVA” NO
ROMANCE HISTÓRIA DA GRANDEZA E DA DECADÊNCIA DE CÉSAR
BIROTTEAU NA OBRA A COMÉDIA HUMANA DE HONORÉ DE BALZAC

Rogério Aparecido Martins300


Introdução

Honoré de Balzac (1799-1850), buscou imprimir em suas obras a realidade


da sociedade em que vivia seu leitor, colocando pessoas e lugares reais interagindo
com seus personagens fictícios. Seguindo essa característica, em 1837, escreveu
o romance A História da Grandeza e Decadência de César Birotteau, com o título
original em francês Histoire de la Grandeur et de la Décadence de César Birotteau,
baseado na história real de um perfumista francês conhecido como Bully, que
detinha muitas posses graças a criação de uma loção de toalete, à qual deu seu
nome, mas faliu devido a Revolução Francesa de 1830.
Esse romance de Balzac, narra a história de César Birotteau, perfumista
francês que enriqueceu na sociedade burguesa de 1830, depois de encontrar um
livro árabe que tratava de perfumes e natureza da derme. Com o auxílio de outro
personagem, o “químico Vauquelin”, elaborou duas fórmulas de produtos
cosméticos: ”Dupla Pomada das Sultanas e Água Carminativa”
[...] pretenso livro árabe, espécie de romance escrito por um médico do
século passado, e deu com uma página que tratava de perfumes.
Encostado a uma árvore do bulevar para folear o livro, leu uma nota na
qual o autor descrevia a natureza da derme e da epiderme e
demonstrava que tal pomada ou tal sabonete produziam um efeito
muitas vezes contrário ao que deles se esperava [...] Pouco confiante,
contudo, nas suas luzes, foi à casa dum famoso químico, Vauquelin, a
quem pediu com toda a naturalidade instruções sobre a maneira de
conseguir um duplo cosmético que produzisse efeitos apropriados aos
diversos tipos da epiderme humana. (BALZAC. 2012, p, 464).

300Docente no CCL – Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie e discente


do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (doutorado) em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.

904
A elaboração do estudo sobre o objeto-título deste trabalho está na peça
fictícia tipo alltype301 transcrita abaixo, criada por Balzac, pelas mãos de Birrotteau,
para divulgação desses revolucionários produtos de tratamento de clareamento da
derme:

DUPLA POMADA DAS SULTANAS E ÁGUA CARMINATIVA


DE CÉSAR BIROTTEAU

DESCOBERTA MARAVILHOSA
APROVADA PELO INSTITUTO DA FRANÇA!

Há muito tempo que uma pomada para as mãos e uma água para o rosto que
dessem resultado superior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados da pele
vinham sendo geralmente desejados pelos dois sexos na Europa. Após ter
consagrado longas vigílias ao estudo da derme e da epiderme nos dois sexos, que,
tanto um como o outro, dão, com toda a razão, o maior apreço à suavidade, à
maciez, ao brilho, ao aveludado da pele, o sr. Biroteau, perfumista largamente
conhecido na capital e no estrangeiro, descobriu uma pomada e uma água
justamente denominadas, desde sua aparição, maravilhosas, pelos elegantes e
pelas elegantes de Paris. Com efeito, esta pomada e esta água possuem admiráveis
propriedades para agir sobre a pele sem enrugá-la prematuramente, consequência
infalível das drogas que inconsideradamente têm sido usadas até agora e
inventadas por ignorantes ambiciosos. Esta descoberta baseia-se na classificação
dos temperamentos, que se dividem em duas grandes categorias indicadas pela cor
da pomada e da água, que são cor-de-rosa para a derme e a epiderme das pessoas
de constituição linfática e brancas para as das pessoas de temperamento
sanguíneo.
Esta pomada é denominada Pomada das Sultanas porque já fora descoberta
por um medico árabe para uso nos serralhos. Foi aprovada pelo Instituto de acordo

301 Anúncio publicitário elaborado somente com texto para mídia impressa

905
com o parecer do nosso ilustre químico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmula
obedece aos mesmos princípios que ditaram a composição da pomada.
Esta preciosa Pomada, que exala os mais suaves perfumes, apaga as
sardas mais rebeldes, clareia as epidermes mais recalcitrantes e elimina os suores
das mãos de que tanto queixam as mulheres e os homens.
A Água Carminativa faz desaparecer essas pequenas espinhas que, em
certos momentos, acontecem inopinadamente as mulheres e contrariam seus
projetos de ir a um baile; refresca e reaviva as cores abrindo ou fechando os poros
segundo as exigências do temperamento; ela já é tão conhecida por sua
propriedade de deter os ultrajes do tempo que muitas damas, por gratidão, a
denominaram A Amiga da Beleza!
A água-de-colônia é pura e simplesmente um perfume banal sem eficácia
especial, ao passo que a Dupla Pomada das Sultanas e a Água Carminativa são
duas composições operantes, duma força motriz que age, sem perigo, sobre as
funções internas, secundando-as; seus odores, essencialmente balsâmicos e
dotados duma faculdade recreativa, alegram admiravelmente o coração e o cérebro,
dão encanto às ideias e as estimulam; são tão admiráveis por seu mérito como por
sua simplicidade, enfim, constituem um atrativo a mais oferecido às mulheres e um
meio de sedução colocados à disposição dos homens.
O uso diário da Água dissipa a ardência causada pela navalha; preserva,
igualmente, os lábios de gretas e os mantêm vermelhos; seu emprego continuado
apaga naturalmente as sardas e acaba restituindo o tom à pele. Esses resultados
traduzem sempre, no homem, um perfeito equilíbrio entre os humores, o que tende
a liberar as pessoas sujeitas à enxaqueca dessa terrível moléstia. Finalmente, a
Água Carminativa, que pode ser empregada pelas mulheres em todos os seus
cuidados da pele, evita as afecções cutâneas sem prejudicar a transpiração dos
tecidos, ao mesmo tempo que lhes comunica um aveludado persistente.
Os pedidos, livres de porte, devem ser dirigidos ao sr. César
Birotteau,sucessor de Ragon, antigo perfumista da rainha Maria Antonieta, na
Rainha das Rosas, Rue Saint-Honoré, em Paris, próximo à Place Vendôme.

906
O preço do pote de Pomada é de três francos e o do vidro de Água de seis
francos
O sr. César Birotteau, a fim de evitar as imitações, previne o publico de que
a Pomada vem envolta em papel com sua assinatura e que os vidros trazem seu
monograma gravado.
(BALZAC. 2012, p, 466 – 468)

Após esta brevíssima contextualização da obra e apresentação integral da


peça publicitária traduzida, esse trabalho depreender-se-á buscar suas
equivalências criativas em relação a peças (com texto e imagem) veiculadas
recentemente no meio publicitário. Vale ressaltar que essa análise não foi realizada
somente com peças somente do tipo alltype, pois a característica do atual
comportamento de compreensão do anúncio requer a visualização da imagem como
forma de tangibilizar rapidamente o resultado final da promessa do produto.

Análise 1 - título.

DUPLA POMADA DAS SULTANAS E ÁGUA CARMINATIVA


A apresentação das marcas dos produtos, colocadas como título da peça,
aponta a existência de uma linha de produtos fabricados para aplicação no mesmo
segmento e finalidade, mas com formas de utilização diferentes.

(Fonte: ASEPXIA, online)

 Exemplo atual: a linha de produtos Asepxia: Pó Compacto Antiacne; Loção


Adstringente; Gel Antiacne.

907
Análise 2 - título.

DE CÉSAR BIROTTEAU
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) coloca a
obrigatoriedade de um responsável técnico assinar (e assumir) quaisquer
responsabilidades sobre o produto ofertado ao mercado no segmento médico-
farmacêutico, o que envolve a cosmetologia. Outrossim, o nome do proprietário logo
abaixo do título sugere a utilização de uma estratégia de “Marca Corporativa”, ou
seja, o reforço de um nome conhecido e forte avalizando à qualidade e procedência
do produto.

(Fonte: MEDLEY, online)

 Exemplo atual: produtos farmacêuticos genéricos da Indústria Medley -


Aciclovir Medley (Zovirax); Amoxicilina Medley (Amoxil); Betametasona
Medley (Celestone); Bromazepam Medley (Lexotan); Diclofenaco
Dietilamônio Medley (Cataflan Emulgel).

Análise 3 - título.
DESCOBERTA MARAVILHOSA
APROVADA PELO INSTITUTO DA FRANÇA!
Uma das funções estratégicas de da propaganda é a “informativa”. Sua
utilização é realizada quando de um lançamento de produto ou serviço, geralmente
com grande valor tecnológico agregado. Nesse sentido, a frase “Descoberta
Maravilhosa” dispõe-se a chamar a atenção do publico a uma novidade fantástica
em um novo produto. Outrossim, “Aprovada pelo Instituto da França”, traz a

908
chancela de permissão de um órgão oficial governamental que regulamenta a
utilização de produtos, antes da comercialização, similar ao órgão brasileiro
ANVISA.

(Fonte: CENASLIM, online)

 Exemplo atual: para o lançamento do produto emagrecedor Cenaslim:


“Emagrecer Rápido e sem Sofrimento?” (destaque ao selo de “produto
ANVISA aprovado”)

Análise 4 - texto.

“Há muito tempo que uma pomada para as mãos e uma água para o rosto que
dessem resultado superior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados da pele
vinham sendo geralmente desejados pelos dois sexos na Europa.”
Neste trecho, podemos supor que, com base em Maslow, psicólogo
comportamental americano Abraham Maslow, que identificou as várias etapas
psicológicas motivacionais entre “Necessidades e Desejos”, desde a necessidade
básica fisiológica até o desejo de realização pessoal, os produtos anunciados
seguem a linha do conceito criativo de “há muito tempo você, consumidor ou
consumidora, não vê um produto que realmente satisfaça seus desejos de bem
estar”, visando produzir o desejo de compra sobre uma necessidade latente (ou
inexistente) de demanda.

909
(Fonte: NIVEA HAUS, online)
O primeiro espaço NIVEA HAUS, inaugurado em 2006 na cidade de
Hamburgo, posiciona-se como um local de bem-estar para fugas rápidas de lazer,
durante o dia-a-dia estressado da semana.

Análise 5 - texto.

Após ter consagrado longas vigílias ao estudo da derme e da epiderme nos dois
sexos, que, tanto um como o outro, dão, com toda a razão, o maior apreço à
suavidade, à maciez, ao brilho, ao aveludado da pele, o sr. Biroteau, perfumista
largamente conhecido na capital e no estrangeiro, descobriu uma pomada e uma
água justamente denominadas, desde sua aparição, maravilhosas, pelos elegantes
e pelas elegantes de Paris.
Aqui, o texto pode ser caracterizado com a utilização de estratégia de Brand
Equity302. Ou seja, Honoré de Balzac apresenta os produtos calcados em profundo
estudo de um renomado perfumista, sr. Biroteau, e focado nos atributos de cuidado
com a pele, trazendo os benefícios de suavidade, maciez, brilho e aveludamento.
Outro ponto interessante é a tentativa de aderência do produto com pessoas, sem
citar nomes, elegantes, tanto homens como mulheres, que já utilizam os produtos.

302 Termo que se refere a agregar valor pelo atributo da marca e/ou produto

910
(Fonte: CHANEL, online)

Na publicidade atual, a inserção de midiáticos vinculados ao produto, como o


exemplo da marca Chanel com o ator Brad Pitt, é algo comum em todos os
segmentos de mercado buscando atestar que o midiático usa e aprova o produto.

Análise 6 - texto.

Com efeito, esta pomada e esta água possuem admiráveis propriedades para agir
sobre a pele sem enrugá-la prematuramente, consequência infalível das drogas que
inconsideradamente têm sido usadas até agora e inventadas por ignorantes
ambiciosos. Esta descoberta baseia-se na classificação dos temperamentos, que
se dividem em duas grandes categorias indicadas pela cor da pomada e da água,
que são cor-de-rosa para a derme e a epiderme das pessoas de constituição linfática
e brancas para as das pessoas de temperamento sanguíneo.
Em um primeiro momento, há o alerta sobre a utilização de produtos
manufaturados com a utilização irresponsável de insumos agressivos a pele. Esse
trecho aponta, de maneira ética, a concorrência, pois não coloca nomes de outras
marcas. Ainda nesse parágrafo, a analogia com a estratégia de comunicação
publicitaria atual está no processo de “segmentação”, ou seja, focar na principal
parcela de compradores do grande público, para tornar mais eficaz a comunicação
com o mercado consumidor.

911
(Fonte: NATURA CHRONOS, online)

Natura Chronos foi o primeiro produto, no Brasil, a destacar a idade da mulher


(algo ainda considerado deselegante para algumas senhoras). Essa forma de
comunicação foi essencial para segmentar o produto específico para cada idade, a
fim de que o consumidor obtenha o melhor resultado do produto.

Análise 7 - texto.

Esta pomada é denominada Pomada das Sultanas porque já fora descoberta por
um medico árabe para uso nos serralhos. Foi aprovada pelo Instituto de acordo com
o parecer do nosso ilustre químico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmula
obedece aos mesmos princípios que ditaram a composição da pomada.
Além da ratificação de certificação do Instituto, por meio de um renomado
químico, há a informação de que a Pomada já fora descoberta por um médico fora
da França, o que naquela ocasião, assim como nos tempos atuais, busca pegar o
mote de que o produto estrangeiro (ou internacionalizado) é melhor e mais confiável.

(Fonte: FALANDO DE BELEZA, online)

912
Um grande exemplo na atualidade é o anúncio veiculado da marca de
cosméticos Anna Pegova, com o subtítulo “O cosmético funcional que virou febre
na Ásia, Europa e Estados Unidos”.

Análise 8 - texto.

Esta preciosa Pomada, que exala os mais suaves perfumes, apaga as sardas mais
rebeldes, clareia as epidermes mais recalcitrantes e elimina os suores das mãos de
que tanto queixam as mulheres e os homens.
A Água Carminativa faz desaparecer essas pequenas espinhas que, em certos
momentos, acontecem inopinadamente as mulheres e contrariam seus projetos de
ir a um baile; refresca e reaviva as cores abrindo ou fechando os poros segundo as
exigências do temperamento; ela já é tão conhecida por sua propriedade de deter
os ultrajes do tempo que muitas damas, por gratidão, a denominaram A Amiga da
Beleza!
Pode-se notar que, também, no século XVIII, o cuidado com a beleza e a
coloração da pele eram muito presentes na sociedade. Conforme sugere o texto,
desde aquela época, aparecimentos inoportunos de espinhas, olheiras etc., podem
afetar o intensamente a questão psicológica de quem está prestes a participar, por
exemplo, de um evento social.

(Fonte: L’ORÉAL, online)

913
Esta peça da L’oreal, representa exatamente essa melhor aparência de forma
instantânea, destacando a frase “pele perfeita imediatamente”, não só para eventos
sociais que surgem sem prévio aviso, mas para o dia-a-dia corrido da mulher de
hoje.

Análise 9 - texto.

A água-de-colônia é pura e simplesmente um perfume banal sem eficácia especial,


ao passo que a Dupla Pomada das Sultanas e a Água Carminativa são duas
composições operantes, duma força motriz que age, sem perigo, sobre as funções
internas, secundando-as; seus odores, essencialmente balsâmicos e dotados duma
faculdade recreativa, alegram admiravelmente o coração e o cérebro, dão encanto
às ideias e as estimulam; são tão admiráveis por seu mérito como por sua
simplicidade, enfim, constituem um atrativo a mais oferecido às mulheres e um meio
de sedução colocados à disposição dos homens.
Apontando como um atributo ao publico consumidor, a ideia de que “o menos
é mais”, ou seja, a simplicidade e eficiência tornam-se visíveis neste trecho quando
colocado concomitantemente às outras propriedades intrínsecas do produto. Além
de ressalta-los com um inicio comparativo a uma possível concorrente.

(Fonte: CICATRICURE, online)

Produto Cicatricure, inicialmente uma pomada destinada a amenizar


cicatrizes, é amplamente divulgada (e utilizada) como um tratamento simples e
eficaz para reverter os sinais de envelhecimento que a idade traz à pele.

914
Análise 10 - texto.

O uso diário da Água dissipa a ardência causada pela navalha; preserva,


igualmente, os lábios de gretas e os mantêm vermelhos; seu emprego continuado
apaga naturalmente as sardas e acaba restituindo o tom à pele. Esses resultados
traduzem sempre, no homem, um perfeito equilíbrio entre os humores, o que tende
a liberar as pessoas sujeitas à enxaqueca dessa terrível moléstia. Finalmente, a
Água Carminativa, que pode ser empregada pelas mulheres em todos os seus
cuidados da pele, evita as afecções cutâneas sem prejudicar a transpiração dos
tecidos, ao mesmo tempo que lhes comunica um aveludado persistente.
Tratando exclusivamente da “Água”, o texto aponta seus benefícios tanto
para homens como para mulheres, em, vale destacar, continuo uso do produto, para
obter os melhores resultados para as mais amplas necessidades.

(Fonte: NÃO + PÊLO, online)

A franquia no segmento de cuidados pessoais que mais cresce no país, Não


+ Pêlo, segue a linha de seu serviço de beleza e saúde com a perfeita combinação
do tratamento de beleza, continuada, com fotodepilação para ambos os sexos. A
promessa básica desse processo tecnológico de depilação é de não trazer os
desconfortos causados com o uso de outros depilantes tradicionais.

915
Análise 11 - texto.

Os pedidos, livres de porte, devem ser dirigidos ao sr. César Birotteau,sucessor de


Ragon, antigo perfumista da rainha Maria Antonieta, na Rainha das Rosas, Rue
Saint-Honoré, em Paris, próximo à Place Vendôme.
Começando a falar de valores monetários, Balzac caminha para o final da
peça, na abordagem do “fechamento da venda”, com a tática do “livre de frete”. Essa
chamada inteligente é utilizada para não causar impacto no preço, clara e
corretamente aplicada, após desfiar todos os benefícios e aplicações dos produtos.

(Fonte: BARUERI.OLX, online)

Neste anúncio de vendas online, bem como outros anúncios de vendas em


diversos segmentos, a utilização de “frete grátis” é fator de impacto na sensação de
preço menor no produto. Obviamente que o custo do frete já está embutido no preço
do próprio produto.

Análise 12 - texto.

O preço do pote de Pomada é de três francos e o do vidro de Água de seis francos


Continuando com o ponto “fechamento da venda”, percebe-se que o
personagem César Birotteau descreve inicialmente os benefícios dos produtos e,
depois, insere os preços, intencionando criar em primeiro lugar o desejo de
consumo, graças utilização estratégica de Brand Equity.

916
(Fonte: INFO.ABRIL, online)

Atualmente, a forma de inserir o preço de venda na comunicação de um


produto ou serviço é exatamente essa, ao final da peça, pelos mesmos motivos de
Balzac ao colocar, por meio de Birotteau, o preço no final do texto.

Análise 13- texto.

O sr. César Birotteau, a fim de evitar as imitações, previne o publico de que a


Pomada vem envolta em papel com sua assinatura e que os vidros trazem seu
monograma gravado.
A leitura desse trecho traz um velho ditado: “Consumidor não se engane,
compre somente o original”. O pedido de atenção do consumidor, no ato da compra,
deve-se, com base no decorrer do texto da peça, que a Água e a Pomada estão
surgindo em um mercado onde há concorrência direta.

(Fonte: LOJA COSMÉTICA, online)

Assim, como a comunicação acima do site da Loja Cosmética, apontando a


autenticidade de seus produtos com o aval da Associação dos Distribuidores e

917
Importadores de Perfumes, Cosméticos e Similares (ADIPEC), pode-se também
exemplificar essa questão com a chamada da montadora Volkswagen: Só use
peças originais VW. Atualmente, essa tentativa de persuasão publicitária é
empregada para diferenciar a empresa de sua concorrência e, principalmente, de
produtos “piratas” que assolam os mercados.

Conclusão
Além da observação de que prevalece a aplicação do modus operandi de
Balzac quanto à concepção de obra realística da sociedade, ao retratar as
necessidades reais de saúde e beleza das pessoas do século XVIII (exatamente
iguais as necessidades da atual sociedade), pode-se notar, nesta breve analise da
peça publicitária “Dupla Pomada das Sultanas e Água Carminativa”, que fica
evidente que foi concebida com técnicas de anúncios publicitários utilizados na
época, possivelmente aprendidos empiricamente, uma vez que, a princípio, não
existia bibliografia de teoria comunicacional mercadologia formal naquele período
do século XVIII.

Finalizando, outro ponto interessante de observação conclusiva é de que,


embora as mensagens publicitárias contemporâneas apresentem textos
considerados telegráficos (por isso, também, a utilização de imagens) para a rápida
leitura e captação da mensagem, devido ao corrido dia-a-dia da sociedade nas
grandes metrópoles, vale o destaque de que a peça publicitária analisada segue a
mesma linha de approach303 das peças publicitárias atuais, veiculadas no meio
revista, que carregam maior quantidade de informações em seu texto, considerados
mais longos.

Referências Bibliográficas

BALZAC, de Honoré. História da Grandeza e da Decadência de César Birotteau:


cenas da vida parisiense. In: A Comédia Humana. Vol. 8. Org. Paulo Rónai. Trad.

303 Linha de comunicação criativa abordada para o produto-público

918
Ernesto Pelanda, Gomes da Silveira e Vida. De Oliveira. Rev. Técnica: Glória
Carneiro do Amaral. 3. ed. São Paulo: Globo, 2012.
CHURCHILL, Gilber. PETER, Paul. Marketing: criando valor para os clientes. São
Pauo: Saraiva, 2012
LUPETTI, Marcélia. Administração em Publicidade: a verdadeira alma do negócio.
São Paulo: Thomson, 2010.

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919
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Erro! A referência de hiperlink não é válida.comedia-humana.
Acessado em 28.09.2014.

920
WEB EXPÕE CONTRADIÇÕES DA NARRATIVA HUMANA

Rosinei Aparecida Naves304

Introdução

A veiculação da informação “na palma da mão” e em tempo real por milhares


de pessoas potencializa as mudanças no modelo de comunicação. O acesso desses
milhares a tecnologia móvel, a internet e a web, delineia um cenário pautado por
complexas variáveis. Uma dessas vertentes parece estar associada a um
movimento aberto e contraditório de expansão dos valores civilizatórios.
A concepção horizontal da web, de Tim Berners-Lee, não impede que os cem
maiores sites sejam de corporações, mas colabora para reverberar uma quantidade
de vozes sem precedentes na história da comunicação. São quase dois bilhões de
cidadãos emissores e receptores de mensagens no mundo on-line.

As novas possibilidades de emissão referem-se à entrada de milhões de


indivíduos nos novos espaços de comunicação possibilitados pela internet,
inaugurando outros modos de visibilidade e fazendo emergir novas práticas
facultadas antes somente aos tradicionais meios de comunicação, cuja
potencialidade massiva funciona e continua a funcionar no modelo de
emissões ‘um para muitos (BRETAS, 2012,p.54).

Ao mesmo tempo, o sistema econômico consegue digerir e assimilar a


internet/web, mas precisa conviver com esse universo de vozes. É nesse cenário
que a complexidade em lidar com tanta diversidade e adversidade se manifesta.
Nele há um grau de vulnerabilidade aparentemente não experimentado antes.
Todos: empresas, indivíduos, fundações, ONGs, partidos, movimentos sociais estão
expostos a essa vulnerabilidade.

304Mestre em Integração Latino Americana, na área de História Econômica, pela USP. Coordenadora e
Professora do Curso de Pós-graduação em Assessoria de Comunicação e Mídias Sociais da Universidade
Anhembi Morumbi. É Professora de Pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Jornalista das
áreas de Comunicação Impressa e Digital, com ênfase em Jornalismo Econômico.

921
Ao permitir que nossos milhares de ‘amigos’ saibam o que fazemos,
pensamos, lemos, vemos e compramos, os produtos e serviços da web
fortalecem nossa era hipervisível de grande exibicionismo”. Isso nos permite
compreender que o entretenimento, a fotografia E, ATÉ MESMO, A
LEITURA ESTÃO TRANSFORMANDO-SE EM “ESPETÁCULOS SOCIAIS
(KEEN, 2012, pp. 47-52).

Nesse processo de exposição espetacular, o indivíduo se envolve em


movimentos contraditórios para a sua identidade. Isso porque a exposição se
apresenta com variáveis positivas e negativas. Ao mesmo tempo, o indivíduo ganha
visibilidade e também manifesta seus valores. É nesse momento que a intolerância
e a falta de respeito à diversidade podem emergir.
A internet é um universo de investigação particularmente difícil de recortar,
em função de sua escala (seus componentes contam-se aos milhões e
bilhões), heterogeneidade (grande variação entre as unidades e entre os
contextos) e dinamismo (todos os elementos são permanentemente
passíveis de alteração e a configuração do conjunto se modifica a cada
momento) (FRAGOSO, RECUERO e AMARAL, 2011, p.55).

Em 2013, o CEO da marca de moda Abercrombie & Fitch declarou que não
fabricariam mais roupas para gente feia. Na web, a declaração se espalhou,
causando indignação e protestos. A intervenção dos públicos pelas redes provocou
queda de 30% nas ações da empresa, segundo veiculou o portal da revista Rolling
Stone, em 8 de novembro de 2013. O portal usou a Agência Reuters como fonte.
Durante as manifestações de junho de 2013, um promotor ficou parado no
trânsito da cidade de São Paulo. Furioso postou em seu Facebook mensagem
orientando a Tropa de Choque a matar os manifestantes. Como responsável da
Justiça na região, o promotor argumentou que os policiais não seriam punidos. Pelas
redes sociais, as pessoas denunciaram exaustivamente as palavras do promotor.
Resultado: o Ministério Público abriu ação para apurar o caso e, o promotor, que
também era professor universitário, foi demitido da universidade, segundo veiculou
a redação do portal Terra, em 13 de junho de 2013.
No início de 2014, uma professora da PUC-Rio usou a sua página no
Facebook para debochar do perfil do público que atualmente frequenta aeroportos.
A docente compartilhou sua opinião com dois outros colegas, um da Unirio e outra
da própria PUC. O post vazou pelas redes sociais e obrigou a professora a pedir

922
desculpas e fechar o acesso a suas publicações. O episódio foi pauta da colunista
do Jornal Folha de S. Paulo, Mônica Bergamo, em 10 de fevereiro de 2014. Bergamo
deu voz para um dos citados pela a professora.
Esses e outros casos similares no universo da web revelam que arraigados
preconceitos podem ser desnudados. Em geral, o resultado dessas intervenções
públicas nada cuidadosas tem sido violentamente negativo para a imagem das
marcas ou de indivíduos. O tempo em que alguns podiam expor produtos e ideias
sem qualidade e sem consistência social está cada vez mais fragilizado nesse
contexto. Para Hunt (2010), as redes sociais, além de espaços de relacionamento,
são geradoras de capital social. Este capital social dará a medida da reputação de
uma organização ou de uma pessoa. Para a autora esse valor intangível resultará
das ações positivas ou negativas percebidas pelos públicos em redes.
Hoje, o exército que se comunica pela web/internet pode causar danos
irreparáveis a todos que não processaram a importância da transparência, da
prestação de contas e da equidade nas relações humanas. Por conveniência ou
convicção, a necessidade de expandir as práticas de valores civilizatórios é um
desafio global.
Outra vertente nesse cenário está relacionada ao modelo produtivo vigente.
A indústria fonográfica é o exemplo explícito dessas transformações. Perdeu espaço
para softwares e meios que permitiram ao usuário distribuir e compartilhar músicas.
O modelo de negócio do segmento teve que buscar alternativas para sobreviver a
uma realidade na qual as pessoas também podem, mesmo que pontualmente,
controlar o meio de produção.
Em artigo publicado na revista Matrizes 7, jan/jun de 2013, da pós-graduação
da ECA/USP, as pesquisadoras Eugenia M. R. Barichello e Luciana M. Carvalho
afirmam que a participação dos interagentes nos processos de produção e/ou
distribuição de conteúdos faz parte das principais mudanças trazidas pela internet
e pelas tecnologias digitais. Para as pesquisadoras, as ferramentas de mídia social
digital envolvem um forte potencial para recriação, deixando em aberto
possibilidades de apropriação social de modo muito mais amplo do que ocorre com
os demais meios, menos abertos à reconfiguração social.

923
Em seu livro: A Cultura da Participação, Clay Shirky explica que as
ferramentas tecnológicas tornam a informação globalmente disponível e encontrável
por amadores, a custo marginal zero, representando assim um enorme choque
positivo para a combinabilidade do conhecimento. Shirky acredita que a produção
social pode agora ser muito mais efetiva do que já foi, tanto em termos absolutos
quanto em relação à produção formalmente gerenciada, porque o alcance e a vida
útil do esforço compartilhado saíram do âmbito doméstico para a escala global.
Todos esses elementos provocam constantemente debates nos meios de
comunicação tradicionais. Não são poucos os autores e críticos que se dedicam a
mostrar o lado, digamos “manipulador” das mídias sociais digitais. Denunciam como
algoritmos podem conduzir o usuário a compartilhar links, como procedimentos
nada civilizatórios são espalhados, como o cidadão pode ser controlado passo a
passo e outros. Tais fatores apontados por esses críticos denotam aquilo que
muitos já sabem: o mundo on-line reproduz as misérias do presencial.
Contudo, paralelamente e junto com esses elementos, o mundo da web e da
internet provoca uma liberação de forças similar ao que os tipos móveis da prensa
de Gutenberg introduziram no século XV. A partir desse período uma abundância
de livros passou a ser produzida, afetando profundamente o controle da sua
produção por parte da Igreja.
Naquele tempo, os controladores da produção de livros criticaram duramente
esse processo, alegando que o cuidado com a qualidade seria comprometido. Os
críticos da ascensão das mídias sociais por vezes repetem esse argumento,
adaptando-o a realidade do nosso tempo.
Shirky argumenta que o material de baixa qualidade que surge com a
liberdade crescente acompanha a experimentação que cria o que acabaremos
apreciando. Para Shirky, isso foi verdade na tipografia no século XV e é verdade na
mídia social de hoje.
Em comparação com a escassez de uma era anterior, a abundância acarreta
uma rápida queda da qualidade média, mas com o tempo a experimentação
traz resultados, a diversidade expande os limites do possível, e o melhor
trabalho se torna melhor do que o que havia antes. Depois da tipografia,
publicar passou a ter maior importância porque a expansão dos textos
literários, culturais e científicos beneficiou a sociedade, mesmo que tenha
sido acompanhado por um monte de lixo (Shirky, 2011, p. 50).

924
É nessa seara, com aspectos e elementos diversos, que todos estamos
expostos. Atravessar esse campo sem grandes prejuízos parece estar associado a
práticas que podem elevar o grau de respeito dos relacionamentos humanos. A
pergunta é: aonde se amparar diante de tanta vulnerabilidade? Os fatos do cotidiano
apontam que o amparo pode vir da expansão dos valores civilizatórios.
Em um tempo no qual o caos é ordem, o contraponto pode estar no exercício
ao respeito, ao diverso, ao adverso, na fraternidade, na equidade e na
transparência, corroborando quem sabe para as possibilidades de felicidade não
serem tão egoístas.

Referências Bibliográficas

BERGAMO, Mônica. www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/151510-monica-


bergamo.shtml
BRETAS, Beatriz. Remixagens cotidianas: o valor das pessoas comuns nas redes
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Comunicação, Organizações. São Caetano do Sul: Difusão Editora, 2012.
CIPRIANI, Fabio. Estratégia em mídias sociais. Rio de Janeiro: Campus, 2011.
FRAGOSO, Suey; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana. Métodos de pesquisa
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HUNT, Tara. O poder das redes sociais. São Paulo: Editora Gente, 2010.
KEEN, Andrew. Vertigem digital – Porque as redes sociais estão nos dividindo,
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LEMOS, André e Josgrilberg, Fábio. Comunicação e Mobilidade. Publicado pela
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da USP. Ano 7, no 1 (jan/jun 2013). São Paulo, ECA/USP.
PORTAL TERRA.
http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/promotor-que-queria-morte-de-
manifestantes-e-demitido-de-
universidade,9236c17d30e3f310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html

925
ROLLING STONE, Revista.
http://rollingstone.uol.com.br/canal/fashion/depois-de-polemica-marca-resolve-
fazer-roupas-em-tamanhos-maiores
SHIRKY, CLAY. A Cultura da Participação. RJ, 2011. Zahar.

926
ONCE UPON A TIME: RELEITURA DO MARAVILHOSO
NA CONTEMPORANEIDADE

Sandra Trabucco Valenzuela305


Introdução

O presente artigo apresenta a questão da releitura do maravilhoso na


contemporaneidade com base no episódio piloto da série Once upon a time (OUAT)
(2011), produzida pela rede de televisão norte-americana ABC, filiada à Disney, e
exibida no Brasil pelo canal Sony, desde o mês de março de 2012, em 22 episódios
semanais de 45 minutos.
De acordo com o teaser, os criadores e roteiristas da série, Edward Kitsis e
Adam Horowitz, tentam criar um novo mundo dos contos clássicos, valendo-se de
personagens de domínio público, advindos da tradição oral e, posteriormente,
fixados literariamente por escritores de fábulas, contos populares e contos de fada,
propiciando ao espectador elementos novos que teriam ocorrido para além dos fatos
conhecidos.
O enredo gira em torno da maldição lançada pela Rainha Má durante o
casamento de Branca de Neve com o Príncipe Encantado. Posteriormente, grávida
de uma menina, Branca de Neve pede ajuda a Rumpelstiltskin, que revela a
maldição e a possibilidade de resolução do problema: todos serão levados a outro
plano, onde não haverá finais felizes, contudo, somente a filha de Branca de Neve,
ao completar 28 anos, poderá reverter a situação empreendendo uma luta contra a
Rainha Má. Para salvar Emma (filha de Branca de Neve e do Príncipe), Geppeto,
aconselhado pela Fada Azul, com a ajuda de seu filho Pinocchio, fabrica um guarda-
roupa a partir de uma Árvore Mágica, que funciona como um portal que retira a bebê
daquela diegese dos contos e a transporta a algum lugar desconhecido — “o nosso

305
Pós-doutora em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, Doutora e Mestre em Literatura
Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo, graduada em Letras Inglês pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie e em Letras Português/Espanhol pela Universidade de São Paulo. Autora de livros e
artigos científicos, é docente dos cursos de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo –
Brasil.

927
mundo”. Deste modo, todos os personagens são levados para um “lugar horrível”,
dominado pela Rainha, e lá, sem memória do passado, vivem o cotidiano de uma
cidade contemporânea no estado do Maine (EUA), a fictícia Storybrooke. A situação
só se altera com a chegada de Emma que, ao completar 28 anos, é procurada por
seu filho legítimo, Henry, que fora adotado ainda bebê por Regina, prefeita de
Storybrooke, que é, na verdade, a Rainha Má. O garoto Henry possui um livro
intitulado Once upon a time que conta os fatos ocorridos no passado e sabe que a
única pessoa capaz de resgatar os personagens e trazer de volta os finais felizes é
Emma, sua mãe biológica.
Tanto Horowitz como Kitsis possuem longa experiência na criação de
roteiros de séries de TV, consagrados com produções como Lost (2005-2010), Tron
(2012), Felicity (2001-2002) e, mais recentemente, como criadores da série Once
Upon a Time in Wonderland (2013-2014), derivada de OUAT. A parceria repete uma
das fórmulas bem-sucedidas em Lost: um mundo paralelo, semelhante a um mundo
real, vivido pelos personagens, sem que estes saibam onde estão e por que estão
lá. Como em Lost, o espectador de OUAT partilha da dúvida vivenciada pelos
personagens, pois a cada episódio é desvendada uma parte da história que compõe
o quebra-cabeça.
O roteirista Edward Kitsis traçou um paralelo entre as séries Lost e Once
Upon a Time: “For us, Lost was about redemption, and Once is about hope. Fairy
tales are a way to deal with our world, but also as dark as they are, they give us a
little bit of sunlight” (Rome, 2012). Ao refletir sobre a amplitude do termo "hope",
"esperança", o dicionário Houaiss elenca os seguintes significados:

sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja;


confiança em coisa boa; fé; (religião) a segunda das três virtudes básicas
do cristão, ao lado da fé e da caridade; expectativa, espera; (fig.) aquilo ou
aquele de que se espera algo, em que se deposita a expectativa;
promessa; algo que não passa de uma ilusão (Dicionário Houaiss, verbete
"esperança").

A mensagem de OUAT é, portanto, a ideia de esperança. Contudo, é preciso


refletir sobre o conceito de esperança. Do ponto de vista religioso, a esperança é
uma das três virtudes cristãs: "Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor,
estes três, mas o maior deles é o amor" (Coríntios 13:13). A presença destes três

928
elementos — fé, esperança e amor — é uma constante em oposição ao mal e à falta
de perspectivas que a maldição provoca. Prova disso é que em Storybrooke as
fadas transformam-se em freiras, pois, destituídas da magia, as fadas continuam
pregando a fé e fazendo a caridade: "a fé atua pelo amor" (Gálatas 5,6). Da
perspectiva sociopolítica, é possível pensar em OUAT como uma mensagem de
esperança voltada para o cidadão comum, para a família, que, à época do
lançamento da série, sentia o duro golpe da crise econômica que se abateu desde
2008 sobre a sociedade norte-americana, como informavam jornais e organizações
não-governamentais na época, situação comparada à grande depressão de 1929.
OUAT constitui sem dúvida uma adaptação dos contos de fada, no
entanto, o seu principal interesse é como tantas narrativas entrelaçadas desenham
um argumento novo, através do preenchimento das lacunas e do que os contos
não relatam, oferecendo uma ressignificação a tais elementos. Cahir (2006) define
o processo de adaptação da literatura para o filme da seguinte forma:
Like a work of literature, a film is the result of the proc ess of composition,
the meaning of which is "to make by putting together". Literature and filme
composition, unlike a painting, for example, both comprise a series of
constantly changing images. The compositional structure of both is created
from the splicing together of a sequence of smaller units: a paragraph (or
stanza) in literature and a shot in film. Paragraphs, stanzas, and shots
simultaneously function as both singular, separate units and as integrated,
inseparable parts of the entire work. The splicing together of the smaller
units creates the design-whole of the film or the book. (CAHIR, 2006, p 46-
47).

Longe de ser uma mera paráfrase dos contos, a proposta narrativa de


OUAT é criar um novo conto, numa dimensão paralela ao mundo de faz-de-conta,
como se estivéssemos vendo duas diegeses, uma, nosso cotidiano, e outra, a
Floresta Encantada.
Os contos consagrados pela tradição oral, pela literatura e por produções
audiovisuais são o ponto de partida, o mote para a criação. Os personagens são
aqueles que "pensamos conhecer", segundo o teaser da série, porém, quando
atirados no "nosso mundo" sob a maldição do cotidiano e da perda de identidade,
eles se tornam seres comuns, uma mimesis de nosso mundo, cuja magia está
latente e pode eclodir a qualquer instante.

929
A maldição das trevas ("the dark curse") da Rainha Má, lançada durante o
casamento de Branca de Neve e do Príncipe Encantado, impõe aos personagens
dos contos maravilhosos e contos de fada uma vida cotidiana numa cidade comum
— Storybrooke —, onde não há magia e nem finais felizes, perdendo assim os
atributos mágicos que os diferencia da realidade comum dos mortais. Os
personagens amaldiçoados perdem a memória, tornam-se fracos e, por isso,
submetem-se sem reação aos desmandos da temida Rainha. Seu cúmplice,
Rumpelstiltskin, desempenha o papel de um segundo antagonista, que entra em
confronto tanto com a Rainha como com os demais personagens vitimados pela
maldição.
O piloto da série se inicia como um conto de fadas, introduzido pela
expressão “era uma vez”; a seguir, cada frase em caracteres brancos, surge na tela,
em fundo preto, sem qualquer som, criando um suspense para a sequência dos
acontecimentos a serem narrados:
Once upon a time
There was an enchanted forest filled with all the classic characters we
know.
Or think we know.
One day they found themselves trapped in a place where all their happy
endings were stolen.
Our world. (OUAT, letreiros iniciais, piloto)

Na sequência, um novo letreiro anuncia: "This is how happened..." ("Foi


assim que aconteceu"). Esse recurso constitui a presença de um narrador
onipresente que conta as histórias que veremos ao longo da série. Ao empregar o
pretérito perfeito ("Foi assim que aconteceu..."), o narrador de OUAT revela-se um
observador próximo ao receptor, seja por valer-se do possessivo na primeira pessoa
do plural "our" ou "nosso", e também no que se refere ao tempo da narrativa: o
narrador nos transporta para um tempo passado do consummatum est, ou seja, uma
ação irreversível e a qual ele tem pleno conhecimento.
De acordo com o Walter Benjamin, há dois tipos de narradores,
metaforizados pelas figuras do "camponês sedentário" e do "marinheiro
comerciante": o primeiro, é aquele que conhece as histórias e tradições sem sair de
seu país, de sua cultura, de um tempo longínquo; o segundo é aquele que, em
consequência de seu trabalho, desloca-se por diversos lugares e conhece narrativas

930
de localidades distantes. Ao refletir sobre a instância narrativa que abre a série
OUAT, observamos um narrador onisciente próximo ao receptor, portanto, um
narrador "sedentário", que conhece integralmente a história por tê-la ouvido. Não há
indícios de que se trate de um narrador-personagem, mas de um narrador externo
às diegeses narrativas (BENJAMIN, 1985, p. 198-199).
O piloto de OUAT começa com a clássica do Príncipe Encantado, com sua
capa vermelha e sobre seu cavalo branco, que segue para salvar sua amada Branca
de Neve. Os elementos sonoros (galope e música) surgem com o fade-in da imagem
do Príncipe em seu cavalo galopando velozmente numa ponte sobre um lago, num
grande plano geral com a câmera se aproximando em dolly-in, atribuindo uma ação
intensa e dinamismo à imagem.
Na primeira cena, o grande plano geral de apresentação do espaço revela
uma estrada que passa sobre um lago, rodeado de montanhas, das quais uma parte
está coberta de vegetação e outra parte está coberta de neve. O Príncipe embrenha-
se numa fria floresta, com flocos de neve caindo, quando se dá o encontro dele com
os sete anões que estão ao redor de Branca de Neve, deitada em seu esquife de
cristal. Mestre, um dos sete anões, recebe o Príncipe com a frase: “Tarde de mais”.
O esquife é, então, aberto e o Príncipe beija a princesa, que desperta com um
suspiro, quebrando o feitiço que atinge todo o entorno, devolvendo a beleza e o
colorido à paisagem silvestre. Este seria o final feliz dos contos tradicionais,
sugerindo-se o início de um novo tempo de bem-aventurança. Toda a cena é uma
citação do longa-metragem animado, produzido pelos Estúdios Disney em 1937,
Snow White and the seven dwarfs. Considerando que a ABC, produtora de OUAT,
pertence aos Estúdios Disney, a série recria imagens e retoma trilhas musicais e
canções das produções Disney, como Heigh-Ho, assoviado por Leroy neste primeiro
episódio da série, e a presença do passarinho azul nas mãos de Branca de Neve.
Este é o único momento em que o seriado reproduz uma cena completa
extraída fielmente de um dos contos tradicionais usados como referência, embora
visualmente, esta seja uma paráfrase da animação da Disney.
A animação de Branca de Neve da Disney (1937) termina com a sequência
em que o Príncipe Encantado beija Branca de Neve que desperta; Branca despede-

931
se de um a um dos anões e dos animais da floresta e, por fim, num plano geral,
Branca de Neve, montada no cavalo branco, acompanha o Príncipe e ambos rumam
para o castelo ao longe, sugerindo que ambos ficarão juntos para sempre. Vale
observar que a imagem do castelo surge suspensa no céu, remetendo à morada
mitológica do monte Olimpo, que estaria nos céus, ao mesmo tempo que sua forma
ainda mantém o aspecto das fortalezas medievais, exibindo torres altas, que
exprimem a noção de segurança.
A música utilizada na cena do “beijo mágico e salvador” de Encantado em
Branca tanto na animação como em OUAT são similares, remetendo a um som de
caixa de música, de encantamento, através de frase musical semelhante; quando
Encantado observa a face de Branca, a música ganha ares de suspense em ambas
as produções. A cena do esquife apresenta-se espelhada com relação à da
animação, recurso imagético comumente usado quando um filme cita outro filme,
como escancarando o processo ao receptor.
A principal diferença entre as cenas de Branca aparentemente morta
encontra-se no caixão: na animação da Disney, a cobertura de vidro do caixão é
retirada pelos anões antes da chegada do príncipe; assim, quando Encantado
chega, o caixão está aberto, enquanto em OUAT o caixão está fechado, reforçando
a sensação claustrofóbica e prolongando a imagem da morte de Branca de Neve.
Pode-se pensar nessa diferença com relação ao público: a sensação asfixiante do
caixão fechado foi direcionada ao público adulto. Ao abrir o caixão, porém, observa-
se a citação de uma cena clássica na dramaturgia televisiva: a imagem do rosto de
Laura Palmer, a jovem assassinada na série Twin Peaks, de David Lynch e Mark
Frost, também produzida pela ABC Productions (1990), cujo enredo era a
investigação da morte dessa personagem.
Em OUAT, assim que Branca desperta, há uma elipse temporal e a próxima
cena já é o "sim" da cerimônia de casamento de Branca e de Encantado. No entanto,
o final feliz dos personagens é abalado durante essa cerimônia: Regina, a Rainha
Má, surge, sem ser convidada, e lança diante de todos a sua maldição sobre o futuro
dos noivos e demais habitantes da Floresta Encantada.

932
Nos contos tradicionais, lançar uma maldição constitui um motivo recorrente
em diversas narrativas. Exemplo dessa predestinação pode ser encontrada no conto
A Bela Adormecida, na versão dos irmãos Grimm (Grimm, 2012, p. 43). Ao ser
apresentada ao reino, a princesinha recém-nascida recebe visitas e bênçãos,
porém, inesperadamente a 13ª. fada, que sequer fora convidada para a festa,
adianta-se à 12ª. e preconiza a morte de Bela quando esta completar 15 anos. A
12ª. fada atenua a predestinação, determinando que a jovem não morreria, mas
ficaria adormecida por 100 anos.
A maldição da Rainha Má de OUAT e a da 13ª. fada de A Bela Adormecida
guardam semelhança, ao provocar a sensação de medo e a angústia pelos
acontecimentos futuros, em especial, nas figuras dos reis progenitores, que temem
pela segurança de suas respectivas filhas.
Como no conto dos irmãos Grimm, a Rainha Má, madrasta de Branca de
Neve, persegue a enteada. Porém, em OUAT, a ira da Rainha não é motivada pela
beleza de Branca, mas sim pela vingança: a Rainha culpa Branca pela morte
precoce de Daniel, seu amado, um jovem cuidador de cavalos com quem Regina
fugiria para viver um grande amor. Cora, mãe de Regina, personifica a mãe cruel,
uma bruxa truculenta, que coleciona o coração de suas vítimas e arquiteta a morte
da rainha mãe de Branca de Neve para que Regina despose o rei Leopold.
Aproveitando-se da ingenuidade de Branca, quando esta era ainda criança, Cora
descobre o plano de fuga de Regina e Daniel e, por isso, termina com o romance
da filha, extirpando magicamente o coração de Daniel.
Ao culpar Branca por seu infortúnio amoroso, Regina tornou-se amarga e
vingativa, e passa a dedicar sua vida para impedir a felicidade de Branca de Neve.
A vingança de Regina estende-se à própria mãe: Regina busca a ajuda de
Rumpelstilskin, que a introduz no mundo da bruxaria, ensinando-a como prender
Cora num mundo paralelo, ou seja, em outra diegese para além de Storybrooke e
da Floresta Encantada. Regina passa então a temer o retorno de sua mãe.
Com base nesse enredo, o medo do futuro envolve os protagonistas, no
entanto, esse sentimento é quebrado pela esperança, como afirmam os criadores
da série, sendo que a fé no amor sustenta todas as ações e tentativas de vencer a

933
maldição, como afirmaram os criadores da série. Quanto aos antagonistas, sua
motivação é o poder e a vingança.
Dentre as várias versões publicadas de Branca de Neve, encontram-se a
italiana de Giambattista Basile (1575-1632), intitulada “A jovem escrava”,
considerada a mais antiga; “Fábula da princesa morta e dos sete cavaleiros” (1833),
poema de Alexander Pushkin (apud Callari, 2012) e a mais popular, a versão dos
Irmãos Grimm, que compõe o livro Contos de fada para crianças e adultos,
publicado em 1812, e a que é mais utilizada em OUAT.
Na primeira versão manuscrita dos irmãos Grimm de Branca de Neve, de
1810, mas nunca publicada, quem inflige todo o sofrimento a Branca de Neve é a
sua própria mãe, por sentir inveja da filha. A decisão de matar a mãe de Branca de
Neve e fazer da antagonista sua madrasta, permite aos autores a associação da
figura materna à imagem religiosa da Família, vista como uma instituição ao ser
preservada. Assim, em OUAT, é Regina quem sofre com a maldade da mãe,
justificando de certo modo seu comportamento agressivo e assustador.
OUAT propõe tanto as figuras da mãe como da madrasta má. Numa
perspectiva da Psicologia, “a fantasia da madrasta perversa não só preserva a boa
mãe intacta, como também evita a necessidade de se sentir culpado devido aos
pensamentos e desejos zangados em relação a ela” (Bettelheim, 1980, p. 245).
A simples presença de Regina amedronta todos os personagens, com
exceção de Branca de Neve e do Príncipe. Todos os personagens presentes à
cerimônia evitam dirigir o olhar em direção a Regina. Segundo Chevalier e
Gheerbrant, “o olhar é o instrumento das ordens interiores: ele mata, fascina,
fulmina, seduz, assim como exprime” (Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 653). O
medo de observar o mal pode ser encontrado tanto no relato bíblico como no mito
de Orfeu: em ambos, a desobediência, o infortúnio e a relação com as entidades
ligadas à morte desencadeiam um mesmo fim: Orfeu voltou o olhar para Eurídice
antes de que ela saísse da morada dos mortos, o que causou seu desaparecimento,
o castigo imposto a Orfeu foi o sofrimento eterno pela perda da amada; no episódio
bíblico de Sodoma e Gomorra, foi a mulher de Ló olhou para trás, desobedecendo

934
aos mensageiros de Deus, transformando-se numa estátua de sal (Gênesis, 19:
17,26).
A invasão solitária de Regina constitui uma afronta ao sagrado, ao espaço
cerimonial de sentido místico onde se efetuam os votos matrimoniais. A festa
representada na imagem não pode ser consagrada a nenhuma religião ou seita
especificamente, contudo, o espaço em que ocorre assemelha-se a uma catedral
gótica, com grandes vitrais que permitem inundar o ambiente com a luz exterior,
sem que haja qualquer símbolo que possa ser atribuído a uma fé específica;
concorre também a presença de um celebrante, usando túnica e mitra.
As duas diegeses da série permitem identificar tendências literárias
bastante diversas. Enquanto a Floresta Encantada sustenta-se no espaço-tempo do
maravilhoso — constituído por narrativas que retomam contos, lendas e mitos
(Coelho, 2000, p. 158 e 160), Storybrooke é representada com elementos do
realismo mágico, visto que nela a fronteira entre realidade e imaginário se diluem, a
partir de situações centradas no cotidiano comum, em que irrompe algo estranho,
que é visto ou vivido com naturalidade pelas personagens. Storybrooke apresenta-
se como um espaço-tempo do entrelugares, isto é, um espaço intermediário entre a
realidade e a ficção: uma cidade aparentemente real e cotidiana dos Estados Unidos
torna-se um castigo, uma espécie de limbo para onde são lançados os personagens
dos contos de fada, pois ali o tempo não passa, não há memória, ninguém consegue
chegar ou sair da cidade, salvo aqueles que de alguma forma se relacionem à
maldição: "Repetir significa negar o tempo, é o signo de um 'não-tempo' que
caracteriza o concreto da vida cotidiana, o instante vivido" (Maffesoli, 1984, p. 82).
A instância narrativa em OUAT retoma o narrador tradicional, que recria as
narrativas tradicionais sem distinção de público. Embora os personagens principais
da série sejam a Rainha Má, Branca de Neve, o Príncipe Encantado e Rupelstiltskin,
Emma e Henry são os novos personagens extraídos do cotidiano do século XXI e
que se configuram nos novos heróis que voltam seus esforços para salvar os
personagens dos contos.

935
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BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: obras escolhidas. Magia e técnica, arte e


política. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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MAFFESOLI, Michel. A conquista do presente. São Paulo: Rocco, 1984.

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às 19h32. Emily Rome entrevista os roteiristas Adam Horowitz e Edward Kitsis.

SNOW WHITE AND THE SEVEN DWARFS. EUA: Disney Studios, 1937.

TWIN PEAKS. TV SERIES. EUA: ABC Productions, 1989-1990. Criadores: David


Lynch e Mark Frost.

936
A PERSONAGEM E O ESPAÇO FICCIONAL: A CONFIGURAÇÃO DO HOMEM
CONTEMPORÂNEO EM O VOO DA MADRUGADA, DE SÉRGIO SANT’ANNA

Sergio Manoel Rodrigues 306

A CONTEMPORANEIDADE

O período dito contemporâneo confunde-se com Modernidade e Pós-


modernidade. Segundo alguns estudiosos, o moderno caracteriza-se pela ruptura
com uma tradição anterior, no instante em que o homem passa a ter uma visão
crítica das instituições e da sociedade, a partir do século XIX. Por outro lado, o termo
pós-moderno parece incerto, uma vez que a época pós-moderna sugere dúvidas,
tanto ao seu surgimento quanto aos fatores que a caracterizam. Na tentativa de se
entender o que é a Pós-modernidade, acredita-se que é a era em que há uma
tentativa de negação da Modernidade, porém tal afirmativa parece contraditória: “O
pós-moderno contém um paradoxo flagrante: pretende acabar com o moderno, mas,
ao romper com ele, reproduz a operação moderna por excelência: a ruptura”.
(COMPAGNON, 2010, p. 109).
Diante do questionamento a respeito do momento em que se vive atualmente
– Modernidade ou Pós-modernidade? –, pode-se dizer que o ser humano vive o
tempo das incertezas, no qual ele assiste ao caos das grandes cidades, oriundo dos
processos de modernização. É, portanto, desde o final do século XVIII, com o
estabelecimento do Capitalismo, juntamente com o advento da tecnologia e da
produção em massa, que se começa a perceber as mazelas da contemporaneidade.
Um exemplo disso é o próprio sistema capitalista, que trouxe ao indivíduo uma visão
restrita do produto: antes, na produção artesanal, o produtor conhecia seu
consumidor e as necessidades deste, concebia todo o processo de fabricação e
trabalhava à base da troca de mercadorias; já com a fabricação em série, o produtor
perdeu o contato direto com seu consumidor, pois nas fábricas a produção requer

Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP. E-mail: semaronet@ig.com.br


306

UNIBR-SP

937
mão-de-obra diversa e, além disso, exige-se o pagamento das mercadorias em
capital.
Dessa forma, pode-se dizer que, nesse processo, o Capitalismo trouxe à
sociedade o individualismo e a cisão da identidade humana, a partir do momento
que torna os homens apenas meros fabricantes de produtos, individualizados nos
diversos setores de uma indústria. Logo, o consumismo é resultado desse sistema,
exigindo do cidadão o consumo imediato de coisas supérfluas na busca pelo prazer
efêmero. Como consequência, os altos índices de desemprego crescem, devido às
máquinas que substituem o homem nos diversos ramos profissionais, enquanto a
violência urbana aumenta como forma de sobrevivência do indivíduo.
Ainda de acordo com Compagnon (2010), o pós-moderno passa a ser
incorporado nas Artes: primeiramente, na Arquitetura e, em seguida, nas demais
expressões artísticas. No caso da Literatura, muitas ficções ditas pós-modernas, ao
abordarem temáticas contemporâneas, como a banalização da violência e do sexo,
o consumo abusivo das drogas ilícitas ou as precárias condições da vida humana,
têm como propósito a experimentação estética. Observa-se esse caráter
experimental na construção de narrativas fragmentadas, por exemplo, ou na
incorporação das mídias no discurso literário, o que exige do público-leitor uma
participação ativa no decorrer de sua leitura.
Entretanto, essas experimentações na Literatura põem em xeque a
terminologia Pós-modernidade ao que se refere ao período contemporâneo. Uma
vez que as obras modernas também experimentavam novas formas poéticas e
diferentes estruturas narrativas, como cita Lipovetsky (2005, p. 76-77), “[...] toda a
arte moderna, devido às suas produções experimentais, está baseada no efeito de
distanciamento e provoca espanto, suspeita ou rejeição”.
Leem-se na Literatura contemporânea as representações das grandes
cidades, bem como as problemáticas do homem moderno (ou pós-moderno?),
mostrando, como um grandioso espetáculo, os vícios, os desejos, as crueldades e
os medos da humanidade. As narrativas mostram um retrato da atualidade,
refletindo uma escritura literária preocupada em expor as realidades da sociedade
atual.

938
Parece que tais narrativas indicam também que, num regime de visibilidade
total, o excesso de luz projetado na paisagem aberta da cidade pós-
moderna é revelador de seu aspecto obsceno. Oblitera-se a cena e diluem-
se as fronteiras entre palco e público. [O espetáculo] não subsiste sem a
separação entre o segredo da intimidade doméstica e o espaço público do
consumo significativo; ou melhor, enquanto sobrevive tal distância, que é a
da alienação, há o espetáculo. (GOMES, 1998, p. 02).

O “espetáculo” oriundo dos centros urbanos é bastante explorado por autores


contemporâneos: Sérgio Sant’Anna, por exemplo, é um dos representantes da
Literatura brasileira dos dias de hoje. Em seu conto O voo da madrugada (do livro
homônimo publicado em 2003), inicia a história com a descrição do que o narrador
espiona pela janela de um hotel, evidenciando um olhar particularizado da vida
alheia e que, aos poucos, vai se ampliando a partir do momento em que esse
“espião” tem contato direto com aquela realidade que ele observa. Segundo
Pellegrini (2009), Sant’Anna coloca em cena a condição do indivíduo urbano e faz a
mescla das variadas linguagens em suas narrativas. Assim, ao incorporar as
diferentes mídias, entre elas o Teatro, o Cinema e a TV, a obra do autor carioca
apresenta um caráter experimental, o que acontece ao conto acima citado, que se
divide em pequenas partes ou flashes, vistos como se fossem os diversos takes de
uma fita cinematográfica.
Portanto, a experimentação na Literatura é o reflexo de uma
contemporaneidade voltada para o espetáculo cotidiano, no qual o poder alienante
das câmeras televisivas expõe todas as intimidades, transformando a vida em um
longa metragem, cujo ator principal é o ser humano individualizado e presente nos
mais variados espaços da sociedade, como se tentará demonstrar na análise a
seguir.

OS ESPAÇOS FICCIONAIS E O HOMEM CONTEMPORÂNEO

O espaço ficcional é uma das categorias narrativas mais exploradas nas


abordagens analíticas da Literatura contemporânea. Haja vista o grande número de
estudos e pontos de vista teóricos acerca de tal elemento ficcional. Tido como o

939
lugar físico, onde transitam e agem as personagens, o espaço pode levar em
consideração os contextos sociais (espaço social) em que se encontram os seres
ficcionais, bem como suas atmosferas interiores (espaço psicológico). Por isso que,
na articulação entre os espaços físicos, sociais e psicológicos, percebem-se os
conflitos das personagens.
Afirma Fiorin (1999, p. 259): “Quando a narrativa se ocupa do espaço, não se
interessa tanto em produzir uma sintaxe espacial, mas em criar [...] uma
ambientação [...]”. O termo ambientação ou ambiente designa a intersecção entre
os tipos de espaços citados, cujo objetivo é revelar as características psicológicas
das personagens, além de conceitos sociais, filosóficos ou religiosos, pertencentes
ao período em que acontece a narrativa. Ainda sobre essa ideia, complementa
Junior (1995, p. 48): “O ambiente pode refletir a atmosfera psicológica vivida pela
personagem [e, ao mesmo tempo,] pode estar em contraste com a atmosfera
psicológica da personagem, realçando suas carências [...]”.
No conto de Sérgio Sant’Anna, o narrador, classificado como autodiegético,
quer dizer, protagonista dos fatos que lhe acontecem na história, tem sua trajetória
narrada nos diferenciados espaços físicos, os quais mexem com suas ações, seu
interior e seus pensamentos. O próprio título do texto, O voo da madrugada, implica
um momento de transição ou passagem de um lugar para outro. No conto, o
deslocamento aéreo do narrador-personagem entre os Estados de Roraima e São
Paulo é ampliado com a “viagem” na qual passeiam os estados de espírito desse
ser ficcional.
A cidade de Boa Vista é o ponto inicial da narrativa, podendo ser tomada
como uma espécie de macro-espaço, por aglutinar os demais espaços pelos quais
o narrador passa a ter contato com outras personagens e com ele mesmo. O
encontro da voz narradora com uma realidade que se mostra faz com que sejam
dados predicados depreciativos à capital roraimense, classificada pelo narrador
como “fim do mundo”; “cidade perdida nos confins mais atrasados”; “lugar maldito”;
“cidade calorenta e opressiva”. No entanto, fazendo um trocadilho com o nome
dessa capital brasileira, Boa Vista pode metaforizar a “boa visão” do protagonista,
que passa a enxergar com outros olhos sua existência e a vida contemporânea.

940
A chegada dessa personagem viajante a São Paulo desloca o espaço amplo
da narrativa. O retorno do narrador a uma vida árida e sem graça é, como ele mesmo
cita, “[...] retornar a uma vida enfadonha e, pior do que isso, na cidade em que um
dia fui traído e abandonado por uma mulher [...]”. (SANT’ANNA, 2003, p. 07). Nesse
ponto final da viagem, surge a desilusão do narrador e retrata, da mesma forma que
os demais espaços ficcionais, o constante abandono do ser humano nas grandes
metrópoles.
Entretanto, antes de analisar os espaços presentes no conto de Sérgio
Sant’Anna, faz-se necessária a abordagem do conceito de não lugar de Marc Augé.
O teórico francês acredita que a contemporaneidade, para ele denominada
Supermodernidade, é produtora de não lugares. O que difere o lugar do não lugar é
que este pode determinar nenhum tipo de identificação do indivíduo que nele
transita, pois são, em grande parte, lugares coletivos, e, também, porque não há
neles a presença de relações humanas com algum vínculo afetivo. O não lugar
caracteriza-se por ser um ambiente de passagem ou negociação, como por
exemplo, os transportes coletivos, centros comerciais, instituições ou casas de
divertimento. O não lugar determina:

Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se


multiplicam, em modalidades luxuosas ou desumanas, os pontos de
trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os terrenos
invadidos, os clubes de férias, os acampamentos de refugiados, as favelas
destinadas aos desempregados ou à perenidade que apodrece), onde se
desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também
espaços habitados, onde o frequentador das grandes superfícies, das
máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com os gestos
do comércio “em surdina”, um mundo assim prometido à individualidade
solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero. (AUGÉ, 2010, p. 73-74).

No conto em análise, tem-se a presença de vários espaços ficcionais,


caracterizados, de acordo com Augé (2010), como não lugares. O primeiro local em
que se encontra o protagonista é o quarto do Hotel Viajante, que, a começar pelo
próprio nome do hotel, conota esse momento transitório do narrador, fortalecendo a
ideia de itinerário, do qual, durante seu percurso, o itinerante conhece poucas
informações sobre o lugar e nada mais.

941
Aquele ambiente traduz a “solidão absoluta” desse narrador, que se inquieta
com sua imaginação e com as luzes, sons e vozes que vêm de fora. O quarto,
localizado no primeiro andar do prédio, de onde se tem a visão de outro espaço, a
rua, serve de “camarote” ao narrador, que excitado pela balbúrdia, passa a observar
a movimentação exterior, evidenciando o retrato de uma sociedade movida pelo
espetáculo.
Ao descrever o que vê de sua janela, a personagem central fascina-se com
o contato visual que tem com outro espaço, a rua à porta da boate Dancing Nights,
local permeado de bêbados, prostitutas, policiais corruptos, automóveis,
motocicletas. As cenas daquela vida noturna tornam aquele ambiente sedutor, um
verdadeiro convite àquela personagem solitária, o que, em relação à obra do
contista, “[abre] a possibilidade da cena ainda sobrecarregada de sentido parece[r]
ser traço marcante de narrativas urbanas de Sérgio Sant’Anna”. (GOMES, 1998, p.
2).
Decidido a manter um contato real com aquele ambiente aparentemente
descontraído e fascinante, o narrador sai em busca de prazer, mas antes é forçado
a passar pela portaria do hotel. Nesse novo espaço, ele questiona ao porteiro sobre
a possibilidade de levar acompanhantes ao seu quarto:

Vesti-me às pressas e desci à portaria [...] perguntei ao porteiro da noite se


era permitido entrar acompanhado no hotel, ao que ele me respondeu
apenas com um esfregar quase imperceptível do polegar no indicador da
mão direita, o que, sem dúvida significava “sim”, desde que ele levasse a
sua parte. Dei-lhe dez reais, que ele pôs no bolso sem comentários, e saí.
(SANT’ANNA, 2003, p. 11).

Na teoria de Augé (2010), o indivíduo estabelece com o não lugar um acordo


contratual (a passagem aérea, a diária do hotel, o cartão de crédito, por exemplo),
o que garante àquele a realização de suas vontades. O dinheiro é, portanto, o meio
para que se transite pelos não lugares. É o que acontece na portaria do hotel e em
outros espaços da trama, o que evidencia essa outra característica do não lugar.
Nessa passagem do texto, o desejo do protagonista em pagar por acompanhantes
e a atitude do porteiro, ao solicitar uma quantia financeira por algo possivelmente

942
proibido, evidenciam a corrupção humana, fazendo com que o narrador negocie o
seu prazer.
Já na rua, à entrada de um beco, como é dito no conto, o narrador encontra-
se em um lugar sombrio, ambientação esta que antecipa uma situação
desagradável. Ele é abordado por outra personagem, uma menina aparentemente
de pouca idade e que lhe oferece seus “serviços” de acompanhante. Tal ocorrência
causa horror ao protagonista, ainda mais quando surge o rufião da garota, que é
visto por aquele como “[...] o que existe de mais odioso na espécie humana, mais
particularmente no sexo masculino [...]”. (SANT’ANNA, 2003, p. 12). A prostituição
infantil e a cafetinagem causam o estarrecimento do narrador, que controla suas
vontades e, imediatamente, retorna ao isolamento de seu quarto.
De volta ao espaço inicial, o narrador protagonista reflete sobre aquele
encontro inesperado. Sente horror, fascínio, comedimento, desejo pela menina da
rua. Sente-se confuso, o que é próprio do homem contemporâneo, e tentado pelo
prazer carnal, fazendo-lhe com que antecipe seu regresso a São Paulo.
No táxi, a caminho do aeroporto, continua sua reflexão a respeito do episódio
da menor prostituta: “Ao tomar um táxi, à porta do hotel, meu olhar foi
inevitavelmente atraído para o beco [...] e fui possuído por uma raiva intensa [...]
uma mistura de indignação e ressentimento”. (SANT’ANNA, 2003, p. 14). O táxi
evidencia sua condição de não lugar a partir desse momento reflexivo da
personagem, já que, pela teoria augeana, os não lugares colocam em evidência o
contato do indivíduo com ele mesmo.
No aeroporto de Boa Vista, que para o narrador nada mais é do que “um
grande galpão e uma pista de pouso”, descobre que estará em um voo de
emergência, no qual serão transportados os corpos das vítimas de um acidente
aéreo e os familiares delas. Toda uma ambientação fúnebre acontece com o contato
que o protagonista tem com pessoas trajando negro e de olhos avermelhados e com
a mulher negra e velha, cuja perna esquerda é amputada, demonstrando a
apreciação, por parte do narrador, acerca da transitoriedade da vida e da única
certeza humana: a morte. Sob esse contexto (a viagem), Augé (2010) afirma que
este é um momento de passagem e, ao mesmo tempo, o espetáculo às vistas de

943
um espectador solitário, que é obrigado a contemplar cenas que lhe proporcionam
prazer ou melancolia. Considerando essa perspectiva, note-se que a bordo do
avião, o narrador confessa: “Eu gostava de estar voando porque, em trânsito, não
me achava propriamente em lugar algum” (SANT’ANNA, 2003, p. 16), confissão
esta que atesta o avião como um não lugar.
Durante o voo, aparece uma mulher com quem o protagonista passa a ter um
contato amoroso. Ela senta-se ao lado dele, conversam e, ali mesmo, na poltrona
do avião, os dois passam a trocar carícias, abraçam-se e adormecem juntos. Essa
situação narrada no conto, a princípio, contradiz a teoria dos não lugares, pelo fato
destes serem caracterizados pela ausência de vínculos afetivos pelos indivíduos
que o frequentam. No entanto, tal acontecimento na vida do narrador do conto reflete
a efemeridade das relações afetivas na contemporaneidade, haja vista que, quando
ele acorda, não vê mais a mulher que amara, mas sente-se feliz por aqueles breves
momentos passionais.
Chegando a São Paulo, o narrador-personagem toma um táxi, onde torna a
refletir agora sobre quem seria aquela mulher. Cogita a hipótese de que ela era o
fantasma de um daqueles mortos que o avião transportava, confessando que foi a
redações de jornais em busca da verdade, a fim de encontrar algum indício de que
amara uma morta, contudo sem sucesso. Em seu prédio, descreve o elevador como
“velho e vagaroso”: outro não lugar onde ele planeja sua vida rotineira; por fim,
adentra seu apartamento, cujo ambiente é sombrio, dando a impressão de que “[...]
ao penetrar em seu interior, foi como se retornasse à noite”. (SANT’ANNA, 2003, p.
25). Outra vez, a antecipação de acontecimentos e a noite vista como imagem do
obscuro, do mistério e do prazer, uma vez que as “aventuras” da personagem, no
decorrer da história, se sucederam durante o período noturno.
Para a surpresa do narrador protagonista, quando entra em seu quarto, vê
um homem sentado em sua cama. Esse homem era ele mesmo, uma outra faceta
sua. Apesar de se encontrarem em um lugar de recolhimento e tranquilidade,
imediatamente o sossego daquele espaço é quebrado com as dúvidas que
aparecem naquele ambiente: quem seria realmente aquele outro sentado à beira da

944
cama? Seria sonho? Outro fantasma? Loucura? Reflexo do cansaço do narrador,
como ele próprio chega a pensar? As várias facetas do indivíduo contemporâneo?
Logo, considerando todas essas possibilidades que o final do conto em
questão suscita, pode-se relacioná-las com o que Lipovetsky (2005) teoriza acerca
da Arte na contemporaneidade:

Peças constituintes da cultura moderna [...]: o sonho, o lapso, a neurose, o


ato falho, o fantasma já não pertencem a esferas separadas, mas se
unificam de algum modo sob a égide das “formações do inconsciente”, que
exigem uma interpretação na “primeira pessoa” baseada nas associações
próprias do indivíduo. Sem dúvida a criança, o selvagem, a mulher, o
perverso, o louco e o neurótico conservam sua especificidade, mas os
territórios perdem a heterogeneidade com o desenvolvimento de uma
problemática que reconhece a onipotência da arqueologia do desejo [...].
(LIPOVETSKY, 2005, p. 82).

Portanto, o narrador do conto de Sérgio Sant’Anna é o reflexo do homem


contemporâneo. Indivíduo entregue à loucura frenética do cotidiano, ao consumo
imediato e às incertezas do efêmero, restando-lhe como saída desse sistema os
prazeres que podem fazê-lo esquecer da sua cruel situação.
No final da narrativa de Sant’Anna, o tom experimental da Literatura
contemporânea torna-se evidente, quando se percebe a metalinguagem do texto,
na qual se desvela um narrador que refuta a ideia de apenas observar o que se
passa ao seu redor e transpõe para o papel suas impressões, dando ao leitor a
possibilidade de desacreditar em tudo aquilo em que foi narrado. É tudo ficção!
Como se pode verificar neste fragmento do final do conto:

Abro a janela, deixando que penetrem no quarto o ar puro e a claridade.


No entanto, nesta minha escrita, é e será sempre noite. Uma noite na qual
contemplo as moças e as luzes do Dancing; a menina do beco e seu
demônio; a preta velha que me surgiu como uma pitonisa das profundezas;
a mim mesmo em momentos de exaltação de todos os sentidos [...] Nesta
escrita, em que sinto em minha mão a leveza do “outro”, há, sobretudo, um
voo na madrugada com seu carregamento de mortos e a passageira que
veio estar comigo. (SANT’ANNA, 2003, p. 27).

Focaliza-se aí a conflituosa condição da escritura literária, que projeta um


momento em que realidade e ilusão se fundem. O narrador de Sant’Anna é o

945
espelho de si mesmo e a representação do homem real. Esse ser ficcional tenta
sobreviver no mundo caótico da contemporaneidade, mas sonha com a
possibilidade de encontrar o mínimo de afeto em seu semelhante. Portanto, em O
voo da madrugada, tanto no começo como no final, o estar frente à janela dá um
caráter cíclico à história: um ciclo em que se fundem o homem e a personagem, a
vida e a ficção. É o observar solitário do grandioso espetáculo do dia a dia através
de uma janela denunciadora de aparentes verdades, cujos “deslocamentos do olhar”
ampliam as manifestações do período atual da humanidade. A narrativa analisada,
assim como outras suas contemporâneas, ao se apropriarem dos diversos espaços
ficcionais “[...] constroem o cenário da cidade como espaço público [...] na medida
em que permitem detectar que a cidade determina nosso cotidiano [...] e é nosso
presente turbulento, nossos velhos medos” (GOMES, 1998, p. 05), ou seja, tais
narrativas configuram a frágil imagem do homem contemporâneo.

Referências Bibliográficas
AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
São Paulo: Papirus, 2010. 111 p.
COMPAGNON, Antoine. Exaustão: pós-modernismo e palinódia. In: _____. Os
cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 107-129.
FIORIN, José Luiz. Do espaço. In: _____. As astúcias da enunciação: as categorias
de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1999. p. 257-299.
GOMES, Renato Cordeiro. A cidade moderna e suas derivas pós-modernas. Revista
Semear, Rio de Janeiro, v. 4, abr. 1998. Disponível em: <http://www.letras.puc-
rio.br/catedra/revista/4Sem_03.html>. Acesso em: 24 mar. 2012.
JUNIOR, Benjamin Abdala. Categorias narrativas: o espaço. In: _____. Introdução
à análise da narrativa. São Paulo: Scipione, 1995. p. 47-52.
LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo
contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005. 203 p.
PELLEGRINI, Tânia. Sérgio Sant’anna. In: _____. Aspectos da ficção brasileira
contemporânea. São Paulo: Mercado das letras, 2009. p. 24-62.

946
SANT’ANNA, Sérgio. O voo da madrugada. In: _____. O voo da madrugada. São
Paulo: Companhia das letras, 2003. p. 09-28.

947
A LITERATURA MASHUP: UM PRODUTO DO MERCADO EDITORIAL

Sheila Darcy Antonio Rodrigues307

Introdução

Definir o que é literatura não é uma tarefa fácil. Se, por um lado, ela pode ser
considerada como uma das grandes formas de arte, por outro, ela pode ser vista
como um produto de uma indústria cultural, vinculada a um mercado editorial com
profundos interesses mercadológicos.
Um texto literário pode ser reconhecido como uma obra de valor artístico, que
representa os anseios e questionamentos relativos às grandes questões universais
da humanidade, como, por exemplo, a dicotomia vida/morte, ou tratar até mesmo
das questões relativas ao lugar do homem no mundo e na sociedade a qual
pertence, e, como forma de arte, a literatura tem o poder de proporcionar ao leitor,
uma série de novas experiências, que o levam a vivenciar distintas realidades e
acontecimentos, sem a necessidade do experimento físico destas situações. Afinal,
como nos diz o escritor Mario Vargas Llosa, “Inventamos las ficciones para poder
vivir de alguna manera las muchas vidas que quisiéramos tener cuando apenas
disponemos de una sola” (2010, p.2).
Porém, quando do advento da criação da imprensa de tipos móveis por
Johannes Gutemberg, em 1455, instalou-se no Ocidente uma nova tecnologia que
permitiu a criação em maior quantidade e com maior rapidez de impressos que
podiam ser divulgados, e também ser comercializados, e, a partir de então,
intensificaram-se os interesses nas relações transacionais/comerciais envolvendo
materiais impressos por esse novo método, nascendo, assim, o que hoje denomina
de mercado editorial.
O mercado editorial, como qualquer outro mercado comercial, está em
constante busca de novos produtos para atender a demanda de seus consumidores,

307Doutoranda bolsista CAPES, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana


Mackenzie (UPM). Mestre em Letras (UPM). Graduada em Letras, Licenciatura Espanhol/Português e
Bacharelado em Edição. Bacharel em Administração de Empresas e Engenharia Elétrica/Eletrônica pela UPM.
E-mail para contato: sheila.darcy@uol.com.br.

948
de modo a sempre existir novidades para serem absorvidas pelo público leitor, fato
que, muitas vezes, gera a necessidade de se produzir um determinado material,
para responder a uma demanda do referido mercado.
A produção por demanda, ou encomenda, não é um conceito novo e também
está atrelada ao universo das artes. Para se atender aos desejos dos consumidores
de livros, muitos títulos foram escritos por encomenda de editoras, sendo possível
observar que autores de destaque na literatura brasileira já produziram obras dessa
forma, seja para a publicação em periódicos, como para a própria produção de
livros. Machado de Assis escrevia folhetins, como, por exemplo, Casa Velha, para
que fossem publicados na revista carioca A Estação e estabeleceu uma relação de
mais de vinte anos com a editora Garnier, que foi responsável por ampliar o mercado
editorial da época, uma vez que a editora buscava a consolidação de um projeto
comercial, com a criação de um catálogo de escritores e o autor tinha interesse de
alcançar o público leitor e a crítica. Já a escritora Clarice Lispector, teve várias
incursões no universo dos periódicos, como a publicação de crônicas no jornal
Última Hora, do Rio de Janeiro, de 1951 até 1961. Além de escritora, Clarice exercia
a função de tradutora e na década de 1970, trabalhava para a editora Artenova, que
então lhe fez uma encomenda de um texto de caráter erótico, de acordo com o que
estava na moda naquela época e, então, em 1974 é publicada, por essa editora, a
obra A via crucis do corpo.
Assim, torna-se interessante a observação dessa relação entre o mercado
editorial e a produção literária, a fim de que se possa compreender de que modo ela
afeta a literatura que é produzida em determinada época para atender aos anseios
mercadológicos, para tanto, será utilizada a coleção Clássicos Fantásticos, a qual é
formada das primeiras obras brasileiras de literatura mashup.
O mercado editorial pode ser compreendido como aquele do qual fazem
parte, e no qual estão relacionadas, as seguintes entidades: as editoras, os agentes
literários, o sistema educacional, as instituições de incentivo à produção literária e a
leitura, a crítica, os produtores de conteúdo editorial – como, por exemplo, os
escritores e os tradutores – e os leitores. Cada uma destas entidades acaba por
exercer uma influência sobre as outras, fato que torna este um mercado complexo.

949
O grande produto do mercado editorial é o objeto denominado livro, que pode
ser definido de várias formas. De acordo com a norma brasileira 6029 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), um livro é definido como “publicação não
periódica que contém acima de 49 páginas, excluídas as capas, e que é objeto de
Número Internacional Normalizado para Livro (ISBN).” (2006, p.6), definição esta
que se encontra de acordo com a que foi proposta pela Conferência Geral da
UNESCO, realizada em 1964 e que buscava diferenciar o que eram folhetos e o que
eram livros. Já para o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), o livro é
qualquer publicação não periódica, sem fins publicitários. Um livro pode ser definido,
tecnicamente, como um volume transportável, uma reunião de folhas de papel (ou
outro material), que podem ser manuscritas, impressas ou não, podendo conter
textos e/ou imagens, e que são dobradas, cortadas e arranjadas de modo a
formarem cadernos que são presos por meio de cola, costura, etc., e formam um
volume recoberto por uma capa resistente.
Mas, por outro lado, o livro deve ser observado como portador de um
conteúdo, que pode ser desde uma obra literária, até conteúdos técnicos, científicos
e até mesmo documentais, sendo, portanto, um produto de resultado de um
processo intelectual, que apresenta e divulga conhecimentos e convicções de
caráter individual ou coletivo.
E, por fim, há que considerar-se que, o livro é um bem de consumo resultado
final de uma produção realizada por meios industriais de impressão e distribuição,
que envolve em seu processo de criação os elementos que compõe o mercado
editorial, sendo assim, um autor tem a tarefa de criar um determinado conteúdo, que
será transformado em um produto comercial por um editor, que normalmente
trabalha para uma editora, que é quem cuida da produção e distribuição dos livros
para os mais diversos canais de venda (livrarias, supermercados, etc.), a fim de que
a demanda dos leitores seja atendida.
Então, nesse contexto é que em primeiro de abril de 2009, é apresentado no
mercado editorial americano o livro Pride and prejudice and zombies, cujo título
traduzido para a língua portuguesa é Orgulho e preconceito e zumbis, considerada
a obra inaugural da literatura mashup. A autoria dessa obra é de Jane Austen e Seth

950
Grahame-Smith, um jovem autor, roteirista e produtor de filmes e séries televisivas,
que já contava com quatro obras publicadas, quando seu editor Jason Rekulak, da
editora Quirk Books, sugeriu que ele usasse a obra clássica, e de domínio público,
Orgulho e preconceito, de Jane Austen, como base para uma adaptação que
apresentasse uma atualização da obra e envolvesse a inserção de elementos
fantásticos. Até a presente data, a obra possui mais de um milhão de livros
comercializados em todo mundo, com traduções para vinte idiomas. Após três
semanas de seu lançamento, o livro atingiu um nível elevado de popularidade,
chegando a terceira posição na lista dos mais vendidos do New York Times, onde
permaneceu por oito semanas.
É, então, a partir do surgimento e do sucesso desse livro, que aparece o
interesse por esse novo tipo de literatura, que passa a ser denominada mashup,
uma vez que esse tipo de obra é reconhecido, nos Estados Unidos, como mashup
novels.
Pode-se, então, dizer que a literatura mashup é a que se propõe a efetuar
uma mistura, por meio da adição de um elemento novo, normalmente insólito, a uma
narrativa existente e já conhecida, o que acaba provocando um estranhamento no
leitor ao observar algo de novo em um texto já sacralizado. Os romances mashup
apresentam como características os seguintes pontos: são obras derivadas, pois
incluem elementos distintos em um texto original criado anteriormente; ocorre a
inserção de temas fantásticos para a execução dessa proposta de recriação e o
criador do texto atual e o autor do texto base são sempre apresentados como
coautores da nova obra. Outra característica que pode ser observada é a da
utilização como base de obras que estão em domínio público, com a finalidade de
serem evitados problemas com a cessão de direitos autorais.
Também é importante observar quando se trata de estudar sobre literatura
mashup é que as mashup novels, por inserirem sempre um objeto distinto nas
narrativas base, são distintas das obras de paródias conhecidas como parody
novels. As parody novels são textos de imitação criados para zombar, comentar, ou
banalizar um trabalho original, o seu assunto, autor, estilo, ou algum outro alvo, por
meio do humor, da sátira ou da ironia. Pode-se dizer que, enquanto a parody novel

951
busca quase que uma paráfrase do texto base com a finalidade de extrair o riso do
leitor, a literatura mashup, vai buscar inserir novos elementos no texto base, com a
finalidade de atualizá-lo.
No momento atual, vive-se em um mundo que permite que múltiplas misturas
ocorram. Hoje o passado e o presente mesclam-se, gerando um grande remix em
todos os campos da expressão humana, nas imagens, nas músicas, nas roupas,
nas artes em geral e geram novas formas híbridas de linguagens que são
proporcionadas devido, principalmente, às novas tecnologias que permitem o
desenvolvimento tecnológico, bem como o questionamento de suas mais distintas
utilizações.
Esse é o cenário, no qual surgem as obras de literatura mashup. Pode-se
verificar que elas aparecem como resposta ao anseio do público por histórias
antigas recontadas de uma nova forma, a qual as adeque ao tempo atual, ou seja,
de modo que fatores da tradição sejam trazidos para atualidade de forma a se
encaixarem no presente.
Também é importante a observação de que a produção desse tipo de
literatura acaba por ser interessante do ponto de vista mercadológico, pois devido
às novas tecnologias é possível produzi-lá em um curto intervalo de tempo e, por
meio dela, pode-se incentivar o consumo de pelo menos duas obras, a obra mashup
e o texto base.
Após uma vista sobre os pontos que levam à busca de uma compreensão do
porquê da existência da literatura mashup, cabe a partir de agora um olhar sobre
como esse tipo de literatura é visto e pensado como produto para o mercado
editorial. Para atender a essa finalidade, passar-se-á a uma análise da Coleção
Clássicos Fantásticos sob o ponto de vista mercadológico.
Esta coleção foi proposta para o selo editorial Lua de Papel, da editora LeYa,
pelo editor Pedro Almeida, que buscava uma atualização das obras clássicas,
principalmente de títulos, que são apresentados como leitura obrigatória durante o
processo de formação escolar. Outra finalidade dessa produção era a de se
apresentar os primeiros livros de literatura brasileira mashup do mercado editorial
brasileiro.

952
Como objeto, os quatro livros que compõe a coleção apresentam uma
dimensão de 14 (catorze) por 21 (vinte e um) centímetros, com uma quantidade de
páginas variando de 125 (cento e vinte e cinco) à 263 (duzentas e sessenta e três).
Os livros apresentam as seguintes capas:

Figura 2 – Capas dos livros da Coleção Clássicos Fantásticos


Ao observar as capas podemos perceber que a coleção apresenta uma
identidade gráfica. Em todos os livros tem-se uma capa com aparência de antiga,
desgastada, e, ao mesmo tempo, apresentam colorações com uma atmosfera de
mistério, fantástica. Observa-se, também, que as cores escolhidas para as capas
podem representar os quatro elementos fundamentais: água, terra, fogo e ar.
Elementos esses considerados, filosoficamente, como componentes de toda a
matéria natural que está em constante transformação, sendo, assim, interessante
sua utilização para a representação de uma coleção que busca transformar textos
existentes.
Quanto à ilustração, encontra-se em todas as capas a representação de uma
moldura oval, como antigos medalhões, dentro dos quais podemos ver uma imagem
antiga, até certo ponto clássica, de fácil identificação pelo leitor, dividindo espaço
com uma representação fantástica relacionada ao texto, um vampiro, um disco
voador, um alien e um caldeirão de bruxa, todos estes elementos servindo para
climatizar o leitor com relação à obra.
Sobre as capas, é ainda interessante observar que tanto com relação ao título
das obras quanto ao nome dos autores, sempre o título do texto base, assim como
o nome do autor deste, é colocado em destaque com letras maiúsculas e em negrito.

953
Já os adendos ao título do texto base e os nomes dos autores das versões mashup
aparecem em minúsculas.
Já nas quartas capas das obras encontra-se a seguinte chamada:
UM CLÁSSICO DA LITERATURA
NACIONAL, INTEIRAMENTE NOVO!

COLEÇÃO CLÁSSICOS FANTÁSTICOS

Neste ponto que se passa a identificar o título da coleção e além dessa


chamada encontram-se textos introdutórios de cada obra conforme segue abaixo:

 A escrava Isaura e o vampiro


Muita gente pensa e até espera que um livro escrito por mim, Jovane
Nunes, e que fale de uma escrava seja um livro de humor negro. Não!
Isso é preconceito. Este livro é de humor afrodescendente, além de ser,
também, um livro de terror. Compre, mas não leia se você sofre do
coração ou tem os nervos fracos. Se fizer a leitura à noite, deixe a luz
acesa, vampiros e zumbis atacam no escuro, além de ser difícil de ver as
letras. Esta obra horripilante é baseada em fatos mentirosos e qualquer
semelhança com a realidade é mera criação do autor. Digo isso para fugir
de qualquer tipo de reclamação na justiça. Meus advogados e a própria
editora me aconselharam a tomar esse cuidado. É possível que algum
vampiro se sinta prejudicado em sua imagem e queira me processar.
Quanto a isso, deixo claro que não tenho nada contra os vampiros.
Particularmente, não gosto de beber sangue, mas não tenho nada contra
quem faz isso socialmente. Declaro também que não tenho qualquer
objeção a nenhum tipo de zumbi, nenhum deles jamais me aborreceu.
Também não tenho amigos que sejam lobisomens e nenhum deles me
importunou, nem mesmo uivando no meu quintal para tirar o meu
sono.(GUIMARÃES; NUNES, 2010)

 Dom Casmurro e os discos voadores


A famosa personagem clássica Capitu, de Machado de Assis, tinha como
principal característica os dissimulados olhos de ressaca.Nesta versão
de "Dom Casmurro" escrita por Lúcio Manfredi, o mistério por trás dos
olhos de Capitu vai além, está diretamente ligado ao mar. A trama
romântica agora sofre a interferência de seres alienígenas e andróides,
disfarçados sob os personagens originais de Machado. Cabe ao leitor,
identificar quem é quem. Bentinho não está apenas envolvido no triângulo
amoroso, mas numa disputa de forças intergalácticas. Um combate entre
as evoluídas civilizações reptiliana e aquática, que habitam o planeta
Terra há milhões de anos. Como no livro original, o ciúme de Bentinho
continua presente. Só que agora existe mais um motivo para sua

954
desconfiança: a ligação entre a amada Capitu e seu melhor amigo
Escobar não é mesmo deste mundo. (ASSIS; MANFREDI, 2010)

 O alienista caçador de mutantes


“De lá, constam nas crônicas, saíra um ser de pele viscosa e
amarronzada, de olhos vermelhos como o sangue e três protuberâncias
na cabeça, assemelhando-se a chifres. A criatura foi vista por três
moçoilas itaguaienses - duas delas de boa família. Assustadas, elas
fugiram após o contato, classificado por especialistas como sendo de
terceiro grau. Já a terceira moça, cuja fama de namoradeira ultrapassava
os limites da vila, decidiu ficar e investir no forasteiro que, segundo seu
relato, fugiu tão logo foi usada a palavra compromisso - indício de que a
criatura possuía amplo domínio da Língua Portuguesa." (ASSIS; KLEIN,
2010)

 Senhora, a bruxa
Aurélia Camargo é poderosa. Rica, linda e solteira, ela consegue
enfeitiçar todos os homens à sua volta. Uma mulher assim tinha que
esconder algum segredo. Em 1875, José de Alencar criou "Senhora",
essa destruidora de corações que comprou o único homem que se
atreveu abandoná-la. Nesta nova versão do romance clássico, feita por
Angélica Lopes , o folhetim de época vira uma trama sobrenatural , com
elementos de magia. A vingança de Aurélia contra o ex-namorado agora
é elaborada com a ajuda das misteriosas irmãs Blair - feiticeiras que há
mais trezentos anos semeiam a discórdia entre os pobres casais
apaixonados. (ALENCAR; LOPES, 2010)

Após a leitura desses textos de chamada, presentes na quarta capa, pode-


se dizer que eles cumprem sua missão de apresentar ao leitor qual é o cunho do
texto que ele tem em mãos e, assim, despertar sua curiosidade pela leitura do texto
integral.
Em todos esses textos é possível observar a presença dos elementos
fantásticos, o caráter cômico das obras, bem como os fatores de distinção dessas
novas versões com relação aos textos clássicos, inclusive pela presença de
elementos da atualidade como nos trechos destacados a seguir: “seja um livro de
humor negro. Não! Isso é preconceito. Este livro é de humor afrodescendente” /
“Digo isso para fugir de qualquer tipo de reclamação na justiça. Meus advogados e
a própria editora me aconselharam a tomar esse cuidado” / “Bentinho não está
apenas envolvido no triângulo amoroso, mas numa disputa de forças intergalácticas.
Um combate entre as evoluídas civilizações reptiliana e aquática, que habitam o
planeta Terra há milhões de anos.” / “Já a terceira moça, cuja fama de namoradeira

955
ultrapassava os limites da vila, decidiu ficar e investir no forasteiro que, segundo seu
relato, fugiu tão logo foi usada a palavra compromisso” / “A vingança de Aurélia
contra o ex-namorado agora é elaborada com a ajuda das misteriosas irmãs Blair –
feiticeiras”, apresentando uma unidade característica para a coleção.
Internamente, as obras também apresentam características que as fazem
funcionar do ponto de vista de uma coleção, bem como inserem o leitor nesse novo
universo do mashup. Logo na abertura dos livros encontram-se ilustrações
referentes às obras e uma página com um aviso como demonstrado na próxima
figura:

Figura 5 – Páginas de
abertura da coleção
Clássicos Fantásticos
(fac-simile)

956
Nessas páginas apresenta-se um aviso para os leitores da seguinte
forma: “Warning – Aviso Essa é uma obra de ficção baseada na obra original.
Toda semelhança é proposital, e as diferenças também. Aqui você encontra uma
nova versão do clássico, com todos os elementos do imaginário que povoam
nossa literatura.”.Esse aviso dialoga com as advertências que normalmente
aparecem em obras de ficção, principalmente cinematográficas que dizem “Essa
é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais terá sido mera coincidência.”. Pode-se observar, dessa
forma, como ocorre desde o princípio das obras uma inserção de temas do
presente que vão alterando os elementos dos discursos tradicionais.
Vale ainda salientar que a utilização do papel pólen bold 90G/m², que
contém uma textura agradável e uma tonalidade amarelada, bem como o uso da
fonte serifada Garamond, que possui uma boa legibilidade, corroboram para uma
agradável leitura do texto impresso.
Assim, se for observado que inicialmente o público alvo dessa coleção
são os alunos que devem ler as obras clássicas no período escolar, é
perfeitamente aceitável essa diagramação, que preza pelo conforto e facilidade
para a execução do processo de leitura.
Sabendo-se que para a criação de uma literatura é necessária a
existência de um sistema literário que envolve os criadores das obras, um público
para a sua apreciação e um mecanismo de transmissão, que na atual sociedade
capitalista, na qual estamos inseridos, torna-se cada vez mais dependente das
leis mercadológicas de oferta e procura e o marketing, a divulgação e a
circulação das obrar passam a tomar o lugar do conteúdo literário propriamente
dito.
É dento desse cenário que foi pensada e desenvolvida a coleção
Clássicos Fantásticos. Ademais, como o sistema educacional brasileiro cobra a
leitura dos denominados clássicos da literatura brasileira, a busca por uma
criação literária que apresente uma nova versão desses clássicos com a adição
de elementos mais atuais e de interesse da denominada Geração Z, que é uma

957
parte integrante desse sistema no momento, torna-se interessante do ponto de
vista mercadológico.
Consequentemente, tem-se a produção de uma literatura específica para
atender a esses pontos que é a apresentada nos textos da coleção Clássicos
Fantásticos, produzida por redatores de televisão em um período de dois meses
de desenvolvimento.
Desse modo, o resultado apresentado é o de um texto literário, produzido
por encomenda para autores que tem uma experiência em redação para outro
tipo de mídia, a televisiva, e que acabam por trazer essa visão para o seu texto
literário com o intuito de responder a questão de como seriam os textos clássicos
se fossem escritos hoje. Vale ressaltar que todos os livros se apresentam
divididos em capítulos curtos, fato esse que gera um conforto e uma rapidez
maiorpara a leitura, uma vez que o leitor não fica preso durante muito tempo em
um s capítulo, algo interessante ao se pensar que os indivíduos componentes
do público-alvo, em geral, não costumam ater a sua atenção, por um grande
intervalo de tempo, em um determinado assunto.
Outro ponto a ser destacado é que com a adição dos elementos
fantásticos os textos acabam apresentando uma forma que se aproxima ao
conceito cinematográfico de terrir que “é a máscara do terror que assombra a
visão de Ivan Cardoso. Carnavaliza a própria paixão terrorífica, que diz terroriso,
mais do que terrir” (PIGNATARI, 2008, p.15). Neste conceito podem ser
inseridos os filmes da franquia cinematográfica Scared Movies, no Brasil
denominados de Todo mundo em pânico, que arrecadarm 800 (oitocentos)
milhões de dólares em todo o mundo. Essas obras de terror são criadas com o
intuito de se fazer rir, por meio de uma brincadeira com os medos recônditos do
homem. Porém, nos casos dos livros que compõe a coleção, é possível a
observação que tanto a característica da hesitação, quanto da ambiguidade
essenciais para a composição dos textos fantásticos estão presentes, uma vez
que não se pode atestar que existam de fato vampiros no Brasil, que alienígenas
andem no meio da população ou que as bruxas estão realizando conjuros por

958
aí, pode-se dizer que apesar de os livros não darem medo e sim fazerem rir,
ainda resta ao leitor um certo calafrio final, que faz com que realmente esteja de
acordo colocá-los como integrantes de uma coleção denominada Clássicos
Fantásticos.
Por fim, é possível verificar que o interesse mercadológico nesse tipo de
texto é alto uma vez que, conforme anteriormente destacado, o fascínio por criar
e recriar histórias e mundos diferentes, viver novas experiências é parte
integrante do ser humano e cada vez mais, na época atual vê-se o sucesso de
produtos que tragam essas características, como os seriados televisivos Once
upon a time atualizam os mais diversos personagens do chamado mundo da
fantasia, bem como a atualização do personagem Sherlock Holmes, que agora
é um detetive auxiliar da polícia de Nova Iorque nos dias de hoje, no seriado
Elementary.
Conforme visto, a produção de literatura por encomenda mercadológica,
não é um assunto novo, porém como a sociedade está inserida em um momento
histórico, no qual, as regras mercadológicas do capitalismo imperam, acredita-
se ser de interesse coletivo a verificação aqui proposta de como a literatura é
produzida para o mercado. Portanto foi verificado que é necessário que a
literatura seja vista e analisada, também, a partir do ponto de vista do porquê da
sua criação, encarada como um produto mercadológico e não apenas como uma
forma artística elevada e inacessível.

Referências bibliográficas

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PIGNATARI, Décio. A Marca do Terrir.In: Ivan Cardoso: O Mestre do Terrir.
São Paulo: Imprensa Oficial. 2008.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1975.

961
A LEITURA COMO SALVAÇÃO

Silas Luiz de Souza308

Introdução

“A Reforma, filha de Gutenberg!” Com essa afirmação, Gilmont inicia


o capítulo “Reformas Protestantes e leitura” no segundo volume da obra editada
por Cavallo e Chartier (1999, p. 47). Obviamente, o autor não pretende confirmar
de modo absoluto essa afirmação, mas a repete, lembrando que já era uma
convicção difundida ainda no século XVI, o próprio século do início do
protestantismo. Se não há dúvidas acerca da importância da imprensa para a
difusão do pensamento dos reformadores e a consequente implantação da
Reforma, também “não convém exagerar o impacto imediato que essa invenção
teve sobre uma sociedade amplamente analfabeta” (GILMONT, 1999, p. 48). É
certo que um conjunto de condições favoreceu a eclosão e implantação da
Reforma, porém a constatação da importância da divulgação dos textos,
acelerada pela prensa de Gutenberg e consequentemente, a importância da
leitura dos textos reformadores e de seus sucessores nos ajudam a pensar sobre
o valor que se deu à leitura desde a implantação do protestantismo em terras
brasileiras.
A História da Leitura tem suas raízes na história Cultural francesa,
herdeira da renovação historiográfica promovida pela chamada Escola dos
Annales. Os estudos de Roger Chartier, influenciado por Paul Ricoeur, dentre
outros, trazem à tona a necessidade de se compreender os processos como se
produzem, se distribuem e se promovem os livros (LEONEL, 2010). Além disso
é fundamental procurar desvendar como o leitor recebe um texto e se apropria
dele. A aplicação dessas ideias no estudo da leitura no protestantismo brasileiro
tem como pioneiro João Leonel (2010), certamente influenciado por eruditos

308 Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em História.

962
como Marisa Lajolo. Outros já haviam de algum modo destacado a importância
da leitura na inserção do protestantismo no Brasil, como Júlio Andrade Ferreira
(1992) e Boanerges Ribeiro (1991). No entanto, fizeram uma apresentação dos
textos de forma breve e mais teológica e sociológica, sem aprofundar em
questões propostas pela História da Leitura.
A História da Leitura pode se juntar a algumas ideais de Pierre Bourdieu,
como o conceito de campo e o conceito de concorrência e transação. Os
protestantes se apresentavam à sociedade brasileira como os defensores do
verdadeiro cristianismo ou, ao menos, de um cristianismo mais puro. Na disputa
por espaço nesse campo as lideranças “podem lançar mão do capital religioso
na concorrência pelo monopólio da gestão dos bens de salvação e do exercício
legítimo do poder religioso” (BOURDIEU, 2005, p. 57). O capital religioso
acumulado depende da demanda e da oferta. Ora, o país passava por um
período em que as forças liberais e contrárias ao regalismo imperial e ao
padroado, ofereciam uma demanda que os protestantes quiseram preencher.
Além disso, aspectos do jansenismo e a circulação de livros da devoção
moderna também provocavam uma demanda que os protestantes quiseram
atender. A literatura foi uma das estratégias para alcançar os não protestantes e
manter os fiéis.
Este pequeno texto usará como fonte primária dois jornais presbiterianos:
o Imprensa Evangélica, primeiro jornal evangélico do país, talvez de toda a
América Latina. Criado em 1864 por Simonton, foi um importante instrumento
para a propagação das ideias de liberdade religiosa e dos princípios liberais que
nutriam o protestantismo missionário. O jornal ainda durou mais de duas
décadas após a morte prematura de Simonton, deixando de ser impresso em
1892. O outro jornal é O Estandarte, criado em 1893 por Eduardo Carlos Pereira
para ser o sucessor do primeiro. O periódico circula ainda hoje como órgão de
imprensa oficial da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Para fins desta
pesquisa entraremos nos primeiros anos do século XX, quando os presbiterianos
chegarão aos impasses que provocariam a divisão do grupo, em 1903, e o jornal

963
acabaria por entrar drasticamente nas disputas, o que não interessa para este
artigo. Buscaremos nos jornais as menções aos livros, pois ambos divulgavam
a literatura do mundo protestante com o claro intuito de educar os fiéis, fazer
proselitismo e se inserir em algumas das discussões nacionais consideradas
fundamentais para os presbiterianos como a liberdade religiosa, liberdade de
consciência, educação e separação entre Igreja e Estado.

Protestantismo e leitura
A necessidade da leitura sempre esteve muito presente entre os
protestantes. O jornal Imprensa Evangélica, declarava no século XIX, a
importância da imprensa do seguinte modo: “desde que foi instalada a imprensa
os cristãos viram logo os prodigiosos resultados que por ela se podiam colher”
(1 de abril de 1868, p 85). Um dos prodigiosos resultados e desejo ardente dos
protestantes foi a divulgação da Bíblia. Lutero traduziu a Bíblia para o alemão.
Olivetahn, parente de Calvino, publicou tradução da Bíblia para o francês um ano
antes da famosa Institutas do reformador francês de Genebra. Os ingleses,
desde o final do século XIV se empenhavam em traduzir a Bíblia para o seu
vernáculo, fundamental para o andamento das reformas que ocorreriam lá. O
protestante espanhol Casiodoro de Reina, que passou algum tempo em
Genebra, publicou a Bíblia em sua língua, em 1569. Há diferença importante
entre a postura protestante e a postura católica acerca da leitura. Aparecida
Paiva comenta assim:
É sabido que inúmeros estudiosos afirmaram, ao longo da história que a
Igreja Católica sempre considerou a leitura uma prática perigosa, e que um
dos desdobramentos desse pressuposto foi sua constante advertência aos
católicos quanto às poucas chances de salvação de suas almas, caso não se
acautelassem diante das armadilhas do texto escrito. E, como guardiã do
dogma da fé, ela delegou aos seus representantes oficiais a tarefa de arbitrar
sobre as boas e más leituras.
Esse estrito controle do escrito não é apenas considerado como direito da
Igreja, mas também como seu dever (PAIVA, 1999, P. 415).

Ora, se havia um número substancial de analfabetos qual a vantagem de


se traduzir a Bíblia. Bom, então que se ensine o povo a ler! Claro que estamos
em um período em que ainda a leitura audível era bastante praticada. Em geral,

964
os livros eram escritos para serem lidos em voz alta para que outros ouvissem e
nem todos precisavam saber ler para conhecer o conteúdo de um livro. Mas esta
é também uma transformação que está em processo no período da Reforma
Protestante: a leitura se tornará cada vez mais individual, silenciosa e
internalizada.
Esse protestantismo reformado só chegaria ao Brasil no século XIX,
embora outras incursões tenham ocorrido anteriormente sem significado para
este estudo. Até encontrar o solo brasileiro houve transportes, mudanças e
adaptações, passando pelo puritanismo inglês, presbiterianismo escocês e o
efervescente mundo religioso da América inglesa. Essas influências e as
transformações que o mundo a leitura passou tem um momento importante
nesse século da entrada do protestantismo no país. Chartier aponta para o fato
que o século XIX é quando despontam novas categorias de leitores como as
mulheres, os trabalhadores e as crianças e que nos anos setenta e oitenta do
século XIX se atinge uma “diversidade extrema de práticas de leitura e de
comércios de impressos” (1999, p. 26). O único Império das Américas estava
plenamente inserido neste contexto de leitores e leituras, com mudanças no
contexto social, ampliação da população leitora e propaganda da leitura como
necessária para a transformação do país. A população alfabetizada era ainda
muito pequena, porém, os protestantes visaram transformar a elite primeiro para,
de cima, transformar a sociedade. O primeiro censo, em 1872, apontou para uma
população de analfabetos de quase 80 % e o declínio, de fato, foi muito lento até
o início do século seguinte, período pelo qual o texto transita.
Em um dos primeiros números do primeiro jornal, o Imprensa Evangélica,
um artigo ensinava “Sobre o dever de ler e meditar nas Sagradas Escrituras” (4
de março de 1865, p. 4 – 5) declarando os editores que “dirigimo-nos à razão e
à consciência de nossos leitores”. “Razão” e “consciência” demonstram bem a
preocupação do jornal em se apresentar para a população letrada e esclarecida
da nação. Na disputa pelo espaço religioso nem sempre a estratégia deve ser o
confronto aberto, por isso anunciou-se a venda da Bíblia Sagrada, “traduzida em

965
português segundo a vulgata latina”, em texto “aprovado pelo Arcebispo da
Bahia”, feita pela tradicional casa do “Sr. Garnier”, elogiando o fato que “os altos
poderes eclesiásticos do Império podem e estão dispostos a acomodar-se com
o espírito do século” (1 de abril de 1865, p 6). Os protestantes se mostram
liberais e cristãos prontos para colaborarem com as transformações e o
progresso do país, mesmo com os católicos, quando se mostram esclarecidos.
Essa colaboração não seria, no entanto, sem críticas aos erros do catolicismo.
Nesse mesmo número do jornal promove-se a Encíclica papal Quanta Cura, da
qual deve “todo homem sincero ter conhecimento dela” (1 de abril de 1865, p 6),
mesmo que seja para fazer oposição leal. Buscando espaço no campo religioso,
busca também, delimitar as esferas de atuação. Um editor sempre tem intenções
ao propor um tipo de literatura. Isto vale também para a literatura jornalística. Os
livros anunciados têm a intenção proselitista do missionário que acredita ter
vindo de uma cultura superior com o destino manifesto pela Providência de levar
a salvação ao mundo que desconhece essa dádiva. A literatura propagada
queria edificar, corrigir, apresentar testemunhos de fé, da perseguição sofrida
pelos verdadeiros cristãos, dos quais os protestantes seriam os legítimos
descendentes e herdeiros. O controle sobre o que seria publicado, divulgado e
vendido limita o direito e a liberdade de escolha dos leitores. Chartier (1999, p.
30) nos lembra que
as estratégias de publicação sempre moldaram as práticas de leitura [...] a
liberdade de escolha dos leitores só poderia ser exercida dentro de um
conjunto previamente constituído com base em interesses e preferências que
não era necessariamente seus.

Outra editora citada foi a dos “senhores Laemmert”, constituída por dois
irmãos, filhos de pastor, que vieram para o Brasil a fim de trabalhar no mercado
de livros, sendo uma das primeiras e das mais importantes editoras no Brasil
durante o século XIX. O jornal divulga desta editora o livro “Da liberdade religiosa
no Brasil - estudo de Direito” (1 de abril de 1865, p 6).

966
A literatura jornalística no protestantismo

Erasmo Braga, um dos mais importantes intelectuais do


presbiterianismo analisando o jornalismo entre os protestantes disse que
“exerceu uma profunda influência no crescimento das comunidades
protestantes” e, talvez de modo ufanista afirma que “a qualidade da literatura
evangélica era muito apreciada” e que a alfabetização entre os protestantes era
maior do que no resto da população (BRAGA, 1932, p 59).
Aline Coutrot enfatiza a importância do jornal para um grupo religioso
interessado em transformar o mundo a sua volta:
querem fazer a mensagem cristã penetrar nas realidades do mundo
contemporâneo: mantêm estreita relação com seus leitores, que às vezes
constituem verdadeiros movimentos, redes de difusores benévolos A
influência da imprensa confessional é tanto maior na medida em que seus
leitores são em geral fiéis, na maioria assinantes, e que o coeficiente de
difusão é elevado. O jornal cristão é lido em família (COUTROT, 2003, p.
348).

Não se trata de alistar todos os jornais que os protestantes publicaram no


século XIX e primeiros anos do século XX. Ferreira (1992) e Ribeiro (1981)
fizeram listagens com informações e comentários acerca da literatura jornalística
a que os presbiterianos se empenharam. Os dois jornais mais importantes e
perenes são os usados como fontes para este texto. No entanto, apenas entre
os presbiterianos, surgiram cerca de duas dezenas de jornais, uns de mais longa
duração, outros bastante efêmeros. Alguns eram mais específicos, direcionados
para públicos bem definidos, como jovens, crianças, alunos de escola dominical,
pregadores e interessados em estudos doutrinários.
É verdade que a distância geográfica, social, econômica ou cultural entre
a liderança e os fiéis não garante que a mensagem que se quer dar seja
apreendida em sua totalidade ou no sentido que se pretendeu. Quanto maior for
a distância “entre o grupo de produtores, o grupo dos divulgadores e o grupo dos
receptores, tanto mais ampla a reinterpretação” e “a forma que a estrutura dos
sistemas de práticas assume em um dado momento pode afastar-se bastante
do conteúdo original” (BOURDIEU, 2005, p. 51 – 52). Cavallo e Chartier (1998,

967
p. 8) aduzem que “para cada uma das comunidades de interpretação assim
identificadas, a relação com o escrito efetua-se com técnicas, gestos e maneira
de ser”. Isto é, deve-se considerar a recepção como algo ativo no processo de
leitura, embora existam certas limitações e reduções como os próprios autores
anteriores lembram acerca do calvinismo e do puritanismo que promoveram
práticas de leituras muito diferentes de outras já que tinham “a leitura do texto
sagrado como modelo de todas as leituras possíveis” (CAVALLO; CHARTIER,
1998, p. 35). Isto nos interessa particularmente, pois é a origem calvinista e
puritana no Brasil do que estamos tratando. Certamente, isso valerá tanto para
a literatura jornalística como para os livros.

Os livros indicados nos jornais

Simonton registra no dia 28 de abril de 1860 de seu diário o seguinte:


“realizei uma Escola Dominical em minha própria casa” e informa ter usado nesta
primeira Escola Dominical “a Bíblia, o catecismo de história sagrada e o
Progresso do Peregrino, de Bunyan” (SIMONTON, 2002, p. 140). Donde se vê
que o missionário já chega para o seu trabalho munido da literatura que lhe
auxiliará na tarefa de convencer, ensinar e manter a fé. Esse fato antecipa o que
o primeiro missionário faria e que se tornaria modelo para os seguintes: usar a
leitura para a catequese e proselitismo.
Neste ponto chegamos, então, a uma breve avaliação da literatura
oferecida pelos dois jornais em tela no período de inserção do protestantismo no
Brasil. A edição número um do primeiro jornal protestante no país, Imprensa
Evangélica, começa a transcrever o livro “Lucia ou a leitura da Bíblia” (sic), livro
que seria futuramente também anunciado nas páginas de O Estandarte. Há
controvérsia sobre a tradução correta do francês do nome da personagem
principal da obra, “Lucia” ou “Lucila”. Em dissertação apresentada na UPM,
André Nogueira (2013, p. 12) atenta e informa sobre este fato. O livro é de autoria
de Adolphe Monod, um pastor calvinista francês, e foi publicado, de forma

968
seriada, pelo jornal presbiteriano até o exemplar vinte e cinco. Vemos que há
uma característica em comum com outros jornais brasileiros que era a
publicação de romances nas edições dos jornais. Fato este que não se limitou
ao Brasil que, quando o fez, já imitava o que ocorria em algumas partes da
Europa. Como se sabe alguns dos grandes escritores brasileiros ganharam
leitores e leitoras publicando periodicamente partes de seus romances.
Lucila ou Lucia é uma mulher preocupada com sua vida pessoal e
espiritual. Então, escreve para um sacerdote buscando ajuda na solução de seus
problemas. A troca de cartas entre os dois é o conteúdo do livro. Não é sem um
objetivo claro que o livro foi escolhido. A mulher vive a angústia de ter nascido
em lar protestante e, órfã cedo, acabou se vendo obrigada por circunstâncias a
se casar com um católico. Nesse conflito busca conforto e solução. Em um país
católico urge apresentar os problemas do catolicismo e as soluções dos
protestantes, especialmente com relação à Bíblia, a qual ela, Lucila, deseja
ardentemente ler, mas a Igreja Católica não lhe dá essa oportunidade. Apesar
disso, sua leitura bíblica a leva a rever os conceitos e a buscar melhor
conhecimento do Evangelho e da vida cristã, o que, obviamente só poderia ser
fornecido pelo protestantismo. Mais do que isso, a mulher havia feito uma leitura
solitária da Escritura e esse era o anseio protestante, que cada crente lesse e
Bíblia por si só. O público alvo era especialmente aquele que desfrutava um
pensamento liberal, defensor das liberdades individuais, especialmente a
liberdade de pensamento e de religião. Contra tais coisas o Concílio Vaticano
iria se pronunciar ao final dessa década.
Boanerges Ribeiro (1991, p. 265 – 285) oferece uma lista bastante
significativa dos “livros que os fiéis liam”, explicando brevemente os que
considerou mais importantes. Os protestantes sabiam que eram minoria,
discriminados, e a literatura fornecida procurava justificar qualquer perseguição
como motivada pela fé verdadeira, doutrina e condutas corretas. “Seu grande
tema: este mundo é um Vale de Lágrimas, tem de ser sofrido e vencido a golpes

969
de textos bíblicos onde se pode encontrar analogia entre a atitude de Jesus
Cristo e a que seus seguidores devem cultivar” (RIBEIRO, 1991, p. 266).
Além do livro Lucila, outros são anunciados nas páginas dos jornais. O
primeiro deles é “Thirza ou a força atrativa da cruz” (Imprensa Evangélica, 15 de
abril de 1865), informando que é tradução do alemão. Este livro, curiosamente,
não aparece na lista de Ribeiro, mas é a história de uma jovem de família judia,
fortemente apegada à tradição e à religião, mas a jovem se decide pelo
cristianismo. O livro é um grande sermão, começando com a mulher entrando
quase que ás escondidas em um templo cristão onde ouve um sermão, que é
apresentado no livro. A seguir a esposa do pastor tem uma longa conversa com
a jovem lhe explicando o evangelho, com muitas citações bíblicas. O pai,
encolerizado, declara não ter mais filha. No desenrolar da história o pai, mais
sereno, ouve muitas explicações sempre firmadas em textos bíblicos, até que
também se converte. O livro termina com um apelo ao leitor para orar por Israel
a fim de compreenderem a verdade do Evangelho e para que o leitor também a
compreenda.
O livro Donzela valdense fala da perseguição que sofreram os seguidores
e sucessores de Pedro Valdo, excomungado por defender a leitura individual e
interpretação pessoal da Bíblia, entre os séculos XII e XIII. Em Glaucia conta-se
a história de sofrimento de jovens que, ao aceitarem o cristianismo, são
abandonados pela família.
Além das narrativas e romances acima há propaganda de livros de caráter
mais teórico e dogmático com estudos bíblicos, históricos e sistemáticos. Esses
livros são a grande maioria dos livros anunciados nos jornais. Os títulos
praticamente são suficientes para indicar a preocupação em demarcar a
diferença entre o protestantismo e o catolicismo. Entre esses livros, destaco
alguns como A mulher e o confessionário (3 de abril de 1893, p. 1), que, no
entanto, deve ser O Padre, a mulher e o confessionário, escrito por Charles
Chiniquy, canadense, ex-sacerdote católico romano convertido ao
presbiterianismo. No livro são narradas diversas histórias em que se demonstra

970
a inconveniência da confissão auricular tanto para o sacerdote como para
mulher, que é aviltada em sua condição feminina.
São anunciadas diversas obras de História como História da Inquisição
na Itália, Espanha, Portugal e outros países com “perto de 700 páginas
distribuídos em fascículos semanais” (31 de outubro de 1901, p. 4), História da
Reforma, História da Reforma na França. Não se indicam dados das
publicações. Interessante na disputa com o catolicismo é O Syllabus, o
Evangelho e o Estado, indicado como no prelo e “assunto de magna importância”
[...] tratando de pontos em que a Igreja de Roma se acha afastada do Evangelho”
(26 de dezembro de 1901, p. 4). Provavelmente é o livro escrito por Ernesto de
Oliveira, pastor presbiteriano que faz um estudo das relações entre a Igreja e o
Estado, demonstrando que o protestantismo tem uma posição mais adequada.
Em três de janeiro de 1901 o Breve, de Clemente XIV, é anunciado como uma
das obras disponíveis na Livraria Evangélica. Nesse documento se trata da
extinção da Companhia de Jesus, em 1773. Anos antes, um artigo tecia elogios
ao Marquês de Pombal por sua ilustração e preocupação com o obscurantismo
da Igreja Católica expulsando os jesuítas das terras portuguesas (8 de abril de
1893).
O livro Em seus passos o que faria Jesus? de Charles Monroe Sheldon,
pastor congregacional merece uma longa série de artigos, publicados em sete
edições do jornal, sendo que no primeiro artigo Eduardo Carlos Pereira defende
a importância do livro como “uma sacudida forte para acordar os que dormem”
(29 de agosto de 1901, p. 1). Em outro artigo da série defende a prática de boas
obras como fundamental para a vida cristã (26 de setembro de 1901, p. 1).
Ribeiro comenta que “o fundamento, digamos epistemológico, de Em seus
passos é o do pentecostismo que explodiu 5 anos depois” (RIBEIRO, 1991, p.
269). No entanto, não se pode deixar de perceber que o livro é mais do que isso,
pois seus conceitos são retirados também das ideias de Walter Rauschenbusch
e de seu Evangelho Social, basicamente que o cristão tem o dever de

971
transformar a sociedade e as vidas dos que estão ao redor, principalmente os
mais necessitados, teologia que seria bastante criticada posteriormente.
A viagem do cristão (8 de abril de 1893) é o mesmo livro puritano O
Peregrino. João Leonel (2010) já analisou a importância dessa obra na formação
do leitor protestante brasileiro, concluindo que “O Peregrino formou e formatou
os primeiros protestantes brasileiros dentro de um espectro religioso puritano”
(LEONEL, 2010, p 61). A vida cristã é cheia de desafios e uma viagem perigosa
em direção ao lar celeste, pensamento que permaneceu no imaginário
protestante.
Um livro curioso é A alegria da casa, publicado em 1866 por Sara Kalley,
esposa do missionário escocês Robert Kalley. O texto versa sobre os cuidados
com o lar, medidas sanitárias e alimentares e coisas desse tipo. Os missionários
que vieram pregar o Evangelho também se preocuparam com a vida material.
Vindos de uma cultura superior queriam dar provas de como a salvação serve
para mudar até mesmo a vida material dos conversos.

Considerações finais
A pergunta que se faz é se essa literatura surtiu o efeito esperado.
Certamente não atingiu um público tão expressivo que provocasse grande
número de conversões. Há aquele distanciamento entre o emissor e o receptor.
Os editores protestantes não poderiam controlar quem e, principalmente, o modo
como o texto era compreendido e apreendido pelos leitores. Mendonça, falando
das escolas protestantes, nos ajuda a entender também a leitura: “a ideologia
americana, em expansão, procurava atingir, de modo indireto o por saturação,
as classes dirigentes, intelectuais e políticas. Mais precisamente, contribuir para
a construção de uma civilização cristã-protestante, no modelo anglo-saxão”
(MENDONÇA, 1984, p. 112). Esse já era um fator limitador do alcance da
literatura protestante nas primeiras décadas de inserção. Ademais, o jansenismo
e a leitura de textos da devoção moderna já deixaram parte da população
brasileira disposta a compreender a literatura que os protestantes ofereciam

972
como boa literatura cristã, mas que não era tão diferente do que já se vivia.
Nesse caso, a literatura pode ter sido bem recebido por católicos sinceros que
confirmaram sua fé, mas não mudaram de denominação.

Referência Bibliográfica
ABREU, Márcia (Org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado
das Letras, 1999. p. 19-31.
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BRAGA, Erasmo & GRUBB G. , Kenneth. The Republic of Brazil: a survey of the
religious situation. London: World Dominion Press, 1932.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da Leitura no mundo
Ocidental. São Paulo: Editora Ática, 1998. (Volume 1).
CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura no Ocidente. In: ABREU, Márcia
(Org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado das Letras,
1999. p. 19-31.
CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Editora
Ática, 1999. p. 47-77. (Volume 2).
COUTROT, Aline. Religião e Política. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história
política. Trad.: Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
FERREIRA, Júlio Andrade. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1992.
GILMONT, Jean-François. Reformas protestantes e leitura. In: CAVALLO,
Guglielmo; LEONEL, João. História da leitura e protestantismo brasileiro. São
Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie e Paulinas Editora, 2010.
NOGUEIRA André Carreiro. PAIVA, Aparecida. A Leitura censurada. In:
ABREU, Márcia (Org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado
das Letras, 1999. p. 4119 - 426.

973
RIBEIRO, Boanerges. Igreja Evangélica e República brasileira. São Paulo. Casa
Editora Presbiteriana, 1991.
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo e cultura brasileira. São Paulo. Casa
Editora Presbiteriana, 1981.
Thirza or the attractive power of the cross. From the german by Elizabeth Maria
Lloyd, London: B. WERTHEIM, ALDINE CHAMBERS, 1842 (M.DCCC.XLII).

974
LETRAS COMPARTILHADAS NO MODERNISMO: A POSSIBILIDADE DE
EDIÇÃO CRÍTICA DA CORRESPONDÊNCIA DE ESCRITORES EM
FORMATO DIGITAL

Silvana Moreli Vicente Dias309

Editar correspondência de escritores: considerações iniciais

Em geral nunca preparada para publicação durante a vida de seus


autores (ou seja, trata-se fundamentalmente de documentos que permanecem
inéditos até chegar às mãos do pesquisador), a correspondência de escritores,
em seu processo de edição, engloba vários desafios, que estimulam irmos além
das fronteiras disciplinares especializadas. Trazendo em sua constituição a
marca da contingência, da abertura e da incompletude, especificamente no
campo dos estudos literários, ela pode suscitar variado interesse. Como afirma
Walnice Nogueira Galvão, podemos ter nas cartas:

1) Elementos preciosos para a reconstituição de percursos de vida. 2)


Fontes de ideias e de teorias não comprometidas pela forma estética.
3) Em certos casos ainda – como os de Madame de Sévigné e de Sóror
Mariana Alcoforado – um estatuto exclusivo devido à qualidade
impecável da escrita. (GALVÃO: 1997, 124)

No preparo das cartas para publicação, é fundamental nos cercarmos de


um cuidado metodológico que minimize problemas editoriais recorrentes quando
o assunto é a correspondência, tais como lacunas, supressões e até censura por
parte do organizador. Considerando que há evidentes limites quando se busca
o texto “ideal”, principalmente na trilha dos estudos filológico que derivam de Karl
F. W. Lachmann (1793-1851) – que defendia rigoroso método científico no trato
de textos, com cotejo de diversas edições –, apesar disso, é fundamental seguir
um protocolo mínimo, mesmo que aberto a questionamentos, aos fluxos da

309Pós-doutoranda no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.


Financiamento CAPES

975
casualidade. Ao editar correspondência, parte-se, muitas vezes, do manuscrito,
com rasuras, rasgamentos, dobramentos, enfim, marcas inscritas ao longo de
sua história. Sendo assim, a recolha e a preservação desses conjuntos
documentais dependem de uma série de fatores de ordem externa ao assunto
em pauta ou ao momento de sua produção. Ainda vale dizer que um conjunto de
correspondência nunca pode ser considerado fechado, pois sempre uma nova
peça pode aparecer e desafiar o prévio estabelecimento de um continuum
marcado por uma paradoxal “estabilidade transitória”.
Desse modo, se a própria forma epistolar é híbrida e fluida – por exemplo,
além dos fatores antes abordados, dialoga com diversos gêneros textuais e é
performática na medida em que depende do aqui e agora do discurso, portanto
sua edição leva a uma comunicação mediada e sempre diferida –, pensar a carta
na época modernista lança outras questões que permitem divagar num terreno
disciplinar extremamente heterogêneo. Por outro lado, como veremos, talvez
hoje tenhamos, mais do que antes, possibilidades de realizar um trabalho
frutífero com textos multidimensionais como a carta, com suas interconexões
várias. Uma coletânea, frise-se, não possui um centro unificador – podem-se
estabelecer, outrossim, teias de sentidos renovados, principalmente se
lançarmos mão de hiperlinks e de recursos hipermídia no caso de edições
digitais. Fisicamente situada em um lugar específico – arquivos, bibliotecas –,
pode estar virtualmente presente em outros pontos da rede onde seja convocada
se cogitarmos modos de divulgação em rede. Logo, considerar a edição de carta
na era digital nos leva a distinguir uma série de características de seu discurso
que, em alguma medida, parece se coadunar com as especificidades
descontínuas e múltiplas do texto em rede. Nesse sentido, pode ser interessante
observar esses elementos desafiadores na leitura de um conjunto epistolar,
como a seguir propomos com as cartas enviadas por Otto Maria Carpeaux a
Gilberto Freyre, ambos intelectuais que desempenharam papéis fundamentais
na vida pública brasileira do século XX.

976
Nos labirintos da epistolografia: Otto Maria Carpeaux escreve a Gilberto
Freyre
O ensaísta Gilberto Freyre (1900-1987) foi o intelectual público brasileiro
de maior projeção internacional no século XX. Interessa-me, no atual estágio de
minha pesquisa pós-doutoral, destacar cartas, em sua maior parte inéditas,
enviadas por intelectuais a Freyre, estudioso da formação patriarcal do país (é
autor, por exemplo, da trilogia Casa-grande & senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal, de 1933, Sobrados e mucambos:
decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, de 1936, e Ordem
e progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e
semipatriarcal no Brasil, de 1957). Como afirmam Maria Lúcia Pallares-Burke e
Peter Burke, o lugar de Freyre na história está seguro por sua inovadora e mais
famosa interpretação do Brasil – ao lado de clássicos como Caio Prado Jr. e
Sérgio Buarque de Holanda. Mas há outras razões para revisitar sua obra:
primeiro, “Freyre era um dos melhores escritores de prosa em português do
século XX”; segundo, “era um dos mais brilhantes e originais historiadores
socioculturais” do seu tempo; terceiro, “suas ideias centrais sobre hibridismo e
tropicalização deram uma contribuição diferenciada e ainda valiosa ao
pensamento social” (PALLARES-BURKE: 2009, 311-312).
Neste momento, nos limites desse texto, focaremos a correspondência
enviada a Freyre por Carpeaux, estudioso de origem austríaca naturalizado
brasileiro, considerado por muitos o maior crítico literário e historiador da
literatura atuante no Brasil do século XX. Carpeaux é autor da ampla obra de
interpretação literária História da Literatura Ocidental (8 volumes, 1959-1966).
Segundo o crítico literário Alfredo Bosi, revisitar a obra de Carpeaux pode ser
um caminho confiável a um estudante por vários motivos: “Erudição ampla e
segura, método histórico-estilístico dialetizado; e crítica social e política: eis o
que aprendi – e que o estudante de hoje aprenderia – na obra de Carpeaux”.310

310
Alfredo Bosi, em entrevista sobre Otto Maria Carpeaux, foi perguntado por que um estudante brasileiro
de então leria Carpeaux. A citação acima é antecedida pelas seguintes palavras de Bosi: “Em primeiro lugar,
a riqueza de informação idônea, pois a erudição de Carpeaux era lastreada por um domínio de várias línguas

977
Apesar de sua importância estar assegurada no campo da Historiografia e da
Crítica Literária no Brasil e da certeza de que suas análises ainda podem
reverberar produtivamente no presente, tanto em ensino quando em pesquisa,
poucos são os trabalhos acadêmicos dedicados à interpretação de sua obra. As
cartas de Carpeaux levantadas foram remetidas a Gilberto Freyre entre 3 de abril
de 1941 e 16 de dezembro de 1950. Para um intelectual exilado e recém-
chegado, em busca de integração (sai da Europa rumo ao Brasil em 1939), o
contato com Freyre seria frutífero para aproximar-se da intelligentsia brasileira e
de obras que já nasceram clássicas dentro daquele contexto, como Casa-grande
& senzala:

Estou muito orgulhoso com sua permissão para colaboração à A


Província e me esforçarei para não decepcioná-lo. Ainda não está
muito claro se é mais vantajoso desenvolver novos métodos de história
literária ligados a uma questão de literatura universal (ao qual o
romantismo se presta de modo excelente), ou se é preferível a
aplicação imediata às letras brasileiras. Certamente, o senhor terá a
gentileza de me comunicar, a tempo, seus conselhos. Além disso,
muitas ideias sobre temas brasileiros rondam minha cabeça, a maioria
inspirada pelas notas preciosas de Casa-grande & senzala. O senhor
sublinha a necessidade de estudos comparativos, e por uma boa
razão; um homem que, de toda a música do século XVIII, não conhece
nada além de Mozart, será tentado a tomar por Mozart todos os seus
contemporâneos, porque o Mozartiano típico lhe escapa.311

e literaturas [...]; Junto com a erudição, e mais importante do que a mera informação, Carpeaux praticou a
arte da interpretação. [...] O estudante de hoje, literalmente perdido entre teorias e programas dispersos,
mergulhado nos espetáculos alienantes da indústria cultural, iria receber de Carpeaux o sentido agudo da
crítica social, em uma perspectiva democrática e anticapitalista, cada vez mais anti-imperialista.” (BOSI:
2013, 406-7).
311
Carta de 3 de abril de 1941, de Otto Maria Karpfen [Otto Maria Carpeaux] a Gilberto Freyre. Inédita.
Fonte: FGF. Original em francês. Tradução nossa.

978
Figura 1. ............................................................ Reprodução fac-similar de “Carta 1”
Notas: Carta enviada por Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre, com datação “Rio de Janeiro,
le 3 avril 1941”.

Fonte: Fundação Gilberto Freyre.

Ao longo de uma década de troca epistolar entre intelectuais que


demonstravam sentimentos recíprocos de admiração e respeito, é possível
observar a movimentação de grupos ora em confluência, ora em franca disputa,
claramente em busca de acumular capital simbólico para o alcance de projeção
e reconhecimento em seu campo de atuação.312 No caso de Carpeaux, mais
ainda, estava em causa a necessidade de sobreviver numa sociedade de
limitada – para não dizer exígua – atuação para um intelectual independente,
exilado, de posição ainda imprecisa no mercado de produção de bens
simbólicos.

312
Cf. teoria dos campos de Bourdieu: BOURDIEU: 2008.

979
Figura 2.Reprodução fac-similar da pg.1 de “Carta 10”
Notas: Carta enviada por Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre, com datação “Rio de Janeiro,
8 de agosto de 1947

Fonte: Fundação Gilberto Freyre.

Nesse sentindo, Carpeaux recorria a Freyre, muitas vezes, para


assegurar a sobrevivência e para preservar a reputação necessária à atuação
de um intelectual público, reconhecimento esse afinal construído, com
perseverança, em um país distante de suas origens e de sua formação:

Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1947

Amigo Gilberto,
desculpa a amolação com mais uma carta, serão em compensação
poucas linhas. Soube hoje pelo nosso excelente amigo Edson Nery da
Fonseca313 das boas palavras que Você escreveu a ele sobre meu
caso que é doloroso; ele, que assiste pessoalmente a tudo isso,

313
Edson Nery da Fonseca (1921-2014), escritor, bibliotecário e professor universitário, é um grande nome
na área de biblioteconomia no Brasil e um dos fundadores da UnB, onde, em 1995, foi condecorado com o
título de professor emérito. Foi um dos grandes estudiosos da obra de Gilberto Freyre e cuidadoso editor
de vários volumes de sua produção esparsa.

980
ainda vai explicar a situação. Além de contratempos e aborrecimentos
de toda ordem estou ameaçado de ficar sem emprego algum antes
do fim deste ano, e sem recursos. Ora, o ministro está apoiando
minha causa, assim como os oficiais de gabinete. Mas os obstáculos
da burocracia parecem intransponíveis. [...] Nem o Zé Lins pode fazer
isso, sendo sua voz insubstituível.[...]314

Em paralelo às cartas, Freyre e Carpeaux dedicam trabalhos um ao outro e,


desse modo, é interessante que uma edição dessa correspondência permita
recuperar um conjunto de textos dispersos correlacionados.315 De fato, o
diálogo epistolar entre ambos silencia na década de 1950. Os país muda, a
sociedade se moderniza, os tempos se enrijecem e o panorama político se
inflama – recorde-se que o suicídio de Vargas ocorre em 24 de agosto de 1954.
Entretanto, se, por um lado, a correspondência emudece, por outro, artigos
dispersos permitem assentar melhor o quebra-cabeça e lançar outras hipóteses
que explicam uma possível deterioração da comunicação interpessoal nos
espaços privado e público a partir da década de 1960.316 Os discursos dos
intelectuais, que buscam sua legitimação para além de conexões partidárias e
da movimentação de arranjos contingentes, aos poucos manifestam
desconcertos, como aqueles experimentados com o já estabelecido jornalista e
crítico literário Carpeaux, que questionaria publicamente os “labirintos da luso-
tropicologia” promovida por Freyre. Pessimista quanto aos rumos tomados pela
aproximação diplomática do Brasil com Portugal, que então parecia justificativa

314
Carta de 8 de agosto de 1947, de Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre. Inédita. Fonte: FGF.
315
O livro de Gilberto Freyre Perfil de Euclides e outros perfis contou, até hoje, com três edições: a primeira
edição pela José Olympio é de 1944; a segunda, pela Record, é de 1987; e a terceira, pela Global, é de 2011.
O livro é dedicado aos seguintes nomes “A / José Olympio Pereira Filho / Otto Maria Carpeaux / Clarence
H. Haring / Alexandre Alves de Sousa”. Por sua vez, Carpeaux nomeou ou homenageou claramente
Gilberto Freyre, por exemplo, nos seguintes artigos: CARPEAUX: 1999, v.1, 463-473 (Primeira edição:
em Origens e fins, Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1943); CARPEAUX: 2005, v.2, 143-147
(Primeira edição: O jornal, 26 jan. 1947); CARPEAUX: 2005, v.2, 535-539 (Primeira edição: O Estado de
S. Paulo, 06 ago. 1960); CARPEAUX, 1965, 78-79.
316
Porém, chamo a atenção para o fato de que, no início da década de 1960, se lê, na imprensa periódica,
uma bela homenagem de Carpeaux ao sociólogo com o texto “O estilo de Gilberto Freyre”. Referido ensaio
saiu originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 6 ago. 1960 (vide rodapé anterior). Versão ampliada
do texto foi publicada em obra coletiva sobre Freyre: CARPEAUX: 1962, 150-157.

981
para sustentar a “política colonial de Portugal na África”, um Carpeaux avesso
a acordos temerários, de fortes convicções políticas, finaliza de maneira
extremamente pessimista o artigo intitulado “Boxer, Recife, Pombal e Salazar”,
em que menciona, com a ironia que se tornaria característica dos seus escritos
dessa época, Freyre: “E desse modo nossa viagem para a glória do passado tem
como ponto final a miséria do presente” – texto sintomaticamente publicado em 1964,
no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. 317

Não seria esse, porém, o tom da última carta de Carpeaux guardada na FGF, datada
de “Rio, 16 de dezembro de 1950”. Nela, ao tecer comentário sobre o livro Quase
Política, reitera uma sólida admiração que, no entanto, parecia se esfumaçar nos anos
seguintes:

No resto, gostaria imensamente de discutir com V. certos pontos


controvertidos, sobretudo o do parlamentarismo, um dos poucos
assuntos em que divirjo da sua opinião, enquanto no resto me curvo
sempre perante a autoridade de um Gilberto Freyre.
Desejando-lhe boas festas e um feliz Ano Novo, continuo seu
amigo e admirador fanático de sempre.318

Edições Críticas, Novas tecnologias e Educação: algumas ponderações

Podemos notar, desse modo, uma tendência para que o organizador de


correspondência não seja considerado uma entidade neutra que percorre um
caminho protocolar, executor de um trajeto acadêmico rígido e não sujeito a
desvios ou redimensionamentos. Pelo contrário, e mais provocante, ele
experimenta possibilidades, encaminha soluções, combinando-as ao interesse

317
Esse distanciamento entre os intelectuais ocorre num momento em que o próprio Carpeaux afasta a
imagem de reacionário – acusado de receber favores do governo estadonovista e de ter tendências fascistas,
como diriam escritores modernistas dos anos 1940 ligados ao PCB, como Jorge Amado. Aliás, Carpeaux
recorreu diversas vezes a Gilberto Freyre, na década de 1940, para dirimir suspeições nesse sentido, como
demonstram as cartas. Anos depois, assumiu papel ativo de combate aos governos militares, que, de outro
modo, contava com a colaboração intelectual de Gilberto Freyre. Sobre as relações acadêmicas e editoriais,
muitas vezes contraditórias, estabelecidas com a memória e a obra de Otto Maria Karpfen/Carpeaux, cf.:
SILVA: 2011, v.1, 1-15; e SILVA; WIIK: 2014, 131-148. Sobre a relação de Freyre com governos
militares, cf., por exemplo: REZENDE, 2008.
318
Carta de 16 de dezembro de 1950, de Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre. Inédita. Fonte: FGF.

982
pela prática editorial crítica consciente e bem fundamentada. Como leitor
empenhado do material que edita, faz um criterioso trabalho de transcrição e de
anotação filológica; mas pode também apontar para novas hipóteses de
exploração hermenêutica, por meio da anotação exegética e de um ensaio
interpretativo que pode acompanhar as cartas rigorosamente editadas. A
plasticidade de sua tarefa e a riqueza dos materiais que convoca faz dele um
leitor ativo e crítico, cuja empreitada pode ganhar muito se o desenvolvimento
das edições acontecer em ambientes colaborativos. A formação de equipes com
uma abordagem multidisciplinar, 319 reunidas com um objetivo claro, qual seja,
editar um determinado corpus de correspondência, pode ser um caminho
promissor para o desenvolvimento da área no Brasil. Nesse sentido, o interesse
pelo documento como fonte primária combina-se com o empenho em obter
versões não mistificadas ou deformadas do texto-base, objetivo para o qual as
novas tecnologias podem contribuir de modo inequívoco:

[...] a partir do momento em que passou a ser possível fazer edições


críticas em suporte electrónico os especialistas empenharam-se em
desenvolver métodos que combinassem a importância da exibição dos
fac-símiles com a busca automática de texto, a comparação (colação)
das suas variantes, a consulta de tabelas (de manuscritos, de
glossários) e demais informação filológica, tudo isto num formato
partilhável (MARQUILHAS: dez. 2008).

Desse modo, a tarefa de organização de cartas dispersas e inéditas de


escritores, artistas e intelectuais ligados ao Modernismo brasileiro – no nosso
caso, em especial à literatura e às artes interessadas em definir e interrogar as
matrizes da brasilidade, principalmente nas décadas de 1930 e 1940 – é
imprescindível e deve ser feita buscando-se rigor metodológico. Os saberes
convocados por seus autores quase sempre deslizam no fio tênue ou em uma

319
Emprego o termo “multidisciplinar” consciente dos sentidos que a palavra pode abarcar: “Na
multidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade), várias disciplinas analisam um dado objeto, sem que haja
ligação necessária entre essas abordagens disciplinares. O que se faz é pôr em paralelo diferentes maneiras
de enfocar um tema, que são coordenadas com vistas ao conhecimento global de uma determinada matéria.”
(FIORIN: jan.-jun. 2009, 37).

983
zona de indiferenciação entre Crítica Literária, História, Antropologia, Sociologia
e outras áreas das Humanidades.
Nesse contexto, seria oportuno e de extrema relevância encaminharem-
se, sobretudo em âmbitos acadêmicos de ensino e pesquisa abertos à
multidisciplinaridade, projetos de edições crítico-genéticas de correspondência
em formato digital, como modo de se potencializarem os sentidos diversos que
a carta dinamiza, com suas várias redes intra e intertextuais, suas conexões em
múltiplas direções, sua legibilidade e sua abertura. Como afirma as editoras de
correspondência Cécile Dauphin e Danièle Poublan (CRH-EHESS), a edição
eletrônica é um lugar de experimentação, um lugar “provisoriamente ideal”, para
salvaguardar um texto, deixá-lo falar, apreender o social como uma experiência
singular, mas inscrita numa experiência coletiva” (DAUPHIN; POUBLAN: 2007,
120). Grupos de alunos e de pesquisadores podem unir-se com um objetivo claro
– divulgar um material de arquivo que, de outro modo, poderia permanecer
incógnito pelo grande público – para “aprender a investigar, trabalhar em grupo,
dominar diferentes formas de acesso às informações mais relevantes. É uma
metodologia que permite a apropriação do conhecimento e seu manejo criativo
e crítico”, aproveitando as palavras da pesquisadora em educação Maria
Candida Moraes (MORAES: abr/jun. 1996, 68). Sobressai, de um trabalho como
esse, a valorização do processo, da pesquisa e da relação dialética entre os
vários sujeitos que contribuem para investir sentidos ao material que está sendo
editado (Cf. tb. MACHADO: 2000).
Trazer à tona textos silenciados pelo tempo, que desafiam as margens
disciplinares e repropõem problemas ao cânone das grandes obras literárias,
históricas e sociológicas, seria um modo ativo e empenhado de superar o
paradigma tradicional e instrucionista que parece ainda prevalecer em muitos
núcleos da formação universitária em Humanidades. Desse modo, as redes
tecidas a partir do interior das peças dos conjuntos de correspondência,
irradiando para outros objetos, muitos deles dispersos, tais como artigos de
jornal, ensaios, perfis biográficos, iconografia e mesmo realizações

984
cinematográficas de época – que melhor podem ser convocados e
correlacionados em arquivo hipermídia –, apontam para a proficuidade de se
explorarem as Novas Tecnologias na edição de materiais multidimensionais
como a correspondência de escritores. O preparo de edições interativas e
dinâmicas, organizadas a partir de diversas intersecções em rede, poderia “dar
a ver” a complexidade que o gênero epistolar implica desde suas origens,
potencializando a pluralidade e a multiplicidade, muitas vezes flagrantemente
paradoxal, de cruzamentos estéticos e epistemológicos, sobremodo presentes
na correspondência e na obra de Freyre e de seus interlocutores, bem como em
outros escritos fundamentais do Modernismo brasileiro. 320

Referências bibliográficas
BOSI, A. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013.

BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern,


Guilherme J. F. Teixeira. Porto Alegre; São Paulo: Zouk; Edusp, 2008.

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espelho do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p.78-79.

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de Janeiro: UniverCidade; Topbooks, 2005. v.2. p.535-539.

_____. O romance e a sociologia. In: _____. Ensaios reunidos (1946-1971). Rio


de Janeiro: UniverCidade; Topbooks, 2005. v.2. p.143-147.

320
Para lidar com maior segurança com aspectos jurídicos de direitos autorais, atualmente consideramos
realizar um e-book interativo, com imagens de fac-símiles das cartas, a ser devidamente catalogado. Assim
sendo, a proposta precisa ser também encampada pelos detentores dos direitos autorais dos documentos
selecionados para que seja realizada. O formato que está no horizonte é o ePub (Eletronic Publication,
versão mais atual ePub3), que permite trabalhar com conceitos como plasticidade, organicidade,
modularidade, interatividade e ubiquidade. (Cf. FLATSCHART: 2014). O desenvolvimento do ePub é
baseado na linguagem XML, livre e aberta, e, nesse sentido, tem como objetivos a padronização e a
democratização de acesso aos e-books.

985
_____. Tradições americanas. In: _____. Ensaios reunidos (1942-1978). Rio de
Janeiro: UniverCidade; Topbooks, 1999. v.1, p.463-473.

_____. Uma página de Gilberto Freyre. In: GILBERTO Freyre: sua ciência, sua
filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. p.150-157.

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VENTURA, M. S. De Karpfen a Carpeaux: formação política e interpretação


literária na obra do crítico austríaco-brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.

987
A GRANDE MARCHA DE 17 DE JUNHO DE 2013 CONCEBIDA COMO
DISCURSO: A CONFIGURAÇÃO DO ENUNCIADOR E DO ENUNCIATÁRIO,
SEGUNDO AS INFORMAÇÕES DA MÍDIA

Tânia Regina Exposito Ferreira321


Prof. Orientador Dr. José Gaston Hilgert

Suporte teórico

A teoria Semiótica da escola de Paris ou greimasiana, foi desenvolvida por


Algirdas Julien Greimas (1917-1992) e pelo Grupo de Investigações Sêmio-
linguísticas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. O estudo da
Semiótica de linha francesa tem como objeto de estudo o texto, no qual procura
explicar o que “o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”, definindo-o como
objeto de significação, por sua estruturação, fazendo dele um “todo de sentido”,
e como objeto da comunicação que se estabelece entre um destinador e um
destinatário (BARROS, 2011, p.7).
Na perspectiva semiótica, esse objeto de estudo, o texto, pode-se apresentar em
diversas manifestações: verbal, pictórica, gestual etc. Portanto, o texto, objeto
da semiótica, pode ser tanto um texto linguístico oral ou escrito, quanto um texto
visual, olfativo ou gestual, ou ainda um texto em que sincretizam diferentes
expressões, como nos quadrinhos, nos filmes ou nas canções populares.
Segundo a Semiótica, um texto é necessariamente constituído por dois planos:
um plano de conteúdo e um plano de expressão322. Simplificadamente, o
conteúdo é aquilo que o texto diz, sendo a expressão a “linguagem” usada para
dizer o que ele diz. Analisar um texto em seu plano de conteúdo, na perspectiva
semiótica, significa analisá-lo em três níveis: o fundamental, o narrativo, o
discursivo. Esses três níveis constituem o que se chama, na Semiótica, de

321
Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Letras pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Membro do Grupo de Pesquisa: O discurso Pedagógico de Paulo Freire: uma
leitura. Professora Coordenadora Pedagógica aposentada da Rede Pública de Ensino do Estado de São
Paulo. Professora universitária. E-mail: tanexpotref@gmail.com
322
Nesse sentido, entende-se o texto como um signo, conforme concepção de Ferdinand de Saussure, que
define signo como a unidade formada por um significante (expressão) e um significado (conteúdo).

988
percurso gerativo de sentido. Cada um desses níveis é estruturado por uma
semântica e por uma sintaxe.
É no nível discursivo ou das estruturas discursivas, que a narrativa é assumida
pelo sujeito da enunciação. Também é neste mesmo nível “que a enunciação
mais se revela, nas projeções da sintaxe do discurso, nos procedimentos de
argumentação e na escolha dos temas e figuras, sustentadas por formações
ideológicas” (BARROS, 2011, p.82).
Segundo Fiorin (2012, p. 158) a enunciação é a instância linguística logicamente
pressuposta pela existência do enunciado. É no enunciado que se encontram as
marcas da enunciação em que se projetam do discurso os participantes da ação
enunciativa. Assim é que se constroem o éthos do enunciador e o páthos do
enunciatário.
Um sujeito produz seu discurso para um outro, tendo em vista a imagem que ele
tem desse outro. Essa imagem se constitui por qualquer elemento composicional
do discurso ou do texto, que consiste na modalização, na seleção de temas, na
escolha da norma linguística, na reiteração de traços semânticos, nas projeções
da enunciação no enunciado etc. No entanto, deve-se considerar que o
enunciatário não é um ser passivo, que apenas recebe as informações do
enunciador, ele também é um produtor do discurso. Na medida em que ele, o
enunciatário, “constrói, interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações” é
também um sujeito da enunciação (FIORIN, 2012, p.150).
Como base teórica para este artigo, serão utilizadas considerações da Semiótica
Discursiva, apontadas por Barros (2011) e Fiorin (2010, 2012). A principal
intenção deste trabalho é analisar como se configuram o éthos do enunciador e
o páthos do enunciatário da grande marcha de 17/06/2013, nos discursos dos
Jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

989
Contexto global das manifestações de junho de 2013

[...] “você marcha, José!


José, para onde?”
Poema: José de Carlos Drummond de Andrade

É assim que muitos brasileiros se viam até junho de 2013, como “José”,
personagem do Poema de Carlos Drummond de Andrade, sem esperança, com
um nó na garganta que já não podiam sufocar. Eram milhares de “Josés”, que
andavam pelas grandes capitais sem serem notados, ignorados nas suas
necessidades mais básicas: moradia, alimentação, saúde, transporte, segurança
e, principalmente, educação.
Diante deste cenário, é que se viu surgirem pequenas manifestações no estado
de São Paulo, a princípio, em torno de uma única reivindicação: a revogação de
R$ 0,20 das passagens de trem, metrô e ônibus que custavam R$ 3,00. No
entanto, essas manifestações, iniciadas por jovens que enfrentaram a Polícia
Militar e foram julgados como “vândalos” pelas autoridades e mídia, foram
tomando forma, mais e mais pessoas foram aderindo ao movimento, e o motivo
‘revogação do aumento da passagem’ foi trazendo na memória das pessoas
reflexão acerca de outros problemas enfrentados.
Assim, chegou-se ao dia 17 de junho de 2013, dia em que não só o estado de
São Paulo, mas o Brasil parou, e parou não mais para reivindicar a questão do
transporte público, mas para mostrar sua indignação à atuação de políticos e à
situação em que se encontra o país. Surgiu, então, o grande tema de nosso
estudo: as manifestações de junho de 2013. Especificamente à grande
manifestação popular realizada na cidade de São Paulo no dia 17 de junho de
2013. Procuramos em nossos estudos entender como a mídia impressa
configurou os pressupostos enunciador e enunciatário da grande manifestação
de junho de 2013.

990
O ethe dos jornais Folha de S. Paulo e o Estado de São Paulo

Fiorin (2004) apresenta o ethe tanto do Jornal Folha de SP como do Jornal O


Estado de S. Paulo como sendo de imprensa séria que acolhe uma pluralidade
de opiniões, se comparada ao Jornal Notícias Populares, por exemplo, que se
destaca pelo sensacionalismo. O autor se vale de análise realizada por Discini
(2003: 117-152) sobre os jornais o Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo, de
um lado, e Notícias Populares, de outro.
O ethe só pode ser encontrado quando a análise do éthos do enunciador se dá
na sua totalidade. Analisar somente uma edição do jornal não dá ao pesquisador
a dimensão do todo. É necessário encontrar na materialidade discursiva marcas
do éthos do enunciador nas recorrências, em qualquer elemento composicional
do discurso ou do texto, que vão desde: a escolha do assunto, a construção dos
personagens, os gêneros escolhidos, o nível de linguagem utilizado, o ritmo, a
figurativização, a escolha de temas, as isotopias etc. A imagem do enunciador
num jornal se mostra até no tamanho das letras, no número de colunas ocupadas
pela Manchete etc. (FIORIN, 2004, p.21).
Pelo histórico do Jornal Folha de S. Paulo, vimos que o jornal estabelece, desde
1981, um projeto editorial que defende um jornalismo crítico, pluralista,
apartidário e moderno. O noticiário é organizado em cadernos temáticos. É um
jornal que reconhece, devido à publicação de artigos de todos os matizes
ideológicos, desempenha papel importante no processo de redemocratização do
Brasil. Se diz apartidário. Enobrece-se por ter sido o primeiro órgão da imprensa
brasileira a pedir o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello.
O perfil dos leitores do Jornal Folha de S. Paulo são tidos como “descolado:
artistas, professores universitários etc., que tem interesses muito variados” [...]
“Não se informa apenas pelos jornais e, por isso, não dedica muito tempo a sua

991
leitura. É pluralista.” [...] “é levemente blasé 323, tingido por uma certa ironia”
(FIORIN, 2004, p.26).

Já O Estadão, apelido de “O Estado de São Paulo”, no aumentativo, nasceu em


04/01/1875 sob o nome de “A Província de São Paulo” com o objetivo de
salvaguardar os interesses republicanos. Ao longo de sua história, o jornal
Estadão não foi nada imparcial quando o assunto era política. É estabelecida
uma linha mestra, que caracteriza o jornal até hoje: “fazer da sua independência
o apanágio de sua força”. Assim como todos os grandes jornais, o Estadão
também assimilou a Internet. Em 2000, o jornal fundiu os sites das outras alas
do grupo, diga-se a “Agência Estado” e o Jornal da Tarde”, num único portal
chamado de “Estadao.com.br”.

Os leitores do Estadão são pessoas consideradas da elite do país, que


conhecem bem os fatos da política e da economia, para quem, portanto, não é
preciso explicar, a todo o momento, os antecedentes das notícias, o papel
exercido por determinadas personalidades citadas nos textos e o significado das
siglas de órgãos governamentais (FIORIN, 2004, p.25).

Apesar de ambos os jornais, Folha e Estadão estarem englobados dentro de


uma mesma totalidade, do que se chama imprensa séria, há diferenças entre
eles na maneira como cada um constrói o seu público, seu leitor, a partir de
características discursivas.

Maingueneau (2008) diz que “As “idéias” suscitam a adesão por meio de uma
maneira de dizer que é também uma maneira de ser.” Assim, ao escolher uma
maneira de dizer para enunciar as notícias, o jornal também apresenta sua
maneira de ser, que segundo o autor:

323
Blasé (fem.: blasée; pl.: blasés/blasées (fr.): adjetivo: que exprime completa indiferença pela novidade,
pelo que deve comover, chocar e etc. Exs.: ar b. atitude b. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

992
Apanhado num ethos envolvente e invisível, o co-enunciador faz mais
que decifrar conteúdos: ele participa do mundo configurado pela
enunciação, ele acede a uma identidade de algum modo encarnada,
permitindo ele próprio que um fiador encarne. O poder de persuasão
de um discurso deve-se, em parte, ao fato de ele constranger o
destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja ele
esquemático ou investido de valores historicamente especificados
(MAINGUENEAU, 2008, p. 29).

Como os jornais Folha de S. Paulo e o Estado de S. Paulo configuraram os


pressupostos enunciador e enunciatário das manifestações de junho/2013

Consideramos o conjunto de notícias veiculadas pelos jornais, no plano de


conteúdo, desdobrado no percurso gerativo de sentidos, no nível narrativo, como
um ‘espetáculo’, que conforme propõe Barros (2011, p.16):
A sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula
o fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a
organização narrativa de um texto, é preciso, portanto, descrever o
espetáculo, determinar seus participantes e o papel que representam
na historiazinha simulada.

O conjunto de notícias dos quatro primeiros protestos visto como ‘um


espetáculo’, poderia assim ser descrito:

Manifestação de estudantes contra o aumento das passagens de ônibus, trens e metrô


fecha as principais avenidas da cidade de São Paulo
Em 5/6/2013 veicula a notícia do aumento de R$ 0,20 nas passagens de ônibus, trem e metrô.
Em virtude dessa notícia, nos dias 6-7-11-13/6/2013, cerca de 2.000 a 5.000 jovens saem às
ruas nestes dias, liderados pelo Movimento Passe Livre, para protestar contra este aumento.
Esses jovens, no ato dos protestos, entram em confronto com a Polícia Militar e acabam por
provocar atos de vandalismo. Isso causa pânico nas pessoas que circulam, moram, estudam ou
trabalham por lá. O responsáveis pelo aumento dos transportes públicos, o prefeito e o
governador do estado, a quem os manifestantes se dirigem, não querem ceder à reinvindicação.

993
Assim, esses jovens assumem o papel de actantes da narrativa, que estão em
disjunção com um objeto-valor e buscam consegui-lo. Portanto, estão num
estado de disforia em relação ao que buscam. Para conseguir o objeto-valor
almejado, esses actantes precisam saber como fazer. Entra, então, na
construção da narrativa um coparticipante, na figura do MPL – Movimento Passe
Livre, um sujeito que têm conhecimento e vai capacitar os actantes/destinador a
‘querer’ e ‘poder-fazer’.
Ao estabelecer uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito
e um objeto em um enunciado, temos um enunciado de estado. Exatamente
como ocorre no texto analisado. O sujeito (manifestantes) está em disjunção com
o objeto-valor (o valor dos transportes sem o aumento (R$ 3,00) e quer entrar
em conjunção com ele, para sair do estado de disforia e entrar em um estado de
euforia.
Construída a narrativa como ‘espetáculo’, podemos também ver como o texto se
constrói no nível fundamental do plano de conteúdo. O nível fundamental é o que
abriga as categorias semânticas que estão na base da construção de um texto.
Assim, teríamos um sujeito que busca entrar em conjunção com um objeto-valor,
o que lhe permitirá usufruir do direito ir e vir, que poderia ser caraterizado por
uma oposição semântica, como: sujeição versus liberdade.
O sujeito em sujeição com o objeto-valor que busca, isto é, vendo o seu direito
de ir e vir tolhido, buscará conquistar esse objeto e assim, o tendo conquistado
continuará usufruindo de seu direito de liberdade.
Nesta primeira análise da construção dos níveis narrativo e fundamental, o
sujeito ficará ainda privado de conquistar o objeto-valor e permanecerá num
estado disfórico. Mas ele não desistirá da busca, ao contrário, buscará alcançar
competência para atingir seu objetivo. E quem dotará o actante/destinador
(manifestantes) com a competência necessária para o ‘poder-fazer’ será um
coparticipante da narrativa, representado pelo MPL – Movimento Passe Livre,
como se pôde confirmar neste enunciado “Manifestantes fazem ‘intercâmbio

994
para trocar experiências” (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano C5 de
16/06/13).
No entanto, o sujeito da narrativa precisa de um estímulo, de uma motivação
para poder agir, o que na semiótica se institui como classes de manipulação.
Essa manipulação pode se dar por: provocação, sedução, intimidação ou por
tentação. O actante da narrativa em questão, portanto, saiu às ruas porque foi
estimulado por uma das classes de manipulação: o da provocação, marcada por
sua imagem negativa frente a população. Afinal, este manifestante foi tratado
como ‘vândalo’ e ‘baderneiro’, que saiu às ruas para destruir o patrimônio público
e causar violência, segundo depoimento dado pelo coronel à Folha: “Essas
pessoas não estão a fim de se manifestar, mas sim de fazer baderna”, afirmou o
coronel Reynaldo Simões, Comandante da operação da Polícia Militar. (Giba
Bergamim Jr. E Eduardo Geraque) (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano
C4 de 07/06/13).
Pela análise interpretativa realizada dos noticiários do jornal, o
actante/destinador melhorou sua performance na narrativa, provocado pela
violência policial, que o fez querer e adquirir novas habilidades para conquistar
o objeto-valor. Desta forma, a narrativa foi marcada por uma mudança de estado
com o protesto do dia 17 de junho de 2013.
Segundo Fiorin (2013, p.41), se no nível narrativo, analisamos o texto sob formas
abstratas, no nível discursivo, as formas abstratas serão revestidas de termos
que lhes darão concretude. O objeto-valor, representado pelo não aumento de
R$ 0,20 nos transportes públicos, com o qual o sujeito da narrativa quer entrar
em conjunção, no nível discursivo se concretiza com o direito de ir e vir. Isto é,
se os transportes sofrerem o aumento, as pessoas podem perder a liberdade de
andar pela cidade em busca de outros objetos-valor como cultura e lazer, pois
teriam que gastar mais com os transportes para o essencial de suas vidas: o
trabalho e o estudo.
Em face deste problema, quando este sujeito resolve sair às ruas para protestar,
ele constrói um enunciado e o dirige a alguém. Esse sujeito que enuncia não é

995
uma pessoa em carne e osso, mas sim trata-se de um ‘eu’ pressuposto
depreendido do enunciado: o enunciador. Da mesma forma, o ‘tu’ a quem o ‘eu’
se dirige no discurso, é um ‘tu’ pressuposto, também depreendido do enunciado:
o enunciatário. Esses sujeitos de comunicam ocupando um espaço e num
determinado tempo.
Ao construir um enunciado, o sujeito se vale de instâncias enunciativas e estas
são definidas por um ‘eu-aqui-agora’, isto é, todo o discurso se forma porque há
um ‘eu’ que se dirige a um ‘tu’, num determinado lugar ‘aqui’ e num determinado
tempo ‘agora’:
O “eu” realiza o ato de dizer num determinado tempo e num dado
espaço. “Aqui” é o espaço do “eu”, a partir do qual todos os espaços
são ordenados “aí”, “lá” etc.; “agora” é o momento em que o “eu” toma
a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade linguística é organizada.
A enunciação é a instância que povoa o enunciado de pessoas, de
tempos e de espaços. (FIORIN, 2004, p. 16).

Os sujeitos do discurso que se quer configurar não são os reais manifestantes e


nem a quem eles se dirigem, mas sim, quem os jornais configuraram nos
enunciados narrados, a partir de um ‘observador’ que presenciou os fatos e se
utilizou de um mecanismo chamado debreagem-enunciva, para dar o efeito de
objetividade ao discurso.
Uma vez que a enunciação é a instância da pessoa, do espaço e do
tempo, há uma debreagem actancial, uma debreagem espacial e uma
debreagem temporal. A debreagem consiste, pois, num primeiro
momento, em disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da
enunciação e em projetar no enunciado um não eu, um não aqui e um
não agora (FIORIN, 2012, p. 24).

Desta forma, nos enunciados das notícias das quatro primeiras manifestações
do mês de junho de 2013, que antecederam a grande passeata do dia 17 de
junho, o pressuposto enunciador é caracterizado por jovens, tratados como
‘vândalos’, que saíram às ruas da cidade São Paulo, para causar ‘atos de
vandalismo’, depredando patrimônio público e causando cenas de violência, ao
serem coibidos por Policiais Militares. E o pressuposto enunciatário é
representado pelos que governam a cidade. No caso do enunciatário,

996
representado pela figura do prefeito, temos um sujeito que parece não ter voz
ativa no discurso, pois se omite de dar opiniões ou as dá por outra pessoa
participante da narrativa. Já o ator, na figura do governador, opina e assume sua
posição no discurso. Assim, o pressuposto enunciatário do discurso é alguém
que oscila nas atitudes, que o leva a ‘entender e lamentar’ as cenas de violência;
e a obrigação de agir com firmeza e truculência, ao que acredita ser ‘atos de
vandalismo’; para manter a ordem e o direito das pessoas de irem e virem.
A narratividade é responsável pela estrutura de um enunciado que apresenta
uma situação inicial, a qual sofre transformações até chegar ao final, pertencente
à teoria do discurso. Na frase “As manifestações de 17 de junho no estado de
São Paulo foram pacíficas.” a narratividade deste enunciado pressupõe uma
situação inicial, que houve manifestações antes de 17 de junho e estas não
foram pacíficas e ainda que algo aconteceu para gerar a pacificidade desta
última.
Foi exatamente isso que aconteceu, houve um percurso narrativo em que o
actante da narrativa das primeiras manifestações sofreu uma transformação,
operada pelo sujeito destinador-manipulador, na figura do MPL que o fez adquirir
competência para executar uma dada ação, no caso o poder se manifestar.
Houve uma modalização deste sujeito manifestante da grande marcha em
relação ao ‘querer-fazer e ao poder-fazer. No início este sujeito buscava somente
pela revogação do aumento dos transportes públicos, mas depois de sofrer as
coerções que intentavam impedir o seu direito de manifestar, passou a buscar
por este último valor.
Desta forma, o éthos do enunciador deste grande discurso do 5º maior protesto
de 17 de junho de 2013, foi identificado por pressuposição, como sendo de um
‘herói’, que conseguiu levar às ruas da cidade de São Paulo 65 mil pessoas.
Pessoas essas, de todas as idades, de diversas classes sociais, seguidoras de
diversas ideologias, que resolveram reivindicar, não mais só pela revogação do
aumento dos transportes públicos, mas sim por uma condição digna de vida, que
só será possível com educação de qualidade, com um atendimento de saúde

997
digno a todos os cidadãos brasileiros, por direito e acesso à cultura e lazer.
Mostraram também que não aguentam mais a corrupção e má administração do
país que lhes tirou todos esses direitos.
Sendo assim, o pressuposto enunciatário a quem este enunciador se dirige não
se trata mais só do prefeito e do governador do Estado de São Paulo, a eles
também, mas juntam-se a eles, políticos de todas as esferas, municipais,
estaduais e federais, e principalmente, a presidente da República do Brasil,
como podemos no título do caderno Metrópole A11: “Protestos se espalham
pelas ruas do Brasil e põem governantes em alerta.”
O páthos deste enunciatário é de alguém negligente, que se
mostrou incompetente para executar o que lhe foi destinado, administrar o país.
Desta forma, perdeu a credibilidade do enunciador, e ainda o subestimou. O
contrato de veridicção firmado entre esse enunciador e esse enunciatário, por
ocasião da eleição, foi quebrado, porque o enunciatário mudou o dizer do
discurso, por ocasião da propaganda eleitoral.

Considerações finais

As leituras interpretativas das notícias veiculadas nos referidos jornais,


fundamentadas nos conceitos da teoria Semiótica Discursiva, possibilitou-nos
identificar como se configuraram o éthos do enunciador e o páthos do
enunciatário do discurso da grande manifestação de 17 de junho de 2013. E
também levou-nos a depreender como as ‘astúcias enunciativas’ utilizadas pelos
jornais, podem persuadir os leitores a acreditarem e aceitarem o que eles têm
por ‘verdade’.

Não fossem as redes sociais que permitiram veicular, em tempo real, notícias,
imagens e vídeos sobre os protestos, talvez os leitores dos referidos jornais e a
população não tivessem mudado a opinião, a ponto de tomarem partido em favor
dos jovens manifestantes, saindo também às ruas no dia 17/06/2013. E para
reivindicarem não só a revogação do aumento de R$ 0,20 nos transportes

998
públicos, mas principalmente pelo direito de ‘protestar’. Isso também justificou a
mudança de enfoque dada pelos jornais às notícias veiculadas sobre as
manifestações.

Esses mesmos jovens conseguiram, depois desta grande marcha, revogar os


R$ 0,20 de aumento dos transportes públicos de ônibus, trem e metrô. No dia 20
de junho de 2013 o jornal Folha publicou a comemoração dos cerca de 500
manifestantes na Av. Paulista. No entanto, muito mais do que a vitória da
revogação, ficou o direito adquirido de poder de ‘protestar’ e se fazer ‘ouvir’.

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GUIMARÃES, Elisa. Texto, discurso e ensino. 1. ed., 2ª reimpressão. – São


Paulo: Contexto, 2013.

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos discursivo. Organizadoras Ana Raquel


Motta e Luciana Salgado. – São Paulo: Contexto, 2008.

999
O CORPO FEMININO EM “A PROCURA DE UMA DIGNIDADE”, DE
CLARICE LISPECTOR: ENVELHECIMENTO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES
COM OS SENTIDOS

Telma Maria Vieira324

Introdução

A literatura brasileira, a partir dos anos 40, experimentou transformações


estéticas de grande relevância, cuja ruptura com a tipologia do “romance” pode
ser observada tanto na linguagem quanto na própria escritura. Dentre as
produções literárias com essa particularidade, podemos destacar as de Clarice
Lispector; cujas personagens resgatam experiências intuitivas e tentam, de
modo aparentemente sem sentido, dar-lhes um sentido maior. Suas obras
apresentam reflexões acerca do processo criativo literário; cogitam sobre os
elementos que o compõem e a relação do escritor com eles. Tratam-se de
narrativas com escritura singular: construções linguísticas simbólicas permeadas
de imagens insólitas. Talvez, por isso, ao mesmo tempo em que há, por parte da
crítica especializada, reconhecimento de sua relevância em nossas letras, ela é
considerada como escritora enigmática.
O legado da Autora é composto de vinte e seis obras, divididas entre
romances, crônicas, contos, entrevistas, das quais destacamos para uma leitura
mais detalhada Onde Estivestes de Noite. A coletânea heterogênea apresenta
textos divididos entre contos, crônicas, impressões e reflexões inéditas ou
publicadas anteriormente em outros livros ou na seção que Clarice mantinha no
Jornal do Brasil. O conjunto de textos não contém um fio condutor aparente que
nos permita considerar a produção em seu todo para uma classificação única.
Publicada em 1974, a obra caracteriza-se por temas recorrentes em publicações
anteriores: personagens femininas idosas que denunciam a condição de
abandono social e marginalidade, como D. Anita do conto “Feliz Aniversário”, de

324 Doutora em Comunicação e Semiótica-Literatura, pela PUC-SP; docente da FATEC e UNICASTELO.

1000
Laços de Família (1960), mas que, principalmente, apresentam o conflito da
mulher idosa diante de sensações que se manifestam no corpo que se deteriora;
experiências significativas que desvelam, ou escondem, elementos que se
articulam e encerram conflitos de ordem existencial, mas que são reprimidas
pelas personagens que frequentemente retomam suas vidas rotineiras.
Destacamos o conto “A procura de uma dignidade” que abre a coletânea
de dezessete textos. Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa, cujo
narrador colado à personagem chega a identificar-se com ela. A protagonista
propositadamente não tem nome próprio, é identificada pelo nome do marido:
Sra. Jorge B. Xavier. A narrativa gira em torno de sua aventura ao procurar por
um local dos muitos eventos sociais que costumava frequentar, por engano,
perde-se dentro do Estádio do Maracanã. Caminha até a exaustão em busca da
porta de saída, enquanto, intimamente, reflete acerca da própria condição.

O Corpo Feminino: Constituição e Metamorfoses

No mundo contemporâneo, frequentemente, nos deparamos com


diferenciadas teorias sociais e técnicas laboratoriais que ameaçam, cada vez,
mais a naturalidade do corpo. Do “conhece-te a ti mesmo” grego à clonagem,
que põe em xeque as noções de humanidade, há um longo percurso que se abre
a todo um imaginário e suas respectivas inquietações.
Os sentimentos mais comuns, em relação ao corpo, em nossos dias,
são perplexidade e incerteza, pois o homem se encontra diante de um mundo
que não acabou, segundo afirmavam as velhas profecias, e que se oferece pleno
de possibilidades, porém sem garantias.
Pensar o corpo, neste contexto, implica refletir a respeito de “quem
somos?”, ou seja, considerar a condição mortal do homem sugere pensá-lo em
seu próprio corpo. Mas o que significa para o homem ter um corpo ou ser um
corpo?

1001
Alguns estudiosos, ao analisarem o fenômeno da corporeidade,
consideram que o homem do século XX vive uma crise do corpo. Esta crise seria
reflexo de uma corporeidade perdida, pois na construção da história ocidental,
houve opção pelo discurso, isto é, ao invés de conceber-se o homem concreto
como corpo do ser-no-mundo, que se relaciona consigo mesmo, com os outros
e com as coisas, preferiu-se descrever e vivenciar a ideia de corpo. O homem
concreto foi suplantado pela evolução do cérebro e da mente.
No processo de constituição, invenção, rupturas e metamorfoses do
mundo, desde as narrativas míticas, o corpo funda uma forma de comunicação,
respondendo aos processos sociais. Não seria inadequado, portanto, afirmar
que em algumas sociedades produziu-se uma cultura para o corpo, mediador de
diversos sinais e valores culturais.
Considerar a história do corpo implica, portanto, tratar assuntos tanto
de comportamentos impostos pelos grupos sociais quanto de instintos, ou seja,
é impossível tratar do corpo sem tocar nas necessidades biológicas para
perpetuação da espécie e em regras inventadas pela cultura e civilização para
controlá-las.
Um recorte histórico permite que pensemos nas transformações
ocorridas, por exemplo, a partir do século XVII, quando o advento do capitalismo
e a definição da classe burguesa promovem uma nova imagem de compreensão
do corpo. O indivíduo, para se integrar à nova economia, precisou desenvolver
tarefas individualizadas e assim tolher a sensibilidade despertada nas relações
com pessoas e lugares. Isto é, a relação entre o corpo e o ambiente não foi mais
pensada como o corpo cristão, que procurava abandonar o lugar onde vivia, para
buscar o paraíso. Cada vez menos religiosa a sociedade construiu uma imagem
de corpo calcada na individualidade e na saúde. Esta, responsável por inúmeras
modificações nas cidades, como, por exemplo, o uso de vestimentas mais leves
por causa do calor e a construção de bueiros subterrâneos em substituição aos
existentes em céu aberto. O corpo limpo e saudável teria mais condições de
atuar nas relações sociais.

1002
Com a Revolução Industrial, a classe trabalhadora, formada de
homens e mulheres desconhecidos, que se encontravam e conviviam longe do
ambiente familiar e das vistas de parentes que os vigiavam, adotou novos
hábitos comportamentais, como se reunir em lugares para entretenimento; por
exemplo, parques de diversões.
As normas sociais passaram a ditar comportamentos relativos às
necessidades naturais do corpo, considerado, ainda, publicamente impróprio e,
por isso passível de permanecer secreto. O corpo, como as partes que o
compõem e o discurso para nomeá-las, sofrem, por conta disso, rígidas
restrições que se instalam no íntimo de cada um. Este corpo atuante na multidão,
em movimento nas cidades, contrastava com a apatia individual: o corpo passou
a ser posto à prova em meio à multidão, originando uma nova noção de solidão
e isolamento; permaneceu pensado apenas como imagem e, enquanto carne,
só percebido a partir da ruptura com o sujeito, que se dá, por exemplo, por meio
do sofrimento, da dor, da doença, ou de comportamentos que venham a agredir
a disciplina social, isto é, a partir do momento em que o corpo deixa de ser
perfeito aos olhos da sociedade.
A análise da constituição do sujeito moderno e as implicações com o
corpo fazem parte das reflexões de Maurice Merleau-Ponty. Em Fenomenologia
da Percepção (1945), ele afirma que “o corpo é o veículo do ser no mundo (...)
tenho consciência de meu corpo através do mundo (...) tenho consciência do
mundo por meio de meu corpo” (Merleau-Ponty: 1994, 122). Segundo ele, o
corpo é um meio para se ter o mundo: “é por meu corpo que compreendo o outro,
assim como é por meu corpo que percebo ‘coisas’,” (Merleau-Ponty: 1994, 253).
O filósofo faz longas reflexões a respeito do corpo: da psicologia
clássica às experiências com espacialidade, motricidade e sexualidade. Para ele
o corpo tem a função de atualizar a existência: “o corpo exprime existência total,
não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque a existência se
realiza nele.” (Merleau-Ponty, 1994: 229). Para ele, o corpo, devido sua natureza

1003
enigmática, tanto pode se abrir quanto se fechar para o mundo, isto é, tornar-se
um esconderijo da própria existência.
A esse corpo que se move e atua na realização de desejos, projetos e intenções, Merleau-Ponty
denominou corpo fenomenal, que difere do corpo objetivo, entendido por ele como organismo fisiológico, ou seja, o
corpo enquanto conjunto de órgãos que obedecem a leis físicas e fisiológicas.

Esse corpo fenomênico, também chamado de corpo-próprio, é um corpo sujeito de seus atos e que se
encontra aberto ou, às vezes fechado, para o mundo.

O enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível.


Ele, que mira todas as coisas, também pode olhar-se, e reconhecer
então naquilo que vê o ‘outro lado’ do seu poder vidente. Ele se vê
vendo, toca-se tocando, é visível e sensível para si mesmo (...)
um si, portanto, que se compreende no meio das coisas, que tem
um verso e um reverso, um passado e um futuro.
(MERLEAU- PONTY: 1994, 20)

O corpo, portanto, está entre o objeto e o sujeito, que não se separam:


pode ser visto e pode ser sentido; tem o papel de ligar a consciência perceptiva
ao mundo. Logo, pensar o corpo e conscientizar-se dele significa reconhecer que
em termos existenciais e ideológicos o indivíduo só pode ser registrado na área
corporal, isto é, todas as metamorfoses e situações vivenciadas por ele, tanto no
espaço externo quanto no interno, prescindem de um corpo para efetivamente
existir. A consciência do sujeito, portanto, manifesta-se primeiramente como
consciência de sua forma.

A questão do corpo e, especificamente da sexualidade como


experiência humana, também é matéria de reflexão para Georges Bataille,
escritor francês que tramita entre literatura e filosofia. Em seu conhecido ensaio
O Erotismo, de 1957, ele traça a diferença entre sexualidade humana e dos
animais. Define como fronteira a atividade erótica, exclusivamente humana.
Segundo ele, é a atividade erótica que diferencia os homens dos demais seres.
Nestes, as atividades de sexualidade não envolvem “vida interior”, enquanto
naqueles, essa “vida interior” é representada pela busca do desejo exteriorizado,
às vezes em objetos ou ídolos, eleito de acordo com os gostos pessoais ou
padrões ditados pela sociedade. A atividade erótica, portanto, está ligada a

1004
traços culturais, ou seja, é definida pelo grupo social enquanto que a sexualidade
se liga ao mundo instintivo.
Essa característica especial e própria do ser humano faz com que
Bataille considere o erotismo não sob a ótica da genética, mas da religiosidade,
pois a semelhança tanto da experiência erótica quanto da religiosa está no fato
de que são de ordem pessoal e interior e responsável pelo desequilíbrio do ser.
O corpo e suas manifestações são questões recorrentes nos textos
de Clarice Lispector. Segundo ela, é nele que a percepção do mundo se
manifesta; por meio dele pode se expressar, tocar e sentir, isto é, perceber e ser
percebido. Para que as evidências se tornem reais e verdadeiras, devem ser
filtradas pelo corpo, que inscreve e assinala nossa humanidade; é um fragmento
da situação de ser do homem. É parte fundamental de um todo. Por isso, na
produção literária de Clarice Lispector, ele é destaque tanto nos romances
quanto em crônicas e contos.

Envelhecimento, Sexualidade e Relações com os Sentidos

Clarice Lispector, em todas suas obras, observa o ser inserido em seu


cotidiano, isto é, no corpo-a-corpo com a realidade. No conto “Em busca de uma
dignidade” essa característica também é presente: o núcleo da observação é
centrado no corpo físico, o que faz da narrativa uma aventura químico/orgânica.
O texto exibe uma concepção especial do corpo. Visto como material
da construção do ser e de sua relação com a realidade espacial, a personagem
é ambientada no espaço labiríntico do Estádio do Maracanã, para experienciar
os sentidos do corpo físico. O singular é que as experiências das personagens
não são apenas intuitivas, ou seja, não são apenas experiências que se
manifestam na consciência, mas ocorrem no próprio corpo, que dialoga com o
espaço geográfico.
A protagonista, a Sra. Jorge B. Xavier, ao se encontrar perdida nos
subterrâneos do estádio, busca uma porta de saída; na verdade, procura saída

1005
para sua condição de mulher de setenta anos que nunca tivera vontade própria
e sempre fora conduzida em todas as situações da vida.
O início do conto exibe uma idosa que, aparentemente mantem-se jovem
por meio de atividades culturais; ela desconhece o próprio corpo da mulher de
70 anos. Nessa fase da narrativa, o corpo se instaura como o elemento que dará
à personagem a revelação do próprio envelhecimento. O texto apresenta
alusões à questão em frases soltas desde o início da narrativa, como, por
exemplo: “tinha quase 70 anos, todos lhe davam 57”; “Mas agora, perdida nos
meandros internos e escuros do Maracanã, a senhora já arrastava pés pesados
de velha”; “Saúde física já agora arrebentada pois já rastejava os pés de muitos
anos.”; “As pernas lhe doíam, doíam ao peso da velha cruz.”(Lispector: 1994, 8
e 11). A Sra. B. Xavier tem uma perspectiva do que seria envelhecimento,
evidentemente a partir de seu disciplinamento, ou seja, o que as instituições
sociais determinam. Como mulher “disciplinada” pelo casamento, ocupa seu
tempo com atividades sociais, enquanto envelhece. O diferencial está no fato de
que ela usa essas atividades para “manter-se jovem por dentro”, isto é, não se
sente como deveria: uma mulher velha. O próprio corpo denuncia a aversão, pois
não aparenta 70, mas uns 57 anos.
A passagem dos anos que viveu, de modo completamente inconsciente,
é assinalada pela imagem do labirinto, cujos corredores “internos e escuros”
representam o desconhecimento da protagonista com a própria existência. Os
diversos corredores que percorre e a várias portas por onde passa não permitem
que ela encontre o que procura: a necessária porta de saída do local. O texto é
rico em imagens simbólicas, como as do labirinto. Também retoma outro
elemento marcante nos textos clariceanos: a água. Em publicações anteriores,
a água se faz presente como um elemento de renovação, isto é, promove a
dialética do fim e recomeço, ou seja, da vida e da morte. Nos textos de Clarice
Lispector, a morte às vezes se apresenta de modo real, às vezes por
simbologias, mas, frequentemente, é o verdadeiro problema com o qual as
personagens se deparam.

1006
A Sra. Xavier reflete acerca de sua condição a partir do elemento água.
Ao chegar à casa, adormeceu. “Quando acordou horas depois então viu que
chovia uma chuva fina e gelada, fazia um frio de lâmina de faca. Nua na cama
ela enregelava. Então achou muito curioso uma velha nua. (Lispector: 1994, 14).
Com a chuva dá-se a ruptura das relações da protagonista com o espaço – os
labirintos do Maracanã – e inicia-se a relação com as sensações do corpo.
Então percebeu que estava de quatro. Assim ficou um tempo, talvez
meditativa, talvez não. Quem sabe, a Sra. Xavier estivesse cansada de ser um
ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma.
Perdida a altivez última. De quatro, um pouco pensativa talvez. (LISPECTOR:
1994, 15)
Toda a ideia que tinha a respeito do envelhecimento desfaz-se. Há, a
partir daí, referências à sexualidade, que foram indiciadas ao longo da narrativa
pela palavra “aquilo”: “Sabia que o homem [o taxista] a julgava louca – e quem
dissera que não? pois não sentia aquela coisa que ela chamava de 'aquilo' por
vergonha?” (LISPECTOR: 1994, 10). Afinal, o “aquilo” desvela-se para o leitor:
“e aquilo veio com seus longos corredores sem saída. ’Aquilo’, agora sem
nenhum pudor, era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída
pelo inalcançável ídolo de televisão. (LISPECTOR: 1994,16)
No texto, a protagonista tenta ignorar o que denomina “aquilo”: desejos
sexuais considerados por ela mesma como impróprios: “desejo fora de estação”,
no seu entender, incomuns, pois “tinha quase setenta anos”; ela encontra-se
vinculada à ideia de que o sexo não faz parte da vida da mulher idosa. Por isso,
tenta, em vão, ignorar as sensações que se manifestam em seu corpo:

A realidade exigia muito da senhora. Examinou-se ao espelho para ver se o


rosto se tornaria bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um
rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu
rosto nunca exprimira senão boa educação. E agora era máscara de uma
mulher de 70 anos. (LISPECTOR: 1994, 17)

Contudo, é envolvida: “E agora estava emaranhada naquele poço fundo


e mortal, na revolução do corpo. Corpo cujo fundo não se via e que era a

1007
escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos”
(LISPECTOR: 1994, 18).
O interessante é que não há tomada de consciência do desejo sentido a
partir daquele momento, mas o terror de que ele sempre estivera escondido, sob
a “máscara” da mulher de setenta anos e que sempre existiria: “Por que as outras
velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer? Nos
homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não” (LISPECTOR:
1994, 18).
O conflito da personagem está na tomada de consciência de que ; “Por
fora - viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por
dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva
úmida, mole assim como gengiva desdentada” (LISPECTOR: 1994, 17).
O corpo objetivo da Sra. B. Xavier não condiz com o pensamento
tradicional: o corpo do idoso deveria, segundo sua própria concepção, ser isento
de sexualidade, ou seja, velhice e sexualidade seriam indissociáveis. Por isso o
conflito, ao deparar-se com manifestações de erotismo de seu corpo idoso,
ilustrado pela imagem da gengiva desdentada. Várias culturas têm narrativas
ilustradas por uma vagina com dentes, para alertar sobre o perigo das relações
sexuais. O texto apresenta-nos uma gengiva desdentada, clara alusão à perda
dos dentes, comum na velhice; as sensações experimentadas pela personagem
são experimentadas tardiamente. Até então, ela apenas ocupou seu papel de
esposa de Jorge B. Xavier. Sentir-se úmida e mole por dentro assinala a
consciência seu “destino” de mulher e, com ele, a condição feminina que é
manifestar o erotismo até a morte, isto é, embora os rígidos padrões morais da
sociedade tenham, ao longo dos tempos, atribuído à mulher idosa, proibição nas
manifestações e práticas eróticas, estas não terminam. O corpo feminino, seja
na juventude ou na velhice, é capaz de manifestar-se eroticamente.
Ao tomar contato com o “fundo do corpo”, A Sra. Xavier busca
“sentimentos bonitos e românticos”, encarnados na imagem do ídolo Roberto
Carlos. Mas, “a delicadeza dele apenas a levava para um corredor escuro de

1008
sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a
boca de Roberto Carlos. (LISPECTOR: 1994, 18).
Segundo George Bataille, o desejo erótico não está apenas nos
corpos, mas também envolve todo jogo de sedução, o que ocorre com a Sra.
Jorge B. Xavier que se sente erotizada: “Seus lábios levemente pintados ainda
seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha?” (LISPECTOR:
1994, 19). O corpo feminino, embora idoso, mostra-se sexual e erotizado.
Na conclusão da narrativa, a personagem conscientiza-se, diante do
espelho, de que é refém dessa condição: “Foi então que a Sra. Jorge B. Xavier
bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e
interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! Que! Haver! Uma!
Porta! De saííííííída!” (LISPECTOR: 1994, 20).
A imagem refletida no espelho possibilita que a personagem
contemple o que há de mais profundo em se âmago: o desejo – “gengiva mole”
– preso ao corpo – “figo seco” – que envelhece. Para ela, aquele desejo bestial
não deveria estar alí porque ela considerava inadequado que uma mulher idosa
o sentisse. Por isso a “porta de saída” é indiciada pela morte - talvez o suicídio
- que, como afirma Georges Bataille (1988), pode ser, como o ato sexual:
passagem que permite a suspensão dos limites.
A suspensão dos limites, dada pela perda no Estádio e,
posteriormente, pelas sensações de desejo por Roberto Carlos, revela à
personagem que sua condição de mulher e idosa não a exime da fatalidade de
toda condição humana: estar presa ao corpo físico e suas necessidades, como
o sexo.

Conclusão
O texto apresenta uma personagem diante da ruptura do seu sistema de
vida, cuja ordem previamente estabelecida a mantém em estado de suspensão,
ou seja, a vida que leva é a vida para outro, no caso, o marido; sua existência é
totalmente esvaziada de identidade própria, por isso o nome que usa é

1009
emprestado do cônjuge. Ao perder-se no labirinto do estádio, encontra-se
desiquilibrada diante de seu anonimato e sua condição feminina. O
estranhamento causado pela experiência do perder-se nos diversos caminhos
do Maracanã manifesta-se nas sensações de limitação, desejo e prazer, ou seja,
na “revolução do corpo”.
Podemos afirmar que A Sra. B. Xavier experimenta o que Bataille
considera “a aprovação da vida até na morte”, isto é, “a porta de saída” não
existe. Sua angústia vem do que não conseguirá livrar-se, pois o corpo nos faz
presentes no mundo e aos outros, ou seja, estar-no-mundo é estar-no-corpo e
fora dele não há libertação possível; a condição humana tem sua essencial
dimensão corpórea.
A dignidade buscada pela personagem dá-se porque ela esperava
um envelhecimento de acordo com os ditames da sociedade, isto é, construiu
uma ideia do envelhecer que não corresponde às manifestações do seu corpo.
Contudo, não é o que ocorre, pois os labirintos do Estádio do Maracanã
metaforizam com seus diversos “corredores escuros” as possíveis experiências
desconhecidas do seu corpo.
Clarice Lispector desconstrói no texto “Em busca de uma dignidade” o
ideário de velhice, estabelecidodo pela sociedade a partir das limitações
atribuídas ao corpo objetivo, que definem as possibilidades de experiência do
corpo fenomenal.
A experiência de desequilíbrio que vivenciou nos corredores do estádio
possibilitou que sensações antes desconhecidas, como o erotismo, se
manifestassem. Com elas, o desespero de perceber que, apesar de seu corpo
estar se deteriorando, tais sensações durariam para sempre, pois a única porta
de saída seria a morte, metaforizada no grito que encerra a narrativa.
Para Clarice Lispector, a morte é fatalidade da condição humana, por
isso não pode ser desconsiderada em suas reflexões; é considerada no texto de
duas maneiras: a morte do “eu”, que se dá em vida, por meio da solidão e
anulação pelo casamento, e a morte física, decorrência do desgaste do corpo

1010
que envelhece. Ambos os tipos de “morte” são vivenciadas pela personagem,
pois estão intimamente ligadas ao corpo, isto é, são acessíveis mediante as
experiências da vida terrestre. Por isso a autora frequentemente exibe em seus
escritos personagens cujos aspectos biológicos manifestam-se de maneira
inseparável do social e do cultural.

Referências Bibliográficas

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Laurênio de Mello. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
BATAILLE, Georges. O Erotismo. 3.ed. Trad. João Bérnard da Costa. Lisboa:
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MURARO, Rose Marie. Sexualidade da mulher brasileira. Petrópolis: Vozes,
1983.

1011
OS MULTIPLOS PAPÉIS DA PERSPECTIVA INTERCULTURAL NO ENSINO
DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
UM ESTUDO ETNOGRÁFICO NOS ESTADOS UNIDOS

Vanessa Maria da Silva325

Introdução

O presente artigo apresenta um recorte da pesquisa de doutorado a


respeito do ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa como língua
estrangeira sob o prisma da perspectiva intercultural. Esta investigação foi
realizada durante dois semestres, de 2013 a 2014, com acompanhamento direto
e intensivo das aulas de Língua Portuguesa no Department of Portuguese and
Brazilian Studies (POBS), na Brown University, em Providence, Rhode Island,
EUA.
O campo das humanidades encontra-se questionado por um conjunto de
estudos transdisciplinares, que permite desenhar novos contornos da vida na
sociedade de hoje e que oferece contribuições imprescindíveis e consistentes
para se pensar o ensino de língua estrangeira para além dos limites
exclusivamente linguísticos.
Até poucas décadas atrás, os planos de aula, no tocante ao ensino e
aprendizagem de língua, transitavam em torno de metodologias, aspectos
didáticos, conteúdos, materiais e cronogramas; hoje, devido à necessidade de
reconfiguração no modo de se comunicar, essas questões continuam a ser
importantes, porém observadas de forma mais ampla, considerando questões
sociais, políticas, econômicas, históricas e, sobretudo, culturais.
O ensino de língua e de cultura exige atenção a diferentes concepções.
Segundo a opinião de autores como Nery (1997) e Frias (1991), estabelece a
elaboração de um discurso pedagógico que conduza, através da adoção de
novas posturas metodológicas, orientação intercultural para o aprendizado de
língua estrangeira.

325
Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Doutoranda em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie

1012
Pensando em um ensino de língua associado às questões relativas à
cultura na constituição das representações de aprender e ensinar línguas como
práticas socioculturais, consideramos a perspectiva intercultural, parte inerente
do conhecimento linguístico acrescido da percepção de novas culturas, interação
com o outro e de novas concepções de vida.
As transformações culturais demandam uma implementação diferenciada
do ensino de línguas estrangeiras, objetivando a formação de indivíduos, o
desenvolvimento de consciência social, criatividade, mente aberta para novos
conhecimentos e uma reforma na maneira de pensar e ver o mundo.
De acordo com Lameiras (2006), o diálogo entre culturas possibilita uma
abertura que deve, naturalmente, afastar as pessoas de um comportamento
etnocêntrico além de favorecer o respeito às diferenças, sem creditar
supremacia ou sentimento de inferioridade a nenhuma cultura especificamente.
Enfatizamos que os termos cross-cultural e intercultural, termos
equivalentes em inglês, referem-se ao encontro e à comunicação entre pessoas
que não compartilham a mesma nacionalidade, origem social ou étnica, gênero,
idade, profissão; em outras palavras, a interação entre pessoas de diferentes
culturas e línguas. A noção de intercultura é baseada na premissa de um
encontro entre nações, culturas, línguas e na expectativa de que um choque
cultural possa ocorrer fora dos contornos de uma sociedade.
Esta pesquisa surge justamente desta constatação, uma vez que
acreditamos que, ao aprender uma nova língua, o indivíduo poderá ampliar sua
visão de mundo, uma vez que a aquisição de uma língua estrangeira pode
auxiliar na constituição da autopercepção do indivíduo como ser humano e como
cidadão. Conhecer uma cultura diferente é um preâmbulo para compreender e
respeitar as diferenças, tradições e ideais de outros povos. Além disso, ao
compreender o Outro, aprendemos mais sobre nós mesmos e sobre o que
significa a pluralidade de mundos, perspectivas literárias, sociais e ideológicas,
linguagens de profissões, épocas e períodos que estão impregnados no discurso
do Outro.

1013
Segundo os dados do estudo “Enrollments in Languages Other Than
English in United States Institutions of Higher Education, Fall 2013”326, realizado
pela Modern Language Association of America (MLA), divulgado em março de
2015, o ensino de Português nas universidades dos Estados Unidos cresceu
10,1% nos últimos cinco anos.
A pesquisa aponta que em outubro de 2013 o número de estudantes de
Língua Portuguesa era de 12.415, representando aumento superior a 50% em
relação ao ano de 1990. O número de instituições norte-americanas que
oferecem aulas de Português também apresenta aumento considerável: em
1990, o total era de 145 universidades e em 2013, o país conta com 238 centros
acadêmicos que ensinam Português como língua estrangeira. As palavras de
David Goldberg, Dennis Looney, and Natalia Lusin, autores da pesquisa, ecoam
sobre a ascensão da Língua Portuguesa “[...] notamos que o aumento
significativo do ensino de Português é paralelo ao aumento da atenção dada ao
Brasil” (2015, p.14).
Dentre as universidades analisadas elegemos a Brown University, em
Providence, Rhode Island, Estados Unidos, uma vez que suas propostas vêm
ao encontro das questões levantadas a respeito do ensino língua portuguesa
sob a perspectiva intercultural. Destacamos alguns pontos que despertaram
nosso interesse: a Brown University proporciona aos seus estudantes, desde o
bacharelado ao doutoramento, programas de estudos específicos da língua e da
cultura, com destaque ao The Department of Portuguese and Brazilian Studies
(POBS), que oferece programas acadêmicos interdisciplinares como Língua
Portuguesa, Literatura Brasileira, História e Cultura, Estudos Interculturais. Além
de promover uma diversidade de eventos culturais que incluem palestras,
concertos e simpósios, permitindo aos seus estudantes desenvolverem seus
interesses nas áreas de língua, literatura, educação, história, artes e ciências
sociais.

326 Matrículas em outras línguas além do Inglês em Instituições de Ensino Superior nos Estados Unidos, Outono 2013.

1014
Para desenvolvermos esta investigação, optamos por uma pesquisa
qualitativa de natureza etnográfica, que ocorreu por dois semestres (Fall 2013,
setembro a dezembro, Spring 2014, janeiro a maio), com acompanhamento
direto e intensivo das aulas de Língua Portuguesa do Department of Portuguese
and Brazilian Studies.

Os papéis da Perspectiva Intercultural no ensino de língua estrangeira

É relevante para nossa pesquisa a compreensão de que o aprendizado


de uma língua consiste não apenas no entendimento e domínio do léxico e de
sua estrutura gramatical, mas também na coerência entre o que ela descreve e
o conhecimento de mundo que seu falante possui. Essa necessidade se dá tanto
na aprendizagem de línguas estrangeiras quanto no processo de alfabetização
em língua materna. O indivíduo, para poder ler e compreender completamente
uma palavra, primeiramente terá de conhecer o referido objeto – a referência.
Quando não, o discurso poderá ser, para ele, incoerente.
De acordo com L. Porcher (2004, p. 117) o prefixo “inter-” é
responsável por atribuir peso à palavra interculturalidade por justamente
enfatizar o aspecto relacional, as interações entre identidades, indivíduos e
grupos implicando reciprocidade, eliminação de barreiras, enfatizando a
percepção de como eu vejo o outro e de como nós nos vemos por meio das
relações estabelecidas entre eu e o outro. A perspectiva intercultural parte da
multiplicidade das identidades, e concentra-se na utilização das culturas e das
reivindicações identitárias em interação para analisar as situações de encontros
e discursos interculturais.
A perspectiva intercultural contempla uma abordagem diferenciada
do ensino de línguas estrangeiras favorecendo o desenvolvimento da
consciência social, criatividade, mente aberta para novos conhecimentos e uma
nova forma de pensar e ver o mundo:
O diálogo entre culturas permite uma abertura de espírito que deve,
naturalmente, afastar as pessoas de um comportamento etnocêntrico,

1015
além de favorecer o respeito às diferenças, sem creditar supremacia
ou sentimento de inferioridade a nenhuma cultura especificamente.
(LAMEIRAS, 2006, p.36)

Justifica, a perspectiva intercultural, a importância em incentivar os


estudantes de línguas, a deixarem de olhar o mundo e as pessoas com um olhar
binário. É necessário que eles recebam a orientação e a motivação a fim de
desenvolverem o anseio de interagir e contemplar a multiplicidade cultural
(SILVA, 2012).
O ensino e aprendizagem a partir de uma abordagem intercultural
estabelece uma relação intrínseca entre línguas e cultura e é essa relação o
ponto de partida para a perspectiva intercultural. Os conceitos elaborados por
Byram (1994, 1997, 2005) evidenciaram o estudo de uma perspectiva
intercultural, que antes ficava, aparentemente, embutida na competência
sociolinguística. Para o autor (1997), um falante intercultural deve não somente
ter uma atitude positiva em relação à percepção da diferença no outro, como
também deve ter curiosidade e abertura para aprender sobre ele. No processo
de desenvolver a interculturalidade, é esperado que os estudantes considerem
o seu próprio posicionamento "intracultural", como este é moldado por sua
própria língua e cultura e, desta forma, entender a contextualização cultural do
outro. Para Kramsch (1993) e Byram (1994), isto significa que os aprendizes
precisam se decentralizar da sua própria cultura e ver o seu posicionamento a
partir da perspectiva do outro.
A habilidade esperada do estudante que aprende uma língua estrangeira
sob a perspectiva intercultural é o que Byram (1997) classifica como
"competência comunicativa intercultural". Isto é, o foco do ensino deixa de ser
exclusivamente a “competência comunicativa” para unir-se à “competência
intercultural”. Esta classificação mantém uma ligação com as tradições no ensino
de língua estrangeira, mas expande o conceito de "competência comunicativa"
de maneira significativa. Para o autor o ensino de língua estrangeira deve se
preocupar com a comunicação, mas isso tem que ser compreendido como mais
do que o intercâmbio de informações e envio de mensagens, características que

1016
tem dominado 'método comunicativo' nos últimos anos. Porque até mesmo a
troca de informações dependerá da compreensão daquilo que se diz ou que se
escreve, pois será interpretado em outro contexto cultural; que por sua vez
dependerá da capacidade de descentralização e envolverá a perspectiva do
ouvinte ou o leitor.
Uma característica importante, no âmbito de ensinar e aprender língua e
cultura sob o conceito da interculturalidade, que precisa ser considerada é que
esta perspectiva não constitui um "método" de ensino de línguas. Não há um
único conjunto de práticas pedagógicas que possa ser considerado como
metodologia de ensino sob o enfoque intercultural.
Isto quer dizer que o ensino de língua por meio da perspectiva intercultural
é considerado mais como um conjunto de pressupostos compartilhados sobre a
natureza da língua, cultura e a aprendizagem que molda uma compreensão
global do que um sistema de ensino de língua de forma intercultural. É uma
abordagem a partir da qual os professores de língua constroem a prática, em
vez de um conjunto de práticas estabelecidas a serem adotadas. Desta forma, o
ensino de línguas intercultural pode ser considerado como um "pós-método"
(post-mehtod) de Kumaravadivelu (2005) em que consiste de uma orientação
teórica que enquadra as opções e os princípios que devem ser adaptados pelos
professores na sua própria prática.
De acordo com Byram (1994, p.41) as relações entre os diferentes
elementos cognitivos, afetivos, morais e seu uso em situações sociais
específicas são insuficientemente claras para qualificarmos a perspectiva
intercultural como metodologia e por outro lado, adotar o ecletismo sem
princípios, assim como intuição desenfreada pode ser igualmente perigoso.
Nossa pesquisa sobre o ensino de Português como língua estrangeira
fundamenta-se no construto de perspectiva intercultural ao se referir à cultura
baseando-se nas categorias de atitudes, conhecimentos e habilidades descritas
por Byram (1994, 1997, 2005), Kramsch (1995, 1998) Liddicoat (2011), entre
outros. Dentre elas, identificamos em nossa pesquisa sobre o ensino de

1017
Português como língua estrangeira, no Department of Portuguese and Brazilian
Studies, na Borwn University, o intercâmbio de informações sobre a vida
cotidiana no Brasil e nos demais países e comunidades lusófonas, para
desenvolver a relativização e descentralização do eu; conhecimentos de grupos
sociais, dos seus produtos e práticas, incluindo emblemas e mitos, marcas da
identidade nacional, para desenvolver o conhecimento do eu e do outro;
comparação de documentos escritos, do uso de gestos, das normas de
conversação, entre outros, a fim de estimular a capacidade de interpretar,
descobrir e interagir com a cultura do outro em situações reais de comunicação.

O ensino de Português no Department of Portuguese and Brazilian Studies

O Department of Portuguese and Brazilian Studies (POBS) conta com


uma reputação internacional de excelência em pesquisa e ensino no universo de
língua portuguesa, abrange oito países diferentes em quatro continentes - Brasil,
Portugal, Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau , São Tomé e
Príncipe e Timor Leste - além de comunidades de Goa e Macau, como também
de imigrantes nos Estados Unidos.
O curso de graduação do POBS é interdisciplinar por natureza e permite
que os seus estudantes trabalhem, não somente, com o núcleo do corpo docente
do departamento, mas com áreas afins também, como literatura comparada,
estudos hispânicos, relações internacionais, entre outros. Compreendendo o
ensino de língua e cultura como indissociáveis e desenvolvendo um estudo mais
aprofundado do mundo de Língua Portuguesa em toda a sua diversidade, o
alicerce do POBS está centrado em abordagens de ensino e aprendizagem
interdisciplinares com foco em artes em geral. Constantemente, os estudantes,
de todos os níveis, trabalham com narrativas digitais, escrita criativa, análise
literária intensa, performances, a realização de microdocumentários e projetos
de artes visuais.

1018
As disciplinas do departamento são ministradas como apontado na seção
anterior, tanto por Doutores quanto pelos Teacher Assistants, assistentes de
professores, que são, normalmente, doutorandos do programa e que lecionam
em parte para cumprirem os créditos e manterem a bolsa de pós-graduação e
em parte para adquirirem práticas de ensino, construindo dessa forma
experiência na docência.
Durante os dois semestres de pesquisa na Brown University, observamos
258 aulas de Português como língua estrangeira, acompanhamos o
desenvolvimento de 118 alunos, compreendendo um total de 06 disciplinas.
Abaixo apresentamos em ordem crescente as disciplinas do POBS, que
realizamos nossa investigação, e breve descrição do conteúdo desenvolvido:

- Elementary Portuguese I e II (Fall 2013e Spring 2014, 05 aulas/semana):


projetado para alunos com pouco ou nenhum conhecimento na língua, com
duração de dois semestres sequenciais. Enfatiza habilidades de compreensão,
fala, leitura e escrita. Aspectos da cultura brasileira e demais países ou
comunidades lusófonas são abordados concomitantemente com o conteúdo,
seja em textos, em exemplos gramaticais ou em exercícios. Não há
fragmentação entre língua e cultura. Os alunos desenvolvem poemas,
performances e músicas. No fim do semestre trabalham com a obra O Pagador
de Promessas, de Dias Gomes, e discutem questões como reforma agrária e
religião.

- Intensive Portuguese (Fall 2013, 10 aulas/semana): apresenta o mesmo


programa das disciplinas Elementary I e II, porém em um único semestre, e
trabalham os mesmos conteúdos linguísticos e culturais.

- Writing and Speaking Portuguese (Fall 2013 e Spring 2014, 05 aulas/semana):


curso planejado para aperfeiçoar a capacidades dos alunos no uso do Português
contemporâneo, falado e escrito. Os estudantes tem contato com itens culturais

1019
como: crônicas, peças de teatro, filmes, vídeos, jornais, revistas, música popular,
fotografia, artesanato, dança e obras de arte.

- Mapping Portuguese and Speaking Cultures: Brazil (Fall 2013, 02


aulas/semana): textos literários e culturais selecionados que servem para uma
compreensão mais profunda da sociedade brasileira. Os alunos iniciam o curso
com a Carta de Pero Vaz de Caminha, passam por José de Alencar, Machado
de Assis, o Movimento Modernista, o sertão, o romance urbano e percorrem a
nossa sociedade até Sérgio Sant’Ana e Ferrez com a literatura periférica. As
aulas seguem com discussões, debates e performances. Além de trabalhos
escritos e criações artísticas.

- Portuguese-Speaking Cultures via Film (Spring 2014, 02 aulas/semana): os


alunos assistem a dois filmes por semana acompanhados da leitura de artigos
de jornais e revistas a respeito dos temas abordados nos longas-metragens.
Para citar alguns: Banana is my Business, Palavra Encantada, Mutum, Lixo
Extraordinário (Brasil); Nhã Fala (Guiné-Bissau); Aquele Querido Mês de Agosto,
Terra Estrangeira (Portugal), Fintar o Destino (Cabo Verde), Terra Sonâmbula
(Moçambique), O Herói (Angola). As aulas seguem com discussões, debates e
performances. Além de trabalhos escritos e a produção de um minidocumentário.

No que refere-se a despertar no estudante interesse em aprender e


produzir cada vez mais, o departamento de Língua Portuguesa da Brown
University priveligia a Arte como abordagem intercultural e o princípio de
motivação e integração dos alunos.
As aulas de Língua Portuguesa no Department of Portuguese and
Brazilian Studies (POBS) demonstram como a arte e o ensino de língua
estrangeira podem ser articulados dentro de uma unidade mais ampla de estudo.
Em geral, as atividades desenvolvidas em sala de aula não são a arte pela arte,
mas atividades de arte. Não é ensinado, necessariamente, sobre a arte, mas
com a arte e por meio dela em favor da aprendizagem da língua estrangeira. As

1020
atividades, com foco na língua-alvo, são centradas nos estudantes e envolvem
imaginação e criatividade.
A perspectiva intercultural, no âmbito de ensinar e aprender línguas, pode
ser amplamente favorecida pela integração das artes. A integração das Artes no
processo de ensino e aprendizagem de língua fornece aos alunos uma
experiência rica na língua-alvo e cultura. Os alunos podem ser expostos ao vasto
leque de produção artística significativa em qualquer cultura através das artes
literárias, cênicas, visuais e digitais. Não só os alunos adquirem uma maior
consciência da cultura em questão, mas também são capazes de responder à
produção artística de maneiras significativas com trabalhos em sala de aula,
atividades, projetos e discussões baseadas na realidade da sociedade dos
países da língua-alvo (SOBRAL e JOUËT-PASTRÉ, 2014).
Ao estabelecer as Artes como uma o ponte para a aquisição da língua e
compreensão da cultura, o ensino de Português como língua estrangeira no
POBS tem como foco favorecer a competência comunicativa, proporcionar uma
imersão nos mais variados aspectos culturais dos países e comunidades
lusófonas e apresentar aos seus alunos diferentes perspectivas das artes e seu
impacto na vida dessas sociedades.

Considerações finais
Durante a nossa observação direta e intensiva das aulas de Português no
POBS compreendemos que a arte constitui um recurso versátil que potencializa
a aprendizagem integrada da língua estrangeira e cultura com base no
desenvolvimento do pensamento crítico e da capacidade analítica e de
interpretação do estudante. As artes proporcionam variedade à sala de aula e
aproxima os alunos das sociedades lusófonas, cultivando o interesse pelo outro.
Ao longo da nossa pesquisa etnográfica acompanhamos diversas atividades
artísticas relacionadas com as competências de compreensão e de produção
linguísticas, com aspetos gramaticais e culturais, considerando os conteúdos
programados, bem como o público-alvo – os estudantes.

1021
A arte contribui, não apenas para a aprendizagem linguística, como
também para a formação integral do indivíduo, através do exercício do espírito
crítico em face a aspectos pessoais, sociais e culturais, que favorecem o
conhecimento de si mesmo e do outro , da sua sociedade e da do outro.
Consideramos importante destacar que o ensino de Português como
língua estrangeira no Department of Portuguese and Brazilian Studies, na Brown
University, promove aula a aula o conhecimento pessoal, através do olhar atento
sobre o outro e descentrado da sua identidade pessoal e cultural, é frequente o
diálogo entre as culturas a do aluno e a do outro (países lusófonos), fatos estes
que consistem no princípio básico da interculturalidade apontado por Byram
(1997). Os planos de aula e desenvolvimento do conteúdo são pensados de
forma que promova a imersão do estudante tanto na língua-alvo quanto na
cultura e de forma não fragmentada.
Neste artigo apresentamos um pequeno recorte da nossa pesquisa de
doutorado e esperamos que o estudo realizado nestes quatro anos possa
contribuir com o ensino de língua estrangeira e cultura no Brasil. Um dos nossos
intuitos é propor a reflexão de que pode ser essencialmente simples e ao mesmo
tempo enriquecedor o ensino e a aprendizagem de língua por meio da
perspectiva intercultural, e que métodos tradicionais e elementos altamente
tecnológicos podem ser dispensáveis quando a arte se faz como ponte entre
língua e cultura.

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1023
SOBRAL, P.I. e JOUËT-PASTRÉ, C. Mapeando a Língua Portuguesa Através
das Artes. Focus Publishing, MA, 2014.

1024
A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO NO CONTO MINHA MÃE, QUE LINDAS
TERRAS!, DE IRENE LISBOA

Wellington de Assis Silva327

Introdução

O conto Minha mãe, que lindas terras!, da autora portuguesa Irene Lisboa,
da primeira metade do século XX, faz parte do livro de contos infantis Queres
ouvir ? Eu conto, publicado em 1958.
No nível da fábula, trata-se de uma história bastante simples, a de um
jovem rapaz – Tonito – que vivia com seus pais no campo e se dedicava a cuidar
de um pequeno rebanho de ovelhas. Um dia, ele vê um velho burro entrando em
um lago e, após mergulhar nele, saem de lá dois pombos voando e dois peixes
nadando contra a corrente. A partir daí, o jovem rapaz começa a sonhar com um
mundo fora da sua vila e a repetir para sua mãe a frase: “Minha mãe, que lindas
terras!”. Um dia ele também cria asas e sai para buscar conhecer tais terras que
povoavam a sua imaginação. Até que, anos mais tarde, como o filho pródigo dos
Evangelhos, ele retorna à casa natal, reencontra seus velhos pais e chega à
conclusão de que não há terra melhor do que a sua.
No entanto, se nos detivermos mais na leitura do conto, vamos perceber
que não se trata apenas de uma fábula com caráter pedagógico para ensinar
algo às crianças. Sua leitura mais atenta nos vem mostrar, através dos
elementos que compõem o espaço, significados mais profundos para a
mensagem que este quer passar ao leitor.
Primeiramente, analisemos o lago no qual o burro mergulha. Segundo
Bachelard (1997,30-31)
O lago, o tanque, a água dormente nos detêm em suas margens. Ele
diz ao querer: não irás mais longe; tens o dever de contemplar as
coisas distantes, coisas além! (...) O lago é um grande olho tranqüilo.

327
Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Literatura Portuguesa e
Brasileira e Teoria da Literatura no Claretiano Centro Universitário. Trabalha com a prosa contemporânea,
especialmente a obra de José Saramago.

1025
O lago recebe toda a luz e com ela faz um mundo. Por ele o mundo é
contemplado, o mundo é representado.

Tonito está detido no seu mundo, um mundo no qual ele conhecia


somente o que lhe era permitido conhecer através dos sentidos da visão. A partir
do momento em que o rapaz olha para as águas dormentes do lago e vê o burro
entrando e de lá saindo outros animais, ele vê através dos olhos do lago que o
mundo não é somente o sensorial, aquele que ele capta pelos olhos. Existe um
outro mundo, existem outras terras. Foi possível à personagem contemplar o
mundo de outra forma; ter dele uma visão diferenciada. Não enxergar somente
as sombras emanadas de uma caverna, como no mito de Platão, mas ir além,
quebrar as amarras que o prendiam àquele lugar.
Tal atitude, segundo o senso comum, segundo o conhecimento das outras
personagens do conto – gente humilde, presa às convenções – era inconcebível.
Dessa forma, Tonito passa a ser tachado de louco quando relata o acontecido à
sua mãe:
[...] O burro do Ti Joaquim, o burro velho meteu-se à água.
E daí?
E dele saíram, que eu vi, dois pombos a voar e dois peixes a nadar.
Estás tolo, rapaz?
Estarei, estarei, mas com meus olhos é que eu vi. (Lisboa: 1958, 10)

Ainda pensando com Bachelard (1997,21),

É necessária uma alma muito perturbada para realmente se deixar


enganar pelas miragens do rio. Esses doces fantasmas da água
costumam estar ligados às ilusões factícias de uma imaginação
divertida, de uma imaginação que quer divertir-se.

As águas claras e dormentes do lago criaram na imaginação da


personagem a sensação de que algo mais existiria para além do seu mundinho,
para além das margens do lago. E tal pensamento começa a acompanhar o
rapaz durante algum tempo, a ponto de nada mais o satisfazer, nem “a sua gaita
de beiços, por uma ocasião de festa, (...) nem a alegria assim lhe voltou” (Lisboa:
1958, 10), pois sua imaginação agora queria divertir-se com o mundo

1026
desconhecido, um mundo no qual é possível viver outra vida, fruto de sua mente
perturbada pela visão que teve, da transformação que a água lhe propiciou.
O filósofo francês ainda nos diz em sua obra A água e os sonhos (1997,
36) que “o ser que sai da água é um reflexo que aos poucos se materializa: é
uma imagem antes de ser um ser, é um desejo antes de ser uma imagem”.
Sendo assim, esses dois seres que saem da água – pombo e peixe – após
a entrada do burro, podem ser tomados aqui como o desejo da personagem de
ver além do mundo sensível, do espaço conhecido, da vida vivida até o presente
momento. Eles representam a vontade de Tonito de se lançar a um espaço
desconhecido fisicamente, mas que lhe era latente na imaginação, por isso ele
afirma “mas com meus olhos é que eu vi” .
É importante aqui entendermos o significado arquetípico dos elementos
envolvidos nesse acontecimento do lago, mais especificamente, os animais que
compõem o espaço da narrativa: o burro, os pombos e os peixes.
O Livro dos símbolos nos diz acerca desses animais que “o burro [...] é
um símbolo de humildade” e que ele “sofreu as nossas próprias projecções
erradas de ‘teimosia e estupidez’, e com o modo brutal com que frequentemente
o tratamos” (2012, 316).
Vamos observar, pela leitura do conto, que o burro do Ti Joaquim – um
burro já velho, sem serventia para o trabalho – é abandonado por seu dono e
deixado à sua própria sorte. Então, o animal é apedrejado e, na tentativa de fugir
à violência, entra no lago.
O próprio simbolismo do burro é algo significante se nos remetermos às
duas passagens bíblicas importantes nas quais tal animal aparece: na viagem
de José e Maria para Belém, na ocasião do recenseamento, estando Maria
grávida de Jesus, tendo sido levada por um jumento. Também na entrada de
Jesus em Jerusalém, tendo sido aclamado como Rei dos Judeus com ramos,
conforme nos narra Marcos 11, 1-11.
O burro é, portanto, o animal que não só carrega cargas, mas também
que leva as pessoas para outros lugares. É um meio de transporte. No conto,

1027
vemos que o burro velho de Ti Joaquim teve a função de transportar o jovem
Tonito para o mundo da imaginação, um mundo no qual as terras são lindas,
diferentes das que ele conhecia.
No que diz respeito aos pombos, o livro de símbolos supracitado vem nos
dizer que tal animal, por sua beleza e simplicidade, são emblemas de bom
agouro e de paz.
A pomba alquímica, enquanto a alma que se ergue das águas caóticas
do nigredo ou descendo dos céus (...) é a mediadora do casamento
entre as nossas aspirações mais elevadas e a vida afectiva que
borbulha das profundezas até à superfície. (2012, 244).

Os dois pombos que saem da água nos remetem à cena do batismo de


Jesus no rio Jordão. As águas do lago aqui têm o poder de purificar, pelo
batismo, a imaginação de Tonito que, até o momento, tinha os olhos fechados
para o mundo fora do seu ambiente. Ao ver sair os dois pombos, seus olhos se
abrem para o maravilhoso, o desconhecido, para o mundo que o espera para
além dos limites da sua aldeia. Por isso esses pombos são os mediadores do
casamento entre as suas aspirações – que, de alguma maneira estavam
adormecidas dentro dele – e à vida afetiva que ele buscava ter e conhecer, a
ponto de repetir continuamente a frase “Minha mãe, que lindas terras!”
Por fim, os peixes vêm completar esse batismo, essa iniciação do jovem
rapaz para a descoberta de um novo mundo que estava nascendo para si. Eles
“simbolizam (...) nossa participação perdida nesse mundo arcaico e
inconsciente” e “representam aqueles que aguardam o baptismo como peixes
que nadam em torno dos tornozelos de Cristo” (2012, 202).
Sendo assim, esse triângulo burro-pombos-peixes estando no espaço de
águas dormentes, vem representar uma mudança no quadro da narrativa. A
passagem de uma atmosfera de aparente calma para uma conturbada, uma
mudança interior que ocorre na mente da personagem que se descobre não
pertencente mais àquele espaço, que sente necessidade de sair e explorar
essas lindas terras que o chamam.
Após esse batismo o jovem Tonito abandona sua terra e vai ao encontro
do que a sua imaginação lhe dizia existir fora da sua aldeia, do seu primeiro

1028
nascimento, uma vez que o batismo nas águas do lago simboliza o segundo
nascimento, um renascer para o novo. Quando o rapaz desaparece surgem os
comentários de que ele tinha partido num cavalo de ouro:
Correu, por estas e outras maneiras do Tonito, cheias de mistério, que
ele tinha achado o cavalinho de oiro moirisco, enterrado no monte do
Alfátema e que a cavalo nele, quando as ovelhas estavam ao rodeio,
dava um salto à Moirama. (Lisboa, 1958, 11)

O cavalo, ainda pensando pelo simbolismo desse animal descrito pelo


Livro dos símbolos, representa a transcendência do homem.
Montados no cavalo, heróis e sonhadores cavalgam perto dos poderes
crus desconhecidos do seu self e inteligência animal, desafiados pela
libido e pulsão. Têm de se sintonizar com estes e de os agarrar bem
se pretendem viver a vida como uma aventura espiritual completa de
coração e mente. (2012, 314)

Dessa maneira, vemos o processo de transformação da personagem, de


mudança de seu estado psíquico ao sair do espaço primitivo e ir em busca de
outro, um espaço que povoava a sua imaginação, a sua “alma muito perturbada”,
como disse Bachelard mais acima. O cavalo é o animal que o transporta para
esse outro mundo, é ele quem lhe possibilita sair, se lançar ao novo, ao
desconhecido, a empreender a viagem tanto geográfica como interior, uma vez
que esta não é simplesmente um deslocar físico entre um ponto e outro, mas
“uma tensão da busca e da mudança determinada pelo movimento e pela
experiência que deriva do mesmo” (Cirlot: 1984, 598). O tomar as rédeas do
cavalo para guiar-lhe para onde se pretende simboliza tomar as rédeas da
própria vida, ser senhor de seu destino, ir atrás dos seus anseios, ainda que para
isto seja necessário deixar a casa paterna.
Após ter saído, visto as tais lindas terras a que era chamado a ver, Tonito
volta à sua vila, já velho, “um peregrino, roto e descalço, de barbas até à cinta,
uma espécie de ermitão, que lhes pediu poisada” (Lisboa: 1958, 12).
Essa volta à casa paterna nos remete à parábola do Filho Pródigo,
conforme nos narra o evangelista Lucas 15, 11-32. Da mesma forma que o jovem
do Evangelho, Tonito sai para o mundo, vive muitas aventuras e retorna à terra
natal e se apresenta aos pais. No entanto, essa apresentação também nos

1029
remete a outro trecho da história sagrada narrada nos Evangelhos: a de João
Batista, uma vez que o peregrino se apresenta aos pais dizendo: “Sou o dianteiro
daquele que há de chegar”, fazendo referência a Mc 1, 7, uma vez que percebeu
que seus pais não o reconheceram de imediato.
Com relação ao simbolismo da casa onírica, Bachelard vem dizer que:
A casa oniricamente completa é a única onde se pode viver os
devaneios de intimidade em toda a sua variedade. (...) Todo sonhador
tem necessidade de retornar à sua célula, é chamado por uma vida
verdadeiramente celular. (2003, 80)

Tal qual o Filho Pródigo, Tonito sente essa necessidade de regressar à


casa de seus sonhos, à casa onde nasceu e onde se sente seguro. Tal volta é
marcada por um certo arrependimento por ter deixado o espaço de segurança e
se lançado ao desconhecido, “ai, minha mãe, que lindas terras!” exclama
novamente o filho à sua velha mãe.
O espaço da casa materna é descrito pelo pensador francês como o lugar
de repouso; repouso após um longo período no qual se foi errante pelo mundo.
[...] vemos que o onirismo da casa necessita de uma pequena casa
dentro da grande para que recobremos as seguranças primárias da
vida sem problemas. Nos cantinhos recuperamos a sombra, o repouso,
a paz, o rejuvenescimento (...) todos os lugares de repouso são
maternais. (BACHELARD, 2003, p. 95)

Uma pequena casa dentro da grande casa: Tonito sentiu necessidade de


voltar à pequena casa – a casa materna – depois de ter estado errando pela
grande casa – o próprio mundo. Assim como o jovem descrito pelo texto bíblico
errou pelo mundo, viveu anos na grande casa e sentiu falta do repouso maternal
da casa de seu pai, Tonito também empreendeu essa volta às origens, à casa
onírica na qual tinha seus cantinhos de segurança do regaço materno.
Ao se reencontrar com seus velhos pais, tudo lhes volta à memória:
E tudo foi lembrado: os pombos e os peixes e o cavalinho de Alfátema.
Riam-se os três velhos daquelas brincadeiras. E o mais novo deles,
que era o filho, só dizia:
Não há pão como o caseiro, não há pão como o caseiro. Esta é a minha
terra, outra mais linda não há. (LISBOA: 1958, 12)

Vemos aqui que o agora velho Tonito recorda todo o sofrimento pelo qual
passou longe do espaço de segurança do lar ao se referir ao pão caseiro. Tal

1030
qual o peregrino do relato do apóstolo Lucas que sentia falta da comida da casa
de seu pai ao dizer que ele queria matar a fome com as bolotas que os porcos
comiam, dizendo consigo mesmo: “Quantos empregados de meu pai têm pão
com fartura, e eu aqui morrendo de fome!” (Lc 15, 17), Tonito reconhece que é
na casa materna que ele tem toda a segurança e paz, elementos que são
representados pelo pão caseiro.

Considerações finais
Essa história bucólica contada pelo narrador de Irene Lisboa mostra-nos
a singeleza de sua narrativa. Massaud Moisés em sua coletânea sobre o conto
português, diz a respeito da prosa da autora:

Para erguer o seu canto, Irene Lisboa serviu-se de um estilo


desataviado, o que flui como o ato de respirar, em momento nenhum
mostrando os andaimes ou o esforço de lapidação. Importando-lhe
simplesmente narrar, a sua linguagem escolhe a via coloquial para
mais fácil atingir o leitor e ofertar-lhe um sopro revitalizante de
humanidade e poesia. (1975, 266)

Pelos elementos do espaço descritos acima, pudemos ver essa


preocupação da autora em oferecer ao seu leitor uma leitura fácil, porém cheia
de significados simbólicos, que atinge não só crianças, mas também adultos.
O contraste água-terra ajuda a construir o conflito pelo qual a personagem
passava em seu mundo interior, a ponto de se lançar ao desconhecido e
descobrir – após ter explorado o mundo da sua imaginação – que o melhor lugar
do mundo, e também o mais bonito, era o da sua casa, simbolizado pela
segurança e pelo pão caseiro. Vimos que foi preciso deixar-se guiar pela mente
perturbada e pelos olhos da água para se reconhecer como não pertencente
mais ao seu espaço e, após errar pelo mundo, mudar de opinião.
O espaço, como um dos cinco elementos da narrativa, tem a função não
apenas de ilustrar um cenário, mas ele contribui para o processo de construção
da personagem e do enredo.

1031
No conto em questão, só foi possível ao narrador construir sua fábula e à
personagem se desenvolver ao longo dela, devido ao espaço e aos elementos
que o compõem: a água como símbolo de purificação, de transformação, e a
terra natal – a casa materna – como espaço de proteção.
E assim vamos perceber que a função do conto vai muito além do simples
caráter pedagógico, como já salientamos no início, e nos traz elementos para
uma análise bem mais profunda quando nos atemos aos seus elementos
espaciais simbólicos.

Referências bibliográficas
BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria.
Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______________. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens
da intimidade. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus,
2011.
CIRLOT, J. Dicionário de símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São
Paulo: Moraes LTDA, 1984.
LISBOA, I. Minha mãe, que lindas terras! In: Queres ouvir? Eu conto. Porto:
Livraria Figueirinhas, 1958.
MOISÉS, M. (Org.). O conto português. São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade
de São Paulo: 1975.
O LIVRO DOS SÍMBOLOS: reflexões sobre imagens arquetípicas. Chefe de
redação Ami Ronnenberg. Taschen: Colônia – Alemanha, 2012.

1032
LINGUAGEM AUDIOVISUAL E PUBLICIDADE SOCIAL

Yadir González Hernández328

Introdução

O trabalho se insere numa linha de análise que nos últimos tempos vem
se desenvolvendo com maior frequência e força na área de Letras. A mesma
resulta da existência de objetos de estudo comuns – no caso, as linguagens – a
disciplinas afins. Desse modo, ela visa o exame de linguagens da área da
comunicação verbal, sonora e imagética de uma perspectiva interdisciplinar que
reúne, logicamente, Comunicação e Letras, mas também Educação, devido a
sua inserção “nos contextos de pesquisa acadêmica e de reflexão sobre práticas
pedagógicas do exercício docente da área de Letras.” (Guimarães: s/d, s/p).
Sob essa perspectiva, o trabalho tem por escopo a análise dos elementos
basilares de composição da sintaxe audiovisual e os efeitos de sentido criados
em três propagandas que abordam o tema da criança como fumante passiva.
Estas publicidades sociais partilham o mesmo objetivo – fazer com que os pais
percebam que fumar perto dos filhos torna a criança fumante passiva, com
graves consequências para sua saúde – e público alvo – pais fumantes com
crianças.
Com base na análise realizada, concluímos que os elementos basilares
de composição da sintaxe audiovisual contribuem para a construção do sentido
tanto quanto a própria mensagem subjacente, tornando as propagandas mais
persuasivas.
As peças não apenas possuem um fim comunicativo e público alvo em
comum, mas também uma estratégia persuasiva baseada no uso da emoção.

328
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São
Paulo/SP. E-mail: yglez2007@gmail.com

O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Estudantes-Convênio de Pós-Graduação –


PECPG, da CAPES/CNPq – Brasil.

1033
Porém, procuram efeitos de sentido diferenciados: remorso, empatia ou nojo,
segundo o caso.
Apesar da força da imagem, elemento predominante na linguagem
audiovisual, observa-se a importância da linguagem sonora que, às vezes, pode
assumir o protagonismo na geração dos efeitos de sentido procurados.
Levando em consideração a função educativa da publicidade social, estas
propagandas podem, e devem, ser usadas em sala de aula. Lá elas passariam
de objetos de comunicação a objetos de análise, discussão e reflexão por parte
dos alunos. Inúmeras atividades podem resultar da experiência, dentre elas a
geração de variações para suportes diferentes – com o propósito de se
familiarizarem com outras linguagens – ou mesmo de novas propostas que,
mantendo o objetivo de comunicação e público alvo originais, sigam estratégias
persuasivas diferenciadas.

Considerações iniciais

O presente trabalho se insere numa linha de análise que nos últimos


tempos vem se desenvolvendo com maior frequência e força na área de Letras.
A mesma resulta da existência de objetos de estudo comuns - no caso, as
linguagens - a disciplinas afins. Desse modo, ela visa o exame de linguagens da
área da comunicação verbal, sonora e imagética de uma perspectiva
interdisciplinar que reúne, logicamente, Comunicação e Letras, mas também
Educação, devido a sua inserção “nos contextos de pesquisa acadêmica e de
reflexão sobre práticas pedagógicas do exercício docente da área de Letras.”
(Guimarães: s/d, s/p).

Sob essa perspectiva, as páginas que seguem têm por escopo a análise
dos elementos basilares de composição da sintaxe audiovisual e os efeitos de
sentido criados em três propagandas que abordam o tema da criança como
fumante passiva. Indo além, tal objetivo coloca-nos na confluência da linguagem
audiovisual e a publicidade social e, mais especificamente, na discussão entre
determinismo tecnológico (McLuhan: s/d) versus condicionamento expressivo,

1034
questão que, embora superada teoricamente há tempo, ainda é possível
observar em muitos anúncios.

A publicidade social (Alvarado: 2003) ou propaganda de ideias e ideais


(Muraro: 2009) é um tipo de comunicação publicitária de conteúdo e objetivos
sociais. Enquanto publicidade, se utiliza das mesmas técnicas da propaganda
convencional com propósitos, porém, de benefício coletivo.

Seu aparecimento foi resultado da gradual diversificação de propósitos


encomendados à propaganda convencional. Com efeito, na sua evolução como
agente social, a publicidade vem desenvolvendo um papel associado
tradicionalmente à família e à escola, mostrando problemas sociais e fazendo
com que as pessoas reflitam e ajam em consequência. Trata-se, resumindo, de
um rol educativo, de formação.

O potencial pedagógico desse tipo de publicidade faz com que ela se


torne um objeto de estudo de interesse e total pertinência para a área de
Educação. Porém, levando em conta a natureza multidisciplinar do objeto,
qualquer abordagem que envolva apenas uma área resultaria parcial. Portanto,
a publicidade social, sob a perspectiva da linha de análise que ampara nossa
reflexão, pode ser considerada um objeto de análise privilegiado.

O sucesso dessa publicidade, está associado, dentre outros fatores, tanto


à mensagem que se pretende passar, quanto à sua execução (Kotler; Roberto:
2003), isto é, a concretização da mensagem nas formas expressivas que são
próprias à linguagem da mídia escolhida para veicular a propaganda.

Como assinala Luis Bassat,

No pienso discutir ahora si el medio es el mensaje. Pero tampoco he


admitido nunca un texto que ignore las reglas del medio al que va

1035
destinado. El medio es el medio, y el mensaje debe respetar las reglas
del juego.329 (2001, 127) [g. n.]

O domínio da linguagem fotográfica, radiofónica, audiovisual, etc. e seu


uso apropriado, ou mesmo inovador, podem criar efeitos de sentido que
contribuem para a eficácia da propaganda. Entende-se por efeito de sentido “a
impressão de ‘realidade’ produzida pelos nossos sentidos, quando entram em
contato com o sentido, isto é, com uma semiótica subjacente” (GREIMÁS;
COURTÉS: 1994, 136). Assim, no casso em estudo, a manipulação dos
elementos basilares de composição da sintaxe audiovisual, isto é, o
enquadramento, a angulação, os movimentos de câmera, a trilha sonora, etc.
pode gerar certos efeitos de sentido que contribuem ao aumento do poder
persuasivo da propaganda, no intuito de convencer a audiência.

Conforme os fins comunicativos e o público alvo, tal objetivo pode ser


atingido mediante duas estratégias: o uso da razão ou o uso da emoção. Os
efeitos de sentido conseguidos através da manipulação dos elementos de
composição da sintaxe audiovisual podem ser agrupados segundo essas
estratégias. Geralmente, quando a publicidade social visa apenas passar uma
informação ou fazer com que o público alvo adote uma atitude no longo prazo,
usa a estratégia da razão. Já quando busca resultados no curto prazo e,
portanto, procura efeitos mais efêmeros como o humor ou o temor, se utiliza da
emoção.
É essa última estratégia que vem caracterizando cada vez mais a
publicidade social atual, perante a demanda negativa que enfrenta: as pessoas
que fumam, por exemplo, ligam cada vez menos para as propagandas que
trazem dados, tabelas ou opiniões de cientistas. Em consequência a razão vem
sendo substituída pelo temor, no intuito de conseguir, através de imagens
assustadoras, a renúncia ao mau hábito.

329
Não vou discutir agora se o meio é a mensagem. Mas também não tenho admitido nunca um texto que
ignore as regras do meio ao que vai destinado. O meio é o meio, e a mensagem deve respeitar as regras do
jogo. (Tradução nossa).

1036
Resultaria muito difícil fazer um inventário completo de que usos dos
elementos de composição da sintaxe audiovisual se correspondem com que
efeito de sentido, inclusive porque aqueles podem assumir novos sentidos
conforme propostas expressivas que buscam inovar, alterando os sentidos
convencionalmente estabelecidos para um dado elemento de composição.
Quiçá seja por isso que manuais de Publicidade tão importantes quanto o
Kleppner (1994) ou o Wells (1996) considerem o comercial de televisão como o
rei dos formatos publicitários.

Precisamente, a análise a seguir ancora-se no estudo de três


propagandas televisivas que abordam o tema da criança como fumante passiva.
Estas publicidades sociais partilham o mesmo objetivo – fazer com que os pais
percebam que fumar perto dos filhos torna a criança fumante passiva, com
graves consequências para sua saúde – e público alvo – pais fumantes com
crianças.

1037
Análise

a. b. c.

d. e. f.

Mejor no empezar 330 (Cuba) Fig. 1

Nessa propaganda de origem cubana, um homem é engajado numa


conversa sobre seu hábito de fumar. À medida que o diálogo evolui a situação
fica tensa. A entrevistadora leva o homem a questionar-se se o fato de ele ser
fumante não faz com que as filhas pequenas dele também sejam.

O enquadramento inicial (Fig. 1, imagem a.) serve a apresentar o cenário.


A postura relaxada do homem na poltrona enquanto fuma e a luz tênue do lustre
passam ao espectador a impressão de intimidade e sossego próprios da
conversa.

Por sua vez, tanto o fundo preto, quanto o fato de não termos a presença
da entrevistadora, mas apenas sua voz, fazem com que nossa atenção se foque
no personagem. É para ele que o realizador quer direcionar nosso olhar.

330
Melhor não começar. (Tradução nossa).

1038
As transições por fade-in, ou seja, desvanecimento a preto, marcam as
perguntas e enquadram as reações. Vemos como a montagem, bem como a
trilha sonora in crescendo, determina um ritmo para a peça.

Nesse sentido o encurtamento dos planos é que constitui a grande sacada


do clipe. As passagens do plano próximo (Fig. 1, imagem a.), até o superclose
(Fig. 1, imagem f.), plano que revela “as características da personagem com mais
força é intensidade dramática.” (GAGE; MEYER: 1991, 80), dão, a nível visual,
o trânsito da conversa para o interrogatório que vem se desenrolando
verbalmente. A perda de espaço, que acompanha o encurtamento dos planos,
cria tensão. Resumindo: tanto o visual quanto o verbal passam a sensação de
colocar o personagem “contra a parede”.

A reação final da personagem é de extrema importância dramática: ela


reflete o advento da conclusão por parte do homem de que, com efeito, suas
pequenas filhas também “fumam”. Tal reação é enfatizada através de um zoom
in e de um plano longo. O mesmo plano quando mantido por mais de dez
segundos possui um sentido de dramatização (Martin: 2005). Do ponto de vista
verbal, a reação é acentuada através do silêncio do personagem: vem à tona a
reflexão e o remorso.

Por lo que más quieras 331 (Espanha)

Este vídeo, produzido pelo Ministerio de Sanidad y Consumo espanhol, é


composto por duas cenas. A primeira (Fig. 2) cria incerteza no espectador ao
falar de crianças que fumam. Já na segunda (Fig. 3) o enigma fica resolvido: na
verdade, trata-se de crianças que se encontram em locais cheios de fumaça de
cigarro alheio.

331
Pelo que você mais ama. (Tradução nossa).

1039
a. b.

c. d.

Fig. 2

Na Fig. 2 pode se observar como o plano próximo é utilizado para


apresentar as crianças. No caso, esse plano tem uma função apenas descritiva.
Resulta significativo, no entanto, que o fundo esteja desfocado. Essa estratégia
valoriza a figura humana, tirando importância do resto.

O aspecto mais interessante que apresenta esta propaganda para a


análise se encontra na transição entre cenas. Nesse sentido, cabe a trilha sonora
o papel de destaque. Na primeira cena não temos trilha, apenas a voz do
narrador em off, falando quantos maços de cigarro cada criança fuma por dia.
Esse depoimento junto às imagens dos pequenos é que cria incerteza no
espectador. A irrupção da trilha sonora ameniza a incógnita e sugere que há uma
explicação que será fornecida a seguir. Resumindo: introduz a solução do
enigma e marca a passagem de uma cena para a outra.

1040
a. b.

c. d.

Fig. 3

Na segunda cena (Fig. 3) por meio de movimentos panorâmicos (Fig. 3,


imagens a. & c.) e travelling para frente (Fig. 3, imagem b.) mostra-se o cenário
− os locais cheios de fumaça de cigarro –, terminando no ponto de maior
interesse, a saber, a criança fumante passiva.

Quit harming others 332 (Estados Unidos)

Esta propaganda estadunidense, com base no uso da hipérbole, torna


muito perceptível as graves consequências para a saúde das crianças de terem
um fumante por perto.

A ação se desenvolve em dois cenários: o exterior de uma moradia e a


sala de jantar. Esses cenários criam uma oposição perigo/segurança que será
desestimada logo depois, ao verificar-se que, embora o ato de fumar seja
efetivado fora, o interior do lar é tão perigoso quanto o exterior.

332
Não prejudique os outros. (Tradução nossa).

1041
A trilha sonora contribui significativamente para o anterior. Além de indicar
a transição de cena – a primeira sem trilha –, a música escolhida, que remete
aos filmes de terror, reforça o sinal de perigo do interior (Fig. 4, imagem c.).

Na primeira cena (Fig. 4, imagens a. & b.), o close na expressão


impassível da mãe enquanto fuma, sublinha sua atitude irreflexiva. Já o plano
detalhe no cinzeiro cheio de pontas de cigarro dá uma pista para o espectador
sobre a dimensão do assunto.

a. b. c.

d. e. f.

g. h. i.

Fig. 4

Nas tomadas subsequentes se alternam plano médio, para acompanhar


as ações das personagens, e plano detalhe (Fig. 4, imagens d., g. & h.) para dar
ênfase no prato, o copo, ou mesmo na reação da menina. O efeito dos últimos é
sinestésico, provocando nojo, revolta no espectador. O grande angular do copo
(Fig. 4, imagem f.) distorce o objeto, magnificando-o em relação ao menino.

1042
A propósito do menino, vemos como a câmera acompanha seu olhar do
copo para a mãe (Fig. 4, imagem e.). O que ainda é mais relevante, na mesma
figura, imagem i., o pequeno olha para a câmera: o fato de o ator se dirigir
diretamente ao espectador, através da câmera, faz com que o espectador se
sinta chamado a intervir (Martin: 2005).

Considerações finais

Nas propagandas analisadas, os elementos basilares de composição da


sintaxe audiovisual contribuem para a construção do sentido tanto quanto a
própria mensagem subjacente, tornando as peças mais persuasivas.

As propagandas não apenas partilham seu fim comunicativo e público


alvo, mas também uma estratégia persuasiva baseada no uso da emoção.
Porém, procuram efeitos de sentido diferenciados: remorso, empatia ou nojo,
segundo o caso.

Apesar da força da imagem, elemento predominante na linguagem


audiovisual, observa-se a importância da linguagem sonora que, às vezes, pode
assumir o protagonismo na geração dos efeitos de sentido procurados.

Levando em consideração a função educativa da publicidade social, estas


propagandas podem, e devem, ser usadas em sala de aula. Lá elas passariam
de objetos de comunicação a objetos de análise, discussão e reflexão por parte
dos alunos. Inúmeras atividades podem resultar da experiência, dentre elas a
geração de variações para suportes diferentes – com o propósito de se
familiarizarem com outras linguagens – ou mesmo de novas propostas que,
mantendo o objetivo de comunicação e público alvo originais, sigam estratégias
persuasivas diferenciadas.

1043
Referências bibliográficas
ALVARADO, María Cruz. La publicidad social: una modalidad emergente de
comunicación. 2003. 721 p. Tese (Doutorado em Comunicação Audiovisual,
Publicidade e Relações Públicas) – Universidade Complutense de Madri, Madri,
2003.
BASSAT, Luis. El libro rojo de la publicidad (ideas que mueven montañas).
Décima edição. Barcelona: Random House Mondadori, 2001.
GAGE, Leighton. D.; MEYER, Claudio. O filme publicitário. Primeira edição. São
Paulo: Atlas, 1991.
GREIMAS, Algirdas J.; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Terceira
edição. São Paulo: Cultrix, 1989.
GUIMARÃES, Alexandre H. T. Ementa da disciplina Linguagens: comunicação
e educação do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. São Paulo: UPM, s/d.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Primeira edição. Lisboa:
Dinalivro, 2005.
MURARO, Marlon Luiz Clasen. Propaganda de ideias e força do anúncio:
confluência de linguagens no discurso publicitário. 2009. 179 p. Tese (Doutorado
em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.
RUSSELL, J. T.; LANE, W. R. Otto Kleppner. Publicidad. Décimo segunda
edição. México: Prentice-Hall Hispanoamérica, 1994.
WELLS, W.; BURNETT, J.; MORIARTY, S. Publicidad, principios y prácticas.
Terceira edição. México: Prentice-Hall Hispanoamérica, 1996.

1044
A MODA E OS AGENCIAMENTOS DOS DESEJOS DE CONSUMIDORAS 333

Alessandra de Castro Barros Marassi334

RESUMO: Este trabalho propõe uma reflexão sobre os discursos de curadores


de informação que atuam no campo da moda. É possível notar o surgimento
constante de novas plataformas online de moda que apresentam de certa
forma um discurso imperativo em direção as práticas de consumo. Nesse texto,
são observadas as estruturas discursivas de duas plataformas: a WGSN, uma
organização formada por co-hunters, que pesquisam e preveem tendências
com dois anos de antecedência; e a STEAL THE LOOK, uma plataforma
formada por curadores de moda que disseminam a tendência do momento por
meio do discurso “Roube esse look”. Busca-se entender como os discursos
imperativos dos curadores de informação de moda agenciam desejos. Esse
desejo que nos leva a um agenciamento, o desejo que é sempre de um
conjunto, de um todo. A moda, nesse sentido, torna-se um componente ativo
na conquista do objeto de desejo e da satisfação exercendo importante papel
nas relações do indivíduo.
Palavras-chave: Moda; Consumo e Curadoria.

INTRODUÇÃO

Discursos sobre o consumo nos convida a uma reflexão sobre os estímulos


impulsionados por curadores de moda conhecidos como cool-hunters, ou
caçadores de tendências presentes no ambiente digital. O constante surgimento
de blogs de moda promove a emergência de personalidades que após algum
tempo tornam-se celebridades curadoras de informação que disseminam a
tendência do momento ou para determinada ocasião social. Esse testo busca
compreender como os discursos comunicacionais de curadores de informação
de moda agenciam desejos em direção as práticas de consumo. Não é foco
desse trabalho, analisar blogueiras do mundo fashion e sim os discursos de

333 Trabalho apresentado 2o. Congresso Nacional Mackenzie – Letras em Rede - Simpósio 20: Ensaios
sobre publicidade, marketing e literatura.
334 Doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUSP. Docente no curso de Publicidade e

Propaganda da FAPCOM – Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Publicitária e membro do


Grupo de Pesquisa CCM da PUCSP.
E-mail: alebarros8@gmail.com.

1045
moda presentes nas internet que são apresentados de forma imperativa as
consumidoras.

Adotar um estilo por meio da escolha da roupa é, de certa forma, adotar um


código de aparência que comunica interesses subjetivos em direção a nossa
interação com outros indivíduos no meio social. Ao observar alguns discursos,
nota-se a maneira como a moda ‘conversa’ com seus consumidores. De acordo
com os estudos da socióloga da cultura, Diana Crane (2008), a moda responde
às percepções, as atitudes e às necessidades dos consumidores:

Para compreender a ligação entre a moda e seus


públicos, é necessário examinar sua natureza, como as
modas são produzidas e estabelecidas, quem as segue
e, por fim, como a moda e seus seguidores vêm se
modificando ao longo dos últimos 150 anos (CRANE,
2008. p.157).

Para a autora, as pessoas adotam ou rejeitam a moda por diversas razões, pois
a relação entre a moda e a identidade social sofreu modificações através dos
séculos. Com o utilização das novas tecnologias pelos consumidores, a moda
passa a se relacionar com seu público a um toque dos dedos no celular.
Inúmeros perfis online são criados diariamente nas redes sociais que permitem
a divulgação e interação entre o curador de moda e seu público.

A interação online com usuários conectados, pode ser definida também como
uma forma de consumo, pois envolve, entre outras práticas, a recomendação,
sugestão, divulgação diária da foto com o look do dia em frente ao espelho, o
following de perfis de blogueiras no Instagram e o compartilhamento de lista de
desejos. Aqui, faz-se um traçado entre os agenciamento dos desejos e a
construção de estilos de vida promovidos pelos discursos comunicacionais de
curadores de moda.

1046
Os discursos midiáticos no campo da moda
A proliferação de discursos sobre moda e estilos de vida, nos convida a refletir
sobre a questão: de que forma os discursos comunicacionais dos curadores de
moda agenciam desejos?
O site Steal the Look é uma plataforma de moda desenvolvida e administrada
por especialistas da área. O termo “steal the look” traduzido do inglês para “roube
o look” surgiu em decorrência da atual cena de fashion/streetstyle blogs. O STL
não só apresenta tendências de moda, mas ajuda as consumidoras a encontrar
a peça desejada para montar o look de acordo com a ocasião. Por isso interligam
moda ao consumo num mesmo ambiente. No site, as consumidoras podem
acompanhar as últimas tendências do mundo da moda, visualizar looks
diferentes, inspirar-se e clicar no link de compra. A plataforma apresenta os looks
que considera interessante e indica peças similares que podem ser compradas
online, caso a consumidora goste da peça apresentada.
A partir de uma análise dos discursos utilizados pela STL, observa-se o uso de
termos imperativos como “precisa ter” ou “não pode faltar no seu guarda-roupas”.
Essa abordagem segue em direção ao estímulo dos desejos de quem quer
acompanhar tendências.
Ao observar os enunciados da plataforma Steal the Look, percebe-se uma
abordagem quase que obrigatória ao consumo por meio do estímulo ao desejo
de estar inserido em um grupo social fashion como exemplificado abaixo:

1047
Figura 1: Steal the Look

Fonte: Site Steal the look: http://www.stealthelook.com.br/

O texto do conteúdo indica que a consumidora ‘precisa’ adotar determinado


estilo considerado tendência, nesse exemplo, de inverno. Nota-se que esse
discurso imperativo é utilizado na maioria dos enunciados dessa plataforma
como prestação de serviço para consumidoras que desejam acompanhar as
tendências, conforme apresentado nos exemplos a seguir:
Figura 2: Steal the Look

Fonte: Site Steal the look: http://www.stealthelook.com.br/

1048
Com a internet, a possibilidade de acesso as novidades, a busca de informações
de um tema específico e as ferramentas de filtros de conteúdos compõem a
atividade online colaborando para que o consumo de informações desse grande
acervo possa ser classificado de acordo com o os interesses do usuário. Alguns
usuários podem ser tanto especialistas num determinado assunto, quanto
pessoas que têm um olhar sobre o que é interessante. No campo da moda, eles
são os tastemakers, pessoa ou grupo que testa e avalia uma tendência de moda
e que possuem grande influência em sua base de seguidores.
Compreender o desejo como a falta de algo ou o desconforto que essa falta
nos causa e que nos conduz a uma busca desse preenchimento indica que o
desejo não está restrito ao objeto. Gilles Deleuze (1988), em sua entrevista
concedida a Claire Parnet intitulada “O abecedário de Deleuze 335”, propõe que
quando se fala em desejo, só se pode desejar em um conjunto, e com isso
sempre se deseja um todo. Quando a consumidora deseja um vestido novo,
ela não deseja somente a peça, o objeto e sim a aura, a paisagem envolta
daquele vestido e tudo o que ele representa em uma determinada situação ou
momento da vida. O autor discute o desejo como um sendo um motor, ou seja,
um impulso em direção ao objeto de desejo que é diferente da forma abstrata
filosófica. Nesse sentido, não há desejo que não seja levado em direção a um
agenciamento. Nisso, é necessário compreender “qual a natureza das relações
entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis”
(DELEUZE, 1988).

A Moda e o processo de compra


Moda pode ser compreendida como o que se faz todo dia quando acordamos e
escolhemos uma roupa para aquele dia. A moda que se veste hoje, a roupa
escolhida para compor o armário, faze parte da vida do consumidor muito mais

335Transcrição integral do video da entrevista “O abecedário de Gilles Deleuze” disponível em:


http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf

1049
que se imagina. Diante disso, como podemos compreender as razões pelas
quais as pessoas vestem o que vestem, ou determinam sua imagem pessoal a
partir de um estilo? O ato da compra de uma blusa, por exemplo, não se limita
ao fato apenas do gosto da consumidora.
Observa-se um discurso ideológico e social por trás de uma camiseta Hering ou
de uma sandália Havaianas. Esse é um exemplo clássico, marca de chinelo mais
conhecida, depois de anos sendo estigmatizada como a sandália das classes C
e D, virou o chinelo fashion que “todo mundo usa”, e que podem inclusive compor
o look junto a outras marcas de luxo. Vestir uma sandália modelo clássico da
Havaianas pode comunicar que a consumidora se identificou com a marca e com
todo o seu discurso.

O mesmo acontece com marcas de luxo. Ao usar uma peça de roupa Chanel,
ou algumas de suas fragrâncias não significa que a consumidora “está na moda”
ou que possui poder aquisitivo para isso, mas pode passar a informação de que
essa consumidora se identifica com a imagem icônica da mulher Chanel, ou seja,
forte, elegante e clássica.

No processo de criação de um estilo que se tornará tendência, quando se


formula uma marca, uma linha de roupa, uma empresa de moda, há geralmente
um foco um perfil de pessoa pela qual se quer vestir. Contudo, não se tem mais
o controle de que essa moda também vestirá outras tantas milhões de pessoas
completamente diferentes, ou que uma pessoa tenha apenas um estilo. Pessoas
têm mais de um estilo e isso permite o impacto de diversos e diferentes discursos
de moda, assim o processo de construção de estilos pelos consumidores de
moda cria seu próprio discurso, que pode mudar várias vezes.

As práticas de consumo contemporâneas o sistema da mídia e os discursos


publicitários revelam uma mentalidade produtora de sentidos simbólicos, cujo
corpo é o elemento de experimentação.

1050
Se as práticas de consumo contemporâneas são reveladoras de
uma mentalidade própria de um capitalismo tardio, podemos
sugerir que o sistema de mídia – incluindo a comunicação
publicitária – é tanto um difusor desta mentalidade quanto um
viabilizador da produção simbólica de sentidos.... o corpo consiste
num locus privilegiado de experimentação, na medida em que se
alteram os modos de se fazer e ver e de ser visto por meio das
narrativas publicitárias (HOFF, 2012. p.145).

Seguindo nessa linha de pensamento podemos refletir na posição de um


consumidor criador de seu estilo ainda que com influência de narrativas
publicitárias.

Zygmunt Bauman, sociólogo francês autor de vasta obra sobre consumo (2008),
em seu livro “Vida para Consumo” definiu os indivíduos como “promotores das
mercadorias e as mercadorias que promovem” estabelecendo uma relação
mercadológica entre a pessoa e o produto. Nos tornamos um produto?

O processo das tendências


Para compreender o surgimento de tendências e como elas se transformam em
algo contagioso no mercado consumidor, direciono a reflexão desse trabalho
para o processo adotado pela empresa WGSN, uma organização composta por
um grupo de curadores especialistas em previsão de tendências, que combinam
dados com experiência de mercado para entregar previsões criativas e
assertivas no campo da moda com aproximadamente dois anos e meio de
antecedência. É um estudo oferecido para designers, publicitários, planejadores,
varejistas e consumidores. É referência no quesito previsão e tendências de
moda no mundo. A WGS foi criada em 1998 no mesmo ano que o Google. Se
auto denomina como um bureau de tendências que atua nas áreas de moda,
tendências e comportamento de consumo.
O processo de trabalho da WGSN envolve uma série de atividades que são
realizadas por seus colaboradores. Essas pessoas passam um período de seis
meses viajando por diversos países do mundo com o objetivo de coletar dados
que poderão se transformar em tendências nos próximos anos. Após esse

1051
período de coleta de dados, todos se reúnem e passam 3 dias em reuniões
brainstorming discutindo e compartilhando tudo o que foi coletado nesse período.

O objetivo desse brainstorming é identificar pelo menos 4 macro tendências, o


Zeitgeist, cujo termo alemão significa o espírito da época, o espírito do tempo ou
sinal dos tempos. O ciclo das tendências percorre pelos caminhos: a tendência
é criada por pessoas, jovens, artistas, designers. Surge a partir do inovador, ou
seja, o detentor da ideia e então se expande. São chamados de influenciadores.

De acordo com o documentário produzido pelos americanos Davis Johnson e


Paul Rojanathara chamando Influencers: how trends and creativity become
contagious336, os influenciadores são pessoas que possuem uma forma
diferente de pensar e têm habilidade em identificar antecipadamente o que está
por vir. São pessoas que têm um nome, uma marca e que não fazem parte do
grupo “mainstream”, ou seja, um conceito que expressa uma moda ou
tendência dominante e que atinge a maioria.

Roland Barthes, em sua obra escrita em 1967, discute o sistema da moda


separando-se em três estruturas distintas: a tecnológica, a icônica e a verbal. A
divulgação da moda, baseia-se basicamente em uma atividade de transformação
que transpassa pelas três estruturas.

A tecnológica está ligada a produção do vestuário, dos moldes cujo desenho


reproduz sua fabricação envolvendo a costura. A estrutura icônica está
relacionada a imagem do vestiário criado. Estamos falando da linguagem
fotográfica e a terceira estrutura sobre a comunicação verbal, os discursos da
moda e sua descrição e principalmente sua divulgação. O vestuário então passa

336 Documentário Influencers: how trends and creativity become contagious. Disponível em:

https://vimeo.com/16430345 . Acesso em: 24/04/2015.

1052
a ser representado por sua imagem e palavra, principalmente nas revistas de
moda.

A divulgação da Moda pela revista se tornou maciça;


metade das mulheres da França lê regularmente
publicações dedicadas pelo menos em parte à Moda; a
descrição do vestuário de Moda (e não mais sua realização),
portanto, é um fato social, de tal modo que, ainda que fosse
puramente imaginário, o vestuário de Moda constituiria um
elemento incontestável da cultura de massa [...].
(BARTHES, 2009, p. 28)

A sociologia da Moda parte de um modelo imaginado seguindo para outros


modelos reais procurando assim sistematizar condutas relacionando-os com
papéis sociais, estilos de vida e desejos.

As mídias sociais e o consumo


Os benefícios que as tecnologias da informação trouxeram já estão
estabelecidos e reconhecidos pela sociedade, pois se tornou uma pratica
habitual acessar, em temo real, qualquer informação sobre qualquer assunto
existente no mundo. As possibilidades de poder estabelecer contato direto com
as fontes e interagir com o emissor representa uma mudança de paradigma na
sociedade humana e em sua organização de espaço e tempo. Esse fenômeno é
chamado de “desencaixe” pelo teórico Anthony Giddens (1991), sociólogo
britânico, renomado por sua Teoria da estruturação, em seu livro As
consequências da modernidade.

O excesso de informações disponível reduziu o tempo para absorvê-las e exigiu


mais capacidade de transformação dos dados em informação útil, principalmente
conhecimento que possa ser aplicado. No campo do consumo, Gilles Lipovetsky
(2007) em seu livro A felicidade paradoxal, aponta que após vivermos em uma
fase de dilúvios de signos leves e de satisfação imediata, por conta da frenética
renovação de produtos, modelos, versões e incentivo à moda, caminhamos para

1053
uma nova forma de consumir. Há uma preocupação não mais e somente com
consumir o produto, mas sim em obter satisfação emocional, sensorial, corporal,
estética e lúdica. Nesse sentido, pode-se dizer que o consumo promove novas
experiências comunicativas, levando o indivíduo a investir em novos processos
de subjetivação (VILLAÇA, 2010 p. 55)337.
Entende-se que o consumo não está somente ligado à compra efetiva de um
determinado produto a partir da aquisição por meio de pagamento. A partir da
atividade online de usuários conectados, consumir envolve, entre outras e não
somente, o empréstimo, as práticas de recomendação, publicação nas redes
sociais digitais, o compartilhamento de informações, a recomendação, a
sugestão de um livro (podendo ocorrer de pessoa para pessoa ou de empresa
para pessoa) que se relacionam em rede. O sociólogo polonês radicado na
Inglaterra Zygmunt Bauman, em seu livro Vida para Consumo observa que na
Coréia do Sul, grande parte da vida social já é mediada eletronicamente. Para o
autor “a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida, e a maior
parte do tempo se passa na companhia de um computador, um iPod ou um
celular, e apenas secundariamente ao lado de seres de carne e osso” (BAUMAN,
2008, p. 8-9).

Na sociedade de consumo, onde o que se consome determina o estilo de vida,


a cultura e a “existência” em um determinado grupo social. Antes consumíamos
o que era produzido, hoje produzimos e consumimos (BAUMAN, 2008. p. 71).
Mas onde fica nossa liberdade de consumir? Para obter reconhecimento da
sociedade como indivíduo, temos que nos sujeitar a consumir produtos que
irão determinar nosso estilo de vida, nossa personalidade e até mesmo se
teremos aprovação para tal pertencimento.
Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se equipar
com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a capacidade de

337Nizia Villaça é formada em Letras pela UFRJ. Mestre em Literatura Portuguesa, doutora em Teoria
Literária pela UFRJ com Pós-doutorado em Antropologia Cultural pela Sorbonne, Paris V. É
Coordenadora do Grupo ETHOS: Comunicação, Comportamento e Estratégias Corporais.

1054
alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas
obrigações sociais e proteger a autoestima – assim como serem vistos e
reconhecidos por fazerem tudo isso -, consumidores de ambos os sexos, todas
as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo
do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos. (BAUMAN,
2008, p. 74)
Bauman (2008, p. 74) aponta que, na sociedade de consumo, precisamos ser
aprovados no teste do consumidor para admissão na sociedade. Para o autor,
“consumir significa investir numa afiliação social de si mesmo, o que, numa
sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade”: obter qualidades
das quais já existe numa demanda de mercado, ou reciclar as que já se possui,
transformando-as em mercadorias para as quais a demanda pode continuar
sendo criada”. Indivíduos se tornam a própria mercadoria. “Os membros da
sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo”
(BAUMAN, 2008, p. 76). Ao consumir, o indivíduo investe no valor social e em
sua autoestima.
O consumo cultural composto por vertentes que envolvem os processos
comunicacionais da recepção e produção, as frentes culturais que
compreendem os aspectos culturais como pontos de força. Outra vertente
muito discutida é a influência cultural e a integração da audiência. E a vertente
ligada aos estudos de Jesus Martin-Barbero sobre o uso social dos meios
(JACKS, 1996, p. 46)338.
De acordo com esse pensamento, podemos analisar o caso das Lojas
Renner339 que conseguiu “driblar” a baixa economia aumentando suas vendas
em 2014, utilizando o Instagram como ferramenta de captura de tendências de

338 Nilda Jacks é professora do Mestrado em Comunicação e Informação da UFRS. Pesquisadora de


questões sobre diversidade cultural.
339 SAMOR, Geraldo. Veja Mercados. O milagre da Renner: a moda que nasce do Instagram. 13/02/2015.

Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/mercados/varejistasempresas-de-consumo/o-milagre-da-


renner-a-moda-que-nasce-no-instagram/. Acesso em 18/05/2015.

1055
moda e comportamento da consumidora como estratégia de observação da
moda das ruas.
Investimos muito em capital intelectual para aprender as
peculiaridades do cliente — o que vende e o que não vende. A
rua ficou muito importante. Os clientes vêm uma cantora famosa,
uma atriz com um look diferente e vão para a loja buscar esse
look, essa peça. Aprendemos a reagir de forma rápida, e isso é
uma mudança estrutural na companhia. Este é o novo varejo.
(Laurence Gomes, CFO da Renner – Veja Mercado).
O consumo de moda caminhou no sentido contrário. A moda antes ditada pelas
passarelas de Paris e Londres agora nasce no Instagram, nas blogueiras
adolescentes e nos festivais de música, ou seja, na rua.

Considerações
Os desejos impulsionados pelos discursos publicitários e por curadores de
tendências percorrem os caminhos dos agenciamentos como processo
influenciador do consumo.
Observa-se que ciclo das tendências – das passarelas às ruas – apresenta um
caminho de mão dupla com o surgimento das mídias sociais digitais. Quando
percebemos empresas repensando suas estratégias de mercado utilizando as
mídias sociais digitais como ferramenta de estudo das práticas de consumo
das ruas, pode-se pensar que a criação das tendências também surge do
consumidor final e não somente das passarelas.
E por fim, dos discursos publicitários adotados no campo da moda, como
observado em enunciados da Steal the Look, colocam o consumidor numa
posição de que ele tem que adquirir determinada peça de roupa para estar
inserido no contexto da moda vigente no momento.
Esse trabalho ainda está no início de uma tese de doutoramento e será parte
de uma pesquisa em andamento no campo da comunicação e do consumo.

1056
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Sistema da Moda. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo - A Transformação das Pessoas em


Mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CALANCA, Daniela. História Social da Moda. São Paulo: Senac, 2008.

CRANE, Diana. Reflexões sobre a moda: o vestuário como fenômeno social. In:
BUENO, Maria Lucia; CAMARGO, Luiz Octávio de Lima (Orgs.). Cultura e Consumo.
Estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Senac, 2008.

JOHNSON, Davis. ROJANATHARA, Paul. Influencers: how trends and creativity


become contagious. Documentário. Disponível em: https://vimeo.com/16430345.
Acesso em: 24/04/2015.

HOFF, Tânia Márcia Cezar. Produção de sentido e Publicização do discurso da


diferença na esfera do consumo. In: ROCHA, Rose de Melo. CASAQUI, Vander.
Estéticas Midiáticas e Narrativas do Consumo. Porto Alegre: Sulina, 2012. p.145

PARNET, Claire. O Abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista. Paris, 1988. Disponível


em: https://www.youtube.com/watch?v=7tG4fceymmY. Acesso em 05/05/2015.

SAMOR, Geraldo. Veja Mercados. O milagre da Renner: a moda que nasce do


Instagram. 13/02/2015. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/blog/mercados/varejistasempresas-de-consumo/o-milagre-da-
renner-a-moda-que-nasce-no-instagram/. Acesso em 18/05/2015.

VILLAÇA, Nizia. Mixologias: comunicação e o consumo da cultura. São Paulo:


Estação das Letras e Cores, 2010.

1057
CLARAH AVERBUCK, SUJEITO À MARGEM.

Roseli Gimenes

Introdução

Neste trabalho apresentaremos a última obra da escritora Clarah Averbuck e


uma edição de seus trabalhos que se vê no filme Nome Próprio, do cineasta
Murilo Salles, apontando a questão da marginalidade de seus textos.
A primeira parte mostrará um biografema da autora no que se refere não apenas
à sua vida biográfica, mas os dados de sua vida que estão compostos em suas
obras. Também mostraremos um panorama de seu perfil em relação a outros
autores nascidos na década de 1970, como Daniel Galera, entre outros, como
aponta Luiz Rufatto (2004).
A posição da leitura de romances brasileiros será privilegiada nos trabalhos de
Lajolo (2004) que coloca o porquê de aprender a gostar de ler autores nacionais.
A seguir, uma análise de trechos da obra da autora, principalmente de seu último
trabalho, Eu quero ser eu, com base nas obras de Roland Barthes (1984/1987)
que trabalham a leitura por seu também valor afetivo e pelas questões da
diferença.
Nessa diferença, a marca da autora que procuramos, sua leitura, sua escritura,
à margem do cânone da literatura brasileira contemporânea.

Biografema de Clarah Averbuck

Usamos aqui o termo biografema em lugar de biografia, seguindo os


ensinamentos de Roland Barthes (1971/ 1990). Evidentemente não estamos nos
referindo a um autor morto, mas uma análise já pode evidenciar passos de uma
vida em relação aos feitos de uma obra:
[...] se eu fosse escritor, já morto, como gostaria que minha vida se reduzisse,
pelos cuidados de um biógrafo amigo e desenvolto, a alguns pormenores, a
alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: “biografemas”, cuja distinção e
mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, à maneira dos
átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma dispersão; uma
vida furada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra ou
então um filme à moda antiga, de que está ausente toda palavra e cuja vaga
de imagens (esse flúmen orationis em que talvez consista o ‘lado porco’ da
escritura) é entrecortada, à moda de soluços salutares, pelo negro apenas
escrito do intertítulo, a irrupção desenvolta de outro significante: o regalo
branco [...]. (Barthes: 1971/1990, p12 ) .
Assim é que um biografema pretende criar uma cadeia significante de um outro,
como diria o psicanalista Jacques Lacan. Um biografema não se restringe à vida
de um autor, mas às cores de suas obras tecidas da vida para a obra.
No dizer de Ruffato (2004), Clarah Averbuck é uma, entre muitas, mulheres que
começaram a escrever na década de 1990 e que estão “profundamente

1058
mergulhadas num universo mudo pela internet, surdo pela música altíssima e
cego pelas paredes dos shoppings, [...]” (Ruffato, 2004, p 16).
Só essa descrição já a deixaria de fora do cânone atribuído a escritores. Ao
menos, o paradigma que se tem de escritores. Ter iniciado sua escritura em
1990, faz de Averbuck um outro paradigma, o dos autores nascidos na década
de 70 em meio a questões políticas muito sérias no Brasil, como em outros
países da América do Sul.
De fato, Averbuck nasceu em Porto Alegre em 1979. Sempre considerou a
escola uma coisa chata o que a fez cursar um supletivo para finalmente ter
acesso à universidade. Cursou Letras e Jornalismo, mas acabou não concluindo
nenhuma graduação.
Em 2001, veio para São Paulo onde criou o blog brazileira!preta

Fonte: http://www.brazileirapreta.blogspot.com/

Destacamos, seguindo Beiguelman (2003, p. 49) a relação do leitor com


o autor que desmistifica processos de criação como no caso do blog
brazileira!preta da escritora Clarah Averbuck que começou muitas de suas
obras na interação com leitores de seus blogs. Na palavra de Beiguelman

Não se trata apenas de conferir ao leitor um papel participativo na construção


da narrativa. Inúmeros exemplos desse tipo podem ser encontrados na
literatura impressa. Trata-se de analisar a situação inédita que a estrutura da
Internet permite usufruir, pelos processos de compartilhamento de arquivos,
anunciando o redimensionamento de certos valores capitais para a história
da literatura como o nome do autor, essa espécie de logomarca que assegura
uma roa de sentido aos intérpretes. (Beiguelman: 2003, p. 48),
Do sucesso desse blog surgiram outros e logo obras que se tornariam marcas

1059
biografemáticas da vida de Clarah. O que isso significa?
Sem serem autobiográficas, as obras de Averbuck sempre são narrativas em
que a própria autora, seus namorados, seu marido, sua filha, seus gatos estão
presentes. Como é o caso de:
 Máquina de Pinball, editora Conrad, 2002
 Das Coisas Esquecidas Atrás da Estante, editora 7Letras, 2003
 Vida de Gato, editora Planeta, 2004
 Nossa Senhora da Pequena Morte, editora do Bispo, 2008
 Cidade Grande No Escuro, editora 7Letras, 2012
 Eu quero ser eu, editora 7Letras, 2013

A questão da música, além da literatura, também está no centro das obras da


autora. Filha de músico, ela também canta. Teve várias bandas com as quais fez
muitas turnês pelo Brasil. Outro ponto frequente em suas narrativas é a marca
de músicas com as quais a autora aponta relevância.
Na epígrafe de seu conto Psycho (Ruffato, 2004, p 23), Clarah deixa suas
entrelinhas da relação música/ contexto da escritura:

Baby, you’re driving me crazy


I Said baby, you’re driving me crazy
The way you turn me on
Then you shot me down
Well, tell me baby
Am I just your clown?
The Sonics –

Clarah Averbuck também não se cansa de apontar suas influências literárias


mostrando ser seguidora/leitora de John Fante, Charles Bukowiski, Paulo
Leminski, entre outros, certamente da subcultura pop e da literatura de consumo.
Com suas obras de força de escritura, Clarah atraiu o pessoal do teatro e do
cinema para seus trabalhos, como no caso do diretor Murilo Salles, conforme
apontaremos mais adiante.
Com 35 anos, Averbuck já construiu seu papel de mulher como escritora na cena
literária brasileira.
Contemporâneos de Travessia

Ao lado de Clarah Averbuck, outras mulheres escritoras também tomam a cena


da literatura brasileira da década de 90.
Seguindo Ruffato (2004), na esteira de Averbuck estão: Simone Campos, Mara
Coradello, Állex Leilla, Ana Paula Maia e Claudia Tajes. Outras entre
debochadas e auto-reflexivas, estão Luci Collin e Guiomar de Grammont. Ainda
em outras :
O cinismo pode estar presente tanto em um texto refinado como o de

1060
Fernanda Benevides de Carvalho, quanto no de um ilusoriamente simples
como o de Ivana Arruda Leite. A frustração (basicamente a sexual), que leva
à solidão, encontramo-la em Livia Garcia-Roza, em Cintia Moscovich, em
Nilza Rezende. A morte como expiação sobrevoa os contos de Tatiana Salem
Levy, Adriana Lunardi e Paloma Vidal. Em Claudia Lage a redenção pelo
corpo; em Índigo, pela alma. O viés engajado encontra abrigo em Tércia
Montenegro e Rosa Amanda Strausz, com faturas diversas. O lado terrível da
amizade, expõe Cecília Costa; os pequenos cortes no cotidiano banal,
Adriana Lisboa; a paixão que arrebata, Heloísa Seixas. O fantástico habita
Augusta Faro. A inventividade marca Leticia Wierzchowski. (Ruffato: 2004, p
16-17)
Essas entre tantas mulheres que estão fazendo a literatura brasileira do século
XXI.
Elas e tantos jovens dessa geração como Daniel Galera, Michel Laub, Ricardo
Lísias, Júlian Fuks, entre outros que, como algumas autoras citadas, integram a
Granta (2012) e que fazem das letras brasileiras um novo paradigma literário:
Os textos aqui reunidos representam uma fatia importante dos escritores em
atividade no Brasil: autores com menos de 40 anos e com pelo menos um
conto já publicado. Alguns têm em seu currículo um número significativo de
obras lançadas. Michel Laub, o autor que abre esta edição está em seu quinto
romance e recebeu, em 2011, o Prêmio Bravo! de Literatura por seu livro mais
recente. Tatiana Salem Levy levou, por seu primeiro romance, o Prêmio São
Paulo de Literatura e foi traduzida em seis países. Daniel Galera tem três
romances, um volume de contos, uma graphic novel [...] (Granta: 2012, p 5 -
6)
Seria o caso de perguntar: por que Clarah Averbuck não entrou nessa lista em
que estão seu companheiro de Porto Alegre, Daniel Galera, ou sua companheira
da obra de Ruffato (2004), Tatiana Salem Levy? Qualidade literária não lhe falta.
Publicações, também não. Será a Granta (2012) um novo cânone ? Escolhas de
jurados. Mesmo Ruffato (2004) fez escolhas e explicou que muitas outras
mulheres poderiam estar em sua seleção.
Afinal, as mulheres conquistaram espaço também na literatura:
Como em Sherazade - a mulher que adiava a morte pelo talento com que
contava histórias ao sultão na Mil e uma Noites -, narração e sobrevivência
vêm juntas. A presença da mulher no romance – lendo-o, escrevendo-o ou
protagonizando-o – não apenas deu voz à metade da humanidade que
permanecia calda ao tempo em que as letras eram território exclusivamente
masculino (o que já não é pouco...), mas também deu vida e fôlego longo ao
romance, gênero por excelência da modernidade. (Lajolo: 2004, p 61)
A Literatura de Clarah Averbuck vai ao Cinema

Dos autores jovens já mencionados, vários estão com adaptações de suas


obras. Novamente, citamos Daniel Galera. O filme Cão sem dono, de Beto Brant
(2007), é adaptação de seu romance Até o dia em que o cão morreu (Galera,
2007).
Adaptações sempre nos levam a comparar filme e obra literária. A
intertextualidade que envolve esse processo precisa ser observada. Qualquer
literariedade pode soar falsa na transposição do código, especificamente, verbal

1061
para o hibridismo da linguagem do cinema.
No caso do filme Nome Próprio, de Murilo Salles (2007), não se trata da
adaptação de uma única obra de Averbuck. Um desavisado leitor poderia pensar
que houve apropriação ou desapropriação da obra da autora.
Assim como fez Nélson Pereira dos Santos com o filme A terceira margem do
rio (1994) que transpos ao cinema vários contos da obra Primeiras Estórias
(1962), de Guimarães Rosa. O título do filme induz a pensar que seja apenas
uma adaptação do conto A terceira margem do rio, parte de Primeiras Estórias.
No caso de Nome Próprio, o cineasta acertou na leitura da obra de Clarah como
um todo. Impossível não relacionar esse título com a publicação recente da
escritora, Eu quero ser eu. Clarah é nome próprio literal e metaforicamente
falando, como veremos adiante na análise dessa obra.
Quem é Camila, a protagonista de Nome Próprio senão a própria Clarah
Averbuck de dentro de todas as suas obras? De dentro de seus romances Vida
de Gato (2004) e Máquina de Pinball (2002)?
Jair Santana (2008) definiu bem o filme apontando a relação frágil entre o
espectador e seu nome próprio, seu espelho no cinema, encarnado por Camila,
brilhantemente interpretada pela atriz Leandra Leal:
Apesar de ser um filme atual, jovem, e ter inúmeras qualidades, “Nome
Próprio” não tem sido um sucesso de público. Talvez pela personagem
difícil. Talvez pela baixa divulgação do filme, ou pelo preço do cinema, ou
ainda, porque o filme exija demais seu público. Talvez ainda, porque, grande
parte do público de cinema no país, seja exatamente como Camila. E o
incômodo de se ver na tela os fazem sentir como Camila se sente ao ser
criticada em seu blog.
O que fica para o para o público é um cinema de qualidade, “Nome
Próprio” tem cara de cineasta estreante. No melhor que isso possa
significar. Pois, como já foi dito, é um filme corajoso, ousado e barato. Filme
com cara de cinema brasileiro, cara de um bom cinema latino. Novo,
autêntico, visceral. “Nome Próprio” tem, acima de tudo, cara de cinema, e
posiciona bem nisso. Não quer ser visto como uma adaptação da literatura.
E em momento algum se propõe a se confundir em ser literatura, teatro ou
novela. É CINEMA. (Santana: 2014.)
Um leitor, assim como um espectador, se vê espelhado no que ouve, lê, vê.
Camila/ Clarah são espelhos, retratam o jovem como bem colocou Ruffato (2004,
p 16) ao dizer que são jovens deste tempo. Também por isso o público de cinema
identificou Nome Próprio e Cão sem dono como semelhantes. Semelhantes em
personagens, semelhantes ambos em personagens que se revelam em seus
próprios autores. Autores que vieram, Clarah e Daniel Galera, de Porto Alegre
para São Paulo e aqui fazem seus romances mantendo um vínculo, uma
irmandade.
Talvez, como seus jovens leitores, à margem.

CLARAH, Eu quero ser eu

A mais recente publicação de Clarah Averbuck aponta uma tendência da


literatura brasileira da década de 90, o intimismo em primeira pessoa. No caso,

1062
a tendência autobiográfica é suavizada pela maturidade da autora passados 15
anos ou mais de suas primeiras publicações. Clarah cresceu, é mãe e já não é
tão jovem como a Camila de Nome próprio.
Eu quero ser eu (2013), traz uma retrospectiva de como Camila (que está em
Vida de Gato e Máquina de pinball) chegou a ser Camila. Começa com a escola:
“[...] Eles praticamente ensinam que ser diferente é errado, então tchau, que
essa mancha no meu currículo sirva para a minha história”. (Averbuck: 2013, p.
9)
Ironicamente a personagem chave chama-se Ira (Iracema, mas todos a chamam
de Ira) e vive às voltas com questões diversas às dos adolescentes que a
rodeiam. Curiosamente, Ira tem pais muito bacanas:
Meus pais são legais. São os pais mais legais que eu conheço. Minha mãe é
minha amiga, é linda e inteligente e desenha os desenhos mais legais do
mundo e gosta de rock e me compra músicas legais e tem discos de vinil em
casa até hoje, uma coleção enorme, que era de um amigo do meu avô.
(Averbuck: 2013, p. 25)
Ao leitor fica a sensação de que, nessa obra, Clarah transferiu-se para sua filha.
Seria Ira a filha, então? Ou Ira é um espelho para Clarah contar a história de
uma adolescente que também poderia ser ela mesma em época adolescente?
Seja como for, Ira é tão diferente quanto a Camila de suas primeiras obras.
Eu quero ser eu é narrativa em primeira pessoa:
Adorei tudo. Adorei ele, adorei o jeito que ele falava, o jeito que ele se mexia,
o jeito que ele tratava os alunos não dando margem pra mimadinhos, adorei
aquele pedaço de tatuagem saindo pela camiseta, adorei que ele era sério e
não fazia piadinhas pra ganhar os aluninhos. Adorei. (Averbuck: 2013, p. 21)
Ira encontra em uma nova escola, fora convidada a sair da outra, um professor
que realmente se fazia respeitar, contrário ao que se vê nas escolas neste
momento difícil da educação brasileira. Significa que uma adolescente diferente
não quer dizer uma adolescente que não sabe valorizar um bom professor.
Segundo Ira, os “mimadinhos” é que não sabem, então.
A linguagem da narrativa é simples, sem ser simplista, empresta aos
personagens suas características etárias e contemporâneas de jovens urbanos.
Por mais que possamos inferir de essa obra de Averbuck tratar de uma
‘realidade’, como bem afirma Barthes (1973/1987), a representação é sempre
um outro, uma outra ‘realidade’:
Outra coisa se passa, ligada sem dúvida a um outro sentido da palavra
“representação”. Quando, num debate, alguém representa qualquer coisa a
seu interlocutor, não faz mais do que citar o último estado da realidade, o
intratável que existe nela. Do mesmo modo, talvez, o romancista ao citar, ao
nomear, ao notificar a alimentação (ao tratá-la como notável ), impõe ao leitor
o último estado da matéria, aquilo que, nela, não pode ser ultrapassado,
recuado (...). (Barthes: 1973/1987, p. 60-61)
Nesse sentido, o nome da personagem Ira pode representar a raiva adolescente
dela como também a rebeldia da autora para com aqueles que tratam diferentes
de maneira brusca. Possível também pensar que Ira abreviado de Iracema
aponte para a personagem de Alencar, ‘a virgem dos lábios de mel’, um certo

1063
modelo diferente da mulher europeia do século XIX. Ira, Iracema, é um
paradigma de adolescente diferente, mesmo em se tratando do século XXI.
Na dedicatória que Clarah fez a esta autora (Roseli Gimenes), enigmaticamente,
ela plantou um desconforto. ‘Pra Roseli que já sabe que pode ser o que quiser.’

Quem nos dera saber o que queremos ser, mas é possível perceber que
Averbuck vira Roseli como alguém que já atingiu um algo, ser professora,
escrever, falar sobre Clarah neste artigo. Ou, então, julgou Roseli sendo como
sempre quis ser, sem ter que se explicar do porquê ser. Será?
Será que ela sabia do prazer da autora com seu texto? Ela descobrira a análise
da leitura de sua obra de forma prazerosa, ainda que uma análise, como diria
Barthes (1973/1987):
Cada vez que tento “analisar” um texto que me deu prazer, não é a minha
“subjetividade” que volto a encontrar, mas o meu “indivíduo”, o dado que torna
meu corpo separado dos outros corpos e lhe apropria seu sofrimento e seu
prazer: é meu corpo de fruição que volto a encontrar. E esse corpo de fruição
é também meu sujeito histórico; pois é o termo de uma combinatória muito
delicada de elementos biográficos, históricos, sociológicos, neuróticos
(educação, classe social, configuração infantil, etc (sic) que regulo o jogo
contraditório do prazer (cultural) e da fruição (incultural), e que me escrevo
como um sujeito atualmente mal situado, vindo demasiado tarde ou
demasiado cedo (não designando este demasiado nem um pesar nem uma
falta nem um azar, mas apenas convidando a um lugar nulo): sujeito
anacrônico, à deriva. (Barthes: 1973/1987, p. 81)
Eu quero ser eu revela muito de eu sei que quis e que sou eu quando se lê uma
obra que pode revelar seu ser: Clarah e Roseli escritoras, mulheres, diferentes,
fazendo literatura no século XXI em um mundo, ainda, de homens escritores. Em
um mundo que trata cabelos crespos, corpo fora da anorexia, vozes que falam
sobre isso como à margem, em um outro lado do social. Assim é que Clarah e
Roseli confluem. Ambas como ‘reais’ indivíduos tirando prazer do texto e da
leitura como ficção:
Talvez então retorne o sujeito, não como ilusão, mas como ficção. Um certo
prazer é tirado de uma maneira da pessoa se imaginar como indivíduo, de

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inventar uma última ficção, das mais raras: o fictício da identidade. Esta ficção
não é mais ilusão de uma unidade; é ao contrário o teatro da sociedade onde
fazemos comparecer nosso plural: nosso prazer é individual - mas não
pessoal. (Barthes: 1973/1987, pp. 80-81)
Clarah Averbuck, participando de palestras para alunos de Letras, disse mais de
uma vez que se considera diferente e Ira, sua personagem de Eu quero ser eu,
também afirma isso na obra: “Eu não posso ser tão estranha só porque eu não
quero ser igual a todo mundo. Eu quero ser eu. Não pode ser tão estranho eu
querer ser eu e não outra pessoal.” (Averbuck: 2013, p. 19)
O que significa ser eu em relação a ser diferente e não ser igual a todos os
outros? Clarah está fiel ao mundo adolescente médio, da classe média, que de
alguma maneira segue padrões de consumo estilizados e que transformam os
seres em únicos, não em um único ser. Para incluir-se o jovem precisa ser igual
a todos os demais:
Um grupo de meninos bonitos cercados por tietes que chegavam pra falar
qualquer coisa, meninas que acreditavam que o mais importante na vida eram
roupas e cabelos, receber uma resposta digna de garoto de dezesseis anos,
fingir total ultraje e sair rindo de braços dados com as amigas, cochichando,
para dar lugar para a própria turma de tietes, que falaria qualquer coisa...E
depois eu que sou estranha por não querer fazer parte disso. (Averbuck:
2013, p 19)
A leitura desse trecho leva a questões antigas de considerar mulheres, as
meninas do texto, submissas às vontades masculinas que diferem de pensar as
mulheres como seres que leem, mas que também escrevem, que também
constroem o mundo social em que vivem. Marisa Lajolo (2004) fez uma excelente
análise de como o papel da mulher retratado na literatura brasileira a aponta
como mulher leitora, mulher cuja leitura a coloca em posição perigosa e mulheres
que começam a aparecer como escritoras:
Assim, não obstante o severo e magro regime de leitura e de escrita a que
eram submetidas as brasileiras – maiores e menores de idade -, na primeira
metade do século XIX, elas também viraram o jogo e o romance tornou-se,
efetivamente, um gênero feminino, inaugurando-se com uma história do tipo
perfil-de-mulher. (Lajolo: 2004, p. 48)
Em recente palestra, em curso de Letras de uma universidade privada, Clarah
Averbuch, ironicamente, provocou os alunos afirmando que detestara o curso de
Letras porque ele apenas trabalhava obras clássicas da literatura,
desprestigiando as contemporâneas, os novos autores como os da geração de
Averbuck. Citou, inclusive, que detestava a obra A Moreninha, de Macedo,
justamente porque a personagem central lhe era “desconhecida”. No entanto,
nesse caso, o contexto social e histórico do século XIX conferia papel difícil às
mulheres e a ‘moreninha’ do romance dá um salto à frente de seu tempo, ou
seja, à frente de seu tempo na literatura que traduzia os romances europeus com
suas heroínas bem distantes daquelas leitoras de obras do período do
Romantismo brasileiro, como bem explica Lajolo (2004):
A Moreninha permanece na cultura brasileira pelas suas adaptações para
outros media e pela sua presença no currículo escolar. Esta permanência

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talvez possa ser atribuída à tropicalização de sua heroína: será que uma
protagonista moreninha, em substituição às tradicionais pálidas e loiras, não
falava mais alto ao coração do leitorado brasileiro? (Lajolo: 2004, p 49 )
O que nos parece é que Clarah Averbuck, a autora e suas obras, personifica a
mulher culturalmente tropicalizada a que se refere Lajolo na citação acima, mas
que não encontra, ainda, par com outras mulheres ou com outras adolescentes
assim como sua personagem, Ira. Ambas ouvem vozes femininas em suas
cabeças, vozes que vêm de dentro, não de outro:
A voz da minha cabeça é muito alta. Eu não sei se a das outras pessoas é,
mas a minha é. Se as coisas começam a ficar entediantes à minha volta, ela
começa a aumentar e aumentar e quando me dou conta é só o que eu escuto.
A minha própria voz. Pelo menos é só uma. Isso deve querer dizer que eu
não sou louca. Mesmo quando eu sinto que tem duas pessoas brigando
dentro de mim, é a mesma voz. Então eu não estou no grupo das pessoas
que ouvem vozes. Eu só ouço a minha. (Averbuck: 2013, p. 27)
Considerações Finais

Eu quero ser eu, de Clarah Averbuck, sintetiza o eu quero ser eu, mulher,
escritora, leitora, editora, diferente, incluída, historiadora da literatura brasileira
como se vê na obra de organização de Muzart (2003). Enfim, eu quero ter nome
próprio.
Eu quero ser eu apresenta uma discussão, pelo viés da voz adolescente de Ira,
de como rótulos diminuem seres, colocam-nos à margem do social, do histórico,
do cultural.
A obra constrange exatamente por apontar que, passados séculos, embora
tenhamos escritoras mulheres falando de mulheres, a mulher ainda não se
desgarrou de uma cultura que as forma, em sua grande maioria, para agradar o
sexo oposto.
Mulheres, como Ira, esperam mudanças, como aponta Muzart (2003) que
‘esperar’ é o verbo que mais se usa, ainda que para a autora aqui o ‘esperar’ é
o tempo da pesquisa: “o verbo mais conjugado é o esperar: esperar por uma
informação bibliográfica, esperar o resultado de pedidos por carta a sebos e
antiquários, esperar por microfilmes de bibliotecas.” (Muzart: 2003, p. 24)
Clarah Averbuck também ‘espera’ por tomar um lugar na cultura, não
necessariamente um lugar feminino, mas uma visão- lugar de ser humano:
[...] Quem inventou que homem é assim, mulher é assado? Ninguém NASCE
sabendo como se portar, essas coisas são todas ensinadas, e olha, olha só,
eu acho que estão ensinando tudo muito errado, desde que as meninas e os
meninos nascem, desde o começo, desde o quarto rosa e azul, desde furar
a orelha da pobre menina recém-nascida, quem foi que determinou o que é
feminino e o que é masculino? Ouvi mil vezes que eu era uma “menina –
menino”, que droga isso significa? É porque eu gosto de música? É porque
eu não me visto igual às outras? É porque eu tenho opinião? (Averbuck:
2013, p 53)
Esperar pelo outro toma tempo. As escrituras, nesse sentido, vão se construindo
utópicas para encorajamento histórico e cultural. Falando sobre a força da

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literatura, Barthes (1964) confirma esse poder da escrita:
A multiplicação das escritas institui uma Literatura nova na medida em que
esta só inventa a sua linguagem para ser um projeto: a Literatura torna-se a
utopia da linguagem. (Barthes: 1964, p. 73)
A busca pela escrita é a busca de nossa Ira em ser eu, em poder ser aquela em
que Clarah também acredita, a que tem nome próprio:
[...] Mudei de novo de escola e nunca mais verei nenhum daqueles caras.
Espero que a próxima escola seja melhor. Não vai ser. Vai ser a mesma
coisa. Só sei, só espero que lá eu possa ser eu. Que eu mesma me permita
ser eu. E que eu nunca mais pegue ônibus pro lado errado por causa de
homem novamente. (Averbuck: 2013, p. 66)
E que eu nunca mais pegue ônibus pro lado errado por causa de homem
novamente, é literal no romance porque relembra ao leitor a mudança de atitude
que Ira toma. Ela se deixa levar por um jovem ‘mimadinho’ e belo que a esnoba
e a trata como ser de outra espécie que não a humana.
Por outro lado, Clarah nos deixa um pensamento para reflexão sobre o que é ter
vida, nome próprio, e não se sujeitar ao outro nesse sentido usurpador
masculino.
O texto neste ponto se encerra deixando escritura que se discute ainda em pleno
século XXI, mesmo depois de as mulheres terem sua emancipação no século
XX, de terem empreendido uma escrita, ainda que muitas vezes desconhecida,
no século XIX.
Quem é Clarah Averbuck? Esperamos tê-la tornado mais conhecida. De que
trata a narrativa Eu quero ser eu? Também. Que o prazer do texto de Clarah
aqui esboçado seja o de encontrar a obra da autora, de buscar o filme de Murilo
Salles sobre Camila, a rebelde personagem de vários romances da escritora. E
de ver, mesmo em meio a um mundo contemporâneo, as angústias da mulher
que ‘espera’, mas que opera a visibilidade por sua escrita.
Com Barthes (1973/1987, p. 68), mais uma vez, aqui encerramos: “Todo mundo
pode testemunhar que o prazer do texto não é seguro: nada nos diz que este
mesmo texto nos agradará uma segunda vez.”

Referências

AVERBUCK, Clarah. - Eu quero ser eu. Rio de Janeiro: Editora 7letras, 2013.

BARTHES, Roland. - O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BARTHES, Roland. - O grau zero da escrita. Lisboa: Edições 70, 1964.

BARTHES, Roland. - Sade Fourier Loyola. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BEIGUELMAN, Giselle. - O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003.

GRANTA, em Português. - Os melhores escritores brasileiros. Rio de Janeiro:

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Objetiva/ Alfaguara.

LAJOLO, Marisa. - Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004.

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