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Apresentação p.10
Allan de Andrade Linhares p.14
Alessandra de Sá Mello da Costa p.586
Amanda Mendes Zerbinatti p.153
Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado p.24
Ana Cristina Bornhausen Cardoso p.355
Ana Maria Wertheimer p.36
Ana Paula Rodrigues Ferro p.44
Antonio Carlos Silva de Carvalho p.49
Antonio Iraildo Alves de Brito p.59
Audrey Castañón de Mattos p.70
Bárbara Baldarena Morais p.81
Carolina Toti p.93
Celso Figueiredo Neto p.102
Charles Borges Casemiro p.113
Clarisse Barbosa dos Santos p.129
Cleusa Kazue Sakamoto I p.153
Cleusa Kazue Sakamoto II p.380
Clemilton Pereira dos Santos p.140
Cristine Fickeslcherer de Mattos p.163
Daniele Aparecida Pereira Zaratin p.174
Dílson César Devides p.183
Dionéia Motta Monte-Serrat p.198
Eduardo Neves da Silva p.209
Elisângela Maria Ozório p.217
Elisangela Nogueira p.230
Ernani Terra p.242
Ester Anholeto Pirolo p.253
Felipe Pupo Pereira Protta p.264
Fernanda Cristina Araújo Batista p.267
Fernanda Isabel Bitazi p.278
Flavio Biasutti Valadares p.289
Gabriela Soares Balestero p.296
Graciene Silva de Siqueira p.312
6
Gustavo Lassala p.323
Hadna Teider Silva p.355
Hugo de Almeida Harris p.331
Isabel Orestes Silveira p.343
Isaura Maria Longo p.355
Ivelaine de Jesus Rodrigues p.366
Janaina Quintas Antunes p.380
João Manoel Quadros Barros p.163
Joana Junqueira Borges p.389
Joanna Durand Zwarg p.400
João Eduardo Ramos p.412
Jorge Ferreira Franco p.420
Juliana Pádua Silva Medeiros p.430
Juliana Zanco Leme da Silva p.440
Juliane Emiliano p.451
Letícia Cordeiro de Oliveira Bueno p.461
Letícia Pereira de Andrade p.473
Lilian Cristina Corrêa p.486
Lorena Maria Nobre Tomás p.498
Luciana Azevedo Pereira p.510
Luciana Duenha Dimitrov p.520
Luciana Ribeiro de Souza p.529
Luciana Uhren Meira Silva p.540
Luciano de Souza p.551
Luciano Magnoni Tocaia p.562
Ludmila Jones Arruda p.574
Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa I p.510
Luís Alexandre Grubits de Paula Pessôa II p.586
Maria de Lourdes Bacha p.102
Marco Antonio Palermo Moretto p.343
Mariza de Fátima Reis p.163
Manlio M. Speranzin p.595
Márcia Moreira Pereira p.605
Márcio Thamos p.615
Marcus Túlio Tomé Catunda p.624
Maria de Fátima Xavier da Anunciação de Almeida p.635
Maria do Rosário Abreu e Sousa p.646
7
Maria Eloísa de Souza Ivan p.657
Maria Enísia Soares de Souza p.668
Maria Júlia Santos Duarte p.680
Mariângela Alonso p.691
Marleide Santana Paes p.702
Marli Lobo Silva p.713
Marli Quadros Leite p.724
Mauro Dunder p.731
Mirtes de Moraes p.735
Natália Pedroni Carminatti p.746
Nicole Guim de Oliveira p.731
Patrícia A. Beraldo Romano p.753
Patricia Hradec p.762
Patricio Dugnani p.768
Paulo da Silva Lima p.779
Perrotti Pietrangelo Pasquale p.791
Rafael Fonseca Santos p.801
Rafael Kobata Kimura p.807
Raquel do Nascimento Marques p.724
Raul Ignacio V. Arriagada p.816
Regina Paula Ambrogi Avelar p.827
Regina Kohlrausch p.839
Renata Ferreira Munhoz p.850
Renata Nobre Tomás p.498
Renata Palumbo p.861
Rinaldo Pereira de Souza p.87
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos p.886
Rodrigo Prando p.102
Rodrigo de Freitas Faqueri p.893
Rogério Aparecido Martins p.904
Ronaldo de Oliveira Batista p.562
Rosinei Aparecida Naves p.921
Sandra Trabucco Valenzuela p.927
Sergio Manoel Rodrigues p.937
Sheila Darcy Antonio Rodrigues p.948
Silas Luiz de Souza p.962
Silas Daniel dos Santos p.801
8
Silvana Moreli Vicente Dias p.975
Solange Ugo Luques p.861
Tânia Regina Exposito Ferreira p.988
Telma Maria Vieira p.1000
Vanessa Maria da Silva p.1012
Wellington de Assis Silva p.1025
Yadir González Hernández p.1033
Roseli Gimenes p.1058
Alessandra de Castro Barros p.1045
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A CONSTRUÇÃO REFERENCIAL NO ENSINO DE LEITURA: ANÁLISE DE
ATIVIDADE DE COMPREENSÃO DE TEXTOS DE ALUNOS NO
4º CICLO DE EJA
Introdução
1
Doutorando em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
14
2 Referenciação e sociocognição: uma interface necessária para a construção
de sentidos por meio da leitura
2.1 A Referenciação
15
As autoras explicam, ainda, que o processo de estabilização das categorias
discursivas ocorre, em nível linguístico, através da lexicalização e de sua ocorrência
no interior das práticas discursivas, por meio das anáforas nominais, as quais podem
ser concebidas, simultaneamente, como uma maneira de ilustrar a questão da
evolução dos referentes e como um modo de estabilizar ou focalizar uma
denominação particular. Além da estabilização das categorias do discurso em níveis
psicológicos e linguísticos, há a estabilização através dos processos de inscrição,
tais como a escrita, a imprensa e a imagem, as quais podem ser vistas como móveis,
uma vez que circulam em amplas redes, ou imóveis, visto que são fixas e não sofrem
modificações em seu movimento. Essas inscrições podem, ainda, ser reproduzidas,
o que permite não somente sua circulação, mas sua comparação no tempo e no
espaço.
Todas essas considerações reafirmam o caráter dinâmico do processo de
referenciação e, consequentemente, dos objetos de discursos, os quais são (re)
construídos no cerne das atividades cognitivas e interativas. Dessa forma, como
defendem os autores, esses objetos uma vez ativados podem ser alterados,
desativados, reativados, recategorizados, construindo-se ou reconstruindo-se, no
transcorrer da progressão textual, o sentido. Nesse contexto, segundo Koch (2007),
na constituição da memória discursiva fazem parte as seguintes operações:
16
atribuídas novas (re) categorizações ou formas subjetivas de designação desse
objeto.
2 A pesquisa Concepções e práticas de leitura na EJA: uma experiência com professores de 4º ciclo,
vinculada ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), foi concluída em 2012.
17
Essa mulher
18
casa dela e o marido. Se não cuidar do marido, ele arruma
outra.
Professora: Todo mundo concorda com os colegas? Alguém
acrescenta mais alguma coisa? É bom perceber aí que essa
mulher passa por transformações no decorrer do dia e assume
novos papéis. O sentido do texto está bem aí.
Percebemos que a professora inicia a discussão com uma pergunta que limita
a produção de sentidos. Ao questionar Após terem lido aí o texto, o que vocês
conseguiram tirar dele? O que o texto diz para nós?, leva-nos a entender que parte
do princípio de que tudo está posto na superfície linguística. Não é necessário criar,
já que o texto traz uma mensagem pronta, a qual deve ser reconhecida pelos
leitores. Kleiman (2007) entende esse tipo de concepção como alienadora, pois o
leitor precisa apenas passar o olho sobre o material escrito e buscar trechos que
constituiriam um certo entendimento sobre ele. Marcuschi (1999, p. 96) é enfático
ao dizer que o sentido não está no texto, pois “embora o texto permaneça como o
ponto de partida para a sua compreensão, ele só se tornará uma unidade de sentido
na interação com o leitor”. A professora, então, uniformiza uma resposta e isso fica
claro ao afirmar que O sentido do texto está bem aí. Essa postura diverge do
entendimento de texto como um processo em que predominam atividades cognitivas
e discursivas. (MARCUSCHI, 2003). Assumindo tal postura para trabalhar com o
texto, podemos adiantar que a professora desconsidera um trabalho de construção
referencial, uma vez que os referentes são construídos, intersubjetivamente, a partir
de atividades cognitivas e discursivas socialmente situadas. A docente não deu a
devida liberdade para que os alunos construíssem suas próprias referências.
É importante perceber que os alunos foram assumindo diferentes
perspectivas para a construção da referência. O aluno A recategoriza o referente
mulher como submissa, já o aluno B a chama de conformada. Entende-se que essas
formas de nomear o referente “mulher” foram sendo construídas a partir de um
propósito que pretendem construir. A forma de nomear marca, referencialmente, a
argumentação que pretendem sustentar. Essas escolhas são feitas a partir do
entendimento de como o discurso vai se desenvolvendo, além dos modelos
cognitivos que cada um desses sujeitos dispõe e das pistas presentes no texto.
19
Cavalcante (2011, p. 183) pondera que os referentes são “[...] entidades que
representamos, cada um à sua maneira, portanto, em cada contexto enunciativo
específico”. Parece-nos, então, que a professora ao afirmar É bom perceber aí que
essa mulher passa por transformações no decorrer do dia e assume novos papéis.
O sentido do texto está bem aí., impõe sua construção para os alunos, direcionando-
os para uma determinada forma de construir a referência. É preciso que se tenha
clareza, portanto, que a construção referencial é uma construção particular. Assim,
os alunos poderiam construir um mesmo referente de forma diversa daquela feita
pela professora, já que os referentes são entidades que construímos e
reconstruímos no desenvolvimento de qualquer enunciação. (CAVALCANTE,
2011).
Reiteramos que os referentes são entidades instáveis, dinâmicas, logo, a
professora deveria ter dado aos alunos a possibilidade de assumir suas estratégias
referenciais. Os objetos de discurso são construídos durante as interações e, por
isso, não são iguais para todos os sujeitos. É uma construção intersubjetiva. Koch
e Elias (2010) pontuam que
Assim, fica claro que os alunos agiram sobre o que leram e, diante da forma
como identificaram o projeto de dizer do autor do texto que analisaram, agiram,
construíram e reconstruíram o objeto de discurso segundo seu contexto
sociocognitivo.
A professora poderia ter discutido com os alunos a razão pela qual chamaram
(recategorizaram) o referente da maneira como o fizeram. Seria interessante,
também, questionar as escolhas que foram feitas pelos enunciadores da música a
fim de perceber como seu propósito comunicativo foi construído. Assim, poderiam
ser analisadas as marcas, as pistas selecionadas pelos alunos que autorizariam a
construção e reconstrução referencial, já que os sentidos são construídos,
intersubjetivamente, pelos leitores. Ao analisar o título, por exemplo, seria
importante sinalizar o referente mulher que já foi introduzido. A discussão poderia,
20
ainda, contemplar a maneira como o referente foi se recategorizando. Por exemplo,
no início da música, ao chamar a mulher de senhora, os enunciadores retomam o
referente e o recategorizam. O recurso para retomar o referente foi a anáfora direta.
Essa anáfora foi promovida e licenciada pelas pistas que estão no texto, ou seja, as
ações que a dona de casa executa em seu lar, razão pela qual foi chamada de
senhora. A professora precisaria atentar para a reconstrução que os alunos fizeram
da referência que foi construída no texto. É trabalho dos professores de Língua
Portuguesa chamar a atenção dos alunos para o modo como, somente através de
estratégias de referenciação, “é possível ir recuperando as ligações entre as
entidades que aparecem em um texto e que se relacionam a muitos de nossos
conhecimentos de mundo. É dessa maneira que se compreende o que o enunciador
de um texto quis (ou não) revelar”. (Cavalcante: 2007, p. 64).
Percebemos que, quando os alunos fizeram referência à entidade mulher,
reconstruíram esse referente e o denominaram como conformada e submissa. Fica
clara a interação que eles realizaram com o texto, o que entendemos como domínio
dos processos referenciais, mesmo não sabendo que os usam. Caberia, então, à
professora aproveitar essas escolhas feitas e chamar a atenção para as estratégias
de referenciação presentes no texto e as escolhidas pelos alunos, uma vez que isso
facilitaria a construção de sentidos. Porém, a maneira de nomear escolhida pelos
alunos não foi considerada pela professora, embora não tenha apontado nenhuma
pista linguística que os desautorizassem. Segundo Cavalcante (2011), “com base
em inúmeras pistas deixadas no conjunto do texto e nos conhecimentos que os
participantes da enunciação compartilham, o leitor, ou o receptor, ou, mais
apropriadamente ainda, o coenunciador, reelabora esses referentes [...]”. (p. 184).
Considerações finais
21
propósitos ou intenções dos enunciadores de um texto é analisar a função discursiva
de elementos referenciais, considerando que as formas como esses são
apresentados ou (re) apresentados pressupõem o modo de manifestação do
enunciador diante do que está sendo exposto.
O corpus analisado neste trabalho mostrou-nos que a professora, na
condução da aula de leitura, não considera o trabalho com a construção referencial.
Assim, constatamos que não priorizou aspectos envolvidos na construção da
argumentação do aluno, as estratégias referenciais que ele selecionou para
construir seus propósitos, pelo contrário, os alunos não tiveram a devida liberdade
para construir suas referencias. Entende-se, porém, que, ao elaborarmos um texto,
guiamos os co-enunciadores por processos referenciais, para os objetivos que
desejamos alcançar, mas que eles alcançaram a seu modo, conforme suas
experiências e sua visão das coisas.
Acreditamos e defendemos, neste artigo, que o professor precisa retomar os
textos produzidos pelos alunos a fim de gerar um momento de reflexão sobre as
escolhas que eles fizeram, observando a ocorrência de emprego das expressões
referenciais, atentando para as estratégias referenciais utilizadas para atender a um
propósito comunicativo específico e de que forma foram cognitivamente sendo
construídas até chegarem a se expressarem no tento por meio de uma forma
linguística.
Referências bibliográficas
22
KOCH, I. G. V. Introdução à Linguística Textual: trajetórias e grandes temas.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2.
ed. São Paulo: Contexto, 2010.
MARCUSCHI, L. A. Leitura como processo inferencial num universo cultural-
cognitivo. In: BARZOTTO, V. H. (Org.). Estado de leitura. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 1999. Cap. 5, p. 95-124.
______. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: DIONÍSIO, A. P.;
BEZERRA, M. A. (Org.). O livro didático de português: múltiplos olhares. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lucerna, 2003. Cap. 3, p. 48-61.
MONDADA, L.; DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização:
uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M. M.;
RODRIGUES, B B.; CIULLA, A. (Org.). Referenciação. São Paulo: Contexto,
2003. Cap. 01, p. 17-52.
23
BIA, BEL, BETA, DE ANA MARIA MACAHADO:
VOZES PLURAIS NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO
24
este fim específico. Em seguida passa-se à análise do texto de Ana Maria Machado,
articulando os conceitos teóricos expostos anteriormente.
25
No fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior é comumente
metade nossa, metade de outrem. Sua produtividade criativa consiste
precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa nova
palavra autônoma, em que ela organiza do interior as massas de nossas
palavras, em vez de permanecer numa situação de isolamento e de
imobilidade. (BAKHTIN, 1988, p. 146)
26
Esta tomada de consciência é elaborada, como já foi dito, em função de sua
natureza dialógica, do posicionamento ideológico da consciência e de suas
respostas ao discurso do outro. Para Bakhtin, este método dialógico tem origem em
“dois gêneros do campo do sério-cômico: o diálogo socrático e a sátira menipeia”
(Bakhtin, 2013, p. 124). O primeiro define-se por breves narrações, compostas por
discípulos de Sócrates, baseadas nas anotações de palestras proferidas pelo
pensador, impregnadas de uma cosmovisão carnavalesca, cujo traço constitutivo
fundamental é a concepção da natureza dialógica da verdade e do pensamento
humano: “A verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem;
ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de comunicação
dialógica” (BAKHTIN, 2013, p. 125, grifo do autor). Derivada do diálogo socrático, a
sátira menipeia converte-se em importante veículo da cosmovisão carnavalesca na
literatura, graças à sua “grande plasticidade externa e uma capacidade excepcional
de absorver os pequenos gêneros cognatos e penetrar como componente nos
outros gêneros grandes” (BAKHTIN, 2013, p. 136).
Um dos gêneros cognatos, segundo o filósofo, é a diatribe, ao lado do
solilóquio e do simpósio, todos determinados pelo seu caráter dialógico interno e
externo no enfoque da vida e do pensamento humanos. O autor define diatribe como
“um gênero retórico interno dialogado, construído habitualmente em forma de
diálogo com um interlocutor ausente, fato que levou à dialogização do próprio
processo de discurso e pensamento” (BAKHTIN, 2013, p. 137).
27
Reproduz-se em seguida uma das diversas apresentações da obra que se
pretende analisar. A opção pela transcrição de um resumo alheio justifica-se porque
é possível perceber aí, num texto de apresentação editorial, que não pretende
analisar a obra da perspectiva dos conceitos bakhtinianos, a relevância do diálogo
entre as várias vozes articuladas na narrativa.
Certo dia, num dos raros momentos em que sua mãe, não muito
organizada, resolve arrumar a casa toda de uma só vez e remexer cantos
há muito esquecidos, Isabel descobre um pequeno retrato de uma menina
muito bem arrumada que se parece um pouco com ela: é Bisa Bia, delicada
como uma boneca, de vestido de renda. A partir da descoberta desse
retrato, que Bel passa a levar consigo para todo o canto, inicia-se uma
convivência íntima entre a menina e sua bisavó, que ela nunca chegou a
conhecer – como diz a garota, sua bisavó passa a morar “dentro dela”, num
canto escondido do seu corpo, invisível para os outros.
Essa convivência, porém, será menos harmônica do que a princípio
se poderia supor: Bisa Bia não consegue aceitar que Bel use calças
compridas e brinque de pega-pega junto com os meninos. Uma outra voz
dentro de Bel, porém, irá fazer frente às posições de Bisa Bia: a de Beta,
bisneta de Bel, que nascerá num momento ainda distante do futuro, para
quem ser mulher não significa de modo algum ser frágil e bem
comportada... caberá à menina do presente encontrar o ponto médio entre
as duas vozes que brigam dentro de si e fazer suas próprias
escolhas.4(grifos nossos)
Observa-se que a principal característica da obra é a articulação, por
excelência, do embate de vozes sociais que se apresentam entrecruzadas. Da luta
entre as três consciências ideológicas é que emerge o processo de
autoconhecimento da personagem central. Cada uma das personagens – a menina
Isabel, sua bisavó Beatriz e sua bisneta Beta - traz para a narrativa um
posicionamento ideológico distinto, o que fatalmente provocará a tensão que
mobiliza a narrativa e obriga Isabel a definir seu posicionamento.
A diatribe é eleita como recurso formal para a condução da história e se
propõe sobretudo através de orações interrogativas dirigidas a um interlocutor
(ausente) do diálogo que se estabelece desde o início da narrativa:
Sabe? Vou lhe contar uma coisa que é segredo. Ninguém desconfia. [...]
Sabe por quê? É que Bisa Bia mora comigo, mas não é do meu lado de
fora. (MACHADO, 1990, p. 5)
28
A narradora Bel, contando sua própria história, a partir de seu próprio ponto
de vista, com focalização interna, convoca o leitor na medida em que o trata como
um confidente. No decorrer do texto, estas provocações ao interlocutor/leitor se
repetem, sempre mobilizadas pelo recurso das orações interrogativas. Algumas
delas são: “[Bisa Bia] acha que isso é roupa de homem, já pensou?” (p. 12); “Bisa
Bia não conhecia armário embutido, já imaginou?” (p. 22); “Como é que eu podia
ser bisavó sem saber?” (p. 45); “Foi por isso que resolvi contar o segredo que
ninguém desconfia, sabe?” (p. 56).
Percebe-se que pelo recurso da diatribre, do diálogo com um interlocutor
ausente, a personagem-narradora busca despertar o interesse do seu
interlocutor/leitor, ao mesmo tempo em que vai explicando seu comportamento e as
atitudes tomadas em relação às outras personagens, como no episódio em que
assovia para abafar as outras vozes, que constantemente lhe dão conselhos:
Com a minha música cantada bem alto, a voz dela fica mais baixinha e dá
para eu ir em frente fazendo o que quero, sem que ela se intrometa muito.
Mas um dia, eu estava com dor de garganta, no começo de uma gripe que
depois virou uma tragédia. Em vez de cantar, assoviei. Aí, bem, foi outro
deus-nos-acuda! Sabe o que foi que Bisa Bia disse? Foi isto:
- Meninas que assoviam e galinhas que cantam nunca têm bom fim. [...]
- E que mal tem assoviar? – desafiei. [...]
Pronto! Pra que é que ela foi dizer isso? Bem nesse momento parecia que
tinha uma voz dentro de mim, bem fraquinha, mas bem nítida, me dizendo
assim:
- Faça o que você bem entender! Não deixe ninguém mandar em você
desse jeito.
Era justamente o que eu queria ouvir. Aí nem hesitei. Xinguei [...] e saí pela
rua assoviando [...] ” (p. 30)
A narradora Bel dialoga com seu interlocutor ao perguntar “sabe o que foi que
ela disse?”. Ao mesmo tempo expõe pontos de vista divergentes, modos de ser
diferentes do seu, revelando o embate axiológico. Estão em jogo ao menos dois
posicionamentos ideológicos: o da bisavó de Isabel e o de sua bisneta, ambos
postos como vozes interiores, como outras consciências constitutivas da
personalidade da menina, que revelam novas possibilidades sobre as quais ela deve
refletir e que precisa apaziguar para poder posicionar-se.
O discurso da bisavó surge como representante do status quo, como a
“palavra autoritária” bakhtiniana, vinda do mundo exterior, que dita regras de
29
comportamento. É a partir do segundo capítulo que Isabel estabelece um diálogo
vivo com a bisavó, já falecida, da qual ela tem apenas uma foto antiga, que levava
consigo. Tal diálogo apresenta-se verossímil porque se propõe como a brincadeira
do amiguinho imaginário, tão comum às crianças. Na correria do pátio da escola, o
retrato cai e é levado pelo vento, fato que a menina interpreta como sendo um
recado da bisa, uma espécie de interação divertida:
Até parecia que Bisa Bia estava fugindo de mim. Ficava no chão e quando
eu ia chegando perto para pegar, lá se ia ela de novo... Depois parava outra
vez, como se estivesse me esperando, e quando eu passava perto,
levantava no vento e voava de novo. (p. 16)
Ao atribuir a uma fotografia uma característica de ser vivo, que corre, para,
espera, voa, sugere a interação como algo possível e natural. Daí para o início da
conversa, basta um pouco mais de imaginação: o retrato, guardado junto ao corpo
de Isabel, incomodava durante as brincadeiras de rua, o que foi novamente
interpretado pela garota como tentativa da bisavó de travar um diálogo, projeto que
logo se torna realidade:
Era como se Bisa Bia ficasse de vez em quando me dando umas cutucadas
para me dizer alguma coisa. E o que dizia e, aos poucos eu ia aprendendo
a entender, era mais ou menos assim:
- Ah, menina, não gosto quando você fica correndo desse jeito, pulando
assim nessas brincadeiras de menino. Acho muito melhor quando você fica
quieta e sossegada num canto, como uma mocinha bonita e bem
comportada. (p. 18)
30
claramente marcada pela narradora: “Nada disso tinha no tempo dela [Bisa Bia]” (p.
25); “[...] o pessoal do seu tempo também complicava demais, cada palavra
esquisita, chega!”(p. 27).
Beta, a futura bisneta de Isabel, surge mais adiante na narrativa, no quinto
capítulo, posicionando-se contra a palavra autoritária posta por Bisa Bia. Sua
primeira fala aparece quando Isabel está aborrecida com Bisa Bia, por causa de
uma de suas intromissões. Isabel se aproxima de um menino por quem está
apaixonada e a bisavó sugere que ela se faça de menina delicada e frágil: “Finge
que se machuca, sua boba, assim ele te ajuda. Chora um pouco para ele cuidar de
você...”(p. 34). Neste momento surge uma voz diferente, trazendo valores
diametralmente opostos: “Não finge nada. Se ele não gosta de você do jeito que
você é, só pode ser porque ele é um bobo e não merece que você goste dele. Fica
firme” (p. 34). Mais adiante, esta nova voz se identifica como bisneta de Isabel, de
nome Beta, representante de um tempo futuro, no qual as mulheres conquistariam
mais liberdade e também igualdade.
Diante do conflito estabelecido por várias formações discursivas em
confronto, Isabel é obrigada a posicionar-se, a formular e mobilizar os seus próprios
valores para decidir como se comportar. Neste primeiro momento, apesar de não
compreender direito a interferência de uma outra voz, ela resolve acatar o novo
ponto de vista que surge. O importante é que se acentua, a partir de então, o
processo de autoconhecimento da personagem central, que vai analisando o peso
de cada uma das visões de mundo reveladas pelo processo dialógico para construir
sua identidade, como se pode exemplificar pelo seguinte fragmento:
Impossível saber qual o palpite melhor. Mesmo quando eu acho que minha
bisneta é que está certa, às vezes meu coração ainda quer-porque-quer
fazer as coisas que minha bisavó palpita, cutum-cutum-cutum, com ele...
Mas também tem horas que, apesar de saber que é tão mais fácil seguir
os conselhos de Bisa Bia, e que nesse caso todos vão ficar contentes com
o meu bom comportamento de mocinha, tenho uma gana lá de dentro me
empurrando para seguir Neta Beta, lutar com o mundo, mesmo sabendo
que ainda vão se passar muitas décadas até alguém me entender. Mas eu
já estou me entendendo um pouco – e às vezes isto me basta. (p. 48)
31
argumentos de duas consciências independentes e em relação conflituosa. A bisavó
defende o bom comportamento e a bisneta prega a contestação, a atitude
combativa. Estes posicionamentos ideológicos são as balizas que orientam as
ações de Bel uma vez que, não se identificando totalmente nem com uma nem com
a outra, é obrigada a compreender melhor seus sentimentos e buscar o seu próprio
modo de ver o mundo.
Também é possível identificar aí a presença da palavra interiormente
persuasiva, no sentido de que diante desse embate Isabel mobiliza seu pensamento
em direção a uma nova palavra autônoma, a partir da qual ela tenta organizar sua
identidade, sempre levando em consideração as outras vozes que a constituem.
Assim, a consciência de Isabel se constitui em contiguidade com as outras
consciências presentes na narrativa.
É importante mencionar ainda a utilização do diálogo socrático,
manifestando-se como processo de construção da consciência. A verdade de Isabel
não se estabelece exclusivamente pela voz de sua bisavó ou de sua bisneta, mas é
do confronto entre essas vozes, somada às suas próprias reflexões, que ela pode
elaborar seu posicionamento, como se pode perceber no trecho a seguir:
Eu ainda estava meio chateada com ela [Bisa Bia] e fiz de conta que nem
tinha ouvido. Ela pediu desculpas:
- Meu benzinho, não fique aborrecida com sua bisavó porque eu deixei cair
seus lenços na escola. [....]
Continuei sem dizer nada. Mas aí ouvi bem mais forte aquela outra voz que
de vez em quando me falava e, desta vez, prestei bastante atenção:
- Bisa Bia, a senhora me desculpe, mas não é nada disso. Bel não precisa
fingir para ele. Aliás, ninguém tem nada que fingir para ninguém. [...]
- Isso mesmo – concordei, animada.
A voz continuou, agora falando comigo:
- E você aí, deixe de ser boba, perdendo seu tempo, espetando agulha
num pano, só para agradar um bobalhão que ri de você, só para bancar a
menininha fina. Para que fingir? Tem horas que não dá mesmo para fingir.
Largue isso e vá fazer alguma coisa útil.
Foi a vez de me chatear com ela:
- Não se meta onde não é chamada. Nem sei quem você é, e fica aí dando
palpite na minha vida. Pois fique sabendo que não estou perdendo tempo
nenhum, estou descobrindo que gosto muito de bordar, como gosto de
patinar, de ler, de dançar, de ver televisão, de ir à praia, de brincar na
calçada, de fazer um monte de coisas... e não estou fazendo isto para
agradar a ninguém. Só a mim mesmo. (p. 44) (grifos nossos)
32
Se por um lado Bel se vê pressionada a decidir se “concorda” com Bia ou
com Bel, por outro acaba descobrindo a relatividade das opiniões, ou seja, concorda
em alguns aspectos e discorda em outros. Percebe que não precisa “fingir” como
sugere Bia, mas que gosta de atividades que Beta considera “bobas”. Mais do que
isso, vai “descobrindo” seu próprio modo de ver o mundo e estabelece o que é
fundamental: agradar a si mesma. O ponto culminante desse processo é a
autoconsciência: “Eu sou eu, vivo no meu tempo, e quero fazer tudo o que tenho
vontade, viver minha vida, sacou, Bisa Bia? Eu sou eu, ouviu?” (p. 40) (grifos
nossos)
Por fim, cabe assinalar outra característica da personagem, a sua
inconclusibilidade, também ligada ao processo de descoberta da autoconsciência,
na medida em que a polifonia implica também em constante questionamento e
mudança, resultado do diálogo interno. Nota-se nas reflexões de Isabel ao final da
obra que ela mesma vai construindo sua história e propondo mudanças em processo
contínuo:
Vou descobrindo que dentro de mim é uma verdadeira salada (p.”49)
Bisa Bia discutindo com Neta Beta e eu no meio, pra lá e pra cá. [...]
Mudanças que eu mesma vou fazendo, por isso é difícil, às vezes dá
vontade de chorar. Olhando pra trás e andando pra frente, tropeçando de
vez em quando, inventando moda.[...].(p. 56) (grifos nossos).
Para fecho de ouro, Ana Maria Machado nos presenteia com a poética
imagem da trança de gente. Três partes que vão se cruzando pra lá e pra cá: a parte
de Bia, a de Bel e a de Beta. Ao se cruzarem, tornam-se invencíveis.
Considerações Finais
33
Estas vozes podem, num primeiro nível de significação, ser interpretadas
como pura fantasia, mas, como se trata de literatura, de elaboração estética, elas
permitem níveis mais profundos de significações, a começar pelo fato de que
engendram um processo de autoconsciência tanto da personagem quanto do leitor.
Este, ao perceber os caminhos pelos quais Isabel vai tomando consiência de si, por
extensão vai adquirindo elementos para enfrentar seus próprios processos de
autoconhecimento.
Isabel, a partir da consciência que tem do mundo e da diversidade de valores,
apresentados pelas vozes de Bia e Beta, bisavó e bisneta, respectivamente, vai
questionando seus caminhos, seu posicionamento diante do mundo, vai construindo
sua identidade, emancipando-se. Este é um dos motivos pelos quais Bisa Bia Bisa
Bel tem sido considerada um “modelo emancipatório e não apenas crítico ou até
mesmo eufórico de narrativa infanto-juvenil [...] o oposto de história de linha
comportamental e pedagógica” (CARVALHO, 2004, p. 83).
A existência de Bia e Beta são fundamentais para Bel definir seu modo de
“ser no mundo”, inserindo-se nele como mulher. A eleição da focalização interna e
o recurso da diatribe facilitam a aproximação com o público receptor e permitem a
adesão do interlocutor/leitor, sobretudo das leitoras, pela empatia.
Na obra, a emancipação feminina é discutida a partir dos embates axiológicos
entre vozes representantes de três momentos históricos distintos em relação à
atuação das mulheres na sociedade. Um primeiro momento de submissão, de
apagamento; o segundo caracterizado pela contestação, pelo protesto contra os
padrões impostos e pela luta por direitos e finalmente um terceiro momento, ainda
em construção, de afirmação, de autodescoberta, de consolidação da liberdade.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Prefácio e notas
Paulo Bezerra 5. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
34
BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 4:
Narrativa e resistência, p. 118-135.
MACHADO, Ana Maria. Bisa Bia, Bisa Bel. 8. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1990.
35
ASPECTOS DO CONTEMPORÂNEO NO LIVRO DE PHILIP ROTH,
O COMPLEXO DE PORTNOY
INTRODUÇÃO
36
tempos, deve haver uma intersecção entre tempos. O contemporâneo implica, ao
mesmo tempo, uma distância e uma proximidade com a origem, uma confluência
entre o presente e o passado, em que o presente constitui a parte “ainda não-vivida”
de um passado “já vivido” (AGAMBEN: 2010, 66).
A pintura Olympia, de Edouard Manet, é o exemplo usado por Augé (2012)
para ilustrar o contemporâneo. Quando foi exibida em 1865, a obra gerou protestos
em Paris. Os conservadores classificaram-na como imoral e vulgar, embora
houvesse uma clara referência ao consagrado quadro de Ticiano, Vênus de Urbino,
de 1538. Contudo, a obra de Manet tinha seus defensores, aqueles que, como Émile
Zola6, enxergavam para além de seu tempo e apreciaram o nu austero, eloquente e
natural, apropriado à tendência impressionista nas artes da segunda metade do
século XIX.
Transpondo as reflexões do contemporâneo para o âmbito da literatura, há
que se falar de Dostoiévski (1821-1881) cujas obras, segundo o filósofo russo
Mikhail Bakhtin (1981), não se enquadravam nas normas da literatura de sua época.
Mesmo sem utilizar o termo ‘contemporâneo’ para referir-se ao genial escritor,
Bakhtin (1981) identifica na obra de Dostoievski, assim como na prosa literária
europeia da segunda metade do século XIX, o surgimento de um novo gênero: o
romance. A relação entre o passado e o presente ou, em outras palavras, a
identificação de elementos culturais da Idade Média na prosa de Dostoiévski,
constitui a base da argumentação de Bakhtin (1981) para a concepção de uma
Teoria do Romance.
A relação entre tempos sugerida por Agamben (2010) pode ser identificada
na teoria de Bakhtin (1981), porquanto que todo gênero literário é novo e velho ao
mesmo tempo; todo gênero literário conserva as tendências mais estáveis e
simultaneamente renasce e renova-se a cada etapa da evolução7 da literatura. Com
a análise da obra de Dostoiévski, Bakhtin (1981) ratifica a teoria e a história dos
6 Émile Zola, por defender o trabalho de Manet, mereceu, do pintor, seu retrato, uma distinção concedida
apenas aos nobres, numa época anterior ao surgimento da fotografia. O escritor francês é representado no
estúdio de Manet, com a obra Olympia ao fundo.
7 O termo ‘evolução’ é usado no sentido de progressão, de prosseguimento, sem significar que a fase posterior
37
gêneros literários: todo gênero é novo e velho ao mesmo tempo; o gênero conserva
e reflete as tendências mais estáveis, ao mesmo tempo em que renasce e se
atualiza em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura. Para Bakhtin (1981),
os gêneros não desaparecem, mas transformam-se e fundem-se em novos gêneros,
revelando a relação do passado com o presente, característica do contemporâneo.
38
pronuncia-se apenas no último capítulo e por uma única frase. Classificada como
humor tipicamente judeu, a história é narrada em primeira pessoa e chegou a ser
comparada a uma stand up comedy, por razão das piadas e dos testemunhos que
apresenta, principalmente os relacionados à superproteção materna e à obsessão
do personagem por sexo.
Na abertura do livro já se encontra o primeiro elemento inovador: um verbete
explica o conceito de ‘complexo de Portnoy’, uma síndrome descrita pelo Dr.
Spielvogel em uma revista científica de psicanálise. O verbete é, fundamentalmente,
um resumo, uma interpretação sucinta da narrativa, e levanta suspeitas sobre uma
possível veracidade do conceito. As coincidências entre o personagem Portnoy e o
autor Philip Roth, que não passam despercebidas aos que apreciam detectar fatos
verídicos na ficção, parecem ser mais um recurso do perspicaz escritor para garantir
a polêmica e a estranheza da obra. Ambos de família judia, criador e criatura
nasceram no mesmo ano, na mesma cidade, moraram no mesmo bairro e
frequentaram a mesma escola. É possível que haja outros pontos em comum, mas
esta aproximação ficção e realidade, ou os aspectos autobiográficos desta obra, se
é que existam, não serão significativos para a foco desta discussão.
A narrativa de Portnoy é dividida em sete capítulos de extensões distintas
que variam desde uma única frase, como já mencionado, a um texto de mais de 85
páginas. Essa aparente falta de cuidado com a forma pode ser explicada pelo
conteúdo de cada parte: embora não existam referências claras, cada capítulo (com
exceção do último) pode ser interpretado uma sessão de análise, o que também
explica desenvolvimento temporal da narrativa. O narrador relata fatos e
comentários sobre sua infância, adolescência e vida adulta, intercalando
comentários, e por vezes transgredindo uma ordem cronológica.
O tema do livro, porém, é o que aproxima esta obra literária à pintura de
Manet. Enquanto no livro Portnoy narra, de forma natural e desvelada, detalhes de
suas aventuras amorosas e da frequente prática do onanismo (ou masturbação),
este talvez o ponto mais arrojado (ou intempestivo) e censurado do livro, no quadro,
o pintor francês retrata a nudez de uma jovem prostituta numa atmosfera erótica,
incomum, e, por isso, considerada vulgar aos padrões da época. A abordagem do
39
erotismo pode não ser semelhante em ambas composições artísticas, mas o fato de
terem constrangido ou desacomodado a crítica é que une estas duas obras e que
pode assegurar o seu caráter contemporâneo.
No primeiro capítulo, ou na primeira sessão de análise, o narrador-
personagem apresenta a sua família: a mãe, Sophie, uma mulher determinada, o
pai, Jack, um homem submisso que tem problemas de constipação intestinal, e a
irmã mais velha Hannah, a quem Portnoy despreza, considerando-a inferior em
inteligência e beleza. Ao falar da infância, o narrador já apresenta testemunhos do
excesso de zelo de sua mãe, uma característica da mãe judia, o que justifica que o
livro tenha sido (ou ainda seja) interpretado por alguns como uma piada de judeu.
No segundo capítulo, ao narrar fatos de sua adolescência, Portnoy aborda o
tema masturbação, prática que inicia na puberdade e mantém-se até o momento
atual da vida do protagonista. Aludindo e comparando-se ao personagem
Raskolnikov, de Dostoiévski, Portnoy preocupa-se em não deixar rastros do ato que
considera criminoso: a masturbação. “Sou o Raskolnikov do autoerotismo – a
pegajosa prova do crime está em todos os lugares” (ROTH: 2013,23). Portnoy
contesta a forma repressora pela qual foi educado, temendo sempre a uma
represália divina ou cedendo às chantagens maternas.
A franqueza do personagem ao relatar episódios íntimos e suas relações
familiares, até mesmo questões edipianas ainda na infância e na pré-adolescência,
são pontos que podem ser estudados sob a ótica de Bakhtin (1981). Embora a
prática clínica da psicanálise, nos anos 60, já seja conhecida e estimada nos meios
intelectuais, os leitores que reprovam a obra de Roth fixam-se apenas nas partes
consideradas pornográficas ou cômicas, desprezando os aspectos inovadores da
narrativa: nos anos da contracultura e dos movimentos pela igualdade e liberdade
sexual, o personagem de Roth proporciona senão uma identificação, ao menos um
reconhecimento dos conflitos por que passa um jovem adulto de classe média,
dividido entre a influência dos pais e seus anseios em meio a uma recém-
conquistada liberdade por conta da idade e do movimento hippie.
Assim como no romance de aventura analisado por Bakhtin, em que o
elevado se funde com o grotesco, o herói (ou anti-herói) do livro de Philip Roth
40
apresenta, em meio a referências sobre Dostoieviski e Kafka, referências essas que
permitem um mapeamento das leituras do protagonista, os anseios sexuais de
Portnoy, que parecem reduzi-lo à escória humana. Alex Portnoy não está
engessado à imagem de jovem americano judeu bem-sucedido, mas esta roupagem
vincula-se e ele conforme a situação em que se encontra. Segundo Bakhtin (1981),
no romance, a roupagem deve adaptar-se ao herói, não havendo uma identidade
fixa ou uma posição sólida, porém várias roupagens de acordo com as diferentes
situações. Essas roupagens, ou representações, são desveladas nas sessões de
análise de Portnoy.
No terceiro capítulo, o personagem fala do relacionamento entre judeus e
não-judeus, e narra a história de um primo que, antes de ser morto na II Guerra,
apaixonara-se por uma gói o que provocou o descontentamento de toda a família.
“Quando Heshie morreu na guerra, a única coisa que as pessoas conseguiam dizer
a minha tia Clara e ao meu tio Hymie, para de algum modo atenuar o horror, para
consolá-los um pouco era: “Pelo menos não deixou filhos góis para vocês” (ROTH:
2013,56).
Neste capítulo, podem ser indicados vários exemplos do diálogo socrático ou
da sátira menipeia (carnavalização na literatura), dois elementos do gênero
romântico defendidos por Bakhtin (1981). Os métodos do diálogo socrático, a
síncrise e a anácrise, são usados pelo personagem principal, Alex Portnoy, que
reflete sobre seu comportamento, sobre a verdade de suas convicções e de seus
sentimentos. A provocação da palavra pela palavra que encadeia o discurso do
narrador (a anácrise) caracteriza o diálogo no limiar que leva o protagonista a revelar
questões profundas da personalidade e do pensamento. No entanto, é na raiz
carnavalesca, no elemento cômico, na aproximação entre o elevado e o grotesco,
que a obra de Philip Roth parece ter sido mais apreciada.
No capítulo quarto, o escritor utiliza pela primeira vez nesta obra um recurso
que será usado com mais frequência até o final da narrativa: letras maiúsculas como
marca de crítica, repulsa ou fúria. Dentre os vários comentários que faz sobre seus
pais, Portnoy aponta: “[...] além disso, o fato de que nada nunca era apenas nada,
mas sim sempre ALGUMA COISA, de que até mesmo o episódio mais corriqueiro,
41
podia se transformar, sem aviso prévio, em uma TERRÍVEL CRISE [...] (ROTH:
2013, 85).
Neste mesmo capítulo, o mais longo da obra, Portnoy conta sobre o suicídio
de um rapaz judeu, seu vizinho, e da incompreensão de todos, principalmente da
mãe repressora e dominadora do rapaz. Embora o protagonista critique os shows
de stand up comedy, nomeando o humoriata de vulgar palhaço de boate, Portnoy
não deixa de contar uma piada de judeu que representa o quanto os pais, mais
precisamente a mãe, orgulha-se de seu filho: “Socorro, meu filho médico está se
afogando!” (ROTH: 2013,98). A pressão dos pais para que Portnoy se case é mais
um dos conflitos do personagem, que neste capítulo quarto, revela sua aversão ao
casamento e introduz a personagem Mary Jane Reed, sua última namorada, motivo
que levou Portnoy a procurar um psicanalista.
No quinto capítulo, Portnoy conta que lê Freud e procura analisar seu
relacionamento com uma moça não-judia, muito sedutora, porém com um nível
intelectual muito inferior ao seu. A namorada também pressiona Portnoy a casar,
tendo em vista que o relacionamento já dura dez meses. O personagem conta
detalhes dos encontros com a namorada e fala sobre o rompimento da relação na
Europa, após o casal ter consumado uma fantasia sexual: uma relação a três. A
consequência deste rompimento, acredita Portnoy, é a causa de sua impotência,
provavelmente uma maldição da namorada.
No capítulo seis, o protagonista relata a sua ida a Israel, “onde todos são
judeus” (ROTH: 2013,219). Portnoy reflete sobre política e religião, mas sua grande
preocupação é não conseguir manter uma ereção na Terra Prometida. A narrativa
intensifica-se ao longo deste capítulo, o que pode ser visto pelo uso de letras
maiúsculas, bem como pela extensão das frases e pela seleção das palavras.
Portnoy relata sua tentativa frustrada de relacionamento com uma moça israelense
e representa (ficção dentro da ficção) seu julgamento no tribunal por ter rompido
com namorada. No final deste capítulo, ou desta sessão de psicanálise, Portnoy
finalmente vê-se curado e ejacula, o que é identificado pela fala inusitada:
42
Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhh!!!!!
(ROTH: 2013, 233)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos,
2010.
AUGÉ, Marc. Para onde foi o futuro? São Paulo: Papirus, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras
de Dostoiévski. In: ______ Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro:
Forense Univ., 1981. P. 78-155.
ROTH, Philip. O complexo de Portnoy. Trad. Cezar Tozzi. 4. ed. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 1971.
ROTH, Philip. O complexo de Portnoy. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
43
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS PARA DOCENTES E DISCENTES DO ENSINO
DE LÍNGUA ESTRANGEIRA, LITERATURA E CULTURA
Introdução
8
Mestranda em Comunicação e Inovação - Universidade Municipal de São Caetano do Sul, doutoranda em
Educação Humanidades e Artes (Universidade Nacional de Rosário – UNR), Graduada em Letras Port-Esp,
Especialista em Língua Portuguesa e Literatura e Ensino de Espanhol para Brasileiro PUC/FCE. Professora do
Ensino fundamental e Médio no Colégio Cristo Rei e na Pós Graduação da Faculdade de Conchas – FACON.
44
Partilhando desse pensamento, Araújo, Costa e Costa (2008, p. 29)
destacam que:
Por outro lado, da mesma forma que a arte, como o cinema, a música e a
literatura, as histórias em quadrinhos são expressões culturais populares capazes
de promover a cultura, comunicação e interação do indivíduo com o meios e com o
outro, devido seu caráter multilíngue. Nesse sentido, em se tratando do ensino de
línguas por meios das Histórias em Quadrinhos (HQs), é de suma importância que
o educador possibilite ao estudante o contato com os mais variados tipos de gêneros
textuais, bem como suas particularidades na língua (PCN - BRASIL, 1998). É
importante ademais, entender que os textos organizam-se sempre dentro de certas
restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam
como pertencentes a este ou àquele gênero. Desse modo, a noção de gênero,
constitutiva do texto precisa ser tomada como objeto de ensino, assim, o professor
pode explorar, dentre as diversas possibilidades de interpretação de uma mesma
obra clássica, o que mais lhe for pertinente, como:
45
obra discutida. Essa atividade promove a interação e inibe a timidez, uma vez que
o educador pode intervir nos papeis que cada aluno representará.
46
Tal afirmação nos faz crer que o êxito do trabalho com HQs está ligado à
dedicação, organização e objetivo para colocar em prática o trabalho proposto. Por
essa razão, LIBÂNEO, (1994, p.33) enfatiza que “é tarefa do professor, preocupar-
se com metodologias, recursos e estratégias que, articulados com as atividades em
sala de aula tornem possível o crescente processo de aprendizagem dos alunos”.
Em outras palavras, é facultativo que o educador entenda que o ato de ensinar e
aprender caminham juntos, e são importantes para sua prática, por serem
promotores do saber.
Sob essa perspectiva, e devido as Histórias em Quadrinhos serem um meio
de comunicação multimodal, composta pelos signos visuais e linguísticos, estas
tornam-se excelentes recursos pedagógico, contribuindo para o desenvolvimento da
autonomia do aluno, incentivando o gosto pela leitura e cultura da nova língua.
Conclusão
47
Levando-se em consideração o perfil do atual aluno, em meio a facilidade de
se comunicar ou interagir com as diversas mídias, cabe ao professor recorrer à
novas propostas de ensino e aprendizagem, para despertar no estudante o
interesse pelo conhecimento, de maneira que este possa explorar as destrezas
comunicativas do novo idioma, através da proposta com as HQs. Nesse sentido, o
presente escrito aponta que o universo dos quadrinhos é extenso e rico em
possibilidades de trabalho ligados ao ensino, contudo, faz-se necessário despertar
a criticidade do professor-aluno, objetivando prepará-los para recorrer as múltiplas
linguagens das HQs, explorar a interdisciplinaridade, a literatura, as tipologias
textuais propostas, além de questões ligadas à cultura e normas da língua em
estudo.
Referências
48
GRAMMATICA ANALYTICA E GRAMMATICA DESCRIPTIVA, DE MAXIMINO
DE ARAÚJO MACIEL: UMA ABORDAGEM DE RECURSOS EXPRESSIVOS
(SEMIOLOGIA)
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa Corpus de textos Gramaticais
da Língua Portuguesa (CTGLP), que tem como objetivo estabelecer nova
representação da história da terminologia linguística portuguesa e brasileira, tanto
sob um ângulo conceitual e terminológico quanto lexical e etimológico. Assim, sob
coordenação da Profa. Dra. Marli Quadros Leite, apresentamos a descrição das
duas gramáticas de Maximino de Araújo Maciel, a Grammatica Analytica, cuja
primeira edição — com a qual trabalhamos —, publicada no Rio de Janeiro em 1887,
foi muito modificada e recebeu uma segunda edição, publicada em 1894,
denominada Grammatica Descriptiva — e que pode ser considerada uma outra
gramática —, uma “terceira em 1904, aumentada com muitas notas e resumos
sinóticos; a quarta em 1910, com um ‘Breve retrospecto sobre o ensino da Língua
Portuguesa’, no final do volume, que continuou a aparecer nas demais edições”
(MORAES, 1977, 165); aqui, utilizamos a edição de 1931, a décima segunda.
Devido à natureza do projeto, seguimos nas Fichas a grafia tal qual aparece
nos textos originais. Também, é mister dizer que nem todos os Tópicos das Fichas
foram transcritos, inclusive porque o trabalho não está concluído, e que, por se tratar
de obras do mesmo autor, sempre que possível, procuramos não repetir Tópicos.
9
Pesquisador da CAPES e Pós-doutorando pela Universidade Cruzeiro do Sul vinculado ao Grupo de Estudos
Estilísticos, Doutor em Letras Clássicas pela FFLCH-USP, Graduado em Letras-Português/Latim pela FFLCH-
USP, Licenciado em Letras-Português pela FE-USP. Membro do GT Gramáticas: história, descrição e discurso.
Parecerista da Revista Estudos Linguísticos do GEL (SP), da Revista Guavira Letras (MS) e da Revista
Eletrônica Simbiótica (ES).
49
2. GRAMMATICA ANALYTICA
Tópicos da Ficha:
2.1 Biografia do autor: Sergipano de Rosário do Catete, onde nasceu em 20 de abril
de 1866, Maximino de Araújo Maciel faleceu no Rio de Janeiro em 2 de maio de
1923. Filho de João Paulo dos Santos e Maria Clara dos Santos de Araújo Maciel,
fez os estudos preparatórios no Ateneu Sergipense; na Faculdade de Direito do Rio
de Janeiro (1890 a 1894) e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1896 a
1901), graduou-se em Direito e Medicina respectivamente; filósofo, poeta e
pedagogo, exerceu a medicina e lecionou no Colégio Militar, para o qual foi
nomeado catedrático de Português em 1893; escreveu sobre botânica, agronomia,
medicina, zoologia, química, filologia. São obras do autor: Philologia Portugueza –
ensaios descriptivos e históricos; Grammatica Descriptiva; A Taxinomia social e seu
autor (collecção de artigos publicados no Debate); Lições de Botanica geral,
professadas no Gymnasio Nacional; Noções de Agronomia – Lições
complementares ao estudo de Botanica; As proporções do individuo humano –
These inaugural aprovada com distincção; Lições elementares de Lingua
Portugueza; Discurso na distribuição de prêmios aos alunos do Collegio Militar em
1903; Valeur des diferentes méthodes de traitement dans la tuberculose – Mémoire
présenté au Congrés International de Paris; La médication urique dans la
tuberculose (Revista Medico-Cirurgica do Brasil); L’illusion des arsénicaux dans la
tuberculose (Revista Medico-Cirurgica do Brasil); Elementos de Chimica geral;
Elementos de Zoologia, de acordo com a fauna brasileira (GUIMARÃES, 1996),
(LEITE, 2012), (MACIEL, 1931).
2.2 Título da obra: Grammatica Analytica – baseada nas doutrinas modernas.
2.3 Edição utilizada: 1. edição, 1887, Rio de Janeiro: Typ. Central.
2.4 Volumetria: 316 páginas [1.480 caracteres por página] acrescidas de: fólio
contendo título; fólio, folha de rosto; fólio, dedicatória; fólio, dedicatória; 6 páginas
de Introdução; fólio contendo plano synoptico; fólio, Errata.
2.5 Número de caracteres: 476.000 caracteres, aproximadamente.
2.6 Metalinguagem: Português com forte propensão ao grego para nomear os
fenômenos linguísticos — nomeação que se dá sob o contato do autor com as
50
ciências naturais, a partir das quais muitos nomes de sua terminologia são tomados
de empréstimo às ciências biológicas.
3. GRAMMATICA DESCRIPTIVA
Tópicos da Ficha:
3.1 Acesso ao texto: Bibliotecas; Dedalus – Banco de Dados Bibliográficos da USP.
3.2 Título da obra: Grammatica Descriptiva – baseada nas doutrinas modernas.
3.3 Anotações sobre o título: Maximino fez muitas modificações desde a 1ª edição,
mais sucinta, da gramática; aqui, faremos alguns apontamentos que demonstram
essas mudanças. Os assuntos tratados tanto naquela quanto nesta — phonologia,
lexiologia, syntaxologia — foram abordados com mais extensão no segundo livro,
mais informações, mais tópicos sobre o mesmo assunto, exemplos: acentuação,
pronomes, adjetivos, verbos; vários termos são grafados de modo diferente: naquela
“lexeologia”, “taxéonomia”, nesta “lexiologia”, “taxinomia”; termos diferentes para
tratar do mesmo assunto: naquela “distribuição das raizes”, nesta “estructura das
raizes”; naquela, adjetivos aparece como “palavras modificativas”, nesta como
“adjectivos”; naquela, ao discorrer sobre “taxéonomia” o autor trata da
“kampenomia”, termo a que não faz menção quando discorre sobre os verbos nesta
edição.
Algumas outras diferenças: na 1ª edição, o tópico Phonologia é discutido em
31 itens (phoneticas e phonemas são tratados juntos), nesta, em 46 (tratados
separadamente); Lexeologia, na 1ª, 100 itens, nesta, Lexiologia e suas subdivisões,
154; Syntaxologia, naquela, 55 itens, nesta, Syntaxologia e suas subdivisões, 106
itens; esta edição apresenta o tópico ‘Modelos de analyse syntactica’, discutido em
4 itens, que a 1ª edição não traz; o mesmo se pode dizer do Appendice ‘Breve
retrospecto sobre o ensino da Lingua Portugueza’.
Nesse ‘Breve retrospecto...’, “encontramos um elucidativo panorama sobre o
ensino de Língua Portuguesa, com os principais estudiosos do século XIX, cujas
obras muito auxiliaram nosso processo de gramatização” (FÁVERO; MOLINA, 2006,
183). PLANO SYNOPTICO – GRAMMATICA: Phonologia (Phonetica,
Phonographia, Prosodia, Orthographia), Lexiologia (Morphologia, Taxinomia,
51
Ptoseonomia, Etymologia), Syntaxilogia (Relacional, Phraseologica, Literaria),
Semiologia (Semantica, Tropologia).
3.4 Tipo da obra: Analítica, descritiva ou expositiva, prescritiva.
3.5 Título indexado: Gramática descritiva, geral, particular.
3.6 Edição utilizada: 1931, Rio de Janeiro, 1º milheiro da 12ª edição, augmentada e
refundida.
3.7 Volumetria: 498 páginas [1.600 caracteres por página aproximadamente]
acrescidas de: fólio título da obra e Obras do Autor [I-II]; fólio folha de rosto e
assinatura do autor [III-IV]; fólio Prologo da 2ª edição [V-VI]; fólio Algumas palavras
sobre a 3ª edição [VII-IX]; fólio Continuação e Plano Synoptico [IX-X]; 10 páginas de
Appendice, 5 páginas de Indice das materias.
A folha de rosto apresenta o nome Lingua Portugueza seguido do título
Grammatica Descriptiva, baseada nas doutrinas modernas pelo Dr. Maximino
Maciel, natural de Sergipe, formado em medicina e direito, professor cathedratico
do Collegio Militar, membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro,
do Instituto Histórico e Geographico de Sergipe. “Lex sum sermonis, linguarum
regula certa, qui me non dedicit, caetera nulla petat.” Bacon. Prologo da 2ª edição
[V], Algumas palavras sobre a 3ª edição [VII-IX] [e sobre edições subsequentes].
3.8 Número de caracteres: 837.200 caracteres aproximadamente.
3.9 Edições e difusão: A primeira edição desta gramática foi publicada no Rio de
Janeiro em 1887 com o título Grammatica Analytica; foi muito modificada e recebeu
a segunda edição “em 1894; a terceira em 1904, aumentada com muitas notas e
resumos sinóticos; a quarta em 1910, com um ‘Breve retrospecto sobre o ensino da
Língua Portuguesa’, no final do volume, que continuou a aparecer nas demais
edições; a quinta, sem data; a sexta, aumentada e refundida, em 1916; a sétima,
em 1918; a oitava, última em vida do autor, em 1922; e sucessivamente, edições
póstumas, a nona em 1925, a décima em 1926, a décima primeira em 1928 e a
décima segunda, provavelmente a última, em 1931.” (MORAES, 1977, 165)
3.10 Sumário da obra: Noções PROPEDEUTICAS [I], Phonologia e sua
subdivisão. Phonetica [5], Phonemas [6], Phonographia [22], Historico das letras
[31], Prosodia [33], Quantidade prosodica [33], Accentuação prosodica [35],
52
Accentuação tonica [36], Accentuação dupla [41], Accentuação perispoména ou
circumflexa [41], Metaplasmos [44], Systema etymologico [56], Systema phonetico
[57], Systema mixto [58], Regras orthographicas [72], O Aspecto graphico do
vocabulo [74], Lexiologia e sua subdivisão. Lexiologia [79], Morphologia: raiz e
affixos [80], Formulas dos themas [81], Estructura das raizes [82], Estructura do
vocabulo [85], Funcção dos prefixos [93], Prefixos latinos [94], Prefixos gregos [ 97],
Fórmas cognatas [98], Raizes latinas [99], Fórmas analogas [102], Homonymos:
homographos, homophonos [102-103], Taxinomia [116], As categorias
grammaticaes: substantivo [116], Expressão substantiva [121], Expressão
personativa [122], Adjectivo [123], Pronome [131], Verbo [135], Personalidade do
verbo [138], Pronominalidade do verbo [140], Verbos irregulares: fortes, fracos e
graphicos [142], Auxiliares participaes [144], Verbo redundante [145], Preposição
[149], Adverbio [150], Conjuncção [152], Interjeição [156], Ptoseonomia [157],
Genero dos nomes [158], Genero por heteronymia [162], Flexão numerica [168],
Pluraes divergentes [170], Fórmas sigmaticas [172], Augmentativo organico [176],
Augmentativo personativo [177], Augmentativo inorganico [177], Diminutivos
organicos [178], Diminutivos eruditos [179], Diminutivos personativos [180], Funcção
dos grãos [180], Comparativos inorganicos [182], Comparativos organicos [183],
Superlativos [183], Superlativos relativo [184], Superlativos organicos [184],
Superlativos divergentes e convergentes [186-187], Verbos depoentes [193], As
conjugações anomalas: Haver, ser, ir [200], As conjugações anomalas: ter, vir, estar
[204], Irregulares graphicos e suas leis [208], Irregulares fracos e suas leis [210],
Irregulares fortes e suas leis [212], Etymologia [214], O caso lexiogenico [224], O
sigmatismo do plural [224], Fórmas divergentes [225], Divergentes estrangeiras
[229], Divergentes personativas [231], Fórmas convergentes [232], Formação
vernacula [233], Derivação vernacula [234], Derivação organica [235], Derivação
inorganica [236], Lexiologia dos substantivos proprios. A onomastica externa
[242], A onomastica interna [243], Lexiogenia dos adjectivos [243], Lexiogenia dos
pronomes [245], Lexiogenia das preposições [246], Lexiogenia dos adverbios [247],
Lexiogenia das conjuncções [247], Lexiogenia da conjugação [248], Lexiogenia dos
verbos ser e ir [255], Constituição do lexico [257], Linguas subsidiarias da
53
portugueza [258], Linguas subsidiarias [259], Alterações lexicas: neologismos [261],
Arcaismos irreversiveis [267], Arcaismos reversiveis [269]. Syntaxologia e sua
subdivisão. Syntaxe relacional [275], Concordancia semiotica [316], Artigo definito
[318], Artigo indefinito [319], Syntaxe do verbo [345], Syntaxe de preposição [349],
Syntaxe do adverbio [350], Syntaxe das conjuncções [352], Syntaxe da interjeição
[353], Syntaxe phraseologica [354], Phraseologia [354], Proposição interferente
[374], A transpredicação do verbo [407], Syntaxe literaria ou estylistica [420], Figuras
de syntaxe [423], Polysyndeto, partículas decorativas ou hypersyntacticas [430],
Semiologia. Semantica [468], Tropologia [477], Technica. Notações syntacticas
[485], Notações objectivas [486], Notações subjectivas [488], Notações distintivas
[489], Modelos de analyse syntactica. Proposições simples [491], Analyse integral
[496].
3.11 Objetivos do autor: Impregnado pelo espírito positivista característico do século
XIX, o Dr. Maximino Maciel, colocando em prática sua experiência como professor
catedrático de Português no Colégio Militar, participa do movimento de
gramatização brasileira iniciado por um grupo de linguistas do Colégio Pedro II que
atuava no sentido de distanciar o Brasil de Portugal, ao considerar a dinamicidade
da língua portuguesa daqui à luz das doutrinas modernas. Movido por esse espírito
e sobejamente influenciado pelos estudos de ciências naturais — note-se que
Maximino escreveu “quatro títulos de língua portuguesa e sete de ciências naturais,
indo de botânica geral, agronomia, zoologia e química a artigos sobre o tratamento
da tuberculose (MORAES, 1997, 166) — o autor busca aplicar à análise linguística
o rigor de métodos dessas ciências. Pode-se observar facilmente o empenho do
autor em seu propósito quando se constatam as diferenças nas edições que se
seguem.
3.12 Partes do discurso: Substantivo, adjectivo, pronome, verbo, preposição,
adverbio, conjuncção, interjeição, artigo. Há que se observar o fato de que o
‘numeral’ aparece como uma subclasse do adjetivo: Adjectivos numeraes.
3.13 Inovações terminológicas: Com frequência, Maximino Maciel recorre a radicais
gregos para criar termos com os quais nomeia os fenômenos linguísticos que visa
a classificar, por exemplo: perispómenos, properispmenos, syntaxologia, lexiologia,
54
ptoseonomia, sigmatismo, hypersyntactica etc., além de termos em português:
expressão personativa, auxiliares participaes, augmentativo organico, augmentativo
personativo, derivação inorganica, concordancia semiotica, transpedicação do
verbo etc. Maximino dá o nome de Technica ao tópico em que discorre sobre
‘pontuação’.
3.14 Corpus ilustrativo: Alguns exemplos são literários, como Garret, Camões,
Bernardes, G. Dias, P. Vieira etc., outros são tomados da doutrina, por exemplo
quando, ao falar da ‘Concordancia semiotica’, cita João de Barros (MACIEL, 1931,
316). Noutras passagens, não há indicação de quem sejam, o que sugere serem de
cunho próprio. Nesta edição, diferentemente do que ocorre na 1ª, os autores são
citados no rodapé.
3.15 Indicações complementares: Maximino Maciel antecipa critérios que a moderna
linguística iria usar, por exemplo, quando aponta “‘conjunção é a palavra conectiva
destinada a estabelecer uma relação entre duas proposições completas ou
incompletas’ (1887, p. 103) e ‘conjunções coordenativas são aquelas que apenas
conjunctam e relacionam orações, aproximando-as mutuamente’ (1887, p. 104), que
altera depois para ‘conjunção é uma palavra invariável que liga duas proposições e
às vezes duas palavras.’ (1922, p. 153) [...] ‘Insistimos em admitir a ligação de
palavras por algumas conjunções coordenativas, pois a definição deve abranger o
todo definido.’ O que significa que para ele a primeira definição é insatisfatória,
porque traz implícita a idéia de que mesmo a coordenação entre palavras pressupõe
o desdobramento da oração em que haja termos coordenados, vistos como
representantes de uma estrutura elíptica, como fazia a gramática tradicional
inspirada na lógica e como propõe hoje a gramática gerativa” (MORAES, 1997, 170).
Com efeito, é possível notar por essas passagens — e por outras mais —
que Maximino Maciel, já na primeira edição de sua gramática, não se mostra
satisfeito com a definição de conjunção — insatisfação que persiste nas edições
subsequentes —, revelando grande lucidez em suas observações. Essa lucidez é
percebida por Módolo (2004, 55) quando, ao discorrer sobre ‘correlação’ em Oiticica
(1952), faz o seguinte comentário “Segundo ainda comunicação pessoal feita pelo
Prof. Bechara, Oiticica foi discípulo do gramático Maximino Maciel. Assim, haveria
55
um compartilhamento de algumas análises linguísticas entre Maciel > Oiticica >
Rocha Lima — a este propósito, também em comunicação pessoal, o Prof. Ricardo
Cavaliere assevera que tal compartilhamento seria entre Maciel > Otoniel Mota >
Rocha Lima. Seria a correlação sintática uma delas?”. Em suma, a percepção aguda
de Maximino Maciel sobre o problema da ‘correlação’ permitiu-lhe elaborar
questionamentos que hoje, mais de cem anos depois, ainda não foram totalmente
dirimidos.
3.16 Influências de obras anteriores: A influência de outros autores revela-se tanto
nas homenagens feitas pelo autor na dedicatória quanto nas citações feitas ao longo
da obra. Na dedicatória: Sylvio Romero, Pacheco Junior, Alfredo Gomes, Castro
Lopes, Júlio Ribeiro, João Ribeiro, Fausto Barreto, Carlos de Laet, Adolpho Coelho,
Theophilo Braga. No texto: Augusto Freire da Silva (1906), Max Müller (1879); Franz
Bopp (1833,1852), Michel Bréal (1904); Arsène Darmesteter (1891-1897, 1885),
Abel Hovelacque (1882); Victor Henry (1894); Émile Egger (1880).
Algumas passagens — extraídas de Fávero & Molina, 2006 — que confirmam
influências recebidas: “Como já mostrou Cavaliere [2000, 242], a influência de
Darmesteter é marcante entre os gramáticos da época (Maximino Maciel, João
Ribeiro, Alfredo Gomes, Eduardo Carlos Pereira e outros) e é citado freqüentemente
por Maximino” (178); “Maximino não consegue desligar-se completamente da
herança logicista; assim, divide a gramática em geral e particular” (178); “Que a
fonologia seja apresentada como autônoma não causa estranheza porque assim já
estava em Adolfo Coelho e em Epifânio. O que é digno de nota é a semiologia,
‘tratado da significação das palavras em todas as suas manifestações’ (p. 467), pois,
se, contemporaneamente a Bréal, Pacheco da Silva já havia escrito ‘Noções de
Semântica’, obra publicada postumamente em 1903, é a primeira vez que ela
aparece minuciosamente tratada” (179); “Chama a atenção a atribuição das funções
ao pronome ‘se’ em que, exemplificando com Rodrigues Lobo, considera poder
exercer o ‘se’ a função de sujeito indeterminado, isto numa época de purismo
exacerbado, provocador de debates, réplicas e tréplicas” (183).
3.17 Influência exercida: A primeira edição da obra foi muito criticada, razão por que
o autor a reformulou completamente e a reeditou em 1904. A edição reformulada
56
teve grande aceitação e foi adotada em colégios importantes pelo Brasil. Além disso,
é de se notar o fato de que, por exemplo, sistematizou os estudos do significado das
palavras, conferindo caráter de doutrina à sistematização da semiologia. Maximino
tem seu lugar na história da gramaticografia novecentista com uma nota de
individualidade, graças a sua minuciosa partição dos estudos gramaticais
influenciados pelas ciências biológicas (FÁVERO; MOLINA, 2006).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Naturalmente, as versões das Fichas que apresentamos são abreviadas, mas
suficientes para que se tenha uma ideia aproximada das obras; de fato, o simples
cotejo da Volumetria de uma e de outra gramática, por exemplo, já sinaliza quão
diferentes elas são. Também, vale mencionar que o formato em Tópicos e o caráter
informativo das Fichas, por vezes, limitam nossa explanação, todavia, acreditamos
que os resultados vêm sendo bem satisfatórios e que, por conseguinte, o Projeto
tende a prosperar.
Maximino era um homem do seu tempo, razão por que os estudos
gramaticais que desenvolveu são muito influenciados pelas ciências naturais,
graças ao cientificismo do século XIX — a forte propensão ao grego e o empréstimo
às ciências biológicas para nomear os fenômenos linguísticos comprovam isso. Na
busca por aplicar à análise linguística o rigor de métodos dessas ciências, acabou
por ser o pioneiro na ordenação dos estudos do significado das palavras, conferindo
caráter de doutrina à sistematização da semiologia, que define como sendo “o
tratado da significação das palavras em todas as suas manifestações” (MACIEL,
1931, 467) e divide em semântica e tropológica, entrando nos domínios da Retórica
Clássica e, por conseguinte, da Estilística.
5. REFERÊNCIAS
BASTOS, Neusa Barbosa; PALMA, Dieli Vesaro (Org.). História entrelaçada 2: a
construção de gramáticas e o ensino de língua portuguesa na primeira metade do
século XX. São Paulo: IP-PUC; Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.
57
GUIMARÃES, E. História das idéias lingüísticas no Brasil. Campinas, 1996.
Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/hil/publica/relatos_03.html
58
A PROPAGAÇÃO DO SERTÃO:
A VOZ E A LETRA EM PATATIVA DO ASSARÉ
Introdução
10
Doutorando em Comunicação e Semiótica Pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bolsista
CAPES.
59
O Poeta e a Memória
Isso para dizer do papel da voz e do seu aspecto expansivo, seu caráter
portador de memória. “A memória, em primeiro lugar, pela presença de alguns textos
constantes e, em segundo lugar, pela unidade dos códigos ou por sua invariância
ou pelo caráter ininterrupto e regular de sua transformação” (LOTMAN, 1996, 157).
Memória que tem que ver com o tecido e patrimônio da cultura, que por sua vez é
entendida não como um depósito de informações, mas “um mecanismo organizado,
de modo extremamente complexo, que conserva as informações, elaborando
continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatíveis. Recebe as coisas
novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-as para outros sistemas de
signos” (Cf. FERREIRA, 2004, 73)
Considerando o lugar da voz ou de uma relação de complementaridade
entre oral e escrito, convém também se referir à Idade Média, longo período, que
Zumthor denomina de oralidade predominante: estender-se-ia do século IV d.C. até
aos começos da Era Industrial ou Idade Moderna, por volta do século XV, quando
se passa de uma vivência mais espontânea e comunitária, isto é, movida pela voz,
60
a uma vida mais voltada ao indivíduo, justamente porque a letra vai aos poucos se
tornando hegemônica.
Embora esse período seja uma época fortemente regida pela escritura, o
que ainda contava era a palavra vocalizada. Por exemplo, a lei era a palavra do rei,
dita em “viva voz” pelos agentes régios, os arautos, porta-vozes encarregados de
tornar a palavra real declarada em praça pública.
Zumthor informa que no século XIV ou XV, qualquer corte de alguma
importância tinha seus menestréis: “Ainda por volta de 1500, a rainha Ana, o rei
Carlos VIII mantêm perto de si rhétoriqueus célebres, Jean Lemaire, André de La
Vigne. Esses poetas designam a si próprios pelo termo orador, com o qual,
aparentemente, evocam a função tradicional de porta-voz” (ZUMTHOR, 1993, 64).
De igual modo, mesmo entre os dignitários eclesiásticos, de acordo com
Zumthor, havia quem contratasse poetas e cantores para o encargo da publicidade
da igreja junto aos peregrinos. “Na região de Santiago de Compostela (e mais de
uma dúzia de pequenos santuários locais), devemos a esse costume os cantos de
romaria que foram conservados por alguns cancioneiros ibéricos” ( ZUMTHOR,
1993, 64).
De acordo com Zumthor, todo texto escrito cobra a presença da voz:
“acontece-nos frequentemente perceber no texto o rumor, vibrante ou confuso, de
um discurso que fala da própria voz que o carrega” (ZUMTHOR, 1993, 35). É como
se no interior de cada texto, nalgum momento de sua existência, houvesse o indício
da intervenção da voz humana. Para o autor, o texto foi um acontecimento oral,
existiu antes de tudo na atenção e memória dos indivíduos. De maneira que todo
texto é, de algum modo, essencialmente oral. Nessa mesma perspectiva, Palmer
defende que toda linguagem escrita apela para uma reconversão na forma falada;
apela para um poder perdido.
As palavras orais parecem ter o poder quase mágico, mas ao tornarem-se
imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura usa palavras de
modo a tirar o máximo partido da sua “eficácia”, mas, no entanto, muito do
seu poder se esgota quando a audição se converte num processo visual
de leitura (PALMER, 2006, 26-27).
61
Para Palmer, a linguagem oral tem a vantagem de ser mais facilmente
“compreendida” do que a linguagem escrita. Segundo ele, mesmo romances e
poemas compostos para serem lidos em silêncio, à medida que são lidos é possível
que o leitor imagine sons, como se a letra ao alcance dos olhos cobrasse a
participação do ouvido. E mais que isso, nos dizeres de Palmer, “toda a leitura
silenciosa de um texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral”
(PALMER, 2006, 28). Dessa forma, a escrita em sua forma visual encontraria sua
plenitude, recorrendo à sua forma originária, isto é, à sua dimensão oral.
A Voz e a Letra
62
Do pequeno, do cotidiano o poeta faz chover rimas, tornando a vida irrigada
de poesia, sedimentada de infinitas possibilidades, fugindo das regularidades
impostas pelo pensamento binário (MORIN, 2011). A partir da voz o poeta extrai a
“obra” do texto. Obra no sentido em que entende Zumthor: aquilo que é
poeticamente comunicado aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos
visuais, isto é, as partes constitutivas da performance. Poesia e corpo em
apresentação teatral. Essa teatralidade, que tem a voz como primado.
63
escrita em 1955 para a primeira edição; constitui importante relato da vida do poeta.
Não contempla, porém, o prefácio de José Arraes de Alencar, escrito também para
aquela edição. Segundo informa Andrade (2003), naquele prefácio Arraes enfatiza
a importância cultural da obra de Patativa, tanto pela sua forma de linguagem
“cabloca”, quanto pela escrita em “norma culta”. Assim o prefaciante expressou:
Recitando-me inúmeras poesias de sua lavra e declamando ágeis
improvisos e repentes, impressionou-me imediatamente, pela delicadeza e
arrojo das imagens, pela suavidade lírica de muitos temas, pela
mordacidade cortante de algumas composições, pela filosofia que
ressumbra de quase toda a sua obra e, ainda, pelo fenomenal poder de
sua memória (ALENCAR, apud ANDRADE, 2003, 45).
11
As citações dos fragmentos referem-se à ASSARÉ, 2006.
64
e sua gente. Como herdeiro de um “saber natural”, de uma dádiva divina, seu
encargo seria cantar os valores constituintes desse povo e denunciar as possíveis
interferências destrutivas desses valores. Nesse sentido, não é custoso perceber
que o livro está permeado de composições que ressaltam as tradições e costumes
sertanejos, com suas festas, crenças, ritos e celebrações comunitárias. Poemas
como: Eu e o sertão, Vida sertaneja, A foguêra de São João, O puxadô de roda
dentre outros, se expressam nessa direção. Para tanto, o poeta antes de tudo se
apresenta como O poeta da roça.
Sou fio da mata, cantô da mão grossa,
(...)
Só canto o buliço da vida apertada,
(...)
Eu canto o cabôco com suas caçadas,
(...)
Eu canto o mendigo de sujo farrapo.
65
obsessão da noiva, mas não tinha iniciativa para acabar o noivado porque “estava
louco de amor” e queria muito se casar com ela. Já tinha preparado a casa e a data
do casório estava até marcada, seria na festa do mártir Sebastião, em 20 de janeiro:
data tradicional no sertão, propícia para um abençoado casamento. Porém, nas
vésperas de Natal, quando todos celebravam a festa do nascimento do Filho de
Deus e se divertiam, chega ao povoado um homem que,
Pelo jeito parecia
Que o sujeito era ricaço,
Tinha um relojo no peito
E ôto na cana do braço.
E mais ôtas fantasias,
Na hora que ele se ria
A bôca12 era oro só,
E além dos ôro dos dentes
Uma bonita corrente
Na gola do palitó.
12
No livro está escrito “bôra”, provavelmente seja erro de grafia. Pelo sentido é mais provável que seja boca.
66
porque condicionada pela ambição de possuir; ela era serva da “grana” e do luxo.
Desse modo o cantador conclui seu relato com uma lição de moral:
Dinhêro é um fogo ardente
Que faz munto coração
Se derretê como a cera
Na quentura do tição.
Dinhêro tresforma tudo,
Faz de um alegre um sisudo,
Dá nó e desmancha nó,
E finalmente o dinhêro
É o maió feiticêro,
É o Reis do Catimbó.
Considerações finais
67
escrita, como se pode notar nos fragmentos, preserva o som, a vocalização, as
entonações da variedade linguística peculiar do homem da roça, do sertão.
Inspiração Nordestina caracteriza-se pela defesa dos valores locais em
tensão com outros valores externos. A tensão se dá, sobretudo, quando esses
valores de fora chegam para escravizar o sertanejo. Tanto o escravizar
materialmente, pela exploração do trabalho, quanto pela “colonização da mente”,
isto é, pelas interferências de ideias contrárias à tradição local.
“Dizer a verdade”, expressão cara e gratuita do poeta logo na poesia que
introduz a coletânea, é mostrar um sertão que, embora sofrido, é belo. Pode até ser
pobre, mas tem em si a potência de assegurar aos seus a garantia de felicidade,
sem as pretensões grandiosas de riqueza fruto da exploração do outro. “Dizer a
verdade” ainda é propagar um grito de denúncia a um modelo de política que prefere
fechar os olhos às potencialidades do sertão e à força e resistência do sertanejo.
Por isso, diz-se que seu livro é a “verdade gravada nas folhas”, é o registro de um
canto que se entoa em nome da aldeia e daí encontrar brechas para o mundo.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção
(capítulo de uma poética sertaneja). Fortaleza: UFC/São Paulo: Nankim Editorial,
2003.
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração nordestina. São Paulo: Hedra, 2006.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa Poeta Pássaro do Assaré. 2 ed. Fortaleza: Omni
Editora Associados Ltda, 2002.
CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Azul, 2006.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da Memória e outros ensaios. Cotia, SP:
Ateliê Editorial, 2004.
HAVELOCK, Éric A. A musa aprende a escrever. Lisboa/Portugal: Gradiva, 1996.
__________. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências. São
Paulo: UNESP/Paz e Terra, 1996.
LÓTMAN, Iuri, La semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto. Tradução de
Desiderio Navarro. Valência: Frónesis Catedra, 1996.
68
MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação e
hegemonia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: editora UFRJ, 2013.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8ª ed. São
Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2003.
__________. Introdução ao Pensamento Complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto
Alegre: Sulina, 2011.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Trad. Maria Luisa Ribeiro Ferreira. Lisboa:
Edições 70, 2006.
PINHEIRO, Amálio. América Latina. Barroco, cidade, jornal. Intermeios: SP,
2013.
THOMAS, Rosalind. Letramento e Oralidade na Grécia Antiga. São Paulo:
Odysseus, 2005.
VERNANT, J. P., Mito e Pensamento entre os gregos. São Paulo: Difel, 1973.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Cosacnaify: São Paulo, 2009.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amalio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
__________. ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo. Trad. Jerusa Pires
Ferreira, Sonia Queiroz. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
69
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES: O CONTROVERSO DIÁRIO DE
TEOLINDA GERSÃO
Audrey Castañón de Mattos13
Introdução
O romance que ora analisamos tem um título impactante que atrai pela
imagem, ao mesmo tempo poética e mágica, que enseja: Os guarda-chuvas
cintilantes. E um subtítulo que surpreende ao mesmo tempo em que cria
expectativas: diário. O primeiro contato do leitor com o livro, quando lê seu título e
abre a capa a fim de espreitá-lo, se faz por antíteses – impacta, mas atrai,
surpreende, mas remete ao esperado. Esse jogo de contrários, de que se pode
afirmar que é a tônica do livro, segue, até a última página, seduzindo e repudiando
o leitor que envida esforços para vencer a barreira de silêncio que o discurso
incomum lhe impõe.
Graças ao seu discurso desconexo, que se oferece em registros caóticos que
beiram o surrealismo e à designação de diário, o terceiro livro de Teolinda Gersão
é de difícil classificação quanto ao gênero. A essa discussão outros críticos já se
dedicaram, sem, no entanto, chegarem a uma posição definitiva:
Maria Alzira Seixo admite ser este um livro “estranho e algo furtivo”, mas defende que, ainda
assim, se lhe deve chamar “‘diário’ como faz a autora”. Rogério Miguel Puga opta pela
designação de “diário ficcional”, argumentando que não poderia tratar-se de um romance-
diário. Maria de Jesus Galrão Matias classifica-o como “diário ficcionado”. Clara Rocha adota
a designação de “diário heterodoxo”, acentuando a vertente da paródia da forma diarística.
Maria de Fátima Marinho considera este livro como um “caso sui generis de diário” que versa
sobre a “reflexão, a vários níveis, sobre a escrita e a construção de enredos (imaginários ou
não), através dessa mesma escrita.” É importante salientar que dos vários comentários da
autora se deduz que o texto se situa entre os géneros do “romance” e do “diário”. (CUNHA:
2013, 322).
A própria Teolinda Gersão reflete sobre o mesmo ponto, em seu As águas
livres, publicado em 2013:
Houve quem, apesar de tudo, chamasse romance aos Guarda-chuvas. Julgo que poderia
ser talvez um romance ao contrário, sem uma história dentro, embora muitas histórias
possam assomar à superfície para logo desaparecerem, porque não quero contar nenhuma,
e onde não há um narrador, mas apenas as sombras que ele deixa na parede. (GERSÃO:
2013, 13).
13
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - UNESP
70
Essa escrita que se nega ao modelo paradigmático do romance e chama para
si a definição de diário, para, entretanto, subvertê-la em seus princípios mais
elementares, assenta-se, iniludivelmente, numa forma de não dizer que, analisada
à luz da filosofia tractatiana, se oferece como tentativa de mostrar.
O uso do diário como “molde conformador da ficção” (CUNHA: 2013, 10)
relaciona-se com o que se convencionou chamar de literatura intimista, cuja base é
a escrita do eu. O conceito de literatura intimista foi sintetizado por Philippe Lejeune
em seu Le pacte autobiographique como um “discurso retrospectivo em prosa que
uma pessoa real faz de sua vida, enfatizando aspectos individuais e, em particular,
aspectos de sua personalidade” (LEJEUNE apud CUNHA: 2013, 13) 14. A despeito
dessa afirmação, a descoincidência entre o autor real e aquele que escreve o diário
é comum e caracteriza, entre outros elementos, o romance-diário.
O romance-diário, segundo Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha (2013,
11), é um subgênero literário sob o qual se encontram obras de ficção realizadas
integralmente em forma de diário. É importante distingui-lo do diário ficcional, que
se refere a inserções ficcionais, redigidas em forma de diário, no interior de outra
obra de ficção, um romance, por exemplo. Por esse motivo, explica Sílvia Cunha,
citando H. Porter Abbot, todos os romances-diários são diários ficcionais, porém, o
oposto não é sempre verdadeiro. Como se pode depreender das discussões acerca
de sua classificação tipológica, Os guarda-chuvas cintilantes não se enquadram em
nenhum dos dois tipos. Mesmo a descoincidência entre a autora real e a mulher
que escreve o diário não é suficiente para enquadrá-lo nos moldes do romance-
diário. Permanece, portanto, sua relação com o diário em sua acepção primeira15,
14
“Récit rétrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa proper existence, lorsqu’elle met l’accent sur sa
vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité”. Tradução livre nossa.
15
Além de se constituir pelo registro do dia-a-dia, com preeminência do tempo presente sobre o passado ou o
futuro, o diário também se caracteriza, de acordo com Alain Girard, pela “presença assídua do autor que escreve
aquilo que vê, ouve e vive, pelo que é preferencialmente usado o pronome pessoal de primeira pessoa”.
(CUNHA, 2013, p. 19)
Além disso, tematiza a vida privada do autor mais do que acontecimentos externos: “Même s’il evoque des
événements extérieurs, même s’il s’anime à propos de la rencontre d’une autre personne, ou d’une conversation,
ou de toute circonstance qui met en cause autrui, ce n’est pas l’événement, ni l’autre, en eux-mêmes, qui
intéressent le rédacteur, mais seulement leur résonance, ou encore leur réfraction dans sa conscience. (GIRARD
apud CUNHA, 2013, p. 20). (“Ainda que evoque eventos externos, ou fale sobre o encontro com outra pessoa,
ou sobre uma conversa ou qualquer circunstância que implique outros, não é o evento nem o outro, em si
71
isto é, fora do campo literário, e sobressai o fato de que é na transgressão desse
gênero que a obra se realiza.
Em termos formais o livro em pouco, ou em quase nada, afronta o diário, que
se caracteriza por uma escrita feita na forma de entradas cronológicas,
fragmentárias e não hierarquizadas, isto é, cada entrada se inicia e se fecha em si
mesma, consubstanciando-se como micronarrativa; seu objetivo não é o de contar
uma história, mas o de registrar os dias, por essa razão, o diário possui duração
indeterminada, não possui começo, meio ou fim (CUNHA: 2013, 20). Nesse sentido,
ainda que a última página do livro de Teolinda Gersão seja demarcada pela
inesperada palavra “fim”, em todo o resto segue a estrutura diarística, apresentando
pequenos fragmentos de discurso datados e não hierarquizados.
No plano do discurso, entretanto, a obra surpreende e causa desconforto,
pois, para além da quase inexistência de nexo entre os diversos fragmentos, há “o
registo quase surrealizante dos episódios que conta e das personagens que cria”
(CUNHA: 2013, 299).
Sei que o “eu” é um poço sem fundo, e que a escrita é a perseguição infinita
de um objecto que fica sempre além do alcançável. (GERSÃO: 2013, 13).
mesmos, que interessam ao escritor do diário, mas o eco ou refração desses assuntos em sua própria
consciência.” Tradução livre, nossa.)
72
recorrer a algo fora da língua. Pensando com Wittgenstein, para quem o limite para
a expressão do pensamento humano circunscreve-se ao interior da língua
(WITTGENSTEIN: 1968, 53), a tentativa da diarista de Os guarda-chuvas cintilantes
só pode recair naquilo que o filósofo considera “simplesmente absurdo”
(WITTGENSTEIN: 1968, 53). Assim, é o paratexto “diário” que, paradoxalmente,
reveste de sentido a escrita absurda do livro; sem essa indicação, o livro seria uma
reunião de microcontos surreais que pouco dizem; entretanto, por causa dela, cria-
se no leitor, apoiado nas convicções sobre o gênero diarístico, a expectativa de
encontrar um “eu” integral e sinceramente transcrito correspondente ao autor da
escrita (ainda que esse autor seja um ente ficcional) e é esse contrato que dá sentido
à leitura. Todavia, ao frustrar-se essa expectativa, chega-se à percepção daquilo
que a escrita deseja mostrar.
Seguindo um princípio similar ao da escada de Wittgenstein, a qual é preciso
ser abandonada depois de galgada16, a diarista se serve do diário para mostrar a
sua inutilidade como forma de projeção de um eu: “Os diários assentavam no
equívoco de que o eu, o real e o tempo existiam e eram definíveis e fixáveis – mas
a verdade era outra, para quem tivesse olhos suficientemente corrosivos para vê-la,
suspeitou.” (GERSÃO: 1984, 33). Comparando o excerto à proposição tractatiana
de número 6.5417, nota-se a coincidência de raciocínio entre ambas, pois, assim
como as proposições são absurdas por tentarem dizer o indizível – mas, a despeito
disso, mostram algo – o diário também é absurdo se considerado como meio para
que nele o indivíduo se mostre de forma íntegra e verdadeira. Entretanto, o diário é
capaz de mostrar uma verdade outra a quem puder entender (quem tiver “olhos
suficientemente corrosivos”): que é preciso vencê-lo, ou melhor, o conceito que dele
se tem cristalizado, para entender o “eu” em sua multiplicidade.
Nesse sentido, o diário (não literário) é desmascarado como sendo uma caixa
de silêncio e não de segredos do “eu”. Para Sílviaa Cunha o diário “contém uma
16
Proposição 6.54 do Tractatus logico-philosophicus (1968, p. 129).
17
Proposição 6.54: “Minhas proposições se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as
reconhecerá como absurdas, quando graças a elas – por elas – tiver escalado para além delas. (É preciso por
assim dizer jogar fora a escada depois de ter subido por ela.) Deve-se vencer essas proposições para ver o mundo
corretamente.” (WITTGENSTEIN, 1968, p. 129).
73
imagem vazia e sem sentido, destituída de correspondência com o [indivíduo] real”,
pois os fragmentos de que se compõe necessitam da reordenação do leitor, a qual
projeta uma “unidade ilusória”. (CUNHA: 2013, 315). Em Os guarda-chuvas
cintilantes essa ilusão é negada, em consonância com os rumos da arte moderna
que renega, ou põe em xeque, segundo Anatol Rosenfeld (2009, 79), “a visão de
mundo que se desenvolveu a partir do Renascimento 18”, decretando, entre outras
coisas, o fim do retrato com a eliminação ou deformação do ser humano, da
realidade dos fenômenos projetados e da “perspectiva ilusionista”. Segundo
Rosenfeld tudo isso é parte do processo de desmascaramento do espaço, do tempo
e da causalidade como “meras aparências exteriores, como formas epidérmicas por
meio das quais o senso comum procura impor uma ordem fictícia à realidade”.
Nesse processo, prossegue ele, “foi envolvido também o ser humano. Eliminado ou
deformado na pintura, também se fragmenta e decompõe no romance. Este, não
podendo demiti-lo por inteiro, deixa de apresentar o retrato de indivíduos íntegros.”
(ROSENFELD: 2009, 85).
Assim, a diarista de Os guarda-chuvas cintilantes, que permanece sempre
inominada, negando a si e ao leitor esse traço individualizante, vai procurando
mostrar não só a inutilidade do diário como depositário de um sujeito que se queira
uníssono, como também o estilhaçamento desse sujeito:
Iria pintando em cada dia o seu retrato, decidiu, deixaria retratos sucessivos no tempo,
multiplicando-se para aumentar as suas hipóteses de escapar à morte. Porque a morte
levaria muito mais tempo a apagar todos esses eus do que apenas um só.
E quando ela estivesse morta e não escrevesse ficariam pelo menos os retratos dela
escrevendo, e seria como se a vida que ela escrevia pudesse continuar a voltar as páginas.
(GERSÃO: 1984, 28).
18
“O mundo é relativizado, visto em relação a uma consciência individual e constituído a partir dela; mas essa
relatividade reveste-se da ilusão do absoluto. [...] Na filosofia ocidental, essa constituição do mundo a partir da
consciência humana surge com os sofistas: ‘o homem é a medida de todas as coisas’ [...], ressurge depois na
filosofia pós-renascentista com Descarte [que supõe] como única certeza inabalável a do eu existente [e]
encontrou sua expressão máxima em Kant que projeta o mundo dos ‘fenômenos’ – isto é, o mundo como nos
aparece, único a que teríamos acesso – a partir da consciência [...]” (ROSENFELD, 2009, p. 78).
74
No excerto acima a diarista refere-se a si mesma pelo pronome “ela”, patenteando
sua cisão e a impossibilidade de falar de si mesma. Para Michel Butor, que retoma
a metáfora do retrato ao abordar a oscilação entre a primeira e a terceira pessoa
gramatical no romance, a personagem que assim procede “não sabe dizer-nos o
que sabe de si mesma.” (BUTOR apud CUNHA: 2013, 306) 19. Tanto é assim que
falham todas as tentativas da diarista de captar-se a si própria:
Olhou-se ao espelho, para ver como ficaria no retrato. Mas a imagem que viu não lhe pareceu
exacta. Procurou debalde em todos os espelhos, no espelho oval do quarto, no espelho
escuro da entrada, no espelho envelhecido da sala, nos pequenos espelhos da carteira, no
interior das caixas de pó-de-arroz e de ‘make-up’. Mas a imagem pareceu-lhe cada vez mais
inexacta. (GERSÃO: 1984, 29).
Então foi ao fotógrafo, tirar o retrato.
[...] (o tempo parado, o instante preso, ficarás assim pela eternidade adiante – as fotografias
eram uma imagem da morte, o seu rosto sem vida, uma máscara de cera, fixa, fria) não havia
exactidão e tudo era manipulável, viu enquanto ele levantava e baixava os guarda-chuvas
luminosos, a máquina deveria ser imparcial e exacta, mas de algum modo ele fazia-a mentir,
e também ela própria era um objecto, assim exposta, à mercê da luz e da objectiva.
De tão manipulada e de tão morta, também não se reconheceu nesse retrato. (GERSÃO:
1984, 30).
Esse questionamento que duvida “da posição absoluta da ‘consciência
central’”, embora tenha revolucionado a arte moderna, é “corriqueiro na ciência e na
filosofia” (ROSENFELD: 2009, 81). Quase meio século antes, Wittgenstein também
o afirmava, embora por outras palavras, em seu tratado lógico-filosófico. De sua
proposição 3.02, que estabelece que “[o] pensamento contém a possibilidade da
situação que ele pensa. O que é pensável também é possível” (WITTGENSTEIN:
1968, 61) depreende-se o quanto a apreensão do mundo a partir da consciência é
limitada, uma vez que a expressão do que é pensável circunscreve-se aos limites
da língua. Em 3.031, ao salientar que “[j]á foi dito que Deus poderia criar tudo, salvo
o que contrariasse as leis lógicas. Isto porque não podemos dizer como pareceria
um mundo ‘ilógico’” (WITTGENSTEIN: 1968, 61, grifo do autor), o filósofo
desmascara a fragilidade dessa consciência que, desejando-se absoluta, projeta o
próprio Deus, porém o submete aos mesmos limites que a cerceiam.
19“Le «il» nous laisse à l’extérieur, le «je» nous fait entrer à l’intérieur fermé comme le cabinet noir dans lequel
un photographe développe ses clichés. Ce personnage ne peut nous dire ce qu’il sait de lui-même.” (O “ele”
conduz-nos ao exterior, o “eu” nos faz adentrar o interior fechado como a cabine escura onde um fotógrafo faz
suas fotos. Esse personagem é incapaz de dizer-nos o que sabe de si mesmo.) Tradução livre, nossa.
75
A diarista de Os guarda-chuvas cintilantes constata esse poder limitador e o
mundo artificial que projeta, debatendo-se entre submeter-se a essa consciência ou
subjugá-la:
[...] o rigor, por exemplo, com que domava ou desmanchava os sonhos, obrigando-se a
lembrá-los, obrigando-os a saltar por dentro de arcos incendiados, as flores imaginadas
formando finalmente um ramo, as flores de sombra, de sol, de areia, domar o vento, aprender
a cavalgar o vento, pôr um risco de azul a contornar o mar, a dura acrobacia do seu corpo,
ao mesmo tempo solto e geométrico, os difíceis exercícios interiores, os saltos mortais de
olhos vendados, sobre um fio de arame estendido entre possível e impossível.” (GERSÃO:
1984, 9).
20 “Escher oferece, com os jogos de perspectiva, um meio de visualização da relatividade que se contrapõe ao
absoluto. Conceitos do cotidiano como em cima e em baixo, dentro e fora, são relativos e alterados; relações
76
integra ao seu diário o impossível e o absurdo para delatar “a limitação da nossa
percepção da realidade diante da impossibilidade de apreender a coexistência do
diverso” (OLIVEIRA; FONSECA: 2006, 35). Como não consegue exprimir por
palavras sua própria multiplicidade nem sua dificuldade – quase incapacidade – de
captar de si mesma algo que possa defini-la enquanto indivíduo, ela recorre ao
absurdo:
São os óculos que estão mal graduados, pensou. Tirou os óculos, e depois os olhos, pôs
duas folhas no buraco dos olhos, duas pedras, dois pássaros, duas nuvens, duas gotas de
água, duas algas verdes, duas âncoras, dois barcos, dois peixes, dois sóis, e teve a visão
das pedras, das folhas, dos pássaros, dos peixes, variou e depois formou todas as
combinações possíveis, no lugar dos olhos, uma folha e um peixe, uma nuvem e um barco,
uma alga e um pássaro, um peixe e uma nuvem, uma pedra e um sol, uma âncora e um
pássaro, variou e combinou até cair de cansaço. Mas a imagem do espelho continuava a não
se parecer com ela. (GERSÃO: 1984, 29).
Considerações finais
absolutamente novas a partir de elementos habituais apresentam mundos, ao mesmo tempo, estranhos e
possíveis” (OLIVEIRA; FONSECA: 2006, 35).
77
“eu” se confessa sem pudores ou receios, espaço para onde se vertem os episódios
cotidianos observados pela perspectiva de quem o escreve, o diário se vende como
caixa de segredos e repositório de um “eu” verdadeiro. É com essa expectativa que
o leitor vai às suas páginas, movido pela curiosidade voyeurista pela intimidade
alheia. Ao deparar-se, entretanto, com os fragmentos a que não só falta o fio atador,
mas o próprio “eu” da escrita, o leitor resta confuso e incomodado.
O diário, que alcançou grande repercussão “com o surto do individualismo
romântico” (CUNHA: 2009, 15), revela-se, na contemporaneidade, vazio de sentido,
uma vez que o sujeito moderno tem consciência de sua fragmentação e instabilidade
no mundo. “O sentimento dessa ‘consciência infeliz’ – diz Anatol Rosenfeld – suscita
uma verdadeira angústia [e] o desejo de fugir para um mundo ou uma época em que
o homem, fundido com a vida universal, ainda não conquistara os contornos
definitivos do eu” (ROSENFELD: 2009, 88).
No campo das artes, essa angústia induz às técnicas de pesquisa e
experimentação. No romance, desfaz-se a personalidade individual, que se torna
abstrata “para que se revelem tanto melhor as configurações arquetípicas do ser
humano.” (ROSENFELD: 2009, 89). Esse percurso que vai do auge da individuação
até a busca de ressignificação do “eu” é abordado pela diarista de Os guarda-chuvas
cintilantes:
Sou lindíssimo, disse o autor fascinado. Lindíssimo, lindíssimo, lindíssimo. De tal modo que
não posso despegar os olhos do espelho. E tudo o que existe, sou tentado a converter em
‘eu’. Porque só tenho olhos para mim.
Sentou-se na cadeira, cruzou as pernas e começou a devorar o mundo. Engolia, engolia,
engordava sem medida e a inflação do eu era tão grande que a certa altura rebentava e caía
numa chuva de estilhaços.
E então pacientemente, de gatas, ia procurando os pedaços, aqui e ali, e começava a colá-
los outra vez com Araldite. (GERSÃO: 1984, 25).
Neste excerto, que constitui a entrada do diário de “quarta, 5”, a diarista
encontra a metáfora adequada para falar do indivíduo centrado em si mesmo, que
projeta o mundo a partir de sua própria consciência. À medida que seu mundo
ordenado começa a perder sentido e ele toma consciência de sua instabilidade, a
metáfora assume contornos alegóricos, denunciando a dificuldade de falar desse
(novo) indivíduo. Finalmente, ao buscar uma expressão desse novo homem que já
não se encontra integrado ao mundo, a diarista esbarra no indizível. “Existe com
78
certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é místico”, diz Wittgenstein (1968, 129)
em seu aforismo 6.522. É preciso, então, mostrá-lo, mas “o que pode ser mostrado
não pode ser dito”, assevera ainda o filósofo (1968, 78) em sua proposição 4.1212.
Assim, a diarista recorre ao discurso absurdo – o homem de gatas a colar-se com
Araldite – para oferecer dele uma imagem que se aproxime do que ela não consegue
dizer sobre sua desintegração.
O diário, que em sua acepção não literária já é uma forma silenciosa de
escrita, na medida em que nada diz daquilo que promete, isto é, oferece apenas
uma imagem ilusória de sujeito unívoco, é subvertido nesse trabalho de Teolinda
Gersão, pois rompe o silêncio original denunciando a falácia, mas o aprofunda ao
esbarrar na insuficiência da língua para dar conta de um “eu” multifacetado. Ao final
da leitura nada se pode dizer de sua autora que a defina de forma individualizada,
entretanto, sua multiplicidade foi escancarada e mostrou-se a precariedade e
efemeridade da personalidade.
Referências
79
SONTAG, S. A vontade radical: estilos. Tradução de João Roberto Martins Filho.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Capítulo s/n: A estética do silêncio, p. 11-
40.
80
ENSINO DO ESPANHOL E OS GÊNEROS TEXTUAIS: UM CAMINHO A
SEGUIR? PERSPECTIVAS PARA UMA INVESTIGAÇÃO ENTRE
DOCUMENTAÇÃO, LIVRO DIDÁTICO E DOCENTES
A partir de nossas pesquisas feitas ao longo desse estudo e de acordo com estudos
iniciados na década de 1970, consideramos que o ensino de língua estrangeira deve
buscar contextualização e situações em sala de aula semelhantes a contextos fora
dessa sala.
81
de língua espanhola, para a formação do aluno e a contextualização que é usada
para esse fim, que é o trabalho com gêneros textuais.
Deste modo, as teorias relacionadas à proposta são discutidas nas proposições das
obras de autores como Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz, Luiz Antônio Marcuschi
e Anna Cristina Bentes, no que se refere à questão dos gêneros textuais; Irandé
Antunes, Maria Helena de Moura Neves, C. Faraco, M. Bagno, no que se refere às
questões de sistematização; Marta Baralo, Isabel Gargallo, Neide González, H.
Brown, L. Selinker, relacionados ao ensino de língua estrangeira; entre muitos
outros estudiosos e pesquisadores.
82
cidadania, a consciência crítica em relação à linguagem e os aspectos sociopolíticos
da aprendizagem de LE unindo-se aos temas transversais24.
recursos tecnológicos e, em especial, que possam contribuir para sua formação e atualização profissional
(BRASIL, 1998).
24 O currículo ganha em flexibilidade e abertura, uma vez que os temas podem ser priorizados e
contextualizados de acordo com as diferentes realidades locais e regionais e que novos temas sempre podem
ser incluídos. O conjunto de temas propostos recebeu o título geral de Temas Transversais, indicando a
metodologia proposta para sua inclusão no currículo e seu tratamento didático (BRASIL, 1998).
25 União aduaneira - livre comércio intrazona e política comercial comum - de cinco países da América do Sul
83
como língua estrangeira. Nas zonas de fronteira com os países sul-americanos, o
espanhol é a língua de maior contato com o Brasil.
Os gêneros textuais
26
As Orientações Curriculares do Ensino Médio (MEC/SEB, 2006) revelam que o
conhecimento de Línguas Estrangeiras é muito valorizado no âmbito profissional,
porém, no caso do Ensino Médio, mais do que encarar o novo idioma apenas como
uma simples ferramenta ou um instrumento que pode levar à ascensão, é preciso
entendê-lo como um meio de integrar-se e agir como cidadão, como já
mencionamos.
84
Nesse sentido, o foco do ensino não deve ser exclusivo e predominante na
preparação para o trabalho ou para a superação de provas seletivas, como o
vestibular (MEC/SEB, 2006).
- a informática (digital);
- a multicultural;
85
os currículos para um ensino mais eficaz. O objetivo principal é levar o conhecimento
ao aluno por meio de usos autênticos.
Marcuschi (2002), com essa mesma percepção, define gêneros textuais (de textos)
como uma noção vaga para os textos materializados encontrados no dia-a-dia e que
apresentam características sociocomunicativas definidas pelos conteúdos,
propriedades funcionais, estilo e composição característica.
86
A linguagem, como prática social, é proposta por Bronckart (1999) como
interacionismo social, onde o comportamento humano se materializa através de
ações de linguagem, que se concretizam discursivamente dentro de um gênero.
Apesar dessas elucidações, há algumas críticas feitas por estudiosos pela maneira
que se é trabalhada, metodologicamente, a língua em sala de aula. Dúvidas sobre
como adaptar um determinado conjunto de pressupostos teóricos a um grupo
específico e, dentro deste grupo específico, como lidar com as diferenças individuais
parecem apontar para uma necessidade de se olhar com cuidado para modelos
tidos como pacotes prontos para serem usados.
Nesse contexto, quais são as oportunidades que o professor tem para seguir uma
ou outra abordagem? Em vista das diferentes realidades e da verificação de
necessidades específicas será que o professor acaba por mesclar diferentes
abordagens? Qual o resultado dessa adaptação?
87
Língua: o processo de gramaticalização
88
corresponde ao saber intuitivo que todo falante tem de sua própria língua,
a qual tem sido chamada de “gramática internalizada”;
b) das regras que definem o funcionamento de determinada norma,
como em: “a gramática da norma culta”, por exemplo;
c) de uma perspectiva de estudo, como em: “a gramática gerativa”, a
“gramática estruturalista”, a “gramática funcionalista” ou de uma tendência
histórica de abordagem, como em “a gramática tradicional”;
d) de uma disciplina escolar, como em “aulas de gramática”;
e) de um livro, como em “a Gramática de Celso Cunha”.
Cada uma dessas definições se refere a algo diferente, mas coexistem. Para Neves
(1997), a gramática tradicional, que o atual ensino tem como referência, é resultado
do movimento reflexivo sobre o funcionamento da língua e que posteriormente
passou a ser uma obra composta por modelos normativos de comportamentos
linguísticos, perdeu seu espaço e sentido.
Nesse contexto, Hopper (1987 apud RODRIGUES, 2006) propõe tratar o processo
de gramaticalização como quase sinônima de gramática emergente, pois, ambas
dizem respeito às estratégias que são usadas na construção do discurso e envolve
um movimento contínuo em direção à estrutura.
Ora, a gramática da língua tem funções. Antunes (2007, p.41) apresenta que a ela
(gramática) “cabe especificar, desde a formação de palavras até a formação de
frases, determinando quais combinações de palavras impostas ou opcionais, qual a
ordem possível para cada função dos termos”. A gramática regula, mas não tudo.
Para conseguir a eficácia na comunicação, saber unicamente a gramática (as regras
específicas) não basta.
89
Ressaltamos, novamente, o que enfrentamos no ensino atual: o questionamento,
ou melhor, a relutância de ensinar a gramática nos moldes tradicionais e, a partir
desse princípio, assumir a postura sóciointeracionista, com os gêneros textuais,
como o caminho a se seguir na educação. No entanto, que caminho devemos
seguir? O ensino exclusivo de gramática não abarca a totalidade do ensino de uma
língua, porém a solução é priorizar os gêneros textuais?
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de. Lingüística Aplicada - Ensino de Línguas e
Comunicação. Campinas: Pontes Editores & ArteLíngua, 2005.
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de língua sem pedras
no caminho. São Paulo: Editora Parábola, 2007.
90
_____. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares
nacionais, códigos e suas tecnologias. Língua estrangeira moderna. Brasília: MEC,
2000.
RODRIGUES, A. T. C. "Eu fui e fiz esta tese" As construções do tipo foi fez no
português do Brasil. 2006. 219 f. Tese (Doutorado em Linguística). Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
91
TRAMONTE, Cristina. Ensino de língua estrangeira e socialização do saber: abrindo
caminhos para a cidadania. In: Congresso Virtual de Antropología y Arqueología.
Naya, n° 3, 2002.
92
MELANCOLIA E GÊNIO: DA ANTIGUIDADE AO RENASCIMENTO
Carolina Toti27
Introdução
Desde O Homem de Gênio e a Melancolia, O Problema XXX, I, tratado
atribuído a Aristóteles, estabeleceu-se um laço entre o sofrimento e a criatividade.
Neste texto o autor questiona por que todos os seres de exceção, aqueles que se
destacam em arte, filosofia e política são melancólicos. A capacidade de sofrer é
entendida como condição da capacidade de criar, a melancolia é concebida como
parte da identidade e requisito indispensável do gênio. Da Antiguidade ao
Renascimento, o humor melancólico foi considerado como doença, temperamento
e sentimento, até ser na Renascença elevado à acepção de força intelectual. No
século XV, passou-se da ideia comum de melancolia como um mero mal para o
sentido de potência criativa. Aproximando a melancolia aristotélica do furor
platônico, comparação jamais explicitamente feita pelos autores da Antiguidade, a
Modernidade atribui novos significados a ideias antigas, dando origem à concepção
moderna de gênio. Feita pela primeira vez por Marsílio Ficino, esta aproximação
identifica a melancolia dos indivíduos criativos e intelectualmente proeminentes com
o furor divino de Platão. Baseando-se fundamentalmente na cultura da Antiguidade
clássica, Ficino foi o principal responsável por consolidar e disseminar pela Europa
a ideia de gênio melancólico. Ao mesmo tempo em que a melancolia predispõe ao
trabalho intelectual, este último conduz à primeira. Assim, todos os estudiosos estão
fadados à melancolia. Pretende-se no presente trabalho esclarecer a ligação entre
as noções de melancolia e genialidade na Antiguidade, e o modo como este vínculo
se estreita no Renascimento, dando origem à ideia moderna de gênio. Para isto,
retomam-se antes de tudo as considerações antigas sobre o humor melancólico, o
vínculo estabelecido pelo tratado aristotélico entre melancolia e gênio, e o modo
como esta ligação é apropriada e ressignificada por autores do Renascimento, para
então compreender a origem da noção moderna de genialidade.
27
UEL
93
A Melancolia Antiga
94
e loucura. Da Antiguidade clássica até o século XIX, este texto é referência
constante em estudos críticos sobre estes temas. O filósofo questiona por que todos
os seres de exceção, os que se destacam em poesia, filosofia e política são
melancólicos. Para Aristóteles, nem todos os melancólicos são gênios, mas todos
os gênios são melancólicos, isto é, a bile negra é o humor que predomina nos seres
de exceção. Mas a atrabile também é considerada a responsável pela loucura. Ou
seja, a antiga crença nos humores atribui à genialidade e à loucura uma mesma
causa. Tanto o gênio quanto o louco devem sua condição à bile negra. A diferença
seria apenas de grau: a loucura resultaria do excesso do humor. O gênio não é
fatalmente louco, mas a loucura lhe é uma ameaça constante. O melancólico e o a
gênio não são necessariamente doentes, mas devido à natureza inconstante da
atrabile, a saúde de ambos é extremamente vulnerável. Assim, Aristóteles diz que
o melancólico é instável, frágil, sempre ameaçado por doenças graves, devendo,
portanto, se tratar e se cuidar continuamente. O melancólico não é doente, mas
doentio, isto é, adoece com facilidade.
As cartas atribuídas a Hipócrates e O Problema XXX, 1, de Aristóteles,
estabelecem as bases do imaginário da Antiguidade clássica sobre a melancolia e
acabam por determinar as direções que essa noção assumiu na história da cultura
ocidental.
A Melancolia Medieval
95
A partir da Idade Média, a imagem do eremita se torna emblemática nas mais
diversas representações da melancolia. Eles aparecem sempre aplicados em lidas
manuais. Isto porque a Igreja incentiva o trabalho como uma maneira de afastar o
temperamento melancólico que ameaça sobretudo os que levam uma existência
solitária. Não se trata de visar o lucro que o trabalho produz, nem de modificar a
natureza pela técnica, mas sim de tratar e curar a melancolia, manter a saúde do
espírito por meio de alguma atividade. O trabalho é recusa da ociosidade. O
exercício material e intelectual afasta o tédio do ócio. O cansaço do esforço garante
o sono, o alívio da fadiga. A melancolia tem a vantagem de dispor o indivíduo ao
trabalho intelectual e à contemplação, mas o estado contemplativo tem a
desvantagem de deixar o indivíduo vulnerável à acedia. Esta ataca sobretudo os
ociosos.
Comparado à contemplação, o trabalho pode ser até mesmo uma diversão.
Pode distrair, afastar os pensamentos incontroláveis e fazer esquecer tentações
como a vontade de fugir do retiro. Ele faz passar o tempo e, como acaba com o
ócio, veda a influência do diabo. Quando se executa alguma tarefa, a imaginação
errante se concentra e se estabiliza. O delírio, a fantasia, o monólogo interior
desenfreado e o torvelinho do pensamento cessam com a aplicação em uma
atividade. Enquanto se aplica, o melancólico pode não se lembrar do tédio e do
desgosto da vida. O trabalho “(...) interrompe o vertiginoso diálogo da consciência
com seu próprio vazio, ele interpõe resistências e obstáculos, ao contato dos quais
a alma pode esquecer sua insatisfação (...)”. (STAROBINSKI: 2012, 55).
96
riscos aos quais esse humor expõe. Trata-se de um compêndio de diversos meios
de se conservar e promover a saúde do intelectual.
Amparado na tradição platônica, Ficino considera que o exercício intelectual
é uma ameaça, pois esta atividade gasta o espírito que serve de intermediário entre
o corpo e a alma. Se trabalhar em excesso, o intelectual pode ser privado de espírito.
Este consumo prejudica o temperamento e causa uma melancolia bastante nociva.
Em se tratando dos que por nascença são regidos por Saturno, este esgotamento
pode ser especialmente funesto. Conforme a tradição, Ficino entende que a
despeito destes riscos, este astro também é responsável pela habilidade
contemplativa própria de poetas e filósofos. Eis aí a ambiguidade da melancolia.
Pessoas regidas por Saturno se distinguem ao mesmo tempo pelo privilégio da
excelência e pelo risco de ruína. Assim, os melancólicos podem se tornar tanto
gênios quanto doentes.
Ao publicar a obra Três livros sobre a vida, inteiramente focada na ideia de
gênio melancólico, Ficino se faz o responsável por engendrar e difundir essa noção
pela Europa. Sendo ele próprio melancólico, o texto se distingue pelo tom
marcadamente subjetivo. A experiência pessoal de uma acentuada melancolia se
evidencia pelo entendimento desse estado como um triste destino, e pela visão de
Saturno como uma influência necessariamente prejudicial. Daí um livro todo
dedicado aos modos médicos, mágicos e astrológicos de se livrar da melancolia e
da força maligna do astro, e também de usufruir das vantagens garantidas tanto
pelo humor quanto pela regência do planeta.
Antes de qualquer outro autor, Ficino assimila a teoria de Aristóteles sobre a
melancolia dos homens de exceção à ideia platônica de furor divino. O italiano
afirma que devido à relação da bile negra com o núcleo da terra e com o mais alto
dos planetas, o melancólico tem pensamentos ao mesmo tempo profundos e
elevados. Isto explica por que quanto maior a densidade intelectual, maior a
melancolia. Saturno leva o intelectual ao extremo da reflexão, gerando pensadores
excepcionais, tão desligados da existência mundana que servem de meio para
expressões divinas. Porém, a experiência pessoal da melancolia e a familiaridade
com teorias médicas e astrológicas fazem com que estas especulações sejam
97
insuficientes para Ficino. Ele entende que, além dos saturninos, quaisquer
indivíduos dedicados à atividade intelectual sofrem a má influência de Saturno. Se
a regência desse astro não é determinada pelo momento do nascimento, pode vir a
ser pelo trabalho. Os estudiosos estão fadados à melancolia e a viver sob a sombra
desse planeta:
98
melancolia e Saturno, ideias doravante retomadas e renovadas. Este dualismo
aparentemente subentendido n’O Problema XXX, 1, de Aristóteles, é trazido à tona
pela interpretação do humanismo italiano sobre Saturno e melancolia. Não se trata
apenas de consciência, mas também de valorização dessa contradição devido ao
reconhecimento desta como atributo do gênio. Trata-se, assim, de um entendimento
duplo, pois por um lado há a ideia neoplatônica de Saturno como o astro mais alto
que personifica e rege as capacidades elevadas e distintas da alma, a razão e a
indagação, e por outro lado as considerações aristotélicas sobre a melancolia como
atributo de indivíduos geniais.
Essa consciência renovada da ambiguidade da melancolia permite uma
apreciação mais positiva do que nunca desse estado:
99
como especulações teóricas, sejam reconhecidas e vinculadas à noção de
melancolia como sentimento.
A nova ideia de melancolia não se restringe às reflexões de Aristóteles sobre
esta. Saturno também é entendido sob um novo aspecto. Conforme se considera a
superioridade dos atributos afiançados por Saturno, bem como os riscos aí
implicados, os letrados passam a ver o próprio humor melancólico como uma
vantagem a ser preservada. As mais diversas características de Saturno acabam se
restringindo à oposição entre perturbação intelectual excessiva e ordenação
intelectual excessiva.
Em pouco tempo se vulgariza o pensamento de que os saturninos, os
indivíduos que nascem sob a regência desse astro se distinguem pela antítese
própria do mais alto dos planetas: “Saturno rara vez denota caráteres e destinos
ordinários, antes ao contrário pessoas que se distinguem dos demais, divinas ou
bestiais, felizes ou oprimidas pela dor mais profunda”. (KLIBANSKY; PANOFSKY;
SAXL, APUD FICINO, 2012, p. 249). Este pensamento leva os intelectuais da Itália
a se interessar pela imagem de Saturno. O perigo da ambiguidade da disposição do
melancólico e do saturnino, esta caminhada à beira do abismo é vista como uma
posição notável, uma distinção privilegiada em relação ao indivíduo comum. É nesta
atmosfera de conflito intelectual na qual se opõem a afirmação de autossuficiência
e a incerteza de si mesmo que se forma a noção moderna de gênio, ideia que
reivindica a desobrigação dos valores vigentes, o distanciamento dos costumes e
dos preceitos artísticos em voga, uma compreensão intimamente ligada às
considerações sobre a ambiguidade da melancolia.
100
Relacionando tratamentos medicinais e mágicos com o neoplatonismo,
Ficino elabora um sistema suficiente para supersticiosos, literatos e pensadores
porque envolve, para além de práticas mágicas, o exercício do livre pensamento.
Referências
101
CRISE HÍDRICA, RACIONAMENTO DE ÁGUA E COMUNICAÇÃO DE CRISE E
DE RISCO, 2014: O CASO SABESP 28
Introdução
O atual cenário de “crise hídrica”, no jargão da mídia e dos Governos
estaduais e federais, para designar “falta d´água” e “racionamento” na fala de parte
substancial da população, reclama uma discussão capaz de ultrapassar os aspectos
atinentes aos fenômenos naturais, da escassez de chuva. Pode-se – a partir de uma
ampla gama de perspectivas – escolher uma ou várias chaves explicativas para o
momento que presenciamos. Há, por exemplo: uma dimensão natural, discussões
acerca de uma histórica falta de chuva ou de chuvas insuficientes; ou a dimensão
social, de como se relaciona e usa os recursos naturais, mormente a água; e, por
fim, uma dimensão propriamente política, da ausência de planejamento dos poderes
públicos, em suas distintas esferas.
A sociedade – cidadãos, governos, empresariado, produtores rurais,
universidades, terceiro setor – poderiam, na verdade deveriam, ter se preparado
para enfrentar a situação em voga. Cabe, então, questionar o porquê termos
chegado até este ponto, inclusive, pelo fato de se aventar que tenhamos cinco dias
sem água e dois dias com água na cidade de São Paulo, como veiculado no auge
da seca.
O presente trabalho tem seu foco centrado não na crise ou nas políticas
públicas que envolvem o tema, mas no esforço de controle da opinião pública, uma
vez eclodida a crise. A água, como bem essencial à vida, tornou mais dramáticas
as coberturas midiáticas que pulularam na imprensa, no momento em que se
evidenciou sua escassez. Vimos ao longo do ano de 2014 – ano que teve com
28
Esse trabalho contou com o apoio da pesquisadora Beatriz Amorim, bolsista do MackPesquisa.
29
Professor Doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
30
Professora Doutora da Universidade Presbiteriana Mackenzie
31
Professor Doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
102
eleições gerais, um embate no campo das comunicações que colocou em corners
opostos a imprensa, majoritariamente detratora do governo do Estado (PSDB) e a
empresa de saneamento, Sabesp, em seu empenho publicitário e de relações
públicas para reverter a imagem negativa de si e do governo com a crescente
ameaça de escassez de água.
Retrocedendo ao documento inaugurador da literatura brasileira, a carta do
“achamento” do Brasil, de Pero Vaz de Caminha, enviada a Dom Manuel I, Rei de
Portugal, datada de 1500 poderemos vislumbrar alguns índices do comportamento
da sociedade que levou a essa situação. Na carta, o escrivão dá conta ao Rei da
viagem e do “descobrimento” do Brasil, do contato com os índios, de sua fauna e
flora. Na carta de Caminha, na impossibilidade de indicar ao Rei a existência de
riquezas minerais, um trecho merece atenção:
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de
metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares
frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste
tempo d´agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas;
infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á
nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA, 1500).
103
noção de abundância, de recursos inesgotáveis, como descritas no paraíso. No
fundo, usamos a água como se, realmente, não fosse um recurso escasso. Não
temos nevascas, não temos terremotos, nunca tivemos uma guerra de grandes
proporções em nosso território e a nossa natureza é “abençoada por Deus”. Isso,
tudo, nos leva a uma atitude de pouca preocupação com nossos recursos naturais.
Referencial Teórico
O quadro teórico se apoia na conceituação de comunicação de crise e de risco
(KAPLAN; SCHWARTZ, 1975; SLOVIC, 1978, 2003, ANGER, 2012; (PALTTALA,
VOS, 2012, DIGIULIO et al, 2012).
De um lado, a comunicação de crise envolve o envio e recebimento de mensagens
de ''para prevenir ou diminuir os resultados negativos de uma crise e, assim,
proteger organização, as partes interessadas, e/ou a indústria de danos ''
(COOMBS, 1999, P. 4). Fearn-Banks (2002, p.480) sugere que ''comunicação de
crise é verbal, visual e / ou interação escrito entre a organização e seus stakeholders
(muitas vezes através da mídia) antes, durante e depois de uma ocorrência
negativa''. Estes processos de comunicação seriam projetados para reduzir e conter
o dano, prestação de informações específicas para os interessados, iniciar e
melhorar a recuperação, gerir imagem e percepção de culpa e responsabilidade,
reparação legitimidade, gerar apoio e assistência, explicar e justificar as ações, pedir
desculpas, e promover a cura, aprendizagem, e alteração (SEEGER et al., 2003).
De outro lado, a comunicação de risco analisa elementos de risco, que sejam
toleráveis ou não, e suas consequências. A comunicação de risco seria a troca de
informações entre as partes interessadas sobre a natureza, magnitude, importância,
ou o controle de um risco, um processo interativo de troca de informações e opiniões
entre indivíduos, grupos e instituições, intimamente associada com a detecção e
avaliação de ameaças.
Na prática, a comunicação de risco envolve a produção de mensagens públicas
sobre os riscos à saúde e riscos ambientais, através de mensagens que usam o
recurso do medo como um dispositivo persuasivo. Essas mensagens visam induzir
a mudança de comportamento, apresentando uma ameaça e descrevendo um
comportamento ou a mudança de comportamento que podem aliviar a ameaça, sua
104
eficácia ou a viabilidade da mudança de comportamento refere-se à crença de que
a recomendação pode ser realizada. A comunicação de risco também se baseia na
suposição de que o público tem o direito generalizado de saber sobre os perigos e
riscos. A disponibilidade de informações permite que o público a fazer escolhas
informadas sobre o risco (REYNOLDS, 2002, REYNOLDS, SEEGER, 2005).
Procedimentos metodológicos
Peças analisadas
Em janeiro de 2014, iniciou-se a campanha publicitária emergencial para
conscientizar a população acerca da escassez de água. Essa peça inicial, veiculada
em TV aberta era da maior simplicidade, com fundo azul e texto correndo pela tela
(GC – gerador de caracteres no jargão publicitário). A mensagem centrada na
informação das condições dos reservatórios deu início à comunicação de crise,
seguida de dicas de economia de água que iriam se repetir por dezenas de peças
publicitárias publicadas ao longo do ano.
105
Figura 1 - Programa de Incentivo à Redução de Consumo, janeiro 2014
Fonte: Saneamento Sabesp
106
Como ao mesmo tempo a grande mídia começou a criticar a Sabesp, seja pela
necessidade de proteção de mananciais, necessidade de redução de desperdício
ou das perdas na rede, ou pela perda de água no sistema devido a encanamentos
antigos sem manutenção, o esforço voltou-se para demonstrar as obras que a
empresa vinha fazendo para coletar mais água. No corner oposto verificou-se o
empenho crítico da imprensa contra o processo de administração das reservas de
água da Sabesp. Diversas matérias foram publicadas na grande mídia de fontes
diversas em um esforço coletivo para buscar culpados e apontar inconsistências na
administração dos recursos hídricos paulistas.
Centenas de outras matérias foram publicadas nos meses seguintes com dois tipos
de enfoque, um primeiro apontava as falhas da companhia e os momentos em que
seus procedimentos eram conflitantes com a legislação. Outro tipo de matéria que
vigeu por todo ano de 2014 foram os textos que apontavam para os baixos níveis
dos reservatórios e a ausência de chuva. Foi então criado o selo “eu sou guardião
das águas” que passou a ser utilizado em todas as peças publicitárias de economia
de água.
107
Figura 6 – webbanner 1
Fonte: Sabesp, 2014
Figura 7 – webbanner 2
Fonte: Sabesp, 2014
O esforço publicitário seguiu com peças para rádio e jornal, além da criação e
distribuição de posters para serem distribuídos às empresas e afixados em
banheiros e demais locais públicos.
Conforme pode ser observado pela análise das peças publicitarias, a Sabesp
utilizou anto a comunicação de crise como a comunicação de risco.
Como recurso em sua comunicação, a redução das contas por meio de um
programa de bônus, na esperança de que houvesse uma mudança no
comportamento dos consumidores. Segundo a empresa, 76% dos consumidores
diminuíram seu consumo. Pode-se dizer, portanto, que a empresa optou por uma
estratégia que focava em ganhos sociais e individuais, ao mesmo tempo em que
tinha como pano de fundo um apelo emocionalmente forte, que é a possibilidade de
racionamento de água, a principio negada, mas atualmente admitida pela empresa.
108
Também se pode destacar na comunicação da Sabesp um esforço para transformar
o ganho individual - a redução da conta de água em ganho social, ou seja, o esforço
individual se transforma em benefício para todos, a estratégia voltada para o objetivo
final, de forma a assegurar ao indivíduo que vale a pena participar em prol da
coletividade.
Esse, em largas pinceladas, é o quadro da guerra de propaganda instaurada na
mídia paulista ao longo de todo o ano de 2014. Com a iminência das eleições – em
que o governador Geraldo Alckmin concorria à reeleição (foi reeleito em primeiro
turno), o embate extrapolou a questão hídrica e tornou-se tema central nas
acaloradas discussões políticas que opuseram PSDB e PT nas instâncias municipal,
estadual e federal. A guerra de propaganda pró e contra a administração da Sabesp
deu munição para apoiadores e detratores do governo de São Paulo, do PSDB.
Não obstante o aspecto da competição eleitoral, o cidadão foi instado a economizar
água, mudar seus hábitos, reformar suas casas instalando mais caixas d´água.
Grande parte da população aderiu ao apelo do estado e alterou seu consumo
obtendo descontos significativos em sua conta de água e contribuindo para o
esforço coletivo de economia.
Considerando-se os o aumento da economia de água e a preocupação com o tema,
que passou a ser presente em conversas entre amigos, encontros profissionais e
reuniões escolares podemos afirmar que ambos os esforços foram bem sucedidos
no intuito de trazer para a população a discussão e reflexão acerca dos usos e
hábitos associados ao consumo de água. Questões antes irrelevantes como tempo
de banho, hábitos de lavagem de carros, louça, descarga, escovação de dentes e
mesmo de reuso da água passaram a ser assunto cotidiano e não foram poucas as
famílias que, conscientes, mudaram seus hábitos. Contribuiu para isso, claro, a
redução da pressão da água que, na prática, fez com que a água deixasse de chegar
a regiões da cidade que se encontravam distantes das distribuidoras.
Do ponto de vista da comunicação, há que se considerar que, não obstante o tiroteio
da grande imprensa contra a Sabesp as respostas da empresa foram eficientes,
tanto do ponto de vista da economia atingida tanto, no viés político, pela reeleição
do governador.
109
Contudo a crise que enfrentamos tem uma dimensão social e política. Socialmente,
há a crença arraigada na abundância e inesgotabilidade dos recursos naturais – a
água, especialmente - e isso nos torna ótimos consumidores, bons compradores,
mas péssimos cidadãos. Nosso individualismo e consumismo não são e nem serão,
jamais, sustentáveis. Tínhamos muito (água, comida, espaço, terras) e, por isso,
nunca nos preocupamos em poupar, em racionalizar. A expressão “em se
plantando, tudo dá” surgida no primeiro documento oficial escrito no Brasil, a carta
de Caminha ao rei de Portugal plasmou a crença de que esta era a terra da
abundância. Crença que vige até hoje e contra a qual, em última instância, precisa
lutar a comunicação de risco de desabastecimento de água em São Paulo.
Esse comportamento social está diluído nas mais diversas classes e categorias
sociais. Pode-se até, indicar que essa atitude de desperdício é uma variante de
nosso “jeitinho”, tão bem indicado por Roberto DaMatta (2003) (formulador do
conceito) e Barbosa (1992).
Nossa classe política não deu a devida atenção ao uso racional da água. A
população (nesse caso não se pode usar cidadãos, já que estes são conscientes de
direitos e deveres) tampouco se preocupou. A efetividade de qualquer mudança de
valores em relação aos nossos recursos naturais pode, até, ser conseguida à base
de multas ou de bônus para quem gastar mais ou economizar, respectivamente. No
entanto, há que se definir como prioridade uma educação para a sustentabilidade,
dentro das escolas, no seio da família, na cotidiana convivência social.
Considerações finais
110
Não adianta esperar do Estado, de nossos governantes, seriedade e planejamento.
Nossa cultura política pouco se preocupa com esses termos. Há que se cobrar a
seriedade e o planejamento, bem como transparência republicana. Mas, só pode
cobrar quem está envolvido, quem se coloca como parte do problema e da solução.
O cidadão deve, antes e acima de tudo, compreender que todas as atitudes
individuais têm consequências sociais. Ou a solução é coletiva ou não há solução.
Fórmulas mágicas e pensamento mítico não trarão resolução alguma para o
problema que vivenciamos. Hoje, falta água; amanhã não teremos locais para
destinar o volume de lixo produzido. O Brasil não é um reino de abundância, de
natureza inesgotável. O Brasil não é de um partido, de um político, de um governo.
A sociedade – em suas mais diversas esferas – deve reposicionar sua relação não
só com a água, mas com todos os recursos naturais. Que a difícil situação que nos
encontramos permita, ao menos, que as mistificações sejam superadas pela real
compreensão de que problemas coletivos exigem soluções coletivas, sem mágica e
nem demagogia.
Referências
111
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. E,
ainda, em: DAMATTA, R. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
DURKHEIM, E. Da divisão social do trabalho. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010.
FEARN-BANKS, K. (2002). Crisis communications. 2nd ed., Mahwah, NT: Lawrence
Erlbaum Associates, Inc., 2002.
FOLHA DE SÃO PAULO, 2013, disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/07/1314725-deus-e-brasileiro-e-voces-
queriam-um-papa-diz-francisco-no-voo-ao-brasil.shtml, acessado em
maio de 2015.
GUARDIAODASAGUAS,2014, disponível em
http://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=544, acessado em
março de 2015.
PALTTALA, P. VOS, M. Quality indicators for crisis communication to support
emergency management by public authorities, Journal of Contingencies and Crisis,
2012.
REYNOLDS, B. Crisis and emergency risk communication. Atlanta, GA: Centers for
Disease Control and Prevention, 2002.
REYNOLDS, B; SEEGER, M W. Crisis and emergency risk communication as an
integrative model, Journal of health communication, 2005.
SANEAMENTO SABESP, 2014, disponível em
https://www.youtube.com/user/SaneamentoSabesp, acessado em marco de 2015.
112
CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS: IDENTIDADES EM TRÂNSITO
32
Docente do IFSP – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - Doutorando do
Programa de Literatura Portuguesa – USP / FFLCH
113
dispositivos de análise, podemos surpreender um entrecruzamento de diferentes
discursos sociais portugueses a respeito das subjetividades, dos tempos e dos
espaços lusos, figurados, esteticamente, como um espaço-tempo de intersecções
entre memórias e problemas de pertencimento portugueses; de um lado, como
imaginação individual, subjetiva e autobiográfica, de outro, como observação
coletiva, histórica, objetiva, que permitem, simultaneamente, discursar a respeito da
construção e desconstrução do Império Colonial Português e a respeito da
desconstrução e reconstrução das identidades portuguesas, como espaço-tempo
de transição, marcado, sobremaneira, pelas decorrências sociais e psicológicas das
construções, desconstruções e reconstruções históricas de Portugal.
Considerada, portanto, nesse bojo da natureza dialógica dos discursos e do
contexto pós-colonial português, a literatura portuguesa contemporânea de autoria
feminina, como discurso narrativo, tem se configurado, de fato, como um discurso
patenteado por uma “estética da transição”, em que se surpreende a fratura dos
seus elementos de composição, a composição oscilante de seus conteúdos, a
oscilação ideológica entre imagens de memórias e de pertencimentos do europeu
colonizador e imagens de memórias e de pertencimentos de americanos, africanos
e orientais colonizados, todavia, amalgamados, em um espaço-tempo de discursos
coloniais e, ao mesmo tempo, pós-coloniais, entre os Portugais, portanto, do Além-
mar e os Portugais do Aquém-mar: identidades, sem dúvida, portuguesas, porém,
em trânsito, cambiantes entre o imaginário do Próspero Europeu e o imaginário do
Caliban Colonizado, conforme a metáfora shakespeariana, recuperada por
Boaventura de Sousa Santos, ao interpretar, justamente, as relações econômicas,
políticas, sociais e ideológicas entre o Velho e o Novo Mundo, no mesmo contexto
da colonização, da descolonização e da autonomização do Mundo Colonial
(Boaventura Sousa Santos, p. 227), sobremodo, no contexto das relações entre
Portugal e suas ex-colônias africanas.
Desse modo, atentando mais detidamente para O CADERNO DE
MEMÓRIAS COLONIAIS (2011), de Isabela Figueiredo, como expressão dessa
Literatura Portuguesa Contemporânea de Autoria Feminina, percebemos que se
apresenta discursivamente, de um lado, como uma memória estilhaçada do Velho
114
Mundo, uma memória de discursos identitários adormecidos e/ou silenciados;
apresenta-se como um questionamento a respeito do pertencimento e a respeito
das identidades portuguesas, “...como uma poética de restos (...) onde o resgate
das contramemórias mais marginalizadas ou singulares de experiências coletivas
traumáticas resiste à amnésia do mundo da técnica...” [Vecchi e Ribeiro, p. 102], e
assim sendo, se articula como retrato fraturado de um mundo português fraturado,
o que se atesta na homologia estabelecida entre sua estética fragmentária e
multifacetada e a história de dissolução, de estilhaçamento e desconstrução do
Império Ultramarino Português e das identidades portuguesas, mas, ao mesmo
tempo, na homologia entre este seu experimentalismo estético e a história de
reelaboração dos resíduos, dos restos, das ruínas que conformam – em uma
multiplicidade de vozes e de silêncios, de recordações e de esquecimentos – uma
memória suspensa, uma memória que transita entre Portugal e África, entre o
passado e o presente, entre o indivíduo e a coletividade, entre os ditos e os interditos
da Colonização e da Descolonização, transformados, nesse sentido, em uma
espécie de memorial e de espaço-tempo discursivo para a recomposição e
redefinição das identidades e do pertencimento portugueses.
Nesse sentido, gostaríamos, então, de tecer algumas considerações a
respeito de uma das instâncias discursivas da narrativa de Isabela Figueiredo, a
propósito de melhor situá-la no contexto destas narrativas portuguesas
contemporâneas de autoria feminina, focadas, antes de tudo, numa demanda
identitária.
115
necessariamente dialogada e fragmentária, em que o narrador, neste caso, uma
narradora, em primeira pessoa, reelabora discursivamente o seu passado, a partir
das tensões discursivas constitutivas de seu presente, dando voz e fazendo ecoar,
em seu discurso, todas as memórias e contramemórias, todos os restos e retalhos
discursivos, todas as subjetividades – individuais e coletivas –, todos os espaços-
tempo que foram silenciados na história de sua própria formação como sujeito de
um discurso. É isto mesmo, o que se pode surpreender, já insinuado pelas epígrafes
da narrativa, que caracterizam o memorialismo como uma espécie de violação, uma
espécie de intrusão no passado, mas, ao mesmo tempo, como uma possibilidade
de reconstrução e ressignificação tanto do passado quanto do presente:
116
indivíduos e grupos, pessoas e instituições... filtrados pelo olhar da narradora, que
de se fia e se tece na relação com os espaços e com os tempos lusos.
Desse vasto painel dialógico de restos discursivos, todavia, desse rol de
subjetividades individuais e coletivas, silenciado pelo tempo, pelo espaço e pela
morte, na memória discursiva da narradora, destacam-se, entretanto, os restos
discursivos e a subjetividade de seu pai. É, sobretudo, a partir do diálogo entre uma
memória fragmentária da narradora – que se concretiza em sua narrativa de
fragmentos – e uma memória de seu pai já falecido – figurado como constante
interdiscurso – que se constitui, ou se reconstitui, mais especialmente, a própria
identidade discursiva da narradora, tanto como fato e exercício, quanto como
potencialidade e virtualidade.
117
Moçambique, entre 1960 e 1970, e, a partir deles, construa uma história pós-
colonial.
Do tempo em Moçambique, a maior parte das imagens formadoras que são
evocadas, nessa espécie de memorialismo, pela narradora, diz respeito à própria
descoberta de sua sexualidade, ou seja, a descoberta do sexo como imagem de
poder e como identidade constituída em um percurso de prazer e de castração, em
um sentido psicanalítico.
Por isso mesmo, a narrativa de Isabela Figueiredo se afigura como uma
narrativa de descobrimento, como tomada de posse e exploração do próprio corpo,
especialmente, seu corpo de mulher, lugar do prazer e da castração: imagens
recuperadas, a partir da ambiguidade necessária, para poderem significar, não
somente um percurso subjetivo, individual de intimismo e autoconhecimento, mas
também um percurso social e histórico, que metaforizasse a própria colonização
portuguesa, em Moçambique, bem como o traumático processo de descolonização.
Desse modo, todas as imagens da narrativa são ampliadas de seu sentido intimista
e subjetivo estritos para um sentido histórico e objetivo latos. É do centro desse
processo metonímico, que a imagem do pai da narradora surge, portanto, para
significar, também, a imagem do colonizador português e o caráter intrusivo, violento
e camuflado da colonização, em África, e, desse modo, a figura da mulher –
sobretudo a mulher africana – com quem a narradora, a princípio, se identifica –,
para significar o colonizado e a África colonizada.
118
rapidez da sua resposta, o sentido de humor permanente e dúbio
desse gigante perceberia que aquele homem gostava de foder. Eu
não sabia, mas sabia. [...]
Eu nunca percebi nada disso de foder até aos meus sete
anos, ou melhor, conscientemente nunca percebi. Desconhecia a
existência e depois o significado do verbo e não fazia qualquer
ideia sobre como se realizava a procriação. Mesmo muito depois
dessa idade, pensava que as crianças nasciam porque os homens
e as mulheres se casavam e, nesse momento, Deus punha as
mulheres de “bebé. Não dizia “grávidas”. Também não conhecia
essa palavra, e a primeira vez que a disse, a minha mãe deu-me
uma bofetada para eu aprender a não dizer palavrões (p. 17)
Numa das raras ocasiões em que pude brincar fora do meu quintal,
– o meu pai não estava em casa e a minha mãe deve ter-se querido
livrar do empecilho – lembro que voava num baloiço improvisado
num ramo de cajueiro, empurrada por um rapazito da vizinhança,
mais ou menos da minha idade. O cajueiro situava-se junto aos
caboucos e paredes semierguidas de uma nova casa de colonos
– e nunca de lá saiu, mesmo depois de concluída a construção.
Ironicamente, era a casa da Dona Prazeres. O miúdo era
obviamente branco, filho de vizinhos de confiança, gente boa da
metrópole; havia convivência. Perguntou-me, “Queres jogar de
foder?” Jogar de foder?!” Ora aí estava uma brincadeira que eu
não conhecia, nunca tinha jogado e não sabia mesmo como era.
119
Devo dizer que o Luisinho tinha apenas uma vaga ideia, embora
soubesse mais do que eu. Era curiosa, portanto não me passou
pela cabeça recusar tal brincadeira. Perguntei-lhe como se fazia e
ele esclareceu-me resumidamente, “despimo-nos e eu ponho-me
em cima de ti”. A coisa não me pareceu muito ortodoxa, “despimo-
nos”, “em cima de”, mas aceitei sem problemas. Tinha curiosidade,
e não só. Pressenti ser algo que não se podia fazer, portanto devia
ser bestial e queria experimentar. Era curiosa, aventureira, era
uma miúda sozinha que brincava com as formigas. (...) despimo-
nos completamente, eu deitei-me sobre a terra, exatamente como
nos ensinavam na escola que se devia dormir, e ali ficamos alguns
minutos, nessa posição de difícil equilíbrio, conversando e
“fodendo”. Eu estava por baixo e podia ver a abertura já existente
onde se situariam as janelas. E, num ápice de segundo, apercebo-
me da figura do meu pai, oh, meu Deus, o meu pai, estou a vê-lo
ainda hoje, debruçado nesse vago, com os antebraços pousados
nos tijolos, olhando para baixo, observando a cena, apercebendo-
se da situação e desaparecendo rapidamente. Percebi tudo.
Nessa fração de segundo levantei-me, derrubando o Luisinho, e
agarrando a minha roupa. No momento em que o meu pai deu a
volta ao exterior da casa, entrou pela porta e me arrebatou pelo
braço, estava o Luisinho ainda em pelota e eu já meia vestida.
Segundos antes da pancada, tinha já a certeza absoluta que foder
era proibidíssimo (pp. 29 à 31).
120
papel subalterno (a voz do Caliban), no processo de expropriação do mundo colonial
(este sim, o Caliban mais propriamente).
Corroborando estas imagens, a narradora, então aos 10 anos de idade, se
coloca em uma segunda aventura de descoberta do sexo com outro vizinho, este,
porém, negro.
121
formações discursivas que deram sustentação aos processos colonizadores mais
agudos em África, aqueles vincados nos modelos nórdicos europeus (discursos do
Próspero), segundo os quais, a miscigenação constituiria uma aberração dentro do
processo colonial, sobretudo, quando vivenciada por mulheres europeias.
Como colonizador, Portugal nunca se enquadrara inteiramente no modelo
colonizador nórdico, todavia, diante das imposições históricas de sustentação do
colonialismo – primeiro, por conta das limitações portuguesas em seu papel de
“Próspero colonizador”, depois, por conta do “Ultimatum Inglês”, e, por fim, por conta
das mazelas do Salazarismo –, o Império Colonial Português passou a comungar
do conjunto de discursos naturalistas e positivistas dos colonizadores nórdicos –
sobretudo, franceses e ingleses – que conferiram ao discurso colonizador português
facetas étnicas, segregacionistas e machistas, novas, estranhas à índole
portuguesa, contudo, mais agudas.
É nesse sentido que os limites frouxos do contato sexual da narradora com
um menino africano – neste caso, simbolizado pela castração displicente da mãe
portuguesa – acrescidos da consciência ingênua que tem a narradora do imaginário
do pai, aparecem como indicadores explícitos de uma transformação histórica do
relacionamento entre Portugal e suas Colônias Africanas, durante o século XX,
muito mais que da própria transformação da experiência sexual da narradora, que
se resume a uma troca de parceiros entre os que mais se avizinham. Tal
consciência, entretanto, remonta, ainda, a uma consciência machista de gênero,
invocada pelo colonizador de modelo nórdico: um homem branco pode violar uma
mulher negra, mas um homem negro não pode violar uma mulher branca, o que,
ampliado, da situação subjetiva da narradora, poderia, mais uma vez, apontar para
o universo ideológico da colonização, neste ponto, em que se configura em sua face
mais aguda de violência, de racismo e de machismo, orquestrados pelo discurso
civilizador naturalista do Próspero, como heranças do Positivismo e do
Evolucionismo do século XIX.
Subjaz, nesse sentido, a estas imagens – tanto do ponto de vista subjetivo,
do plano individual, portanto, da narradora, quanto do ponto de vista da construção
das identidades culturais e do processo colonizador – que o prazer-poder e o poder-
122
prazer – aqui representados por descobertas e por possibilidades do sexo e do
corpo – são eventos inseridos em tempos e espaços que a Europa Próspera – aos
olhos da narradora ou de seu pai – não poderia partilhar, em hipótese alguma, com
a África colonizada.
Essas imagens, entretanto, do corpo, do prazer, do sexo e da partilha – como
questões essenciais da constituição da identidade discursiva da narradora e da
identificação do processo de construção e manutenção do Império Colonial
Português –, ressurgirá, entretanto, no decorrer da narrativa, como uma imagem de
ruptura, de dissolução dessa consciência, a fim de apontar, pelo avesso, para um
caminho traumático de libertação e de autonomização, tanto no plano individual,
quanto no plano histórico-social, configurando novas temporalidades e novos
espaços, novas possibilidades econômicas, políticas, sociais, culturais e identitárias
para a narradora, para Portugal e para África.
Para a narradora, a cena em que sua liberdade e sua autonomia sobre corpo,
prazer e partilha se estabelecem, é a que, em sua memória, remete às relações de
amizade com a personagem Domingas.
A realização do prazer, nesta cena, de modo efetivo, aponta para uma real
consciência sobre o próprio corpo, um corpo miúdo e alternativo – africano ou
português –, mas nem por isso menos afeito e menos propício ao prazer e à
123
aceitação de seus próprios contornos e limites, nem por isso menos afeito e propício
ao prazer e à partilha com outro corpo, seu igual.
A despeito de constituir um momento de amadurecimento da narradora, a
cena, todavia, pelo avesso, remete também a um trauma, por conta das mazelas
históricas. É exatamente nesse momento em que o corpo, o prazer e a partilha se
realizam para a narradora entre seres iguais – figurada na relação homoafetiva com
Domingas –, que a relação subjetiva e a relação entre Portugal e Moçambique se
arruínam, à mercê da história, à mercê da inserção do corpo individual, da
subjetividade e do intimismo em um mundo de corpo coletivo, mundo da objetividade
e da materialidade da história da colonização e da descolonização, recalcitrante em
suas bases econômicas, políticas, sociais e culturais capitalistas.
É nesse sentido que a posse do corpo, do prazer e do poder do prazer do
corpo se instauravam para a narradora, a partir dessa relação – afetiva, mas efetiva
– entre seu corpo e outro corpo sendo seu igual – o corpo da narradora e o corpo
de Domingas, que essa realização precisava ser interrompida, ainda enquanto se
conformava, já que, mais amplamente, poderia simbolizar uma espécie de solução
e de acomodação das relações entre colonos e colonizados.
As circunstâncias econômicas, políticas e sociais da Descolonização e da
Guerra Colonial em África transcendiam, portanto, e engolfaram o corpo, o prazer e
a partilha estabelecendo, naquele momento histórico, relações de ruptura, de
fratura, de dissolução que castravam aquela situação de acomodação histórica das
relações. Para marcar tal ruptura, delineia-se no imaginário da narradora, a
imposição de sua mudança (fuga!) para Portugal, no bojo da vontade do pai
português e no bojo das transformações históricas, de que a cena se constitui – o
Marcelismo, o 25 de Abril, a FRELIMO, a Guerra Colonial, Os Tribunais
Revolucionários, a crise das relações entre colonos e colonizados, o fim do
colonialismo, a situação dos retornados a Portugal etc...
É efetivamente a fuga da narradora de Moçambique para Portugal,
separando-se, assim, de Domingas, que identifica esse processo de ruptura, de
fragmentação do corpo, que tanto pode remeter, estritamente, à subjetividade da
narradora e ao rompimento de sua relação afetiva com Domingas, quanto, lato
124
sensu, pode remeter à objetividade do processo histórico e ao rompimento da
relação de Portugal com Moçambique, no corpo do esfacelamento do Império
Colonial.
125
A minha terra nunca veio, depois disso, a ser um metro de chão
preciso – um talhão do qual se pudesse dizer “pertenço aqui”. Ou,
“veem aquela janela do 4º andar, foi ali”, “onde está agora aquele
prédio, a minha mãe...”.
A minha terra havia de ser qualquer coisa de cultura e memória,
um não pertencer a nada nem a ninguém por muito tempo, e ao
mesmo tempo poder ser tudo, e de todos, se me quisessem, para
que merecesse ser amada; quanto custava o amor? (p. 87).
126
mesmo tempo, uma imagem estética de um presente para os portugueses, um lugar
discursivo, de onde se possa olhar para o passado e ressignificá-lo, como memorial,
que possibilite um espaço-tempo de pertencimento futuro para o português e para
a mulher que fazem das impossibilidades e limitações históricas, um inusitado e
simbólico império ultramarino para se tornarem reais.
REFERÊNCIAS
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Memória e Esquecimento: Implicações Políticas. In: Revista Crítica de Ciências
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127
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Portugal na África: Os Vestígios como Material de uma Construção Possível. In:
SEDLMAYER, Sabrina e GINZBURG, Jaime. Walter Benjamin: Rastro, Aura e
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128
A AVALIAÇÃO SOCIAL EM DOIS MOMENTOS DA TEORIA
SOCIOLINGUÍSTICA: ABORDAGENS POSSÍVEIS
Clarisse Barbosa dos Santos33
INTRODUÇÃO
O ponto de partida desta análise é o interesse particular que o conhecimento
das especificidades da Sociolinguística apresenta para um profissional da área de
Letras, docente de línguas estrangeiras. O trabalho docente nessa área tem
fundamentos teóricos na disciplina Sociolinguística, que remete, já desde o senso
comum, ao papel da língua no contexto social.
Pensamos que desde as primeiras publicações conhecidas sobre variação
linguística estavam explícitos os pressupostos, conceitos, critérios e demais
instrumentais teórico- metodológicos que, atualmente, constituem o instrumental
teórico-prático minimante necessário para uma abordagem profissional dessa
disciplina. Esse referencial permite traçar uma trajetória que pode ser
compreendida em suas especificidades e foi com esse objetivo que realizamos a
leitura atenta de dois capítulos de obras publicadas com quase três décadas de
diferença. Referimo-nos a Trudgill (1974) e a Chambers, Trudgill e Schiling-Estes
(2002), com o interesse de observar, qualitativamente, como o instrumental teórico-
metodológico da variação linguística foi abordado nos dois momentos em que o
mesmo assunto, a variação linguística, foi tratado por esses pesquisadores que
constituem referência nessa área. Esperamos contrastar esses dois momentos,
procurando pensar se o aspecto conceitual, apresentado no primeiro texto se
mantém, modifica ou acrescenta itens no segundo, em que a Sociolinguística já se
encontra estabelecida como ciência linguístico-social e, dentro dela, os estudos
sobre a variação linguística.
Essa análise está, assim, organizada em cinco seções. A esta primeira,
introdutória, com objetivos, metodologia e pressupostos, seguem-se outras quatro.
Na segunda, trataremos da primeira publicação de Trudgill (1974), momento em
que se apresentava o estudo da Sociolinguística como um campo autônomo e não
33
Doutoranda em Estudos Linguísticos pela FALE-UFMG – E-mail: clarisse@juramentada.net.br
129
mais especificamente ligado aos estudos da Linguística. Buscaremos descrever
como eram delimitados, naquele momento, o objeto, os conceitos e pressupostos
da variação linguística em sua inserção em contextos sociais. Na terceira seção,
continuaremos com essa reflexão, tratando então da publicação de 2002
(CHAMBERS; TRUDGILL; SCHILLING-ESTES), momento em que o instrumental
teórico abordado no texto de 1974 já se encontra difundido por inúmeras pesquisas,
em vários países. Na quinta seção, faremos um estudo comparativo, em que
procuraremos confrontar os dois capítulos, em seus quase trinta anos de separação,
para compreender se o quadro teórico-metodológico dos estudos da variação
linguística se manteve ou se modificou e de que maneira esse estado da arte pode
ser constatado, a partir do contraste analítico dos modos de dizer um mesmo
assunto, em dois momentos diferentes.
34
E-dicionário de termos literários de Carlos Ceia, disponível em:
http://www.edtl.com.pt/?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=294&Itemid=2. Acesso: 18/10/2013
130
O domínio conceitual e o uso, com propriedade, desses termos é o que
vamos buscar, a partir desse ponto, no primeiro dos capítulos que são nosso objeto
de análise. Apesar de ter sido publicado em 1974, acreditamos que já nesse
capítulo, que introduz o estudo da Sociolinguística, vamos encontrar informações
claras e explícitas sobre elementos chave para compreender essa disciplina e seu
campo de atuação, a saber: hipóteses, postulados, objetivos, construtos e critérios,
todos usados para definir em que consiste esse campo de estudos e seu
instrumental teórico-metodológico.
A partir desse ponto, vamos focar nossos comentários na configuração do
capítulo 1 de Trudgill (1974). O estilo utilizado pelo autor parece ser, em princípio, o
de um artigo de opinião, pois tem marcas explícitas de texto argumentativo-
descritivo e se inicia com a narração de um fato corriqueiro de determinada cultura
– falantes de inglês que se encontram num trem e iniciam uma conversa sobre o
tempo. Esse cenário se transforma no mote para introduzir o objetivo do capítulo,
que apesar de não ser mencionado nesses termos, é o desencadeador das
implicações sociais da conversa no trem: “Probably the most important thing about
the conversation between our two English people is not the words they are using,
but the fact that they are talking at all” (ibidem, p. 1). Em nossa interpretação, o fato
de descrever uma conversa num trem abre caminho para o objetivo principal de
explicitar duas importantes funções sociais da linguagem no dia a dia de
determinada cultura: estabelecer e manter relacionamentos e fornecer informações
aos interlocutores sobre eles mesmos. Trudgill (1974) se posiciona como
autoridade, bom conhecedor do assunto, ao retomar a visão do senso comum sobre
alguns conceitos específicos, como dialeto e sotaque (ibidem); na sequência,
aproveita para introduzir sua visão do conceito de dialeto, assim como critérios que
permitem delimitá-lo conceitualmente e desfazer a confusão entre dialeto e língua
(ibidem); junto a esses conceitos, Trudgill (ibidem) vai apresentando determinados
postulados da Sociolinguística, sempre com o cuidado de contextualizá-los a partir
de fatos ocorridos em comunidades específicas ou estudos de caso realizados por
linguistas interessados na área da variação. A organização discursiva desse
capítulo, que se inicia de modo semelhante a um artigo de opinião e depois vai
131
apresentando todo um instrumental teórico, nos chamou a atenção. Pensamos,
neste momento, que talvez esse fato se deva a dois motivos: de um lado, porque a
Sociolinguística estava em seus anos iniciais; de outro lado e como consequência
direta, o pequeno número de pesquisas dessa natureza. Há ainda um terceiro
motivo que nos parece bastante razoável: o de que no capítulo introdutório o objetivo
principal fosse traçar um panorama amplo do assunto.
A modo de resumo, faremos agora uma amostragem descritiva de pelo
menos um exemplo de cada de hipóteses, postulados, critérios e conceitos
encontrados nesse capítulo em questão, agrupados tematicamente. Nosso
interesse está no estabelecimento de avaliações e julgamentos de valor, que
incidem diretamente sobre o reconhecimento e aceitação de determinada variante
no conjunto de sistemas lingüísticos de uma sociedade qualquer. Ao final desse
levantamento, faremos algumas observações a respeito do modo como essa parte
conceitual foi apresentada.
132
O primeiro aspecto, segundo o quadro anterior, é relativo ao uso do conceito
de “variedade” como um termo neutro, que se choca com uma visão construída
acerca de modalidades (ou variedades) que seriam melhores que outras. Falamos
em especial da variedade padrão, contrapondo-a a outras que são vistas como
típicas de coletividades menos prestigiadas econômica e socialmente. A asserção
de Trudgill (1974) nos leva, por inferência, aos rótulos de desvios da norma,
remetendo a uma postura segundo a qual a variedade estândar consiste em um
modelo a ser seguido, visão que o autor combate ao definir o termo variedade por
sua neutralidade intrínseca. O segundo item do quadro, ao descrever a
institucionalização da variante estândar, no caso do inglês, leva-nos diretamente
aos critérios – puramente sociais – que permitem estabelecer uma variante como
um padrão. Nesse ponto, estão implícitas as relações de poder que dão visibilidade
a essa mesma variante e que respondem a fatores externos ao aspecto linguístico.
No terceiro item do quadro, o autor reforça sua hipótese de que as relações entre
língua e sociedade são determinantes no estabelecimento e uso dos sistemas
linguísticos, ao afirmar que tanto línguas como dialetos são igualmente bons para
cumprir as duas primordiais funções sociais da linguagem no quotidiano. Essa
hipótese está intimamente relacionada com o item seguinte do quadro anterior, em
que se reforça que são os fatores externos que interferem primordialmente nos
julgamentos de valor imbuídos a determinados traços. No último item do quadro, ao
definir idioleto, leva-se o leitor principiante a inferir alguns conhecimentos básicos
do conceito: que a fala (o vernáculo) em determinado momento mantém traços que
a distinguem, pelo uso recorrente desses mesmos traços em outros contextos.
Retomamos nesse ponto a configuração discursiva do autor para abordar o
tema que nos interessa nesse estudo contrastivo: a questão da avaliação social da
linguagem. A hipótese de Trudgill (ib.), segundo a qual os julgamentos de valor são
fatores externos à linguagem, fundamenta-se no princípio de que todas as
variedades são igualmente boas como sistemas linguísticos para as comunidades
que as compartilham e de que variedade é em si um termo neutro; essa é a base
argumentativa para apresentar os critérios – puramente sociais - usados no caso do
inglês, para elevar uma modalidade ao status de padrão, em detrimento de outras,
133
que seriam estigmatizadas; ao mesmo tempo, essa argumentação apresenta um
conceito importante para compreender o funcionamento da variedade linguística: o
de idioleto. O que nos chamou a atenção nessa organização discursiva foi a
configuração de uma espécie de rede de argumentos, em que numa prosa
semelhante à de artigos de opinião, o autor construiu um pensamento teórico sobre
uma área de estudos incipiente, a Sociolinguística.
134
capítulo, já que nela será mostrado que a avaliação social de variantes
linguisticamente equivalentes pertence à experiência comum de todos.
Esse objetivo, apresentado sob a forma de outra premissa, constitui para nós
também a hipótese de Chambers (ib.) a respeito da avaliação social: a de ser uma
experiência comum a todos os falantes. Na primeira seção do capítulo, o autor se
ocupa especificamente de explicitar outra premissa: “variantes que concorrem no
dia a dia são linguisticamente insignificantes, mas socialmente significantes” (ib., p.
3)35; a ela seguem-se dois exemplos em que duas formas do inglês, que
apresentam semelhança morfológica e identidade sintática concorrem,
apresentando no entanto significação sociolinguística, ou seja, identificam os
falantes como pertencentes a determinada classe social com um grau de
escolarização específico, entre baixo ou alto. Esse é um critério para identificar as
variáveis sociais (ou fatores externos) que incidem sobre duas formas concorrentes.
A esse critério relaciona-se, na argumentação, outro princípio: o de que as formas”
variantes são mantidas não por seu conteúdo linguístico, mas pela sua função
social” (ib. p. 4)36, o que remete diretamente à forma como a avaliação é feita, ou
seja, segundo o uso social da linguagem, já que avaliações do tipo que o autor
descreve nessa seção são feitas sem considerar o conteúdo lingüístico dos
enunciados. As instâncias responsáveis pela continuidade da avaliação linguística
através dos estratos sociais também são mencionadas: professores, pais, editores
e demais figuras vinculadas às autoridades. O autor ressalta ainda o fato de que
todas as sociedades desenvolvidas parecem tolerar julgamentos de performance
linguística e atribuem esses julgamentos a determinadas instituições, como escolas,
órgãos governamentais e sociedades profissionais. O tratamento dado ao tema da
avaliação, por esse autor, é bastante elucidativo sobre a trajetória histórico-
epistemológica da Sociolinguística. É possível observar que o contexto teórico
metodológico está definido com mais clareza, há ainda a menção de trabalhos de
pesquisa e a configuração discursiva é bastante apropriada a um texto acadêmico-
35
“[...] the variants that occur in everyday speech are linguistically insignificant but socially significant.”
36
“[...] variants […] are sustained not for their linguistic content but for their social function.”
135
científico, considerando que esse segundo capítulo é também o primeiro de um livro.
E agora, podemos passar à quarta seção, em que vamos contrastar o modo como
os dois capítulos, com quase trinta anos de distância, trataram do tema da avaliação
social das variantes.
A avaliação sob duas concepções metodológicas
Esta parte dessas reflexões tem como ponto de partida a finalidade proposta
para a leitura dos dois capítulos que constituem nosso objeto de estudo: a de
oferecer aos estudiosos iniciantes na pesquisa sobre variação linguística
informações sobre o histórico, o objeto, os conceitos e os pressupostos dessa área
de conhecimento. Nossa abordagem aqui será diacrônica, por ser a mais adequada
para pensar como o histórico da Sociolinguística pode ser delimitado,
qualitativamente, usando um dos princípios que norteiam a pesquisa nessa área: o
de que a maneira como um discurso é articulado diz muito acerca não só do falante,
mas da argumentação em si mesma. Em nosso caso, escolhemos refletir sobre a
maneira como os dois capítulos foram redigidos, lembrando que estão
intrinsecamente vinculadas a seus contextos de produção (histórico, geográfico e
social).
O capítulo escrito por Trudgill (1974), como já dissemos na seção dois, foi
escrito de forma semelhante à do gênero artigo de opinião jornalístico. Com relação
a esse formato, o autor se aproxima e se distancia em determinados aspectos. A
proximidade está em utilizar referências explícitas a opiniões, que em seu texto
assumem a forma de constatações do senso comum, que se transformam em
pretextos para introduzir aspectos do estudo da variação linguística utilizando-se da
epistemologia das ciências da linguagem e sociais. Essa abordagem tem uma
finalidade clara: estabelecer o lugar da disciplina da variação linguística como uma
ciência do conhecimento, com suas propriedades, metodologia e instrumental
teórico-prático. Ao se distanciar, o autor continua marcando o lugar da disciplina,
ao se apropriar de resultados de pesquisas feitas principalmente pela linguística,
uma ciência já estabelecida, e mostrando como esses resultados e demais aspectos
136
de um conhecimento gerado pelo viés estritamente linguístico podem ser
reinterpretados à luz do aspecto social da linguagem.
No segundo capítulo, o de Chambers (2002), essa preocupação por marcar
o território já não se nota. As quase três décadas que separam as duas publicações
são bem significativas sobre a trajetória e crescimento desse campo de estudos e
se notam também na configuração discursiva. Esse capítulo, dedicado à
epistemologia informal - o inventário de algumas das possibilidades para o estudo
da variação na linguagem, está, assim, organizado metodologicamente em cinco
seções, cada uma com informações claras e visíveis sobre os pressupostos que
são, para esse autor, indicadores que nortearam as últimas quatro décadas (em
relação à 2002) de pesquisa variacionista. Pareceu-nos interessante o
posicionamento do estudioso, pois o que que assume como um postulado – “A
base social da variação lingüístic”a (CHAMBERS, 2002, p. 3)37 – o primeiro autor
colocava como uma hipótese – “o fato de haver uma relação estreita entre
linguagem e sociedade” (TRUDGILL, 1974, p. 2)38.
Com relação ao assunto que orientou nossa leitura contrastiva dos dois
autores, ou seja, a avaliação social da linguagem, pode-se notar uma diferença
teórico metodológica na abordagem desse aspecto entre os dois autores.
Retomamos aqui o que já dissemos na seção dois, com relação a Trudgill (1974):
esse autor explica a questão da avaliação pelo recurso ao critério dos julgamentos
de valor atribuídos a uma variante ou a seus traços pela sociedade, para estabelecer
o que seria padrão ou estigmatizado. Já o segundo, Chambers (2002), utiliza o
conceito de Competência Comunicativa (ib. p. 8) para introduzir outro conceito, que
lhe permite demonstrar como essa habilidade se incorpora ao dia a dia dos falantes,
o de Competência Comunicativa na Performance (ib. p. 11).
37
“1 – The Social Basis for Linguistic Variation”
38
“[...] the fact that there is a close interrelationship between language and society.”
137
Considerações finais
Referências Bibliográficas:
138
CHAMBERS, J. K.; TRUDGILL, P.; SCHILLING-ESTES, N. The handbook of
language variation and change. Oxford: Blackwell Publishers, 2002.
139
A IDENTIDADE CULTURAL LATINA EM MANUAL DE LÍNGUA LATINA E
LÍNGUA PORTUGUESA ANTES E DEPOIS DO ACORDO MEC-USAID
39 PG-UPM
140
nacional considerada a somatória de valores culturais resultantes da vivência em
comum.
Conforme Fiorin (2010), o imaginário cultural de uma pessoa é “Uma história
que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos, uma série de
heróis, modelos das virtudes nacionais; uma língua; um folclore” [...] mas que vive
pela adesão coletiva” ( FIORIN, 2010, p. 16). O que somos hoje, nossa identidade
compõe-se de tudo aquilo que temos armazenado em nossos itinerários históricos”,
de um tempo e de um espaço, de nossas ações trilhadas e a trilhar, de forma
dinâmica e interativa, ou seja, daquilo que Hall menciona ser o cruzamento entre o
root, nossas raízes e os caminhos os quais percorreremos ou pretendemos
percorrer no futuro, route:
Além das raízes, dos caminhos, da tradição e das opções que fazemos, Hall
(1996) destaca a importância do contexto político, nos jogos de poder mediante
linguagem, já que a linguagem constitui o sujeito e este sujeito é representado
mediante a linguagem nos momentos de interação.
141
A história de imperialismo e colonialismo de outrora se repete e estamos por
tabela no jogo, não mais apenas do colonialismo, da posse material de bens,
propriedades, mas da “colonialidade do saber e do ser” que nos ocasiona lacunas.
Um sujeitar-se aos moldes capitalistas tornando-nos, ao mesmo tempo, um
mercado consumidor e produtor de mão de obra barata que a cada dia mais
favorece as grandes potências.
142
identidade cultural a qual se configura hoje mais americana que latina em relação
aos costumes e ao conhecimento acerca das raízes culturais tão imprescindíveis à
nossa formação humanitária e cidadã em tempos de identidade globalizada.
143
Adotando das palavras de Silva ( 2006) quem tem o poder de representar,
de atribuir sentidos tem o poder de definir e determinar a identidade e a diferença
na sociedade moderna, tendo em vista a performatividade da linguagem, pois
citando Austin (1998) “a linguagem tem a preposição de, ao serem pronunciadas,
fazer com que algo se efetive, se realize” – atos de fala de Austin “sua repetida
enunciação pode acabar produzindo o fato.” Ao nos manifestarmos estamos
reproduzindo, e, em muitos casos, inconscientemente, contribuindo para reforçar
ideais que nos podem parecer alheios a nossas vontades, cumprindo os anseios da
colonização que enquanto um sistema de dominação caracterizado por processo de
colonialidade seja ele do ser ou do saber.
Vale salientar o fato de que a escola não atua enquanto único fator de
promoção desta falsa consciência tão necessária às elites para perpetuação da
colonização do ser e do saber, no entanto, cabe-nos destacar alguns momentos da
história da educação cujas ações evidenciam a colonialidade do ser e do saber.
Dentre os mais diversos períodos da história da educação no Brasil,
começamos pela República Velha, tendo em vista a criação da Associação
Brasileira de Educação e estarmos vivenciando um momento de perpetuação de um
ensino seletista, excludente e seguidor dos moldes tayloristas em voga nos
Estados Unidos e na Europa. Segundo Veiga em meio a discussões em torno de
gratuidade, laicidade, obrigatoriedade do estado para com a educação, esbarra-se
no modelo de organização política norteamericana a qual visava reformar a
educação a partir dos moldes tayloristas. Temos neste momento uma educação que
144
se dividia entre aquela oferecida aos que deveriam ser educados para pensar e
serem bem pagos aos quais oportunizava-se um leque de disciplinas da área das
humanas e àquela que se ofertava às massas populares, ou a uma pequena parcela
desta massa que tinha acesso ao sistema educacional, mas que precisavam ser
educados para executar tarefas, sendo mal pagos.
Em tempos de “República dos Estados Unidos do Brasil”, alguns daqueles
que pensavam o sistema educacional brasileiro também impunham os ideais de
colonialidade do ser e do saber mediante higienização e eugenia a fim de “incutir
novos hábitos à sociedade, pois alguns acreditavam que a população mestiça e
pobre causava certa anormalidade social, ou seja, a situação social determinava
uma situação moral degenerada” (VEIGA, 2007, p. 260). Uma das inúmeras
tentativas de moldar o imaginário cultural coletivo dos brasileiros, ao reforçar a
concepção de que a nossa população era degenerada tendo em vista a
miscigenação de raças e culturas.
145
poder público passou a atuar caso as instituições particulares não atendessem.
Seguindo, ainda, estes pressupostos que podemos caracterizar enquanto
colonialidade, fazemos alusão a Piletti (2012), o qual menciona que o ensino
primário articulava-se com cursos voltados ao artesanato ou aprendizado industrial
e agrícola tendo assim um caráter pré-vocacional às classes menos favorecidas.
Ora o cidadão pertencente a uma família pobre poderia cursar o primário, o
complementar ou até o técnico profissional, mas dificilmente poderia ingressar no
ensino superior, pois possivelmente não atenderia às exigências peculiares à
matrícula.
Em 1961, a Lei das Diretrizes e Bases da educação, que estava sendo gerada
desde a constituição de 1948 acena para melhorias educacionais, oportunizando o
acesso dos pobres ao ensino secundário. O número de escolas públicas
secundárias se amplia. A União, os Estados e Municípios “assumem” a
responsabilidade de gerenciar e manter financeiramente o ensino, o qual passa no
ensino médio a incluir o ginasial, colegial, técnico. “Qualquer ramo do 1ºciclo passou
a dar direito à matrícula em qualquer modalidade do 2º ciclo concluído – secundário,
técnico ou normal – passou a permitir o ingresso no ensino superior” ( PILETTI,
2012, p. 194) . Neste período também se tem uma abertura em relação aos
currículos diferenciados tendo em vista as realidades regionais, os contextos de
146
aprendizado. A cultura passa a ser pensada enquanto princípio norteador do
processo de ensino aprendizagem, alfabetização. Momento em que se destaca
Paulo Freire ao revolucionar os métodos de ensino, num país que boa parte da
população ainda se encontrava analfabeta.
147
Quanto aos manuais de ensino ou livros didáticos, muitas vezes, o único
material impresso que o aluno do ensino primário e secundário dispunha ou
atualmente dispõe para o desenvolvimento de suas leituras e consequentemente
para a formação de seu imaginário coletivo, o acordo assinado para fins de
publicação de livros didáticos chama nossa atenção. Conforme Jelvéz o
148
nas grades curriculares, pois sua oferta fica condicionada às sugestões dos
documentos oficiais ou às possibilidades de inserção enquanto componente
curricular não constando nos Parâmetros Curriculares Nacionais ( documento que
substitui os currículos mínimos federais) nenhuma menção à língua e cultura greco-
latina.
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152
GESTÃO DE MARCAS E EXPERIÊNCIA EMOCIONAL - OS SENTIDOS E A
FIDELIZAÇÃO DO CONSUMIDOR
INTRODUÇÃO
40
Professora universitária, pesquisadora, possui Doutorado pela Universidade de São Paulo na área do Desenvolvimento
Humano, é autora de inúmeros artigos científicos e capítulo de livros. Contato: cleusa.sakamoto@geniocriador.com.br
41 Estudante de Publicidade com Trabalho de Conclusão de Curso sobre Branding Sensorial. Contato:
amandamendeszerbinatti@hotmail.com
153
construção de marcas no futuro, fazendo um convite à reflexão sobre peculiaridades
atuais do mercado consumidor e suas tendências.
154
“É o conjunto de atividades que visa otimizar a gestão de marcas de uma
organização como diferencial competitivo”.
A gestão de marcas visa o cuidado na abordagem do relacionamento com o
consumidor, para tornar a marca presente e importante na preferência de compra
valorizando-a para manter seu ciclo de vida. Sua meta maior consiste em alcançar
a fidelização de consumidores que passem a identificá-la em suas características
principais e a julgá-la insubstituível em decorrência do vínculo estabelecido de
satisfação. Uma marca nestas condições atende a uma necessidade de consumo e
goza de um laço afetivo com o consumidor que a torna parte de sua vida cotidiana,
o que traduz a fidelização da marca.
A fidelização de uma marca é definida pelo acúmulo de experiências positivas
vividas pelos consumidores no relacionamento com produtos ou serviços; é
decorrente, portanto, de um processo de experimentações, percepções e
julgamentos, em uma sucessão de experiências satisfatórias propiciadas pelo
produto ou serviço.
As experiências satisfatórias com as marcas constituem um referencial
vivencial que determinam decisões inconscientes pautadas em fatores sensoriais
presentes neste relacionamento que são capazes de despertar memórias ou evocar
sensações agradáveis. Afirma Strunck (2011, p. 90) que “Na verdade, mais de 80%
das decisões que tomamos em nosso dia a dia são determinadas pelo nosso
inconsciente, ou seja, oito em cada dez produtos que compramos são escolhidos
por um processo que podemos chamar de irracional”.
Se de um lado, é fundamental ter em vista que aspectos inconscientes
participam de nossa apreciação e escolha de marcas, também é relevante
considerar que processos perceptivos estão intrinsecamente implicados na escolha
de consumo; sendo assim, é necessário considerar que “o estímulo sensorial não
apenas nos faz agir de maneiras irracionais, como também nos ajuda diferenciar um
produto do outro. Os estímulos sensoriais se incorporam na memória a longo prazo,
eles se tornam parte de nosso processo decisório.” (LINDSTROM, 2012, p.18).
“O fato é que experimentamos praticamente toda a nossa compreensão do
mundo através dos sentidos. São nossa ligação com a memória. Tocam nossas
155
emoções, passadas e presentes” (LINDSTROM, 2012, p. 13). Isto porque o corpo
por meio dos sentidos é um receptor de informações no contato com o meio, é ele
que oferece informações ao nosso entendimento do que se passa por meio dos
sentidos; são os sentidos em todo e qualquer relacionamento com o ambiente que
captam dados e constituem a percepção. Contudo, na medida em que outras
dimensões da experiência se colocam ao lado do físico compondo nosso Eu, é
importante considerar que aspectos relativos a estruturas mentais, a esfera
emocional de nossa subjetividade e os fatores complexos da vida social, participam
da situação de comunicação entre marca e consumidor. Senso assim, os dados
oriundos do ambiente são interpretados de modo próprio a cada pessoa,
transformando a situação sensorial vivida em experiências afetivas, dotadas de
significado intelectual e sociocultural.
O ato de perceber depende da captação de estímulos do ambiente e da
interpretação dada a este conjunto de informações pelo indivíduo, sendo assim,
remete à bagagem acumulada de experiências daquele que percebe, de seu
processo de incorporação de códigos, da assimilação de hábitos e costumes, do
acesso e interpretação de simbolismos culturais.
Perceber implica interagir com fatores que geram reações emocionais e
repercussões afetivas vinculadas aos objetos e eventos percebidos, que são
revestidos de significados segundo a singularidade pessoal e os parâmetros sociais
daquele que percebe e, neste sentido, deflagram os processos comunicacionais.
Situações que envolvem estímulos perceptivos com qualidade afetiva e emocional,
notadamente provocam um processo diferenciado de relacionamento e
interpretação sobre o percebido. A afetividade humana participa da função
discriminatória da percepção do ser humano, pois ela investe de significado a
situação que a desperta.
“Segundo Vigotski (1987), qualquer que seja a forma do pensamento:
representações afetivas, imaginação, fantasia ou o pensamento lógico, ele tem em
sua base uma emoção.” (CAMARGO, 1999, p. 17).
O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto
é, por nossos desejos e necessidade, nossos interesses e
emoções. Por trás de cada pensamento há uma tendência
156
afetivo-volitiva, que traz em si a resposta ao último “por que”
de nossa análise do pensamento. Uma compreensão plena e
verdadeira do pensamento de outrem só é possível quando
entendemos sua base afetivo-volitiva (VIGOTSKI, 1987, p. 129
apud CAMARGO, 1999, p. 18).
157
receptor não é mais um mero receptor, pois ele não só reduziu
sua capacidade de recepção como também se transformou em
um emissor com as mesmas prerrogativas de emissor
clássico. Com a avassaladora revolução tecnológica, que
presenciamos hoje, o nosso antigo receptor agora produz
informação, gera conteúdo e planeja mensagens, canais,
frequência, buzz. (HILLER, 2012, p. 25)
Diante deste cenário o grande desafio das marcas é destacar sua presença
e construir um vínculo com consumidores exigentes e pouco fiéis, considerando o
aumento constante da competitividade; o atual mercado apresenta fatores que
exigem uma nova postura das empresas que querem estabelecer uma comunicação
eficaz com seu público e conquistar a fidelização.
Fazer uso de estímulos visuais e auditivos não são mais suficientes para
alcançar uma comunicação satisfatória com os consumidores, que são
bombardeados de informações a todo o momento; surge assim, a necessidade de
inovar e buscar formas de comunicação que mostrem a potencialidade de atender
demandas atuais e possam superar o desafio da grande quantidade de ofertas de
produtos e serviços. Desta realidade emerge a necessidade de constituir uma nova
forma de comunicação que inclua fatores capazes de auxiliar a diferenciação de
produtos e serviços, como as emoções por exemplo. Uma comunicação que
desperta emoções e desencadeia uma experiência com qualidades afetivas conecta
e traz à lembrança memórias significativas do passado que fortalecem os vínculos
do presente e estabelecem perspectivas de relacionamento duradouro no futuro.
Assim, surge o Branding Sensorial para atender a demanda de uma comunicação
mais próxima e afetiva com o consumidor por meio do envolvimento dos cinco
sentidos.
Segundo o artigo: Emoções e sentidos no mobile marketing: Resgatando
caminhos para a lealdade da marca, publicado no site do IBOPE (Instituto Brasileiro
de Opinião Pública e Estatística), a comunicação entre marca e consumidor no
cenário atual, está associada a dois conceitos que podem ser potencializados, são
eles: 1- a conexão emocional, 2- o envolvimento utilizando os sentidos que
provocam uma experiência inesquecível para o consumidor. Ou seja, as marcas
necessitam “se transformar em uma experiência sensorial que vai muito além do
158
que vemos” (LINDSTROM, 2012, p.8), para não passar despercebida e sobreviver
no imaginário dos consumidores.
Branding Sensorial é uma abordagem de gestão de marcas que caminha
nesta exata direção, a de envolver os cinco sentidos que podem deflagrar uma
experiência marcante que possui repercussões emocionais para o consumidor. É
uma modalidade de gestão de marcas que se alicerça na ideia de que “a marca é o
sentimento que os consumidores têm pela sua empresa” (HILLER, 2012 p.55).
O mundo contemporâneo que reinventou a vida de relacionamentos
interpessoais no ciberespaço e em rede, também introduziu a conexão em tempo
real e modificou os paradigmas de compreensão sobre o que deve ser uma
comunicação eficaz e a experiência de satisfação nas escolhas de consumo. Não
basta constatarmos qualidades técnicas satisfatórias nos produtos e serviços, é
desejável que eles estabeleçam uma relação de proximidade com o consumidor que
possa oferecer uma experiência relevante, já que mais que satisfazer o produto ou
serviço precisa surpreender e permitir um ganho excedente, o de personalizar a
experiência de consumo. O Branding Sensorial propõe atender esta demanda ao
oferecer – vivência, experimentação, emoção, surpresa e capacidade de interação
subjetiva pautado em um relacionamento personalizado de experiência emocional.
O Branding Sensorial surge da necessidade de construir vínculos emocionais
com os consumidores estabelecendo um campo novo de comunicação que possui
potencial para fortalecer os processos de fidelização.
Na medida em que na vida dos seres humanos a afetividade é parte inerente
da construção da subjetividade e determinante da definição da identidade e de suas
escolhas peculiares em relação a toda situação significativa, o Branding Sensorial
representa uma abordagem eficaz que inaugura um fértil campo de estudo e de
compreensão sobre o consumidor nos dias atuais e o papel da publicidade no
mundo contemporâneo.
159
CONSIDERAÇÕES FINAIS
160
campo promissor de estudo para o entendimento das marcas no futuro. Com a
globalização e a internacionalização de mercados que acentua o acirramento da
concorrência entre as empresas, descortina-se um horizonte sobre o futuro das
marcas em que será necessário introduzir mecanismos de melhor visibilidade
massiva que promova a exaltação de peculiaridades de cada produto ou serviço,
exacerbando em quantidade e qualidade a publicidade mercadológica.
Provavelmente neste século de intensa variedade de ofertas de produtos e
serviços, inclusive com grande número de inovações, constataremos um curioso
paradoxo: de um lado um apelo comunicativo cada vez mais amplificado envolvendo
os cinco sentidos e uma experiência imersiva de relacionamento com os produtos e
serviços que gera o empoderamento da fidelização, e de outro lado, o enrijecimento
de costumes como o descarte, que é o comportamento padrão da realidade
consumista praticada mundialmente.
A discussão na contemporaneidade sobre a experiência de fidelização de
marcas pelo consumidor introduz de maneira sutil um olhar acerca de valores
humanos no contexto dos hábitos capitalistas, que pode determinar de modo
transversal o legítimo tempo de vida de produtos e serviços. É valido supor que o
Branding Sensorial possa contribuir para a permanência no mercado, de marcas
que enalteçam a oferta de produtos e serviços com qualidades reais que possam
atender as demandas de consumidores exigentes.
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162
NARRATIVAS E METANARRATIVAS EM GAMES
Introdução
O mercado de jogos eletrônicos ampliou-se espantosamente nas últimas
décadas. A constatação desse fato, através de números mercadológicos ou da
simples observação do crescimento de jogadores e da frequência com que jogam à
nossa volta, levou à formação de um grupo de estudos no Centro de Comunicação
e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie com a finalidade de pesquisar
tanto a conformação desse mercado, no que diz respeito à circulação e valorização
dos produtos, como a caracterização dos produtos em si. Para tal, reuniram-se
professores das áreas de Publicidade e Propaganda, Computação e Letras, com
pesquisa acadêmica nos âmbitos da semiótica, do desenvolvimento de softwares e
da narrativa. Ao grupo de professores, aliaram-se, como peças fundamentais,
alunos com o importante conhecimento empírico de jogos digitais e a familiaridade
com o universo hodierno, habitado cotidianamente pelos mesmos. 45 Os estudos
concentraram-se especificamente, num primeiro momento, no jogo chamado
League of Legends.
A necessidade de desenvolver pesquisas acadêmicas a respeito dos jogos
digitais se deve a alguns fatores relativos à situação em que se encontravam até
bem pouco tempo: por um lado, havia ressalvas tradicionalistas à atribuição de valor
acadêmico aos games e, por outro, a produção crítico-teórica achava-se
fragmentada em diversas perspectivas e âmbitos científicos, o que não permitia um
enfoque integrado e, consequentemente, obstruía uma compreensão mais global
dos mesmos. Embora esse cenário venha gradualmente mudando nos últimos
163
tempos, a produção de estudos sobre jogos eletrônicos é ainda incipiente no
contexto acadêmico brasileiro. Nesse sentido, nosso grupo tem por objetivo
colaborar, em nosso país, com a construção do olhar acadêmico sobre os games
de maneira integrada, contando para tal com o benefício da configuração
institucional em que nos encontramos (estamos em um Centro de Comunicação e
Letras).
Das pesquisas do grupo surgiu a indagação geradora do presente trabalho:
seria o aspecto narrativo dos games, cujo poder de sedução vem articulado pelas
construções tecnológicas eletrônico-digitais, um dos fatores decisivos para o
meteórico crescimento de sua penetração na sociedade atual? O texto que segue
procura apontar elementos importantes para a construção de uma resposta a essa
pergunta, embora o trabalho do grupo, ainda no começo, mantenha-nos conscientes
de ser ela apenas uma provisória e incompleta etapa em um processo de
aprofundamento em curso.
164
carência, todavia, não é exclusiva da incidência do ato de narrar em games, mas
talvez se deva à dispersante multiplicidade de meios em que às narrativas podem
manifestar-se hoje em dia. Diante da falta de perspectivas teóricas pontuais, os
muitos usos da narrativa geraram reflexões acadêmicas no rumo oposto: o da
abrangência.
A fim de abarcar as mais diferentes formas de incidência da narrativa, criou-
se o termo Narratologia como proposta de estudos para as mais diversas áreas. A
narratividade hoje propõe-se como teoria abrangente, aplicável tanto aos mitos
como à literatura, à publicidade ou aos mundos virtuais e lúdicos dos videogames,
bem como a qualquer domínio ou meio que faça uso sistemático da narrativa 46.
Embora os acadêmicos advoguem o apartidarismo da teoria da narratividade, para
muitos estudiosos dos jogos eletrônicos abordá-los pelo viés narrativo significa
ainda uma subordinação a outras áreas com estatuto epistemológico próprio e uma
tradição – como a literária – insuperáveis. Em função disso, Gonzalo Frasca, em
1997 propôs a criação de um termo novo – Ludologia – para referir “the yet non-
existent ‘discipline that studies game and play activities’”. E na sequência, fez a
ressalva: “Just like narratology, ludology should also be independent from the
medium that supports the activity” (FRASCA: 1997). No mesmo ano, Espen Aarseth
foi responsável por outro trabalho de esforço semelhante em que procurava criar
um espaço crítico-teórico específico para a realidade dos videogames através da
proposição conceitual do que chamou de ergodic literature, definida em
contraposição com a literatura convencional:
In ergodic literature, nontrivial effort is required to allow the reader to traverse the
text. If ergodic literature is to make sense as a concept, there must also be
nonergodic literature, where the effort to traverse the text is trivial, with no
extranoematic responsibilities placed on the reader except (for example) eye
movement and the periodic or arbitrary turning of pages. (AARSETH: 1997, 1-2)
46
O termo Narratologia possui histórico e aplicações variadas. Em termos gerais, sua definição e seu uso
podem ser divididos em dois momentos: a era dos precursores de extração francesa – de raízes formalistas e
estruturais – e a era das produções de expressão anglo-saxã – de enfoque multidisciplinar e orientação teórica
diversificada. (MEISTER, 2003; PIER, 2008).
165
Na esteira dessas iniciativas, 2001 foi declarado o Ano Um dos estudos de
games, que passavam a apresentar-se como uma nova cadeira/disciplina dentro
das universidades (AARSETH: 2001).
Caracterizando o protagonismo
A pesquisa sobre produções teóricas posteriores na área recém-criada
mostrou-nos que, apesar de todo o empenho de acadêmicos como os pioneiros
Frasca e Aarseth em separar os estudos sobre jogos eletrônicos dos estudos sobre
a narrativa, as definições e os conceitos diferenciadores apresentados sempre
recorrem à narrativa para desenhar seus contornos e sua aplicabilidade, como
pudemos verificar nos escassos dois exemplos acima. O que aqui postulamos,
dentro da indagação inicial que nos moveu a produzir essa comunicação, é o
protagonismo da narrativa dentro do discurso dos jogos eletrônicos, configurada de
uma forma distinta, logo, estruturalmente não-tradicional, mas ainda assim,
alicerçada sobre os princípios fundamentais que conformam as narrativas em geral.
Teorizações de variadas extrações costumam destacar como elemento
essencial inerente à narrativa: a disposição de eventos em cadeia cronológica e
espacialmente submetida a leis de causa e efeito 47. A forma de transmissão desse
material, contudo, pode variar conforme a linguagem, o discurso e os meios
adotados para tal. Vejam-se, por exemplo, as familiares circunstâncias em torno do
teatro e do cinema: em ambos os componentes fundamentais da narrativa acima
destacados estão presentes, mas as linguagens envolvidas, diferentemente do que
ocorre na literatura, incluem o ingrediente não-verbal, possuem dimensão discursiva
de recepção/interação distinta (em geral sem narrador) e lançam mão de recursos
técnicos adicionais fornecidos pelo meio (linguagens cênica e audiovisual). A
despeito das especificidades, o caráter predominantemente narrativo do teatro não
costuma ser questionado. Já no caso do cinema, embora se reconheça a
preeminência do narrar, houve quem questionasse teoricamente a existência de
47
Devido ao exíguo espaço de discussão do presente trabalho, não nos propusemos a um aprofundamento nas
questões definitórias sobre narrativa. Tomamos aqui como base a definição mais atual, geral e funcional de
Gérard Prince de que um objeto é uma narrativa “if it is taken to be the logically consistent representation of
at least two asynchronous events that do not presupose or imply each other” (PRINCE: 2008).
166
uma instância narrativa em filmes, devido à dificuldade de aplicação dos parâmetros
de narração literária ao texto fílmico (CHATMAN: 1980).
O protagonismo da narrativa também foi defendido por um dos trabalhos mais
divulgados sobre o assunto games: Hamlet on the Holodeck (1997), em que a autora
Janet H. Murray defende serem os videogames mais uma forma de materialização
da narrativa, com características próprias, mas, ainda assim, narrativa. Dentre as
especificidades apontadas por Murray, encontra-se o papel não passivo ou
contemplativo do receptor, consequência da natureza participativa da narrativa dos
games, que inclui: imersão, agenciamento da história e a percepção caleidoscópica
do universo ficcional.
As narrativas assim caracterizadas, destacam outros autores, estruturam-se
através de uma hierarquia construtiva e funcional de dois níveis narrativos: o nível
embutido e o nível emergente.
“Embedded narrative is pre-generated narrative content that exists prior to a
player’s interaction with the game. Designed to provide motivation for the events
and actions of the game, players experience embedded narrative as a story
context. […] Unlike embedded narrative, emergent narrative elements arise during
play from the complex system of the game, often in unexpected ways. Most
moment-to-moment narrative play in a game is emergent, as player choice leads
to unpredictable narrative experiences.” (SALEN & ZIMMERMAN: 2003: 383)
Entrando no jogo
As relações qualitativas e quantitativas entre os níveis embutido e emergente
variam de jogo para jogo e estão parametrizadas pela jogabilidade estabelecida. No
caso de League of Legends – game criado em 2009 e hoje um dos mais populares
-, predomina o elemento emergente, subordinado à jogabilidade do subgênero
Multiplayer online battle arena (MOBA), um tipo de jogo de competição / estratégia
em tempo real para vários jogadores online48.
O sucesso desse jogo levou muitos a se perguntarem quais os ingredientes
responsáveis pelos números astronômicos oficialmente divulgados em 2014: 67
48
O termo MOBA é utilizado pela produtora de videogames Riot Games, enquanto que o termo ARTS,
abreviação de Action Real-Time Strategy, é utilizada pela produtora Valve, ambas para descreverem jogos do
mesmo tipo.
167
milhões de usuários até 2013 (com crescimento anual de 109%), atingindo o número
de 27 milhões de jogadores diários no mesmo ano (crescimento de 125%)49. No
Brasil, o jogo conta com muitos adeptos, a ponto de abrigar um Campeonato
Brasileiro que levou, em abril de 2015, 12 mil espectadores presencias ao estádio
Allianz Parque (estádio do Palmeiras), somados a outros 10 mil que acompanharam
as partidas em 44 salas de cinema espalhadas pelo país (acrescidos do número não
computado de espectadores que assistiram via internet mundo afora)50.
Dois elementos foram identificados pelo grupo, em discussões internas e em
coletas de opiniões informais entre jogadores, como determinantes para o
engajamento de tantos aficionados: o caráter competitivo multiplayer e online da sua
jogabilidade e a relevância da narrativa emergente na configuração do jogo, que
torna possível a cada equipe a construção da sua própria “história”, através da
conjugação de escolhas estratégicas com as habilidades pessoais dos jogadores
nos confrontos das batalhas.
Ser a narrativa um componente essencial para a adesão a esse jogo em
particular ou aos jogos eletrônicos em geral é ainda afirmação pendente de
pesquisas complementares que vêm sendo encaminhadas pelo nosso grupo de
estudos, através de indagações teóricas adicionais e de enquetes junto ao público
(como, por exemplo, por meio de entrevista já agendada com membros de equipe
campeã nas competições).
Contudo, alguns fatores podem desde já ser indicativos da primazia narrativa:
cenários, personagens e enredos em League of Legends recontextualizam
elementos épicos cuja popularidade, embora possua oscilações de tempos para
tempos, nunca foi abandonada, como o aponta Joseph Campbell ao analisar
diversas narrativas com destaque para seus recursos mítico-heroicos (CAMPBELL:
1949 e 1985). Ao lado do potencial cativante dos componentes épicos – mais
49Últimos números oficiais da produtora, divulgados na imprensa brasileira como, por exemplo, no portal G1,
disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/games/noticia/2014/01/league-legends-alcanca-67-milhoes-de-
jogadores.html. Consulta em 20/09/2015.
50 Elementos divulgados pela imprensa como, por exemplo no portal Tech Tudo, disponível em:
http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/08/league-legends-reune-12-mil-fas-no-estadio-do-
palmeiras-para-final-do-cblol.html. Consulta em 20/09/2015.
168
associados à narrativa embutida que à emergente, mas não exclusivos dela -, está
o fator que nos parece sobrepujar vários motores da adesão aos jogos: o caráter
imersivo-participativo do narrar. O desejo de “viver” uma fantasia originada num
âmbito ficcional na pele de um de seus personagens manifesta-se há tempos na
literatura, como bem o aponta Murray ao mencionar Dom Quixote:
Ele [Dom Quixote] representa aquela parte de cada um de nós que anseia saltar
desta vida diária para dentro das páginas de nosso livro predileto ou (...) “entrar
na tela” de um filme emocionante. (...) desejo ancestral (...) [que] foi intensificado
por um meio participativo e imersivo que promete satisfazê-lo de um modo mais
complexo do que jamais foi possível. (MURRAY: 1997, 101)
169
Se o livro total e o game total existem apenas na ideia, o desenvolvimento
tecnológico procura aproximar-se dele a cada novo avanço e alimenta, com isso, o
anseio de jogadores em todo o mundo em aderir mais e mais a esse tipo de
comunicação e, por que não dizer, a esse tipo de leitura de narrativas.
A utopia do rizoma pleno inclui o desejo demiúrgico de um mundo
subordinado ao arbítrio humano através do exercício da autoria dentro de universos
ficcionais cuja primorosa construção digital os faz muito parecidos com a realidade
(a exemplo do que vemos em Matrix). O jogador, por meio de suas escolhas e
encarnando seu personagem, parece ser o dono de seu destino e, se jogar bem,
parecerá ser aquele que determina o destino de outros personagens do mesmo
universo ficcional; o herói que construirá o final da história. A sensação de autoria
dos jogadores, nos ambientes dos jogos digitais, devido aos recursos audiovisuais
e às condições de imersão e agenciamento crescente (pois as produtoras investem
em jogos cada vez mais emergentes ou abertos), parece-nos um fator decisivo no
contato com esse meio.
Murray distingue as noções de “autor” e “interator” para os jogos digitais, com
o segundo definindo o jogador e o primeiro definindo apenas o designer-
programador. Para ela o jogador não pode ser identificado com qualquer função de
autoria, pois age limitada e controladamente dentro dos ambientes lúdico-digitais,
ao contrário do que afirmam outros teóricos que defendem a atribuição de graus de
autoria àquele que controla o mouse em todos os ambientes virtuais, do hipertexto
aos jogos eletrônicos (MURRAY: 1997, 149-150).
Para o nosso trabalho, interessa observar que a existência de discussões
sobre a presença ou não de um exercício de autoria nas práticas dos videogames
certamente é indicativa de que a relação caracteristicamente passiva do receptor
das mensagens narrativas tradicionais – na literatura – encontra-se aí fortemente
alterada. Alguns teóricos relacionam o exercício do jogador de games à posição
menos passiva de outras mensagens narrativas diferentes daquela do leitor de livros
impressos como no teatro, no cinema e até mesmo na dança, pois aí o ator ou
bailarino constrói sua performance e é, assim, em parte autor do resultado que
chega à plateia. Gostaríamos de observar, contudo, que nesses meios a recepção
170
da narrativa está vinculada a dois sujeitos: o ator/bailarino e o espectador, que
assiste duplamente à performance daquele e à elaboração do diretor/coreógrafo.
Nos jogos eletrônicos, quem joga acumula as funções desses dois sujeitos e talvez
seja isso que lhe confira mais fortemente a sensação de autoria, devido à maior
proximidade que o meio lhe permite com o trabalho autoral do
dramaturgo/roteirista/compositor51. Acreditamos ser esse mais um fator associado
ao importante papel das narrativas para a penetração dos jogos na atualidade.
Além da proximidade com a autoria, outro motor que nos parece conduzir ao
êxito dos games é o seu caráter metaficcional. Devido aos dois níveis de narrativa
presentes nos jogos – embutidas e emergentes -, e em virtude de os jogadores
atuarem apenas no nível emergente - ao jogar e tomar decisões construtivas nas
bifurcações do caminho narrativo do jogo-, esses jogadores realizam um trabalho
metaficional: elaboram uma ficção sobre a ficção embutida previamente fornecida.
O texto metaficcional pode ser definido como aquele que comunica autoconsciência
ficcional da narrativa como construto, mas que, simultânea e paradoxalmente, não
destrói a ilusão ficcional. Nela, aquele que recebe a narrativa vive a fantasia e, ao
mesmo tempo, sente que participa da produção do universo ficcional (acompanha /
fabrica) (HUTCHEON: 1980).
O jogador de videogames não realiza apenas um trabalho de preencher
lacunas de uma narrativa prévia (embutida) ou de complementá-la, usando-a como
mero ponto de partida. Faz mais: elabora seu personagem, em muitos casos, como
em League of Legends, seleciona cenários; descarta ações, escolhe e refaz
caminhos, reelaborando trechos da sua narrativa que não tenham tido bom
resultado (usa suas “vidas” para tal). Embora não seja frequente a presença de
partes do enredo dos videogames em que figure o autor do jogo ou a origem da
narrativa, como nos canônicos recursos de verossimilhança consagrados pela
metaficção na literatura (narradores-autores, cartas, diários ou manuscritos
encontrados, por exemplo), nos videogames a sobreposição das narrativas e a sua
51Embora nas competições haja espectadores das batalhas de League of Legends, podemos afirmar sem medo
de errar que esses espectadores são jogadores assíduos e seu interesse nos Campeonatos se deve à sua
experiência como praticantes do jogo e não a um interesse passivo, pois a compreensão passiva de uma batalha,
por parte de não-jogadores, é bastante limitada.
171
natureza participativa produzem uma consciência do fazer narrativo paradoxalmente
imersiva. Diferente da autoconsciência dos textos metaficcionais literários, nos jogos
eletrônicos a dinâmica participativa das duas camadas narrativas ressalta o próprio
meio em suas qualidades construtivas. Dito em outras palavras: o jogador sabe todo
o tempo que se trata de um construto, pois participa de sua construção, mas está
tão imerso, em função do agenciamento em suas mãos, que se sente incapaz, por
exemplo, de referir-se aos elementos desse construto conjugando os verbos de
maneira distanciada em 3a pessoa: diz sempre Eu (“eu morri”, “eu matei”). Está
dentro e fora; sente e vive; analisa e constrói. Pode experimentar uma narrativa com
a sensação de ser um leitor com mais poderes e, ao mesmo tempo, um autor com
menos encargos.
Concluindo
Como resultado das indagações iniciais de nosso grupo de estudos, podemos
concluir que, a despeito da necessidade de desenvolvimento de pesquisas
específicas dedicadas aos jogos eletrônicos como meio, linguagem e discurso, a
presença inelutável da narrativa nos mesmos impõe a urgência de reflexões
intermidiáticas para a ponderação a respeito do que há de universal ou particular
nessas histórias digitais. O protagonismo da narrativa para a construção dos games,
bem como para a sua dinâmica de comunicação/leitura, junto aos jogadores, já foi
destacado por algumas ponderações consideradas hoje canônicas dentro do jovem
terreno acadêmico a eles dedicado. No caso do material analisado pelo grupo –
League of Legends -, o protagonismo do nível emergente, combinado com a
configuração competitiva, parece-nos determinante de grande parte do seu sucesso
junto ao público. Para tal, contribuem ingredientes épicos, de invariável poder
atrativo e enorme capacidade de adaptação aos mais diferentes meios e linguagens,
assim como as crescentes possibilidades de imersão e agenciamento dentro do
universo ficcional. Vestindo a pele de um personagem, o jogador aspira ao aberto e
rizomático controle desse universo, em inédita proximidade com a perspectiva da
autoria, acumulando as funções de criação e performance de grande parte da
narrativa desenvolvida. Por fim, a dinâmica metaficcional resultante da atuação do
172
jogador, que trabalha autoconscientemente sobre essa narrativa, destaca seu teor
construtivo, especialmente no que diz respeito às determinações do meio sobre as
possibilidades de expressão e interação. A percepção de aspectos metaficcionais
nos games nos leva, assim, a concluir mais uma vez sobre a inerente necessidade
de considerações intermidiáticas para uma melhor compreensão não só do papel
das narrativas na crescente presença dos mesmos em nossa sociedade, mas
também para um maior entendimento dessa forma de expressão em geral.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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& London: The Johns Hopkins University Press, 1997.
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ciberespaço. São Paulo: Unesp, 2003.
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New York: Walter de Gruyter, 2008.
SALEN & ZIMMERMAN, (2003) Rules of Play: Game Design Fundamentals.
Massachusetts Institute of Technology, 2004.
173
O FANTÁSTICO NA OBRA DE CARLOS FUENTES:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Introdução
53
Declaração feita durante entrevista a Ricardo C. Gally. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 262.
174
entender de que maneira essas reiterações contribuem para significar o conjunto da
obra do mexicano. Almejamos ainda refletir sobre de que maneira essas reiterações
dialogam com um Fantástico considerado mais tradicional, ou seja, aquele
produzido por autores do século XIX. Para tanto, trataremos de uma obra que
consideramos seminal dentro do conjunto literário de Carlos Fuentes: Los días
enmascarados (1954), buscando jogar luz sobre as temáticas apresentadas em
suas narrativas que também surgem em textos posteriores do autor, aqueles
incluídos dentro do ciclo “El mal del tiempo”. Como referencial teórico, lançaremos
mão, quando julgarmos necessário, de autores como Filipe Furtado, por exemplo.
Esperamos com isso contribuir para uma análise mais abrangente e polissêmica da
obra de Carlos Fuentes.
54
Afirma Alfredo Hurtado: “El número 2 [“Los Presentes”] correspondió al título Los días enmascarados, de
Carlos Fuentes. Libro de prosa bien cuidada: literatura evasiva y, por tanto, nada americana, aunque bastante
elogiada por sus amigos. El autor no da un paso si no pone sus ojos en la decrépita literatura inglesa”. Apud
OLEA FRANCO, 2004, p. 139.
175
realidad o no es literatura”55. Rafael Olea Franco completa: “Los Días enmascarados
inventa un mundo fantástico que posee fuertes nexos con el México contemporáneo,
con el cual y desde el cual discute [Carlos Fuentes]” (2004, p. 144). Por essa
perspectiva, percebe-se que, para o autor, deve-se conjugar, num texto literário, a
imaginação e a linguagem, elementos fundamentais que, quando bem arquitetados,
são capazes de levar o leitor a fazer reflexões que transcendam o próprio texto.
Assim, em sua primeira publicação, Carlos Fuentes, utiliza-se do gênero
fantástico para descortinar “novas” realidades e questionar a noção de discurso
unívoco ao criar histórias que apresentam intrincados jogos narrativos que tratam
de questões referentes à formação da identidade mexicana, assim como da História
do México e da diversidade cultural deste país. “Chac Mool”, “Tlactocatzine, del
jardín de Flandes” e “Por boca de los dioses” são exemplos disso.
Após a publicação de Los días enmascarados, Carlos Fuentes segue
escrevendo suas narrativas e, em determinado momento, num esforço criativo de
tentar significar as suas obras dentro do conjunto de sua produção, ele as agrupa
em ciclos. Para aquelas em que surge o insólito, ele reservou o ciclo chamado de
“El mal del tiempo”, do qual trataremos a seguir.
55
Entrevista concedida a Alfred MacAdam e Charles Ruas. In: HERNÀNDEZ, Jorge (comp.). Carlos Fuentes:
territorios del tiempo (antología de entrevistas). México: FCE, 1999, p. 47.
176
Existe ainda o volume de contos Inquieta Compañía (2004), que embora não
pertença ao ciclo, exerce papel fundamental dentro do conjunto da obra fantástica
do autor, pois nele o autor utiliza-se dos mesmos recursos e temas encontrados em
Los días enmascarados e nas narrativas do “El mal del tiempo”, dando especial
destaque ao surgimento do insólito.
Nos textos de “El mal del tiempo”, Fuentes, por meio da conjunção linguagem-
imaginação, descortina realidades e histórias que fogem a explicações racionais. Ao
desvendar essas novas realidades, o autor parece almejar que seus leitores reflitam
sobre o conceito de História no qual está ancorada uma sociedade. Nesse sentido,
em seus relatos, é como se o mexicano quisesse renovar os fatos históricos por
meio do ato da criação literária, fazendo com que o passado “oficial” seja visto
apenas como uma parte da História, podendo ser reatualizado por meio da literatura,
por meio do Fantástico. Por essa perspectiva, a opção do autor pela temática do
insólito para suas narrativas demonstra algo que vai além de uma simples
preferência estético-literária: revela, antes, o seu engajamento ideológico, conforme
mostram as seguintes palavras do mexicano:
Nuestras obras deben ser de desorden: es decir, de un orden posible,
contrario al actual. […] Nuestra literatura es verdaderamente revolucionaria
en cuanto le niega al orden establecido el léxico que éste quisiera y le
opone el lenguaje de la alarma, la renovación, el desorden y el humor. El
lenguaje, en suma, de la ambigüedad: de la pluralidad de significados, de
la constelación de alusiones: de la apertura (FUENTES, 1976, p. 32) 56.
56
Carlos Fuentes se refere a seus textos e ao conjunto de textos produzido pelos escritores latino-americanos de
sua época, como J. Cortázar e G. G. Márquez, por exemplo.
177
Algumas reiterações temáticas encontradas na obra fantástica de Carlos
Fuentes:
Desde Los días enmascarados até o ciclo “El mal del tiempo”, é possível
perceber que o autor utiliza-se de determinadas continuidades temáticas, que
dialogam diretamente com a tradição fantástica do século XIX. Na esteira de
escritores como E. T. A. Hoffman, Prosper Mérimée, Bram Stoker, entre outros,
Carlos Fuentes escreve suas narrativas buscando retomar essa tradição fantástica
mais universal, sem, no entanto, abrir mão de fazer reflexões sobre o seu contexto
latino-americano. Dentre essas continuidades, sublinhamos quatro57. São elas:
57Para um estudo mais detalhado sobre o tema, ver: ZARATIN, D. A. P. “Carlos Fuentes e a Literatura
Fantástica: continuidades e revelações em Constancia”. (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana
Mackenzie. São Paulo, 2012.
178
revelando aos demais personagens o insólito. “Ambivalentes”, essas “brujas o
hechiceras” se destacam dentro do universo simbólico da narrativa fantástica ao
despertarem nas demais personagens (em sua maioria homens racionalistas, como
médicos, historiadores, arquitetos, etc) a consciência da existência de outras
“realidades”, inexplicáveis e ocultas até então.
Sobre esse protagonismo feminino, Carlos Fuentes declara sobre uma de suas
personagens: “Es una figura central y los hombres no permiten que las mujeres sean
figuras centrales; se les destierra a los extremos, pues México es un país en donde
las mujeres están condenadas a ser monjas o putas” 58
. Considerando essa
afirmação e tendo em vista a ideia de que o mexicano se caracteriza por ser um
intelectual crítico ao seu contexto, poderíamos afirmar ele utiliza a literatura para se
opor a certo machismo presente na sociedade mexicana ao criar personagens que
ganham força ao unir características antagônicas, que, desde o ponto de vista da
lógica, seria inconcebível: sagrado/profano e a vida/morte, por exemplo. Nesse
sentido, destacamos as personagens Carlota de “Tlactocatzine, del jardín de
Flandes” (1954), Consuelo-Aura de Aura (1962), Nuncia de Cumpleños (1969), a
boneca humanizada de La desdichada (1990), Constancia de Constancia (1990),
Inez de Instinto de Inez (2001), Ofelia de “El amante del teatro” e Alberta Simmons
de “La bella durmiente”, somente para mencionar alguns exemplos.
3) O duplo:
Outra reiteração temática presente nas obras de Carlos Fuentes que dialoga
com a tradição do século XIX é o surgimento do duplo. O autor emprega esse
recurso das mais distintas maneiras, cujo objetivo é o de intensificar a ambiguidade
dentro da narrativa.
58
Carlos Fuentes refere-se à Claudia Nervo, personagem do texto considerado realista Zona Sagrada (1967).
Apesar disso, essa fala do autor ajuda-nos a compreender melhor o pensamento do mexicano sobre o tema,
iluminando perspectivas interpretativas sobre a construção de suas personagens femininas, de suas obras
fantásticas ou não.
179
Assim, existem diversos tipos de duplos. Há o duplo personificado no
desdobramento físico das personagens Consuelo-Aura (Aura) e Rubén Oliva e
Pedro Romero (“Viva mi fama”); há o duplo representado na dúplice vida de
Constancia e Plotnikov (Constancia); há a dupla oscilação narrativa entre os dois
tempos e universos (pré-história-sonho e século XX-realidade) em Instinto de Inez;
há a dupla e frequente polarização entre as personagens, divididas em racionais e
não-racionais: Chac Mool-Filiberto (“Chac Mool”), Consuelo-Felipe (Aura),
Constancia-Hull (Constancia), Carlos e José-operários (“Gente de razón”), Serena
e Zenaida-Alex (“Buena Compañía”).
Há ainda o duplo encontrado nas diversas bifurcações estruturais dos textos,
como a manifestação dos distintos pontos de vista dos dois narradores de “La
Desdichada”, Bernardo e Toño; a mudança no foco narrativo da 3ª para a 2ª pessoa
em Instinto de Inez, e o uso da 2ª pessoa do singular (tú) em Aura, que suscita um
duplo espelhamento: o da personagem Felipe Monteiro e do leitor.
180
Esse recurso é fundamental para que, quando se revele o insólito, o impacto
produzido seja maior e provoque no leitor a sensação de que também a sua noção
de concretude era parcial e equivocada, sendo preciso, portanto, reconsiderá-la.
Como exemplo dessa topografia do insólito, citamos a ambientação dos casarões
de: “Tlactocatzine del jardín de Flandes”, Aura, Constancia, “La gata mi madre”,
“Vlad”, entre outros.
Considerações finais
Referências:
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CESERANI, Remo. O Fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapolli. Curitiba: Ed. UFPR,
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Hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980 (Debates 160).
FUENTES, Carlos. Los Días Enmascarados. México D.F.: Biblioteca Era, 1982 (1°
ed. 1954).
181
_________. Cuerpos y ofrendas. Madrid: Alianza Editorial, 1990.
_________. Constancia y otras novelas para vírgenes. México: FCE, 1991.
_________. Una familia lejana. México: Ed. Era, 1991.
_________. Aura. Madrid: Alianza Editorial, 1994.
_________. Inquieta Compañía. Buenos Aires: Alfaguara, 2004.
FURTADO, Filipe. A construção do Fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte,
1980.
GARCÍA GUTIÉRREZ, Georgina. Los disfraces: la obra mestiza de Carlos Fuentes.
México D.F.: El Colégio de México, 1981.
ORDIZ, Francisco Javier. El mito en la narrativa de Carlos Fuentes. León:
Universidade de León, 1987.
OLEA FRANCO, Rafael. En el reino de los aparecidos: Roa Bárcena, Fuentes y
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RISCO, Antonio. Literatura Fantástica de Lengua Española. Madrid: Taurus, 1987.
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SARTRE, Jean P. Situações I: críticas literárias. Tradução: Bento Prado Júnior e
Cristina Prado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura Fantástica. Trad. Maria Clara C.
Castello. São Paulo: Perspectiva, 2007 (Debates 98).
ZARATIN, D. A. P. “Lo Fantástico en ‘Tlactocatzine, del jardín de Flandes’ (1954) de
Carlos Fuentes”. In: Actas del Coloquio Internacional El orden de lo fantástico:
territorios sin fronteras. Lima: CELACP, 2011 (p. 132-139). 1 CD-ROM.
_________. “Carlos Fuentes e a Literatura Fantástica: continuidades e revelações
em Constancia”. (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie. São
Paulo, 2012. Disponível em:
http://tede.mackenzie.com.br/tde_arquivos/8/TDE-2013-10-29T171409Z-
1760/Publico/Daniele%20Aparecida%20Pereira%20Zaratin.pdf. Acesso em: 10 de
outubro de 2015.
182
DOIS CARAMURUS: UM ESTUDO DE ADAPTAÇÃO LITERÁRIA
SOBRE ADAPTAÇÕES
Obras adaptadas não são, normalmente, vistas com bons olhos por aqueles que
defendem a primazia do original. Claro que se uma obra literária foi concebida para
ser uma novela, ela deve ser lida, criticada, apreciada como tal. O que levaria então
alguém a ler uma adaptação? Um dos motivos poderia ser o fato de que tal obra foi
escrita em uma língua que o leitor não domina e não havendo uma tradução (que
conservasse o gênero textual, a estrutura narrativa etc.) restou-lhe a adaptação.
Vendo por este prisma, a adaptação seria, de fato, algo menor. Mas se pensar que
a adaptação foi concebida para o público infantil, por exemplo, que não teria como
ter acesso ao original mesmo que fosse escrito no mesmo idioma das crianças em
questão, e que não teria competência para lidar com o linguajar mais denso e
elaborado de um texto para adultos, possibilitando assim que leitores em formação,
já cedo em sua vida literária, tomassem contato com textos fundamentais da
literatura, a adaptação passa a ser um instrumento de valor inestimável. “O ato de
adaptar uma obra para determinado público não deve caracterizar um procedimento
condenável em si mesmo” (FARIA, 2008, p.36).
Possibilitar que crianças em início de alfabetização possam ter contato com texto
como Dom Quixote ou a Odisseia, que jovens desinteressados por livros possam
apaixonar-se por Machado de Assis depois de ler algum de seus contos
transformados em história em quadrinhos, que obras esquecidas voltem a ter o
merecido destaque depois de serem transpostas para a televisão em uma minissérie
ou que escolares em véspera de exames possam compreender um pouco do enredo
de uma obra ao jogar sua adaptação para videogame; são aspectos louváveis das
adaptações em suas mais variadas realizações. “Assim, a adaptação de obras ao
gosto dos jovens seria a solução ideal para resolver o problema deles em relação à
falta de interesse e preparo intelectual” (FARIA, 2008, p.38).
59
IBILCE/UNESP – FATEC LINS/BAURU
183
É um erro já bastante discutido, imaginar que o adaptador é alguma espécie de
usurpador da obra alheia, que rouba uma ideia e tira vantagem dela. Seria
ignorarmos aquilo que Borges nos dizia em relação aos precursores. Em outras
palavras, para muitos a adaptação seria precursora da obra original, uma vez que
foi por meio dela que tomaram conhecimento do texto que, cronologicamente, veio
primeiro. “Cabe ao adaptador o papel de mediador entre o leitor [...] e a obra literária
original” (VIEIRA, 2010, p.29).
A adaptação objeto deste estudo se dá de texto literário para texto literário, não
envolvendo as diferentes mídias hodiernas, as quais Linda Hutcheon faz referência
em seu Uma Teoria da Adaptação, destacando os diversos modos pelos quais se
dá a transcodificação de um texto quando é adaptado para o teatro, cinema, tv,
jogos digitais e afins, ou mesmo se o caminho for inverso, um jogo é adaptado para
literatura, por exemplo. A isso ela chama de intersemiótico uma vez que “[...] essa
transcodificação implica uma mudança de mídia” (2013, p.61), já que se mudaria o
meio de expressão pelo qual a adaptação teria suporte. No texto em questão não
há tal transcodificação uma vez que tanto o original quanto o adaptado permanecem
no âmbito da literatura impressa. As alterações que se dão se explicam, dentre
outros motivos, pela ideia “[...] de que a adaptação não precisa ser rígida em seus
moldes. Pode-se mudá-la em sua totalidade e gênero, desde que se mantenha sua
essência, com a finalidade de aproximar o leitor iniciante do universo literário [...]”
(VIEIRA, 2010, p.30).
A adaptação é, portanto, um trabalho autoral, no qual se vê as marcas do adaptador.
É também um trabalho importantíssimo se pensar em suas aplicações didático-
pedagógicas. Em suma, as adaptações precisam e devem ser valoradas como
produto da cultura letrada, que amplia os horizontes culturais para os mais diversos
suportes midiáticos, possibilitando assim, uma convergência cultural bem o gosto
de Martín-Barbero e Henry Jenkins.
Se uma obra é rotulada de adaptação, é evidente que tenha se pautado em outra
que seria a original. Faz-se então necessário recorrer a esta que foi, de alguma
forma, geradora da segunda, a adaptada, e cotejá-la suficientemente para se ter os
184
subsídios necessários ao posterior exame da adaptação. Portanto, passo ao épico
de Durão.
Estudar a história da literatura de um país é uma forma muito válida de ser ter um
amplo panorama do modo pelo qual aquela pátria registrou pela arte da palavra os
diversos momentos pelos quais passou. Nesse estudo depara-se com obras e
escritores conhecidos, estudados e lidos com frequência e com outros que por
algum motivo caíram no esquecimento. Basta folhear a História concisa da literatura
brasileira, de Alfredo Bosi, para encontrar autores tidos como canônicos (Machado
de Assis, José de Alencar, Carlos Drummond de Andrade, para ficar apenas em três
exemplos) e outros que praticamente sumiram das prateleiras das livrarias, dos
bancos escolares e dos estudos acadêmicos como o barroco Diogo Grasson Tinoco,
o árcade Francisco de Melo Franco, o romântico Aureliano Lessa. Outros ainda
lograram algum destaque por terem desempenhado importante papel histórico,
como Bento Teixeira, autor de Prosopopeia obra inaugural do Barroco brasileiro, e
de Teixeira e Souza, autor de O filho do pescador (1843), primeiro romance
romântico brasileiro.
O Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, é uma obra de valor e
reconhecimento controversos. Alguns críticos veem nela apenas valor histórico,
como Waltersin Dutra ao afirmar que “[...] o Caramuru sobrevive ainda apenas pela
sua posição histórica: foi o primeiro a tomar como motivo uma lenda local, a falar no
índio brasileiro e a descrever seus costumes” (1968, p.349). Outros, como Antonio
Candido, acreditam que o épico de Durão é pouco estudado e, pior, mal estudado.
No entanto, parece haver consenso quanto ao aspecto indianista da obra. Durão
conseguiu mostrar o indígena brasileiro mais real que seu contemporâneo Basílio
da Gama.
Os costumes das tribos brasileiras, a fauna e a flora são retratados com algum rigor,
possibilitando uma visão razoável da realidade. As informações de que se vale
Durão são atribuídas principalmente à História da américa portuguesa, de Rocha
185
Pita. Encontra-se pelo épico boas descrições de plantas, animais e de ritos
indígenas, que elucidam muito claramente o que era o Brasil. É o que se vê no Canto
VII quando Diogo Álvares relata ao rei da França as maravilhas do Novo mundo:
XXXIII
D’ervas medicinais sópia tão rara
Tem no mato o Brasil e na campina,
Que quem toda a virtude lhe explora,
Por demais recorrem à medicina.
Nasce a gelapa ali, a sene amara,
O filopódio, a malva, o pau da China,
A caroba, a capeba, e mil que agora
Conhece a bruta gente e a nossa ignora.
XXXIV
Tem mimosos legumes, que não cedem
Aos que usamos na Europa mais prezados,
Gengibre, gergelim, que os mais excedem,
Mendubim, mangaló, que usam guisados:
Alguns medicinais, com que despedem
Do peito estilicídios radicados;
Tem o cará, o inhame, e em cópia grata
Mangarás, mangaritos e batata. (2008, p.554)
186
No entanto, nem mesmo Iracema, ícone romântico, foi tão artificialmente construída.
Talvez a idealização estivesse circunscrita ao físico, os críticos pudessem atenuar
as palavras, mas a necessidade de mostrar que nosso indígena era digno de
representar e dar origem ao futuro povo brasileiro, fez com que o poeta exagerasse
também em suas características morais e psicológicas. Seria verossímil que
Jararaca movido por ciúme organizasse uma guerra contra Diogo Álvares,
Paraguaçu e seus aliados, se sabemos que as tribos nacionais não tinham a
monogamia como prática? Por que Paraguaçu “[...] rejeitava espontaneamente a
nudez das outras, cobrindo-se com um manto espesso de algodão”? (CANDIDO,
1976, p.181). Nas palavras de Durão: “De algodão tudo o mais, com manto
espesso,/Quanto honesta encobriu, fez ver-lhe o preço” (Canto VII). Percebe-se
claramente o esforço de Durão em mostrar que seus personagens têm valores
exacerbados muito mais latentes que os observáveis naturalmente.
Problema maior se dá com Diogo Álvares. Como herói de uma epopeia ele deveria
representar um povo, mesmo que para isso fosse necessário que aparecessem
alguns desvios morais, até mesmo porque o herói não está acima dos demais, ele
é como os demais. No entanto, Diogo, um jovem de pouco mais de vinte anos
mostra-se extremamente maduro ao rejeitar deitar-se com as índias, ao apenas
casar-se com Paraguaçu e, consequentemente, consumar o casamento, após seu
batismo cristão. Ele não fraqueja em momento algum, sempre senhor das situações,
sempre ciente do que e como fazer. “Este comportamento exemplar acentua a sua
mediocridade como personagem, isento de erros normais em heróis de epopeia [...]”
(CANDIDO, 1976, p.175). Alfredo Bosi foi ainda mais enfático:
Domando a “fera gente” e as próprias paixões, Diogo é misto de colono
português e missionário jesuíta, síntese que não convence os
conhecedores da história, mas que dá a medida justa dos valores de Frei
José de Santa Rita Durão. Na medida em que o herói encarna, aliás
ossifica, tais valores, ele se enrijece e acaba perdendo toda capacidade de
ativar a trama épica. (2000, p.70).
187
humanizador dos silvícolas há de sobrepor-se à que, por ventura, se tenha a algum
chefe militar tiranizador de povos” (1971, p.22).
Para os críticos mais severos, o Caramuru tem uma vocação muito mais livresca
que lírica, em outras palavras, faltaria ao épico brasileiro profundidade dramática e
poética. Waltersin Dutra, tratando também do Uraguai diz que as duas obras “[...] se
ressentem da pretensão heroica. Perdem espontaneidade do romance, sem
conseguir a grandeza do épico [...]” (1968, p.341). Em outras palavras, o Brasil não
teria material para uma composição épica tal qual a Europa produziu. O mesmo
autor chega a afirmar que no Arcadismo brasileiro houve narrativa e não épica.
Vale ressaltar que para Durão era imperioso valorizar a empreitada religiosa em
terras tropicais e para isso seu herói deveria ser um homem de Deus preparado
para evangelizar, para levar os ensinamentos bíblicos para aqueles desgraçados
que não tinham noção da grandiosidade da Igreja. Por isso, provavelmente, dá tanta
ênfase à figura evangelizadora de Diogo e a seus feitos catequéticos, como inibir o
canibalismo, por exemplo. Deixando a imagem de guerreiro em segundo plano, o
autor nos dá “menos um herói de luta do que herói cultural, ele é o fundador, o
homem providencial que ensinou ao bárbaro as virtudes e as leis do alto” (BOSI,
2000, p.70). Do canto III em que se dá a altercação a respeito dos aspectos
religiosos dos indígenas e dos cristãos culminando na conversão de Gupeva, ao
canto X com o clímax do cristianismo e da colonização lusitana, evidencia-se as
pretensões de Durão com o poema: “[...] justificar e louvar a colonização como
empresa religiosa desinteressada, trazendo a catequese ao primeiro plano e com
ela cobrindo os aspectos materiais básicos” (CANDIDO, 1959, p.181).
Vê-se que a fortuna crítica do Caramuru não é unânime. Ela enumera os defeitos
do poema, mas não ignora suas qualidades, como deveria ser, na verdade, toda
crítica. Trazer este épico nacional de volta às discussões acadêmicas forçará que
sejam jogadas sobre ele novas luzes que, possivelmente, iluminarão as sobras
deixadas pelos críticos de outros tempos. Quiçá, aparelhados de outros escopos
teóricos, os estudiosos atuais consigam ver no poema de Durão aspectos que não
eram valorizados em outros tempos, ou cheguem a conclusões semelhantes às dos
mais antigos. Independente das conclusões a que cheguem, uma obra tão
188
importante, seja do ponto de vista literário seja do histórico, não deveria permanecer
alijada das discussões intelectuais nas terras que a produziu. Para dar uma
contribuição aos estudos acerca do Caramuru, tratarei de uma adaptação feita em
Portugal por João de Barros.
Desde sua primeira edição em 1781, o Caramuru vem tendo novas edições e
adaptações. Edna Castilho Peres, em sua tese de doutoramento intitulada
Caramuru de Santa Rita Durão: edição adaptada em prosa e anotada, fez um
levantamento sobre as edições e adaptações e chegou ao seguinte dado:
Revendo, agora, a história da recepção em forma de novas edições e
adaptações do nosso épico, sintetizo-a em quatro séculos: no século XVIII,
uma vez; no século XIX, provavelmente seis vezes; no século XX, cinco
vezes; no século XXI, quatro vezes. (2006, p.66).
Podemos ainda acrescentar a adaptação feita para a TV Globo, por conta dos 500
anos do descobrimento do Brasil, dirigida por Guel Arraes e roteirizada por ele
juntamente com Jorge Furtado, que recebeu o nome de Caramuru: a invenção do
Brasil. Foi exibida inicialmente na televisão e depois condensada para o cinema.
O passar dos anos trouxe às novas edições do Caramuru essencialmente
atualizações de ordem linguística (ortográficas principalmente) e editorial, como a
omissão de anotações e comentários em algumas, ou o acréscimo de estudos
prévios em outras. As adaptações partiram para uma atualização da narrativa
privilegiando o público infantil ou infanto-juvenil. Duas delas tendo pretensões
escolares podem ser chamadas paradidáticas. São as adaptações de Paula Adriana
Ribeiro, de 2002, pela editora Rideel e de Cecília Casas, de 2003, pela editora
Landy. Ambas vertem o poema em prosa enxugando-o ao essencial do enredo,
possibilitando tão-somente um conhecimento superficial da obra de Durão, repletos
de ilustrações para agradar o público-alvo. Já a adaptação do português João de
Barros, de 1935, por ser a primeira e, a meu ver, a mais bem-acabada, merece um
destaque.
189
João de Barros nasceu em 1881, em Figueira da Foz, Portugal. Filho do Visconde
da Mirinha Grande, desde pequeno esteve a voltas com pessoas influentes, depois
de formado em Direito pela Universidade de Coimbra, tornou-se professor e exerceu
importantes cargos ligados ao Ministério da Instrução Pública e outros de
administração escolar. Sua atividade intelectual nos relegou diversas obras que vão
desde a Educação à Literatura. Em seus últimos anos de vida dedicou-se a adaptar
clássicos da literatura universal para o público jovem, dentre os quais, Os Lusíadas,
A Odisseia, A Ilíada, A Eneida, As viagens de Gulliver e O Caramuru. Faleceu em
1960, em Lisboa.
Barros deu a sua obra o título de O Caramuru: aventuras prodigiosas dum português
colonizador do Brasil, bastante diferente do subtítulo do original de Durão, poema
épico do descobrimento da Bahia. Já é possível notar por esta simples mudança de
subtítulo que Barros tem em mente o povo lusitano como público específico, uma
vez que dá mais destaque ao fato de um português colonizar o Brasil do que o
descobrimento em si como inspira o subtítulo de Durão. A condição de náufrago de
Diogo perde importância ante o papel nobre de agente português.
A capa da adaptação traz a representação de um homem trajando armadura
completa tendo aos pés um indígena subjugado em uma mata esplendorosa de
onde se vê outros indígenas assustados com a figura de Diogo. A imagem tem a
assinatura de Martins Barata que ilustra a obra. Logo abaixo os dizeres Adaptação
em prosa do poema épico de Frei José de Santa Rita Durão, por João de Barros.
Informação que não deve passar incautamente, pois ao deparar-se com o livro, o
leitor tem plena consciência de que é um texto adaptado e sabe quem é o adaptador
e o autor do original. Pode hoje parecer óbvio, mas tais informações não eram
comuns em textos adaptados ou traduzidos até finais do século XIX. Era hábito
omitir-se o nome do tradutor e/ou adaptador como se tal atividade fosse considerada
de menor valia ante o original. Já há algum tempo, entretanto, a atividade do tradutor
e do adaptador vem ganhando mais respeito e destaque, sendo os nomes de alguns
desses profissionais estampados como garantia de um trabalho digno que confere
a edição ainda mais valor. São os casos da adaptação feita por Monteiro Lobato do
romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe; da tradução realizada por Eça de
190
Queirós do romance As minas de Salomão, de Henry Rider Haggard; ainda hoje
facilmente encontradas nas livrarias. A adaptação de Barros do Caramuru também
é encontrada ainda hoje em Portugal, provavelmente por ser a única feita por lá,
assim como outros textos que adaptou, mostrando assim que seu trabalho de
adaptador tem méritos que lhe garantem espaço editorial mesmo tendo passado
quase cem anos.
Ainda sobre os paratextos da adaptação em estudo, faz-se imperioso destacar a
produção de Martins Barata e suas ilustrações. Se houve tempo que se omitia o
nome dos tradutores e adaptadores, o que se pensar dos ilustradores? Por vezes
tendo seu trabalho considerado como acessório, como meio de distração durante a
leitura, o ilustrador tem papel fundamental para uma obra, principalmente quando é
para jovens e crianças. São as imagens que prendem a atenção dos pequenos
leitores antes mesmo de começarem a decifrar as marcas de tinta que formam as
palavras. Não é necessário recorrer a fontes precisas para saber que, dependendo
da idade, quanto mais colorida for a ilustração, quanto mais atrativos lúdicos trouxer
um livro (os pop-up ou livros com dobraduras em 3D), mais agradará ao leitor
iniciante. Assim, Barata, que nasceu em Santo Antônio das Areias no ano de 1899
(falecendo em 1970), teve destaque em sua carreira de professor, ilustrador, pintor
e desenhista; sendo responsável por desenhar moedas para o governo lusitano,
assinando pinturas em palácios, trabalhando junto a Almada Negreiros em
publicações governamentais, sendo consultor artístico e colaborando com
exposições sobre a história de seu país; foi, portanto, figura de respeito em sua área
de atuação. Para o Caramuru fez treze ilustrações que abrem cada um dos capítulos
encimando seus títulos. São representações que sintetizam o capítulo, ou servem
como epígrafe, uma vez que retratam o ponto fulcral de cada tópico. Trazem em
escala de cinza imagens que muito bem cumprem com seu papel em um livro para
jovens, não sendo extremante realistas permitem que o púbere leitor preencha as
sombras deixadas com sua imaginação e com as descrições da narrativa. Na falsa
folha de rosto a mais bela gravura, para a que é considerada por muitos a passagem
mais lírica do poema de Durão, a morte de Moema. Ali Barata retrata com traços
bem definidos e cores vibrantes o fatídico episódio do afogamento, praticamente um
191
suicídio, de Moema que fora preterida por Diogo. Interessante que esta gravura é a
única que recebe nome, A despedida de Moema, e colocando-se antes mesmo do
início da narração, cumpre valioso papel de instigar a curiosidade no leitor além de
forçá-lo a descobrir, se posso dizer assim, quem é Moema e porque teria merecido
tão grande destaque do ilustrador.
Antes ainda do texto literário de Barros, há em sua obra uma apresentação, um
prefácio, em que exalta as qualidades da obra original e sua importância para o leitor
hodierno, assim como para a união entre Portugal e Brasil. Fazendo parte de uma
série chamada Grandes Livros da Humanidade, editada pela livraria Sá da Costa, a
adaptação do Caramuru figura, portanto, entre os maiores livros produzidos pelo
Homem e é assim que Barros quer que se pense ao dizer:
A natureza pródiga e rica do Brasil e os três elementos étnicos formadores
de sua população, surgem no «Caramuru» em irresistível e perfeita
simbiose, uns aos outros ligados e entrelaçados no próprio momento em
que essa união, fecundíssima e brilhante para o futuro do país fraterno, se
operava e realizava. Tanto basta, pois, para justificar e explicar a inclusão
do poema célebre e celebrado no rol dos «Grandes Livros da
Humanidade». (BARROS, 1953, p.8).
192
Do conjunto, porém, de tantos critérios, na maioria lisonjeiros, depois de
passados ao crivo da imparcialidade mais exigente, conclui-se, em suma,
que o poema de Frei José de Santa Durão merece, de facto, louvor,
respeito, admiração carinhosa e simpatia sempre renovada. (1953, p.188).
193
no sistema alvo” (GOMES, 2008. p.77). Ou seja, para se ter uma visão geral do
processo adaptativo, é importante saber quem é o adaptador, porque está
adaptando tal obra, em qual circunstância e para quem o faz. Respondendo as
essas questões é possível ter um panorama que explique os motivos e causas das
adaptações, assim como, o porquê sofreram as alterações que sofreram.
João de Barros, como dito anteriormente, foi uma figura de relevante destaque no
cenário educacional e político de Portugal no início do século XX, seu papel de
professor e de pessoa preocupada com a cultura são aspectos que poderiam indicar
que ao adaptar o Caramuru estivesse preocupado apenas com a cultura letrada,
mas ao saber que fez esta adaptação a pedido de uma editora como parte de uma
coleção maior de clássicos e que foi, evidentemente, remunerado por isso, mostra
que não foi escolha de Barros adaptar o épico nacional e sim um empenho
profissional que tinha um público específico a ser atingido. A importância de se
relevar tais aspecto se dá a medida que sendo outras as circunstâncias, muito
provavelmente, Barros produziria um outro tipo de adaptação.
Assim, sabe-se que o texto deveria privilegiar um público leitor ainda não maduro e
para tanto a adaptação deveria ser escrita em uma linguagem mais acessível, “[...]
correntia e fácil, que à gente moça e ao leitor mais ou menos culto prenda e cative
[...]” (BARROS, 1958. p. 9). Saem os versos, entra a prosa; sai a epopeia, entra uma
forma romanceada. Livre das características comuns do poema como as inversões
sintagmáticas, o texto adaptado ganha fluidez mais próxima da fala cotidiana, o que
propicia ao leitor menos preparado maior facilidade na leitura; soma-se a isso, a
óbvia atualização vocabular, usando termos mais simples e conhecidos pelos jovens
lusitanos dos anos 1935.
Ao optar em sua adaptação pela prosa, Barros está pensando em seu leitor da
primeira metade do século XX e tendo em mente que na época em questão o texto
seria recebido de maneira diversa àquela que o foi no século XVIII. Pensando como
Jauss poderia dizer que o texto original tendo sido publicado em 1781 foi pensado
para sua época, deste modo, é compreensível um poema épico aos moldes
clássicos camoniano, sua linguagem empolada, sua preocupação com a descrição
da fauna e da flora brasileira, seu tom ufanista e teológico que oscila ora entre o
194
discurso histórico bastante fiel aos fatos, ora pelo discurso religioso aceitável por vir
de um teólogo. Estes aspectos precisam receber as devidas atualizações para se
enquadrarem ao público-alvo da adaptação. Ainda segundo Jauss “[...] a análise da
experiência do leitor ou da ‘sociedade de leitores’ de um tempo histórico
determinado, necessita-se diferenciar, colocar e estabelecer a comunicação entre
os dois lados da relação texto leitor” (2002, p.73). Portanto, adaptar uma obra sem
considerar a época e o público que a receberá é prestar serviço no mínimo duvidoso
para a sobrevivência do original no panorama literário.
O bom adaptador é aquele que consegue ser original, sem tirar a qualidade
da primeira obra; oferece uma releitura sensível e particular, preocupando-
se com o público-alvo. O perfil do leitor é de fundamental importância já
que será este público que norteará a sua confecção, que auxiliará o
autor/adaptador a traçar métodos a serem adotados para a elaboração da
obra adaptada. (VIEIRA, 2010, p.33).
195
(SILVA; RAMALHO, 2007, p.285). Escrevendo para portugueses, nada mais natural
que exaltá-los.
Adaptador experiente e homem de cultura, João de Barros mostra nesta versão do
Caramuru que conhece os meandros e percalços para se transpor uma obra de
nacionalidade e época distintas. Teve todo o tempo em vista quem era seu público-
alvo e as intenções com a obra, podendo atualizar a linguagem e a narrativa do
épico duraniano para atender tais preocupações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A texto de Barros, portanto, é um bom exemplo de uma adaptação bem realizada.
Atualizou o original, garantindo sua sobrevida no cenário literário, conseguiu
alcançar o público-alvo a que se destinava e ainda pode ser encontrado em
reedições até hoje, evidenciando sua importância.
Para além disso, ter o Caramuru adaptado para outros formatos literários e para
outros públicos, assim como para o cinema e para a tevê, mostram a relevância da
obra e dão indicativos de que mereça ser revisitada pelos críticos hodiernos. Além,
evidentemente, de voltar aos bancos escolares de todos os níveis de ensino.
Ainda que alguns insistam em ver com maus olhos a imbricação da literatura com
outras mídias, o fato é que tal fenômeno, longe de ser recente, auxilia
consideravelmente a que a literatura atinja públicos que talvez não fosse possível
apenas pelas aulas de literatura nas escolas. O interesse pode se dar de várias
maneiras e a utilização das novas mídias, como os games e a internet, pode
despertar em jovens e adultos não muito afeitos aos livros, o interesse em ler
algumas obras despertado pela curiosidade. Talvez não fosse uma adaptação,
aquele leitor em potencial continuaria sem conhecer o original que foi transformado
em outro produto cultural.
Faz-se, então, necessário que obras esquecidas voltem a lume, seja por uma
adaptação, seja por estudos acadêmicos e que recebam a devida atenção dos
estudiosos atentos às tendências mais atuais dos estudos literários e culturais.
196
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2000.
197
O CONCEITO DE AUTORIA NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA
– NEUROLINGUÍSTICA, LINGUAGEM E SUJEITO60
60
Trabalho apresentado no 2° Congresso Nacional Letras em Rede – Mackenzie, agosto 2015.
61
Pesquisadora Colaboradora do IEL-UNICAMP, Doutorado Direto em Psicologia pela FFCLRP-USP,
Doutorado Sanduíche (CAPES-BEX 4394/10-0) na Université Sorbonne-Nouvelle, Paris (set/dez 2010, co-
orientador Prof. Jean-Jacques Courtine), Estágio na EHESS, Paris (fev. 2012, orientador Prof. Marcello
Carastro) (FAPESP 09/54417-4), Professora da Universidade de Ribeirão Preto, e-mail :
di_motta61@yahoo.com.br.
198
da linguagem e que com esta não se confundem. São nessas práticas
translinguísticas que a linguagem e o sujeito vão configurar apenas momentos.
Todos os processos e relações pré-signo e pré-sintáticos, estudados pela
Neurolinguística, se mesclam em um continuum que diz respeito à constituição do
sujeito; funcionam de modo sincrônico dentro do processo de significação do sujeito.
Esses processos (reforçamos: diferentes para cada sujeito) são impulsionados
dentro do campo da prática social, no qual o corpo é entendido como parte do
processo: impulsos de ordens distintas se conjugam indistintamente na prática que
envolve a significação.
O estudo desses elementos juntamente com as práticas de linguagem
(discurso oral e escrito) de crianças com hidrocefalia62, nos leva a considerar a
escrita e a fala delineando o modo como essas crianças percebem a realidade. Em
razão de sua afecção, elas são afetadas em sua capacidade de compreensão e de
expressão.
Uma avaliação abrangente da educação linguística deve comportar todos os
indivíduos, até mesmo aqueles que apresentam lesão cerebral. A inclusão social faz
parte de nossa preocupação e, como já afirmamos (Monte-Serrat: 2013), as
avaliações baseadas em sujeitos idealizados descartam aqueles que não se
encaixam em um padrão. Trazemos à discussão conceitos discursivos (Pêcheux:
1988) para tratarmos desse assunto de modo diferente da prática tradicional,
porque, nas palavras de Silva (2001), a escrita alfabética é um lugar culturalmente
instituinte de funções discursivas do sujeito.
Em lugar da abordagem quantitativa de dados, de testes baseados em um
indivíduo ideal, padronizado, impossível de corresponder à realidade, propomos a
observação do sujeito e vamos mais além: observamos sujeitos cujo corpo carrega
a afecção da hidrocefalia, que não é, portanto, um corpo idealizado. Esses sujeitos,
portadores de cérebro danificado, sentem, pensam e têm emoções, elementos que
podem e devem ser considerados na pesquisa e na avaliação da educação
62
Condição em que há acúmulo anormal do líquido cefalorraquidiano dentro da cabeça, provocando vários
sintomas e até mesmo lesão cerebral.
199
linguística. A abordagem discursiva63 dos dados de nossa pesquisa, além de não
higienizar os caminhos e desejos dos sujeitos observados, sustenta as pluralidades:
essa prática deixa para trás aquela avaliação quantitativa morta e transforma-se em
trabalho social efetivo. Essa perspectiva, denominada “avaliação qualitativa de
quarta geração” (CAMPOS&FURTADO: 2011) reforça a
importância de pensar as avaliações como atos de transformação do
mundo, práticas implicadas em descobrir para transformar, refutando os
estudos de prateleira em razão de seu sentido resfriador, silenciador e
paralisante para os sujeitos e as organizações (PATTON: 1997 apud
SILVA&BRANDÃO: 2011, 143).
63
Abordagem discursiva diz respeito à prática regular de produção de texto oral ou escrito (Orlandi, 2008). Essa
prática envolve, de um lado, a dimensão jurídica da língua e sua efetividade social (Edelman, 1980, 15) e, de
outro, pode evidenciar o acontecimento (Pêcheux, 2002), ou seja, o deslocamento na estrutura discursiva que
faz vislumbrar um sujeito resistente à formação ideológica dominante (Monte-Serrat&Tfouni, 2012).
64
MONTE-SERRAT, D., Neurolinguística Discursiva e Letramento na inclusão social de crianças com afecção
denominada hidrocefalia, Pós-Doutorado, Linguística, IEL-UNICAMP, supervisão de Maria Irma Hadler
Coudry, 2015.
200
O que se observa, até o momento, é a prevalência de pesquisas na área das
dificuldades de aprendizagem que seguem um “saber-fazer”, ou seja, um modelo
ligado à antecipação metódica de projeto que tem a finalidade de gerar uma
realização técnica elaborada. Os resultados desse tipo de pesquisas têm caminhado
no sentido da marginalização no contexto escolar: em algumas vezes essa
marginalização pode ser verificada; em outras, surge sob o paradoxo da inclusão
dos excluídos (GUIMARÃES: 2002).
Esse “saber-fazer” como método de ensino linguístico baseia-se na lógica e
na razão; opera na forma de compreender as coisas estabelecendo proporções,
esquemas, fases de evolução. Trata-se de perspectiva de aprendizagem impositiva,
que exclui aquilo que é da ordem pessoal, e leva o olhar do pesquisador a recair
estritamente sobre o que é mensurável e verificável, colocando-o a observar apenas
condutas e desempenhos. Nesse caso, os modos particulares de produção de
significação são descartados.
A teoria da Análise do Discurso, de Michel Pêcheux, destaca que essa
posição de investigação cria uma descontinuidade no “saber” desenvolvido sob a
continuidade (PÊCHEUX&FICHANT: 1971, 9-10) e cria um novo espaço de
problemas “aperfeiçoado”, livre das questões não mensuráveis.
201
A perspectiva discursiva proporciona um trabalho competente sobre a
linguagem da criança com deficiência no aprendizado: de um lado, permite a
compreensão de que modificações na linguagem provocam modificações no sujeito,
em sua relação com o corpo, com os seus semelhantes, com os objetos; de outro
lado, é capaz de considerar as lesões ou disfunções cerebrais como fatores que
provocam dificuldades no aprendizado da linguagem desse mesmo sujeito. Essa
inter-relação ocorre devido à articulação entre o processo de significação (que
envolve o corpo), a materialidade externa e a linguagem propriamente dita. A falta
de um cuidado atento à linguagem do indivíduo com disfunção nessa área faz com
que o corpo seja levado a um deslocamento o qual, por sua vez, provoca bloqueios
e, até mesmo, paralisação de funções. O investimento na educação linguística de
indivíduo com hidrocefalia 65 pode ser observado nos dados colhidos: se para essas
crianças, que se situam em um nível máximo de dificuldade de aprendizagem da
língua em razão de lesão cerebral, há sucesso na aprendizagem da escrita, esse
sucesso poderá ser estendido para todos os que têm demonstrado dificuldade na
educação linguística.
Por que trazemos a neurolinguística para discutir educação linguística? A
neurolinguística não pode ser ignorada nesse processo, justamente pelo fato de
abranger as relações pré-signo nas quais a linguagem e o sujeito configuram apenas
momentos. O corpo deve ser entendido como parte do processo de educação
linguística: é nele (carregue ou não disfunção) que impulsos de ordens distintas se
conjugam indistintamente numa prática que envolve a significação. Assim, sintomas
físicos (vômitos, irritabilidade, incapacidade de compreensão de conceitos abstratos
etc.) e sintomas psíquicos (comportamento antissocial e dificuldades no
aprendizado da língua) não podem ser desconsiderados do tema educação
linguística.
65
Fizemos, ao longo de dois anos, pesquisa de Pós-Doutorado com acompanhamento de crianças hidrocéfalas
no IEL-UNICAMP (supervisão da Profa. Dra. Maria Irma Coudry); no Departamento de Neurocirurgia
Pediátrica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP (colaboração do Prof. Dr. Hélio Rubens
Machado) e no Centro de Reabilitação do HC Criança, da FMRP-USP (colaboração da Dra. Carla Andréa
Tanuri Caldas).
202
A inter-relação de sujeito, linguagem e corpo para o estudo da educação
linguística dá abertura à observação de indivíduos não-idealizados, com disfunções
cerebrais ou, até mesmo, lesões cerebrais. Esses indivíduos passam a ser
observados não no que diz respeito a aspectos de “erro” e “acerto” em testes
abstratos, mas na articulação que fazem entre o processo de significação neles
constituído (o qual envolve o corpo com disfunção), a materialidade externa e a
linguagem propriamente dita. A ausência de atenção dos pais, cuidadores,
educadores e pesquisadores para aspectos da disfunção linguística, pode fazer com
que o corpo desses indivíduos seja levado a um deslocamento, que acarretará
bloqueios ou paralisação de funções.
Essas consequências danosas surgem porque algo da ordem da realidade (e
aqui nos referimos ao corpo que carrega disfunções) em que o indivíduo se insere,
interfere em seu desenvolvimento. Assim, particularidades do sujeito e de seu
contexto não podem ser ignoradas na educação linguística.
O problema de uma metodologia ideal (“saber-fazer”) para o aprendizado
linguístico é o de que, no caso de o sujeito sofrer de disfunção cerebral, este último
não alcançará a funcionalidade da letra, ficando impedido de se reconhecer no
espelho oferecido pela letra (BIARNÈS:1998). Nesse caso, não podemos prever de
qual estratégia o indivíduo se servirá para “ligar grafemas, fonemas e sentidos”
(BIARNÈS: 1998, 11). Como professores ou formadores, devemos resignar-nos a
não saber como o aluno chega à aprendizagem; devemos ter por missão a função
de criar espaços de aprendizagem, na qualidade de mediadores: é o mundo das
palavras que vai criar o mundo das coisas para esses sujeitos (LACAN: [1953]1998).
203
metafórico e metonímico da linguagem como lugar de constituição do sujeito,
permitindo que ele signifique outra coisa para além do que [o] significou. É sob esse
processo de autoria que propomos a observação da educação linguística do sujeito
com disfunção cerebral. Embora possa haver dificuldade na aprendizagem,
conseguimos colocar nossa atenção no sujeito que se constitui e, não, no que ele
fez de “certo” ou “errado”.
Esse caminho de observação está na contramão daquilo que regularmente se
faz em termos de pesquisa, pois estas últimas partem de um sujeito como causa,
origem da articulação escrita ou oral de um enunciado.
A perspectiva discursiva por nós utilizada faz com que descartemos o sujeito
como causa (lugar que dá sentido a algo) e observemos a função enunciativa do
sujeito, apreendida em sua relação com o corpo que carrega uma disfunção e com
um campo de objetos. Essa perspectiva, segundo ensina Foucault [(1969)1983],
abre um conjunto de posições subjetivas possíveis (autoria), em vez de fixar seus
limites.
Os enunciados carregam um valor singular do sujeito que enunciou, como uma
assinatura que traz unicidade e coerência de seu criador (FOUCAULT:
[(1969)1983]).
Vejamos agora um texto de R., menina de 13 anos com má formação no corpo
caloso e hidrocefalia. R. aprendeu a ler e escrever no CCAzinho, IEL-UNICAMP.
Acompanhamos R. ao longo de dois anos.
204
No texto acima R. faz um texto solicitado pela professora da escola que
frequenta. A tarefa é a de que o aluno escreva sobre seu sonho. Podemos observar
na imagem que a professora coloca “ok” no início do texto e acrescenta a frase de
que é “bacana seu sonho”. No entanto, manda R. refazer a tarefa, baseando-se
numa suposta transparência da palavra “sonho”, que remeteria ao sonho que temos
quando dormimos. O enunciado de R. diz respeito ao sonho como desejo, àquilo
que almeja no sentido de sentir-se incluída, sonhando aquilo que as crianças de sua
idade sonhariam. Avaliada segundo critério de sujeito idealizado, R. deve refazer a
tarefa. Por que não avaliá-la segundo o critério de autoria, em que enunciações
parceladas fazem rede produzindo sentido? Segundo lição de Tfouni (2005), quando
existe autoria perde-se a ilusão de transparência da linguagem; há controle da
dispersão e da deriva; novos sentidos são instalados com o recorte do fluxo de
significantes em outros lugares que não os previstos pelas normas da língua.
205
Conclusão
A educação linguística não pode ser avaliada somente por meio de testes
abstratos. Ela deve abarcar a relação da linguagem com o funcionamento do
sistema nervoso interagindo com um corpo que não se reduz ao biológico, já que a
linguagem também é corpo (LACAN: [1953]1998).
A linguagem materializa, torna observável, o processo pelo qual o indivíduo
organiza os significantes e interpreta o mundo à sua volta. Mesmo que esse
indivíduo apresente disfunção cerebral e dificuldades na utilização da linguagem,
não pode ser marginalizado. Devemos investir na sua educação linguística, o que
impedirá um “estilhaçamento” desse sujeito.
O acompanhamento linguístico sob a articulação da neurolinguística à teoria
discursiva será capaz de promover modificações rítmicas, lexicais, sintáticas, a fim
de que se coloque em ordem a cadeia significante na produção oral ou escrita dos
sujeitos com disfunção cerebral. Como a interação linguística bem sucedida atua na
estruturação da subjetividade, há estímulo do funcionamento discursivo, que, por
sua vez, desencadeará função protetora em relação a patologias.
A atenção dispensada a aspectos neurolinguísticos da criança com disfunção
cerebral refletirá sobre o funcionamento do processo de significação, de maneira
que possa desenvolver características de autoria tanto no aspecto de apropriação
da língua (escrevendo e falando dentro das normas), como no aspecto subjetivo
(escrevendo e falando de modo a não haver dispersão nem deriva, uma vez que a
criança se compreende como sujeito no contexto em que está inserida). Desse
modo poderá haver a unidade do sujeito de que fala Foucault [(1969)1983], sob a
forma de uma coerência e, não, de mera avaliação de regras da língua: é a
imaginação criativa do sujeito que se impõe, ordenando e coordenando o conteúdo
expressado, sem se dispersar em regras impostas de fora para dentro. O sujeito,
nesse processo, condensa significados que fazem parte de sua experiência, num
movimento que funde categorias que fazem parte da sensibilidade (OSTROWER:
2013).
206
Referências
BIARNÈS, J., O ser e as letras: da voz à letra, um caminho que construímos todos,
In Revista da Faculdade de Educação- USP, vol. 24, n. 2, jul/dez, São Paulo, 1998.
http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/cel/article/view/1599/1178
PADILHA, A.M., Bianca. O ser simbólico: para além dos limites da deficiência
mental. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, UNICAMP, 2000. Acesso em
03 de março de 2014. Disponível em
http://www.vigotski.net/ditebras/padilha.pdf
207
PÊCHEUX, M.; FICHANT, M., Sur l’histoire des sciences, Paris: Maspero, 1971.
208
DO TRÁGICO AO TRAGICÔMICO: AS MEDEIAS DE CALDERÓN DE LA
BARCA, FRANCISCO DE ROJAS ZORRILA E ANTÔNIO JOSÉ DA SILVA
209
Barca, Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva, ensejando, desse modo, novas e
enriquecedoras releituras de mitos greco-latinos, as quais contribuíram
sobremaneira para a evolução da comunicação teatral.
Se nos dramaturgos da antiguidade greco-romana, nomeadamente,
Eurípedes e Sêneca, as peripécias de Jasão e Medeia pertenciam exclusivamente
à esfera do trágico; nas peças dos autores barrocos mencionados, o
reaproveitamento do mesmo mito se dará em chave tragicômica. Lembremos que,
enquanto na tragédia antiga tinha-se a representação da ação de personagens
superiores (reis, nobres, deuses, semideuses), e na comédia, a representação de
ações cotidianas levadas a efeito por personagens inferiores, tais como criados e
servos; na tragicomédia ocorre, como o próprio nome sugere, o acoplamento do
trágico e do cômico, burlando-se, desse modo, a fixidez das normas aristotélicas. A
tragicomédia mais antiga de que se tem notícia é a peça Anfitrião (século II a.C), de
Plauto, cujo prólogo forneceria as bases teóricas do novo gênero. Diz o autor latino
na voz do personagem Mercúrio: “não creio que seja justo fazer uma comédia de fio
a pavio quando nela intervêm reis e deuses. Pois quê?! Já que há nela, também,
um papel de escravo, vou fazer tal e qual como disse: uma tragicomédia” (PLAUTO,
1986, p.20).
A tragicomédia, no entanto, seria mais desenvolvida na teoria e na prática
apenas a partir do século XVI. Dentro do contexto ibérico, pode-se citar dois
importantes textos que versam sobre o tragicômico: Filosofia antigua poética
(Epístola Nona), de 1526, de Alonso Lopéz Pinciano, de influência aristotélica e
horaciana; e, já no século XVII, Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, de
1609, de autoria do dramaturgo espanhol Lope de Veja (1562-1635), o qual, se
distanciando das preceptivas clássicas, pregava também a mistura entre os
gêneros: “Lo trágico e cómico mezclado/y Terencio con Séneca, aunque sea/como
otro Minotauro de Pasife/harán grave una parte, otra ridícula, que aquesta variedad
deleita mucho” (VEGA, 2006). Neste famoso texto, Lope de Vega admite que a
mistura entre o elevado e o vulgar tem em vista o agrado ao público, porque é este
quem financia a arte teatral.
210
No caso da recriação do mito de Medeia por parte de Calderón de la Barca,
Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva, é importante notar que a especificidade da
obra destes autores ao se valeram de um conteúdo mítico que o teatro clássico
consagrou como tragédia e a transformarem em peças tragicômicas. De fato, a
tradição teatral de representação do mito medeico concentrava-se em Eurípedes e
Sêneca, com suas tragédias de mesmo nome Medeia, ao final das quais, a cruel
feiticeira perpetra o crime bárbaro do filicídio. Vejamos, doravante, como se dá essa
transformação.
Em que pesem as diferenças entre as duas obras, o argumento das peças
de Eurípedes e de Sêneca pode ser sintetizado da seguinte maneira: Medeia quer
se vingar do seu esposo Jasão, porque este irá se casar com Creúsa, filha de
Creonte, rei de Corinto. Nativa da ilha de Iolcos, Medeia deve ser expulsa
imediatamente de Corinto, mas antes, ardilosamente, apela a Creonte que a deixe
ficar mais um dia para se despedir dos dois filhos que tivera com Jasão. A feiticeira
se aproveita desse meio tempo para executar sua vingança, enviando um presente
mortal a Creúsa e assassinando as duas crianças degoladas. Em seguida, foge num
carro alado enviado pelo deus Sol.
Calderón, Rojas Zorilla e Antônio José da Silva distanciaram-se dos dois
tragediógrafos mencionados não só pela inserção do cômico na recriação do
referido conteúdo mítico, mas também por direcionar seu foco na representação da
aventura dos argonautas e no protagonismo de Jasão. Se em Eurípedes e Sêneca,
tal ação é exposta apenas pela narração ou menção no diálogo dos personagens,
os três autores ibéricos a transformaram em ação dramática.
A peça Los tres mayores prodigios, de Calderón de la Barca, compõe-se de
três jornadas. A “Jornada primeira” diz respeito à conquista do velocino de ouro por
Jasão; a “Jornada segunda” representa a história de Teseu e Ariadna; e a “Jornada
terceira” refere-se à busca de Hércules por Dejanira67. Importa-nos aqui, portanto,
apenas a “Primeira jornada”. Até onde sabemos, Calderón seria o primeiro a incluir
comicidade na fábula envolvendo Jasão e Medeia, embora Lope de Vega, com sua
peça El vellocino de oro, de 1622, tenha tratado liricamente da aventura dos
211
argonautas e da refreida relação amorosa, fechando a história com a fuga do casal
da ilha de Iolcos, ou seja, sem sequer vislumbrar o acontecimento trágico que
envolveria a morte das crianças e de Creúsa.
Tal como em Lope de Vega, a história de Medeia e Jasão na peça de
Calderón encerra-se com a conquista do velocino de ouro. Na peça de Zorrilla, o
enredo se dá quando Jasão, casado com Medeia, envolve-se com Creúsa; em
Antônio José da Silva, há a conjugação desses dois fatos, ou seja, na primeira parte
da peça ocorre a chegada de Jasão à ilha de Iolcos (onde se passará toda a ação),
e a conquista do velocino graças aos feitiços de Medeia. Na segunda parte da peça,
a ação se concentra no triângulo amoroso Medéia/Jasão/Creúsa, sendo que a
primeira, ao descobrir que está sendo enganada pelo argonauta, começa a
antagonizar-se com o casal. Aqui, Jasão não fugirá com a feiticeira, mas quase
consegue se safar levando o carneiro de ouro e Creúsa. Sendo assim, não há
sequer filhos de Jasão e Medeia. Esta, ao ser rechaçada por todos, inclusive por
seu pai, o rei Aetes, fugirá numa nuvem pela imensidão dos céus.
212
uma forte proximidade formal e temática com Los encantos de Medea. Nas duas
peças, os graciosos têm maior destaque que o personagem cômico da peça de
Calderón. A comicidade, nesse caso, é marcada pela fala paródica dos criados em
relação à fala dos amos, pelos jogos de linguagem e ditos populares, pela covardia
desmedida dos graciosos, pela metateatralidade, pelo latim macarrônico, dentre
outros aspectos.
Cotejando-se a personagem Medeia de Zorrilla e de Antônio José da Silva
com as de Eurípedes e Sêneca, nota-se que os autores barrocos mantiveram a
personalidade ardilosa e vingativa da feiticeira, embora ocorra certa hesitação ao
executar sua vingança, o que, de outro modo, também ocorre em alguns momentos
na Medeia de Eurípedes, quando a personagem se lança ao assassínio dos filhos.
Na peça de Antônio José da Silva, depois que Medeia arremessa um raio contra a
nau Argos, a personagem se arrepende e chama o raio de volta, para não ferir
Jasão, deixando, porém, que a tempestade por si mesma se encarregue da
vingança. A referida ação ocorre quase identicamente em Los encantos de Medea.
Comparemos os dois momentos. Primeiro na peça de Rojas Zorrilla, na qual o raio
vai preso a um foguete (cohete):
Medea: (...) Rayos de esa obscura carcel,
de esse opaco calabozo
salgan que la Nave abrasen;
pero no, rayo, detente,
y en esa Region errante,
como en tu centro te fixa
Pasa un cohete por um cordel.
Vuelve á baxar, no dispares
Amenazadoras lanzas
de tu fuego penetrante.
Vuelve el cohete (ROJAS ZORRILLA, 1792, p.7).
213
Estes efeitos são apenas um pequeno exemplo da espetacularidade
investida nas peças de Rojas Zorrilla e Antônio José da Silva. Em Los encantos de
Medea, os recursos de maquinaria teatral usados na representação de nuvens
voadoras transportando personagens, fogos de artifício presos por cordões em
forma de raios, um dragão que cospe fogo, atestam um tipo de teatro baseado no
puro maravilhamento. Antônio José da Silva não só repete praticamente todos esses
mesmos efeitos visuais, mas também acrescenta outros, colocando sobre o palco a
nau Argos em pleno mar, além de árvores que dançam. Nesse sentido, o
comediógrafo inflaciona o texto espetacular até as últimas consequências, de modo
a enriquecer e complexificar ainda mais a comunicação teatral. Lembremos que as
“óperas” joco-sérias de Antônio José da Silva eram escritas para marionetes, e este
dado não pode ser menosprezado, pois que, indiscutivelmente, os efeitos visuais no
palco se tornam mais exequíveis quando se tem em vista a representação feita por
bonecos.
A própria escolha dos títulos nas duas peças (Los encantos de Medea/Os
encantos de Medeia) reforça a ideia de se destacar o apelo espetacular pretendido
pelos autores, uma vez que há uma evidente ênfase nos atributos mágicos de
Medeia, de modo a exigir intenso trabalho das maquinarias teatrais nas
representações. A título de reforço teórico, cabe aqui citar um trecho do verbete
sobre tragicomédia presente no Dicionário de teatro, de Patrice Pavis (2005):
“Enquanto a tragédia clássica é respeitosa com as regras, a tragicomédia (...) se
preocupa com o espetacular, com o surpreendente, com o barroco, para dizer tudo”
(p.420).
No caso da obra de Rojas Zorrilla, o que se pode por em xeque, entretanto,
é a pertinência da representação do assassinato dos filhos de Medeia e Jasão, ou
melhor, a exposição no palco das duas crianças mortas. Se Antônio José da Silva
deu um tratamento mais leve à malsucedida história de amor entre a feiticeira e o
argonauta, excluindo assim qualquer referência ao cruel filicídio, o mesmo não fez
Rojas Zorrilla com sua peça de 1645. Quase ao fim de Los encantos de Medea, a
didascália nos força a imaginar uma descoberta atroz e medonha: “Corre Jason la
cortina, y halla degollados los dos niños” (Jasão corre a cortina e encontra os dois
214
meninos degolados, tradução nossa). Se Sêneca, ao contrário de Eurípedes,
também pôs em cena o morticínio das crianças, a inclusão do filicídio e a exposição
dos cadáveres nos parecem um tanto excessivo, não condizendo com o tom
tragicômico que atravessa quase toda a peça do dramaturgo espanhol, uma vez que
a tragicomédia, em princípio, deve sempre acabar bem, ao menos, sem grandes
sofrimentos para os personagens ou para a plateia.
Se por um lado a peça Os encantos de Medeia de Antônio José da Silva é
tributária à de Rojas Zorrilla em muitos aspectos de fundo e forma; por outro lado, o
comediógrafo brasileiro soube equilibrar mais sabidamente o trágico e o cômico,
espelhando ações elevadas e as ações inferiores, o que significou dar maior relevo
dramático para o gracioso, que a assume a função de alcoviteiro (ajuda Jasão a
conquistar Creúsa) e cujas falas deleitam o público ao transbordar naturalidade de
linguagem, desmascarando muitas vezes o artificialismo e a dissimulação de seus
amos. Além disso, Antônio José da Silva soube como nenhum outro sintetizar
dramaticamente dois episódios diversos, embora interligados, quais sejam, a
conquista do velocino de ouro e o triângulo amoroso entre Jasão, Creúsa e Medeia.
No que tange ao caráter trágico de Os encantos de Medeia, este se resume
como ação séria realizada por personagens de extração elevada. O pathos
(sofrimento) de tais personagens nunca é catártico demais, ou seja, nunca chega a
provocar o horror do público, embora possa causar-lhe alguma piedade. A dor
trágica na peça de Antônio José da Silva se identifica com um sofrimento amoroso
causado ou pelo ciúme (chamados de zelos) de Medeia, que será usada por Jasão
com o fito de que ela o ajude, através de seus feitiços, a conquistar o velocino de
ouro.
Na última cena da peça do autor luso-brasileiro, a única personagem a quem
é negado o happy end é Medeia, sem que haja, no entanto, nenhum derramamento
de sangue ou infelicidade maior, e, além disso, com os pares românticos
devidamente estabelecidos sob as bênçãos do rei.
Como conclusão da nossa análise, pode-se afirmar que a tragicomédia
barroca, em sua dimensão dramatúrgica e espetacular, difere-se do teatro greco-
latino ao menos em dois aspectos. O primeiro deles é o seu forte apelo cênico e
215
visual, o que fica patente pelas didascálias das peças barrocas; o segundo aspecto
é a noção de trágico, que já não pertence à mesma natureza do que ocorria nas
obras gregas. Isso ocorre, em grande medida, pela ausência do decaimento do herói
nas tragicomédias (happy end) e pela presença da comicidade levada a efeito pelos
personagens cômicos, que dividem a cena com os personagens sérios.
Naturalmente, o efeito trágico buscado nas peças clássicas já não correspondia aos
anseios do público do barroco dos séculos XVII e XVIII, levando a que os
dramaturgos dessa época alçassem ao primeiro plano o gosto popular em
detrimento das preceptivas de cunho aristotélico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SILVA, ANTÔNIO JOSÉ DA. Os encantos de Medeia. In: Obras completas. Prefácio
e notas do Prof. José Pereira Tavares. Lisboa: Sá da Costa, 1957. Volume II.
VEGA, Lope de. Arte nuevo de hacer comedias (1609). Edición de Enrique García
Santo-Tomás. Madrid: Cátedra, 2006.
216
ROCK AND ROLL: LEVEZA NA POESIA DE RESISTÊNCIA DE
RENATO RUSSO
68
UNESP/IBILCE
217
significava rejeição total pela cultura paralela dos negros. Do outro lado, a população
branca resguardava a imagem puritana, condenando o corpo físico ao ostracismo.
O corpo era a fonte de todo o pecado carnal e utilizá-lo para o desenvolvimento do
prazer era condenável pelas instituições tradicionais. Todavia, os puritanos
executavam, na realidade, posturas diversas da pregada: os chefes de família
tinham amantes e, em algumas situações, as esposas fiéis também tinham
amantes.
Os jovens brancos notaram as incongruências da sociedade puritana e a
recusaram. Eles não queriam ser iguais seus pais. E acharam no ritmo negro rock
and roll a escapatória da real sociedade. Os jovens começaram a ouvir uma música
que provocava não só a dança, mas a dança sensual:
A opressão não advinha apenas dos ambientes políticos e mercadológicos,
mas dos próprios ideais construídos pelas pessoas antigas que viam nos jovens
apenas um período de transição, por isso, esses jovens encontraram no rock o
meio de afirmarem suas liberdades de expressão. Daí a busca da liberdade de
criar seu sistema e a marca de sua identidade (BRANDINI, 2004, p. 16).
218
meros acompanhamentos sonoros. A música não era somente sensação e, sim,
reflexão: “Preste atenção nas letras, cara” (Bob Dylan. Apud: FRIEDLANDER, 2008,
p. 132). Todavia, como tudo que ganha vasta parcela de adeptos, o rock and roll
deparou-se com o próprio declínio. A música alcançou a massa popular,
consequentemente, teve seus acordes modelados pela indústria fonográfica. Os
cantores e a gravadoras enriqueceram e as músicas perderam o caráter
contestatório. O objetivo inicial de rejeição à sociedade cedeu espaço para o agrado
da população acomodada. O rock atingiu grandes vendagens e esqueceu-se do seu
teor de resistência.
Porém, como o rock é uma música que se reinventa muito bem com novas
realidades, ele recupera-se na geração seguinte. Essa recuperação chamou-se de
punk, cuja tradução é uma gíria inglesa para o termo lixo. Surgido no final da década
de 70, o movimento punk simplifica os acordes outrora sofisticados pelos guitarristas
adeptos anteriormente, brutaliza as letras (o mundo é rústico com o proletário que
não tem futuro, o “no future”, o lema punk) e coloca, finalmente, o corpo em sua
plenitude na audição da música. O corpo, antes fonte de prazer, é vilipendiado por
cantores e ouvintes. O corpo é a expressão cruel da sociedade pobre e
marginalizada, mas o jovem a resiste e a agride com a mesma intensidade com que
é tratado.
Não obstante, o punk resgata um dos elementos da poesia primitiva: “A poesia
primitiva é uma poesia de caráter coletivo porque representa os anseios da
coletividade e está intimamente ligada ao modus vivendi dessas comunidades”
(SPINA, 2002, p. 15). O punk rock, como a música primitiva, (re)construiu a falta de
perspectiva do jovem proletário num futuro melhor, transformando-se num brado
ansiado dos problemas do coletivo juvenil e pobre.
O movimento punk chegou ao Brasil num momento em que o país retomava os
passos rumo à democracia. Todavia, o que pareceu a conquista da tão sonhada
liberdade, após o regime ditatorial, transformou-se na acomodação da sociedade e
na corrupção escancarada da política brasileira. O brasileiro havia tornado-se num
sujeito sem perspectivas de melhora, de sonhos. Mas, os jovens continuavam a
buscar a própria liberdade, o próprio prazer, a própria identidade. Essa situação
219
favoreceu a aceitação do movimento punk pelos adolescentes brasileiros, que
viram, na música, a chance de falarem abertamente sobre os problemas individuais
e sociais do seu cotidiano.
Não diferente desses jovens, Renato Russo partilhou dos ideais punk e trilhou a
trajetória artística com influências diretas das letras e dos acordes dissonantes e
agressivos da vertente punk do rock and roll. Por causa disso, era esperado que
Renato Russo fosse apenas mais um letrista do rock nacional. No entanto, Renato
Russo tornou-se um poeta dos jovens, um poeta do cancioneiro brasileiro. Renato
Russo criou e recriou mundos, sonhos, amores e corrupções em suas canções. A
melodia encontrava-se, novamente, como decorrera com a música popular
brasileira, com a letra, formando o canto poético do cotidiano do homem comum:
A presença de empresários sensíveis à dimensão estética do produto, muitas vezes
procedentes do meio artístico, é fenômeno corriqueiro das áreas de direção e
decisão do mercado fonográfico. Ao mesmo tempo que concentram seus esforços
nos lançamentos explosivos, esses agentes reconhecem que por trás das
manifestações efêmeras da maior parte de seu cast algo de sólido deve permanecer
nem que seja como garantia à preservação dos números já conquistados. Trata-se,
na verdade, da permanência de conteúdos profundamente arraigados na
comunidade que independem dos caprichos da moda ou mesmo das exigências
juvenis: em qualquer época, precisamos celebrar encontros, lamentar as
separações, anunciar e denunciar situações, retratar o lirismo e a estética do
cotidiano etc (TATIT, 2008, p. 232).
220
se a partir de duas manifestações históricas: a repressão e o sistema capitalista.
Insatisfeitos com a repressão ditatorial dos poderes políticos, a poesia de resistência
encontra, nas metáforas, maneiras de denunciar os abusos, bem como propõe um
novo mundo, um mundo no qual a liberdade do homem social é assegurada acima
de qualquer coisa.
No caso do sistema capitalista, não há diferenciação notável no tratamento com
o indivíduo, porque o capitalismo é um estado velado de repressão humana. O
capitalismo, em sua sobrevivência, depende do acúmulo de bens materiais,
reduzindo a capacidade humana à aquisição de mercadorias que, geralmente, são
desnecessárias ao bem-estar do homem. A poesia de resistência tende a desnudar
os ideais capitalistas ao indivíduo, conscientizando-o de sua essência tanto física
quanto psíquica. O homem consciente questiona a realidade e procura outro mundo:
Na verdade, a resistência também cresceu junto com a “má positividade” do
sistema. (...) A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos
correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto
oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-
esgar, a auto-desarticulação, o silêncio. O grito deve se “um grito de alarme”, (...).
Essas formas estranhas pelas quais o poético sobrevive em meio hostil ou
surdo, não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente
possível de existir no interior do processo capitalista. (BOSI, 2008, p. 165).
Em Renato Russo, a poesia de resistência encontra, na música rock and roll, a
expressão da rejeição do mundo real e capitalista:
Geração Coca-Cola
Quando nascemos fomos programados
A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados
Dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas chegou nossa vez –
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês
221
Depois de vinte anos na escola
Não é difícil de aprender
Todas as manhas do seu jogo sujo
Não é assim que tem que ser?
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer comédia no cinema com as suas leis.
222
as multinacionais, e “Fazer comédia no cinema com as suas leis”, com as regras do
capitalismo norte-americano. O verso final era uma ironia sobre a cultura dos
Estados Unidos da América. A revolução acabaria com a invasão e ainda a contaria,
nas telas do cinema, satirizando a cultura capitalista.
A resistência tem muitas fases. Ora propõe a recuperação de sentido comunitário
perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena
defensiva (lirismo de confissão, que data, pelo menos, da prosa ardente de
Rosseau); ora a crítica direta ou velada da desordem estabelecida (vertente da
sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia).
Nostálgica, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu caminho caminhando. O que
ela não pôde fazer, o que não está ao alcance da pura ação simbólica, foi criar
materialmente o novo mundo e as novas relações sociais, em que o poeta recobre
a transparência da visão e o divino poder de nomear. Só a Revolução (BOSI, 2008,
p. 167).
223
seria nacional, não mais multinacional americana, por isso, em Geração Coca-
Cola, o brado revolucionário não se restringia à composição escrita. Ele abarcava
também o prolongamento musical. A partitura se uniu à letra, formando o canto
poético.
Diante disso, a agressividada da canção estava presente na melodia, na letra e
na voz. A voz agredia o outro e o convocava a partilhar da realidade e da revolução.
O canto resgatava o interesse coletivo outrora da poesia primitiva, bem como
devolvia a liberdade do corpo que, na participação do canto poético russiano, se
desamarrava da opressão do capitalismo.
A participação do canto coletivo em Geração Coca-Cola e na obra de Renato
Russo entregava ao jovem a leveza utópica da poesia, uma vez que, segundo Ítalo
Calvino, a literatura tende a buscar a leveza das coisas, mesmo quando essa
aparenta trabalhar apenas com o peso:
Gostaria de propor a seguinte: no mais das vezes, minha intervenção se traduziu
por uma subtração do peso; esforcei-me por retirar peso, ora às figuras humanas,
ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à
estrutura da narrativa e à linguagem (CALVINO, p. 15, 2009).
A busca de Calvino, em retirar o peso das coisas para fazer literatura, é uma
constante na sua produção literária, pois literatura e poesia são escritas da leveza,
da possibilidade de encontrar o outro que complemente a si mesmo, de encontrar,
muitas vezes, um outro mundo. Um mundo diferente do real, porque o mundo real
constitui-se de peso.
Retornando ao canto poético de Renato Russo e aproveitando-se da ideias de
Calvino, sua poesia de resistência revelava o lado pesarozo da realidade humana e
brasileira, recriando os hábitos cotidianos do homem comum:
Hoje não estava nada bem
Mas a tempestade me distrai
Gosto dos pingos de chuva
Dos relâmpagos e dos trovões
224
tristeza, escuridão e alegria. O recorte representava o peso do mundo real, a tristeza
e a escuridão do não estar bem. Todavia, de acordo com Calvino, a poesia se faz
da leveza, logo, o trecho mencionado também proporcionou a imagem da leveza: a
alegria de observar a tempestade.
O recorte da canção aclara o binômio calviniano leveza X peso, pois o peso da
realidade encontrava-se na declaração “Hoje não estava nada bem”; entretanto,
havia alguma leveza que o retirasse do peso: a tempestade. É interessante notar o
tratamento dado à tempestade; já que a chuva é uma imagem poética, geralmente,
associada à tristeza, à dor, ao medo, à escuridão. Na canção, a tempestade
iconizava a fuga da realidade, porquanto “a tempestade me distrai”. A fuga do real
era a leveza da poesia proposta por Calvino.
Ademais, a complexidade dos fenômenos naturais da tempestade ocasiona
gotículas de água, clarões e sons dos relâmpagos, sendo que nenhum desses
traços fenômicos transpunham uma imagem leve e frágil, muito menos, pesada;
mas uma imagem leve e complexa, porque os traços dependem de toda uma
organização física da natureza para existirem. Dessa forma, Calvino explica a
complexidade inerente na leveza, citando Paul Valéry: “É preciso ser leve como o
pássaro, e não como a pluma” (CALVINO, 2009, p. 28), porque o voo do pássaro é
leve e complexo, enquanto a pluma é pesada devido a sua brevidade. Renato Russo
transformou o peso da tristeza na liberdade das emoções, representando a leveza
da tempestade, já que a chuva, igualmente o pássaro, só ocorre devido a um
complexo mecanismo físico. Os pingos d’água não são leves como a pluma, uma
vez que esses existem graças ao fenômeno natural, enquanto a pluma é apenas um
despreendimento da complexidade do pássaro.
Destarte, a melodia iniciava agressiva, o canto impunha-se e não havia quase
espaço para a respiração; contudo, a partir do trecho exposto, a canção sofria uma
suavidade na voz. A voz tomava outro rumo, o abrandamento impressionava pela
falta de reação, porque “não estava nada bem” e a tempestade o retirou do mal-
estar.
A dor aguda do verso “Hoje não estava nada” se esvaiu, conforme a progressão
da tempestade. Os versos se acentuavam novamente na palavra “trovões” porque
225
permitiram uma nova realidade: o bem-estar que se segue após a chuva: “Hoje a
tarde foi um dia bom”.
A voz ascendia-se a partir dos “trovões”. Sua força aumentava e a tempestade
abrandava-se. O céu desanuviou-se, não estava mais cinza. A esperança, o outro,
retornou ao canto poético. Mas, a voz não se encerrou na perfeita harmonia. Ela
ganhou, mais uma vez, o peso da realidade: “No silêncio eu não ouço meus gritos”.
A canção era presenteada, ao final, com as lágrimas da dor e a certeza de que o
homem se afirmou no mundo, como observação de Paul Zumthor (2005, p. 69):
Hoje à tarde foi um dia bom
Saí para caminhar com meu pai
Conversamos sobre coisas da vida
E tivemos um momento de paz
É de noite que tudo faz sentido
No silêncio eu não ouço meus gritos
E o que disserem
Meu pai sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Minha mãe sempre esteve esperando por mim
E o que disserem
Meus verdadeiros amigos sempre esperaram por mim
E o que disserem
Agora meu filho espera por mim
Estamos vivendo
E o que disserem
Os nossos dias serão para sempre
226
de caos. Esse homem era um anti-herói, mas também, o homem real que procurava
o outro para completar a si mesmo, o homem que se complementava quando estava
certo de que não estava sozinho, pois todos esperavam por ele.
Espelho da fraternidade cósmica, o poema é um modelo do que poderia ser a
sociedade humana. Diante da destruição da natureza, mostra a irmandade entre os
astros e as partículas, as substâncias químicas e a consciência. A poesia exercita
nossa imaginação e assim nos ensina a reconhecer as diferenças e a descobrir as
semelhanças. O universo é um tecido vivo de afinidades e oposições. Prova vivente
da fraternidade universal, cada poema é uma lição prática de harmonia e de
concórdia, embora seu tema seja a cólera do herói, a solidão da jovem abandonada
ou o naufrágio da consciência na água parada do espelho. A poesia é o antídoto da
técnica e do mercado. A isso se reduz o que poderia ser, em nosso tempo e no que
chega, a função da poesia. Nada mais? Nada menos (PAZ, 1993, p. 147).
227
Referências Bibliográficas
228
RUSSO, Renato. Legião Urbana. Manaus: EMI, 1984.
____________. A tempestade ou O Livro dos Dias. Manaus: EMI, 1996.
229
O DIA DOS PRODÍGIOS: IDENTIDADE (FEMININA) GERMINAL
Elisangela Nogueira 69
Introdução
230
atuando menos pela repressão direta (como o marido) do que pela
sugestão; é de certa maneira um poder que não se sente, porque
constantemente atua na discrição dos meandros de uma tomada de
decisão. É sobretudo um poder de que não se fala, silenciado e invisível
no discurso comum. (ALMEIDA, 1986, 503)
231
uma simples cobra, mas, quando os aldeões mencionam o desaparecimento dela,
criam em torno desse fato uma atmosfera sobrenatural, capaz de transformar a
serpente numa espécie de mito. Eles ainda criam uma expectativa de que, em algum
determinado momento, alguém virá para explicar o desaparecimento dessa
estranha cobra alada, e esse sentimento vai sendo cada vez mais alimentado ao
longo da narrativa.
A aparição da cobra como ente sobrenatural se mostra bastante oportuna
para os aldeões mergulharem neste "mundo transfigurado" e ainda proporciona uma
vivência nesse "Tempo prodigioso", marcado pela circularidade, no sentido de não
apresentar projeção de passado e futuro, e pela estaticidade, de maneira que
revivem aquele mesmo evento, no mesmo tempo. Como se os camponeses
estivessem inseridos num tempo estático, numa espécie de vivência interna, no
tempo interior.
Isso se pode notar pelo comportamento dos aldeões, que parecem não se
orientar pela racionalidade e ainda viver numa espécie de mundo delimitado, que
talvez possa ser caracterizado como arcaico. Nesse tipo de sociedade (e
mentalidade) "arcaica", de "pensamento selvagem" (LEVI-STRAUSS, 1976), as
práticas da escrita e das técnicas modernas não são cumpridas, por isso, na maioria
das vezes, essas sociedades baseiam suas atividades e suas tradições na
oralidade. De fato, na comunidade de Vilamaninhos a comunicação se estabelece
basicamente de forma oral, pois grande parte dos aldeões são semianalfabetos.
Esse tipo de sociedade “concebe o mundo que a cerca como um microcosmo.
Nos limites desse mundo fechado começa o domínio do desconhecido, do não
formado” (ELIADE, 1991, 34). No caso do texto de Lídia Jorge, ele oferece ao leitor
pistas de que há, na aldeia, um desconhecimento no que se refere ao que está
externo à vila, o que pode contribuir para o não desenvolvimento da consciência
daqueles aldeões. Trata-se de uma aldeia em condições precárias em vários
aspectos (cultural, político, social) e isso já pode ser observado na forma como ela
é descrita geograficamente: “no meio do redondo mais íntimo sempre fica
Vilamaninhos, colado às esferas pelas bordas da terra, cozida de quietude.
Mansidão" (JORGE, 1984, 35).
232
Eliade também admite que há relações íntimas existentes entre o mito em si
e o tempo, porque o mito é capaz de fornecer revelações sobre a estrutura do tempo.
Sendo assim,
233
pois se trata de uma vila do interior do Algarve que parece não ter evoluído na
mesma proporção em que as transformações ocorreram em Portugal. Ao contrário,
a aldeia permaneceu estagnada e sem perspectiva de progresso. Em síntese, a
maneira como o povo de Vilamaninhos percebeu a revolução mostra que estavam
alheios ao mundo que os cerca.
Nesse ambiente propício à estagnação, ao pouco desenvolvimento no que
se refere ao conhecimento do mundo exterior ao vilarejo e, possivelmente, à
formação de uma identidade, as personagens se mostram propensas ao não
reconhecimento de si. Pelo que a narrativa mostra, acredita-se que isso ocorre com
toda a comunidade de Vilamaninhos, mas, com as personagens femininas, essa
falta de consciência de si parece se evidenciar. Talvez pelo fato da mulher ser
considerada, de acordo com a visão da sociedade patriarcal (sociedade vigente na
época em que se passa o romance), inferior em relação à figura masculina, o que
pode ser observado pelo modo como a narrativa se apresenta e, prioritariamente,
pelo comportamento das personagens.
As linhas de O dia dos prodígios são habitadas por certas personagens que
merecem destaque na narrativa. Há indícios de que se trata de personagens
estereotipadas e que talvez possam ser consideradas representantes das classes
oprimidas portuguesas. Essa impressão se instala a partir do reconhecimento de
que se trata de um universo formado essencialmente por mulheres, e também pela
época em que se passa a narrativa (época da ditadura salazarista, em que as
mulheres eram classificadas como seres menores estabelecendo uma relação de
dependência com a figura masculina e, consequentemente, vivendo momentos
intensos de opressão).
Naquele época, como afirma Manuela Tavares em Feminismos: percursos e
desafios (2011, 131), “o sofrimento dessas mulheres ia-se apaziguando com as
cartas que chegavam por correio, mas o tempo de espera era demasiado [...] O
regresso era aguardado com muita ansiedade, mas as tensões acentuavam-se no
retomar da vida em comum”. Diante dessa situação, as mulheres, sem alternativa,
acabavam exercendo não somente as funções dentro do lar, mas também fora dele.
234
Em se tratando de O dia dos prodígios, grande parte das mulheres que
habitavam a aldeia exerciam também trabalhos braçais, nos campos, para
garantirem o sustento próprio e também o da família. Cada uma desenvolvia, a sua
moda, as suas funções dentro e/ou fora do espaço doméstico. Umas eram mais
comedidas e centradas nas tarefas do interior da casa, outras, mais proativas,
responsabilizavam-se pelos trabalhos externos, plantio e colheita, para garantir o
abastecimento da vila. Importante dizer que, pelo que mostra a narrativa, todo tipo
de trabalho era desenvolvido basicamente pelas mulheres, porque os homens que
ali estavam não tinham condições para desenvolvê-lo.
Pode-se considerar, em primeira instância, sobre as personagens, que
parece possível dividi-las em dois núcleos. O primeiro grupo parece estar
caracterizado por um nível de consciência inferior. Neste se podem incluir as
personagens Jesuína Palha, o casal Esperancinha Tereza e José Jorge Junior, e os
demais personagens que habitam o vilarejo, divisão baseada nas atitudes e
posicionamentos que essas personagens tomam diante dos acontecimentos
sucedidos no vilarejo.
O segundo grupo se compõe de personagens que se mostram num estágio
de consciência um pouco mais elevado em relação ao primeiro, no qual se podem
incluir as personagens Branca Volante, Carminha Parda e Carminha Rosa, e
Macário. Esse indício de elevação no nível de consciência parece estar associado
a ações específicas praticadas por essas personagens - o bordar e o limpar,
respectivamente, - ações consideradas tipicamente femininas e ainda constituem
atividades essencialmente intuitivas, que convidam ao mergulho na interioridade e,
consequentemente, a um desenvolvimento, mesmo que involuntário, de uma
consciência de si. Acredita-se que, talvez, Carminha Rosa (mãe de Carminha
Parda) possa ser inserida neste grupo porque convive com o drama de ter se
relacionado com o padre da cidade (Carminha Parda é fruto desse relacionamento)
e, pelo que se nota, não sente vergonha por isso.
Macário, embora não esteja inserido no rol das personagens femininas,
merece atenção especial porque, assim como Branca e Carminha Parda, exerce
uma atividade manual, toca violão e, além disso, canta e compõe. Macário se
235
mostra, na narrativa, como um artista, poeta e, por meio da composição de poesias,
acredita-se que há possibilidade de um mergulho no seu íntimo e um provável
reconhecimento de si. Pelo que parece, essa personagem se apresenta dotada de
uma inquietude que seria própria daqueles que, ainda que vivendo num universo
diferenciado, se destacam por um olhar iluminado.
No primeiro grupo de personagens, José Jorge Junior e Esperancinha Tereza
formam um casal que parece simbolizar a estagnação e o arcaísmo que no vilarejo
se instala. Isso pode ser notado pelo comportamento dessas personagens. Para
José Jorge, Esperancinha praticamente não existia; já ele, na sua própria visão, era
ainda dotado de boas qualidades.
Na realidade, a maior ocupação de Esperancinha, para não dizer a única, era
primeiro parir filhos e depois cuidar deles. A mulher de José Jorge não o ouvia.
Enquanto ele estava envolto nas lembranças dos seus antepassados, ela voltava
sua memória para a lembrança do nascimento dos filhos. Eram verdadeiros
monólogos que se caracterizavam como discursos totalmente solitários. Mas,
mesmo estando com sua mente ocupada por outros pensamentos, Esperancinha
estava ali, diante de seu marido, de corpo presente, supostamente ouvindo as
histórias de José Jorge, porque jamais poderia deixar de obedecer a ele.
Pelo que parece, indiretamente, José Jorge contribui para que Esperancinha
mergulhe no próprio interior e faça uma revisão de si, pois de acordo com Clark e
Holquist em Mikhail Bakhtin (1998) o indivíduo só se constitui na relação com o
outro. A relação que se estabelece entre o casal, embora seja de subalternidade
(José Jorge manda e Esperancinha obedece) parece proporcionar a ela a
possibilidade de visita ao seu íntimo e também pode ser o indício de que talvez
possa haver, não exatamente naquele momento, mas quem sabe posteriormente,
uma possível conscientização de si.
Nesse universo, prioritariamente liderado por mulheres, Jesuína Palha se
mostra uma líder, cuja função é cuidar e zelar por todos da aldeia. O núcleo liderado
por ela abrange a comunidade de modo geral, e Jesuína se vale desse poder para
estigmatizar as Carmens por considerá-las pecadoras, a mãe ex-amante de um
padre e a filha fruto desse ato proibido.
236
Embora se mostre líder da comunidade, Jesuína não demonstra ter
consciência de seu discurso, portador de certas nuances de incompreensão dos
fatores sociais, políticos e culturais condicionantes. Assim como os outros, ela não
tomou conhecimento do acontecimento histórico (Revolução de 1974) que deveria
envolver toda a sociedade portuguesa. Esse desconhecimento os mantêm
distanciados da realidade que os cerca, alheios ao exterior à vila, todos os
habitantes, não somente Jesuína.
Em razão dos fatos, Carminha Rosa e Carminha Parda (mãe e filha,
respectivamente) foram julgadas e condenadas pelos habitantes de Vilamaninhos.
Apesar desse mau julgamento, trata-se das personagens, juntamente com Branca
Volante e Macário, que aparentam um nível de consciência mais evoluído em
relação às outras. Macário acaba sendo enquadrado no rol dessas personagens
(mesmo sendo uma personagem masculina) porque deixa transparecer uma alma
feminina, pelo seu modo de agir diante de Carminha Parda, deixando transparecer
uma mentalidade pouco machista se comparada às outras personagens
masculinas.
Para se livrarem desse estigma e pelo desprezo que os aldeões lhes infligem
em razão da condição das duas, que consideram pecaminosa, mãe e filha vivem
trancadas em casa, mal transitam pelo vilarejo. Carminha, a filha, ocupa-se em
limpar constantemente as janelas, como se quisesse limpar de si as impurezas por
sua filiação.
A única maneira, na visão de Carminha Rosa e Parda, de se livrarem dessa
desonra seria esperar que viesse alguém de fora, um homem, para casar-se com a
filha e levá-la para longe dali. Mas acabam percebendo que somente no interior do
vilarejo, rodeadas pelos outros habitantes e em comunhão com eles, talvez
conseguissem transformar o vilarejo e, consequentemente, os que ali habitavam.
Carminha Parda acaba descobrindo que a solução não viria de fora, está ali
mesmo, dentro do vilarejo, na figura de Macário, o aluado cantor-jogral da vila, que
sempre fora apaixonado por ela e, por isso, casa-se com ele. Ela compreende que
a mudança de espaço não traria a solução para seus problemas; seria necessário
237
que ocorresse uma transformação interna e cada habitante do vilarejo tem sua
parcela de responsabilidade nesse processo.
No núcleo das personagens com um nível de consciência um pouco mais
elevado apresenta-se Branca Volante, que vive em matrimônio com Pássaro
Volante. A dedicação de Branca aos filhos, ao marido e aos trabalhos relativos ao
lar preenche a totalidade de suas horas livres. Pássaro Volante impunha a sua
autoridade e não permitia que ela afastasse os seus pensamentos dos afazeres do
lar, e ela obedecia
238
Branca limita-se a sofrer o mau tratamento que recebe do marido, mas o faz
enquanto borda um dragão no centro de uma colcha de linho cru, à semelhança de
Penélope na longa espera do marido Ulisses, que tinha ido guerrear em Troia. No
mito, Penélope era apaixonada por Ulisses e, para não ter que casar-se com outro,
lança mão de um artifício, o bordado, para ganhar tempo, ainda esperançosa do
regresso de Ulisses. Penélope alegou que estava empenhada em tecer uma tela
comprometendo-se em fazer sua escolha entre os pretendentes que já estavam a
postos quando a obra estivesse pronta. Para Penélope o bordado era uma escolha,
já para Branca uma imposição.
O ato de bordar resgata em Branca um dom que tinha desde menina e isso
a faz “ir mais além do presente até agarrar o futuro, com uma vidência feita de
sobressaltos e chamada por palavras”. (JORGE, 1984, 60) A partir de então, a
mulher que talvez pudesse representar no vilarejo a submissão feminina começa a
dormir de olhos abertos e ver através das pessoas, “ver a transparência como
através de um vidro.” (JORGE, 1984, 46) Os poderes de Branca começam a tomar
proporções cada vez maiores, e essa aparente passividade vai se transformando.
No isolamento da casa e na aparente prisão do bordado, vai nascendo o sonho que
leva Branca a afirmar a sua personalidade em confronto com o marido, isto é, na
medida em que o bordado evolui, parece que a aldeã vai tomando consciência de
si.
Entre as personagens femininas apresentadas no romance, Branca aparenta
ser, em primeira instância, aquela que mais se submete aos demandos do marido,
Pássaro Volante, e que possivelmente apresenta maior dificuldade em partir rumo
à construção do reconhecimento de si. Mas as ações dessa personagem acabam
convergindo para uma transformação. Isso ocorre porque, além de recuperar seu
dom de vidência, se rebela contra o marido, que lhe infligia maus tratos, dando nele
uma surra.
Outro fato que parece contribuir para o despertar da consciência de Branca
ocorre no final do romance, quando a personagem se encontra com o forasteiro e
ele a convida para ir embora dali. A personagem tem a oportunidade de contato com
o que está externo ao vilarejo, mas recusa a possibilidade de saída.
239
Ao que parece, Branca se mostra como a única personagem no vilarejo que
possui um germe de formação de identidade. Acredita-se que o fato de ter se
libertado do marido e recuperado seu dom adormecido não remete ainda à presença
de uma identidade. Trata-se, porém, do início de um processo muito longo a ser
percorrido e, pelo que se nota, Branca está em busca de uma identidade individual
(quando se concentra em seus próprios interesses) e, ao mesmo tempo, inserida no
coletivo (considerando que a busca dessa identidade pode ser também feminina, ou
seja, de um grupo específico, o das mulheres).
Branca parece buscar a continuidade de si mesma, uma identidade que não
se restringe a sua pessoa, mas a um grupo feminino. Se Branca não tivesse
recuperado seu dom de vidência e enfrentado o marido, seria difícil dar início à
construção do sujeito mulher, melhor dizendo, muito provavelmente não seria
possível a construção desse sujeito na sua individualidade e coletividade. Atrelada
à questão da construção do sujeito está o reconhecer a si mesmo e ser reconhecido.
Branca, pela maneira como conduz suas ações, parece almejar esse
reconhecimento de si e também ser reconhecida: acredita-se que, primeiramente,
pelo marido, pois, somente assim, o processo de construção de sua identidade teria
início.
Com as outras personagens femininas, exceto as Carminhas Rosa e Parda,
essa oportunidade não surge porque o espaço do vilarejo contribui para a
estagnação, e o fato de não saírem dali propicia a permanência naquele estado de
mesmice, ocasionando o não contato com o outro e, consequentemente, a não
conscientização de si mesmas.
Apesar dessa mentalidade rústica, atrasada e da espera de transformações que tanto
tardam, nota-se que há presença de um sentimento de quem vê uma possível realização de algo, e
isso se evidencia por meio de Branca Volante e Carminha Parda. Lídia Jorge mostra que a atitude
dessas personagens talvez possa iniciar um semear da consciência de si. Isso é apresentado ainda
de uma maneira que remete ao estágio inicial de desenvolvimento, numa condição que se mostra
tão elementar a ponto de parecer se apresentar no estágio antes de deixar a condição de ovo.
240
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TAVARES, Manuela. Anos 60, os ventos para uma nova vaga dos feminismos não
chegam a Portugal. In: Feminismos: percursos e desafios (1947-2007). Portugal:
Texto Editores, 2011.
241
CULPA E PECADO EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA
Ernani Terra70
Introdução
242
da obra. É por meio dele que tomamos conhecimento de fatos relevantes da diegese
na medida em que o ator Ana revela a padre Justino seus pecados.
Os sentidos de Crônica da casa assassinada constroem-se a partir da
oposição: morte vs. vida, articulação semântica fundamental do universo dos
valores individuais. Tais valores axiológicos são figurativizados no nível discursivo
por atores e objetos-valor. A morte é figurativizada no solar dos Meneses (a casa
assassinada), que é o espaço da ordem, sacralizado, que funciona como axis mundi.
Esse mundo ordenado da família Meneses (a casa-Cosmos) vê-se transformado e
ameaçado por um ataque externo, por meio de Nina, que se casa com um dos
Meneses, Valdo. Nina teria tido relação incestuosa com seu filho André. Ao adentrar
para a família Meneses, Nina, que figurativiza a vida, passa a ser membro do clã e
rompe o contrato estabelecido ao, possivelmente, manter relações incestuosas com
o próprio filho.
Rompido o contrato fiduciário, Nina, movida pela cupidez, desperta paixões
de cólera em Ana (a cunhada), de vingança em Demétrio (o cunhado, que odeia e
ama Nina), de insegurança em Valdo (o marido, prisioneiro dos valores
representados pela Casa e da paixão por Nina). O presumido incesto rompe o
espaço consagrado (a casa-Cosmos) instaurando o Caos, que leva à ruína, à
desintegração da casa dos Meneses, e à morte por câncer de Nina.
Um enunciador, que coligiu os fatos por meio de cartas esparsas, cadernos
com relatos de família e depoimentos de testemunhas, por meio de debreagem
enunciativa, delega a voz a dez narradores que contam a decadência e a destruição
dos Meneses, num (des)concerto polifônico descontínuo. Os dez narradores, todos
de focalização interna, fazem-se ouvir em discursos materializados em diferentes
gêneros: diário, carta, confissão, depoimento, memórias, que se assemelham a
peças de um inquérito, que deixa a cargo do leitor recompor os fatos e estabelecer
"a verdade". Quando uma voz emerge, outras são ouvidas em contraponto. Cada
vez que uma voz se vê confrontada ou espelhada noutra(s), o leitor é levado para
veredas de um labirinto, numa leitura que se pode dizer hipertextual.
A figura central do romance é Nina, mulher cuja beleza desperta desejo e
inveja. Representa uma antítese e, ao mesmo tempo, uma negação dos valores que
243
regem a família Meneses, ponto para onde convergem todas as vozes, que falam
da verdade, do sexo, do amor e da morte.
Na estrutura narrativa, Nina exerce papel fundamental na medida em que é
destinador-manipulador dos demais sujeitos da ação, estabelecendo as regras do
jogo. Em semiótica discursiva, denominamos destinador "o sujeito responsável pela
alteração das qualidades do sujeito da ação. Aquele que determina a competência
e os valores do sujeito que age, aquele que, em suma, estabelece as regras do jogo"
(BARROS, 1988, p.18). Nina é destinador-manipulador na medida em que
determina os valores que serão visados pelos sujeitos, transformando-os, isto é, ela
exerce um fazer-fazer. Sua entrada no solar dos Meneses, como se fora um anjo
exterminador, instaura a ruptura da ordem (a transformação do Cosmos em Caos),
desencadeando as paixões, sobretudo as de malquerer. O tempo não é cronológico:
há analepses e prolepses. A narrativa se inicia em in ultima res, pela narração de
André, em seu diário, dos últimos momentos de Nina, com seu corpo já se
decompondo pelo câncer, exalando mau cheiro, mas mesmo assim capaz de
despertar desejo.
Para este trabalho, voltado para o tema da culpa e do pecado, fiz um recorte
e centrei-me apenas no percurso narrativo de um dos actantes, representado pelo
ator Ana (esposa de Demétrio e cunhada de Nina), pois é nela que se manifestam
mais explicitamente a culpa e o pecado.
244
da culpa em decorrência de alguma ação, seja ela pecado ou não. No pecado, o
ator é agente, na medida em que infringe uma norma anterior que caracteriza seu
ato como pecado, que pode ser anulado pelo perdão. Donde posso tirar as seguintes
conclusões: a) pode haver pecado (ação) sem culpa (paixão); b) pode haver a culpa
sem pecado.
Evidentemente, o percurso do sujeito será diferente em cada um dos casos.
No caso de haver pecado e não haver a culpa, o agente não se sentirá compelido a
buscar o perdão, como poderá não experimentar paixões decorrentes de sua ação.
Sua infelicidade aumenta com a chegada à Casa de Nina, casada com Valdo,
irmão de Demétrio. Nina é extremamente bela, veste-se bem, atrai a atenção de
todos, o que desperta a inveja de Ana. Não bastasse, Ana, que espiona Nina,
descobre que Nina mantém relações sexuais com o jardineiro Alberto, que é amado
por Ana. O jardineiro suicida-se usando um revólver que fora atirado pela janela por
Nina.
Esses fatos influenciam as ações de Ana, particularmente com relação à
Nina, movida pelas seguintes paixões:
a) inveja: "Ah, como era bela, como era diferente de mim. Tudo na sua pessoa
parecia animado e brilhante"(CARDOSO: 2013, p. 112).
b) ciúme: Ana ama Alberto, mas esse tem relacionamento amoroso com Nina: "E
ainda daquela vez o ciúme encheu-me o coração e, como tantas vezes já o fizera
245
no decorrer da vida, contemplei minha cunhada com inveja - ela era a vitoriosa, e
o seria sempre" (CARDOSO: 2013, p. 401). (destaques acrescidos)
c) cólera;
d) vingança: Ana quer matar Nina por julgá-la culpada da morte de Alberto.
246
Programação espacial: o espaço do pecado
247
conotação masculina, já que o movimento do homem é centrífugo: é quem sai para
a guerra e para a caça. Esse movimento inverte-se para mulher com o casamento,
pois ela deixa a casa para se estabelecer em outra.
A Casa pode ser vista como axis mundi, pois é nela e por ela que se
desenvolvem os percursos narrativos dos sujeitos. Com relação ao espaço
pragmático, está situada na Chácara dos Meneses, no distrito de Vila Velha, Minas
Gerais. Nela habitam os Meneses (Demétrio, Valdo e Timóteo), Ana (esposa de
Demétrio), Nina (esposa de Valdo) e criadagem, com destaque para Betty, a
governanta, e Alberto, o jardineiro. Tirante a Casa e seus arredores, o outro espaço
pragmático do romance é o Rio de Janeiro, de onde provém Nina. Assim, tem-se
uma primeira oposição espacial: /Vila Velha vs. Rio de Janeiro/, homóloga à
oposição /rural vs. urbano/ e /isolamento vs. integração/. Enquanto Vila Velha é o
espaço do arcaico, da falta de relação entre pessoas, da decadência, do atraso, da
não-vida, portanto espaço disfórico; o Rio de Janeiro é figurativizado como espaço
das interações pessoais, da vida, espaço eufórico, portanto. O espaço da Casa
comporta ainda duas oposições, levando em conta a categoria /englobante vs.
englobado/.
Vila Velha Casa
/englobante/ vs. /englobado/
Essa oposição comporta outra, uma vez que na Casa há um anexo, o
Pavilhão, espaço de relações proibidas.
Casa Pavilhão
/englobante/ vs. /englobado/
/alto/ /baixo/
A programação temporal realiza a sintagmatização dos tempos,
estabelecendo uma cronologia. A programação espacial organiza o encadeamento
sintagmático dos espaços parciais, inscrevendo neles programas narrativos graças
ao procedimento da debreagem, instalando espaços enunciativos ou enuncivos.
248
O espaço tem função relevante na medida em que a Casa não é apenas o
locus onde se desenrolam os conflitos e paixões, mas também é a metaforização
da ruína dos Meneses. Lúcio Cardoso apresenta nas páginas iniciais da Crônica,
um desenho em que reproduz a planta da Chácara dos Meneses, com seus limites
e, no desenho da casa, seus cômodos, identificando o quarto que ocupa cada um
dos atores.
Reportanto a Eliade (2010), sabemos que o espaço do sagrado não é
homogêneo, apresentando rupturas que permitem a constituição do mundo a partir
da constituição de um ponto fixo. Na Casa, que constitui uma imago mundi, o espaço
se fragmenta; cada sujeito tem seu espaço próprio (seu quarto) em que se confina.
O ator Timóteo (irmão de Demétrio e Valdo), homossexual, que se veste com roupas
femininas, está desterrado em sua própria casa, confinado em seu quarto, proibido
por Demétrio de ausentar do espaço a que foi confinado e de se avistar com os
irmãos, por ser considerado "vergonha da família", portador de "moléstia
contagiosa". O desterro, como se sabe, é forma de sanção e interdição.
Há uma disjunção no espaço, pois paralelamente a Casa, propriamente dita,
instala-se um espaço metonímico, o Pavilhão, locus, fora do eixo central, das
relações interditas e que vive trancado. A seguir, apresento resumidamente as
oposições espaciais relevantes no romance.
espaço enuncativo vs. espaço enuncivo
aqui (Casa) vs. lá (Pavilhão)
rural (a Casa, o arcaico) vs. urbano (Rio de Janeiro, o moderno)
englobante (a Casa) vs. englobado (o Pavilhão)
alto (a Casa) vs. baixo (o Pavilhão)
249
Partindo da oposição semântica fundamental /natureza vs. cultura/, Greimas
e Rastier (1975) apresentam o seguinte quadrado semiótico para o sistema social
das relações sexuais.
Com base nesse quadrado, é possível fazer uma distinção das relações
sexuais que, segundo o catolicismo, configuram pecado, que são as não prescritas
e as interditas, lembrando que relações não interditas no universo da cultura podem
ser consideradas excluídas no universo da religiosidade. Ana, portanto, não é
pecadora apenas pelas paixões que tem em relação à Nina, como a inveja, mas
também por estabelecer relações sexuais fora do matrimônio.
O Pavilhão
O Pavilhão é o espaço onde ocorrem as relações interditas, relações
adulterinas e incestuosas. Trata-se de um espaço afastado da Casa propriamente
dita, localizado em posição inferior em relação a ela, abandonado e mal-
conservado.
Ocorreu-me que aquela parte de Chácara – o Pavilhão – sempre me
parecera um lugar condenado, a que ninguém se referia; se por acaso
alguém a isso era obrigado, munia-se de uma série de precauções e nunca
dizia abertamente o nome pelo qual a construção era conhecida, mas
250
designava-a apenas como ‘lá’, ou ‘lá embaixo’, tal como já ouvira, por mais
de uma vez, falar tia Ana. (CARDOSO, 2013, p. 385)
Conclusão
Neste trabalho intentei mostrar como culpa e pecado são tematizados na obra
Crônica da casa assassinada. Vários caminhos se abriram para esse estudo. Um
deles seria tratar da figurativização desses temas, estudo fascinante, sem dúvida.
Optei por deixar de lado uma abordagem da semântica discursiva, dado o caráter
de comunicação breve deste trabalho, optando por uma abordagem do componente
sintáxico do nível discursivo e, mesmo assim, ficando restrito à programação
espacial. Justifica-se também essa abordagem, uma vez que, já a partir do título,
que é um contextualizador prospectivo, a categoria espaço toma relevante
importância para se entender que, a partir de sua fragmentação e descontinuidade,
é categoria essencial para se compreender os percursos narrativos de culpa e
pecado dos sujeitos, na medida em que na obra limitam-se claramente os espaços
de pecado e de não-pecado, A culpa e o pecado, visto assim, estão confinados a
determinados espaços da Casa, particularmente aos subterrâneos e aos porões,
locus em que os sujeitos pecam, mas não se sentem culpado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes: 2008.
BARROS, Diana Luz Passos de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São
Paulo: Atual, 1988.
251
BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: ____. Problemas de
linguística geral I. 4a. ed. Campinas (SP): Pontes; Editora da Universidade Estadual
de Campinas, 1995. [p. 284-293]
_____. A natureza dos pronomes. In: _____. Problemas de linguística geral I. 4a.
ed. Campinas (SP): Pontes; Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995.
[p. 277-283]
______ . O aparelho formal da enunciação. In: _____. Problemas de linguística geral
II. Campinas (SP): Pontes, 1989. [p. 81-90]
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3a. ed. São Paulo:
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_______ . ; RASTIER, François. O jogo das restrições semióticas. In: GREIMAS,
Algirdas Julien. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1975,
p. 126-143.
252
VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO:
O DISCURSO DO PORTAL DO SINDICATO APEOESP
71
Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob a orientação da Profª. Drª. Aurora
Gedra Ruiz Alvarez.
253
secretaria possui a maior rede de ensino do Brasil, com 5,3 mil escolas, 230 mil
professores, 59 mil servidores e mais de quatro milhões de alunos (SECRETARIA
DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, 2015, on-line).
254
tema foi dada relevância. Diante desse critério, escolhemos alguns desses textos
para análise.
Antes, porém, iniciamos pelo texto que trata da “missão” da APEOESP, pois
por meio dele é possível verificar o modo como a instituição se apresenta e se coloca
no mundo (APEOESP MISSÃO, 2015, on-line). Ao ser intitulado “Missão”, vemos
que se trata do compromisso assumido perante os associados e à sociedade em
geral. Também nos remete aos objetivos, obrigações morais da instituição para
aqueles a quem representa.
Esse texto estabelece as principais finalidades do sindicato e chama-nos a
atenção a repetição dos verbos “defender” e “lutar”, ambos presentes em dois
momentos para referir às ações da APEOESP para com seus sócios. Os dois verbos
pressupõem que a categoria dos professores precisa de uma certa proteção, de
tutela. E se precisa de defesa é porque há algum opositor, inimigo ou até mesmo
um obstáculo, que no caso podem ser os empregadores ou até os alunos. No trecho
“É o sindicato que, em nome dos associados, negocia com o governo questões
salariais, profissionais e educacionais” é possível ver uma dessas forças opositoras
a que se referem. Essa “característica defensora” do sindicato permite que ele se
mostre com uma função bastante positiva para a sociedade. Prova que tem saberes
e poderes que o legitimam para advogar pelas causas de toda uma categoria de
profissionais.
Uma das lutas a que se propõe é pela melhoria do ensino, sobretudo público
e gratuito, o que demonstra sua preocupação social. É interessante observar o tom
um tanto pretensioso que se cria no texto pelo uso de diversas expressões
generalizadoras, para dizer o que o sindicato é capaz de realizar. Esse tom aparece,
por exemplo, nas constantes repetições do pronome indefinido “todo”, como em:
“visando à unidade e a unificação de todas as entidades”, “melhoria do ensino [...]
em todos os níveis”, “lutar [...] por organização, manifestação e expressão para
todos os trabalhadores”. Esse uso tanto engrandece o sindicato, ampliando sua
capacidade de ação, quanto aponta para o fato de que essa entidade está sempre
255
na busca da equidade, já que não exclui nenhum trabalhador, nenhum nível de
ensino, nenhuma entidade.
No terceiro parágrafo, a instituição em questão expõe uma série de números
que comprovam sua grande abrangência e aceitação para com seus associados.
Isso porque 180 mil sócios podem totalizar quase 80% dos docentes das redes
públicas de ensino do estado de São Paulo. Diz ainda ser “um dos maiores
sindicatos da América Latina”, o que também confirma esse seu grande alcance
social.
Além dessas atribuições, todas muito positivas, o sindicato também diz ter
convênios em diversas áreas, como educação, comércio, assistência médica, um
apart-hotel para receber professores do interior do Estado, quando estão de
passagem pela capital. Conta ainda com quatro colônias de férias. Todas essas
ofertas vêm ao encontro desse papel positivo que a entidade representa. Por meio
delas, a APEOESP se mostra também acolhedora, preocupada com o bem-estar, o
lazer, a saúde de seus associados.
Em resumo, podemos dizer que o texto que expõe a missão do sindicato só
revela aspectos positivos dessa instituição. Percebemos, ao mesmo tempo, um tom
potente, laudatório, e até mesmo maternal, visto que defende, protege, preocupa-
se com seus dependentes.
De acordo com Aristóteles, um discurso mobiliza três tipos de provas para
persuadir seu auditório: o ethos, que consiste no caráter moral do orador, a imagem
que ele constrói de si para ganhar a adesão de seus ouvintes, o pathos, ou paixão,
que se fundamenta nas disposições que se criam no ouvinte e o logos, que se
ancora no próprio discurso. Todos esses mecanismos implicam no fazer persuasivo.
A partir de nosso exame do logos, podemos depreender um ethos inserido no
discurso.
Assim como considera Aristóteles, tomamos o ethos como um processo de
influência sobre o outro e, portanto, o mais importante meio de persuasão, já que
por meio dele o discurso deixa a impressão de o orador ser digno de confiança. Seu
caráter moral é a prova determinante para se fazer crer. O caráter atribuído ao
sindicato no texto faz com que ele passe uma imagem de que é digno de confiança;
256
pelo texto, ele parece ser confiável. Além disso, ele se mostra totalmente parceiro
dos associados, a favor dos seus interesses e esse encontro, essa união de
interesses em comum, cria efeitos bastante persuasivos.
A página na internet é um dos meios que o sindicato tem de passar a imagem
que criou para si. Ali, tem seu espaço para expor essa representação, para que o
público saiba e creia no que está sendo dito e tome como verdade. Isso, claro, se o
discurso do site for ao encontro do que pensa o leitor, pois no caso contrário, poderá
parecer um site mentiroso. Desse modo, se o interlocutor, o auditório de um discurso
não crer nessa representação, não haverá confiança, nem persuasão. Mas se
levarmos em conta que a entidade em questão conta com 180.000 associados,
numa rede de ensino com 230.000 docentes, veremos que esse público julga a
figura do sindicato como digna de crédito.
Assim, é possível dizer que há uma harmonia entre o ethos do enunciador e
o pathos do enunciatário e o discurso é eficaz. A um enunciatário que necessita que
advoguem por suas causas corresponde um enunciador disposto a “lutar” e a
“defender” esses profissionais. A APEOESP mostra-se como uma instância
superior, com saberes e poderes para proteger seus associados. Ao mesmo tempo
docentes e sindicato se identificam e se diferenciam; têm papéis diferentes, mas se
completam.
Voltemos, agora, nosso olhar para o destaque dado pelo portal à violência
das escolas. Como já dissemos, o site da APEOESP repete em três links da página
esse tema. Em apenas um desses links, verificamos que o site disponibiliza 19
páginas com matérias sobre esse assunto. Das páginas 1 até 18 foram encontradas
dez matérias – entre notícias, reportagens, etc. – em cada uma. E na página 19,
havia sete textos até a data do acesso, em 12 de março de 2015, totalizando 187
tópicos. Esses textos datam de 9 de novembro de 2012 a 24 de fevereiro de 2015,
ou seja, há no portal textos e relatos que retratam a violência nas escolas num
período de 27 meses. São muitas histórias, pesquisas, dados, sem contar que
existem casos que não são noticiados, nem registrados em boletins de ocorrência,
ou expostos no site em questão.
257
Ressaltamos que essas matérias têm como fonte uma série de meios de
comunicação, tais como os jornais O Estado de São Paulo, O Globo, Agora São
Paulo, Diário de São Paulo, O Diário, Diário do grande ABC, e portais Agência Brasil
– Portal Terra, O Tempo, Portal LR1, G1, Portal R7, UOL, além das pesquisas feitas
pela própria APEOESP, entre tantos outros meios de comunicação.
Diante de todo esse material e da observação do enfoque de cada um desses
textos, constatamos que muitos deles tratam da violência de forma mais
particularizada, como vemos nos seguintes títulos: “Aluna agride colega em escola
e faz ameaça: ‘Da próxima vez vai ser pior’”, “Após nova ameaça, escola dispensa
alunos mais uma vez”, registrando e discutindo casos de uma escola ou de uma
região específica. Há outros que tratam o tema de modo mais amplo e que
correspondem especificamente ao Estado de São Paulo, e há ainda os que falam
de como esse assunto é visto em todo o país. Neste trabalho, porém, abreviamos o
corpus a ser analisado72.
Iniciando nossa análise, já nos chama a atenção o ícone usado para o
“Observatório da violência”, e que antecede cada um dos 187 textos desse link,
como vemos na figura 1. Trata-se de três gizes, um azul, um rosa e um amarelo. O
giz azul aparece quebrado ao meio, com alguns fragmentos pequenos e pó. Essa
quebra do principal material de trabalho oferecido aos professores das escolas
públicas pode representar a violência nas escolas em diversos aspectos. Pode
sugerir agressão física dos mais diferentes tipos, crimes hediondos, até mesmo que
levam à morte, visto que são muitos os textos expostos nesse mesmo link relatando
até casos de professores mortos por alunos. Alguns exemplos: “Aluno que matou
professora dentro de escola é condenado a 16 anos de prisão”, “Casos continuam
após morte de docente”, “Menina é estuprada dentro de escola em Osasco”, entre
tantos outros relatos de crimes graves. Nesses casos, a imagem do giz quebrado
parece até ser branda para simbolizar esse tipo de violência.
Figura 1
72A análise mais detalhada dos textos do site é parte da tese de doutorado da autora, a ser concluída em
jun/2016.
258
Fonte: APEOESP OBSERVATÓRIO DA VIOLÊNCIA. (2015, on-line).
São muitos os textos com esse tipo de conteúdo, mas além desses delitos há
muitos outros expostos no site. Podemos até pensar nos casos em que alunos
arremessam o próprio giz nos colegas e professores, usando esse material como
instrumento de ataque. Nesse caso, esse objeto parece ser menos ofensivo se
compararmos com as histórias de morte, espancamento, estupro, mas de qualquer
forma não deixa de ser uma atitude agressiva e que pode, sim, causar danos à
integridade física de quem por ele é atingido. O giz, em vez de servir como material
de trabalho dos professores, como recurso para as aulas, acaba servindo como mais
um objeto a ser usado para promover violência.
E sendo o giz, ainda, o principal material fornecido aos professores nessa
rede de ensino, a quebra dele na imagem também pode representar o rompimento,
o impedimento da aula, e até pelo mesmo motivo da violência.
Existe, também, um link, ao final da página da APEOESP, que conta com um
“Caderno de violência nas escolas”, uma pesquisa feita pelo Instituto Data Popular,
por encomenda do sindicato. Só o fato de o sindicato ter feito esse material já é
relevante, e mostra o quanto essas ocorrências estão presentes no dia a dia das
escolas. Discuti-las e procurar compreendê-las pode ser um caminho para tentar ao
menos minimizar esses acontecimentos. É curioso pensar que a própria Secretaria
de Estado da Educação (SEE), responsável por essas escolas, não tem uma
pesquisa como essa.
O material vem em uma capa preta, assemelhando-se a um livro de
ocorrências e tem como subtítulo “O olhar dos professores”, que inclusive tem mais
ênfase visual, pois o tamanho da letra é maior nesse subtítulo do que no próprio
título. Em branco, contrasta ainda mais com o preto da capa, o que reforça esse
destaque dado à voz dos professores. Todos esses dizeres aparecem em caixa alta
259
e esse realce pode agradar muito ao público associado, que certamente quer ser
ouvido.
Outro link que trata desse tema é intitulado “Registre aqui ocorrências de
violência nas suas Escolas”. A existência desse link já é muito significativa. Deixa
implícito que a violência existe e que o sindicato quer ouvir seus associados. Ainda
mais se levarmos em conta que no site da secretaria da Educação de São Paulo
quase não há menção à violência nas escolas, e disponibilizar a ficha é reconhecer
a existência desses fatos, o que não é feito pela instituição responsável pela
educação pública do Estado de São Paulo.
Após clicar no link, abre-se uma tela em que o texto encoraja o associado –
professor – a registrar as ocorrências de violências. Ao apresentar o objetivo do
registro, o texto afirma que é o de “contribuir para a lavratura de Boletins de
Ocorrência” e vemos, então, que o sindicato se compromete a levar o caso a
instâncias judiciais. A primeira ação oferecida pela APEOESP no caso do registro é
levar o fato à polícia e, só então, o texto diz que usará esse dado como material de
estudo da APEOESP para posteriormente “cobrar das autoridades ações para
prevenir e conter um problema que, há muito, deixou de estar restrito a casos
isolados, tornando-se verdadeira ‘epidemia’ no estado de São Paulo”.
Ao dizer “um problema que, há muito, deixou de estar restrito a casos
isolados” faz com que se pressuponha que a violência nas escolas já tivesse sido,
no passado, restrita a casos mais pontuais, mas que “há muito” não o seja mais. E
a designação desse problema como sendo uma “epidemia” só confirma o quanto
essa situação é notável, pois esse termo costuma se referir a um fenômeno
negativo, geralmente uma doença, que afeta rapidamente a vida de uma grande
quantidade de pessoas.
Esse trecho, o segundo parágrafo, mostra um sindicato bastante atuante, o
que pode ser visto pelo uso de verbos que se referem a ele, como: “contribuir”,
“propor”, “cobrar”, “prevenir”, “conter”, todos esses conferindo uma atuação positiva
a essa instituição. Os substantivos “atuação” e “ações” também confirmam esse
papel realizador do sindicato, que mostra ter o poder e o saber para, inclusive,
cobrar ações das autoridades.
260
Conhecendo melhor o teor da ficha, vemos que um de seus campos dispõe
de uma lista com dez tipos de violência, o que pressupõe que essas são as
ocorrências mais comuns. Eles aparecem nesta ordem: “Ato de vandalismo
(depredação, pichações)”, “Ameaça”, “Agressão verbal”, “Agressão física”, “Furto
(sem uso de violência)”, “Roubo ou assalto à mão armada (com uso de violência)”,
“Assédio ou violência sexual”, “Assédio moral”, “Tentativa de assassinato”,
“Assassinato”, “Outro – descreva sucintamente”. A ficha ainda pede que se indique
a vítima e nele admite-se que a violência pode ocorrer com qualquer pessoa
pertencente à comunidade escolar.
Juntando-se ao que dissemos, dos 187 textos expostos no portal da
APEOESP sobre violência nas escolas, analisamos mais detidamente dois deles,
um da BBC Brasil em São Paulo, do ano de 2014, e outro, de 2013, da TV Globo.
Aqui, mencionamos algumas conclusões obtidas através dessa análise, que nos
levam a depreender mais um pouco da visão que o site passa a seus leitores:
nesses textos, em geral, o aluno é mostrado como o agressor, o professor é a vítima,
as famílias dos alunos são corresponsáveis pela violência, a escola é um local
perigoso e o sindicato é uma instituição protetora, atuante. Todos esses “entes” são
apresentados assim, de forma maniqueísta, estereotipada, autoritária. Isso porque
o discurso manifesto no portal do sindicato não aponta para uma abertura, uma
multiplicidade de olhares e de características dessas instâncias/instituições.
É possível dizer, pois, que o processo de persuasão nessa página eletrônica
é construído pela junção de diversas estratégias. A repetição do tema da violência
nos links, a grande quantidade de material sobre esse assunto, a abordagem
diversificada – por meio de notícias, pesquisa, ficha de denúncia –, as fontes
também diversas, a harmonia entre um ethos protetor, sábio, poderoso, honesto,
confiável, com um pathos estimulado pelo temor, pela compaixão, pela indignação,
são algumas das estratégias retóricas do portal para convencer o leitor de que esse
sindicato é, de fato, necessário para proteger tanto os associados, professores,
quanto os alunos, que convivem no ambiente escolar, tido como hostil.
Mas mesmo considerando que estamos diante de um discurso, que constrói
uma certa “realidade”, esse discurso do portal da APEOESP suscita reflexões
261
polêmicas e, ao mesmo tempo, necessárias, pois, em tese, ao se pensar em escola
não se deveria pensar também em violência. Esse tema, portanto, tão abordado no
portal, merece um olhar bastante cuidadoso, tanto do poder público, quanto da
escola e da sociedade como um todo.
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Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
______. Retórica das paixões. Trad. Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Trad. Angela M. S. Corrêa. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2013.
262
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. São Paulo, 2015. Disponível em:
<http://www.educacao.sp.gov.br/portal/institucional/a-secretaria/>. Acesso em 09
mar. 2015.
263
CAETANO VELOSO: A SINGULARIDADE ENTRE A TRADIÇÃO E A
RENOVAÇÃO NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA
Introdução
73
Universidade Presbiteriana Mackenzie
264
A clareza e compreensão, a firmeza de postura e de convicções e até mesmo
um poder de realização, expresso pelo desejo e posse são expressos, de maneira
a exaltar a mulher por seus atributos.
Na verdade, isto diz respeito a toda uma sedução exercida pela mulher nos
homens, a começar por sua beleza. Desde a mitologia, com a figura das ninfas,
passando pelo folclore brasileiro, em que os navegadores eram encantados pelo
canto das sereias e, na tentativa de se aproximarem delas, acabavam morrendo
afogados.
Mas, no próprio âmbito da canção popular brasileira, esta temática da canção de
Caetano Veloso se constitui como uma intertextualidade em relação ao tema de um
samba datado de XXXX, de Vadico e Noel Rosa: Pra Que Mentir. Aliás, desde seu
título, a canção de Caetano é marcada por um processo de intertextualidade,
referente a expressões contidas na letra deste samba, cujos versos citamos abaixo:
Pra que mentir
se tu ainda não tens
esse dom de saber iludir?
Pra quê? Pra que mentir
se não há necessidade de me trair?
Pra que mentir
se tu ainda não tens a malícia de toda mulher?
O samba de Noel Rosa e Vadico esta inserido num contexto em que a presença
do machismo no Brasil – infelizmente, ainda ão presente – se dav com uma
intensidade muito maior.
Desse modo, a letra do samba em questão, apesar do tom bem-humorado de
sátira, revela a atribuição desta característica à mulher como algo a ser
desenvolvido com o passar do tempo – talvez, atrelado à maturidade -, tendo em
vista que a voz poética, na letra, se dirige a uma menina ou garota que só não tem
ainda este traço devido à mocidade.
Caetano vertera um samba de um dos maiores nomes da canção popular
brasileira numa canção de sua autoria, que também fez bastante sucesso nos anos
80, na voz de Gal Costa.
E, então, já no início dos anos 2000, trazendo à tona a temática do tratamento
dado à mulher, num contexto marcado pela violência contra esta e pela banalização
disso em letras de canções do estilo específico – funk carioca -, o qual, inclusive,
265
popularizou como expressões elogiosas à mulher, palavras que antes serviam para
ofender ou difamar esta mesma figura, dentre as quais: cachorra e vadia, por
exemplo.
Tapinha () ironiza um ato de violência contra uma mulher que, ao ser agredida,
parece satisfazer-se quase que sexualmente, e pedir mais, alegando que “um
tapinha não dói”.
A união, numa única peça, da temática do início do século XX, ligada a uma
desonestidade, do ponto de vista sentimental, da mulher, retomada nos anos 80, de
maneira a ressaltar mais as potencialidades da mulher, e, por fim, uma expressão
de uma mulher que se satisfaz ao ser agredida por seu parceiro se constitui como
uma discussão acerca dos diferentes tratamentos dados a esta figura de suma
importância para o ser humano – afinal de contas, todo ser humano vivo, veio ao
mundo por meio de uma mulher.
Caetano Veloso traz o tema à tona e parece questionar os valores de toda uma
sociedade, sem qualquer discurso ou análise mais profunda, mas apenas por meio
do arranjo entre canções, que denota a comunhão da tradição e da
contemporaneidade em seu trabalho.
Esta reflexão apenas evidencia a importância dos estudos relativos à canção no
que tange o caráter histórico e cultural de um povo com o brasileiro, e também a
forma como este cancionista baiano conduz seu trabalho, de maneira a agradar,
chocar, enaltecer, criticar o que for possível e devido, sem por isso se tornar
contraditório ou cair em qualquer armadilha. Aliás, muito pelo contrário, numa
coerência e relevância ímpares que ajudam a explicar a longevidade de sua obra e
da relevância de sua figura, no contexto artístico brasileiro.
266
A PEDRA DO REINO: CONFLUÊNCIAS COM DIFERENTES GÊNEROS
LITERÁRIOS E DISCURSIVOS NO ROMANCE E NA MINISSÉRIE
INTRODUÇÃO
267
coexistência de várias células dramáticas, conflitos ou dramas” (1974, p. 400).
Entretanto, esse romance é composto por diversos outros gêneros que se
intercalam segundo a intenção do narrador, Quaderna, em cada passagem da
narrativa de sua intrincada história de vida.
A epopeia, segundo Hélio Alves, consiste num “texto poético,
predominantemente narrativo, dedicado a fenômenos históricos, lendários ou
míticos considerados representativos duma cultura” (In: E-Dicionário de Termos
Literários. Acesso em: 23 dez. 2013). Quaderna dá a sua narrativa ares epopeicos
devido, primeiramente, à natureza do assunto que pretende tratar: a ressurreição
de seu primo e sobrinho Sinésio, que, desaparecido após o assassinato de seu pai,
em 1930, e dado como morto em 1932, reaparece na Vila de Taperoá em 1935,
para buscar o tesouro guardado por Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, o qual,
segundo a população pobre do local, seria usado para finalmente libertar o povo de
seus sofrimentos com a instauração do Quinto Império de Jesus Cristo na Terra, e
que, segundo a população abastada e as autoridades, seria usado para financiar a
Revolução Comunista.
Além do tema, a forma como o narrador o aborda também garante ao relato
característica de epopeia, pois a grandiosidade com que os acontecimentos (não só
os realizados por Sinésio, mas também, e principalmente, aqueles comandados
pelos ancestrais de Quaderna e por ele próprio no episódio da caçada) são descritos
e narrados é típica dos poemas épicos, cujo objetivo é engrandecer a ação do herói
a fim de exaltar o povo e a nação dos quais ele é representativo: Quaderna narra
tudo com grandeza com a finalidade de justificar por que ele deve ser Rei do Brasil
e seu primo, príncipe, e também visando ao posto de Poeta da Pátria e Gênio
Máximo da Humanidade (que ele acredita pertencer a Homero por ter sido um
epopeieta). Ele, então, quer superar o grego bem como seus mestres, Clemente e
Samuel, que também têm pretensões literárias.
O memorial caracteriza-se por ser um relato escrito de memórias de fatos
pretensamente verídicos. Assim, o autor ou narrador que viveu determinado fato
conta-o ao leitor. O narrador utiliza-se desse gênero para a composição do romance
a fim de atribuir a seu discurso maior credibilidade perante seus interlocutores: o júri
268
do processo criminal no qual ele é o réu. Dessa forma, Quaderna, personagem
fictício, desvenda seu passado e o de seus ancestrais, que foram pessoas reais que
viveram na região nordeste, de modo a explicar o motivo de ele se sentir no direito
de ser o novo imperador do Brasil, de ter apoiado o primo Sinésio na busca pelo
tesouro escondido por seu pai em algum lugar do sertão e de merecer confiança no
que diz respeito a uma suposta acusação de ter sido o assassino do tio, pois ele
demonstra que era o braço direito deste e, portanto, não teria nada a ganhar com
essa morte.
A crônica histórica relata fatos históricos em ordem cronológica. Quaderna cita
crônicas famosas em seu discurso com o intuito de comprovar as informações que
são veiculadas nele e, também, de exaltar seus antepassados, uma vez que, para
o narrador, o fato de a historiografia oficial reconhecer os feitos de seu bisavô e de
outros familiares ao escrever sobre eles – ainda que em tom declaradamente
pejorativo e zombeteiro – significa que eles foram pessoas importantes e
merecedoras de tal destaque midiático.
O ensaio, segundo Jayme Paviani, é um texto que se caracteriza por ser uma
investigação formalmente desenvolvida cujo assunto deve ser exposto de maneira
lógica e com rigor. Ele “pode ser de natureza literária, científica e filosófica”
pressupondo, apesar do rigor que deve ter, uma maior liberdade de expressão de
seu autor, que pode “defender uma posição sem o apoio empírico, documentos ou
outros recursos metodológicos” (PAVIANI, 2009, p. 4). No romance, aparecem
ensaios nos momentos em que Quaderna está reunido com seus mestres discutindo
questões literárias que, no fundo, revelam as ideologias e o posicionamento político
de cada um: Clemente é de esquerda e, sendo caboclo, defende a origem negro
tapuia da nação brasileira sobre todas as demais influências e é a favor da
instauração do comunismo em toda a América Latina; Samuel é de direita e, sendo
descendente de europeus vindos em sua maioria da Península Ibérica, considera a
influência branca proveniente dessa região com a colonização como superior às
demais e defende a monarquia; Quaderna é um mestiço, como grande parte da
população brasileira e, por isso mesmo, traz consigo ideais híbridos e até mesmo
inconciliáveis: é a favor de uma monarquia de esquerda.
269
O romance ou novela de cavalaria foi a prosa de ficção de maior sucesso de
público nos fins da Idade Média, segundo Marcos Antônio Lopes:
270
O folhetim é uma narrativa que se caracteriza por ser publicada de forma
parcial e sequenciada em periódicos. Sousa explica a origem da palavra folhetim e
seu uso como gênero literário:
271
Também, alguns cenários e objetos de cena da minissérie assemelham-se ao
usados no teatro, pois não se mostram como sendo a coisa que representam ser,
mas declaram seu estatuto de símbolo por sua aparência, textura, tamanho ou
tridimensionalidade, ou seja, não pretendem mimetizar os locais ou objetos reais, e
sim aludir a eles. É o que ocorre com os animais presentes em cena ao longo de
toda a minissérie – cavalos, bois, onças, cobras, preás, gaviões –, que são todos
bonecos construídos de forma artesanal por profissionais da região onde o
programa foi gravado, Taperoá, com a finalidade de torná-lo popular no sentido
original da palavra, isto é, “feito pelo povo”. É o que acontece, ainda, com a
representação das pedras que dão nome ao título e que constituem o local onde os
ancestrais de Quaderna profetizaram a volta de Dom Sebastião e promoveram
matanças como sacrifício para que o retorno do monarca finalmente pudesse ser
concretizado. Elas existem geograficamente, estão localizadas na divisa do estado
de Pernambuco com a Paraíba, e a equipe poderia ter ido até elas para gravar as
cenas referentes aos episódios sangrentos dos bisavós do narrador e à sua ida até
lá como ritual de retomada do trono de sua família. No entanto, a preferência foi por
representá-las como pintura em tecido, feita por Manuel Dantas Suassuna (filho de
Ariano Suassuna), a qual foi estendida num ambiente fechado que parece um palco
de teatro, para enfatizar a ação da personagem pela expressão do ator, bem como
a intensidade humana dessa ação em detrimento da referência física ao local. A
ideia da ficção fantasiosa de Quaderna dentro da ficção maior de Carvalho se
concretiza na antítese empregada: a escolha do tecido para representar a aspereza
das pedras e a presença de animais artificiais dentro de um relato que se diz
verdadeiro.
Ainda, as personagens da minissérie são construídas com base nas
personagens da commedia dell’arte, a qual, segundo Freitas (2008, p. 66), foi uma
forma de teatro popular improvisado iniciada na Itália no século XVI – em oposição
à comédia erudita (baseada no teatro clássico e restrita às camadas mais elevadas
da sociedade) – e que se manteve popular até o século XVIII em vários países da
Europa. Era realizada sobre as carroças de companhias itinerantes ou sobre
pequenos palcos improvisados pelas ruas e praças públicas das cidades aonde
272
chegavam. Seus principais personagens eram o arlecchino, o brighella, o dottore, o
pantalone e a colombina, cada um dos quais geralmente era interpretado pelo
mesmo ator do início ao fim de sua carreira de modo que tinha suas características
físicas e suas habilidades cômicas exploradas até o limite (FREITAS, 2008, pp. 66-
67).
Algumas das referências que a minissérie faz a esse teatro foram percebidas
por Fernanda Areias de Oliveira em sua dissertação de mestrado Novas
possibilidades para a teledramaturgia: A Pedra do Reino: uma adaptação televisiva
por Luiz Fernando Carvalho (2009, pp. 85-86): elas estão presentes na
caracterização do personagem-narrador Quaderna como arlecchino tanto no que
diz respeito à vestimenta quanto à expressão corporal e do palco de onde ele conta
sua história, que também é móvel. As personagens Dona Margarida, Samuel e
Clemente também foram inspiradas em personagens importantes da commedia
dell’arte: a Colombina, o Brighella e o Dottore, respectivamente.
A escolha em dialogar com um tipo de produção cultural popular certamente
não foi aleatória nem casual, ela reflete os propósitos específicos do diretor e da
equipe de produção como um todo com esse trabalho: criar uma obra de arte que
pudesse ser considerada erudita pelo cuidado e sofisticação com que sua
linguagem foi pensada e elaborada, mas que fosse, ao mesmo tempo, constituída
de elementos da cultura popular, assim como o romance no qual ela foi baseada.
A pintura também está presente na minissérie. Como também já observou
Oliveira (2009, pp. 110-121), Luiz Fernando Carvalho inspirou-se em afrescos do
italiano Giotto Di Bondone (1267-1337) que retratam eventos religiosos e feitos de
santos para criar o cenário onde morreu Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto bem
como para apresentar o personagem Sinésio e seu retorno à Vila de Taperoá.
A torre por sobre a qual voam os demônios no quadro A expulsão dos
demônios de Arezzo é reproduzida na minissérie: foi o local onde morreu Dom Pedro
Sebastião Garcia-Barretto, por sobre o qual paira a Onça Caetana, também uma
espécie de demônio alado – como os de Giotto – que representa a morte. Também,
a chegada de Sinésio à Vila a cavalo, quando, acompanhado de seus seguidores,
273
depara-se com diversas pessoas, muitas das quais aguardavam ansiosa e
esperançosamente a sua volta, remete à pintura Entrada de Cristo em Jerusalém.
O motivo para a escolha das obras de Giotto como inspiração, segundo
Carvalho, deve-se às cores e à textura utilizadas por ele, as quais remetem ao
elemento terra e lembram mais uma tapeçaria que uma pintura, efeitos
considerados importantes pelo diretor para a recriação imagética do sertão
suassuniano:
* A questão da luz e da textura:
Minha intenção é trabalhar os planos, o movimento dos atores, os figurinos,
os elementos cenográficos; enfim, tudo, dentro da ideia de um afresco. Um
grande afresco – à maneira de Giotto, onde se pode perceber uma
infinidade de cores e uma textura que me lembra uma tapeçaria e não uma
pintura. (CARVALHO, 2007, p. 81, grifo do autor)
Outra razão para a escolha de Giotto certamente foi o caráter inovador que o
artista imprimiu à pintura renascentista, sujeitando o esquema tradicional a uma
“simplificação radical”:
274
pormenores, nem a percorrer novamente o espaço pictórico; mesmo os
grupos de figuras devem ser vistos como blocos, e não como aglomerados
de indivíduos. Cristo encontra-se sozinho no centro, ao mesmo tempo que
preenche o espaço entre os apóstolos que avançam pela esquerda e os
habitantes da cidade, em atitude de reverência, à direita. Quanto mais
estudamos esse quadro, mais nos damos conta de que sua força e clareza
majestosas encerram a mais profunda expressividade. (JANSON, 1996,
pp. 150-151)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
275
Sebastião; 6-) evitar revelar informações sobre seus antepassados por medo de se
prejudicar no inquérito e florear o estilo para que seu livro se torne a “obra da raça”.
Por sua vez, a escolha dos produtores da minissérie de mesclar a linguagem
televisiva a elementos oriundos de outras artes, aproxima-a do romance com
relação à variedade de gêneros que compõem seu discurso. Ela o faz, no entanto,
não apenas tendo a hibridação de gêneros como um fim em si mesmo, mas sim
para construir significados específicos e transmitir mais e melhor as emoções das
cenas retratadas. A representação de animais através de bonecos e não de seres
vivos treinados causa estranheza no espectador acostumado a ver objetos que
simulam os reais – tais como o dinheiro e os alimentos cenográficos que aparecem
com frequência na teledramaturgia – e tem o intuito maior de remeter ao tom
hiperbólico e fantasioso da narração empreendida por Quaderna, a qual não é uma
narração que ocorre num ambiente natural e visa a relatar a verdade dos fatos
(embora ele queira aparentar isso em alguns momentos). Pelo contrário, ela faz
parte do projeto de escrita do livro que ele pretende que seja um romance epopeico
– obra ficcional – ainda que retome elementos “reais”. Por isso, utilizar animais “de
mentira” corrobora para a construção do sentido de que tudo aquilo que Quaderna
está contando talvez nunca tenha acontecido realmente, mas apenas faça parte de
um construto, tão fictício quanto os animais artificiais e as pedras exibidos na tela.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Inácio. Cinema: o mundo em movimento. São Paulo: Scipione, 1995
(História em Aberto).
CARVALHO, Luiz Fernando et al. A Pedra d’O Reino / da obra de Ariano Suassuna:
Cadernos de filmagem do diretor (V. 1, 2, 3, 4, 5) [Diário de elenco e equipe]. São
Paulo: Globo, 2007.
276
GENETTE, Gérard. Palimpsests: literature in the second degree (Stages).
Translated by Channa Newman and Claude Doubinsky. University of Nebraska
Press, 1997.
JANSON, H.W.; JANSON, Anthony F. Iniciação à História da Arte. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
DI BONDONE, Giotto. Legend of St. Francis: 10. Exorcism of the Demons at Arezzo
(1297-1299). Afresco, 270 x 230 cm. Basílica de São Francisco de Assis, Assis.
Disponível em: www.wga.hu. Acesso em 15 nov. 2013.
______. No. 26 Scenes from the Life of Christ: 10. Entry into Jerusalem (1304-1306).
Afresco, 200 x 185 cm. Capella Scrovegni, Pádua. Disponível em: www.wga.hu.
Acesso em 15 nov. 2013.
277
CLÁSSICO LITERÁRIO E ADAPTAÇÃO EM QUADRINHOS:
UMA PROPOSTA PARA A FORMAÇÃO ESTÉTICO-DISCURSIVA
DO JOVEM LEITOR74
74
Este artigo é um recorte da tese de doutorado concluída e defendida pela autora em agosto de 2015, na
Universidade Presbiteriana Mackenzie. O título deste artigo e o da tese são exatamente os mesmos.
75
Universidade Presbiteriana Mackenzie
76
O PNBE é um programa do Governo Federal cujo propósito é fornecer às escolas públicas acervos com livros
de literatura, os quais devem ou deveriam ser, posteriormente, trabalhados pelos professores juntos a seus
estudantes. Para a composição do acervo, o governo lança, anualmente, editais com as regras que orientam as
editoras do país a lhe apresentarem os livros a serem escolhidos.
278
para incluir algum título na lista. Mesmo editoras que não tinham tradição de publicar
quadrinhos começaram a lançar adaptações” (RAMOS, 2012, p. 243).
Além de acarretar um expressivo aumento na produção de adaptações
literárias quadrinizadas, essa tendência do edital em priorizar sua aquisição visando,
principalmente, o acesso dos jovens leitores aos clássicos literários, também
provocou mudanças nos processos de elaboração estética da linguagem dos
quadrinhos. Muitas adaptações, por exemplo, foram produzidas, mantendo-se,
praticamente, intactos longos trechos do texto das obras canônicas adaptadas. A
respeito desse excessivo respeito à linguagem literária, Waldomiro Vergueiro afirma
que “as boas adaptações – e mesmo as HQ’s originais – precisam respeitar uma
regra simples: serem verdadeiramente histórias em quadrinhos e não um resumo,
ou a transposição integral das obras originais” (BONINO, s/d). Moacy Cirne, por seu
turno, faz a seguinte indagação acerca desse tipo de produção: “Quantos e quantos
romances adaptados não passam de simples ‘histórias ilustradas’?” (CIRNE, 2000,
p. 184). O teórico afirma, ainda, que “os quadrinhos não são apenas para serem
lidos; são também para serem vistos. Em muitas séries, são sobretudo para serem
vistos” (CIRNE, 2000, p. 175-176, grifos do autor).
Mas e se são exatamente essas as adaptações que acabam por parar nas
mãos dos jovens leitores? Seria, pois, o caso de concluir que a formação do jovem
leitor estaria comprometida? Outra questão que se coloca é sobre se qualquer
adaptação literária em quadrinhos pode fazer o jovem passar de sua condição inicial
de leitor de primeiro nível para a de leitor de segundo nível das obras clássicas
literárias. Seria, aliás, esta sua única contribuição para a formação leitora do jovem?
Para respondermos a essas indagações, comecemos pela diferenciação que
Umberto Eco faz entre leitor de primeiro nível e leitor de segundo nível:
279
Para o teórico italiano, os leitores de primeiro nível preocupam-se mais com
o enredo – logo, com o conteúdo – de uma narrativa, enquanto os de segundo nível
transcendem essa preocupação ao se importarem com sua arquitetura textual –
portanto, com sua forma. Tendo em vista uma definição tradicional do que venha a
ser texto literário, um dos protocolos que rege sua leitura é a depreensão e a
apreciação, por parte do leitor, de como o escritor trama artisticamente os elementos
linguísticos de modo a produzir determinados sentidos (BLOOM, 2010, p. 35-36;
OSAKABE; FREDERICO, 2004, p. 76). Deste ponto de vista, Leyla Perrone-Moisés
afirma que “estudar a literatura apenas a partir da temática é a maneira mais pobre
de a conceber”, pois “a leitura temática empobrece não apenas o texto mas também
seu leitor” (PERRONE-MOISÉS, 2002, p. 3).
Se levarmos em conta tão-somente esta visão mais tradicional da leitura do
texto literário, nenhuma adaptação quadrinizada – nem mesmo as bem produzidas
– possibilitaria ao jovem leitor o acesso à forma artisticamente elaborada dos
hipotextos literários canônicos. Uma primeira explicação para isso seria a de que,
se, por um lado, o conteúdo do hipotexto persiste em uma adaptação, por outro, sua
forma muda (HUTCHEON, 2011, p. 32). Portanto, mesmo as adaptações que
tentam manter intactos longos trechos verbais do hipotexto clássico mudam sua
forma, na medida em que processam cortes em sua narrativa com vistas à
adequação ao novo meio midiático. Um outro motivo que poderia explicar a
impossibilidade de essas produções promoverem tal acesso se refere simplesmente
a que “qualquer adaptação está fadada a ser considerada menor e subsidiária,
jamais tão boa quanto o ‘original’” (HUTCHEON, 2011, p. 11).
No entanto, pensando em que tanto o jovem quanto a escola estão imersos
no que Jesús Martín-Barbero denomina por ecossistema comunicativo da cultura
eletrônica audiviosual, que constitui um meio educacional difuso e descentralizado
– difuso porque concatena uma diversidade de linguagens e descentralizado porque
a escola e o livro já não são mais o principal centro irradiador dos saberes que
circulam na sociedade contemporânea (MARTÍN-BARBERO, 1999, p. 27) –, é
preciso reconsiderar se as adaptações quadrinizadas realmente não permitem ao
jovem leitor acessar a estética dos hipotextos literários canônicos. Além disso, e
280
principalmente, é preciso levar em conta que a realização de uma boa mediação
leitora na escola pode contribuir para que o diálogo entre adaptações e clássicos
literários forme jovens leitores de segundo nível não apenas da linguagem literária,
mas, também, da própria linguagem dos quadrinhos. Isso pode, inclusive, ser feito
por meio de uma adaptação de má qualidade, afinal, como bem afirma Marisa
Lajolo: “Mesmo com um texto muito ruim, pode fazer-se um bom trabalho. Um bom
leitor pode atenuar a carga negativa de um mau texto, e um bom texto pode ser
prejudicado por um mau leitor” (LAJOLO, 2009, p. 101).
E, no caso do estudo comparativo entre adaptação e hipotexto clássico
literário, em que consiste uma boa mediação leitora? Em primeiro lugar, o professor
deve distinguir o que faz uma adaptação quadrinizada ser esteticamente melhor
resolvida que outra. Se comentamos que a mera “colagem” de longos trechos
verbais do hipotexto literário a descaracteriza enquanto produção em quadrinhos,
então uma boa adaptação diz respeito àquela que pode ser fruída como obra
autêntica e autônoma, ou seja, como obra que, apesar do vínculo explícito com seu
texto-fonte, pode ser apreciada simplesmente a partir de seus próprios meios de
elaboração. Uma adaptação quadrinizada que se preocupa excessivamente com a
manutenção quase que integral do hipotexto literário goza de pouca autonomia, uma
vez que, de sua parte, há “um grande respeito pela arte literária, [...] como se fosse
somente [ela] o texto ‘bem escrito’” (ZENI, 2014, p. 126). Com isso, estamos
querendo dizer que as adaptações que mantenham parte do texto do clássico
façam-no de modo que sua edição não torne secundário um aspecto fundamental
dos quadrinhos: sua visualidade.
Outros procedimentos prévios de que o professor deve se valer para realizar
um estudo em paralelo eficiente entre uma adaptação quadrinizada e seu hipotexto
clássico literário, objetivando a formação de segundo nível do jovem leitor, são: a)
ele deve conhecer, relativamente bem, o texto literário canônico, o que implica em
ler, criticamente, não só algumas interpretações legitimadas pelo meio acadêmico,
como, também, ler o texto canônico na sua íntegra; b) ele deve conhecer os
mecanismos estruturantes básicos tanto da linguagem literária, quanto da
linguagem quadrinizada; c) ele deve ler a adaptação literária quadrinizada, para, em
281
seguida, fazer um levantamento do que nela permaneceu e dela se retirou em
termos de enredo; d) ele deve verificar se os adaptadores privilegiaram apenas a
transposição do enredo da obra canônica ou se também se preocuparam em
traduzir77, imageticamente, alguns de seus recursos estéticos verbais; e) ele deve
verificar como as escolhas dos adaptadores foram transpostas, visualmente, para a
linguagem dos quadrinhos.
Tomando por base todas essas orientações, iremos analisar, a seguir,
apenas um trecho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, em comparação com
Dom Casmurro, de Ivan Jaf e Rodrigo Rosa, adaptação quadrinizada que, por
respeitar seus próprios meios de elaboração, é adequada para a formação leitora
de segundo nível dos jovens tanto na linguagem dos clássicos literários quanto na
dos quadrinhos. Acreditamos que esse procedimento de análise por unidade de
comparação permite ao aluno diferenciar linguagens diversas – no caso em
questão, a verbal e a verbo-visual –, pondo-lhe em relevo os recursos estéticos de
que cada uma delas se vale para transmitir seus conteúdos simbólicos e ideológicos.
Antes de procedermos efetivamente com tal análise comparativa, cabem,
ainda, algumas poucas considerações gerais tanto sobre o hipotexto clássico
quanto sobre a adaptação. Como já se sabe, ler Dom Camurro – assim como
praticamente toda a obra de Machado de Assis – é ter de lidar com os efeitos de
sentidos oriundos de determinados recursos que, de certa forma, marcam toda sua
poética: a lentidão da narrativa do referido romance decorre das muitas digressões
feitas por Bento Santiago ao longo de seu relato e sua dubiedade interpretativa
advém das várias alusões intertextuais e das ironias zombeteiras continuamente
proferidas por esse narrador-protagonista.
No caso da adaptação quadrinizada elaborada por Ivan Jaf e Rodrigo Rosa,
sua leitura integral revela um maior dinamismo e uma maior objetividade em relação
ao ritmo da história do hipotexto clássico, uma vez que os adaptadores, ao
transporem-na para a sintaxe dos quadrinhos, eliminaram praticamente todas suas
digressões, alusões intertextuais e ironias, bem como reescrevam seu texto
77
Segundo Tereza Barbosa, a diferença entre adaptação quadrinizada e HQ-tradução é que esta consiste em
“recuperar as leis estéticas que foram molas mestras no texto literário” (BARBOSA, 2013, p. 9).
282
mediante o processo parafrástico, logo, sem usar a “colagem” ipsis litteris da escrita
machadiana. Assim, se Machado de Assis delineia um protagonista que tenta
esconder, por meio de suas constantes ironias e digressões, o amor e o carinho que
ainda sente pela já falecida esposa – segundo o crítico José Veríssimo, Bento
“procura cuidadosamente esconder estes sentimentos, sem talvez consegui-lo de
todo” (VERÍSSIMO, 2003, p. 229) –, Jaf e Rosa traçam-no, em sua adaptação, como
alguém que, mesmo explicitando sua angústia por não saber se fora ou não traído
por Capitu, não hesita em explicitar o amor e a ternura que ainda nutre por ela.
Vejamos como essa diferença ocorre entre ambas as produções, a partir da famosa
cena dos “olhos de ressaca”:
Esta cena diz respeito à ocasião em que Bento relata ao leitor que, quando
jovem, no intuito de querer saber se os olhos de Capitu eram, de fato, “olhos de
cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2008, p. 158), tais como foram definidos por
José Dias, pediu a até então amiga que os deixasse ver. O resultado dessa
recordação é que Bento lembra dos olhos da amiga ficando “crescidos” e “sombrios”
(ASSIS, 2008, p. 159), imagem esta que desperta suas emoções, fazendo-o valer-
se da metáfora da ressaca do mar para descrever a força ao mesmo tempo
assustadora e prazerosa que o olhar de Capitu lhe causou não só naquele instante,
283
como também no momento de seu relato. Contudo, para tentar esconder a
vivacidade desse afeto e, por extensão, demonstrar segurança diante desse
sentimento, Bento emenda, logo após seu discurso metafórico, uma digressão
irônica pela qual insinua que a infinita e breve eternidade daquele seu momento de
felicidade lhe trouxe suplícios futuros. Seguindo sua jornada pretensiosamente
racional, ele segue relatando o instante em que, para tentar recompor-se de seu
desconcerto, pediu à amiga que o deixasse pentear seus cabelos.
Na adaptação de Ivan Jaf e Rodrigo Rosa, podemos constatar, por meio da
supressão da digressão irônica, que Bento não faz questão de disfarçar que ainda
se recorda, com carinho, de todos esses acontecimentos:
284
Além da eliminação da digressão irônica, um outro recurso que põe em relevo
o amor de Bento em detrimento da raiva é o uso por Jaf e Rosa de um recurso
próprio da linguagem quadrinizada: o uso do metaquadrinho, que é o quadrinho de
página inteira (EISNER, 2001, p. 63). Nos dois metaquadrinhos em questão, a
organização do enredo feita sem a sequência linear de vários quadrinhos –
responsável pela “ordem cronológica do ato de fala e do diálogo e, portanto, do
próprio tempo narrativo” (CAGNIN, s/d, p. 52) – causa a impressão de que as
sensações do passado invadem o presente, mesclando-se a ele. Se, no primeiro
metaquadrinho, a metáfora dos olhos de ressaca aparece traduzida
imageticamente, ressaltando o medo e o cuidado do jovem Bento para não “afogar-
se”, no segundo, a transposição da cena do penteado e do beijo, que, no romance,
também vem logo após a cena dos olhos de ressaca (ASSIS, 2008, p. 161-162),
demonstra o prazer que tais acontecimentos lhe proporcionaram e ainda lhe
proporcionam, tanto que o protagonista, no momento em que está escrevendo suas
memórias, aparece sendo afagado pelas tranças de Capitu. Além disso, ele aparece
montado em um pente, cavalgando pelo espaço e tendo, por companhia, a figura
de quando era garoto. Vale ressaltar que tal cena, no hipotexto clássico, não foi
representada por Machado de Assis por meio de nenhuma metáfora, mas, sim,
somente mediante a tensão entre o saudosismo e a ironia de Bento.
A breve análise da unidade comparativa proposta neste estudo serviu não
para defender a ideia de que a adaptação quadrinizada deve garantir que o jovem
leitor passe a ler, espontaneamente, os clássicos literários. O objetivo central foi
mostrar que o trabalho comparativo é uma dentre outras atividades pedagógicas
que podem fazer os jovens leitores perceberem que o funcionamento estético da
linguagem literária é distinto da linguagem quadrinizada: no caso analisado, mesmo
optando por traduzir, visualmente, a metáfora verbal machadiana, e por
conseguinte, manter seu efeito estético, Jaf e Rosa fizeram-no de forma a valorizar
as leis sintáticas dos quadrinhos, o que também pôde ser conferido pela criação de
metáforas imagéticas, cujo correspondente verbal é inexistente no hipotexto.
Acreditamos que fazer os jovens perceberem as diferenças entre as
linguagens é uma maneira de contribuir para seu amadurecimento leitor. Saber que
285
uma adaptação é uma obra distinta do hipotexto, porque os meios em que uma
mesma história é contada são diferentes um do outro pode aprimorar seus critérios
de avaliação e de escolha, o que não significa afirmar que eles precisam vir a gostar
de ler o clássico literário. Significa que é preciso que os jovens se conscientizem de
que o estilo de Machado de Assis não é chato porque é difuso, mas pode ser
considerado chato porque simplesmente eles não gostam desse estilo; e para não
gostar, é preciso experimentar e conhecer como esse estilo funciona. E é a escola
que deve fornecer todo o instrumental que vise o aprimoramento de seus
julgamentos e escolhas, afinal “formação estética não é [...] satisfação caprichosa
do gosto, busca do que me agrada pura e simplesmente” (PERISSÉ, 2009, p. 47).
Referências bibliográficas:
286
CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petrópolis: Vozes, 2000.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte senquencial. 3. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Santa
Catarina: UFSC, 2011.
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. Será que não é mesmo?. In: ZILBERMAN,
Regina; RÖSING, Tania, M. K (Orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas
alternativas. São Paulo: Global, 2009. p. 99-112.
RAMOS, Paulo. Revolução do gibi: a nova cara dos quadrinhos no Brasil. São Paulo:
Devir, 2012.
ROSA, Rodrigo; JAF Ivan. Dom Casmurro: Machado de Assis. São Paulo: Ática,
2012.
287
ZENI, Lielson. Adaptação em quadrinhos como tradução. In: RAMOS, Paulo;
VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e literatura: diálogos
possíveis. São Paulo: Criativo, 2014. p. 112-130.
288
EFEITOS DE SENTIDOS NA INTERCULTURA: UM ESTUDO DE EXPRESSÕES
IDIOMÁTICAS NO ESPAÇO LUSÓFONO
Introdução
78
Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo/IFSP.Doutor em Língua
Portuguesa/PUC-SP,Pós-Doutorado em Letras/MACK-SP
289
linguísticas são motivos de demarcação de espaço, de identidade cultural e de
elaboração do perfil de uma comunidade. (VALADARES, 2014, p. 71)
Metodologia adotada: seleção das expressões idiomáticas com mesma
estrutura linguística, recolhidas em textos de jornais publicados em sítios de cada
país79; elaboração de um quadro no qual consta a expressão idiomática
selecionada, o país e a fonte de onde fora recolhida a expressão. Em seguida, a
análise de cada uma das expressões idiomáticas selecionadas conta com: a) o
contexto no qual a expressão fora utilizada em cada uma das fontes, b) os aspectos
interculturais envolvidos relativos aos conhecimentos construídos sob a perspectiva
linguístico-gramatical, c) a identificação ou não sob o ponto de vista linguístico,
social e cultural de semelhanças no âmbito da intercultura, d) a indicação de
ampliações no uso ligadas a áreas da sociedade, como política, economia,
tecnologia, esporte, moda, saúde e sociedade.
Para apresentação, selecionamos 1 expressão idiomática e sua respectiva
análise:
MOVER MUNDOS E FUNDOS
BRASIL
O corrupto Preirona81 Quarta, 12 Dezembro 2012 08:03, por Nuno Ferro Marques
Portanto, há aqui alguém que perde em cada “erro” e em cada “correção”, e esse
alguém somos nós, o país, a Nação. Cristina Duarte que havia sido diretora de
gabinete ou coisa parecida (salvo seja) de João Pereira Silva na ditadura é que
acabou por descobrir, enquanto Ministra das Finanças e Planeamento o que eu
já havia descoberto dois ou três anos antes, que João Pereira Silva estava a
79 Opção de reproduzir os textos selecionados com o trecho específico de análise e a devida indicação em nota
de rodapé da referência eletrônica.
80 MOTTA, Nelson. Pelo mundo afora. Folha de São Paulo
81 Disponível em http://cvnoticia.com/section-table/36-politica-cabo-verde/748-o-corrupto-preirona-.html
Acesso em 09.maio.2014
290
tramar Boa Vista e Maio e a bolsa de cada cabo-verdiano, de Santo Antão à
Brava, João Pereira Silva, do alto da sua competência agronómica e neo-
ditatorial, determinara e até declarara para a revista África que era preciso
“remover os obstáculos legais” e que em seis meses iria mover mundos e
fundos para isso.
MOÇAMBIQUE
O dia quente, apesar de ainda curto, mergulhava-o num certo torpor, sensação
estranha para quem se considera um homem de acção, habituado a tomar as
decisões que se impõem, por difíceis que sejam, sem hesitações ou
procrastinações. Decisões como a que hoje era chamado a tomar, melhor
dizendo, como a que hoje era chamado a anunciar aos
trezentos colaboradores que a empresa decidira dispensar. Enfim, ajustamentos
derivados de descréscimos de produção, inerentes à actividade do sector. Uma
situação normal, como reconheceu aliás o presidente da Câmara – homem
pragmático, compreensivo face às naturais contingências inerentes à actividade
do sector, e que sabe reconhecer a importância que investidores como este têm
para a prosperidade do concelho. Por essa razão, de resto, não hesitara tudo
fazer para ajudar a mover mundos e fundos (incluindo os generosos fundos
comunitários) para atrair para a cidade este importante investimento.
82
Disponível em http://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/analise/16937-compreendendo-a-renamo-
missao-impossivel-1 Acesso em 11.agosto.2014
83 Disponível em http://www.avante.pt/pt/2018/europa/121196/ Acesso em 09.maio.2014.
291
A origem84 da expressão “Mover mundos e fundos”, de acordo com a revista
Aventuras na História, surgiu das navegações espanholas. Segundo uma antiga
promessa que rogava “O Céu pediu estrelas/O peixe pediu fundura”, os aventureiros
tinham uma impressão abissal do mar. Para eles, a noção de mundo e da fundura
do oceano era algo recorrente e trivial no dia a dia – daí o termo com os dois
exageros. Seu significado, conforme Nascentes (1986, p. 193), é “fazer muitos
oferecimentos para depois não os cumprir ou fazê-lo pela metade”. O contexto de
uso, nos textos selecionados, é político (Brasil, Cabo Verde e Moçambique) e
político-econômico (Portugal).
Pensando na intercultura, o uso em cada um dos 4 países lusófonos sob a
noção linguístico-cultural indica semelhança na construção do sentido do elemento
linguístico, isto é, a ideia de que as culturas podem estar ligadas por elementos que
ultrapassam o linguístico se apresenta como possível na expressão idiomática
selecionada – mover mundos e fundos –, visto que o texto-base da coleta indica
que tal expressão mantém o mesmo significado nos 4 países lusófonos – oferecer
algo e não exatamente cumpri-lo.
Dessa maneira, constatamos que, sob o ponto de vista linguístico, há
semelhanças no âmbito da intercultura, uma vez que a construção de sentidos dá-
se igualmente e configura-se, na perspectiva da fraseologia, em “combinações onde
os componentes possuem traços metafóricos geralmente estáveis”. (ORTÍZ
ALVAREZ, 2002, p. 520)
Em uma perspectiva cultural, como salienta Xatara e Seco (2014, p. 504), as
semelhanças que ocorrem no interior das expressões idiomáticas promovem
contatos interlinguísticos entre diferentes culturas e propiciam a troca desses dados
culturais entre as diversas sociedades, ou seja, de suas visões de mundo, ideologias
e escalas de valores. Além disso, as autoras indiciam que “não podemos deixar de
mencionar a própria existência intralinguística de sinonímia entre as EIs,
84 Urbano (2013) salienta que fica normalmente sem solução científica, principalmente em relação às
expressões consideradas como as mais populares. No entanto, valemo-nos, em alguns casos, de fontes
jornalísticas para explicitar a origem da expressão idiomática utilizada.
292
tradicionalmente consideradas cristalizadas e, portanto, não vulneráveis à variação”.
E complementam que o “fato se explica por uma cristalização ou estabilidade
apenas relativa, o que deixa margem a uma variabilidade, ainda que restrita”.
(XATARA e SECO, 2014, p. 505)
Por fim, identificamos que existem ampliações que ultrapassam um uso
restrito ao senso comum ou ao popular, isto é, há indicações, nos textos
selecionados, ligadas à política e à economia para a expressão mover mundos e
fundos. No caso do Brasil, ela é utilizada no texto com um sentido político no qual
se questiona o fato de o Brasil não se esforçar suficientemente quanto a ter uma
vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Nesse aspecto, demonstra
a fragilidade política que o Brasil ainda apresenta e ratifica a noção de um certo
desinteresse, o que fica patente no uso da expressão.
Igualmente, a expressão utilizada nos textos selecionados de Cabo Verde e
de Moçambique demonstra a fragilidade política destes países, ao ser colocada uma
situação de trama de golpe político e uma situação de criação de um partido político,
respectivamente. No caso de Portugal, o uso em sentido político-econômico traz
para tal âmbito a expressão em perspectiva de fazer oferecimentos para
consecução da proposta de investimento.
Assim, sentimo-nos autorizados a afirmar que existe, sim, um espaço no qual
convivem tais culturas sob o ponto de vista linguístico, posto que a estrutura
linguística é idêntica; e sob a perspectiva sociocultural, uma vez que a expressão
fora utilizada com objetivos comunicativos iguais nos 4 países, quais sejam os de
ratificar a ideia de que se fez algum oferecimento para depois não cumpri-lo. Trata-
se, assim, de uma sinonímia intercultural, já que remete a uma mesma imagem
cultural.
Conclusão
293
Estas são transmitidas de geração em geração e estão presentes nas mentes dos
falantes que as atualizam no seu discurso quase de forma inconsciente”.
Partimos, então, nesta pesquisa, da ideia de que uma expressão idiomática,
de fato, é simbólica em uma cultura, sendo ainda mais uma construção (inter)cultural
quando se trata do espaço lusófono.
Com isso, obtivemos, como resultado, em nossas análises, que o espaço
lusófono se caracteriza não apenas pelo uso oficial de uma língua em comum, mas
também, por realizações linguísticas que extrapolam tão-somente estruturas, indo
além disso, com um uso de sentido em cada cultura que se estende à compreensão
nas várias culturas lusófonas, assinalando, neste espaço, o aspecto intercultural,
defendido por nós neste trabalho.
Referências bibliográficas
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295
LINGUAGEM, IDENTIDADE E GÊNERO: IDEOLOGIAS CONSERVADORAS E
DESIGUALDADE DE GÊNERO NO CAMPO POLÍTICO
Introdução
85
Gabriela Soares Balestero. Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires. Mestre
em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade
de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Sul de Minas,
bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, advogada, professora universitária.
296
A linguagem como construção de sentidos e a presença do discurso machista
86
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9ª Ed. São Paulo: Contexto, 2007.
297
suporta ordem ou normalidade social. Tal situação afeta a própria educação, seja
no âmbito privado ou público.
Tanto a produção textual e a linguagem devem ser vistas como uma atividade
verbal interacional, resultante de operações e estratégias da mente humana e a
serviço de fins sociais. Assim, cabe ao enunciador poder moldar seu enunciado e
constituir marcas próprias no discurso seja ele um texto verbal ou um texto escrito.
O texto falado possui uma estruturação própria, de acordo com situações
sócio cognitivas presentes durante sua produção. Entendemos que não deve o texto
falado ser dotado de maneira preconceituosa e o texto escrito visto como parâmetro
ideal de produção e nem impor determinada forma de pensamento, o texto deve
levar o leitor a uma reflexão sobre o tema tratado.
Assim, o discurso assume a importância de construção da própria sociedade
função da de um fazer histórico, visto que estes são produtos e produtores de
subjetividades.
No tocante à discriminação feminina, podemos entender o machismo como
um discurso, um discurso hegemônico (discurso de dominação/ ideologia
conservadora e patriarcal), em uma dinâmica em que as mulheres acumulam
desvantagens em comparação aos homens e buscam por redefinir as relações de
gênero no âmbito público e privado. Nessa vereda trazemos um questionamento:
Em que dimensões da vida as mulheres permanecem como menos do que cidadãs,
tendo a sua autonomia restrita? Eis o que será analisado no presente estudo.
298
verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra o direito do
outro, seja qual for sua religião, cor ou sexo, desde logo abjurou os seus”.
Em 1789 em meio à Revolução Francesa foi elaborada a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão e em 1791, Olympe de Gouges escreveu uma
Declaração dos Direitos da Mulher na qual considerava que as mulheres são
sujeitos de direitos, porém essa declaração foi rejeitada e a autora do projeto
enforcada87.
Na Revolução Francesa, Olympe de Gouges88, que foi analfabeta até a
idade adulta, liderou as mulheres francesas e lutou pelo direito do voto feminino e o
direito de exercerem um ofício, de terem uma profissão. Ela propôs, através do
referendo, que fosse escolhido na França ou um sistema de governo republicano ou
o monárquico, ganhando a inimizade de Marat e Robespierre e, sendo assim, foi
denunciada pelo Procurador Chaummete, pelo delito de haver esquecido as virtudes
de seu sexo e por intromissão nos assuntos da República. Ela foi presa e
guilhotinada em 07 de novembro de 1791. Já a inglesa Mary Wollstonecraft em
179289 publicou a sua obra “A Vindication of the Rights of Woman” (A Reivindicação
dos Direitos da Mulher), na qual ambas reivindicavam:
299
mostra que a subjugação legal das mulheres é uma discriminação, devendo ser
substituída pela igualdade total de direitos.
Em meio à Revolução Industrial as mulheres começam a exercer atividade
laboral fora do âmbito doméstico como mão de obra em fábricas. Contudo, as
mulheres recebiam metade dos salários dos homens, cumpriam excessivas
jornadas de trabalhos e ocupavam cargos inferiores, subalternos.
Com base no pensamento destes escritores pioneiros, o movimento
sufragista nasceu para estender o direito de voto (sufrágio) às mulheres. Em 1893,
a Nova Zelândia se tornou o primeiro país a garantir o sufrágio feminino, graças ao
movimento liderado por Kate Sheppard. Outro marco neste processo foi a fundação,
em 1897, da “União Nacional pelo Sufrágio Feminino”, por Millicent Fawcett, na
Inglaterra. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, as mulheres conquistaram o
direito de voto no Reino Unido, em 1918, e nos Estados Unidos, em 1919.
No fim do século XIX, durante os anos setenta surgiu o movimento feminista
que reivindicava a ampliação do espaço feminino no meio político e social incluindo
direito de greves, direito de voto, e direitos iguais entre homens e mulheres, com o
fim de efetivar medidas de respeito às diferenças e eliminação do preconceito e
discriminações.
Segundo Chantal Mouffe 91 “para las feministas comprometidas com una
política democrática radical, la desconstrucción de las identidades esenciales
tendría que verse como la condición necesaria para una comprensión adecuada de
la variedad de relaciones sociales donde se habrían de aplicar los principios de
libertad e igualdad.”
O feminismo também teve um papel importante na academia jurídica.
Quase todas as Faculdades de Direito dos Estados Unidos possuíam um curso a
respeito do tema o que popularizou o assunto e acentuou os debates e discussões.
Em todas as situações, o feminismo se apresenta não como uma ideologia política
e sim uma teoria jurídica de proteção, amparo e busca de direitos humanos às
mulheres.
91
Mouffe, 1993: 6.
300
El feminismo es el conjunto de creencias e ideas que pertenecen al amplio
movimiento social y político que busca alcanzar una mayor igualdad para
las mujeres. El feminismo, como su ideología dominante, da forma y
dirección al movimiento de las mujeres y, desde luego, es moldeado por
este. Las mujeres buscan igualdad en todas las esferas de la vida y utilizan
una amplia gama de estrategias para alcanzar este objetivo. El feminismo
no pertenece exclusivamente al campo del derecho. Sin embargo, el
derecho ha figurado de manera prominente en la lucha por la igualdad de
las mujeres, tanto como un ánbito a ser reformado, cuanto como un
instrumento para la reforma. 92
92
FISS, 1992:319.
93
O caso Roe declarou a inconstitucionalidade das leis que criminalizavam o aborto. Esse caso representou uma
vitória da liberdade, dando a cada mulher o direito de escolher a possibilidade de realizar um aborto e de outro
lado o direito de controlar o seu corpo.
94
Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 315.
95
Duarte, 2008: 1048.
96
Costa, 1996: 68.
97
“Nísia Floresta foi pioneira em várias frentes, por exemplo, foi uma das primeiras mulheres no Brasil a
romperem os limites do espaço privado e a publicarem textos na grande imprensa, pois, desde 1830, seu nome
era presença constante em periódicos nacionais, comentando questões polêmicas, como o direito das mulheres
– e, também, dos índios e dos escravos – a uma vida digna e respeitável.” (Duarte, 2008:1048.)
98
“É o fato de ter sido a primeira mulher a ser eleita para o Legislativo no Brasil que torna a experiência de
Carlota Pereira de Queiroz absolutamente única. [...] Embora seu perfil se assemelhasse em muitos pontos ao
das militantes feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e ela própria fosse uma ardorosa
defensora dos direitos e das conquistas das mulheres, a dra. Carlota não se sentiu atraída por este tipo de
mobilização, que considerava segregacionista e pouco eficaz com vistas aos fins a que se propunha.
Paradoxalmente será a primeira beneficiária da conquista da cidadania política pelas mulheres brasileiras que,
depois de décadas de descontentamento e de mobilização, vêem reconhecido seu direito de votar e de ser eleitas
301
Bertha Lutz diante do seu conhecimento dos movimentos feministas dos
Estados Unidos e da Europa no início do século criou em 1922 a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino 99 com a finalidade de promover a educação
feminina, a profissionalização das mulheres e liderar a luta pelo direito de voto
feminino.
Bertha Lutz conheceu os movimentos feministas da Europa e dos Estados
Unidos nas primeiras décadas do século XX e foi uma das principais responsáveis
pela organização do movimento sufragista no Brasil. Ajudou a criar, em 1919, a Liga
para a Emancipação Intelectual da Mulher, que foi o embrião da Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino, criada em 1922 (centenário da Independência
do Brasil). Representou o Brasil na assembléia geral da Liga das Mulheres Eleitoras,
realizada nos EUA, onde foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana.
Após a Revolução de 1930 e dez anos depois da criação da Federação Brasileira
pelo Progresso Feminino.
O movimento sufragista liderado por Bertha Lutz conseguiu uma grande
vitória após dez anos de sua criação: o Decreto 21.076 de 24 de fevereiro de 1932
editado pelo então Presidente Getúlio Vargas garantiu às mulheres o direito de voto.
Em 28 de julho de 1936, devido à morte do titular da cadeira o então
Deputado Cândido Pessoa100, Bertha Lutz, candidata pela Liga Eleitoral
Independente, assumiu a suplência da cadeira de deputado federal e exerceu até
10 de novembro de 1937 quando teve início a ditadura do Estado Novo.
Juntamente com a primeira deputada federal brasileira Carlota Pereira de
Queiroz101, propuseram inúmeras mudanças na legislação brasileira como a criação
do Estatuto da Mulher102.
pelo código eleitoral de 24/2/1932, código que respondia tanto às exigências paulistas de retorno à legalidade
democrática quanto aos reclamos tenentistas de saneamento das notórias irregularidades que ocorriam nos
pleitos anteriores.” (Costa, 1996: 69.)
99
Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 316.
100 Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 317.
101 A primeira mulher eleita deputada federal foi Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), que tomou posse em
1934 e participou dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Com a implantação do Estado Novo, em
novembro de 1937, houve o fechamento do Legislativo brasileiro e grande recuo das liberdades democráticas.
Na retomada do processo de democratização, em 1946, nenhuma mulher foi eleita para a Câmara. Até 1982, o
número de mulheres eleitas para o Legislativo brasileiro poderia ser contado nos dedos da mão.
102 Sousa; Sombrio; Lopes, 2005: 318.
302
Alguns itens propostos por Bertha foram incluídos na Constituição de 1934
tais como o direito de acesso das mulheres a funções públicas.
Nesse sentido, a relevância das iniciativas do movimento feminista no Brasil
está em questionar a “suposta sujeição das mulheres brasileiras a valores impostos,
a restrição de sua atuação ao espaço doméstico e a sua alienação quanto à
realidade política, social e cultual do país.” 103
303
Entretanto, em 2002, foram eleitas 42 deputadas federais e 45 deputadas
em 2006 e 2010. Mas este número representa apenas 9% dos 513 deputados da
Câmara Federal.
No ranking internacional da Inter-Parliamentary Union (IPU), o Brasil se
encontra atualmente no 142º lugar. Em todo o continente americano, o Brasil perde
na participação feminina no Parlamento para quase todos os países, estando a
frente do Panamá, do Haiti e Belize. No mundo, o Brasil perde até para países como
Iraque e Afeganistão, além de estar a uma grande distância de outros países de
lingua portuguesa como Angola, Moçambique e Timor Leste.
Assim, as mulheres brasileiras conquistaram o direito de voto em 1932, mas
ainda não conseguiram ser representadas adequadamente no Poder Legislativo.
Até 1998 as mulheres eram minoria do eleitorado. A partir do ano 2000, passaram
a ser maioria e, nas últimas eleições, em 2010, já superavam os homens em 5
milhões de pessoas aptas a votar. Este superávit feminino tende a crescer nas
próximas eleições. Nas eleições de 2010, a grande novidade foi a eleição da
primeira mulher para a chefia da República. Neste aspecto, o Brasil deu um grande
salto na equidade de gênero, sendo uns dos 20 países do mundo que possui mulher
na chefia do Poder Executivo. Com a alternância de gênero no Palácio do Planalto,
o número de ministras cresceu e aumentou a presença de mulheres na presidência
de empresas e órgãos públicos, como no IBGE e na Petrobrás.
Nos municípios, as mulheres são, atualmente, menos de 10% das chefias
das prefeituras. Nas Câmaras Municipais as mulheres são cerca de 12% dos
vereadores. Mas, em 2012, quando se comemoram os 80 anos do direito de voto
feminino, haverá eleicões municipais. A Lei de Cotas determina que os partidos
inscrevam pelo menos 30% de candidatos de cada sexo e dê apoio financeiro e
espaço no programa eleitoral gratuito para o sexo minoritário na disputa. Os estudos
acadêmicos mostram que, se houver igualdade de condições na concorrência
eleitoral, a desigualdade de gênero nas eleições municipais poderá ser reduzida.
Bertha Lutz lutou pelo direito de voto feminino, Carlota Pereira de Queiróz foi
a primeira mulher eleita deputada federal, e, portanto, lançaram a semente da
cidadania feminina. Em 2010, o Brasil elegeu a sua Primeira Presidenta, Dilma
304
Roussef pelo Partido dos Trabalhadores. Contudo, verifica-se que nem mesmo as
inovações legislativas trouxeram melhora significativa no que tange à questão do
acesso das mulheres a cargos públicos, pois existem dúvidas sobre a possibilidade
de as mulheres conseguirem apoio dos partidos para disputar as eleições em
igualdade de condições.
Assim passa a ser necessária, além da mobilização legislativa, a adoção de
estratégias para a inclusão e reconhecimento político do papel das mulheres que
combine a proibição de discriminação e a adoção de políticas públicas de incentivo
à candidatura feminina como ações positivas para acelerar o processo de
igualização de condições entre homens e mulheres e assim proporcionar maior
acesso feminino à vida pública.
Verifica-se a inércia do Poder Legislativo em aprovar ações afirmativas nesse
sentido. Tal fato, podemos comprovar com a rejeição pelo plenário da Câmara dos
Deputados no dia 16 de junho de 2015, a emenda apresentada pela bancada
feminina à reforma política (PEC n. 182/07 do Senado, a PEC da Fidelidade
Partidária) que propunha cota de 10% para a representação feminina no Legislativo.
A emenda obteve 293 votos favoráveis, contra 101 e 53 abstenções. Mas, como se
trata de Emenda Constitucional, eram necessários, no mínimo, 308 votos a favor.
A proposta levada ao plenário já era conservadora, pois a bancada feminina
da Câmara, por receio de não obter aprovação da maioria, baixara de 30% — cota
tradicional nos parlamentos de diversos países — para apenas 10%. A emenda
previa, ainda, cota progressiva de 12% e 15% nas duas legislaturas subsequentes,
respectivamente. Se a emenda tivesse sido aprovada, ainda assim, não atingiria
alguns estados brasileiros, cuja representação feminina na Câmara é maior que
10%. Na Casa, as mulheres já quase chegam ao percentual rejeitado no dia 16 de
junho de 2015; no Senado, elas ocupam 16% das cadeiras. A votação na noite do
dia 16 de junho de 2015 foi marcada em muitos momentos por discursos machistas.
Um deputado chegou a dizer que era a favor da proposta "porque o Plenário ficaria
mais bonito". Outro defendeu a aprovação por ser "importante dar um voto de
confiança às mulheres". Mas houve quem afirmou que a cota era "injusta" porque
não considerava o mérito dos eleitos.
305
Portanto, a inércia e o descaso legislativo e a predominância do discurso
machista ainda presente em parcela conservadora da sociedade são molas
propulsoras para um novo discurso de igualdade e não discriminação e mais ainda,
para transformações sociais e políticas.
CONCLUSÃO
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311
AS AVENTURAS DE BOMBOM NA ILHA TUMPINAMBARANA:
PROPOSTA DE EBOOK PARA O PÚBLICO INFANTIL
Introdução
Assim como ocorreu aos demais meios de comunicação, o livro rendeu-se às
possibilidades do meio digital. Enquanto alguns decretaram o fim do livro impresso
e ainda resistem às mudanças, outros se dedicam a criar o ambiente propício ao
seu desenvolvimento. O segundo grupo é o que nos interessa e nele destacamos
diversas iniciativas: de pesquisadores que buscam compreender a linguagem do
meio (Lúcia Santaella, 2004) e as mudanças nas práticas da leitura e o futuro do
livro (Roger Chartier, 1998; 2002); de escritores que se apropriaram do meio para
criar histórias proporcionando assim novas experiências de leitura; de empresas que
investem em softwares cada vez mais avançados a fim de permitir uma experiência
de leitura à altura (ou maior) àquela a qual estamos acostumados e de editoras que
dispõem em seu catálogo a venda de livro digital (ebook ou livro eletrônico), entre
outros.
É um cenário propício ao livro digital que ainda busca seu espaço. Ednei
Procópio (2013) em sua mais recente obra, A revolução dos ebooks, traz dados
sobre o mercado mundial do livro digital, onde os Estados Unidos figuram em
primeiro lugar, tendo movimentado US$ 113 milhões até 2008. Em 2011, a venda
de ebooks cresceu 117% e mais de cem editoras no país comercializam livros
digitais.
No Brasil, apesar de contribuir para o crescimento do mercado editorial em
2013, aumentando de R$ 3,8 milhões para R$ 12,7 milhões o faturamento no setor,
esse aumento não passou de 3% do valor total faturado pelo mercado. Em 2014, a
porcentagem caiu para 1% mantendo-se nesse patamar em 2015. Os dados são da
105
Bolsista do Programa RH-Interiorização da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na UPM
312
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). E o número de leitores que
buscam livros digitais também é pequeno. “Segundo a pesquisa Retratos da leitura
no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL), em 2012, dos 95,6 milhões de
leitores no país, apenas 1% recorre aos livros digitais” (PROCÓPIO, 2013, p. 169).
Por outro lado, ainda que a participação dos livros em plataformas digitais no
mercado editorial esteja abaixo do esperado pelo setor, empresários estão criando
estratégias para solidificar o mercado a partir do que está hoje disponível para o
consumidor. Michael Cairns, CEO da Publishing Technology, em artigo publicado
na Publishnews, diz que o diferencial na comercialização dos ebooks está na forma
como o conteúdo é disponibilizado e consumido pelo leitor/usuários, ou seja, na
criação de ferramentas que tornem a experiência de leitura única para cada
indivíduo. O momento é oportuno, pois estamos diante de uma geração imersa no
uso de tecnologias, especialmente por meio dos smartphones. Estes estão em
segundo lugar entre os suportes de leitura mais populares, atrás de notebooks,
netbooks e ultrabooks (PROCÓPIO, 2013).
Porém, ao se pensar em um mercado para ebooks é preciso considerar
outros fatores, entre eles a variedade de plataformas de leitura existentes e que
acabam por forçar o consumo de produtos de determinada empresa. Fatores esses
fundamentais, mas que não são objeto de estudo neste trabalho.
Foi em meio a essas discussões, durante a disciplina Seminário Avançados
em Estudos Literários da UPM, no primeiro semestre de 2015, que recebemos como
proposta a criação de um ebook, a ser apresentado como trabalho final. Elaboramos
então o projeto do livro digital infantil As aventuras de Bombom na ilha
Tupinambarana, com objetivo de proporcionar experiência de leitura a partir das
possibilidades da linguagem própria do meio, a hipermidiática, a qual exploramos a
seguir.
Referencial teórico
Ainda que não gozem do status do livro impresso, pelo menos por enquanto,
os ebooks trazem novas possibilidades ao mercado editorial, com sua linguagem
hipermidiática. Mais do que simplesmente existirem no mundo digital, esses livros
313
absorvem as possibilidades do meio, proporcionando novas experiências ao
leitor/usuário.
A exemplo do que ocorreu nos meios de comunicação de massa, como jornal
impresso, rádio e TV, a inserção do livro no ambiente digital pode ser analisada a
partir do grau de apropriação da linguagem digital pelo meio tradicional. Luciana
Mielniczuk (2003), por exemplo, propõe uma trajetória dos produtos jornalísticos
desenvolvidos para a Web em três fases. Semelhantemente aplicamos essa ideia
ao livro e chegamos a quatro tipos de ebooks. Trata-se de uma proposta para este
trabalho e com certeza necessita de maior elaboração, mas no momento serve aos
nossos propósitos.
O primeiro tipo é o livro digital resultado da conversão do conteúdo escrito
em bits. São as versões digitais vendidas pelas livrarias, por exemplo, como uma
opção ao livro impresso. E, contrário ao que muitos acreditavam, não apresentam,
em muitos casos, um valor mais em conta em relação ao produto impresso.
O segundo ebook é elaborado exclusivamente para o meio digital, não
existindo no suporte tradicional e, assim como o primeiro, não explora as
possibilidades do meio. É o suporte procurado por muitos autores sem condições
de pagar por uma versão impressa.
O terceiro tipo é o livro impresso que ao ganhar versão digital busca explorar
a linguagem do meio. Este tipo tem suas limitações, especialmente por conta do
conteúdo já definido e porque o autor do ebook nem sempre é o autor da versão
impressa. Assim, as ferramentas a serem agregadas ao texto devem considerar em
grande medida o texto original.
Por fim, o quarto e último tipo é o livro criado especificamente para o meio
digital e que traz como vantagens o fato de o conteúdo não estar preso a um suporte
anterior, o que permite maior liberdade ao autor na exploração da linguagem
hipermidiática.
Em um primeiro momento, o terceiro e quarto tipos podem ser considerados
semelhantes, porém o quarto, em nossa opinião, é um nível que possibilita maior
uso dos recursos do ambiente digital, podendo até mesmo permitir uma narrativa
não-linear, construída em rede, sem perda do sentido do conteúdo seja qual for o
314
caminho de leitura percorrido pelo leitor/usuário. Exigiria mais do autor, sem dúvida,
porém teria mais a oferecer em questões de experiência.
Identificamos assim nosso ebook como do quarto tipo, especialmente por não
estar preso a um suporte anterior, a uma história já existente.
Após definido que o trabalho final seria um livro digital, foi sugerido à turma
usar como texto base o capítulo “O vergalho”, da obra Memória Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis. Ao longo da disciplina, decidiu-se que cada um
escolhesse o texto, e o resultado foi interessante, com ebooks sobre “O Vergalho”,
sobre discografia de uma banda estrangeira, sobre o romance O Sol é para todos,
de Harper Lee, e um destinado ao público infantil, tema deste trabalho.
A proposta para a turma era que o livro digital não fosse simplesmente uma
transposição do impresso para o digital, o primeiro tipo do qual falamos. Ao mesmo
tempo buscamos não utilizar de recursos do meio digital tão somente para
caracterizar a obra como tal. Cada ferramenta a ser utilizada deveria dialogar com
o conteúdo, complementando-o, ou ainda ajudando a construí-lo.
A fim de compreendermos a linguagem hipermidiática recorremos a Santaella
(2004), que aponta quatro traços definidores fundamentais dessa: a hibridização de
linguagens, organização do conteúdo em arquitetura hipertextuais, cartograma
navegacional e interatividade. Traços que vão caracterizar qualquer projeto no
ambiente digital pois se trata de uma linguagem característica do ambiente.
Santaella propõe uma divisão a fim de estudos e melhor compreensão da hipermídia
e, ao lermos o texto, percebemos o quão imbricados se encontram esses traços.
No primeiro, temos a integração de dados de diferentes espécies, como
textos, imagens e sons, permitindo uma hibridização de tecnologias e linguagens
(anteriormente separadas), conhecida como convergência das mídias. E isso só
será possível graças ao computador. “De resto, sem essa convergência, a
hipermídia, como linguagem híbrida, prototípica do mundo digital, não seria
possível” (SANTAELLA, 2004, p.48).
É interessante observar que o livro impresso nos permite alguns desses
recursos, além do texto. Em livros, temos imagens, como fotos e ilustrações, ou
áudio. Porém, as vantagens do livro digital se encontram na integração desses
315
elementos em um ambiente virtual, possibilitando uma melhor manipulação.
Podemos dizer que o livro digital potencializa o que já encontramos em um livro
tradicional, pelo menos do ponto de vista dos recursos.
No segundo traço, temos a organização dos fluxos informacionais em forma
de rede, com as arquiteturas hipertextuais, que permitem o surgimento de módulos
de informações, gerando um trânsito não-linear, diferentemente da experiência
linear da linguagem verbal impressa. Esses módulos de informações podem ser
constituídos pelos dados descritos acima, como textos, gráficos, vídeos ou áudios,
ou vários desses ao mesmo tempo.
316
de escolhas cujas respostas já são pré-determinadas. O que pode ser percebido
ainda hoje em muitos produtos, como os jogos de videogame.
Na linguagem hipermidiática, a ideia de comunicação como a conhecemos,
onde um emissor transmite uma mensagem a um receptor, sofre uma mudança.
Agora, o primeiro apenas constrói o caminho pelo qual o receptor vai receber a
mensagem, e ela se constrói, ou se modifica, a partir da manipulação do receptor.
Trata-se da proposta de muitas obras de artes da atualidade, que para “existirem”
ou ganharem sentido, necessitam da participação do leitor/espectador (MACHADO,
1997).
A partir dessas discussões em sala sobre a linguagem hipermidiática e diante
de exemplos trazidos à sala, não apenas de ebooks, mas ainda de poemas e livros
e as tentativas de seus autores em criar uma interação com seu público, passamos
a elaboração do livro digital, cujas etapas descrevemos abaixo.
As aventuras de Bombom
O enredo de As aventuras de Bombom na ilha Tupinambarana é sobre uma
cachorrinha que sente-se abandonada por sua família (Gracie e Júlia) quando esta
parte para São Paulo e demora para vir buscá-la como prometido. Bombom então
decide deixar a ilha de Parintins, localizada no interior do Amazonas, chamada
também de ilha Tupinambarana. Ela recebeu esse nome por conta dos índios
tupinambaranas que habitaram a região.
Optamos por uma história para o público infantil pois, como percebemos
durante as discussões em sala, é o segmento para o qual tem surgido um maior
número de ebooks do quarto tipo, aquele criado especificamente para o meio digital
e que explora a linguagem hipermidiática.
Buscamos exemplos de ebooks especialmente para o público infantil a fim de
somar aos modelos apresentados nas aulas. Não foi tarefa fácil pois muito do que
está disponível no mercado, e que interessa a esta pesquisa, só pode ser acessado
por meio de aparelhos da Apple. Em pesquisa realizada em 2012, a empresa
detinha 73% do mercado de tablets (PROCÓPIO, 2013).
317
Apesar do baixo custo para se adquirir alguns ebooks, o mesmo não pode
ser dito em relação aos equipamentos para poder lê-los. Quanto aos ebooks
disponíveis para o sistema Android ou para máquinas da Microsoft, em sua maioria
são livros digitais do primeiro e segundo tipos e para público diferente do pretendido
por nosso projeto.
Nos livros digitais destinados ao público infantil aos quais tivemos acesso,
percebemos o uso da linguagem hipermidiática, com imagens e sons somando-se
ao texto, buscando oferecer uma experiência interativa, especialmente por meio do
touchscreen. A sensibilidade da tela substitui o mouse, apontado por Santaella
(2004) para estabelecer os nexos e conexões.
Nossa trajetória na construção do ebook nos levou a algumas indagações:
Até que ponto podemos avançar para oferecer uma experiência interativa, sem
incorrer no erro de acumular desnecessariamente recursos da mídia apenas para
dizer que se trata de um livro digital? Ou será que exploramos os recursos
devidamente ou algo mais pode ser acrescido para garantir uma experiência única
ao usuário? Perguntas estas que nortearam todo o processo e que serão
respondidas ao longo deste trabalho.
O próximo passo foi pensar a estrutura do livro. Como a história iniciava com
a fuga de Bombom de sua casa em Parintins, interior do Amazonas, achamos
necessário apresentar quem é a nossa personagem e o que a motivava. Assim,
surgiu a ideia de uma animação. Ela seria a porta de entrada do ebook, a segunda
página do livro, logo após a capa. Uma história curta, mas objetiva.
A seguir a criança poderia ler a história por meio de texto e ilustrações,
dividida em três partes – uma para cada tentativa de fuga de Bombom da ilha (de
avião, de lancha e de barco). Havia também a opção de apenas ouvir a história com
o auxílio de um narrador. Como recursos extras, oferecíamos imagens para colorir;
jogo interativo; gravação em áudio da história pelas crianças e a opção de trocar a
capa do ebook.
Esse primeiro projeto foi apresentado como trabalho final da disciplina, mas
sentimos necessidade de reformulá-lo, especialmente para sanarmos dúvidas
quanto ao uso da linguagem hipermidiática.
318
A principal mudança surgiu a partir do conceito de narrativa transmídia
(transmidia storytelling) abordado por Henry Jenkins (2009). Essa narrativa, própria
da cultura da convergência das mídias, se constitui em um amplo enredo ficcional a
ser explorado em diferentes plataformas, de forma integrada e ao mesmo tempo
autônoma. “Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas
plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao
comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (JENKINS,
2009, p. 29). Nesse cenário, o conteúdo que circula por meio das plataformas é a
narrativa transmídia, cujo objetivo – do ponto de vista artístico – é criar uma
experiência única à audiência, instigando-a a conhecer todos os enredos desse
universo a fim de compreendê-lo por inteiro.
Como exemplo, Jenkins cita a franquia Matrix. Além de três filmes, ela
engloba HQs, animações e jogos de videogame. Cada narrativa desenvolvida
nessas plataformas é independente, mas de alguma forma ligada à história do
universo Matrix, desenvolvendo personagens ou enredos, além do que é
proporcionado pelos filmes. “Matrix é entretenimento para a era da convergência,
integrando múltiplos textos para criar uma narrativa tão ampla que não pode ser
contida em uma única mídia” (JENKINS, 2009, p.137). O objetivo com esse tipo de
narrativa é proporcionar uma experiência de entretenimento que vai se sobrepor a
qualquer uma dessas plataformas individualmente.
Existe, claro, um interesse econômico por trás dessa convergência, uma vez
que o fã de um universo ficcional como este tende a consumir tudo o que for
relacionado a ele. Porém, trata-se também de atentar para as mudanças do público
consumidor de narrativas ficcionais diante de tantos meios disponíveis. A ideia não
é repetir um conteúdo em diferentes plataformas, isso aliás, seria enfadonho para
qualquer público, mas sim buscar atingir diferentes públicos agregando-os em uma
grande comunidade.
Mesmo Matrix tendo obtido êxito comercial, Jenkins diz que ele apresenta
algumas falhas na construção da narrativa transmídia, demonstrando um campo a
ser explorado assim como a existência de um público consumidor para esse tipo de
narrativa.
319
A partir dessas considerações, o ebook, que antes buscava aglutinar diversas
funções, foi repensado para um cenário transmidiático. Ele “cedeu” algumas de suas
narrativas a outros produtos, como explicaremos adiante, surgindo assim um
sistema organizado, no qual um produto dialoga com outro, como previsto para esse
tipo de narrativa.
O projeto transmidiático consiste então em: 1. Ebook, 2. Livro impresso, 3.
Aplicativo com jogo para celular, 4. Jogo de tapete para crianças, 5. Livro para
colorir, 6. Bonecos em miniatura dos personagens e 7. Jogo de videogame.
A narrativa que coube ao livro digital é a da animação. Esta foi reformulada e
vai se concentrar na separação de Bombom da família, a chegada dela a sua nova
casa, o ciúme pela atenção de Júlia com a chegada da gata Arthemis, entre outros
momentos. Os livros, por sua vez, trazem as aventuras de Bombom para sair da ilha
de Parintins com destino a São Paulo, em busca de sua família e também a viagem
dela para São Paulo, quando enfim reencontra Júlia e Gracie. O aplicativo para
celular narra as aventuras de Bombom durante o Festival Folclórico de Parintins
(que ocorre durante sua fuga de casa); o jogo para videogame traz Bombom perdida
na floresta durante sua tentativa frustrada de fugir de barco da ilha; o jogo de tapete
é um mapa da floresta onde as crianças precisam cumprir provas para ajudar
Bombom; e os livros para colorir trazem a história individual de cada personagem
que compõem o universo da Bombom, como a gata Arthemis, o bicho-preguiça, a
arara vermelha, o macaco zog zog. Há ainda outras narrativas que possivelmente
vão ser integradas aos livros impressos, como a morte da gata Arthemis, a aventura
de Bombom procurando sua mãe e o encontro dela com o irmão.
A animação pode ser assistida com ou sem narração e/ou com legendas ou
por meio de imagens fixas também com ou sem narração e/ou com legendas. Como
recursos interativos, a criança pode gravar sua versão da história, com uma
indicação de áudio da velocidade que deve acompanhar a fim de garantir sintonia
entre imagem e áudio. Ao fim da animação, surgirá na tela um mapa da cidade de
Parintins, no qual a criança poderá obter informações sobre a ilha (localização,
cultura etc), ler a biografia dos personagens da história, e conhecer o “Mundo da
Bombom”, onde são apresentadas as demais narrativas do universo da história.
320
Nele a criança vai ser informada ainda que pode mudar a capa do ebook, e receberá
instruções de como fazê-lo, tendo para isso duas opções.
Acreditamos que a reformulação do projeto solucionou nossas dúvidas,
especialmente quanto ao uso em demasiado das possibilidades do meio,
sobrepondo-se à narrativa. Com a distribuição dessa em diferentes plataformas, a
expectativa é que a criança possa explorar cada enredo em seu. Outra reformulação
importante no projeto foi a ampliação do público, antes entre seis e oito anos, e
agora entre três e oito, o que é justificado pela ampliação da história e as
plataformas a serem utilizadas para acessá-la.
Considerações
Mesmo tendo surgido como atividade de sala de aula, o ebook As aventuras
de Bombom na ilha Tupinambarana mostrou potencial narrativo para diversas
histórias. Diversas mudanças foram implementadas a fim de melhorar o projeto. O
primeiro passo foi pensá-lo a partir do conceito de narrativa transmídia. Por outro
lado, há ainda interesse de nossa parte em explorar a discussão de cunho
ambiental, o que é oportuno dado o fato de a história se passar na Amazônia. Em
relação aos personagens, entendemos que precisamos trabalhar a caracterização
de cada um, a fim de permitir uma identificação das crianças com a história. Para
isso, vamos nos inspirar em desenhos como Toy Story e Rei Leão, onde os
personagens, um brinquedo e um leão, respectivamente, vivenciam experiências e
sentimentos característicos da natureza humana.
Por meio dessa atividade pudemos ainda refletir sobre as discussões acerca
do livro impresso, e seu anunciado fim ou substituição pelo ebook. Na narrativa da
Bombom, por exemplo, o livro digital não surge como um substituto, mas sim um
complemento a fim de enriquecer o universo ficcional criado. Sem dúvida são duas
experiências de leitura completamente diferentes, mas, como mostram pesquisas,
há público para ambas. Assim, deixando de lado a visão pessimista sobre o ebook,
lançamos como proposta explorar seu potencial, pois o futuro de ambos, impresso
e digital, até o momento, parecem entrelaçados.
321
Referências
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Publishnews, São Paulo, 16 jan. 2015. Disponível em:
<http://www.publishnews.com.br/materias/2015/01/16/80311-cinco-previsoes-
sobre-o-mercado-editorial-para-2015>. Acesso em: 5 set. 2015.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Trad. Suzana L. de Alexandria. 2ª ed.
São Paulo: Aleph, 2009.
MACHADO, Arlindo. Hipermídia: o labirinto como metáfora. In: DOMINGUES,
Diana. (Org.) A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo:
Unesp, 1997.
MACIEL, Nahima. Pesquisa mostra retração na indústria do livro em 2014.
Publishnews, São Paulo, 16 jun. 2015. Disponível em:
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2015/06/16/interna_diversao_arte,486702/pesquisa-mostra-retracao-na-
industria-do-livro-em-2014.shtml>. Acesso em: 5 set. 2015.
MIELNICZUK, Luciana. Sistematizando alguns conhecimentos sobre o jornalismo
na web. In: MACHADO, Elias; PALACIOS, Marcos. (Org.) Modelos de jornalismo
digital. Salvador: Editora Calandra, 2003.
PROCÓPIO, Ednei. A revolução dos ebooks: a indústria dos livros na era digital.
São Paulo: Senai-SP, 2013.
RODRIGUES, Maria Fernanda. Faturamento com venda de e-book cresce 225% no
Brasil, mas mercado editorial continua em crise. Estadão, São Paulo, 22 jul. 2014.
Disponível em: < http://cultura.estadao.com.br/blogs/babel/faturamento-com-venda-
de-e-book-cresce-225-no-brasil-mas-mercado-editorial-continua-em-crise/#>.
Acesso em: 25 ago. 2015.
SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo.
São Paulo: Paulos, 2004 (Comunicação).
322
ENCONTROS INÉDITOS ENTRE UM PIXADOR DESCONHECIDO E ESPAÇOS
DE LEGITIMAÇÃO ARTÍSTICA
Gustavo Lassala106
Introdução
A questão central que motiva este texto está na compreensão de uma realidade
social recente que aproxima a modalidade de intervenção urbana, conhecida como
pixação, e os espaços de legitimação artística, intermediada pela atuação do
pixador Djan Ivson, conhecido nas ruas pelas intervenções que desenvolve por meio
da gangue de pixadores Cripta.
Ao flanar sobre a história da arte é nítido o caminho para o deslocamento do objeto
artístico para o fazer artístico, enfatizando-se a figura do artista, que atinge o seu
ponto máximo na Body Art, bem como parte das ações artísticas mais significativas
levadas a cabo a partir do final dos anos 1960, independentemente de serem ou
não baseadas na matriz deambulatória, como observa Jacopo Crivelli Visconti,
(VISCONTI: 2012, 7) elas compartilham a aspiração a uma arte não comercializável.
Jackson Pollock, conhecido artista norte-americano do expressionismo abstrato,
trabalhou a ideia de que o artista deveria ser o sujeito e objeto de sua obra,
destacando que o movimento do artista de performance aparece como o sujeito que
atua no intuito de não se submeter ao cinismo do sistema, praticando, às custas de
sua vida pessoal, uma arte de transcendência (COHEN: 2009, 44-45).
Em princípio, o pixador é movido pelo desejo de status entre os pares, “terapia
ocupacional” no preenchimento de uma vida desimportante, ou por imposição de
sua figura desbotada diante dos códigos sociais vigentes. Não há qualquer indício
de que ele tivesse, originalmente, pretensões artísticas. Contudo, o pixador, ao
escolher o suporte para suas ações, a cidade, o subir e descer edificações,
106
Técnico em Artes Gráficas pelo Senai “Theobaldo De Nigris”, Bacharel em Design (Programação Visual)
pela USJT, Mestre em Educação Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie onde também é professor. É
autor do livro Pichação não é pixação.
323
arriscando a vida pelo ato da pixação, usa como parâmetro o próprio corpo como
escala, medida e ferramenta para impor sua assinatura em locais não autorizados.
As inscrições deixadas nos variados lugares da cidade, mais do que obras
autônomas, são vestígios ou rastros da passagem por ali do corpo do pixador. Neste
sentido, sem qualquer clareza discursiva ou conceitual, os pixadores de São Paulo
compartilham, em alguma medida, dos procedimentos artísticos presentes em
diversas manifestações estéticas modernas e contemporâneas. Este ponto de
contato involuntário, mas vital, constitui-se por si só um bom motivo para que o
campo da arte tenha, em algum momento, se interessado pela prática do pixo.
Neste sentido, quando os pixadores, a partir de 2008, passam a agir em espaços
de legitimação artística, locais onde, em princípio, não estavam abertos a este tipo
de atividade, a aproximação entre pixação e arte se dá de forma contundente.
Entretanto, o interesse despertado para a pixação no meio artístico não ocorreu
apenas depois da aproximação em 2008, mas sim após diversas ações promovidas
por pixadores, articuladas, principalmente, por Djan.
Antes de ocupar os espaços institucionais de exposição, a pixação era – e, em
grande medida, continua sendo – uma prática destinada às ruas da cidade, que se
resolve em muros, monumentos, equipamentos públicos, fachadas e empenas de
edifícios, aparatos arquitetônicos e urbanísticos improvisadamente convertidos em
suporte para escritos enigmáticos, dirigido aos que não fazem parte dos grupos. A
ambiguidade do caráter atual desta manifestação cultural – entre o fenômeno social
e artístico – é possível observar também na situação do personagem, que mantém
ainda laços com sua base social, ao mesmo tempo em que se envereda pelo
universo artístico. A ambiguidade se revela na própria prática de Djan, já que divide
sua atuação na participação em discussões de arte contemporânea – já com status
de “artista” –, mas ainda é representante dos demais pixadores, principalmente em
São Paulo.
324
Aproximações entre a pixação e o campo da arte
325
atuações ilegais na paisagem urbana, figurou em um centro de exposição de arte
contemporânea com destaque, graças ao design diferenciado das suas letras de
pixação e de sua performance ao caligrafar a fachada do prédio da galeria com o
logotipo da sua gangue. Esse fato colocou uma situação até então não discutida na
história da pixação.
Figura 01 – Acima Djan pintando a fachada da Fundação Cartier em Paris com o logotipo da sua
gangue107.
107
Fonte: João Wainer/ Folha imagem. Publicado em 04/07/2009 na página especial C8 do jornal Folha de S.
Paulo.
326
Em 2008, ocorreram os Ataques – como foram chamadas as invasões pelas notícias
da época – tiveram grande repercussão na mídia108, que apresentava ao grande
público as surpreendentes ações de pixadores de diversas gangues que, sem
credenciais, entravam à força em espaços institucionais de arte e realizavam neles
performances análogas às que realizavam nas ruas. Foram atacados o centro
Universitário Belas Artes, a Bienal de Artes em São Paulo e a galeria de arte Choque
Cultural. Djan usava sua ascendência e liderança natural sobre os pares para
convocar e organizar os pixadores de outras gangues, que participavam como
voluntários nesses atos.
Tomando por base as ideias de Bourdieu (2004:105), podemos destacar o sistema
de produção e circulação de bens simbólicos no campo da produção erudita, voltado
a um público de produtores de bens culturais; e no campo da indústria cultural
destinados a não produtores de bens culturais, ou seja, à população em geral,
configurando dois tipos distintos de público para recepção desses bens. Ao
promoverem Ataques em espaços de conservação de bens simbólicos (galeria,
museu, instituição de ensino), os pixadores entram em um embate com o campo de
produção erudita que funciona como uma arena fechada, de concorrência pela
legitimidade cultural (consagração propriamente cultural). No outro lado, ao
mobilizarem e alimentarem os instrumentos de difusão dos acontecimentos, as
questões da pixação entram em contato com os modos de recepção da cultura
média na engrenagem da indústria cultural regida por uma lei da concorrência para
conquistar o maior mercado possível.
As ações ilegais de Djan, em 2008, e as participações oficiais de arte, em 2009 e
2010, pareciam informações não só suficientes para embasar a descrição da
evolução histórica da pixação, mas também o processo de ruptura da tradição do
pixo em ter a cidade como único suporte de sua atuação. Djan, em 2012, participou
da 7ª Bienal de Berlim, com um coletivo de pixadores e novamente ganhou destaque
108
Algumas reportagens que ilustram o destaque na mídia:
CAPRIOGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de S. Paulo.
Cotidiano, C7, São Paulo, 13 jun 2008.
CYPRIANO, Fabio. Bienal é aberta amanhã com ameaça de pichação. Folha de S. Paulo. Ilustrada, E15, São
Paulo, 24 out. 2008.
COLI, Jorge. O país do homem cordial. Folha de S. Paulo. Mais!, n871, São Paulo, 14 dez. 2008
327
ao jogar tinta, publicamente, sobre o curador do evento, o artista polonês Artur
Zmijewski. Após esta performance, que o catapultou para a manchete do jornal
Folha de São Paulo, Djan passou a ser definido pela mídia como “artista/pixador”.
Essa notícia talvez tenha sido o ponto alto da pixação como fenômeno descolado
da sua própria história de subversão nas ruas de São Paulo.
Nesse contexto, o ano 2008 pode ser considerado como o marco do ingresso da
pixação no campo da arte, de modo não amigável, iniciando um período que se
estende até a consolidação dessa nova situação, em 2012, quando as participações
regulamentadas de pixadores em eventos organizados por instituições artísticas
tornam-se corriqueiras. Este hiato tem Djan como elemento-chave; em sua biografia
temos o momento quando, supostamente em nome da pixação, ele rompe com uma
atuação exclusiva nas ruas para entrar no circuito institucional da arte.
A identidade social de Djan como pixador não é um problema, como poderia ser
para um pixador qualquer de São Paulo, ao assumir a prática de uma ação de
contravenção, mas sim um recurso estratégico de diferenciação e construção de um
328
papel social em uma sociedade que não lhe ofereceu opções de integração. A
pixação funciona como uma espécie de reflexibilidade social e ferramenta de
subjetivação. Ou seja, em seu discurso e suas ações, Djan adota uma estratégia
que se assemelha ao conceito da lógica da estratégia, em que a ação coletiva não
é apenas um meio de seus participantes “se identificarem, mas também como um
instrumento para acenderem a um mercado político local” (DUBET: 1994, 122),
proposta por Dubet: converte algo que é visto socialmente como transgressão e
sujeira em meio de expressão para disputar posições no campo da arte, até então
inacessível para os pixadores legítimos.
Considerações finais
329
compreensão, talvez a pixação tenha muito mais a dizer sobre as cidades e os
segregados do que nós temos a dizer sobre ela.
REFERÊNCIAS
330
MAGNÓLIA – ANÁLISE DA MISE-EN-SCÈNE NA INTRODUÇÃO DO FILME DE
PAUL THOMAS ANDERSON
O cinema é uma arte que procura, por meio de recursos visuais e sonoros, contar
histórias. Em meio a isso, como toda expressão estética, há sempre espaço para
experimentação e ousadia. Apontar a organização de um texto audiovisual é tão
estimulante quanto fazer uma análise literária. A compreensão da construção
narrativa é algo que provavelmente deve interessar às duas áreas – cinema e
literatura.
Devido a esta associação entre as duas áreas, torna-se coerente demonstrar a
inspiração para o estilo do estudo aqui implementado. Apesar de se tratar de uma
introdução a um conhecido estudo literário, pode-se adaptar o pensamento para um
estudo na área do audiovisual.
Procurando sobretudo interpretar, este não é um livro de erudição, e o aspecto
informativo apenas serve de plataforma às operações do gosto. Acho valiosos e
necessários os trabalhos de pura investigação, sem qualquer propósito estético; a
eles se abre no Brasil um campo vasto. Acho igualmente valiosas as elucubrações
gratuitas, de base intuitiva, que manifestam essa paixão de leitor, sem a qual não
vive uma literatura. (CANDIDO: 2012, 32)
Este trabalho descreve uma análise possível da introdução110 do filme “Magnólia”,
do cineasta estadunidense Paul Thomas Anderson, lançado no ano de 1999. Trata-
se dos primeiros seis minutos do filme 111, que acabam por se configurar como uma
espécie de preâmbulo da história principal. Como será visto posteriormente,
algumas premissas localizadas nos contos narrados na introdução expõem temas
que serão explorados de forma mais prolongada no filme. Além disso, o tom da
331
narrativa, que beira o absurdo, também prepara o espectador para o que encontrará
no resto do filme.
A pergunta-problema que guiou esta pesquisa foi: “De que forma a mise-en-scène
foi utilizada na introdução de 'Magnólia' para expor o tema principal do filme e
estabelecer seu tom?".
O objetivo principal deste trabalho era analisar a introdução do filme "Magnólia" em
seus aspectos formais e estruturais. Como objetivos secundários, o primeiro é
compreender a associação entre a temática desta introdução com a do filme
principal, visto que se trata de histórias diferentes daquela que é contada no resto
da produção112. Em seguida, traçar um padrão de construção de cada um dos
trechos da introdução, no intuito de compreender uma possível unidade formal.
Um trabalho como este sempre se mostra relevante devido à constante investigação
a respeito das estruturações na arte. "Magnólia" foi exaltado quando lançado nos
cinemas, em especial pela forma como Paul Thomas Anderson optou em contar sua
história. Ele divide a história naquilo que é conhecido como multiplot113, criando
histórias independentes que, de alguma forma, acabam por se encontrar. Não é a
primeira vez que se faz isso. Basta assistir a "Pulp Fiction - tempos de violência", de
Quentin Tarantino, que pode-se perceber este uso.
A escolha do filme “Magnólia” é primordialmente subjetiva, estimulada pela
qualidade estrutural da peça e por ter sido realizada por Paul Thomas Anderson,
que é um cineasta conhecido pelo esmero na utilização da mise-en-scène. Os filmes
dele transitam entre o popular e a arte – uma dicotomia que está presente em muitas
formas de expressão artística.
A construção de um filme passa por diversas etapas. Seja a criação da ideia, sua
roteirização, planejamento de produção, filmagem ou finalização, sempre tem-se em
112 Como será visto no decorrer deste trabalho, a introdução do filme “Magnólia” é composta por três histórias,
332
mente a história a ser contada. Em cada uma destas etapas, é necessário conhecer
características específicas da trama, para poder aproveitar ao máximo suas
potencialidades.
Ao mesmo tempo, o conhecimento a respeito destas características também pode
estimular a criatividade do realizador, na busca pela melhor estruturação possível
da peça final.
Dentre os conceitos a serem levados em consideração no momento da realização,
está a utilização da mise-en-scène. Trata-se da articulação entre imagens e sons,
da escolha dos realizadores do filme a respeito de como expor cada situação que
irá compô-lo. Neste caso, também encontra-se a necessidade de investigar a
escolha a respeito da montagem do filme. De acordo com Bordwell (2008, 33):
Poucos termos da estética do filme são tão polivalentes como esse. Em francês,
significa o que, em inglês, chamamos de “direção” e suas origens estão no teatro.
Mettre en scène é “montar a ação no palco” e isso implica dirigir a interpretação, a
iluminação, o cenário, o figurino etc. Desde Bazin, alguns críticos passam a tratar a
mise-en-scène simplesmente como o processo inteiro da direção de um filme,
incluindo a encenação, a montagem e a trilha sonora.114
Para compreender a análise que pretendeu-se realizar do objeto deste trabalho, é
fundamental se passar pela relação entre cena, plano e mise-en-scène. Não se deve
deixar de lado que este termo é proveniente do teatro, o que mostra que desde
décadas antes do surgimento do filme já se fazia uma relação entre cena e mise-
en-scène. Com o cinema, há uma adaptação do conceito.
A mise en scène115, aqui, estaria inextricavelmente vinculada a seu núcleo nominal,
a cena, (...) – não a cena de teatro, de onde ela decola, mas sua decupagem, ou
seja, sua submissão à arte da duração e da variação dos pontos de vista. A cena
cinematográfica se constrói pelo plano (ou soma de planos), que é sua unidade de
114Grifos do autor.
115Este autor não utiliza hífens na grafia do termo mise-en-scène. Como deve-se fazer, a cada citação, seguiu-
se a grafia escolhida por cada autor. David Bordwell, por exemplo, coloca hífens. Porém, para o texto deste
artigo, optou-se por hifenizar o termo.
333
composição – unidade potencialmente descontínua, móvel e variável. (OLIVEIRA
JÚNIOR: 2013, 29)116
Os filmes de Paul Thomas Anderson notabilizam-se pelo trabalho de mise-en-scène.
Desde seu primeiro filme de sucesso117, as histórias se caracterizavam pela forma
como eram contadas, o que as valorizava ainda mais. “Magnólia” foi seu filme
seguinte, e consagrou-o definitivamente. PTA 118, como é conhecido nos Estados
Unidos, conseguira reunir diversos atores, distribuídos em tramas independentes,
que seriam articuladas aos poucos dentro do filme. Depois disso, outras realizações
do diretor foram lançadas, sempre com um espaço de tempo dilatado entre elas 119.
Isso pode ser devido à característica de sua obra, que não é propriamente comercial
e que dificulta o financiamento120.
A introdução do filme “Magnólia” é composta por três histórias independentes, as
quais serão chamadas aqui de contos121. Cada uma com sua trama específica,
trabalha dois temas em comum: ironia e coincidência. São estes dois temas dão
razão de existência para esta introdução, pois estarão presentes no filme inteiro. A
presença do narrador é marcante nas três histórias. Será possível perceber que ele
conduz a percepção do espectador, auxiliando na interpretação de cada imagem
que é colocada no filme.
Primeiro Conto
O narrador introduz a história dizendo que, em 1911, o jornal New York Herald,
noticiou o enforcamento de três homens pelo assassinato de um homem de família.
Este trecho ocorre com a sequência de imagens de três homens sendo enforcados
sucessivamente, dando a impressão de aproximação para o espectador, como se
inerente (2014).
120 Outro cineasta que passa pelo mesmo problema é Terrence Malick, autor de A árvore da vida.
121 Toma-se esta liberdade por serem narrativas breves, dinâmicas e fechadas em si.
334
tivesse sido colocado um zoom. A história é contada numa janela122 menor que a
convencional, típica dos filmes da era muda 123. Esta escolha demonstra a aliança
entre conteúdo e formato.
Na apresentação do local onde a vítima (sir Edmund William Godfrey), vê-se
claramente a placa com o nome da rua: Greenberry Hill. A ironia / coincidência
ocorre quando são nomeados os assassinos. Os nomes eram Joseph Green,
Stanley Berry e Daniel Hill. A cada nome apresentado, é realizado um movimento
dolly124 em direção ao rosto de cada um, para que haja uma maior pontuação sobre
os personagens.
Para finalizar o conto, o narrador repete de forma compassada o sobrenome de
cada um dos assassinos, o que forma o nome da rua onde morava a vítima.
Esta é uma história mais curta e simples do que as seguintes.
Segundo Conto
Com uma série de labaredas e sua crepitação, é feita a transição do primeiro para
o segundo conto. Novamente o narrador introduz a história relatando que ela foi
noticiada em um periódico. Desta vez, trata-se do Reno Gazette, de 1983125. A
mudança temporal e espacial é providencial se for levado em consideração o
suposto objetivo da introdução do filme – demonstrar que há coincidências e ironias
na vida. Se tudo ocorresse numa mesma época e localidade, poderia-se ter a ideia
de que estes eventos narrados seriam fenômenos característicos de um
determinado momento histórico.
122 Monclar (1999, 66) esclarece: “A luz (...) penetra através das lentes que está colocada (sic) na torre da
câmera e imprime o fotograma (ou frame) do negativo através da janela que recebe a imagem quando se
abre diante do obturador. O formato desse fotograma será determinado pela janela (em grelha) que estiver
encaixada na ranhura correspondente entre a torre da câmera e a estrutura da janela do corredor de
negativo do corpo interno da câmera. Os formatos destas grelhas são: 1.66, 1.33, 1.85 e 2.35.”
123 No roteiro do filme, encontra-se a seguinte definição no cabeçalho que apresenta esta cena: “Black and
movimento é ou para frente, ou para trás. No caso mencionado, este movimento é para frente, o que amplia
o tamanho do rosto dos personagens na tela.
125 Por se tratar do ano de 1983, quando as janelas de filmagem já haviam progredido, encontra-se no roteiro
do filme a seguinte inscrição no cabeçalho: “(35mm / color / anamorphic now)” (ANDERSON: 1998, 03). O
termo “now” demonstra a alteração entra a primeira história e a segunda.
335
A partir deste segundo conto, a narrativa torna-se mais complexa. Enquanto na
primeira história há uma certa linearidade126, as duas que a seguem têm uma
montagem mais fragmentada.
O conto inicia com uma imagem curiosa e nonsense. Isso gera curiosidade no
público para acompanhar o relato que se seguirá. Trata-se da visualização de um
mergulhador, com equipamento completo: máscara, snorquel, roupa de neoprene e
nadadeiras. O grotesco da situação é que ele está morto, no topo de uma gigantesca
árvore no meio de uma floresta que pegava fogo. Assim como no início do primeiro
conto, PTA realiza uma aproximação do personagem com o corte de três planos,
começando num mais aberto, para terminar num close do rosto dele. Novamente,
esta sensação de aproximação se dá como se fosse um zoom, mas devido aos
cortes, parece que se coloca gradualmente lentes de aumento sobre o homem.
Com um primeiro flashback127, o narrador apresenta o personagem. Trata-se de
Delmer Darion, crupiê de um cassino em Reno. São mostradas imagens dele no
trabalho, com detalhes de sua habilidade no trato com as cartas e todo o ambiente
do cassino. Rapidamente é feita a transição para o hobby do crupiê, que era
mergulhar num rio próximo. Neste ponto é feita uma transição para ele dentro do
Lago Tahoe128.
A revelação a respeito da conexão deste evento com aquilo que foi mostrado no
início do conto se dá logo em seguida, quando um avião bombeiro desce sobre o
lago de comportas abertas recolhendo água. O entendimento sobre o que
aconteceu é confirmado quando o narrador relata: “As reported by the coroner,
Delmer died of a heart attack somewhere between the lake and the tree” 129
(ANDERSON: 1998, 05).
126 Esta linearidade nãoé total pois, como descrito, o primeiro conto inicia com a descrição dos enforcamentos
para depois mostrar o motivo destas execuções – o assassinato que, obviamente, aconteceu algum tempo
antes. Porém, nos dois contos posteriores, há um jogo de idas e vindas temporais mais intenso e complexo.
127 Flashback é o recurso de montagem cinematográfica em que há um retorno no tempo para expor fatos
ocorridos que, de alguma forma, contribuirão para o entendimento da trama e/ou de detalhes do
personagem.
128 O nome do lago consta no roteiro do filme.
129 Como relatado pelo legista, Delmer morreu de ataque cardíaco em algum ponto entre o lago e a árvore. –
tradução minha
336
Esta fala ocorre enquanto o espectador assiste o avião voando em direção à
floresta. A somatória de imagem e som contribui para o entendimento daquela
situação mostrada no início, sem que seja necessário mostrá-la novamente.
Onde estaria a coincidência? A história continua com a introdução de um novo
personagem – Craig Hanson – o qual teria se suicidado. A aproximação do
personagem desta vez não se dá em vários cortes, mas num dolly in, como feito na
apresentação dos assassinos do primeiro conto. Um novo flashback torna-se
necessário, ao apresentar os hábitos de Craig. Tratava-se de um jogador inveterado
e viciado em bebida. Algum tempo antes do acontecimento principal do conto, Craig
teria espancado o mesmo Delmer Darion no cassino em Reno após não conseguir
vencer uma partida.
A coincidência está no fato de Craig ser o piloto do avião bombeiro que recolheu
Delmer junto da água do lago e o lançou sobre a floresta. O conto termina com Craig
não conseguindo suportar tamanha coincidência e dando um tiro em sua cabeça.
No momento do tiro, o estouro causa um flash dentro de seu quarto. O narrador,
novamente, tem o papel de conectar os fatos para facilitar a compreensão do
público.
Terceiro Conto
Diferente das histórias anteriores, este não é relatado como notícia de jornal.
Indicando novamente uma variação de tempo e espaço, o narrador descreve uma
situação que foi contada numa reunião de associação em 1961. À medida que o
conto inicia, já há um flashback para o ano de 1958, quando se deu a história que
será contada.
Começa com uma aproximação em dolly de um personagem que está no topo de
um prédio. Quando a câmera chega no personagem, que é apresentado como
Sydney Barringer, ele se joga do topo do prédio. O inusitado se dá quando ele passa
por uma janela e dela sai um tiro, que atinge o homem que está em queda. Ele cai
sobre uma rede de proteção, quando a imagem é frisada. Este é o acontecimento
principal da história, aquele que guiará a narrativa, e que será destrinchado para
que se possa compreender onde está a ironia e coincidência.
337
Após esta exibição, o narrador faz a história voltar, e novamente o espectador se vê
sobre o prédio, ao lado do personagem. O narrador tem a preocupação em mostrar
a evidência de que Sydney queria se suicidar. Mostra um bilhete que é possível
visualizar no bolso de Barringer. Além disso, imagens do bilhete, mostrando trechos
e termos que comprovem as intenções do personagem. A intenção do narrador fica
ainda mais explícita ao dizer “Para elucidar...”, e em seguida começar a remontar
todas as situações que compõem este evento.
Este trecho descrito no parágrafo anterior é relevante também para fazer uma
conexão com o roteiro do filme, pois comprova que já havia um pensamento por
parte do realizador sobre o trabalho de mise-en-scène que seria efetuado nas
filmagens. Na cena transcrita abaixo é possível perceber o olhar do cineasta sobre
os pontos de vista a serem trabalhados no filme. A citação está diagramada como
se faz em roteiro (ANDERSON: 1998, 07):
Narrator
Seventeen year old Sydney Barringer. In the city of Los Angeles on March 23, 1958.
CAMERA DOLLIES132 towards Sydney landing in a CLOSE UP 133 of his feet on the
ledge, they wobble a bit – he jumps, dissapears from FRAME.
BEAT134. The following happens very quickly:
ANGLE135, looking up towards the sky136…Sydney falls past CAMERA….
ANGLE, looking down towards the street…Sydney continues to fall…
decorrer da cena.
136 Indicação da direção para onde está apontada a câmera – isso ocorrerá também na frase seguinte.
338
ANGLE, a random window on the sixth floor of the building SMASHES137….
ANGLE, Sydney’s stomach…a BULLET rips into it as he falls…blood splatters and
his body flinches….
ANGLE, looking up towards the sky…Sydney’s body and some shattered glass FALL
directly at the CAMERA…which pulls back a little to reveal a SAFETY NET in the
foreground…Sydney’s body falls LIMP into the net…FREEZE FRAME 138.
Narrator
The coroner139 ruled that the unsucessful suicide had suddenly become a sucessful
homicide. To explain:140
137 Tanto no caso da palavra “SMASHES” quanto na palavra “BULLET” a maiúscula é utilizada para indicação
de sons importantes dentro da cena.
138 Marcações importantes de montagem também devem ser colocadas em maiúsculas.
139 É curiosa a menção de um legista nesta história também, visto que havia sido citado no conto anterior.
339
uma espingarda. Isso é mostrado em plano e contraplano, criando tensão dentro da
cena. De repente, um tiro sai da arma acidentalmente. Neste instante, vê-se o corpo
de Sydney passar pela janela. É o exato instante de conexão entre a cena principal,
guia do conto, e este momento de elucidação para o público. Em seguida, o narrador
apresenta os personagens: são os pais de Sydney Barringer.
Com uma pequena passagem de tempo141, vê-se Fay e Arthur Barringer agora
sentados, interrogados pela polícia. A câmera se aproxima aos poucos, à medida
que eles revelam que não sabiam que a arma estava carregada. Com isso, surge o
personagem de uma criança que conta como isso aconteceu. Assim, dentro do
flashback que era assistido, inicia um flashback ainda anterior, que mostra que foi
Sydney quem carregou a arma, desejando que seus pais se matassem. Há uma
imagem que corrobora com o relato do rapaz, em que Sydney carrega a arma e o
menino está logo atrás dele, colocando-o na cena narrada. Curiosamente, a criança
realiza o depoimento olhando para a câmera, que se aproxima dela novamente em
dolly. Quando está em close, um flash estoura, como se a criança fosse fotografada
para os jornais. Este flash remete ao do conto anterior.
O conto termina com um plano bem aberto, mostrando o edifício inteiro. O narrador
descreve a ironia do acontecimento. A cada fala do narrador, desenha-se na tela o
percurso dos eventos: o salto de Sydney, a trajetória da queda, o corpo em queda,
o momento do tiro, a continuidade da queda, e quando o corpo dele cai sobre a tela
de proteção que havia sido instalada dias antes. A ironia está na fala do narrador,
que diz que ele teria sobrevivido à queda devido à rede, mas morreu por causa do
tiro que levou. Visto que o tiro foi dado por sua mãe numa arma que ele carregou,
ela se torna sua assassina e ele cúmplice de seu próprio assassinato.
Com isso, termina a introdução, com uma frase que arremata todo o propósito dela:
“Estas coisas estranhas acontecem o tempo todo”. Para em seguida iniciarem os
créditos para o filme principal. Terminaram os seis minutos da introdução.
340
Conclusão
Este trabalho tinha como pergunta-problema o seguinte: “De que forma a mise-en-
scène foi utilizada na introdução de 'Magnólia' para expor o tema principal do filme
e estabelecer seu tom?".
Com o que foi descrito na análise dos três contos que compõem os seis minutos da
introdução do filme, foi possível ver que há um cuidado na organização dos
elementos constitutivos das cenas apresentadas. Não apenas os enquadramentos
e movimentações de câmera, mas principalmente a articulação entre os planos, que
é aquilo que é conhecido como a montagem do filme. A forma de contar estas
histórias já está presente no roteiro do filme. Na leitura de Anderson (1998) vê-se
várias vezes a indicação dos movimentos de câmera que seriam utilizados na
filmagem. Encontra-se cenas no roteiro como confirmação deste procedimento142.
A descrição passo a passo das imagens e sons utilizados por Paul Thomas
Anderson demonstram seu domínio da mise-en-scène. Isso não é apenas na
filmagem, mas também passa, como explicado, pelo planejamento da estruturação
que se dá no roteiro.
Com a análise realizada, percebe-se o papel fundamental do narrador para a
condução do espectador para o tema: ironia e coincidências. Sem esta presença, o
apontamento da conexão entre cada um dos eventos não seria tão evidenciado.
Referências Bibliográficas
341
COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro: Teoria e prática. São Paulo: Summus,
2009.
MONCLAR, Jorge. O diretor de fotografia. Rio de Janeiro: Solutions Comunicações,
1999.
OLIVEIRA JUNIOR, Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: Do clássico ao cinema
de fluxo. Campinas: Papirus, 2013.
342
MÚLTIPLAS LINGUAGENS: UMA ANÁLISE DA ESTÉTICA PUBLICITÁRIA
Introdução
143
Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.
Coordenadora de Pesquisa e Extensão do CCL da Universidade Presbiteriana Mackenzie
144
Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo; contratado do ITESP , Brasil
145
* Para o leitor interessado em uma discussão mais aprofundada sobre o tema Indústria Cultural remetemos
o leitor aos textos de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. A Indústria Cultural- O Iluminismo como
mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César Bloom. Rio de Janeiro: Zahar,
1985 [1969].
343
mídia. Uma obra com mais de 500 anos, executada em pleno período do
Renascimento (1300-1700). Muitos podem pensar: “é uma obra de arte, sem
dúvida”. Mas, quando são consideradas as obras que estão expostas em acervos
de museus contemporâneos em que se fazem presentes pedaços de madeira com
alguns pregos transpassados, e logo abaixo aparece uma etiqueta com o titulo
“Marina”, questiona-se: será possível imaginar o mar sendo representado nesse
pedaço de madeira? Para alguns sim, para outros será difícil ver a arte expressa
nesse objeto.
O conceito de “obra de arte” tem sido um assunto polêmico, o qual tem gerado muita
discussão. No caso citado (obra intitulada: Marina), pode-se afirmar que é arte
abstrata ou outros especialistas diriam que é arte conceitual. Alguns ainda podem
alegar que para ser compreendida dependeria da imaginação do sujeito que vê.
Assim, a palavra ARTE vai assumindo diversos significados e, com o passar do
tempo, diversas formas concretas de expressão.
Segundo Pareyson (1984, p. 12), “[...] a arte é uma linguagem que se reinventa
constantemente para construir, conhecer e expressar questões dos seres
humanos”, ou podemos aferir que “[...] arte é perceber o mundo por meio da
sensibilidade” (FERRARI, 2013, p.20). Assim, “[...] toda arte é condicionada pelo seu
tempo e representa a humanidade em consonância com as ideias e aspirações, as
necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular” (FISCHER,
1980, p.17).
As obras de arte são contextualizadas, isto é, apresentam quatro características
essenciais para a compreensão de sua presença no mundo: a época, o lugar, o
artista e a própria obra: a produção. É nesse sentido que a publicidade observa as
tendências da arte, da moda, do clássico/erudito e da arte popular. São nas múltiplas
linguagens, e também, no uso da intertextualidade, que se apoia a estética 146
publicitária.
146
* Estética do grego aisthesis e significa "faculdade de sentir", "compreensão pelos sentidos", "percepção
totalizante". A Estética consiste num ramo da filosofia que se ocupa das questões relacionadas à arte, como o
belo, o feio, o gosto, o sublime e também estuda as teorias da criação e da percepção artística. Nesse artigo o
termo estética será utilizada no seu sentido lato, isto é, para designar o fazer publicitário e sua pratica criativa
nas inter-relações com as diferentes linguagens.
344
Diante de um job, as duplas de criação são movidas pelo
espírito bricoleur precisamente na hora do brainstorm – prática
em que o redator e o diretor de arte lançam ideias livremente
para depois aperfeiçoá-las e encaixá-las nos moldes do que
lhes foi solicitado. Para isso, é vital que tenham vasto
background, buscando no próprio estoque de signos de sua
comunidade a matéria-prima para chegar à solução mais
adequada ao problema de comunicação do anunciante. A
rotina dos criativos exige, pois, que aperfeiçoem a habilidade
de combinar os variados discursos por meio do jogo
intertextual. (CARRASCOZA, 2008, p.23)
Discurso Publicitário
147
* O termo arquétipo tal qual foi cunhado e desenvolvido por Jung pode ser entendido aqui, como
possibilidades de um completo sistema de funções psíquicas que é acionado quando imagens são evocadas na
psique de maneira coletiva.
345
Segundo Carvalho, a publicidade não tem autoridade para ordenar, então o
emissor utiliza a “manipulação disfarçada”, e sobre isso afirma:
346
Nos exemplos que seguem observa-se que uma das obras mais notáveis e
conhecida do pintor Leonardo da Vinci (a Mona Lisa também conhecida como A
Gioconda ou ainda Mona Lisa del Giocondo). É uma obra de arte de um período
artístico chamado “Renascimento”, e muito utilizada em propagandas. Esse quadro
que atrai os olhares e admiração de milhares de pessoas aparece reutilizado pela
marca conhecida mundialmente, a Coca Cola. A personagem retratada segura uma
latinha de refrigerante, como se oferecesse credibilidade ao consumidor, já que na
época em que foi projetada a pintura, essa bebida nem existia ainda. Em outra
ocasião, a mesma obra serviu com o humor, para a promoção do amaciante da
marca Bom Bril. Um ator se veste como ela e a representa perto de muitos produtos
de limpeza. Como o consumidor interpreta uma cena dessas? Seria uma referência
às mulheres, será que a Mona Lisa usaria tais produtos? Ou será pelo humor que a
venda será feita (uma vez que é um homem que está vestido de mulher)? Bem, seja
qual for à interpretação, o fato é que uma obra de arte consagrada foi usada para
vender produtos de limpeza.
O processo de produção para o artista pode ser lento e pode demorar anos,
considerando que sua criatividade e sua técnica produzem a sua obra. Na
publicidade é preciso cumprir prazos e os profissionais da criação seguem
cronogramas, pois há um cliente esperando. Uma obra de arte que aparece em um
anúncio já está pronta e, nesse momento, seu conteúdo fica ligado ao produto que
está sendo vendido. A criatividade do anúncio, nesse caso, está na reinterpretação
da obra clássica.
347
Nos próximos exemplos, pode-se observar a apropriação dos contos de fada,
“Branca de Neve”, “Chapeuzinho vermelho” e “Cinderela”, as quais aparecem com
uma conotação jovem ou adulta na campanha da marca O Boticário. Os textos
remetem a outro (aos contos clássicos infantis) a fim de manter o sentido da
mensagem.
348
Múltiplas linguagens
349
mítico-poética, ou seja, para se compreender a estética re-atualiza-se a
antropofagia enquanto metáfora, para explicar a estética publicitária.
Há que se trazer à memória que a antropofagia era uma prática ritualística
ancestral das sociedades tribais da América e que consistia em comer parte da
carne do outro, na crença de que se se incorporava deste, sua força, diferente do
canibalismo (hábito de comer carne humana). Posteriormente em 1922, os artistas
modernistas recorreram a essa expressão para dar sentido do que se tornou
conhecido como “busca por uma identidade brasileira” e nessa ocasião o resgate
da metáfora antropofágica, voltou com força, ou seja, no Brasil, “come-se o que é
do outro”, referindo-se a apropriação de outras culturas. Tornou-se conhecida a
frase de Oswaldo de Andrade: “só me interessa o que não é meu”. Na publicidade
essa metáfora é bem prática quando se deseja compreender sua estética, afinal, ela
“come”, ou se apropria de outras linguagens e discursos, pegando para si a força
comunicativa da mensagem.
Figura 7 –Autorretrato de Tarsila do Amaral e Campanha O Boticário, por ocasião do dia internacional da mulher.
Disponível em: http://artenapp.blogspot.com.br/ Acesso em: 23/08/2015
350
A mensagem publicitária faz amplo uso da dimensão estética quando intenta
aguçar os sentidos (marketing sensorial) e estimular a fantasia do consumidor com
o objetivo de desencadear sentimentos e cadeias de significações.
O discurso publicitário se estrutura por mensagens cuja dimensão estética se
estrutura pela lógica da sedução, que atualmente deixa de ser somente do belo,
mas também do feio, do desagradável ou daquilo que choca. Como exemplo, citam-
se dois exemplos de anúncios: primeiramente a campanha para grife italiana de
moda Nolita. O objetivo da campanha veiculada em 2007, durante a semana de
moda de Milão era chamar a atenção para distúrbios alimentares, o que de fato
aconteceu, pela estética desfigurada da modelo que pousa.
Figura 8: Foto por Oliviero Toscani da jovem Isabelle Caro. Disponível em:
https://pensandoodiferente.files.wordpress.com/2010/05/ana_2.jpg
Acesso em: 23/08/2015
351
Figura 9: A peça comemorativa dos 30 anos do anuário do Clube dos criativos de São Paulo /CCSP. Disponível em:
http://www.clubedecriacao.com.br/novo/anuario-do-ccsp-ha-30-anos-faz-toda-diferenca-ganhar-1/ acesso em: 23/08/2015
352
(princípio constitutivo da linguagem). O que cabe é a provocação e o desejo de
ampliar a pesquisa da trama do texto publicitário, que por ora se limita a apontar
para uma estética que se faz tecida de elementos de outros textos, revelando nesse
cruzamento as posições ideológicas de seu enunciador.
A estética, por isso, pode ser tecida com capacidade de sugerir significados
novos e evocar outros do passado tendo diversas opções de percursos de sentidos.
Considerações finais
Referências Bibliográficas
ADORNO, T. W. , HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o esclarecimento como
mistificação das massas. In: A Dialética do Esclarecimento. Tradução de César
Bloom. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1969].
353
CARRASCOZA, João Anzanello. Redação publicitária – Estudos sobre a retórica do
consumo. São Paulo: Futura, 2003.
CARVALHO, Nelly De. Publicidade : a linguagem da sedução. 3. ed. São Paulo:
Ática, 2001.
FERRARI, Solange dos Santos Utuari. Por toda parte. São Paulo: FTD, 2013
FIORIN, José Luiz. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAITH, Beth (Org.).
Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 161-193.
FISCHER,Ernst. A necessidade da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
LAGNEAU, Gérard. A caça ao tesouro. Prolegômenos a uma análise racional da
linguagem publicitária. In: Diversos. Os mitos da publicidade/ Joachim Marcus-
Steiff; tradução de Hilton Ferreira Japiassu Petropolis : Vozes, 1974.
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1984
354
A PERCEPÇÃO DE PRODUTORES E OUVINTES SOBRE A IMPORTÂNCIA DO
PROGRAMA RADIOFÔNICO NA PONTA DA LÍNGUA – TUDO O QUE VOCÊ JÁ
SABIA, MAS ACABOU DE ESQUECER148 PARA PROMOÇÃO DO USO
ADEQUADO DA LÍNGUA PORTUGUESA
INTRODUÇÃO
148Neste trabalho usaremos a sigla NPL toda vez que nos referirmos ao nome do programa Na Ponta da Língua
– Tudo o que você já sabia, mas acabou de esquecer.
149Mestra em Línguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora dos
projetos de Extensão Na Ponta da Língua e Leitura à Flor da Pele da Univali.
150Mestra em Língua pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - SP. Coordenadora do Curso de Letras e do
Projeto de Extensão PROLER da Univali.
151Acadêmica da 6ª fase do Curso de Publicidade e Propaganda da Univali/Bolsista do
Projeto de Extensão NPL.
355
Portuguesa, além de informações sobre Literatura e Cultura. A motivação para a
realização desse trabalho dá-se pelo fato de existir parcos estudos sobre
indicadores avaliativos em relação ao impacto do programa sobre seus produtores
e ouvintes no que tange ao conhecimento e uso adequado da língua portuguesa.
Assim, este artigo tem por objetivo avaliar a percepção de produtores e
ouvintes sobre a importância do programa NPL para promoção do uso adequado da
Língua Portuguesa. O presente trabalho possibilita uma maior compreensão do
processo de produção do programa; sinaliza de forma lúcida conceitos que
permeiam a produção do programa; reconhece a importância do Rádio como meio
de comunicação mais abrangente em termos de público atingido; e promove o
diálogo entre ensino, pesquisa e extensão no ambiente universitário.
O programa NPL pretende disseminar o uso adequado da Língua
Portuguesa, desmistificando a forma tradicional de circunscrever o ensino de
português em um formato normativo-prescritivista, onde regras e conceitos são
apresentados de forma descontextualizada. Faz-se mister encaminhar os estudos
da língua em uma perspectiva funcional, situacional e comunicativa, privilegiando o
funcionamento da língua em situações reais de uso, para que sua complexidade
possa ser entendida de forma reflexiva, promovendo a discussão e compreensão
dos fatos da língua de forma menos artificial.
Na sequência, apresenta-se a base teórica sobre a qual se apoiou o presente
estudo de caso, os aspectos metodológicos da pesquisa, a análise dos resultados
e as considerações finais.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
356
pensamento, significa admitir que o ato de perceber está vinculado ao ato de
conhecer. Isso pode ser complementado com Morin (2000, p. 20 apud Rodrigues at
al, 2012, p. 99), quando afirma que “[...] todas as percepções são, ao mesmo tempo,
traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos ou sinais captados e
codificados pelos sentidos”. Cada ser humano reage e responde de maneira
diferente às relações interpessoais, indivíduos atuantes em um mesmo grupo social
podem expressar atitudes e pensamentos distintos, sendo sua percepção
influenciada pela cultura, história, religião, classe social e outros fatores que
contribuem diretamente no processo de construção do comportamento. Assim,
perceber é interpretar, de diferentes modos, o comportamento do outro de tal forma
que seja possível construir informações sobre o que se vê e se sente
(FAGGIONATO, 2009 apud RODRIGUES at al, 2012).
É por este viés que passamos a interpretar e a desenvolver nossa percepção
sobre linguagem. Entendemos a linguagem como uma atividade social e interativa.
Ao ser compreendida assim, assume-se que ela não é homogênea, mas
heterogênea, pois contém um conjunto de ações, representações, valores e atitudes
construídas em um contexto sociohistórico e interativo. A linguagem, numa visão
interacionista, deve ser entendida como forma de ação, sendo percebida como
atividade e não como estrutura apenas (FARACO, 2005 apud MARCUSCHI, 2008).
Seu uso e funcionamento se dá em “textos e discursos produzidos e recebidos em
situações enunciativas ligadas a domínios discursivos da vida cotidiana e realizados
em gêneros que circulam na sociedade” (MARCUSCHI, 2008, P.22). Desta forma,
“não existe um uso significativo da língua fora das inter-relações pessoais e sociais
situadas” (MARCUSCHI, 2008, p.23), isso quer dizer que são sujeitos de verdade
que produzem textos de verdade, que se relacionam e visam a algum objetivo
comum. A língua não é um organismo desencarnado, descolado da realidade, os
textos, as palavras tomam forma e sentido em uma linguagem que representa a
experiência de sujeitos históricos de carne e osso.
Enquanto fenômeno empírico, a língua não é um simples código autônomo,
um sistema abstrato, ela é variada e variável, interativa, cognitiva e situada. Ao ser
vista como tal, assume-se que é possível observar o que fazem os falantes
357
com/na/da língua, ou seja, observar a língua em seu funcionamento a partir de suas
condições de produção e recepção. Afirmam Bakhtin/Voloshinov (1992, p. 110) que
“a língua vive e evolui historicamente na comunicação concreta, não no sistema
linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”.
Essa forma de conceber língua conduz a um ensino funcional e sociointerativo da
linguagem.
Embora se decida por uma noção de língua como um conjunto de práticas
sociocognitivas e discursivas, não existe a possibilidade de trabalhá-la sem
considerar o sistema, se alguém é falante de uma língua, ele domina as regras
dessa língua. A gramática tem uma função sociocognitiva relevante, desde que
entendida como instrumento que permite uma melhor comunicação. “O falante de
uma língua deve fazer-se entender e não explicar o que está fazendo com a língua”,
afirma Marcuschi (2008, p.57). A gramática não tem uma finalidade em si mesma,
ela existe para permitir a comunicação entre seus falantes.
Nesse contexto, mediar o conhecimento da língua via rádio educativa, se
mostra muito importante para o processo de formação do produtor/ouvinte. Uma
rádio dessa natureza também pode servir como poderoso projeto de letramento
assim como um instrumento de interação sociodiscursiva no ambiente acadêmico.
Baltar (2012, p. 18), afirma que os programas de uma rádio escolar, por exemplo,
podem estimular o desenvolvimento de múltiplas competências, principalmente no
que tange à competência discursiva de estudantes e professores, bem como pode
servir como “dispositivo de ensinagem152 dos gêneros textuais orais e escritos”.
Sabe-se que a família, a igreja, a escola e a universidade são importantes
instituições formadoras de opinião, mas deve-se considerar que a mídia exerce
grande influência na forma de agir das pessoas que vivem em sociedade.
Constatado o seu potencial, a presença do aparato midiático em instituições de
ensino não pode servir como mero reprodutor de forças hegemônicas tradicionais,
pelo contrário, seu papel deve propiciar a leitura crítica da sociedade, via leitura da
mídia em si para que professores e alunos “possam compreender os discursos
6 Baltar (2012) usa o termo “ensinagem” a fim de ressaltar uma posição contrária à dicotomia ensino-
aprendizagem.
358
forjados (atenuados ou destacados) nessa esfera social de forma científica e
sistematizada” (BALTAR, 2010, p. 218).
Freire e Macedo (2011) enfatizam a existência de uma relação dialética entre
as pessoas através da linguagem e da ação transformadora. A linguagem não é
mera habilidade técnica, mas instrumento de liberdade. Inerente ao projeto político,
afirma o direito e responsabilidade que os indivíduos têm não só de ler, mas de
transformar suas experiências pessoais, construindo uma relação mais ampla com
a sociedade.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
No que se refere a seus objetivos, esse estudo se classifica como descritivo.
Quanto aos procedimentos técnicos, tratar-se de um estudo de caso, estratégia
utilizada “quando o pesquisador tem pouco controle sobre os eventos e quando o
foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da
vida real” (YIN, 2001, p.19). Do ponto de vista da forma de abordagem do problema,
essa pesquisa classifica-se como quantitativa.
O Projeto de Extensão NPL nasceu em 2002, da vontade de um grupo de
acadêmicos do curso de Publicidade e Propaganda em produzir conteúdo educativo
divulgado por meio de programetes pela Rádio Educativa Univali FM. Ao longo
destes 13 anos, foram produzidos 2.300 programetes e mais de 14.500 veiculações
foram realizadas pela emissora. Em 2015, tornou-se um programa guarda-chuva,
ampliando a abrangência de suas ações a partir da incorporação de novos projetos
desenvolvidos pelo curso de Publicidade e Propaganda.
Nosso objeto de estudo são os programetes com um minuto e quinze
segundos de duração (em média). Para definição de programetes, recorreu-se à
proposta de Reis (2008) que afirma que os mesmos podem ser denominados
microprogramas. Afirma ainda que “é um formato de anúncio que se veicula ao vivo
ou gravado e que se integra à programação da emissora como um espaço
autônomo” (REIS, 2008, p.53). São veiculados cinco programas inéditos,
intercaladamente, de segunda a sexta, quatro vezes ao dia, durante a programação
da Rádio Educativa Univali FM. Os Programas atingem não somente a comunidade
359
acadêmica, mas todos os ouvintes da Rádio Univali FM em diversos períodos do
dia.
Estes programetes são criados e produzidos pelos acadêmicos do curso de
Publicidade e Propaganda, acompanhados pela orientação de docentes do curso.
Os acadêmicos realizam a pesquisa bibliográfica e estabelecem relação com
situações cotidianas. Posteriormente, produzem o roteiro, escolhem os efeitos
sonoros especiais e os BGs (back grounds – músicas de fundo) de acordo com a
temática abordada e fazem a gravação. Finalmente é enviada uma planilha à Rádio
Educativa Univali em que constam os programetes que serão veiculados no período
de 30 dias. Os elementos componentes do roteiro estão demonstrados na Figura 1.
Figura 1 – Roteiro do programete do Programa Na Ponta da Língua.
Na Ponta da Língua N° 1360 Data Gravação:
Assunto: Quero-a/ Quero-lhe Tempo: Parte 1 – Elementos referenciais
VINHETA DE ABERTURA 20”
EFEITO: GALO CANTANDO
Parte 2 – Vinheta de
abertura
EFEITO: TIRO DE CANHÃO Parte 3 – Identificação de efeitos
especiais e background (música de
ENTRA BG VINHETA
TEXTO: Na Ponta da Língua fundo)
Tudo o que você já sabia, mas acabou de esquecer.
CORTA BG VINHETA
Parte 4 – Situação do cotidiano
SITUAÇÃO:
Efeito (Barulho de ônibus passando)
LOC1: Turquinho! Rápido! Corra para não perder o ônibus!
LOC2: Sim! Sim Juquinha! Vou correndo atrás do ônibus até chegar em casa... Assim
Turquinha economiza o dinhero da passagem e babai verá que quero-o bem ou quero-
lhe bem...Agora Turquinha se confundiu. Parte 5 – Pergunta e resposta
Entra BG:
PERGUNTA: Você sabe qual a diferença entre dizer quero-a muito
e quero-lhe muito?
RESPOSTA: Pode parecer a mesma coisa, mas não é. Quando você deseja alguém, por
exemplo, sua namorada, deve utilizar a expressão quero-a muito. Este
verbo aqui assume o significado de desejar. Já, quando a relação for de
estima, de respeito, querendo bem a alguém, você deve utilizar quero-lhe Parte 4 – Situação do
muito, e não quero-a. Quando for escrever um cartão para sua mãe,
portanto, escreva quero-lhe muito bem. cotidiano (cont.)
LOC2: Babai Salim! Babai Salim!
LOC3: Fala meu filho Turquinha! O que foi?
LOC2: Babai Salim vai ficar orgulhoso! Vim correndo atrás do ônibus – da escola até
nossa casa - para economizar o dinhero da passagem...
LOC3: Ehhh! Garoto burro!
LOC2: Burro por que babai, Salim?
LOC3: Deveria ter vindo correndo atrás de um taxi... É mais caro! Então você teria
economizado ainda mais...
Parte 6 – Vinheta de
CORTA BG encerramento
VINHETA DE ENCERRAMENTO
ENTRA BG VINHETA
TEXTO: Na Ponta da Língua
Uma iniciativa do curso de Publicidade e Propaganda da Univali.
Realização: CECIESA – Comunicação Turismo e Lazer e Rádio Educativa Univali FM.
Parte 7- Fonte de
CORTA BG
EFEITO: GALO CANTANDO CAPENGA: pesquisa
Fonte: NOGUEIRA, Sérgio. Língua Viva. São Paulo: Rocco, 1999.
360
Fonte: TRAINOTTI; LONGO (2011); Arquivo do
361
Análise dos resultados
362
Além disso, destaca-se que a metodologia do programa, unindo a teoria da
Língua Portuguesa com a prática vivenciada pelos personagens permitiu que o
produtor associasse a nova informação a uma situação real de uso da língua,
corroborando com o pensamento de Marcuschi (2008) de que língua não é um
organismo desencarnado, descolado da realidade.
Ao verificar o perfil dos ouvintes da Rádio Educativa Univali FM por meio das
respostas obtidas no questionário observa-se que os indicadores referentes às
temáticas situam-se em um patamar superior a 89,28%, o que demonstra que o
programa NPL é eficaz no aprendizado da língua portuguesa.
363
A inclusão de situações-problema permite que produtores (item 5/78,4%) e
ouvintes (item 12/88,2%) percebam que linguagem e realidade se fundem, num
processo sociointerativo em diferentes contextos de comunicação. Essa percepção
reforça o pensamento de Marcuschi (2008) de que “não existe um uso significativo
da língua fora das inter-relações pessoais e sociais situadas”.
Em relação à utilização do rádio como veículo para a difusão do uso adequado
da língua portuguesa, produtores (83,8%) e ouvintes (84,3%) concordam tratar-se
de um bom veículo mesmo com o surgimento das novas tecnologias, uma vez que
o rádio é um meio de comunicação que atinge uma maior parcela da população.
Considerações finais
364
Abstract: From the last 13 years(2002-2015) the Educational Radio Univali FM
(Itajaí, SC) brings in its program schedule, the program Na Ponta da Língua – Tudo
o que você já sabia, mas acabou de esquecer. Those programs have a didactic and
pedagogical character that aim to spread, in a fun and dynamic way, informations
about the proper use of the Portuguese language, Literature and Culture. The main
goal of this research is to evaluate the perception of producers and listeners about
the importance of the NPL program to promote the proper use of the Portuguese
language. Marcuschi (2008), Baltar (2012), Bakhtin (1992), Freire (2011) and
Rodrigues (2012) were used as a theoretical support to analyze the linguistic
approach, studies on perception and the teaching-learning process. Regarding the
technical and scientific procedures, this research was developed through a case
study with a quantitative character. Preliminary results of the questionnaire indicate
the relevance of the NPL for producers and listeners as a disseminator program for
the proper use of the Portuguese language, understanding that speech is built upon
the understanding of a sociodiscursive context.
REFERÊNCIAS
BALTAR, Marcos. Rádio escolar uma experiência de letramento midiático. São
Paulo: Cortez, 2012.
BALTAR, Marcos. Mídia, escola, agentes de letramento e gêneros textuais. In:
SERRANI, Silvana (org.). Letramento, discurso e trabalho docente. Vinhedo: Editora
Horizonte, 2010, p.211-233.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6.ed., São Paulo: Hucitec,
1992.
FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura de mundo, leitura da
palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção Textual, análise de gêneros e compreensão.
São Paulo: Parábola, 2008.
365
O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR DE LUIS ANTÔNIO VERNEY E SUA
INFLUÊNCIA NA REFORMA POMBALINA DO ENSINO
Introdução
153
Doutoranda PUC-SP
366
O Marquês de Pombal no governo português e seu envolvimento com a
questão educacional
367
Évora, era uma instituição jesuítica. No Brasil, os colégios jesuíticos eram
as principais fontes para a educação secundária. E no que restava do
império de Portugal na Ásia os jesuítas haviam sido a força dominante
desde os primórdios da expansão portuguesa no Oriente. (MAXWELL,
1996, 13)
A única congregação católica que obteve êxito em ingerir, até então, novas
ideias na pedagogia portuguesa foi a Oratoriana – grandes propagadores das
ciências naturais que enxertaram, em Portugal, princípios de Bacon, Descartes,
Gassendi, Locke e Antonio Genovesi. Os oratorianos tornaram conhecidos esses
novos ideais, que foram, contudo, oficialmente, proibidos – por meio do edital de 07
de maio de 1746, expedido pelo reitor do Colégio das Artes – de serem utilizados
nas lições e cobrados em exames.
Luís Antônio Verney (1713-1792), oratoriano, provocou um dos maiores
conflitos entre os jesuítas e os oratorianos em 1746. Utilizando-se do pseudônimo
Pe. Barbadinho, Verney escreveu dezesseis cartas – intituladas Verdadeiro Método
de Estudar para ser útil à República e à Igreja –, criticando o método jesuítico de
ensino e denunciando o estado da instrução pública até então. Objetivamente, na
educação, compreende as seguintes áreas: ensino de português, latim, grego e
hebraico, estudos de retórica, poesia, filosofia, matemática, medicina e teologia.
Em relação ao ensino de língua portuguesa, especificamente, Verney propõe:
i) a definição do que é a gramática e o importante papel em estudar
sistematicamente a sua língua; ii) priorizar o estudo pela gramática de língua
materna e não pela gramática latina – como exigia o Ratio Studiorum; iii) adotar uma
gramática curta e clara – partindo do princípio de que a gramática deve ser ensinada
aos alunos de pouca idade e, por isso, será mais fácil e objetiva a compreensão; iv)
não se deve ensinar com mau modo ou pancadas – hábito exercido até então –
mas, explicar pacientemente, a partir do próprio discurso do professor, ou, por meio
de exemplos simples; v) ensinar ortografia e leitura; vi) novo método de ensino da
gramática latina – estuda-la por intermédio da língua portuguesa e, para melhor
assimilação do latim, tornar obrigatório o estudo de história, geografia, cronologia e
antiguidade greco-romana; vii) defende o valor da retórica e da oratória como coisas
368
usuais, que façam parte do cotidiano dos alunos – pois, elas eram vistas na escola
em latim e direcionadas às orações; e, ainda:
rev[er] os estudos maiores da física, medicina, metafísica, ética, teologia,
moral e jurisprudência. A última carta, décima sexta, é uma sequência de
planos de estudos: elementares, gramática, latinidade, retórica, filosofia,
medicina, direito, teologia, terminando com um apêndice “sobre o estudo
das mulheres”. (FÁVERO, 1996, 75).
Azevedo (1922, pp. 196-7) relata que, em 1758, após o atentado que sucedeu
contra o rei D. José I, havia rumores populares de que os culpados seriam os
Távoras e de que os jesuítas seriam os responsáveis em fomentar tal ato. Após
investigação feita por Pombal, os Távoras – uma das famílias mais ilustres de
Portugal – foram presos, torturados e enforcados em praça pública. Aos jesuítas,
exigências foram feitas: i) apreensão dos bens; ii) recomendação ao bispo de que
os padres explicassem qual a participação deles no atentado de 3 de setembro de
1758 ao Rei; iii) dissolução das comunidades, separando os padres e levando os
mais estudados para lecionar na África – decisão essa que nunca chegou a ser
cumprida, pois os padres não tinham meios para manter-se, então, eram
encaminhados ao Pontífice, a fim de que este lhes garantisse o sustento; iv)
encarceramento daqueles que o governo julgasse merecedores; v) substituição das
escolas da Companhia por outras nas mesmas localidades – essa última
determinação, seria o pontapé inicial para a expulsão total dos jesuítas:
Pombal usou a tentativa de assassinato de D. José I como um meio para
esmagar tanto a oposição aristocrática como os jesuítas em Portugal.
Também utilizou a ocasião para atingir os pequenos comerciantes, que ele
acusava de conspirar com os jesuítas contra seus planos, abolindo suas
associações e, por conseguinte, sua representação. (MAXWELL, 1997,
92).
369
de se repetir, por isso a concessão nos termos pedidos não tinha razão de ser.”, e
escrevia cartas ao Rei pedindo penas mais leves àqueles que fossem julgados e
condenados.
O verdadeiro empenho do Papa Clemente XIII em livrar os jesuítas de penas
tão duras e radicais não foi considerado pelo governo português, o que levou o
Pontífice a escrever uma carta maldizendo o Rei e o ministro e a mão ferrenha com
a qual tratavam os jesuítas. Essa atitude gerou grande repercussão:
E a proposito, exclamava irritado que o geral dos jesuitas era o verdadeiro
Papa, e Clemente XIII um imbecil, que devia ser deposto, por tantos abusos
que em seu nome deixava commetter. O Papa, vendo que o adversario se
não dobrava, escrevia afinal a D. José e ao ministro, no amavioso tom ritual
da Santa Sé, exorando a reconciliação. Mas um e outro responderam de
modo que toda a esperança fenecia. Sob as formulas da aparente
veneração, a espistola do Rei era aggressiva, a do ministro ironica, e em
ambas resumbrava o patente desapreço á tentativa do Pontifice.
(AZEVEDO, 1922, 287).
O autor
Luis Antônio Verney nasceu em Lisboa (1713), foi filósofo, teólogo, padre,
professor e escritor (mestre nas artes e doutor em teologia e jurisprudência) e era
considerado um estrangeirado, pois, mudou-se para Roma em 1736 com o objetivo
370
de dar continuidade aos estudos iniciados em Portugal (Escola de Santo Antão
pertencente à Companhia de Jesus; Congregação do Oratório e Universidade de
Évora) e inteirar-se nas novas tendências culturais que frutificavam nesse período
em toda a Europa.
Como teve, em sua formação de base, educação pautada primeiramente nas
doutrinas jesuíticas e, posteriormente, na congregação Oratoriana, Verney
acreditava que o ensino jesuítico, apesar de estável, passava por um momento de
defasagem (pois era baseado no Ratio Studiorum, como já expomos) e precisava
de uma renovação com a introdução das ciências modernas em campo português,
como faziam os Oratorianos.
Visando uma modernização no ensino português, o rei D. João V propôs a
Verney que elaborasse uma reforma educacional pautada no espírito progressista
das novas tendências seguidas por países como França e Alemanha (pois se
interessavam na evolução das ideias pedagógicas). Verney atendeu prontamente
ao pedido do rei e, em 1746, redigiu dezesseis cartas, com o pseudônimo de padre
Barbadinho, direcionadas a um doutor da Universidade de Coimbra.
A obra
I – Língua Portuguesa
II – Gramática Latina
III – Latinidade
371
IV – Grego e Hebraico
V e VI – Retórica e Filosofia
VII – Poesia
VIII – Lógica
IX – Metafísica
X – Física
XI – Ética
XII – Medicina
XIII – Direito Civil
XIV – Teologia
XV – Direito Canônico
XVI – Regulamentação Geral dos Estudos
2.2.1.1. Carta I – Língua Portuguesa
372
Retirar palavras repetidas que não Ex.: Essa → Esa (diferentemente de
fazem distinção do som ferrovia → ferrovia)
Retirar a letra “H” que inicia palavras, Ex.: Homem → omem
pois não é pronunciada
Destacar as desinências para que Ex.: disséramos → dissera-mos
fiquem claros número e pessoa do amaríamos → amaria-mos
verbo
Na colocação pronominal, propôs a Ex.: fazê-la → fazèla
substituição da separação pela Obrigá-los-ia → obrigalosîa
acentuação
Trocar a letra “e” pela “i” a depender da Ex.: Entregar → intregar
pronúncia da palavra Entender → intender
Transformar algumas locuções em Ex.: contanto que → contantoque
uma palavra, por meio da junção nam obstante que →
namobstanteque
A favor da acentuação para diferenciar Ex.: serîa (verbo) → seria (adjetivo)
palavras homógrafas
373
circulava como novidade na Europa – em Portugal, particularmente, inspirado pelo
Verdadeiro Método de Estudar, de Verney. Esse alvará norteou todo o percurso
educacional e pedagógico seguido por professores e alunos tanto de Portugal,
quanto das colônias.
É notável que o motivo da criação das Aulas Régias – que pretendiam
secularizar o ensino –, instituídas em 1759, em Portugal, foi a lacuna deixada após
a expulsão dos jesuítas e a extinção das escolas administradas pela Companhia –
já que eles, praticamente, mantinham o monopólio da educação. O governo
precisava, então, dessas novas diretrizes para mostrar à população que a educação
passara por uma reformulação.
Nesse documento, Pombal sistematizou uma educação direcionada aos
novos interesses políticos e econômicos de Portugal, mas mantendo,
constantemente, a atenção voltada em não ferir os interesses da fé religiosa – a
mudança era focada na renovação cultural que dominava as novas tendências
educacionais europeias:
374
eclesiásticos –para o Estado, que agissem, a partir de então, com ideias
“iluminadas”:
375
para retórica, ou seja, o professor deveria aproximar essa disciplina não somente
aos atos pertencentes às pregações, mas também ao cotidiano do jovem aluno.
O alvará ainda instituiu: i) a criação do cargo de diretor geral dos estudos; ii)
a obrigatoriedade de que fossem feitas avaliações para o cargo de professor; iii) a
proibição do ensino público ou particular sem licença do diretor geral dos estudos;
iv) extensão do direito, a todos os professores, dos “privilégios de nobres,
incorporados em direito comum e especialmente no Código, Título – De
Professoribus et Medicis”. (VERNEY, 1746 apud FÁVERO, 1996, pp. 77).
Logo após a publicação do Alvará, em 09 de julho, D. Tomaz de Almeida foi
nomeado Diretor Geral dos Estudos. Essa nova função o levou a publicar os editais
para o exame obrigatório ao ingresso dos alunos à escola; a redigir a carta de
autorização aos professores que se candidatassem ao cargo; e a fazer o
levantamento das escolas, de acordo com o número de alunos, para determinar o
número de professores em cada estado de Portugal – era obrigação dele nomear
todos os professores que assumiriam o cargo a partir de então.
Os professores eram sempre vigiados, a fim de que não houvesse uma
suposta transgressão às ordens do novo programa educacional que estava
começando a ser desenvolvido. Os professores que fossem flagrados ensinando
pelo método antigo – por meio da Arte do Pe. Alvares – eram presos e obrigados a
assinar um documento se comprometendo a não mais assumir a função de
professor régio.
No Brasil, a determinação vinda de Portugal, por meio das instruções régias,
era de que os jesuítas permanecessem na colônia – não com fins educativos, mas
contribuindo com a educação religiosa dos índios. Dessa maneira, o número de
jesuítas em cada colégio seria bastante reduzido e os que não estivessem
vinculados a essa função voltariam para Portugal – os jesuítas, entretanto, não
aceitavam essa determinação e recusavam-se a deixar as instituições educacionais.
Além disso, para não perderem territórios utilizados por eles, até então, os
jesuítas demonstraram resistência ao Tratado de Madrid e, contrariando a
determinação do Rei, continuavam utilizando a mão de obra indígena, além de
condenar a emancipação indígena que havia sido determinada por Pombal. Diante
376
dessa resistência – que confrontava diretamente os interesses da Coroa –, D. José
I determinou a expulsão imediata de todos os jesuítas do Reino e de todas as
colônias lusitanas.
As Aulas Régias no Brasil funcionaram como em Portugal. D. Tomaz de
Almeida, ainda em 1759, exigiu a realização de concursos para a ocupação das
cadeiras de latim e retórica na Bahia. Em Pernambuco, entretanto, não havia
indicação de pessoas preparadas para assumirem os cargos, o que levou o Diretor
Geral a enviar dois professores portugueses, o que geraria vários incidentes – as
pessoas não os receberam de maneira cordial, pois afirmavam que eles eram
arrogantes. Além disso, rejeitavam o novo método de ensino e o material utilizado
para as Aulas Régias:
377
bibliotecas construídas e organizadas pelos jesuítas e proibiu o desenvolvimento de
qualquer projeto que levantasse o interesse em fundar instituições de ensino
superior no Brasil.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
AZEVEDO, José Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. Rio de Janeiro:
Anuário do Brasil, 1922.
CARVALHO, Laerte Ramos. As Reformas Pombalinas da instrução pública. São
Paulo: USP, 1978.
378
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo: Ática, 1982.
FÁVERO, Leonor Lopes. As Concepções Linguísticas do século XVIII: a gramática
portuguesa. Campinas: UNICAMP, 1996.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. 2ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar. 3.ed. Lisboa: Oficina
Gráfica, 1949.
379
CRIATIVIDADE E CIBERESPAÇO – CONVERGÊNCIA PARA
ALÉM DO HIBRIDISMO
Introdução
154
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)
155
Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM)
380
relacionamento, de pensamento, de produção, ou seja, uma nova relação entre o
ser humano e o mundo. A este respeito, menciona Sakamoto (2012, p. 87) que:
A lógica das relações não é mais direta e dependente de elementos
definidos, mas está associada a um processo complexo de fatores e
microelementos, aparentes e não aparentes, que estabelecem vias
transversais de relacionamento e originam incontáveis desdobramentos de
conexão recíproca, conflituosa e/ou excludente, que fogem ao alcance de
uma apurada e imediata percepção, ainda que minuciosa e experiente.
381
O presente artigo pretende apresentar de modo preliminar uma discussão
relacionando Criatividade e Ciberespaço na busca de entender a participação deste
último na expressão criativa na contemporaneidade. Refletir sobre a existência
humana transformada por inovações tecnológicas e novos hábitos cibernéticos, é
oportunidade para compreendermos o hibridismo para além dele na convergência
entre o ato de criar e o ambiente do Ciberespaço. Conceitos híbridos como a
Condição Glocal e o Nobrow são algumas das definições que abrem um novo
horizonte de reflexão e discernimento sobre viver, criar e dar continuidade ao
processo evolutivo do ser humano hoje. A expansão dos poderes criativos dado aos
indivíduos com acesso a redes de comunicação virtuais, nos leva a considerar que
o “tema da criatividade emerge como interessante campo de questionamentos e
insights acerca da complexa construção da realidade na contemporaneidade”
(SAKAMOTO, 2012, p. 87).
382
Glocal é o sítio no qual estamos quando não nos encontramos nem no local
nem no global. Quando, por exemplo, visitamos um museu virtual, não estamos
literalmente na cidade, na localização desse museu; porém também não nos
encontramos na cidade onde nosso corpo físico se encontra, pois não estamos
vivenciando o ambiente desta localidade, mas sim o ambiente glocal da localização
do museu que nos recebe pelo virtual, aquele que se apresenta por meios virtuais
que foi teletransportado pela tecnologia.
Nossa sociedade atual é hipermidiática, estamos em um momento histórico
dominado pela tecnologia. A Glocalidade é um fenômeno mundial que atinge todas
as pessoas do mundo através do ciberespaço e atinge até mesmo as pessoas sem
acesso à internet, que são influenciados de forma indireta, pois elas sofrem essa
influência ao entrar em contato, por mais esporádico que este seja, com um
individuo que tem influência direta do Ciberespaço. A cibercultura sofre uma
disseminação universal proporcionada por todos os indivíduos que têm contato com
o Ciberespaço.
Na Glocalidade estamos isolados, tanto no Glocal Lato Sensu quanto no
Glocal Stricto Sensu, pois no primeiro estamos isolados por falta de acesso à
internet, no segundo estamos isolados do mundo territorial ao nosso redor
protegidos por um Bunker Glocal, isto é, nossos infinitos gadgets que nos separam
do ambiente físico em que nosso corpo se encontra. Estamos isolados
territorialmente, mas unidos ao mundo todo pelo Ciberespaço. Um indivíduo pode
se isolar da tecnologia, mas jamais pode fugir do processo irreversível da
Glocalidade.
Essa união entre o global que circula e o “onde” o corpo está (ou “onde” ele
atua) que é o fundamento comunicacional do processo civilizatório corrente, se dá
por inúmeras roupagens (que por enquanto são smartphones, tablets,
computadores), mas essa roupagem não tem a menor importância, pois o Glocal
não reside nelas. A qualidade glocal da comunicação se dá mais no sentido
funcional que estrutural da experiência. É isso que sustenta a união inextricável
entre o global da rede e aquilo que circula instantaneamente pela comunicação de
massa interativa ou híbrida.
383
A nova condição de Glocalidade impõe uma restrição, a de que não é mais
possível separar conteúdos que são circulantes internacionalmente, ou
nacionalmente ou localmente, ou ainda, em termos do lugar que você ocupa e do
lugar em que está seu corpo. Esta nova característica introduzida pela comunicação
digital modifica a dinâmica e a consistência comunicacional global que acontece no
plano físico em que atuamos e passa por milhões de outros lugares no planeta, ao
mesmo tempo em que torna invisível a realidade em que nos encontramos e nos
coloca em uma condição glocal.
O processo de Glocalização significa ainda, desenvolvimento cultural, na
medida em que permite uma miscigenação no campo cultural, uma hibridação de
conteúdos na rede sem fronteiras.
O território físico vem sendo reconfigurado em nossa realidade atual, aos
poucos sendo substituído por outras extensões da realidade, permitindo o
surgimento de processos criativos atuantes na transversalidade de uma realidade
que supre o que é próprio e local sem desautorizá-lo porque o transcende, sem
desqualificá-lo, porque o substitui por códigos alternativos que são geridos por uma
realidade reestruturada, a do network universal que sofre adaptações locais e
transmuta-se na condição glocal.
A evolução e o claro delineamento linear temporal da cultura deixam de existir
no advento da cibercultura, pois a Glocalidade torna possível que um indivíduo seja
influenciado por culturas e movimentos culturais que na nova ordem de
conectividade encontram-se “fora” de uma determinada ordem temporal ou
geográfica.
Um artista (ou qualquer pessoa, em seu papel de produtor de cultura) pode
ser, por exemplo, conjuntamente influenciado por um artista neolítico
asiático e por um expressionista africano.
O ciberespaço nos trouxe um enorme número de possibilidades de
influências vindas de diversas culturas, de diferentes épocas e
localizações. Somos imersos em um mar de influências infinitas, muitas
vezes não sendo pessoalmente capazes de reconhecer quais são elas ou
suas origens, consequentemente enfrentando uma grande dificuldade em
nomear ou nos integrarmos a um movimento cultural singular, já que hoje
somos completamente atemporais e ageográficos. (ANTUNES, 2015, p. 5).
384
hibridismo para um “além-hibridismo” e os tornaram bens inclassificáveis. Os novos
bens culturais podem ser caracterizados como multilaterais, mas não são
classificáveis como alguma área, alguma cultura, alguma arte específica, porque
são o encontro de todos esses elementos que ao interagir resultaram a sua
produção.
Nobrow é o conceito para denominar este produto cultural que é influenciado
em amplitude mundial, de natureza inclassificável porque é fruto da
multidimensionalidade de todos os processos de produção e da influência cultural
multiaspectal; distribuído de algum modo por qualquer meio, seja pela internet, pela
televisão, por diversas mídias.
Esta nova realidade redefiniu a cultura, fazendo-a deixar de ser apenas uma
soma de fatores culturais que resulta no hibridismo e tornando-a algo novo, único e
inclassificável; isto é, um resultado no qual não é possível reverter a operação
matemática do ciclo de influências culturais para revelar seus componentes
incógnitos.
O termo Nobrow foi proposto pelo jornalista e crítico cultural John Seabrook
em 2000 e utilizado academicamente pela primeira vez pelo professor Peter Swirski
em seu livro de 2005 para caracterizar essa nova tendência da cultura; foi baseado
nos conceitos de Highbrow e Lowbrow:
A expressão Nobrow faz referência à expressão highbrow (uma
denominação de cultura, artes e literatura, que as caracteriza como
“intelectuais, de alta qualidade”), e à expressão lowbrow (expressão que
caracteriza a cultura, a literatura e a arte como sem conexão ou interesse
em ideias culturais sérias/intelectuais), de maneira a representar o
conceito de cultura sem uma qualificação de lowbrow ou highbrow, sem
um direcionamento específico a determinado tipo de público, ou à
determinada área do conhecimento. Tal cultura não é nem popular, nem
erudita; nem de certo estilo, ou de outro; uma cultura não categorizada.
(ANTUNES, 2015, p.1)
385
Além de um novo conceito, Nobrow é também um novo processo
comunicacional, uma nova estética, uma nova perspectiva de contemplar o
processo criativo. É um novo fenômeno na história cultural que caracteriza o século
XXI; ele está surgindo como a cultura do século XXI, nascida sob condições
tecnológicas e culturais específicas da contemporaneidade. Nobrow é a articulação
do mundo, é a internacionalização de culturas de todos os lugares por meio da
comunicação proporcionada pela tecnologia; é um fenômeno glocal.
Enquanto bens culturais híbridos têm características de diversas tendências
juntas em um único trabalho, e enquanto elas podem ou não estar ligadas à
cibercultura, os bens culturais Nobrow são únicos: suas origens e influências podem
ser várias e é impossível reconhecê-las ou traçá-las, tornando sua classificação
impossível. Os objetos culturais Nobrow não são necessariamente vinculados ao
digital e ao interativo; eles não estão obrigatoriamente no Ciberespaço. Contudo,
cada obra Nobrow foi influenciada pelos traços da Cibercultura; cada uma recebeu
influências diretas ou indiretas de outras produções e seus produtores do mundo
inteiro pelo Ciberespaço, ou como mencionado anteriormente, são fruto do Glocal
Lato sensu; ainda que muitas obras Nobrow sejam fruto do Glocal Stricto sensu. É
pela articulação social no Ciberespaço que a estética da cultura Nobrow e seus bens
culturais são internacionalmente estabelecidos.
Breve conclusão
386
Criatividade na atualidade reflete não apenas capacidades inesperadas de
sínteses inovadoras do ser humano, mas também dá acesso ao entendimento de
fenômenos humanos de maior complexidade e magnitude interacional a partir das
fronteiras expandidas da sociedade global, da condição glocal e da origem da
cultura além-hibrida ou Nobrow.
Nesta ótica, o conceito de superação do ser humano hoje, pode ser um
equívoco na discussão da vida, visto que pode estar apoiado ainda em parâmetros
de definição cartesiana para o pensamento. É possível que tenhamos que buscar
uma nova estrutura de entendimento, mais flexível e que se apoie na compreensão
dinâmica de fenômenos humanos que estão para além do visível e do classificável,
mas que não por isto, seja menos válido e representativo. O conteúdo além do
híbrido é um fenômeno cultural irreversível e disseminado por todo o globo.
Derivações de relações criativas anteriores cujas interfaces expõem possibilidades
ao infinito, são inclassificáveis enquanto suas origens, porém identificam a
Criatividade em sua natureza essencial – sem limites!
Podemos considerar que o século XXI nos permita perceber a realidade
humana complexa em uma qualidade plural genuína e, ao mesmo tempo, nos
convoque a rever a dimensão do que deve ser o real, já que o real não tem mais
apenas as fronteiras concretas e as imaginárias, mas tem também um território sem
lugar que é a condição glocal, um lugar sem lugar objetivo cujo tempo é instantâneo,
o tempo real da comunicação digital.
Criatividade e Ciberespaço são as coordenadas dinâmicas de natureza
plástica e de uma concepção material híbrida do processo de interação e produção
na atualidade. Convida a refletir sobre quem é o ser humano, o mundo humano e
as capacidades humanas; e ainda, sobre a responsabilidade de construção do que
denominamos mundo humano e sobre as implicações do fazer criativo para a vida
humana no planeta.
387
Referências Bibliográficas
388
A TRADUÇÃO DA ARTE POÉTICA HORACIANA NA ARCÁDIA LUSITANA -
MARQUESA DE ALORNA
Introdução
A retomada de traduções do legado greco-romano em língua portuguesa tem
se dado de modo esparso, mas, de certo modo, gradual. Em 1862, na versão de
Antônio Feliciano de Castilho para Os Fastos, de Ovídio, o Marquês de Resende,
em nota, argumenta sobre a necessidade de compilar e publicar em língua
portuguesa traduções dos clássicos, a exemplo das publicações francesas de
Panckoucke ou de Didot (Resende in Castilho, 1862, p.496).
Bastante tempo depois, José Paulo Paes, em seu capítulo A tradução literária
no Brasil (1990, p.9), aborda essa questão ao relatar a dificuldade de se realizar um
estudo diacrônico de traduções no Brasil e em língua portuguesa, principalmente
por conta da ausência de documentos e de catalogação.
Haroldo de Campos, que iniciou o seu trabalho com o texto grego da Ilíada
no início dos anos 1990, mas só o publicou completamente em 2002, trouxe
novamente para a cena literária a tradução que Odorico Mendes havia publicado
em 1874. Essa retomada de uma tradução anterior, servindo de paradigma para a
sua, e para outras que viriam (Campos, 1994, p.240), faz parte da defesa do poeta
e tradutor (ou transcriador, uma vez que define suas versões como transcriação)
para que se constitua uma História da Tradução em nossa língua. Haroldo resgata
em Odorico, por exemplo, o metro de sua tradução, dodecassilábico e a criação de
neologismos (Rocha, 2013, p.304).
Antoine Berman compartilha com Campos a ideia de se elaborar uma História
da Tradução, tanto para auxiliar o fazer tradutório quanto para acompanhar o modo
como esta se desenvolve (2002, p.12). Peter Burke, nesse mesmo sentido, destaca
a importância de se estudar e analisar os contextos de produção do texto de partida
e do texto de chegada (2009, p.16).
156
UNESP-FCLAr/ CAPES
389
É a partir desses princípios que vem sendo desenvolvido por vários
pesquisadores, sob a orientação do Prof. Brunno Vieira, o projeto "José Feliciano
de Castilho e a tradição clássica no séx. XIX", que estuda traduções do legado
greco-romano em língua portuguesa, explorando diferentes épocas de produção,
bem como diferentes tradutores lusófonos.
Marquesa de Alorna
É nesse cenário, portanto, que desenvolvemos nosso trabalho de pesquisa.
Até o Mestrado trabalhamos com traduções que José Feliciano de Castilho realizou
no século XIX para os epigramas de Marcial, o que envolveu estudar e entender
como sua época lidava com a licenciosidade e como essas questões influenciaram
suas traduções, a fim de entender como, a partir de seu contexto, o tradutor leu o
poeta latino.
Para a continuidade aos estudos de tradução e recepção do legado greco-
romano, agora no Doutorado, estudamos a tradução que a Marquesa de Alorna
realizou para a Arte Poética de Horácio em 1812157. O ponto que desperta o
interesse aqui não é mais a licenciosidade, mas sim o fato de se localizar
temporalmente no Arcadismo lusitano e ser esse uma escola literária que bebe
diretamente de fontes clássicas, entre elas os preceitos horacianos contidos em sua
poética.
Além disso, vale ressaltar, mesmo que rapidamente, a importância de D.
Leonor de Almeida, a Marquesa de Alorna, que já nos salta aos olhos por ser uma
mulher, participando ativamente da cena literária de sua época, influenciando novos
escritores, como bem observou Alexandre Herculano:
Aquella mulher extraordinária, a quem só faltou outra pátria, que não esta
pobre e esquecida terra de Portugal, para ser uma das mais brilhantes
provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva do nosso
sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litterária, quando ainda no
verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada das lettras
(HERCULANO, 1844, p.404).
157
Nesta época a Marquesa de Alorna vivia em Londres, onde esta edição foi publicada. Posteriormente, em
1844, suas filhas publicaram suas Obras Completas, apresentando um volume com o texto tal como fora
publicado, acompanhado também da tradução de Alexandre Pope.
390
D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre nasceu em 1750, em
Lisboa. Oito anos depois, por questões políticas envolvendo seu pai, que foi preso
no forte da Junqueira, ela, sua irmã e mãe foram encarceradas no mosteiro de
Chelas, bairro lisboeta, onde permaneceram por dezoito anos.
A Marquesa de Alorna utilizou o tempo que passou no mosteiro para seus
estudos e suas produções poéticas. E, apesar de sua clausura, conseguiu algum
convívio com a cena poética sua contemporânea, participando dos outeiros
poéticos158 do mosteiro, ou recebendo visitas de poetas nas grades do convento,
como a de Filinto Elísio, que deu a ela o apelido literário de Alcipe, como a chamava
nos poemas que trocaram (Anastácio in Alorna, 2007, p.24) e como ficou conhecida.
Foram as filhas da Marquesa, Frederica e Henriqueta, quem publicaram suas
obras completas, em 1844, intituladas Obras Poéticas de D. Leonor D’Almeida
Portugal Lorena e Lencastre, Marquesa d’Alorna, Condessa d’Assumar e
d’Oeynhausen, conhecida entre os poetas portugueses pelo nome de Alcipe. Em
um dos seis volumes que compõe essa coleção encontra-se a tradução da Arte
Poética de Horácio, acompanhada da tradução de Ensaio sobre a crítica, de
Alexandre Pope. Além dessas traduções a Marquesa possui vasta obra tradutória,
que segundo Pinilla também conta com textos de:
Homero, Horácio, Claudiano, Marcial, Chateaubriand, Lamartine,
Lamennais, Macpherson [poemas de Ossian], Pope e Weiland; imitações
de Anacreonte, Safo, Catulo, Horácio, Metastácio, Testi, Delille, Lamartine,
Gray, Goldsmith, Thompson, Bürguer, Goethe e Herder; e paráfrases da
Bíblia (os Salmos) e de versos de Santa Teresa de Jesus. Autores antigos
e modernos (muitos deles contemporâneos da marquesa), de diversas
tendências e línguas: grego e latim, espanhol, francês e italiano, alemão e
inglês (2007, p.310). 159
158
Michaelis: 2 Festa que outrora se realizava no pátio dos conventos, e em que os poetas glosavam motes dados
pelas freiras.
159
Tradução nossa.
391
A importância da Arte Poética no período árcade e, consequentemente, a
tradução da Marquesa merecem um novo olhar crítico. Se tomarmos como
referência as edições elencadas por Rosado Fernandes em sua tradução do texto
de Horácio, têm-se entre publicações em latim acompanhadas de comentários e
traduções propriamente ditas, quatorze que ele considera relevantes, dessas, sete
são do século XVIII e quatro do século XIX (Fernandes, 2012, p.33-41).
Dessa forma notamos tanto a inserção da tradução da Marquesa de Alorna
no contexto árcade, quanto a notável quantidade de textos e traduções de Horácio
dessa época (isso porque não contabilizamos as leituras e releituras do carpe diem
- Carm. 1.11).
Além disso, vale ressaltar que a Marquesa de Alorna realizou sua tradução
em versos o que, embora isso não fosse incomum em sua época, é bastante raro
em nossos dias, em especial em solo brasileiro. Desse modo a retomada dessa
versão aponta para servir de base para uma futura tradução da Arte Poética, uma
das questões defendidas pelos estudiosos de História da Tradução.
No momento em que nos encontramos da pesquisa, essas são as principais
questões de contexto social e literário da tradução da Marquesa de Alorna, mas,
assim como ocorreu em nossa pesquisa de mestrado, pretendemos realizar leituras
de outras traduções, bem como de aparato crítico da época para entender a
tradução da Arte poética de Horácio inserida no Arcadismo.
Passemos, então, a uma breve análise de aspectos tradutórios do texto da
Marquesa de Alorna.
Poética de Horatio
A tradução da Marquesa de Alorna é realizada em decassílabos e, embora
não haja a presença de rimas, não podemos deixar de notar questões poéticas como
as seguintes:
Inceptis gravibus plerumque et magna professis,
Purpureus latè qui splendeat, unus et alter 15
Assuitur pannus: cum lucus et ara Dianae,
Et properantis aquae per amoenos ambitus agros,
392
Aut flumen Rhenum, aut pluvius describitur arcus.
Sed nunc non erat his locus [...]
(Alorna, 1812, p.4)
Geralmente, a inícios que se prometem graves e grandiosos é costurado um ou
outro retalho purpúreo, que resplandeça ao longe: quando é descrito o bosque e o
altar de Diana e o circuito da água que corre pelos campos amenos, ou o rio Reno,
ou o chuvoso arco-íris. Mas agora não era lugar para isso [...]
(Tradução nossa)
Essas obras pomposas, que prométem
Coizas grandes, às vezes, são retalhos
De purpura, e brocado, que alinhava 20
Com arte o dono; como exemplo achamos,
A descripção das aras de Diana,
No Sacro bosque; o rapido remanço,
Que serpea nos campos sombreados;
O largo Rheno, e a luminoza estrada 25
Onde entre o sol e a chuva, Iris anda.
Isto porem não é de que se trata.
(Alorna, 1812, p.5)
160
Como exemplo desse inceptum como parte introdutória da obra podemos citar a Eneida de Virgílio, seu
primeiro verso, Arma uirumque cano, já apresenta o que será cantado.
393
Outro ponto a ser observado são os “retalhos”, esse termo está presente no
texto latino (pannus), mas a pontuação adotada pela Marquesa, marcada pela
presença de frequentes vírgulas, principalmente nos três primeiros versos, nos dá a
ideia plástica (iconográfica, até, se pensarmos nos tipos gráficos) de como são
“alinhavados” esses retalhos. Cabe observar ainda que, o verbo escolhido por ela,
“alinhavar”, se adequa perfeitamente à metáfora da costura adotada por Horácio,
assim como o acréscimo do termo “brocado”, reforçando essa metáfora na tradução.
Outra questão poética que nos chama a atenção é a aliteração em /s/ no
trecho que se refere ao correr do rio. O vocábulo utilizado pela tradução para aquae
é “remanço”161, o curioso aqui é a associação dos sentidos opostos de remanso e
“rápido”, em que observamos que a Marquesa apresenta o sentido primeiro de
properantis, “apressar, acelerar” (Saraiva), mas parece que ao utilizar “remanso”
para o rio ela entende que amoenos (“amenos”) adjetiva aquae e não agros, o que
não seria possível sintaticamente, uma vez que aquae pode ser genitivo ou dativo
singular, ou nominativo plural, e somente agros, no acusativo plural concordaria com
amoenos. Fica então a questão, será que por conta da métrica e para inserir um
paradoxo ela “forçou” essa concordância? Ou ela quis ressoar o /r/ assim como o
/s/ para figurativizar o barulho das águas?
O texto latino aborda nesse excerto as questões de simplicidade e unidade,
fortemente defendidas por Horácio. O autor romano destaca que por vezes os
autores costuram retalhos de descrições ou de trechos que, embora bonitos e
utilizados para engrandecer o texto, não têm relação estrita com o conteúdo (Sed
nunc non erat his locus - “Mas agora não era lugar para isso”), caracterizando
digressões que acabam por atrapalhar a unidade do texto. Vale observarmos que
Horácio apresenta a quebra da unidade justamente fazendo uso dos artifícios
descritivos (describitur) que os escritores da época utilizavam, como Ennio (Ann.
173) e Virgílio (A. VI, 659) (BRINK, 2011, p.97).
Essas digressões estão claramente colocadas por Horácio como describitur
(é descrito), termo que a Marquesa de Alorna aproveita para sua tradução, ainda
161
Moraes: remánso s.m: nos reios, e no mar, chama-se remanso a porção d’águas’ que banha alguma parte
curva, e quase uma pequena enseiada, sem ter movimento sensível.
394
que o apresente como substantivo e não como verbo (“descripção”). Esse vocábulo
define retoricamente o artifício do poeta para embelezar seu texto e o fato de a
tradução mantê-lo reforça a noção de que as informações principais do texto de
partida foram mantidas.
Diferentemente do texto latino, a tradução da Marquesa de Alorna nos dá a
impressão de comparar as “obras grandiosas” a esses “retalhos”, creditando
somente a essas inserções a grandeza da obra, mas se o “dono”, no caso o autor,
alinhava com destreza, a obra ganha grandeza? Isso não está muito claro na versão
portuguesa, embora ao final esteja presente a sentença “Isto porem não é de que
se trata”, trazendo a noção de que essas partes costuradas estão desconectadas
do sentido geral. Não se pode afirmar que ela não diz o que está no texto latino
(observamos isso pela utilização do termo “descripção”, pelos vocábulos que
reforçam a metáfora horaciana de tecido e costura “retalhos” e “alinhavar” e pelo
acréscimo de “brocado”), mas o sentido primeiro do texto latino fica um pouco diluído
pela escolha que a Marquesa fez ao traduzir inceptum por “obra”, deixando de lado
as questões retóricas da dispositio que esse vocábulo carrega.
O trecho a seguir apresenta a questão da apropriação do texto de partida
pelo contexto de chegada, isto é, altera-se o texto para conferir-lhe sentido para o
leitor de sua época. Esse tipo de tradução se aproxima da tradução retórica de
Cícero, que procura traduzir o conteúdo, não somente o texto, Mauri Furlan define
esse tipo de tradução como “reelaboração, é reinvenção da fonte grega, é a
apropriação, latinização. Ele suplanta retoricamente o original” (Furlan, 2010, p.84).
No caso, seria lusitanização do original latino.
Com o passar dos anos, traduções da Bíblia e de outros textos mostraram
que esse não é o único modo de traduzir. Friedrich Schleiermacher, teólogo e
filósofo alemão, escreveu em 1813 Über die verschiedenen Methoden des
Übersetzens (“Sobre os diferentes métodos de traduzir”), em que discute o método
anteriormente já defendido por Cícero, de levar o autor até o universo do leitor, em
oposição ao método que defendia levar o leitor ao autor, ou seja, deixar o texto com
suas características de produção e língua de partida. Esses dois modos também
são discutidos pelos irmãos Antônio e José Feliciano de Castilho, que colocam os
395
termos de tradução “parafrástica” e “literal” (Castilho, 1862, v.1, p.37). Mais
recentemente Antoine Berman também trata sobre os modos de traduzir, falando de
uma tradução “etnocêntrica” e “da letra” (2002, p.15).
O trecho que recortamos da tradução da Marquesa de Alorna é bastante
significativo para essa discussão:
Et nova factaque nuper habebunt verba fidem, si
Graeco fonte cadant, parcè detorta. [...]
(ALORNA, 1812, p.10)
E as palavras novas e criadas recentemente terão crédito se vêm de fonte Grega,
alteradas moderadamente.
(Tradução nossa)
E as palavras de fabrica recente,
Terão valôr; e mais se derivarem
Com pouca corrupção, da Grecia, ou Latium. 80
(ALORNA, 1812, p.11)
É exatamente esse tipo de defesa que Horácio faz em seu texto, embora
ressaltando que esse artifício deve ser utilizado parcimoniosamente (parce). A
tradução da Marquesa de Alorna não apresenta o advérbio, embora acrescente que
essas palavras devem ser inseridas “sem corrupção”. Mas o acréscimo mais
396
significativo de sua tradução é justamente “Latium”, que a alinha ao pensamento de
Filinto Elísio.
A título de curiosidade e de mote para uma discussão posterior sobre esse
assunto, cabe observarmos que a mais conhecida das traduções da Arte Poética no
Arcadismo Português, a de Cândido Lusitano, não traz o Lácio como fonte para
novas palavras em vernáculo, apenas a “fonte grega”, no entanto acrescenta
“nascerem sem violência” (Lusitano in Horacio, 1778, p.31), o que vai ao encontro
da escolha da Marquesa de Alorna quando utiliza “sem corrupção”.
Outro fator que influenciou a escolha da expressão “com pouca corrupção”
pela Marquesa de Alorna é a retomada do clássico português “Os Lusíadas”, o que
nos mostra que os árcades retomam também os clássicos lusitanos. Justamente no
“Concílio dos deuses”, no momento em que Vênus faz sua defesa do povo
português, no trecho:
Sustentava contra elle Venus bella,
Affeiçoada á gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nella
Da antigua tão amada sua Romana:
Nos fortes corações, na grande estrella.
Que mostraram na terra Tingitana;
E na lingua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que he a Latina.
(CAMÕES, 1859, p.91)
Conclusão
Acreditamos que passagens como essas exemplifiquem a tradução da
Marquesa de Alorna enquanto nosso trabalho encontra-se no início. Com a breve
análise que fizemos aqui pudemos observar que sua versão não se afasta muito do
texto latino, embora em alguns momentos haja alguns desvios de sentido, que ainda
serão melhor estudados para sabermos se se dão por conta da leitura de sua época
ou se por um entendimento errôneo do texto latino.
No geral, o que já pode ser afirmado é o fato de que o Arcadismo português
procurou resignificar o clássico, se apropriando de suas temáticas (como o carpe
diem, as referências mitológicas, etc.) e de suas normas literárias (o que se nota
pelas traduções da Arte Poética realizadas nessa época e pelo uso de neologismos,
397
por exemplo). A princípio podemos notar que os aspectos clássicos no Arcadismo
se refletem também no modo de traduzir dessa época, o que, aliado às teorias
poéticas de Horácio, deverão ser encontrados na tradução da Marquesa de Alorna
para a Arte Poética.
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399
SILÊNCIOS, IMAGENS E HISTÓRIA EM “A REDAÇÃO” – ANTONIO
SKÁRMETA E ALFONSO RUANO
162
Mestrado em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
400
- Coisas que estão acontecendo.
- E por que se ouve tão mal?
- Porque a voz vem de muito longe”. (2006, p.4)
401
forma concomitante e em paridade com sua curiosidade sobre o conceito de
ditadura, a exemplo do diálogo de Pedro com seu pai, após o episódio da prisão:
(2006, p.16)
- Daniel ficou tomando conta da mercearia. Pode ser que me dê umas balas
de presente – disse Pedro.
- Acho que não.
- Levaram ele num jipe, igualzinho àqueles dos filmes.
O pai não disse nada. Respirou fundo e ficou olhando a rua, na maior tristeza.
Embora fosse dia, as únicas pessoas que passavam eram os homens que
voltavam do trabalho, andando devagar. (2006, p.16)
163 O conto foi publicado pela primeira vez na revista Le Monde, nos anos 70, com o título Tema de Clase. A
obra recebeu o título La composición quando publicada pelas edições Ekaré em 2000, com ilustrações de
Alfonso Ruano.
164 Em 11 de setembro de 1973 ocorreu o golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet no Chile,
402
[...] lo que me pareció obsceno, indecente, patológico, grosero, fue el intento
de la dictadura en Chile en 1973 de arrastrar al conflicto de la sociedad a niños
inocentes, tratando de manipular sus frescas e ingenuas conciencias. Temas
como los que pidieron en la escuela del niño Pedro Malbrán, héroe de mi
relato, hubo millares. Y los chicos de entonces, hoy adultos, lo recuerdan. (La
Nación, 2001)165
Tal falta de malícia, não impediria, no entanto, que aquele menino de nove
anos percebesse que em cada movimento seu existia um impedimento ou um vazio.
Algo, no estado das coisas, não permitia que seus pais o presenteassem com uma
bola de futebol profissional, um gol feito por ele não é celebrado e uma partida de
futebol é interrompida porque o pai de um amigo é preso, o chiado do rádio todas
as noites, o choro da mãe.
Vazios e fatos estranhos a um cotidiano harmonioso são objetos de análise
e discussão entre Pedro e outras crianças. “- Mulher vive chorando” (2006, p.27),
será a explicação de Juan para o choro da mãe de Pedro. É Juan também que
questiona o discurso de que ditadura militar não é assunto para crianças: “-Sempre
dizem isso. Meu pai está preso. Levaram ele para o norte”. (2006, p.29) Esclarece
pouco depois de repreender a Pedro por uma pergunta inadequada para o momento
– em que o capitão aguarda a escrita das redações - e, em sua opinião, óbvia: “-
Você é contra a ditadura?/ Juan olhou bem, conferindo a posição do capitão, e se
inclinou para Pedro: /- Claro, pentelho” (2006, p.29)
Interessa aqui ressaltar diferenças entre diálogos da personagem
protagonista com os pais e entre meninos da mesma idade. A ausência de
hierarquias e de didatismo permite maior exposição de ideias e cobranças entre os
interlocutores. A contraposição entre inocência e curiosidade evidencia-se nos
diálogos entre crianças e mostra a percepção de mundo de Pedro como integrante
de um coletivo.
165[...] o que para mim pareceu obsceno, indecente, patológico, grosseiro, foi a tentativa da ditadura chilena,
em 1973, de arrastar ao conflito da sociedade crianças inocentes, tratando de manipular suas frescas e
ingênuas consciências. Temas como os que pediram na escola do menino Pedro Malbrán, herói do meu relato,
houve milhares. E os jovens desse período, hoje adultos, lembram-se. (tradução nossa).
403
Pedro não deixa de viver sua infância, mas observa o que acontece ao seu
redor. O fragmento abaixo diz respeito ao que se passou em uma semana após a
escrita da redação:
Passou uma semana, uma árvore da praça caiu de velha, o caminhão de lixo
ficou cinco dias sem passar e as moscas tropeçavam nos olhos das pessoas,
o Gustavo Martínez da casa em frente se casou e os vizinhos ganharam um
pedaço de bolo, o jipe voltou e prenderam o professor Manuel Pedraza, o
padre não quis rezar missa no domingo, no muro da escola apareceu escrita
a palavra resistência (grifo meu). Daniel voltou a jogar futebol e fez um gol de
bicicleta e outro de lençol, os sorvetes subiram de preço e Matilde Schepp,
quando fez nove anos, pediu a Pedro que lhe desse um beijo na boca. - Você
está maluca! – gritou Pedro”. (2006, p.30)
404
comunicar seu peso. Comenta textos de Ovídeo e Lucrécio para concluir que, em
ambos: “a leveza é algo que se cria no processo de escrever”. (2015, p. 26) Sobre
Kundera, autor de A insustentável leveza do ser (1984), Calvino esclarece que o
“peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão” (2015, p.21). Em “A
redação” o horror do golpe militar e suas consequências ganham a leveza de uma
perspectiva infantil. Inocência e curiosidade da personagem protagonista mesclam
as ações de opressão e censura a fatos do cotidiano. Ao mesmo tempo em que o
olhar de Pedro e outras crianças emprestam suavidade e até um pouco de humor a
difíceis tempos de Ditadura Militar, não deixa de ser um olhar realista, verdadeiro.
O menino não descobre os motivos nem obtêm informações detalhadas a respeito
do que caracteriza um golpe de Estado e sobre o funcionamento de uma nação em
período de ditadura militar. Mas é na percepção de particularidades do cotidiano,
“desde que as ruas tinham se enchido de militares” (2006, p. 4), que a ditadura
ganha seus contornos no universo de Pedro: nas informações desencontradas, nas
prisões.
A redação composta por Pedro, é resultado da relação entre desejos, medos
infantis e o drama de um estado de opressão causado pela ditadura. Pedro lê diante
dos pais, apreensivos porque só naquele momento sabem que um capitão da polícia
militar esteve na escola, sua redação:
405
A redação de Pedro seria uma descrição pura e simples da realidade se a
palavra “rádio” nela existisse sem ser substituída por “jogo de xadrez”. É pelo rádio
que Pedro escuta falar de ditadura militar: “Quando ouviu o rádio falar em ‘ditadura
militar’, Pedro sentiu que todas as coisas que andavam rodando soltas pela sua
cabeça se juntavam, como se fossem as peças de um quebra-cabeça”. (2006, p.
18) Tais coisas carregavam o signo da ditadura militar e Pedro se dá conta disso
porque desde que os chiados da rádio participavam do cotidiano de sua família a tal
da “ditadura militar” começou a fazer parte de sua rotina, provocando certa mudança
na sua forma de perceber o mundo. Percebe, por exemplo, que o pai é contrário à
ditadura e o relaciona com o pai de Daniel, preso por esse motivo e por soldados
que vestiam fardas tais quais às do capitão que encomendou a redação. Por trás de
uma redação que mostra a preservação da infância e é motivo de alívio e alegria
momentânea para uma família, há todo um processo de perseguição e
silenciamento pressentido por Pedro e seus amigos.
Ao tratar do “Simbolismo do Xadrez”, Titus Burckhard (2015) escreve que
nesse jogo estariam presentes as relações entre vontade e espírito, já que a
disposição das peças no tabuleiro representa uma batalha em que a inteligência
prevalece sobre a sorte e a liberdade está em íntima ligação com o conhecimento.
Ou seja, na movimentação de uma peça, a escolha é livre, mas limitada, implica em
consequências. Trata-se de liberdade de ação com previsão e conhecimento.
Pelo construto da narrativa de Skármeta, em conjunção com as ilustrações
de Alfonso Ruano, podemos perceber que a simbologia do xadrez condiz, na
narrativa, com o rádio no que diz respeito ao fato de ser uma fonte de liberdade para
o conhecimento que implica escolhas, busca de caminhos. Uma estação de rádio
cheia de chiados, que para ter acesso à mesma é preciso esconder- se, implica em
escolhas, dentre as quais: assumir um risco, devido a censura imposta pelo governo,
e de compreensão das mensagens em meio a chiados. Ao ouvir a expressão
“ditadura militar”, Pedro não precisava entender todo o percurso político para uma
compreensão mínima do que significa estar a mercê desse regime. Entende, de
alguma forma, que desde aí surgem as incompletudes, os vazios.
406
As ilustrações de Alfonso Ruano, unem-se às palavras de Antonio Skármeta
para esse arsenal de significações. Na capa, a personagem protagonista e sua
redação aparecem em primeiro plano, com os soldados militares atrás, diminuídos.
407
Em “Os militares e a história”, de Paisagens Imaginárias, Beatriz Sarlo trata
da ambiguidade da escrita/leitura literária. As palavras, para Sarlo, escondem –
desfiguram e tornam dúbios os acontecimentos – e mostram – não deixam que os
fatos se apaguem, nomeiam. Segundo a autora “nos reconhecemos nas leituras”
(2005, p.26), que compõem e explicam nossa realidade. Entre a literatura e a vida
existiria uma tensão de resistência, provocação e necessidade. A arte, que tem seu
lugar no extremo das coisas, morde “o centro deslocado, reprimido ou ignorado”
(2005, p.27) Não explica, mas assinala fatos. Ao tratar da história, a literatura
permite a reconstrução de um “nó de memória”, sendo assim contrária ao
esquecimento. A escrita e posteriores leituras de um texto estariam acima de leis de
anistia e pactos de esquecimento” (2005, p. 32)
Como em outras obras de Skármeta, há em “A redação” uma personagem –
Pedro – ligada ao universo das palavras. Sem saber, embora de alguma forma
pressinta, em determinado momento do conto Pedro é quem tem a palavra e faz
uso da mesma para reconstruir a experiência familiar, silenciando a existência de
um meio de comunicação que, também por palavras, denuncia a “ditadura militar”.
As palavras de Pedro, em sua redação, silenciam o que as imagens de Ruano
escancaram. E as palavras do narrador de Skármeta mostram uma personagem
cujo cotidiano juvenil não se resume apenas nos fatos narrados na redação, nem
na opressão e medo causados pela ditadura militar e retratados nas ilustrações de
Ruano.
Ao final do conto, a redação de Pedro é representada por uma folha de
caderno com o texto escrito a mão, Ressaltando o contexto didático e ingênuo em
que estão inscritas as palavras do menino. Como o anunciado na capa, o menino e
sua palavra escrita voltam a prevalecer e a dominar o contexto de comunicação.
408
SKÁRMETA, 2006, p. 34. Ilustração de Alfonso Ruano.
409
família e parece garantir um final feliz ao conto. Final este, no entanto, baseado em
dados históricos de anos de repressão que levava a censura, prisões,
desaparecimentos, dentre tantos outros sintomas.
Por trás da infância que, sem perceber, Pedro consegue salvar e manter, fica
a marca da percepção precoce, nele e em seus amigos da mesma idade, da vivência
de um momento em que a sinceridade e a inocência não podem ser aproveitadas
intensamente e, desde cedo, embarca-se em um jogo de limitações e
silenciamentos como forma de garantir a sobrevivência. Nós, leitores, também
entramos em uma espécie de jogo. Junto com a família de Pedro, podemos ter
nossas perspectivas frustradas ao entrar em contato com a redação de Pedro e ver
que, sem perder a leveza que sua inocência infantil proporciona, maneja o discurso
de forma a resistir a um sistema de confissão, como se a palavra resistência, escrita
no muro mencionado pelo narrador de Skármeta e ilustrado por Ruano, adentrasse
ao novo cotidiano e, lido na atualidade pelo viés ficcional, mostrasse um contexto
histórico da América Latina, presentificado pelo olhar de uma criança. A redação ,
produto final da busca de uma explicação para a nova realidade que se apresenta,
aponta para uma identidade em processo de formação, a princípio poupada da
violência de Estado, mas inserida, como tantos outros jovens que testemunharam
ditaduras militares, em um contexto de repressão que se impõe a famílias, escolas
e meios de comunicação, obrigando ao silêncio e à resistência por formas então
consideradas subversivas de comunicação. As ditaduras oprimiram esses protestos
mas não poderiam oprimir a memória e seus registros. Neste caso, o registro da
literatura: “A história é um horizonte de debates entre narrações diversas, que
reaparecem mesmo ao serem condenadas ao esquecimento. As palavras
continuam pesando”. (SARLO, 2005, p.34). Na edição considerada para esta
pesquisa, as palavras do narrador de Skármeta ficam atravessadas pela tradução
ao português de Ana Maria Machado, integrando pelo idioma o Brasil à história da
América Latina.
Alfonso Ruano integra a palavra “resistência” à ilustração em uma das
páginas de A redação. Palavras escritas em muros eram silenciadas por sabão e
tinta, além de prisões, torturas, exílios. Tal ato encontra-se representado nesta obra
410
desde um olhar infantil. Trata da obrigação ao silêncio imposta por ditaduras
militares que, no entanto, esta e outras obras da literatura latino-americana não
deixam calar.
BIBLIOGRAFIA:
BURCKHARDT, Titus. O simbolismo do xadrez. Trad. Luiz Pontual. In:
www.renguenon.net. Acesso em: 8 de outubro de 2015.
CALVINO, Ítalo. Leveza. In: Seis propostas para o próximo milênio: lições
americanas. Trad. Ivo Barroso, São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
_________. Cuando la ficción nace del infierno. La Nación. Santiago : Talls. Graf.
La Nación, 1917- v., (8 abril 2001), p. 8 In: http://www.memoriachilena.cl. Acesso
em: 10 de agosto de 2015.
411
APROXIMAÇÕES ENTRE CIÊNCIA E LITERATURA: ESTRATÉGIAS DE
LEITURA NO DESENVOLVIMENTO DE UM CLUBE LITERÁRIO CIENTÍFICO
Introdução
166
USP/UNISO
412
apaixonadamente, mas resistiam ao cânone escolar. Ou seja, embora haja
variações devido ao nível socioeconômico e a formação das famílias, os jovens
leem. “Eles podem não ler o que a escola lhes pede para ler, pode não ler com a
frequência que se esperaria que lessem, mas em geral eles leem, citam seus livros
preferidos e discorrem sobre o que lhes agrada nas leituras que fazem dos livros
que selecionam para ler” (OLIVEIRA, 2013, 262).
Dado este contexto, nosso objetivo com esta pesquisa é apresentar uma
reflexão sobre as atividades de leitura desenvolvidas em um 'clube de leitura
científico', que visa fomentar o interesse de jovens dos 8º e 9º anos para a
leitura/literatura e ciência, a partir de textos de fantasia e ficção científica. O clube
em questão faz parte do projeto LUCIA (Leituras Universais e Ciência Investigativa
para Adolescentes), que é uma parceria da Escola de Artes Ciências e
Humanidades da USP juntamente com uma escola municipal de São Paulo. As
atividades do grupo são realizadas de forma voluntária e no contra turno das aulas.
Nosso intuito de ocupar o contra turno é desenvolver um espaço de atividades não
formais dentro do ambiente escolar. Nesse sentido, a participação dos alunos no
grupo não está atrelada a nenhum tipo de avaliação, por exemplo. Além disso, as
atividades são realizadas de forma pontual e para o desenvolvimento das mesmas
nos apoiamos nas estratégias de leitura propostas por Isabel Solé (1998), para
quem a dinâmica de leitura em sala de aula pode ser estruturada em pré-leitura,
leitura e pós-leitura.
Portanto, apresentamos nesta pesquisa os resultados das atividades
desenvolvidas ao longo do primeiro semestre de 2015. Iniciamos com uma
discussão sobre o LUCIA e as obras utilizadas inicialmente, acompanhadas da
descrição de algumas atividades realizadas. Em seguida comentamos e discutimos
os resultados coletados.
413
professores, estudantes de graduação e alunos da escola básica, aproximar os
conteúdos artísticos do científico a partir de atividades que envolvem produção de
texto, pesquisa e o uso da arte e das mídias para a manifestação de conteúdos
científicos: painéis, dobraduras, pinturas, encenações, instalações, vídeos,
brinquedos, música, textos ficcionais, entre outros.
Assim, o projeto prevê a realização de atividades didáticas em quatro frentes:
(1) R.I.T.A – Rock n’Roll na Investigação da Tecnociência para Adolescentes,
centrado nas representações da ciência e da tecnologia na música pop e no rock;
(2) L.U.C.I.A – Leituras Universais e Ciência Investigativa para Adolescente,
baseado em literatura infanto-juvenil, ficção científica,
O humor e outros recursos de leitura na educação científica; (3) E.M.M.A –
Estudos sobre a Mulher na Mídia para Adolescentes, focado nos estudos das
relações de gênero por meio de investigações da mídia e (4) L.Y.R.A – Laboratório
Investigativo de Robótica e Astronáutica, com atividades de produção de brinquedos
robóticos e leituras sobre temas de robótica, cibernética e inteligência artificial.
O projeto ALICE se apoia em três pilares básicos: a escola de tempo integral,
o ensino por projetos, e a visão educacional que dialoga com a cultura primeira do
aluno, ou seja, a cultura que lhe dá prazer. A ampliação da jornada escolar com a
escola em tempo integral (SME) tem possibilitado um espaço de uso da escola além
das disciplinas obrigatórias. No entanto, que tipo de atividade é possível realizar
com os estudantes nesse tempo adicional? Propostas do gênero de projetos como
feiras de ciências, gincanas, mostras culturais, iniciações científicas, entre outras,
têm ganhado cada vez mais espaço no país (Barcelos et al 2010).
Quanto ao ensino por projetos, observamos, como indicam os documentos
oficiais (SME), que esta é uma forma inovadora de romper com as estruturas
curriculares compartimentadas em disciplinas e de dar um formato mais ágil e
participativo ao trabalho de professores e educadores. Segundo os autores
(Barcelos et al, 2010, p. 218), a pesquisadora Girotto (2005) defende que uma via
metodológica alternativa, como o ensino por projetos, pode corroborar e superar o
processo de ensinar e aprender fragmentado, disciplinar, descontextualizado,
unilateral e direcionador, que se constata na maioria das escolas. Neste sentido,
414
isso acaba nos levando ao terceiro pilar que é a ideia de diálogo com a cultura
primeira do aluno (Snyders, 1998), pois, o dialogo com esta cultura pode ajudar a
criar um interesse e um engajamento no aprender.
O subprojeto LUCIA, propõe a leitura de obras da literatura infanto-juvenil,
ficção científica, humor e de outros recursos de leitura na educação científica, com
o objetivo de utilizar a literatura para discutir conceitos e temas científicos, assim
como sua relação com a sociedade; criar e conduzir um clube que possa incentivar
tanto o hábito de leitura entre os estudantes como o interesse no saber científico; e
incentivar e amparar a execução de projetos de caráter interdisciplinar pelos alunos.
No LUCIA, partimos de obras iniciais pré-selecionadas que de alguma
maneira, apresentam conteúdos científicos a serem trabalhados. Conteúdos que
vão desde conceitos até a relação da ciência com outras áreas e sua própria
produção. Em linhas gerais as obras que foram trabalhadas podem ser agrupadas
em três grupos: Literatura de ficção científica cômica, Em busca de vida fora da
Terra e Fadas, robôs, deuses, dragões e ciência.
De maneira geral muitas ficções científicas acabam apresentando uma visão
hora pessimista e hora otimista da ciência e do futuro. Nesse sentido, a ciência pode
tanto nos salvar e trazer progresso, quanto nos destruir. Mas, na maioria dos casos,
isto é feito com um tom sério, solene, afinal, e especialmente na ficção científica
clássica, a ciência é uma coisa séria. Mas, algumas obras quebram com essa visão
e apresentam uma ficção com um tom irônico ou humorístico. Ou ainda, satirizam e
brincam com temas padrões da ficção científica como invasões alienígena na terra,
viagens interestrelar, os paradoxos e tecnologias do futuro. Dentre estas obras,
destacamos o Guia do Mochileiro das Galáxias
Na segunda vertente, as leituras recomendadas envolvem livros de ficção
científica cuja história se desenrola em um planeta criado pela imaginação do autor.
Contextualizado dentro de uma hard-science fiction, onde a existência do planeta e
seus atributos físicos possuem alguma explicação dentro do discurso científico,
estes planetas imaginários abrem espaço para uma discussão ampla, tanto do ponto
de vista artístico (valor imaginativo, qualidade da história, etc), científico
(plausibilidade do ponto de vista da física, química, biologia, etc), como também do
415
social (relações políticas e sociais determinadas pelas condições ambientais, entre
outras discussões). As leituras, neste caso, seriam complementadas por
informações e atualidades das diferentes ciências que se relacionam com o assunto,
podendo abarcar a biologia, astronomia, geologia, química, geografia e até mesmo
história e psicologia, evidenciando o potencial interdisciplinar deste tipo de leitura.
Como exemplo, podemos citar o planeta Arrakis, da série Duna.
Por fim, a terceira vertente dialoga com obras de fantasia no qual a ciência
está implícita, como é o caso do Percy Jackson, que apresenta a mitologia grega
em pleno século XXI. Os diversos acontecimentos que envolvem a natureza, a
cultura, o desenvolvimento científico e tecnológico e a sociedade moderna são
ações diretas dos deuses do Olimpo.
Assim, a aproximação entre literatura e ciência acaba permitindo a
elaboração de questões/temas que servem como mote para as atividades. No caso
do Percy Jackson questões como qual seria a relação entre ciência e mitologia? E
a causa da ocorrência de terremotos se dá pela ira de Hades ou pelas placas
tectônicas? Já no Guia dos Mochileiros, questionamos, como fazer para "mochilar"
pelas galáxias? E no Duna, como viver num planeta desértico? Quais são as
adaptações necessárias a sustentação da vida humana?
Neste sentido, o momento de pré-leitura, acaba se caracterizando por esta
problematização dos temas presentes, tanto na ciência quanto na literatura. Após
esta problematização inicial, os temas eram discutidos e apresentados a partir dos
textos e de materiais de suporte como vídeos e artigos de divulgação científica.
Resultados e observações
416
propostos para sua distribuição aos alunos. Destacamos essa medida, pois, é
importante ter os livros disponíveis para os estudantes lerem. Assim, utilizamos a
prática de deixar os livros disponíveis para empréstimo em todos os encontros,
como representado na foto a seguir.
417
Em relação à ciência, vimos que alguns estudantes tinham dificuldade em
identificar a ciência presente nos textos. Acreditamos que parte disso se deve por
não conhecerem os temas e só estarem iniciando o estudo da ciência recentemente.
Alguns estudantes traziam um certo conhecimento sobre os temas científicos, mas,
em muitos casos era um tanto limitado. Além disso, foi também possível encontrar
participantes que não se interessavam pela discussão científica, ficando mais
interessados no aspecto literário.
Considerações
A pesquisa se propôs a apresentar os resultados preliminares da aplicação
de um clube de leitura que utiliza como base textos de fantasia e ficção científica
que possibilitem o desenvolvimento tanto do gosto pela leitura quanto pela ciência.
De maneira geral, pudemos observar a dificuldade de aliar as duas áreas com
atividades que sejam atraentes para os participantes. No período em que foi
realizado, foi possível tratar tanto de temas literários quanto científicos, o que nos
possibilitou observar na prática a importância da aproximação entre ciência e
literatura em atividades didáticas.
Observamos, também, que a proposta para implementação de atividades
transdisciplinares, embora seja bem recebida no espaço escolar, é bastante
complicada. Acaba sendo algo novo até para os alunos que já estão acostumados
com o ensino fragmentado.
Como continuidade da pesquisa, esperamos aumentar o acervo de obras
trabalhadas de maneira a possibilitar que os estudantes participantes também
sugiram obras que gostariam de ler. Além dos livros, também esperamos
desenvolver novas dinâmicas de intervenção. Embora estivéssemos utilizando o
espaço do contra turno com a ideia de fazer atividades não formais, sentimos que
as atividades desenvolvidas ainda ficaram muito presas a sala de aula. Nesse
sentido, acreditamos que pensar atividades mais dinâmicas e que possam explorar
todo o espaço escolar, podem ajudar a aumentar a participação dos estudantes.
418
Referências
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perspectiva cultural em aulas de Física. Caderno Catarinense de Ensino de Física,
Florianópolis, v. 10, n.1, p. 7-13, 1993.
GOMES, E.F. O Romance e a Teoria da Relatividade: A interface entre Literatura e
Ciência no Ensino de Física através do discurso e da estrutura da ficção. 2011. 152
p. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Instituto de Física, Instituto de
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GUEDES, D. Jovens vorazes por literatura. Jornal do Commercio. Recife-PE, 22 de
Dezembro, 2013. Caderno C. p. 01 e 03.
JACOBS, A. The Pleasures of Reading in an Age of Distraction. Oxford: Oxford
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LAJOLO, M. A moçada está lendo (e gostando de ler). Carta Fundamental. Edição
62. São Paulo, Outubro de 2014. Disponível em:
<http://www.cartafundamental.com.br/single/show/311>. Acesso em 30/11/2014.
MARTIN, M. J. et al. Science fiction comes in to the classroom: Maelstrom II. Phys.
Educ. n. 27, p. 18-23, 1992
OLIVEIRA, A.A. Física e Ficção Científica: desvelando mitos culturais em uma
educação para a liberdade. Dissertação (Mestrado). Instituto de Física, Faculdade
de Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010. 238p.
OLIVEIRA, Gabriela R. de. As práticas de leitura literária de adolescentes e a escola:
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Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
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SME; Programa de Reorganização Curricular e Administrativa, Ampliação e
Fortalecimento da Rede Municipal de Ensino de São Paulo; Disponível em:
<http://maiseducacaosaopaulo.prefeitura.sp.gov.br/documentos/>. 15 de Agosto de
2013.
SNYDERS, G. A alegria na escola. São Paulo, Manole, 1988.
ZANETIC, J. Física também é cultura. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1989.
419
COMBINANDO SABERES CRUZADOS DE LÍNGUA E DE AMBIENTES
DIGITAIS 3D COMO SUPORTE PARA ESTIMULAR APRENDIZAGEM
TRANSDISCIPLINAR E CONTINUADA: UMA EXPERIÊNCIA DE USO A PARTIR
DO ENSINO FUNDAMENTAL
167
Departamento de Ciência da Computação – Instituto de Matemática – Universidade Federal da Bahia –
UFBA
420
Lopes: 2012, 2013; Franco: 2014), figura-1.
Figura.1 À esquerda, um programa de
computador escrito na linguagem de
marcação Virtual Reality Modeling
Language (VRML), com suporte das
línguas inglesa e portuguesa. Na imagem
à direita sua representação simbólica,
propiciando visualização de uma
combinação de saberes envolvendo
cultura digital e arte, por exemplo, com uma simulação 3D da obra minimalista “Free
Ride” (Wikepedia Minimalism: 2015)
Aprofundando investigação em trabalho prévio (FRANCO et al: 2006), essa
‘combinação pedagógica e técnica’ tem sido utilizada no uso educacional e na
construção de sistemas digitais e ambientes/interfaces 3D que propiciam produção
e visualização de informação e interações humano-computador (IHC) em tempo
real, por exemplo, como em (CHEN: 2006; SHARP; ROGERS; PREECE: 2013;
SEBESTA: 2011).
Na literatura referente ao uso de ambientes digitais 3D (AD3D) e suas
tecnologias na educação (AVATAR: 2011; Youngblut: 1998). E, no contexto de
desenvolvimento deste trabalho, os impactos qualitativos oriundos de atividades
educacionais experimentais com suporte de AD3D, que têm beneficiado estudantes
e ex-estudantes de uma escola pública de ensino fundamental, indicam, que o uso
desta combinação pedagógica e técnica, na Educação, traz vantagens.
Principalmente, se for utilizada com ênfase em integrar o desenvolvimento de
atividades educativas com reflexões críticas e interativas entre os indivíduos sobre
a aplicação de tecnologias digitais. Desta maneira, pode e os têm ajudado construir
consciência e ou modelos mentais sobre a relevância de conhecer, compreender,
dominar e aplicar tais conhecimentos ao longo da vida. Por exemplo, são
identificadas vantagens relativas a estimular os indivíduos aprender a aprender e
ampliar habilidades cognitivas e técnicas, no que tange a se engajar em incursões
421
mais aprofundadas e vitalícias na busca e aprimoramento de conhecimento
(FRANCO; LOPES: 2012; FRANCO: 2014; FRANCO: 2015).
Esta combinação pedagógica e técnica suporta estimular a capacidade dos
indivíduos de interagir e aprender novas linguagens e suas técnicas, de expressar
ideias e de aprender continuamente (SEBESTA: 2011, p.21-23), de modo integrado
com conceitos científicos do currículo escolar como em (Professor Virtual 3D: 2015).
Ela embasa interações humano-computador (IHC), reflexões individuais e
colaborativas sobre compreender numa perspectiva transdisciplinar a integração de
vários conceitos técnicos, científicos, artísticos e culturais, tais como os relativos ao
uso de recursos técnicos contemporâneos da cultura digital inspirada na Web3D
para produzir e visualizar informação com base em programar computadores.
Assim, participar deste processo educativo, que enfatiza produção e visualização
de informação via programação de computadores e aplicação do conceito de
hipertexto, tende a contribuir para que os indivíduos entendam a relevância de
estudar, compreender, dominar e ampliar conhecimento referente às letras e os
meios digitais que elas compõem, na vida cotidiana.
Pois, para Ware (2004, p.15-16), em essência, as letras são símbolos
convencionais arbitrários socialmente construídos e difíceis de aprender,
requerendo dos indivíduos bastante dedicação ao interagir com elas a fim de
apreenderem o conhecimento que as envolve. Este autor exemplifica que mesmo
dominando a habilidade da fala, as crianças levam centenas de horas para aprender
a ler e escrever.
O engajamento dos indivíduos no processo educativo de aprimorar domínio
das letras, que engloba aprender e aplicar saberes cruzados de língua e ambientes
digitais 3D, pode ajudar a reduzir problemas, tais como a necessidade de decrescer
o alto percentual de alfabetismo funcional da população brasileira (INAF: 2012); de
promover alfabetização midiática e informacional dos indivíduos (WILSON et al.:
2013), estimular ensino comunicativo de língua estrangeira com base em significado
e contexto numa realidade em que a comunicação é mediada pelo computador
(HANNA: 2015); aprimorar capital humano através de uma educação mais integral
e continua, sintonizada com as evoluções dos meios digitais e a necessidade de
422
indivíduos com habilidades cognitivas mais efetivas para o mundo do trabalho (IBM:
2015); e contribuir com estudos relativos a como promover a formação e
aprimoramento de ecossistemas educacionais que englobem aprendizagem/ensino
de ciências, engenharia, tecnologia, artes, matemática em ambientes educativos
formais e informais (NRC:2015).
423
Metodologia e Estratégias de Aplicação
Com suporte de técnicas relativas à pesquisa-ação, através de observação
longitudinal formal e informal (Sharp; Rogers; Preece: 2013; Mills: 2014), e
estratégia de aprender fazendo (Ronchi: 2009), tem sido apresentado aos
estudantes via projeto pré ou pós-aula no laboratório de informática da escola, e
quando possível durante as aulas de língua inglesa, as técnicas, softwares,
linguagens e procedimentos necessários para desenvolvimento de ambientes
digitais 3D com base em tecnologias da internet. Fora do horário de aula de língua
inglesa, os estudantes têm participado do processo educativo por adesão voluntária.
As atividades educativas têm sido realizadas durante o período de autoformação do
autor deste texto, quarenta e cinco minutos, uma vez por semana. Para atender com
mais qualidade o processo educacional dos estudantes o número máximo de alunas
e alunos convidados é doze.
424
modular, no programa são construídos / descritos objetos digitais, com uso de
diversos conceitos da matemática para atribuir aos objetos digitais tamanhos, por
exemplo, números (inteiros e decimais; negativos e positivos tendo como referência
o plano Cartesiano); conceitos de geometria relativa à forma dos objetos (box, cone,
cylinder, sphere, text shape), cor, movimento, e posição espacial. Há ainda
associação com a cultura digital relativa à produção de conteúdo tridimensional
(3D), que é uma tendência da indústria do entretenimento, por exemplo, encontrada
nos vídeos games e nas criações cinematográficas. O processo de produção de
conteúdo digital 3D ajuda também na compreensão dos conceitos de luz e de textura
e de como produzir e aplicar luz e textura em um objeto. Os conceitos de luz e
textura são estudados na disciplina de Artes. Este processo educacional interativo
tem beneficiado as e os estudantes proporcionado que experimentem com técnicas
e conceitos relativos à ciência da computação, computação gráfica interativa e
realidade virtual ao programarem computadores, visualizarem e interagirem em
tempo real com objetos digitais. Este enfoque no uso pedagógico e técnico
transdisciplinar de tecnologias da Web3D tem estimulado e propiciado que os
indivíduos tenham embasamento para utilizar essas e outras tecnologias afins como
suporte ao seu aprendizado e protagonismo vitalícios, levando-os também a
incursões profissionais e empreendedoras, a partir do uso consciente dos
conhecimentos técnicos relativos a essas tecnologias de modo integrado com
saberes científicos do currículo instigados e aplicados desde o ensino fundamental.
Considerações finais
Resultados qualitativos deste trabalho indicam que a combinação
pedagógica e técnica descrita suporta aprendizagem/ensino com princípios
transdisciplinares (WEIL; D’AMBROSIO; CREMA: 1993), estimula habilidades
cognitivas como pensar espacialmente (Chen: 2006), ler e comunicar (SHARP;
ROGERS; PREECE: 2013), domínio técnico para usar recursos digitais com
consciência (FRANCO; LOPES: 2012; FRANCO: 2014). Com sua aplicação em
atividades educativas experimentais, esta combinação que engloba saberes
cruzados de língua e AD3D tem inspirado aprimoramento sociotécnico, educação
425
continuada e atitudes empreendedoras dos indivíduos (FRANCO: 2015). E
produzido um ecossistema educacional propicio para estimular construção de outros
ecossistemas educacionais que englobem aprendizagem/ensino transdisciplinar de
letras, ciências, engenharia, tecnologia, artes, matemática em ambientes educativos
formais e informais.
Estes resultados empíricos qualitativos alcançados no ensino fundamental, a
partir do uso da combinação mencionada, podem contribuir com estudos e reflexões
em trabalhos de pesquisas que têm objetivos similares, ensino superior. Por
exemplo, o trabalho do grupo de pesquisa ‘Ferramentas de Interação e Simulação
Aplicadas aos Processos Educacionais, Tecnológicos e Sociais (FISAPETS)’, que
investiga “novas perspectivas educacionais e sociais para a geração, representação
e exploração de conhecimentos hipertextualizados e dinâmicos”. (FISAPETS:
2015).
Agradecimentos
Agradecemos aos estudantes, educadores, pesquisadores e instituições que de
algum modo têm contribuído para a sustentabilidade deste trabalho. Que sejam
abençoados.
REFERÊNCIAS
426
FRANCO, Jorge F. Using Web3D Based Technology as a Lifelong Learning
Companion Tool: a Use Case. In: Proceedings of Immersive Education/Immersion
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427
HANNA, Vera, L. H. (org.), Intertextualidades culturais no ensino de línguas
estrangeiras: repensando o contexto. In: Letras no terceiro milênio: diálogos
transdisciplinares, Brasil: Editora Mackenzie, 2015.
IBM, The future of learning: Enabling economic growth, Sales and Distribution,
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429
DO CAUSO À TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA:
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA SOBRE MEDIAÇÃO DE LEITURA E
PRODUÇÃO HIPERMIDIÁTICA
Introdução
168
USP/CSD
430
multiplicidade de caminhos em uma arquitetura labiríntica, cujos fios heterogêneos
conduzem o indivíduo na grande aventura de ler e outorgar sentidos, experiência
única e humanizadora.
Por isso, nos últimos três anos, nas aulas de Língua Portuguesa da primeira
série do Ensino Médio no Colégio São Domingos, tem sido realizado um trabalho
de leitura e produção de textos nos mais variados
códigos/suportes/mídias/linguagens, extrapolando, assim, ao universo da escrita,
ou seja, desenvolvendo “[...] competências comunicativas dos estudantes que vão
muito além do conhecimento do vocabulário e da gramática para formar sentenças
gramaticalmente corretas no aprendizado formal da expressão verbal literária.”
(MultiRio: 2011, 71).
No ano de 2013, por exemplo, em face desse mundo cada vez mais inter-
pluri-multi e transcultural, onde as fronteiras esfacelam-se, buscou-se oferecer aos
alunos meios para que eles pudessem compreender e usar os sistemas simbólicos
das diferentes linguagens como modo de organização cognitiva da realidade,
tornando-se, efetivamente, protagonistas no processo de produção dos sentidos.
Para tanto, como será descrito adiante, os estudantes foram enveredados para o
universo da tradução intersemiótica, no qual puderam compreender que “[...] a
leitura para a tradução não visa captar no original um interpretante que gere
consenso, mas ao contrário, visa penetrar no que há de mais essencial no signo”.
(PLAZA: 2013, 36).
431
Nessa esteira, foram criadas estratégias capazes de promover diferentes
práticas sociais de leitura e também de produção textual, cuja vivência
proporcionasse o desenvolvimento de uma postura crítica/sensível diante de
valores/informações/discursos veiculados e construídos pelos objetos culturais nos
mais vastos meios de expressão.
Na (a)ventura de alargar significados, o aluno foi desafiado, portanto, a
movimentar diferentes áreas do saber, expondo o seu repertório individual. Isso se
diferencia, completamente, de um trabalho realizado ao longo de anos de uma
tradição escolar nacional, o qual se limita a procura de uma resposta e modelo
“corretos”169 sem aprofundamento ou reflexão.
Nessa senda, no que tange a disciplina de Língua Portuguesa, tentou-se
promover a apreensão dos recursos da linguagem e dos contextos de produção
(tempo/espaço, gênero, materialidade) para que, assim, o estudante construísse
sentidos e diálogos entre épocas, culturas, saberes e textos.
O exercício desse olhar sensível, mas também inteligível, permitiu aos alunos
desdobrarem-se pela vastidão do que não se sabe e não se limitarem aquilo que se
conhece. Tal abordagem, que não se restringiu a uma leitura e uma produção
meramente com meios de comunicação, mas nos/pelos/entre/para, engendrando
saberes de outras áreas, como História, Geografia, Artes etc.
Desse modo, no espreitar de uma realidade abstrata, incerta e em constante
transformação, foi proposto um gesto investigativo que revelasse, no exercício da
mediação, um projeto pedagógico que garantisse “[...] reflexão e oferta de uma
infinidade de outras referências, outros códigos e valores, com o objetivo de
promover um amadurecimento e um questionamento no consumo de bens, serviços,
informações e saberes.” (MultiRio: 2011, 77).
Quanto à experiência propriamente dita, o presente relato irá apresentar
maiores detalhes a seguir.
169
Não há confrontos de leituras e pontos de vista, mas a imposição de uma análise “una” e correta, privilegiada
pelo docente, anulando qualquer acontecimento dialógico no seio da sala de aula. No Colégio São Domingos, a
mediação de leitura e de produção em sala de aula concretizou-se como uma atividade dialógica guiada pelo
educador atento aos discursos, às vozes e, até mesmo, aos silêncios dos alunos, assegurando que as
(inter)subjetividades aparecessem, se colocassem à prova, se ensaiassem, se inventassem e se transformassem,
como sugere Larrosa (2004).
432
Descrição do material utilizado
Capa do livreto
433
irmãos que morreram em razão da cobiça. Depois, os educandos receberam a
transcrição da história (dialeto caipira) que, em seguida, foi confrontada com uma
versão na norma culta, sendo os dois textos narrados em terceira pessoa (narrador
onisciente).
Dentre as sortidas estratégias de mediação, os estudantes acabaram
demarcando o campo semântico da história e levantando hipóteses para o
significado de algumas expressões, como, por exemplo, “deitá fogo”. Mais adiante,
os adolescentes leram Tristeza nos caminho da roça170, Oi de oro171, Jovens irmãos
se matam no buraco fundo172 e A pedra do caminho173.
Frente às possibilidades de transpor o arranjo textual do causo para outras
variantes linguísticas, outros focos narrativos, outros gêneros, outros tons, outros
suportes, outros contextos..., propôs-se a experimentação do processo de tradução
intersemiótica do causo A peda de oro, pois:
Tradução Intersemiótica
Primeiramente, cabe sublinhar que:
170
O velho pai, um agricultor já sem forças para trabalhar, abandonado pelos filhos, é quem conta a história.
171
Quem conta é o Diabo, um espírito sedutor e malicioso, o qual, tentadoramente, convida os três rapazes a
“cair no mundo”.
172
É narrada a morte dos três irmãos como um fato de interesse para a página policial dos jornais. Cabe sublinhar
que o compromisso com a atualidade transformou a pepita de ouro em pedra de crack.
173
Conta-se a história da morte dos filhos de um velho solitário, escolhendo as palavras pela sonoridade, pelo
ritmo, de modo a tocar os sentidos e a emoção.
434
[...] Jakobson foi o primeiro a discriminar e definir os tipos possíveis de
tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica. [...] A Tradução
Intersemiótica ou “transmutação” foi por ele definida como sendo aquele
tipo de tradução que "consiste na interpretação dos signos verbais por meio
de sistemas de signos não verbais", ou "de um sistemas de signos para
outro, por exempli, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a
pintura", ou vice-versa. (PLAZA: 2013, 11)
174
Dentre os inúmeros produtos autorais a partir do causo A peda de oro, apareceram: entrevista fantástica, em
áudio, com o capeta; atualização da narrativa em formato audiovisual; diário de veio poético do Coisa-Ruim;
carta de despedida do pai dos jovens mortos; cartografia indicando o local onde se encontrava a pedra de ouro;
fotonovela somente com personagens femininas; história em quadrinhos reconfigurando o tipo de pedra
encontrada (crack), e costura de textos hipermidiáticos.
175
https://www.youtube.com/watch?v=wBKrmW2qDVQ
435
da cobiça (desejo de se casar com o príncipe encantado), como se pode
acompanhar a seguir:
436
Fragmento da página do Twitter da Belle: http://twitter.com/_BellePrincess
437
Fragmento da página do Twitter da Chapeuzinho Vermelho: http://twitter.com/_ChapeuzinhoV
Considerações Finais
[...] a tradução para nós se apresenta como “a forma mais atenta de ler” a
história porque é uma forma produtiva de consumo, ao mesmo tempo que
relança para o futuro aqueles aspectos da história que realmente foram
lidos e incorporados ao presente (PLAZA: 2013, 2)
438
Ademais, “[...] a tradução como prática intersemiótica, depende muito mais
das qualidades criativas e repertoriais do tradutor, quer dizer, de sua sensibilidade,
do que da existência apriorística de um conjunto de normas e teorias [...] (PLAZA:
2013, 210).
Referências
439
O DESAFIO DE (RE)PENSAR O PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM,
EM FOCO: RECURSOS AUDIOVISUAIS E INTERTEXTUALIDADE.
Introdução
176
Mestrado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil, Professora da Faculdade Mogiana
do Estado de São Paulo
177A linguagem, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1996, p. 22), é “uma forma ação interindividual
orientada por uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais
existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da sua história”.
440
Então, o que seria ser sujeito do processo ensino-aprendizagem? Ser sujeito
implica em participar ativamente do processo que não é só de ensino e sim de
ensino-aprendizagem, ou seja, construir o conhecimento em um processo de troca,
não apenas estar no mundo, mas atuar nele.
Seria possível agirmos como seres transformadores de uma realidade,
mesmo que tenhamos como modelo a educação reprodutora? A resposta é
afirmativa, desde que, como propõe Freire (1996, p.17), tenhamos consciência de
que “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação”
E é com base nesses preceitos inovadores que exigem um novo olhar ao
processo ensino-aprendizagem, que discutimos e expomos, neste trabalho,
atividades didáticas desenvolvidas em sala de aula. Procuramos “pensar certo”,
como nos sugere Freire (1996, p. 21), isto é, não limitar as aulas à mera
transferência de conteúdo, mas sim construir o conhecimento em conjunto:
educador e educandos.
Para tanto, dividimos o trabalho em três tópicos. No primeiro, A roda da
leitura, narramos como surgiu a ideia do trabalho com recursos audiovisuais e a
intertextualidade. O segundo tópico, intitulado Caminhos da aprendizagem,
destinamos à narrativa do desenvolvimento do trabalho em sala de aula, expomos
as ações didáticas passo-a-passo. No último, Enfim aprendemos?, refletimos e
fazemos considerações sobre o processo ensino-aprendizagem.
A Roda da Leitura
A Roda da Leitura é uma atividade didática desenvolvida, quinzenalmente,
com os alunos dos 9º anos, na Escola Municipal do Ensino Fundamental Pref.
Waldomiro Calmazini, situada em Mogi Guaçu – SP, que consiste em um momento
“diferente”, no sentido amplo da palavra, tanto em relação à distribuição física da
sala, como ao desenvolvimento da atividade didática. Fazemos um círculo, a fim de
que os comentários e reflexões sejam “lidos” por todos, o que envolve a leitura da
linguagem corporal e da verbal, e, neste momento, compartilhamos nossas
experiências leitoras.
441
O trabalho objetiva o desenvolvimento da oralidade e criticidade, tais
objetivos são evidenciados nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
Portuguesa (1997, p.33), pois apontam que o educando deve “valer-se da
linguagem para melhorar a qualidade de suas relações pessoais, sendo capazes de
expressar seus sentimentos, experiências, ideias e opiniões, bem como de acolher
interpretar e considerar os dos outros, contrapondo-os quando necessário”.
Geralmente, iniciamos a atividade com a exposição do professor, o qual
relata de maneira simples, porém entusiasmada, a última leitura realizada por ele, a
fim de encorajar os alunos a relatarem suas experiências leitoras, que não precisam
estar limitadas à mera narração das histórias, mas em emitir opinião sobre a
construção do livro (linguagem utilizada, público alvo, entre outras coisas).
Em uma dessas “conversas”, comentamos sobre o livro Dom Quixote de la
Mancha de Miguel de Cervantes e os alunos se envolveram na história e pediram
para que desenvolvêssemos um trabalho sobre o clássico. Apresentamos, então,
algumas versões da obra e elegemos para o desenvolvimento da atividade o livro
Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato.
Paulo Freire (1996, p. 44) nos faz refletir que o educador deve “assumir o
dever de motivar, de desafiar quem escuta, no sentido de que, quem escuta diga,
fale, responda”. No momento em que narramos a história de Dom Quixote, os alunos
foram desafiados e ouvidos, por isso inserimos no planejamento das aulas o
trabalho com o livro. No entanto, precisaríamos planejar quais seriam os passos
seguintes dessa nova atividade e, ainda, qual seria o produto final.
Nessa mesma Roda de Leitura, discutimos possíveis atividades que
poderiam ser realizadas como produto final da leitura do livro Dom Quixote das
Crianças: apresentação de um teatro, produção de um vídeo, resumo da obra,
seminários expositivos, entre outros.
Decidimos que seria a produção de um vídeo. Logo, precisaríamos conhecer a
linguagem audiovisual, também necessitaríamos conhecer o gênero textual178
“roteiro”, para que o trabalho fosse realizado. Consequentemente, analisaríamos a
178“Constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três
elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional” (PCN, 1996, p.23).
442
questão da intertextualidade, já que o livro é um intertexto da obra de Cervantes,
assim como o vídeo que seria produzido pelos alunos como produto final.
Trabalharíamos a intertextualidade da perspectiva da transformação e
assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o
comando do sentido, não como uma soma confusa e misteriosa de influências, como
nos aponta Elisa Guimarães (2009). Esclareceríamos que o trabalho de recriação
de um texto permite novas leituras de perspectivas diferentes, o que possibilita
diversidades de formas.
Caminhos da aprendizagem
Paulo Freire (1996, p. 16) nos lembra que “não há ensino sem pesquisa e
pesquisa sem ensino”, concordamos com o autor, por isso antes de sequenciarmos
o trabalho, pesquisamos “caminhos” que pudessem facilitar o processo ensino-
aprendizagem e encontramos um vídeo intitulado Dom Quixote como gostaríamos
que fosse, que narra a história de Dom Quixote e Miguel de Cervantes, pela ótica
de várias personalidades americanas, as quais enfatizam a influência de Quixote
em suas vidas, entre elas Mário Cuomo, ex-governador de Nova Iorque. Contudo,
não queríamos que a análise do vídeo ficasse limitada, apenas, a conhecer a(s)
narrativa(s), mas sim, objetivávamos a apropriação dos recursos para a produção
do vídeo, ou seja, o (re)conhecimento da linguagem audiovisual.
Logo, percebemos que precisaríamos nos alfabetizar nessa nova linguagem,
uma vez que “perceber, compreender, com-icmplar, observar, descobrir, visualizar,
examinar, ler, olhar” (DONDIS, 2003, p.5), pode parecer simples, principalmente em
relação à linguagem audiovisual, pois está presente em nosso cotidiano, mas
implica um olhar cuidado e criterioso. A partir disso, resolvemos investigar as
nomenclaturas da linguagem audiovisual, para que os alunos entendessem que a
construção de um vídeo vai além da narrativa.
No primeiro momento do desenvolvimento da atividade, assistimos o vídeo,
fizemos o levantamento de nossas impressões e entendemos um pouco mais do
livro Dom Quixote de La Mancha e de Miguel de Cervantes. Em seguida,
procuramos analisar os efeitos da linguagem audiovisual presentes no vídeo, para
443
tanto esclarecemos que os enquadramentos “constituem o primeiro aspecto da
participação criadora da câmara no registro que faz da realidade exterior para
transformá-la em matéria artística” (MARTIN, 2005, p.45), pois precisávamos
compreender o aspecto criador da câmara (ou do câmara?), o quanto tal registro é
necessário para transformar a “realidade” em arte, para a interação do
leitor/telespectador com a criação artística.
Posteriormente, passamos a compreender os planos de uma filmagem e que
“[...]a escolha de cada plano é condicionada pela necessária clareza da narração:
deve existir uma adequação entre a dimensão do plano e o seu conteúdo material”
(MARTIN, 2005, p. 47). Descobrimos que há a necessidade de uma escolha, pois
existem vários tipos de planos, os quais permitem clareza e transmissão de emoção
ao público, de acordo com o conteúdo dramático da narrativa. Procuramos,
didaticamente, mostrar tais ângulos aos alunos, com imagens representativas, aqui,
limitar-nos-emos a breves definições:
444
linguagem audiovisual, com certeza, a surpresa seria grande. Essa foi uma das
primeiras colocações dos alunos, ao adentrem neste novo universo.
Também aprendemos um pouco sobre os tipos e a importância dos ângulos
na construção do vídeo, como fizemos com os planos, os ângulos também foram
evidenciados por imagens e breves definições
445
os vê. Para começar, uma densa neblina no plano geral (PG) foi essencial
para se causar o suspense e, ao sair dela, Dom Quixote em sem cavalo, a
câmera deu um close em seu rosto ─ momento de emoção [...] (Fragmento
– Texto 1 – 9º A)
179 Artista plástico e caricaturista é um rio-clarense de muitas histórias, contadas em caricaturas, ilustrações, pinturas e
instalações dentre muitas aventuras artísticas. Ele é nome conhecido na grande imprensa brasileira, como revista Veja e o
jornal Folha de S. Paulo, e é presidente do Salão Universitário de Humor de Piracicaba, cidade onde também é professor de
artes gráficas na Universidade Metodista de Piracicaba. (www.revistaicone.com)
446
Procuramos meios para elucidar a formulação do roteiro que “não é o último
estágio de um percurso literário. É o primeiro estágio de um filme” (CARRIÈRE,
2006, p. 132). Logo, o término da leitura proposta, seria a mola propulsora à
construção do roteiro, que implica não apenas a escrita do texto, mas o
planejamento detalhado de cada ação das personagens, a reflexão sobre
ambientação das cenas, os sons, o cenário, ângulos, enquadramentos, planos da
câmera, etc.
Descobrimos o vídeo “A criação de um roteiro”, que detalha de maneira
dinâmica a construção do gênero. A utilização desse recurso facilitou a
compreensão dos alunos em relação à importância do “pensar” sobre a escrita
desse gênero textual. Segundo os PCN (2008, p.76), “as atividades didáticas de
produção textual, que envolvem autoria ou criação são complexas, porque o aluno
precisa articular dois planos: o do conteúdo - o que dizer e o da expressão - como
dizer”.
Levando em consideração a complexidade de tal atividade e buscando,
ainda, “caminhos” facilitadores, levamos à sala de aula trechos do filme
“Saneamento Básico” e respectivos roteiros, visto que o vídeo narra a história de
personagens construindo um roteiro e aborda uma questão muito importante na
criação do vídeo: a transposição do roteiro em filme, que segundo Carrière, (2006,
p. 148) “está pronto quando o roteiro tiver evanescido”.
Precisávamos compreender que a elaboração do roteiro era essencial para a
produção do filme, mas que elementos do texto poderiam ser acrescentados,
retirados, modificados, de acordo com a necessidade percebida no momento da
gravação. Ao compararmos o texto escrito e o filme já gravado, evidenciamos várias
diferenças, as quais possibilitaram maior compreensão dessa transposição.
Ressaltamos a importância de tais leituras (vídeo e roteiro), pois “a leitura, por um
lado, nos fornece a matéria-prima para a escrita: o que escrever. Por outro, contribui
para a constituição de modelos: como escrever.” (PCN 1996, p.40)
Para concretização do trabalho, estabelecemos o prazo de 30 dias e o
Momento tira dúvidas, no qual, uma vez por semana, os alunos trariam as principais
447
dificuldades encontradas ao produzirem o roteiro e o vídeo, a fim de que
pensássemos possíveis soluções.
Demorou um “pouquinho” para que os alunos compreendessem, que eles
estavam criando uma nova história, ou seja, um intertexto, visto que as dúvidas mais
frequentes eram: “Podemos “tirar” partes do texto original”?; “Podemos criar o nosso
Pedrinho, a nossa Dona Benta ou a nossa Emília?”, “E o nosso Dom Quixote?”.
Muitas eram as dúvidas, durante o processo de criação do texto, porém a cada
dúvida esclarecida, percebíamos muita animação e envolvimento no trabalho.
No dia marcado para apresentação do trabalho, todos os alunos estavam
presentes nas salas (ansiosos e eufóricos), pedimos a eles que apresentassem os
vídeos e explicassem como foi o processo de criação do roteiro e do filme.
Os alunos pontuaram alguns probleminhas de comunicação e colaboração
dos colegas, porém focaram a explanação na construção do roteiro e do vídeo,
explicaram o porquê das músicas escolhidas para cada cena, como produziram as
roupas das personagens, como pensaram e fizeram trabalho com câmera (ângulos,
planos e enquadramentos), para causarem os efeitos desejados: suspense, medo,
alegria, etc.
Enfim, aprendemos?
Procuramos trabalhar o “ato de ler, que não se esgota na decodificação pura
da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na
inteligência do mundo” (FREIRE, 1989, p.9), em sala de aula, vislumbrando a
compreensão do texto através do estabelecimento de relações de texto e contexto,
o que, para nós, não é muito simples, uma vez que, como já expusemos, somos
frutos da educação impositiva e reprodutora. Porém, estabelecer essas relações e
oportunizar tal leitura aos alunos é, sem dúvida, o primeiro grande passo à
aprendizagem.
A troca de experiências leitoras entre/com os alunos na Roda de Leitura,
desencadeou uma sequência de atividades inusitadas, pois adentramos a um
universo desconhecido, para o qual precisaríamos conhecer e entender os recursos
audiovisuais e (re)planejar várias aulas, de acordo com a necessidade e sugestão
448
dos alunos, a fim de que o processo ensino-aprendizagem fosse efetivo. Na
verdade, aprendemos juntos, desbravamos o novo “mundo” lado a lado, a cada
questionamento, a leitura desse mundo ia se ampliando e impulsionava-nos a nova
pesquisa.
Ao traçarmos os Caminhos da aprendizagem, conseguimos o envolvimento
de todos os alunos em cada passo, pudemos perceber que pisar as terras estranhas
do conhecimento, causou fascínio e prazer a eles, pois a linguagem que era
incomum, passou a ser comum e ao ganharem “voz” durante as discussões,
produções e exposições dos trabalhos, tornaram-se sujeitos do processo ensino-
aprendizagem. Logo, alcançamos os objetivos propostos.
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449
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Sites consultados:
450
O MITO DE FAUSTO NA LITERATURA DE CORDEL
Juliane Emiliano180
Introdução
180Mestre em Teoria Literária, pela Universidade Federal de Uberlândia e professora da Faculdade Don
Domênico – Departamento de Letras. Guarujá – SP – Brasil.
451
fugir do Maligno, pois este se transformava em muitas figuras para enganar e atrair
o povo ao pecado, como mostram as seguintes passagens bíblicas: “E não é de se
admirar, porque o próprio Satanás se transforma em anjo de luz” (2 Coríntios 11:14),
“Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como leão
que ruge procurando alguém para devorar” (1 Pedro 5:8). Além dessas
caracterizações muitas outras imagens foram atribuídas a Satanás; segundo Kênia
Maria de Almeida Pereira (2006), desde a Idade Média, a tradição popular
costumava materializá-lo sob inúmeras versões, como serpente, sapo, bode,
cachorro até frade.
Dentro desse contexto muitas obras foram escritas para alertar os humanos
contra a esperteza do Satã; um exemplo, segundo Delumeau (1989), foi o texto
publicado na Alemanha no século XV intitulado “As armadilhas do diabo”, uma vez
que as tentações eram vistas como mais perigosas do que o próprio tormento
eterno. No Brasil, conforme afirma Mário Souto Maior:
452
E é partindo desse conhecimento que nos propomos a escrever sobre a
presença do Maligno na cultura popular brasileira por meio da Literatura de Cordel,
uma vez que esta aparece no Brasil como sinônimo de poesia popular em verso;
segundo Hélder e Lúcio (2001), Literatura de Cordel é a expressão inicialmente
empregada pelos estudiosos da nossa cultura para designar os folhetos vendidos
nas feiras que ficavam pendurados por um barbante. Por ser uma literatura dita
popular de narrativa predominantemente oral, reúne “todas as manifestações de
recreação popular, mantidas pela tradição” (Cascudo: 1978, 27); nela podemos
encontrar histórias de batalhas, amores, sofrimentos, crimes, fatos políticos e
sociais do país e do mundo.
Por isso, então, propomos analisar um folheto de cordel do autor Manuel
D’Almeida Filho, considerado um dos grandes cordelistas brasileiros, por ter mais
de 150 obras e ser o autor do mais longo romance em versos até hoje escrito: O
Direito de Nascer, contendo 719 estrofes.
No texto que analisaremos a composição ocorre da seguinte forma: as rimas
posicionadas exclusivamente nos versos pares, sendo a eles aplicada a estrutura
de sete sílabas; os versos assim dispostos são chamados heptassílabos ou
redondilha maior, os quais, de acordo com Norma Goldstein (1999), ocorrem com
muita frequência na literatura de cordel; isso porque, do ponto de vista das leis
métricas, é de fácil composição, bastando a última sílaba ser acentuada, podendo
os demais acentos incidirem sobre qualquer outra sílaba. Outro aspecto importante
são as formas apresentadas: neste cordel ocorrem predominantemente estrofes de
seis versos, chamados de sextilha ou sexteto, composição que popularizou a poesia
escrita de base oral por toda região do nordeste brasileiro.
453
esposa ao demo. No entanto, quando o Tinhoso, personificado num negro, aparece,
é a personagem principal, Maria da Conceição. Esta percebendo a astúcia do
inimigo, elabora um plano para derrotá-lo e salvar o marido:
Segundo uma lenda, até/ O Diabo foi enganado/ Por uma mulher bonita/
Que o deixou desmantelado:/ Trabalhou que quase explode/ Findou
desmoralizado. Agora vamos botar/ A feijoada no prato,/ Saber como
Satanás/ Com a mulher fez um trato/ E como no fim/ Não cumpriu seu
contrato. (Filho: 1986, 3)
Nos versos acima observamos que a mulher sairá vencedora da batalha com
o Tisnado, mas para isso ela terá de ludibriar muito bem fazendo com que ele não
cumpra o trato e quebre o contrato. Todavia nossa análise não abordará somente a
astúcia de Conceição, mas também a de outra mulher que, como ela, usou da
artimanha para conquistar a vitória. Comecemos por entender o desenrolar da
história e como a personagem do folheto conseguiu sair vitoriosa.
Num certo dia, após tanta invocação feita por Pedro Botelho, o Diabo aparece
sob a forma de um negro, que, de acordo com Franklin Maxado (1994), no cordel
muitas vezes foi associado ao Diabo católico Medieval, o qual era negro e horroroso;
entretanto quem o atende é Maria, que, percebendo logo de quem se tratava
pensou: “Agora/ vejo o Diabo em minha frente;/ Valei-me minha Nossa Senhora,/
Dai me força para que/ Vença o “bicho” sem demora” (Filho: 1986, 5).
O pedido de socorro à santa se dava porque Maria tinha muita fé em Deus e
sabia que iria, com a força dos seus argumentos, derrotar o inimigo, pois, conforme
afirma Ian Watt (1997), a única maneira de defender-se do Demônio é ter uma
robusta fé em Deus. Logo, então, ela explica a ausência do marido e questiona a
presença do Dito Cujo em sua casa, dizendo poder atender em nome de Botelho. O
negro, então, esclarece o motivo do comparecimento: “O negócio/ Era somente com
ele/ Mas como a senhora acha/ Que pode se montar nele,/É para lhe dar riqueza/
Em troca da alma dele” (Filho: 1986, 6). A esposa, entendendo a intenção do
bandido, em seguida lhe propõe uma aposta para tentar ludibriá-lo:
454
documento;/ Com termos da proposta/ Nossa assinatura em sangue/ No
contrato fica posta/[...]/ Com sangue de um dedo seu/ Fez o contrato e
assinou;/ O preto assinou também/ Onde Maria mandou,/ Também com
sangue de um dedo/ Que no momento furou. (Filho: 1986, 6-8)
Fausto: Que queres tu dar, pobre demo?/ Quando é que o gênio humano,
em seu afã supremo/ Foi compreendido pela tua raça? Mas, possuis
alimento que não satisfaça,/ Rubro ouro que nas mãos já se desfaça/ Como
mercúrio, jogo estranho,/ Perdido sempre e jamais ganho,/ Mulher que já
nos braços meus,/ Piscando o olho, outro a si atrai;/ Da glória o dom, prazer
de um deus,[...]/ Mefistófeles: De tais bens posso dar-te a escolha,/ E põe-
me o encargo a fácil prova./ Mas, caro amigo, o tempo ainda virá/ De em
calma saboreares prazer./ Fausto: Se eu me estirar jamais num leito de
lazer,/ Acabe-se comigo, já!/ Se me lograres com deleite/ E adulação falsa
e sonora/ Para que eu próprio Eu preze e aceite,/ Seja-me aquela a última
hora!/ Aposto!/ e tu?/ Mefistófeles: Topo!/[...]/ No festim doutoral, assumirei
tão logo/ De servidor o ofício e o porte./ Mas, por amor da vida e morte,/
Algumas linhas te rogo./ (GOETHE: 2004, 167-171)
455
Entendemos, então, que no texto de Goethe o Diabo é que toma a iniciativa
de propor um acordo com um homem, oferecendo a ele tudo o que desejar.
Diferente do cordel aqui proposto para análise, em que é a mulher a sugerir uma
aposta ao demo, segundo a qual este teria de realizar sete mandados sem
pestanejar; caso vencesse contrato ele levaria a alma dos dois; do contrário,
perderia aposta e nada ganharia.
Na primeira tarefa o Coisa Ruim tinha que construir uma casa com cem mil
metros, de dois andares, com material de boa qualidade, na qual deveria haver:
“muitos salões e salas,/ Servindo a todos os fins:/Parques, pomares, passeios,
Caramanchões e jardins” (Filho: 1986, 12). O Tinhoso, concordando com o trabalho,
partiu com as ferramentas e no dia seguinte entregou o prédio conforme o
combinado.
Maria, surpresa com a rapidez, foi logo ordenando construir um roçado: “Com
cem quadros de cinquenta,/Quero o campo todo arado,/ De cereais e verduras/
Rapidamente plantado” (Filho: 1986, 13); Tisnado saiu à noitinha e no dia seguinte
tudo estava pronto, o roçado já tinha até feijão maduro. No terceiro mandado o
Danado teve que edificar uma barragem para água represar, tendo nela peixes do
oceano adaptados para na água doce serem criados. O Das Trevas voltou no outro
dia alegremente dizendo:
Maria, sorrindo parabeniza pelo trabalho executado, porém ordena logo fazer
outro mandado; neste solicita a construção de uma rede de armazéns. Com um
sorriso nos lábios o Dito Cujo explodindo de alegria responde que entregaria os
armazéns antes que amanhecesse o dia. Após terminar o trabalho, a personagem
Maria da Conceição elogia os feitos do Cramulhão:
456
Querido,/ você é bom de verdade,/ Quero que vá hoje mesmo/ Construir
uma cidade/ Com dez mil casas bem feitas/ Cobrindo a localidade./ Ao
redor da minha casa/ Quero as ruas alinhadas/ Muito limpas e espaçosas/
Todas com pedras calçadas/ Com áreas para lazer/ E praças arborizadas./
O preto não vacilou/ A tarefa foi aceita/ Convocou sua turma,/ Executou a
receita/. (Filho: 1986, 16-17)
Tomei uma forte chuva/ Com relâmpago e trovão/Que fiquei todo molhado/
E dei cada escorregão/ Que caía com dez metros/ Rasgando o bumbum
no chão./ Para fazer o seu gosto,/Quase estouro minhas veias,/Percorri
vários países,/ Cidades, vilas e aldeias;/ Estou cansado; porém/ As
moradas estão cheias./ Tem espanhóis, alemães,/Suecos, russos,
franceses,/ Suíços, italianos,/ Polacos e noruegueses,/Mexicanos,
canadenses,/ Argentinos e chineses;/ Chilenos, [...] Fiz a mistura dos
pobres,/Doentes, famintos, nus. (Filho: 1986, 18)
457
escravo e fizera tudo em vão; o negro, que não era vagabundo e não queria perder
seu conceito realizando um trabalho tão imundo, vai embora contrariado:
O Diabo frustrado por ter sido enganado por uma mulher sai dizendo não ter
perdido a guerra, já que havia muitas almas, como assassinos e políticos
bagunceiros para serem “levados para o palácio das dores” (Filho: 1986, 23). No
entanto o Demo não menciona em vão o nome de algumas mulheres que usaram
da astúcia para conseguirem seus objetivos. Eva, segundo o livro de Gênesis a
primeira mulher que viveu na terra, traiu Adão ao oferecer o furto proibido por Deus.
Contudo pretendemos frisar a história de Dalila, pois com sua sagacidade conseguiu
derrubar o forte Sansão.
Consta na passagem do livro de Juízes que Sansão era o mais forte dentre
o seu povo, porém ao descer ao vale de Soreque se afeiçoou a uma filisteia, cujo
nome era Dalila; o israelita a desejou e tomou-a por sua esposa; no decorrer do
tempo ela sempre indagava ao marido a fonte de sua força; nas primeiras tentativas
ele não revelou o segredo, mentindo para ela; mas, devido à insistência e como a
amava, Sansão sede e acaba revelando a fonte de sua força:
458
Após a revelação os príncipes dos filisteus atacam Sansão, raspam sua
cabeça e o levam como escravo até Gaza. Lá o amarram com duas cadeias de
bronze para virar um moinho dentro do cárcere. Dalila é recompensada com mil e
cento ciclos de prata por entregar o marido aos seus inimigos. Dessa forma
percebemos que, assim como Dalila, Maria da Conceição usou de muita esperteza
nos argumentos para derrotar o Tisnado e vencer o pacto. Assim ficou claramente
demonstrado que, apesar de a sabedoria ser voltada para propósitos maléficos, é
muitas vezes superior à força física.
Considerações finais
459
Referências Bibliográficas
460
SOBRE AS VARIEDADES BRASILEIRA E EUROPEIA DO PORTUGUÊS:
ANALISANDO O USO DE PREPOSIÇÕES EM CARTAS DE LEITORAS
Introdução
Sabe-se que o princípio fundamental da Linguística Histórica é o fato de que as
línguas humanas mudam com o passar do tempo, não constituindo uma realidade
estática. Devido ao fato dessas mudanças ocorrerem de forma lenta e gradual,
muitos falantes não têm consciência de que suas línguas estão mudando, o que
comprova que a história da língua vai se fazendo num jogo de mutação e
permanência. Também é fato inconteste que esse processo passa,
necessariamente, pela situação de variação, em que a convivência e a concorrência
de formas variantes levam à gradual substituição de formas mais antigas
(conservadoras) por formas novas (inovadoras) (WEINREICH, LABOV, HERZOG,
1968, p.126).
É nesse contexto que se situa este estudo. Propõe-se a investigar a variação
entre as preposições introdutoras de complementos verbais, um fenômeno
atestadamente variável na variedade brasileira do português. Espera-se encontrar
um uso maior das preposições até, em e para nos dados analisados no português
brasileiro (PB), enquanto, para os dados do português europeu (PE), a hipótese inicial
é de que a preposição a prevaleça. Pretende-se, através dessa análise, apontar
explicações e justificativas para as diferenças existentes entre os usos dessas
preposições nas cartas brasileiras e portuguesas, de modo a determinar em que
medida essa distribuição revela padrões diferentes de uso em relação às normas
vigentes.
Trabalharemos, então, com as revistas Capricho e Bravo, brasileira e
portuguesa, respectivamente datadas dos anos de 2002 a 2012 e 2010 e 2011181, e
destinadas ao público feminino e adolescente. Pretende-se, assim, estabelecer uma
possível relação entre alternâncias no emprego de preposições em revistas
461
femininas brasileiras e portuguesas, buscando evidenciar os casos de variação
linguística através da análise das cartas de leitoras presentes nesses veículos de
comunicação. Pretendemos, através dessa relação, realizar uma comparação entre
duas variedades do português, considerando seus diferentes usos no que se refere
às preposições.
A busca por situações de variação e mudança em um córpus escrito nos faz
reconhecer, assim como na fala, o caráter heterogêneo também da escrita, sendo
essa uma tentativa de conceder à língua escrita um lugar nas pesquisas
sociolinguísticas.
Trabalharemos ainda com base nos estudos da Sociolinguística, tal como
proposta pela Teoria da Variação e Mudança Linguísticas (WEINREICH, LABOV,
HERZOG, 1968; LABOV 2001), que tem como princípio analisar a correlação entre
fatores sociais e a estrutura linguística de modo a compreender melhor o
funcionamento das línguas e da linguagem. Sendo assim, fica claro que tanto os
fatores internos quanto os externos são de extrema importância para os estudos
sociolinguísticos.
2 Orientações teórico-metodológicas
2.1 O uso das preposições e a variação linguística
As preposições selecionadas para esse estudo, segundo Ilari et al (2008),
são preposições que atribuem à figura a noção de ponto final de um percurso.
Exemplos como (1) “Ir ao cinema, comer um gelado.” (Bravo, 31/05/2011, p. 34);
(2) “Parece que ainda não caiu a ficha que estou indo para Taiwan sozinha, com
15 anos de idade.” (Capricho, 23/11/2008, p. 12); (3) “Um dia o Gustavo (feio) ligou
para mim e, enquanto fui no meu quarto pegar meu dever, minha irmã pegou o
celular e disse para o Gustavo (feio) pensando que era o Gustavo (bonito) [...].”
(Capricho, 22/01/2006, p.85) mostram que as preposições a, em e para entram em
variação sintática quando acompanham verbos de movimento. Já a preposição até
especifica o ponto final de um percurso, cujo ponto inicial fica pressuposto, assim
como vemos em (4) “Vai até a piscina e apresenta-se ao grupo.” (Bravo,
27/07/2010, p. 44).
462
Pode-se afirmar, então, que, embora as preposições apresentem grande
variedade de usos, bastante diferenciados no discurso, é possível estabelecer para
cada uma delas uma significação fundamental, marcada pela expressão de
movimento ou de uma situação resultante (ausência de movimento) e aplicável aos
campos espacial, temporal e nocional. Esta subdivisão possibilita a análise do
sistema funcional das preposições em português, sem que seja preciso levar em
conta os variados matizes significativos que podem adquirir em decorrência do
contexto em que vêm inseridas. Isso porque a maior ou menor intensidade
significativa da preposição depende do tipo de relação sintática por ela estabelecida.
Assim, é a partir dessa significação fundamental que se abre espaço para que as
preposições em questão funcionem como variantes.
182
O uso de colchetes com as preposições indica que há alternância entre elas na atualização da construção.
463
classe. As propriedades distribucionais de uma construção com esse tipo verbal
podem ser descrita como [+/- animado]Nº + V + [-animado]N¹ + {a, para}
[+animado]N².
Sobre o terceiro tipo verbal, aquele que aborda os verbos de movimento com
transferência, Berlinck (1996, p.132 – tradução nossa183) nos diz que “este grupo
representa uma extensão da ideia de transferência porque ele completa esta noção
com a de um movimento físico”. O seu verbo prototípico é “levar” e a estrutura de
uma sentença com este tipo verbal pode ser expressa por [+/- animado]Nº + V + [+/-
animado]N¹ + {a, para, em de} [+/- animado]N².
O último tipo verbal pertencente às estruturas transitivas são os verbos leves,
definidos por Cyrino, Nunes e Pagotto (2009, p.66) como verbos “com conteúdo
mais gramatical que semântico, cuja função primordial é a de formar predicados
complexos, associando propriedades verbais (como tempo, por exemplo) a seu
complemento”. Sabemos que há uma relação semântica estabelecida entre o verbo
e seu argumento externo e que, no caso de construções transitivas, o verbo e o seu
complemento são envolvidos. Normalmente, esse tipo verbal é identificado em
construções que apresentam os verbos “dar”, “oferecer”, “conferir”, “levar”,
“entregar” e “trazer”.
Aos observamos as estruturas intransitivas, deparamo-nos com outros três
tipos verbais (verbos de interesse, verbos de movimento e verbos de movimento
psicológico), sendo que destacaremos aqui apenas o segundo grupo, composto pelos
verbos de movimento ou direção. Para Berlinck (1996, p.136 – tradução nossa184),
“as estruturas intransitivas com um complemento dativo servem para descrever um
estado de associação entre os dois argumentos do verbo”.
É com base, então, na tipologia verbal acima descrita que serão determinadas
quais são as preposições que introduzem o complemento de predicadores de
direção, de movimento com transferência e de transferência material e
verbal/perceptual.
183 “This group represents an extension of the idea of transfer because it complements this notion with that of a
physical motion” (BERLINCK, 1996, p.132).
184 “Intransitive structures with a dative complement serve to describe a state of association between the two of
464
2.3 Aplicando conceitos: as normas brasileira e europeia e as preposições
465
2.4 O gênero “carta de leitoras”
466
Através das perguntas enviadas, é possível notar o grande envolvimento das
leitoras para com as revistas, já que elas esperam por dicas, conselhos e soluções
sobre como lidar com determinados problemas ou desafios.
Ao trabalhar a noção de gênero, e mais especificamente as cartas de
leitoras de revistas femininas, acreditamos ser importante a afirmação feita por
Fairclough (2011), que nos diz que, se por um lado o discurso reflete a
realidade social, por outro, constrói essa mesma realidade. Assim, fenômenos
linguísticos são sociais, bem como fenômenos sociais são linguísticos, no
sentido de que a linguagem age em todos os contextos e práticas
(FAIRCLOUGH apud KNOLL e PIRES, 2008, p.03).
467
dados); a preposição a, mesmo que em menor quantidade, ainda apresenta-se em
número bastante significativo, com 146 casos.
Quando observamos estes resultados “mais gerais”, notamos ser a
alternância entre a e para a mais produtiva. Assim, optamos por apresentar, através
de uma análise mais específica, os dados em que concorrem apenas essas duas
preposições. Logo, trabalharemos, aqui, com 282 dados correspondentes à revista
Capricho, sendo que 149 deles (53%) apresentam a preposição para e 133 (47%)
a preposição a; e com 237 dados retirados da revista Bravo, 48 deles (20%)
apresentando a preposição para e 189 (80%) a preposição a. Consideraremos para
a nossa análise os tipos de verbo e a natureza do complemento.
Desta forma, ao observamos, nas revistas Capricho e Bravo, o uso das
preposições em relação aos tipos de verbos analisados, encontramos resultados
bastante divergentes e significativos, como nos mostra a tabela 01.
468
se com 63 casos (100%) com a preposição a e nenhum caso com a preposição
para.
Quando observamos a relação entre o uso das preposições e a natureza do
complemento, percebemos, na revista Capricho, que existe a prevalência da
preposição para com os complementos “lugar” e “ser animado”.
Tabela 02. Natureza semântica do complemento – Revista Capricho
Natureza semântica do completo – Ocorrências
Prep./Compl. Ser Animado Lugar Evento Noção Abstrata Instituição
PARA 51 (77,3%) 96 (51,9%) - 01 (14,3%) 01 (100%)
A 15 (22,7%) 89 (48,1%) 23 (100%) 06 (85,7%) -
469
sendo que poucos casos com a preposição para foram encontrados. Aos
complementos “ser animado” e “lugar” cabe a mesma justificativa empregada aos
dados da revista Capricho: eles podem também corresponder aos verbos de direção
e de transferência verbal, como forma de melhor completar os sentidos por eles
empregados.
Além disso, precisamos destacar o fato de nenhum grupo de fatores ter sido
selecionado como relevante pelo programa GOLDVARB, o que justifica, então, a
ausência dos pesos relativos referente à revista Bravo e reitera a ideia de pouca
variação em relação a esses dados.
Assim, diante dos dados ora apresentados conseguimos afirmar que as
preposições a e para podem ser consideradas variantes em contexto de
complementação verbal no português. Isso se dá, em particular, nos contextos que
trazem verbos de direção e de transferência verbal e de forma mais robusta na
variedade brasileira representada pelos dados da Capricho.
Conclusão
Foi possível confirmar a hipótese inicial de que há uma maior incorporação
das preposições até, em e para no português brasileiro, sendo importante ressaltar
que o português europeu, ainda que pareça ser mais sensível à sua respectiva
norma – fato comprovado através da preponderância da preposição a nos dados
retirados da revista Bravo – apresenta também alguns casos com as “outras
preposições”, mais inovadoras, principalmente quando se trata dos verbos de
direção e do complemento “lugar”.
Dessa forma, percebemos que o gênero carta de leitoras é capaz, sim, de
influenciar as escolhas e os usos dos falantes brasileiros e portugueses, já que é
470
possível que cada um deles apresente um comportamento linguístico diferente,
sendo influenciados por suas respectivas normas.
Com base em todas essas informações, torna-se possível, então, afirmar
que as diferenças existentes entre o PB e o PE, quando tratamos dos usos das
preposições a, até, em e para, são sustentadas, cada qual, por suas respectivas
normas linguísticas, de modo que se preservem todas as diferentes variedades que
constituem uma língua. Tal fato nos faz, assim como já mostrado no início desse
trabalho, reconhecer o caráter heterogêneo da escrita, o que inclui a capacidade de
ser permeável a formas oriundas da fala e, por isso, ser também lugar de possíveis
variações e mudanças.
Referências Bibliográficas
471
LABOV, W.. Principles of Linguistic Change. Vol. 2: Social Factors. Cambridge,
MA/Oxford: Blackwell Publishers. 2001.
WEINREICH, U., LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical Foundations for a Theory of
Language Change. In: LEHMANN, W.P.; MALKIEL, Y. (eds.) Directions for
Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press. 1968
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: Dionísio, A.;
Machado, A.; Bezerra, M. (org). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2002.
______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.
472
MENSAGEM DE FERNANDO PESSOA: SIMILITUDE BIBLICA
185
Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS.
473
Outros povos, também, imitavam esses antigos, recriando seus mitos cada qual a
sua maneira. Fernando Pessoa, sabedor dessa força mítica, usa o mesmo
instrumento hebreu para tentar guiar um tão grande povo.
A narrativa mítica desempenha uma função dentro da estrutura da sociedade.
Segundo Aristóteles (1980), há três funções para o mito: uma forma atenuada de
intelectualidade; uma forma independente de pensamento ou de vida; e como um
instrumento de controle social. É possível perceber que, na história de Israel, um
único homem de cada vez (Moises, Josué, Samuel, Davi etc.) sempre comandava
ou controlava o povo hebreu por meio de seus mitos, os quais eram cantados de
geração a geração. O mito aqui é uma narrativa que atende a uma coletividade,
como se fosse uma resposta a uma pergunta coletiva, reveladora da necessidade
de preenchimento de um espaço vazio.
A presença hebraica na Península Ibérica encontra seus primórdios na
Antiguidade. Diante disso, podemos pensar que a mitologia hebraica alimentou
diversos messianismos medievais e teve uma presença recorrente na cultura
portuguesa, ou seja, no universo de mitos do Atlântico, constituído pelas diferentes
diásporas e inúmeras histórias que fazem referências aos hebreus. O ato de nascer
no reino português, politicamente, em fins do século XII, sob a espada abençoada
por “visões divinas” e comandada por Afonso Henriques186, dá-se num momento em
que os “filhos de Abraão” já se encontravam comerciando em algumas localidades
de grande povoamento e importância, como Santarém, Coimbra e Lisboa
(HERMANN: 1998).
Nesta perspectiva, podemos dizer que a mitologia lusitana, como sua história,
converge para a mitologia hebraica. Portugal como Israel parece ter uma mesma
“missão espiritual”, daí mitos similares: o Sebastianismo ou Messianismo e o V
Império. Corrobora essas convergências, Lima de Freitas (2006, p.76), que ao
186
Afonso Henriques era filho do Conde D. Henrique de Borgonha e de D. Tareja, infanta de Leão. O caráter
de inspiração divina de Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, faz parte do mito de Ourique. Esse corajoso
homem, como o rei Davi, vence as batalhas por intermédio da ajuda divina, por isso torna-se 1º rei. Por milagre
venceu a batalha de Ourique, a tomada de Santarém, e pelo milagre da vinda dos Cruzados se fez a conquista
de Lisboa. Maior milagre foi o de Alcácer, quando com sessenta cavaleiros, sem couraças, D. Afonso Henriques
desbaratou a um exército de quarenta mil infantes e quinhentos Mouros de cavalo (cf. AZEVEDO: 1918, p. 7).
474
atestar a universalidade dos mitos, diz que estes são arquétipos que governam a
humanidade. Segundo o autor:
A Península é o resultado de camadas de subconscientes muito variadas:
nórdicos, celtas, árabes, com todas essas moiras encantadas... tem, por
isso, um fundo mítico muito grande; e quando afirmo que não existem mitos
portugueses faço-o, evidentemente, em sentido estrito, porque existem
formas tipicamente portuguesas de mitos e é através do estudo dessas
formas que podemos alcançar uma possibilidade séria de
autoconhecimento (FREITAS: 2006, p.77).
Nessa fusão com outros povos, Portugal criou sua história e mitos. Também
como ocorreu na Península Ibérica, a cosmovisão, que os hebreus 187
187 O nome hebreu vem da designação do nome de Heber (Gênesis 11:14-17) – do hebraico עברים, “ibri” que
significa “do outro lado”, numa referência a Abraão (descendente de Heber), o pai da nação. Este termo foi
achado em diversos documentos, durante vários períodos da história antiga, na época dos patriarcas; e tornou-
se pouco usado após a segunda metade do século X a.C. Hebreu como nome para o povo foi usado
principalmente a partir da vivencia deste no Egito (JOSEFO, 2004). Vale notar que os termos hebreus, judeus
e israelitas referem-se a um mesmo povo.
475
Sebastião e a ausência de descendentes ao trono, o reino de Portugal foi anexado
à rival Castela. O fato de nunca ter sido encontrado o corpo do rei, associado à
sujeição a Castela e fundido às trovas de Bandarra deu origem ao mito português:
o Sebastianismo. Tal profecia é, desde Bandarra, Camões, passando pelo Padre
António Vieira e nos textos de Fernando Pessoa, principalmente em Mensagem,
objeto de várias leituras e interpretações ao longo dos séculos em que foram
intentadas as suas interpretações.
Conhecer o futuro e o transcendente sempre foi uma ambição do ser humano,
como se percebe nessas correntes profético-messiânicas. Talvez por isso Pessoa
se coloque como continuação deste legado profético: o Terceiro Aviso, em
Mensagem. Sendo OS AVISOS: primeiro, o Bandarra; segundo, António Vieira; e o
terceiro sem título, que escrito em primeira pessoa, fazendo-nos pensar que é o
próprio poeta: “Screvo meu livro à beira-mágoa” (PESSSOA: 2006, p. 53).
Essas mitologias profetizadas é como se fosse um estímulo para o povo
continuar prosseguindo, olhando para o futuro e acreditando que este será melhor
do que aquilo que já se conhece: “Quem te sagrou criou-te português. / Do mar e
nós em ti nos deu sinal. / Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta
cumprir-se Portugal!” (PESSOA: 2006, p. 36). É uma espécie de evocação de uma
forma particular de vida social. É uma mensagem que possa constituir uma resposta
à crise e à sociedade degradada.
Pessoa também se coloca no lugar de mensageiro de caráter transcendente
e espiritual para o destino da nação: “PAX IN EXCELSIS”. O profetismo de Pessoa
se dá, sobretudo, a partir da terceira parte de Mensagem, intitulada de O
ENCOBERTO. Seus poemas criam realmente um clima de profetismo. “Quando virá
D. Sebastião?”; “Não sei a hora, mas sei que há a hora.” (PESSOA: 2006, p. 42).
Seu discurso profético orienta-se predominantemente para o mito do Encoberto ou
do sebastianismo: “Que símbolo fecundo / Vem na aurora ansiosa? (...) Que símbolo
divino / Traz o dia já visto?” (PESSOA: 2006, p, 49).
Como diz Girard (1997: p. 63), “o nexo do mito com o símbolo é essencial”.
As combinações sucessivas de símbolos estruturam o mito que, por sua vez, invade
as regiões transcendentais correspondendo ao que há de mais profundo na vida e
476
na experiência humanas. Essas criações mitológicas fazem o subconsciente agir
sem qualquer entrave, como nos sonhos e visões, em uma totalidade diacrônica,
enraizando-se na experiência universal do homem.
Dessa forma, a mitologia hebraica bíblica e os líderes do profetismo
passaram anelar por um “rei ideal” do futuro, o qual traria para a nação e o mundo
todos os benefícios da paz, da justiça, e da prosperidade, tanto moral como material.
Segundo Hermann (1998, p. 10), essa crença conheceu modalidades variadas,
tanto no reino como em seus territórios coloniais, e “teve por base um messianismo
judaico herdado dos séculos de convivência entre católicos e judeus na península
Ibérica”. Também, Azevedo, em A Evolução do Sebastianismo (1918, p. 9-12),
afirma que o sebastianismo português brotou da esperança judaica no Messias.
Essa esperança messiânica passou para os portugueses com algumas
mascaras, mas ainda é possível vermos convergências de símbolos em Mensagem
e na Bíblia confirmando a atualidade e a força das imagens e símbolos que
estruturam uma mitologia abundante de valor elevado. Essa busca profética por um
Messias, que pode ser propriamente cada um, na visão de Pessoa, parece-nos ser
uma tentativa de acalentar o sonho de uma realeza universal, um lugar ideal em um
novo tempo, também ideal, como veremos a seguir.
188
Desde a antiguidade até 1516, existiam produções literárias e iniciativas que hoje são conhecidas como
utópicas, mas não existia o termo. Essa palavra foi proposta no século XVI, em 1516, quando o inglês Thomas
More publicou, em latim, um livro sobre a vida dos habitantes da ilha de Utopia. Etimologicamente, o termo
utopia vem do grego, que tanto quer dizer “não-lugar” (ou + topos) como “bom-lugar” (eu + topos). Em outras
palavras, refere-se a um lugar inexistente perfeito ou, simplesmente, um não lugar e um bom lugar.
477
aquilo que é sobre-humano pode-se referir apenas na linguagem imagética e
simbólica do mito. Ele presenteia o leitor com o alimento da esperança.
Crer na espera de um rei ideal está presente, por exemplo, no Messianismo
ou Sebastianismo. Este rei é o representante do próprio Deus na Terra. Por isso, o
representante da divindade governará e administrará o mundo com perfeição e
justiça. O rei ideal deve, sobretudo, ser o salvador de seu povo, garantindo-lhe todo
o bem-estar material, moral e espiritual.
A apologia ao local ideal está presente nos mitos do Paraíso. Este mito
sobreviveu por muito tempo na forma adaptada do paraíso oceânico, como as ilhas
paradisíacas do Grande Oceano, refúgio de todas as felicidades. O paraíso terrestre
teria se tornado na ilha longínqua, na condição perfeita de Adão antes da queda –
o centro do mundo. Ou, a “nova Jerusalém”, a terra que será transformada com a
chegada do Messias. Ainda a ilha afortunada donde virá D. Sebastião. Ou a ilha dos
Amores de Os Lusíadas.
O tempo ideal aparece em vários mitos, como no Milenarismo ligado ao
messianismo e ao cristianismo. O reinado de mil anos de paz e justiça tem sua
definição ligada a idade de ouro desaparecida, existindo nas religiões que creem na
possibilidade de se recuperar um tempo perfeito, semelhante àquele que um dia
houve na Terra. Aqui há alusão à imortalidade do homem e ao não envelhecimento
do corpo. Essas imagens invocam a nostalgia de um passado mitificado,
transformado em arquétipo ou “o desejo de algo completamente diferente do
momento presente, definitivamente inacessível ou irremediavelmente perdido: ‘o
Paraíso’” (ELIADE: 2002, p. 13- grifo do autor).
Para os hebreus, Jerusalém sempre será o local ideal. Nos exílios, o povo
hebreu não esquecia Jerusalém, considerada por Jeremias a mais formosa de toda
a terra (Lamentações 2:15). Aí se lembravam dela e manifestavam a sua saudade:
“Se me esquecer de ti, oh Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua destreza
(...) se não te preferir à minha maior alegria” (Salmo 137:5). É como se este local
terrestre fosse extensão do “céu paraíso” – a habitação da divindade, onde se
manifesta a sua presença. Este sentimento de que Deus habita nos céus e aí tem a
478
sua corte celeste, vamos encontrá-lo nas mais diversas épocas bíblicas
(Deuteronômio 26:11; Esdras 1:2; Neemias 9:6; Isaías 37:16; Jonas 1:9).
Nesta perspectiva, o rei ideal, para os hebreus, deveria erigir o seu trono
em Jerusalém (o centro do mundo), manifestando os poderes sobrenaturais. Os
seus poderes eram uma amostra (em ponto reduzido dos poderes da divindade)
concebida como um rei supremo, uma espécie de Santo ou ser celeste. A figura do
rei ideal do futuro, para os judeus, surge como prefiguração ou protótipo do Messias,
um herói e Santo. Ainda, o Messias não será qualquer rei, mas provirá da
descendência de Davi. Associado ao aspecto de ser descendente de Davi, o
Messias é apresentado como um conquistador, à semelhança deste. Nesta
qualidade, identifica-se com o próprio YHWH, pois o Messias vestirá as veste de
salvação e de vingança, com as quais o próprio YHWH se vestira para libertar o seu
povo e vencer os seus inimigos (Isaías 59:16). Assim, com ajuda de YHWH, o
Messias estabeleceria um governo pacífico mundial, com sede em Jerusalém.
O rei ideal de Portugal é aquele profetizado desde a fundação de Portugal,
da descendência de Afonso Henriques, uma espécie de rei-sacerdote cuja virtude
guerreira é colocada a serviço da fé: levará o cristianismo para o mundo inteiro.
Numa obra publicada em 1602, João de Castro (apud VALENSI: 1994, p. 142-143)
traduz uma profecia escrita em latim que liga Alcácer a Ourique: Afonso Henriques
prestes a batalhar com os reis mouros, temendo o pior, adormece sobre a Bíblia,
vindo um velho anunciar sua vitória, e a de seus descendentes, acrescentando que
os sucessos se interromperiam na décima sexta geração, mas retornariam após
“uma pausa”. Retornaria para reparar os erros, reestabelecer a ordem, fazer justiça
sobre a terra. Este rei ideal português, portanto, regressará, colocando em ordem o
caos de Portugal e do mundo. E este é o último descendente da dinastia do Avis.
Aliás, Sebastião cumpriu todas as profecias de seu primeiro reinado. Aí está a prova
de que completará sua missão quando voltar a reinar.
Um rei ideal só poderia reinar também em um local ideal. O reinado trágico
de Portugal tornaria um reinado feliz e totalmente cristão. Lembranças, ao menos
desde o reinado de Manuel, “prometem a Portugal o domínio do mundo, a
reconquista da Terra Santa e a submissão do islã” (VALENSIA: 1994, p. 146).
479
Portugal é o povo eleito, sua ruína sobrevém com a expedição da África, contudo,
seu renascimento lhe é prometido com a chegada do reinado universal. Assim, o
discurso sebastianista empenha-se a apagar a derrota de Alcácer com o enunciado
de todas as vitórias ainda a obter, sobretudo, o V Império mundial.
Em relação ao tempo, os profetas bíblicos apresentam o reino messiânico
como não tendo fim, em que haverá paz e prosperidade serão sem fim. Seria um rei
justo, sob cujo mando, toda a ordem seria estabelecida (Isaías 9:6-11). Segundo
Isaías, o “dia do Senhor” será seguido por uma nova criação, um novo céu e uma
nova terra, ou seja, um novo tempo: “e faz o seu deserto como o Éden” (Isaías 51:3).
Segundo as profecias bíblicas, junto com o Messias surgirá um Mundo Novo,
descrito por Isaías.
D. Sebastião, assim como Davi e outros reis ideais (a exemplo do Rei Artur),
é modelo exemplar da realeza que se sacrifica pelo seu reino e, após livrar-se do
tempo, representado pelo “período de pausa”, o rei salvador volta renovado para
redimir seu povo. Assim D. Sebastião voltará da sua Ilha Encoberta, considerada o
centro do mundo, igualmente como Artur permaneceu na Ilha de Avalon189, centro
do mundo. Cavaleiro deslumbrante, D. Sebastião surgiria das ondas vindo também
de uma ilha. Como profetizou Bandarra: Este sonho que sonhei / É verdade muito
certa/ Que lá da Ilha Encoberta/ Vos há-de vir este Rei /(apud VALENSIA: 1994, p.
170).
O Encoberto vive retirado na ilha também encoberta. Essa ilha encantada,
invisível, impossível de localizar de maneira definitiva, e que não figura em nenhum
mapa, surge das brumas diante dos navios em apuro. Valensia (1994) traz várias
recordações dos marinheiros dessa ilha encoberta. Conta-se que a ilha é um lugar
situado ao largo da ilha Madeira, que só é visível em certas condições atmosféricas
e se chama Antilia (ou Antlia). É a morada do jovial rei Encoberto que lá tem dois
filhos (o que permite minimizar o trauma português de não ter recebido descendente
189A ilha de Avalon aparece em Historia Regum Britanniae ("A História dos Reis da Bretanha") de Geoffrey
of Monmouth como o lugar onde a espada do Rei Arthur foi forjada e, posteriormente, para onde Arthur foi
levado para se recuperar dos ferimentos após a Batalha de Camlann. Como uma "Ilha dos Bem-aventurados"
Avalon tem paralelo em outros lugares na mitologia indoeuropeia, em particular a Tír na Nóg irlandesa e a
Hespérides grega, também conhecidas por suas maçãs. Avalon foi associada há muito tempo com seres imortais,
como Morgana Le Fay.
480
de D. Sebastião ao trono). Na ilha encantada, ninguém envelhece, portanto, o rei
não tem idade. E, como essa ilha conta com arcebispo e seis bispos, chamam-na
de ilha das Sete Cidades. Sua população goza de uma abundancia de bens, de
saúde e de riquezas. Outros dizem que a riqueza é tanta que abunda ouro e prata.
A língua oficial é o português. Assim sendo, a ilha é um local propício para a
constituição de mitologias e o sebastianismo é rebento da ilha encoberta.
É possível observamos por meio das narrativas que a ilha encantada ou o
novo céu e a nova terra predita por Isaías constitui um reino utópico. Os
depoimentos são exagerados. Os habitantes são felizes e saudáveis não
perseguidos pelo tempo. O local é afastado deste mundo atual e fora do tempo,
como viviam os habitantes do Éden. As forças temporais que regiam o ser humano
são agora resignificadas. O lugar é seguro, porque assume os desígnios da criação
do mundo no jardim do Éden (Gênesis 1-2). O local ideal oferece ao homem um
recomeço.
Essa expectativa da volta de um rei ideal que fundaria um novo tempo
abarcou um conjunto de transformações por que passava a Europa no tempo das
reformas religiosas, sobretudo, a partir de 1516. Segundo Hemann (1998), a cisão
operada na cristandade desde o início do século XVI foi palco de grandiosos projetos
utópicos ou milenaristas, dos quais cita Thomas Müntzer, autodenominado o
“Mensageiro de Cristo”. Para este, o fim de heresias daria lugar à vinda do Messias
e ao início do Milênio. Outro exemplo citado é A cidade do sol, de Tommaso
Campanella (1602), em que, tal como na Utopia, de Thomas More (1516), idealiza-
se um lugar de plenitude e felicidade. Contudo, essas elaborações utópicas não tem
o sonho do V Império dos portugueses, nem o caráter universal e a eterna juventude.
Apesar das diferenças, esses escritos e os sebásticos vêm ao encontro do clima de
expectativa e incerteza que assombrava a Europa em períodos de crises.
Mensagem poetiza a triste realidade de tempos de crises “a luz do gládio”,
“que é Portugal a entristecer”, atraindo o leitor pela promessa de um mundo melhor:
ainda “falta cumprir-se Portugal”. Portanto, este texto poetiza sobre a “guerra santa”
e, simultaneamente, propõe mudanças por meio da tomada da consciência da sua
481
radical situação: “Caí no areal e na hora adversa / Que Deus concede aos seus”
(PESSOA: 2006, p. 47).
Aqui, vale lembrarmos que, no século XX, os atributos ligados a D. Sebastião
são transferidos para o país inteiro ou para cada sujeito em si: Portugal é o
personagem simbólico cujo “ser é como aquela fria Luz”, mas a promessa é que a
Portugal ideal se cumprirá na “Eucaristia Nova”. Oliveira Martins concluiu a sua
História de Portugal observando que o sebastianismo ainda não foi substituído pela
consciência de “uma nova nação, real e viva”. Entretanto, os símbolos de Mensagem
revelam que o tempo é chegado da nação inteira retornar à vida: “É a hora!”.
No “sebastianismo racional” de Fernando Pessoa, a utopia não é vista como
o retorno saudosista do passado, para um tempo ideal e um lugar de perfeição idílica
à maneira dos renascentistas, mas é vista como “futuro do passado”. É como um
tiro no escuro, ou melhor, no nevoeiro. Talvez porque o futuro não é mais do que
um passado ainda por acontecer, talvez porque o passado é o primeiro “não topos”,
ou “não lugar”, e o futuro, o segundo. O fato é que o sebastianismo, seja ele
transformado ou sublimado ou remitologizado, consegue ser até o século XX, o mito
nacional português. Segundo Valensia (1994, p. 251), em todas as gerações houve
portugueses que creram em suas promessas. Promessas não cumpridas, mas
sempre renovadas.
Diante do exposto, podemos concluir que espera por um Messias para a
salvação de eventos ruins, subtende-se a construção de uma idealidade ou espera
de algo melhor. É um considerar o presente ou a vida como “falsa”, “vil” e
“imperfeita”. O ideal é a noção de que “a Vida não basta” (PESSOA: 1990).
482
humano. Ou seja, a matéria pode ser explicada pelo espiritual, o que Ricardo Reis
chama de “crer na sensação” ou de “crer no inacreditável”.
A construção utópica “é um grande anseio que Deus fez” no ser humano.
Regressar ao futuro pelo caminho do nevoeiro. Talvez por isto possa ser
concretizável na crença da sensação. Não é necessário “esperar” mais, mesmo
sendo hoje Portugal Nevoeiro... É possível enxergar, apesar do nevoeiro. “Mas, se
vão despertando”... É possível “ver o invisível”. É só utilizar a “espada iluminada de
Excalibur”... A hora é agora, segundo Mensagem.
3. Hora de quê?
É a hora!
(Fernando Pessoa)
Talvez seja uma mera coincidência, mas como Mensagem está dividida em
três partes, como um círculo perfeito (Brasão, Mar português e O Encoberto),
assim também a Bíblia hebraica contém divisão em três partes: A Lei (Torah), Os
profetas (Nebhiim) e os Escritos (Kethubhim). A primeira parte da Bíblia conta a
gênese do povo ungido por Deus e suas primeiras conquistas. Na segunda, são
apresentadas, sobretudo, as profecias sobre o Messias que haveria de vir. Na
terceira, a preparação histórica para a chegada do Messias e do V Império. Na
primeira parte de Mensagem conta-se a história das glórias portuguesas. Na
segunda, são apresentadas as navegações e conquistas marítimas de Portugal. Na
terceira, é apresentado o mito sebastianista e a chegada do V Império.
Percebemos, por conseguinte, que na história social desses povos há uma
equiparação: ambos receberam um sinal de Deus, ambos viveram momentos de
glórias, com períodos de decadência, seguidos da busca por esperanças. Em
alusão à Bíblia, Pessoa inicia seu texto Mensagem com uma epígrafe em latim,
traduzida por ele da seguinte forma: “Bendito seja Deus Nosso Senhor, que nos deu
o Verbo” (PESSOA, 2006, p. 13). Este é o sinal dado por Deus: a Palavra. Ambos
483
os povos receberam de Deus este sinal. Agora é a oportunidade de usar a palavra,
para reimprimir um “sopro de vida” a tantas realidades ocultas, misteriosas, sem o
calor de uma comunicação espiritual.
A epígrafe profetiza que Portugal, hoje, é nevoeiro. Segundo as profecias,
é exatamente o nevoeiro que marca o regresso de D. Sebastião – O encoberto. É,
portanto, a “hora” em que o rei salvador volta e transforma o passado glorioso,
dando, finalmente, a Portugal o V Império Espiritual. Ainda o Messias de Mensagem
não trará “paz na terra”, mas “PAX IN EXCELSIS” – “Paz nas alturas”, como sugere
a epígrafe que abre a terceira parte da obra. Aqui a poesia passa a ser vista como
uma linguagem além-signo. Os símbolos já revelam um “erguer de asas”. Para o
poeta, os símbolos são formas de comunicação com o Cosmos.
Por fim, usando a palavra o poeta abarca o Cosmo pela força sugestiva do
símbolo. Isso seria o V Império Espiritual, na visão de Pessoa. “Grécia, Roma,
Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda idade. / Quem vem
viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (PESSOA: 2006, p. 48). Triste daquele
que não superar as crises. Assim é hora de “Ver o invisível” é ver o que os outros
não querem ver, usando o “olhar esfíngico e fatal”... “O Ocidente, futuro do passado”.
REFERÊNCIAS
484
HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em
Portugal nos Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
JOSEO, Flávio. História dos hebreus: de Abraão à queda de Jerusalém. Trad.
Vicente Pedroso. 8. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.
MIELIETINSKI, Eleazar M. A poética do mito. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987.
MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: L&PM, 1997.
PESSOA, Fernando. Mensagem. Edição comentada por Jane Tutikian. Porto
Alegre: L&PM, 2006.
PESSOA, Fernando. Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa. Org.
Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. Disponível em http://arquivopessoa.net/.
Acesso em 09/04/2015.
VALENSI. Lucette. Fábulas da Memória. A batalha de Alcácer Quibir e o mito do
sebastianismo. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1994.
485
TITUBA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DE MULHER, ESCRAVA E FEITICEIRA A
ÍCONE DA MODA
486
uma nova ótica, pode afirmar que, de alguma forma, a tentativa de preencher
“espaços” deixados por textos anteriores pode ajudar na melhor compreensão de
outros períodos históricos, sociais e, por que não, literários. Essas narrativas
intertextuais são apresentadas de maneira abundante na literatura contemporânea,
de forma especial aquelas originárias de países colonizados, cujas realidades
histórica e social sempre merecem ser retomadas. É considerando estas
perspectivas que o presente trabalho propõe apresentar as questões referentes à
condição feminina, através da imagem da feiticeira, por intermédio da presença
intertextual da personagem Tituba na peça As Bruxas de Salém (1953), do
dramaturgo norte-americano Arthur Miller e no romance Eu, Tituba, Feiticeira...
Negra de Salém (1986), da romancista antilhana Maryse Condé e por Frederico
Ferrera, estilista pernambucano, na Coleção Tituba (2015).
Devemos ressaltar a forma através da qual o diálogo entre as obras estudadas é
estabelecido. Na peça As Bruxas de Salém, lançada por Arthur Miller em 1953,
observamos a reconstituição da sociedade estritamente puritana que habitava a
cidade de Salem no século 17, ocasião em que ocorreu o famoso episódio histórico,
com graves influências sociais, então denominado “caça às bruxas”. É dado como
certo que o dramaturgo teve como inspiração para escrever a sua peça não somente
o episódio real da “caça às bruxas” como também o momento político que vivia na
década de 50 nos Estados Unidos, retomando as acusações graves e
inconsistentes proferidas pelo então Senador Joseph McCarthy que delatava a
suposta presença de comunistas infiltrados no seio do governo americano, bem
como os também inconsistentes julgamentos realizados quando do episódio
histórico de Salém, enfatizando, assim, a existência de comportamentos
considerados extremos, resultantes de vontades obscuras e motivações de cunho
pessoal, que são perceptíveis tanto no momento político americano em que a peça
foi escrita, quanto no momento do qual foi extraída sua inspiração, resultando em
uma grave crítica social. O próprio autor deixa claro na abertura da peça,
Esta peça não é história no sentido em que a palavra é usada por
historiadores acadêmicos. Exigências dramáticas muitas vezes me
obrigaram a fundir numa só várias personagens; a reduzir o número das
raparigas da ‘gritaria’, a dar mais idade a Abigail, a simbolizar em Hathorne
e Danforth uma mão cheia de juízes tão respeitáveis como eles. Apesar de
487
tantos tratos estou convencido que o leitor vai encontrar aqui a essencial
natureza dum dos mais estranhos e terríveis capítulos da história da
humanidade. O destino individual de cada personagem é exactamente o
mesmo de seu modelo histórico e neste drama nenhuma há que não
tivesse tido semelhante – e em alguns casos precisamente o mesmo –
papel na história. (MILLER, 1953, p. 9)
Em seu texto, Miller traz à tona a série de julgamentos ocorridos em Salém, como
podemos observar em:
Ninguém hoje sabe exatamente o que era a vida daquela gente. Não
tinham romancistas – nem permitiam a ninguém a leitura de romances, a
não ser que se tratasse de obra muito sisuda. As suas crenças proibiam
tudo o que, de perto ou de longe, cheirasse a teatro ou a outros
‘divertimentos gratuitos’. (id., p.12)
488
Uma vez que o médico local não se considera apto a desvendar o problema que, a
este ponto, atingia não somente a Betty, mas a outras garotas da comunidade (que
igualmente simulavam estados de incapacidade),
PARRIS: Que disse o doutor, filha?
SUSANA, desviando-se do olhar de Parris para poder dar uma olhadela
em Betty: O doutor pediu-me para lhe dizer, Reverendo, que ele não
encontra nos livros remédio para esta doença.
PARRIS: Então que continue a procurar.
SUSANA: Mas, Reverendo, ele tem estado a procurar nos alfarrábios
desde que daqui saiu, senhor. Por isso ele pediu-me para lhe vir dizer que
o melhor é o senhor começar a procurar causas sobrenaturais para isto,
pois as naturais não as encontra.
PARRIS: Não, não. Não há aqui nenhumas causas sobrenaturais. Vai dizer
ao doutor que eu já mandei chamar o Reverendo Hale de Beverley que vai
com certeza confirmar o que estou a dizer. O doutor que se ocupe de
medicina e não pense em causas sobrenaturais. Não existe cá disso.
(MILLER, 1953, pp.20-1)
489
TITUBA: Tituba não tem pacto com o Diabo!
PARRIS: Ou tu confessas tudo, negra maldita, ou levo-te lá para fora e
chicoteio-te até morreres.
[...]
TITUBA: Não, não, não enforquem Tituba! Eu disse a ele que não queria
trabalhar para ele, patrão, eu disse.
[...] HALE: Tu és o instrumento que Deus pôs em nossas mãos para
descobrirmos os agentes do Demônio entre nós. Tu foste a escolhida,
Tituba, tu foste eleita para nos ajudar a limpar a nossa comunidade de todo
o mal. Por isso fala abertamente, Tituba, vira as costas a satanás e põe os
olhos em Deus! Põe os olhos em Deus, Titubam que ele te protegerá! [...]
Quem é que acompanhava o Demônio? Quem eram? Eram duas? Três?
Quatro? Quantas eram? [...] Diz os nomes delas.
TITUBA: Oh, quantas vezes ele me pediu para matar o Reverendo Parris!
[...] Então eu olhei e vi a Senhora Good [...] e a Senhora Osburn. (MILLER,
1953, pp. 85-92)
490
DANFORTH: Então faça o favor de me explicar, senhor Proctor, por que
razão não quer...
PROCTOR: Porque se trata do meu nome! Porque não posso ter outro
nome na vida! Porque só disse mentiras e subscrevi calúnias! Porque não
sou digno sequer do pó que levantam os pés dos que vão morrer na forca!
Como posso eu viver sem o meu nome? Dei-lhes a minha alma, deixem-
me meu nome! (MILLER, 1953, pp. 278-281)
Fato é que muitos foram condenados à morte, mas com o passar do tempo, veio à
tona não somente a inconsistência das acusações, bem como os resultados da
chacina em Salém, como demonstra o próprio autor ao final da peça:
Quando Arthur Miller apresentou As Bruxas de Salém, criou uma atmosfera única
ao quando retoma os eventos históricos e as regras daquela sociedade puritana que
havia deixado a Europa para escapar da perseguição política e religiosa e buscava
na América uma nova Canaã, a terra prometida em que todos teriam as mesmas
oportunidades e seriam realmente iguais aos olhos divinos. Entretanto, ao
estabelecerem sua comunidade em solo americano, tomaram uma posição de
intolerância religiosa, demonstrando sua fé, honestidade e integridade através do
trabalho físico e total cumplicidade à doutrina religiosa puritana, considerando
desejos materiais e físicos como coisas advindas do demônio.
Ao recriar este cenário histórico-social, Miller deixa implicitamente claros seus
objetivos críticos à sociedade da qual é contemporâneo, relacionados à conduta
imposta pelas atitudes do Senador McCarthy, quando muitos eram acusados de
subversão e apoio às atividades comunistas. Tais pessoas eram presas pelas
acusações sem que tivessem como provar sua inocência ou terem direito à defesa.
McCarthy, nessa atmosfera, propôs à nação americana, como uma forma de
491
expurgá-la dos seus pecadores, uma nova “caça às bruxas” – referência clara ao
episódio de Salém, como se isso fosse um pedido de ajuda ao povo americano, no
intuito de tirar as manchas de sua a sociedade.
Com base em todas as descrições apresentadas, torna-se clara e evidente a
temática abordada por Miller em Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salém, romance
publicado em 1986 pela antilhana Maryse Condé, que traz a releitura de As bruxas
de Salém de forma mágica. Sua narrativa, escrita sob a forma de romance, traz a
personagem Tituba, de Miller, e sua participação no episódio de Salem. Entretanto,
Condé ultrapassa os limites da narrativa considerada hipotexto, uma vez que traz
sua narrativa subvertendo não somente a questão histórica quanto à ordem do texto
de Miller, uma vez que apresenta todos os eventos sob o ponto de vista da escrava,
desde antes de chegar a Salém até depois do episódio. Ao fazê-lo, Condé torna
possível explorar toda uma gama de questões filosóficas, culturais e sociais, dentre
elas: a questão de gênero, o papel materno, o feminismo, as similaridades entre as
experiências de negros e judeus, a questão do amor, sexo, racismo, escravidão
entre outros. Trata-se de uma obra de ficção e, em termos efetivamente históricos,
pouco se conhece sobre a vida da escrava Tituba, bem como há pouquíssimas
informações acerca de sua participação no episódio histórico de Salém – nada além
do fato de ter vindo de Barbados e confessar ser “uma bruxa”. O romance é iniciado
por:
Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês na ponte do
Christ the King, num dia de 16**, quando o navio velejava rumo a Barbados.
Foi dessa agressão que nasci. Desse ato de ódio e desprezo. (...) Minha
mãe chorou por eu não ser menino Achava que a sorte das mulheres era
ainda mais dolorosa que a dos homens. Para se libertarem de sua
condição, não tinham elas que passar pelas vontades daqueles mesmos,
que as mantinham na servidão e dormir em suas camas? Yao, ao contrário,
ficou contente. [...] Foi ele quem me deu meu nome: Tituba. Ti-Tu-Ba. Não
é um nome ashanti. Sem dúvida, ao inventá-lo, Yao quis provar que eu era
filha de sua vontade e de sua imaginação. Filha de seu amor. (CONDÉ,
1986, pp. 11-15)
Temos um encontro entre a Tituba de Miller e a sua nova Tituba, que relata sua
história desde antes mesmo de seu nascimento até sua chegada à América,
passando pelo episódio de Salém, sua condenação por ter confessado conjurar com
o demônio e ter escrito em seu livro e, posteriormente, cria uma nova realidade,
492
obviamente ficcional, para a escrava após a sua prisão. Em cada um desses
momentos, é possível perceber, através da narrativa, as diferenças entre a Titubas:
uma, escrava sem voz, calada pela sociedade, que se aproveita do momento da
confissão para dar voz às suas vontades e a outra, ainda escrava, mas com
personalidade marcante, questionadora.
A Tituba de Condé vai para a América para não ser separada do marido, John Índio,
que é vendido ao Reverendo Samuel Parris antes de sua partida para a América.
Ela abdica de sua própria liberdade, uma vez que não tinha donos, para poder ficar
ao lado do homem que amava. Pressentia os perigos que a cercavam, mas mesmo
assim, insistiu:
Desde sua chegada ao continente americano, Tituba entende que sua vida ali nunca
seria fácil. Ela descreve a chegada ao porto com a família Parris, seu contato com
a esposa do Reverendo, sua filha e sobrinha e do carinho que nutria pela pequena
Betty, filha de Parris. Revela que a família é transferida para a aldeia de Salém,
indicando que nem tudo parecia bem: “Desde o instante em que entrei em Salém
senti que nunca seria feliz ali. Senti que minha vida aí conheceria provas terríveis,
e que acontecimentos singularmente dolorosos embranqueceriam todos os cabelos
da minha cabeça!” (CONDÉ, 1986, p. 81)
493
Assim que as meninas da aldeia, entre elas Betty e Abigail, passam a demonstrar
sinais de ‘histeria’, Tituba é acusada de feitiçaria, pois rondavam a aldeia boatos de
que ela mexia com ervas e com os espíritos dos mortos. Ela, no entanto, fazia uso
da sabedoria que lhe fora passada por seus ancestrais para curar doenças e
confortar os que precisavam de auxílio. A personagem sente-se uma estranha para
si mesma naquele ambiente e as acusações só vêm a corroborar com tal situação:
“Havia, no entanto, uma coisa que eu ignorava: a maldade é um dom que se recebe
ao nascer. Não se adquire.” (id., p. 99)
Toda forma de defesa a seu favor era em vão, pois já havia sido condenada: “Você,
fazer o bem? Você é negra, Tituba! Só pode fazer o mal. Você é o mal!” (id., p. 104)
Até que a escrava se decide por tomar atitudes similares às daqueles que acusavam
injustamente, visando reverter a sua situação:
Neste momento, Tituba sente-se fortalecida pelas palavras de John Índio e pela
visão que teve de sua avó, Man-Yaya:
Não se aflija, Tituba! Você sabe, o azar é irmão gêmeo do negro! Nasce
com ele, deita-se com ele, disputa com ele o seio murcho. Come o peixe
da sua cuia. No entanto, ele resiste. O negro! E aqueles que querem vê-lo
desaparecer da superfície da terra pagarão caro. De todos, você será a
única a sobreviver! (id., p. 115)
494
feminina e, ainda mais importante e abrangente, questiona os “silêncios” e a
“submissão”, o “poder” e o “fazer” presentes na condição do gênero feminino sob
diferentes pontos de vista, além de questionar o que realmente representaria ser
uma ‘feiticeira’ em uma sociedade que de tão conservadora, revelava-se, em
verdade, hipócrita em demasia.
Assim, a releitura da peça de Miller apresentada no romance de Condé apresenta a
possibilidade de discussão entre as dicotomias estória / história, verdade / exclusão,
colonizador / colonizado, civilização / selvageria, racismo / sexismo, dominação /
submissão, centro / periferia, exílio / alienação, tempo / espaço, realidade / ficção
ou, como Linda Hutcheon assim denota, uma ‘metaficção historiográfica’. Quando
expõe as formas pelas quais tal ficção é produzida, Hutcheon chama a atenção do
leitor para o status do romance como uma espécie de artefato e não como uma
reprodução relativamente fiel da realidade. Assim, essa consciência pessoal da
narrativa revela o fato de que a literatura não reflete nenhuma realidade de maneira
inocente, pelo contrário, cria ou denota uma realidade, e, ao fazê-lo, a torna
significativa.
Com base em todas essas Titubas, a personagem histórica e suas releituras
ficcionais, deparamos com mais uma possibilidade de releitura intertextual, desta
vez sob outra perspectiva artística: aquela do mundo da moda. Em 2015, o estilista
pernambucano Frederico Ferrera lançou sua coleção de inverno intitulada Tituba.
Segundo apresentação da coleção no site do estilista, “Batizada de Tituba, a
coleção de inverno 2015 da grife Frederico F. (...) vem inspirada no mistério, na
força, na sensualidade e no misticismo da mulher brasileira que vive nas grandes
metrópoles.”
Embora traga para a contemporaneidade e para o espaço das metrópoles a figura
da escrava por meio de sua coleção, Frederico F. promove, à sua maneira, uma
reatualização da personagem Tituba, trazendo a figura feminina a um patamar de
força misteriosa e misticismo sensual, embebida pelo universo mágico da literatura
e pela realidade dos modelos criados pelo estilista para esta coleção.
Ainda no site, encontramos o mote central da campanha de lançamento da referida
coleção: “A ideia da campanha é mostrar um pouco mais por baixo dos babados e
495
decotes profundos. Um olhar além da magia e do dom de iludir sobre o que é estar
na pele de uma mulher”.
Em consulta via e-mail ao estilista, na tentativa de obter mais informações sobre as
fontes de inspiração para que compusesse sua coleção, foi possível descobrir que
a coleção foi pautada no convívio do estilista com diversas mulheres artistas e em
sua forma de fantasiar o mundo, em busca da real essência da mulher real. Ele
menciona ter buscado informações em filmes e séries mais noir, com temáticas
relacionadas às bruxas e que em um desses materiais “[...] a Tituba apareceu pra.
mim [sic], negra, forte, bruxa, com um bom nome e com uma história forte” E o
estilista complementa:
Desenvolvi a coleção conceitual e a comercial, eu uso em minhas coleções
apenas tecidos naturais, então utilizei muito linho e algodão, as roupas
eram fluidas com cortes assimétricos e acabamentos desfeitos, a maioria
das peças possuíam um formato de triângulo, e as barras dos vestidos e
saias eram manchados de prateado como se essa mulher andasse sempre
por um chão empoeirado e antigo.
Já a coleção comercial tem as peças que a marca já vende bem e o
conceito do desfile foi diluído para que a roupa ficasse usável, desenvolvi
uma estampa de cobra Coral, que foi diluída para ficar geométrica e
estampada digitalmente no tecido.
Referências Bibliográficas
ASHSCROFT, B. & GRIFFTHS, G & TIFFIN, H. The Empire Writes Back. London
and New York: Routledge, 1991.
BERND, Zilá. Escrituras Híbridas: Estudos em literatura comparada
interamericana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRG, 1998.
BOEHMER, Elleke. Colonial and Postcolonial Literature. New York: Oxford
University Press, 1995.
496
CONDÉ, Maryse. Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salém. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
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da FURG, 2004.
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497
A CORREÇÃO NAS ENTREVISTAS TELEVISIVAS:
COOPERAÇÃO E CONFLITO
INTRODUÇÃO
191
As autoras são doutorandas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professoras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e
bolsistas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).
192
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=buUHwT6xaE4>. Número de visualizações: 18.658.
Acesso em: 12 de maio de 2015.
193
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Myb0yUHdi14>. Número de visualizações:
6.678.732. Acesso em: 15 de abril de 2015.
498
1. A CORREÇÃO COMO PROCESSO DE REFORMULAÇÃO TEXTUAL
A atividade de reformulação é inerente ao ato de comunicação seja na
modalidade escrita seja na falada. No texto escrito, como destaca Marcuschi (2003
[1986], p. 28), “o leitor só recebe a versão final” e, consequentemente, não tem
acesso ao seu processo de construção. No texto falado, por sua vez, o momento do
planejamento e o da produção são quase simultâneos, o que permite que o processo
de elaboração seja visualizado em tempo real pelos interlocutores. Na conversação,
de acordo com Marcuschi (2003 [1986]), tudo o que se fizer é definitivo. Como não
é possível apagar/editar, o texto explicita as hesitações, pausas, repetições,
correções etc.
Na correção, o falante reformula o que considera inadequado do ponto de
vista linguístico ou interacional a fim de garantir a intercompreensão. Segundo
Fávero, Andrade e Aquino (1999, p. 57), “corrigir é produzir um enunciado lingüístico
(enunciado reformulador - ER) que reformula um anterior (enunciado fonte - EF),
considerado ‘errado’ aos olhos de um dos interlocutores; a correção é, assim, um
claro processo de formulação retrospectiva”. Marcuschi (2003 [1986], p. 29) defende
que a correção funciona como “processo de edição ou auto-edição conversacional
e contribui para organizar a conversação localmente”.
A correção pode ser realizada pelo próprio falante ou por seu(s)
interlocutor(es). A partir dos modelos propostos por Schegloff, Jefferson e Sacks,
Marcuschi (2003) apresenta quatro subdivisões para a correção. A autocorreção
autoiniciada é “feita pelo próprio falante logo após a falha” (MARCUSCHI, 2003
[1986], p. 29). Pode ocorrer no mesmo turno ou no seguinte. O mais comum é que
a correção seja efetivada imediatamente após o erro. Com isso, evita-se que a
correção seja efetivada pelo interlocutor, o que poderia expor a face do falante
perante seus pares ou permitir a perda do turno. Esse é certamente o motivo pelo
qual Schegloff, Jefferson e Sacks, segundo Marcuschi (2003 [1986]), a classificaram
como a modalidade preferida na conversação, pois além de preservar a face do
falante, ainda o mantém com o turno conversacional.
Autocorreção iniciada pelo outro “é a correção feita pelo falante, mas
estimulada pelo seu parceiro ou por outro” (MARCUSCHI, 2003 [1986], p. 29),
499
também é denominada de autocorreção heteroiniciada. Já na correção pelo outro e
autoiniciada ou heterocorreção autoiniciada, “o falante corrente inicia a correção que
é efetivada pelo interlocutor” (FÁVERO, ANDRADE e AQUINO, 1999, p. 66). Na
correção pelo outro e iniciada pelo outro, “o falante comete a falha e quem corrige é
o parceiro” (MARCUSCHI, 2003 [1986], p. 29).
Além de preservar a própria face, como geralmente ocorre na autocorreção,
a correção pode ter diferentes objetivos: manter o turno, ser cooperativo com a
conversação, desqualificar a imagem do outro, tomar o turno do interlocutor.
Quanto ao que é corrigido, Fávero (1999 [1997]) divide em dois grupos,
linguísticos e enunciativos. Os linguísticos podem referir-se a aspectos fonético-
fonológicos, morfossintáticos e lexicais. Castilho (2009 [1998], p. 42) ainda trata de
questões pragmáticas relacionadas às normas conversacionais, como estratégias
para “reparar na distribuição do turno”.
Quanto aos elementos que marcam a correção na língua falada, Fávero,
Andrade e Aquino (2006, p. 69-70) distinguem dois tipos: as prosódicas e os
marcadores discursivos. As marcas prosódicas mais citadas pelos pesquisadores
da área são: pausa, repetição, alongamento, mudança na curva entonacional,
velocidade da elocução e intensidade da voz. A pausa é a mais recorrente e,
normalmente, combina-se com outras marcas. Quanto aos marcadores discursivos
são bastante diversificados. Podem funcionar como marcadores de correção: não,
quer dizer, ou melhor, bom, perdão; e ainda expressões como: ahn, ah, hein, entre
outras.
São considerados como marcadores extralinguísticos os gestos, o
movimento de cabeça, o olhar, o riso, entre outros. Os marcadores não verbais
podem ser divididos em paralinguísticos e cinésicos. Conforme Dionísio (2006),
correspondem à paralinguagem os sons emitidos pelo aparelho fonador, mas que
não fazem parte do sistema sonoro da língua e à cinésica, os movimentos do corpo
como gestos, postura, expressão facial, olhar e riso. O movimento de cabeça
correspondendo a uma negativa, por exemplo, é uma marca muito comum no
processo de correção na fala.
500
Quanto às funções da correção, elas irão variar de acordo com os objetivos
interacionais dos interlocutores e, consequentemente, com a situação comunicativa
em que estão inseridas. Como resposta à pergunta “para que se corrige?”, Barros e
Melo (1990, p. 53) atribuíram à correção três principais objetivos, desmembrados
da função geral de propiciar a adequação e a intercompreensão na conversação, a
saber:
a) O objetivo cognitivo-informativo tem por função “fazer o ouvinte bem
compreender os conteúdos ‘objetivos’ da conversação” (BARROS e MELO, 1990,
p. 53). Nesse caso, o locutor visa à precisão referencial, sendo, portanto, subdividido
pelas autoras em: 1) precisão referencial e 2) precisão anafórica. O primeiro refere-
se à reformulação de inadequação semântica acerca do referente. Já o segundo é
mais específico, pois corresponde à correção de inadequações quanto ao que já foi
dito durante a conversação.
b) Os objetivos enunciativos ou pragmáticos “asseguram, na conversação, a
boa compreensão da posição social e das opiniões dos locutores” (BARROS e
MELO, 1990, p. 53) e são divididos em dois grupos: 1) compreensão das opiniões,
sentimentos e crenças do locutor; 2) reconhecimento da posição social dos
locutores [...] ou de cada um dos interlocutores. A este último correspondem as
correções relacionadas à adequação à norma culta. As autocorreções assim
motivadas demonstram preocupação do locutor em preservar sua autoimagem de
falante culto perante seus interlocutores.
c) As funções interacionais, por sua vez, “podem ser entendidas [...] como a
procura de cooperação na conversação e de estabelecimento de relações de
envolvimento interpessoal” (BARROS e MELO, 1990, p. 54). Esse envolvimento
entre os interlocutores não significa necessariamente concordância, podendo
ocorrer divergência de opiniões. São também divididos em dois: 1) cooperação e
participação na conversa e 2) estabelecimento de envolvimento emocional. Este
último está relacionado tanto ao efeito de familiaridade, quanto ao de desacordo,
pois, como bem nos lembram Barros e Melo (1990, p. 56), “corrigir é criar
envolvimento, é compartilhar o discurso, mas é também exercer controle sobre o
501
parceiro, manifestar saber e poder, brigar pela vez e pelo turno, acentuar as
diferenças entre os interlocutores”.
Essa divisão das funções da correção tem um caráter didático, pois elas
normalmente não se realizam de forma isolada.
502
As correções encontradas dão-se de três modos: autocorreção
heteroiniciada, autocorreção autoiniciada e heterocorreções (correção pelo outro e
iniciada pelo outro). Houve o predomínio dessas duas últimas e não registramos
nenhuma ocorrência de correção fonético-fonológica. Esse tipo de correção não é
comum nas entrevistas porque os falantes estão em um momento de fala
monitorada (mesmo que distensa) e porque soaria deselegante algum tipo de
heterocorreção dessa natureza, pois haveria uma exposição da imagem de quem
tivesse cometido o equívoco.
Constatamos que as autocorreções ocorreram, conforme defendem Fávero,
Andrade e Aquino (1999, p. 74), “com o intuito de preservar a auto-imagem pública”.
Essa preservação deu-se de dois modos: ora para proteger a própria face, como em
(1), ora para preservar a face de seu interlocutor, como em (2).
No exemplo a seguir, Marília Gabriela (L1) retoma uma das falas de Oscar
(L2) em que ele disse ter ganhado mais dinheiro fazendo palestras do que com o
basquete.
(1)
L1 – agora...você diz... na paLEStra eu ganhei uhn:... muito mais... do que/ou ganhei
MAIS do que ganhei com o::
L2 – [sem dúvida
503
(2)
L2 – problemão... eles não queriam me deixar sair de lá...
L1 – que queriam operar imediatamente
L2 – ah e ganhar a grana deles... né?
L1 – cê acha que era por isso?
L2 – SEM: DÚVIDA... talvez não
L1 – TALVEZ não... acho que... pela emergência... você tem um troço desse tamanho dentro
da cabeça... pô
504
Passemos agora à análise da entrevista com o pastor evangélico Silas
Malafaia. Nessa entrevista, os assuntos tratados são polêmicos. Primeiramente,
aborda-se o fato de a revista Forbes ter declarado que o entrevistado é o terceiro
pastor evangélico mais rico do país. Fala-se também das ofertas e dízimos dados
pelos fiéis à igreja. Outro tópico relevante na entrevista é a discussão sobre a
homossexualidade. Os temas foram polêmicos e o tom da entrevista é, portanto, de
embate, confronto.
Nesse contexto, o que se destacou no corpus foram as heterocorreções.
Elas foram largamente utilizadas tanto pelo entrevistado quanto pela entrevistadora
que assumiu algumas vezes o papel de debatedora. Além disso, pudemos perceber
que as estratégias de correção empregadas pelo entrevistado se assemelham às
mencionadas por Fávero, Andrade e Aquino (1998, p. 5) ao tratarem das correções
nas entrevistas:
505
Esse fragmento evidencia ainda a forte presença das estratégias de correção.
Os enunciadores brigam constantemente pelo turno a fim de desqualificarem a
opinião do outro. As heterocorreções tanto de L1 quanto de L2 expressam
discordâncias de opinião, acentuando as diferenças entre eles. Nesse sentido,
destacamos a forte recorrência do marcador discursivo “não” que é o mais típico da
correção e deixa explícita a relação de oposição semântica entre os enunciados.
Em relação ao tópico da homossexualidade, a primeira correção é acerca do
termo “homossexualismo”, que foi considerado incorreto por L1, resultando na
heterocorreção presente no fragmento abaixo:
(6)
L2 – na minha igreja não... ele não teria sido reeleito... deixa eu falar sobre essa questão de
homossexualismo...
L1 – DADE
L2 – ahn?
L1 – DADE... homossexualiDADE
L2 – [homossexualidade
L2 – isso... obrigado... deixa eu te falar uma coisa... PRImeiro... ninguém nasce gay...
homossexualismo é um comportamento... eu vou fazer uma definição
506
L1– [eu não tô perguntando
isso pra você eu tô perguntando/eu to falando das novas famílias
L2– [não eu NÃO acredito
L1 – [venha cá
Além das constantes heterocorreções que visam à tomada do turno,
destacamos o segmento abaixo, que evidencia o emprego de uma correção
metacomunicativa, ou seja, corrige-se o próprio ato comunicativo, a saber: se
alguém pergunta é porque quer uma resposta. Por isso, L2 após ser interrompido
assevera em trecho sobreposto: “se você quer saber eu tenho que te responder”. O
entrevistado está pedindo para falar.
(8)
L1 – não não essa conversa não vai terminar nunca e eu quero saber de você
L2 – [se você quer saber eu tenho que te
responder
L1– eu quero saber qual é a TUA questão com a homossexualidade?
L2 – [então vamo lá...vamo lá...eu eu vou dizer qual é a questão
CONCLUSÃO
Apesar de as entrevistas terem a mesma estrutura, as estratégias de
correção foram empregadas de modo diferente. Na entrevista com Oscar Schmidt,
há um clima de cumplicidade. A entrevista é conduzida em tom de brincadeira. Em
inúmeros momentos, ambos riem dos gracejos do ex-jogador. Há uma clara
demonstração de afeto e cuidado. Marília Gabriela o chama de “amor” e, em dois
momentos, após alguma brincadeira de Oscar, diz carinhosamente que ele é “bobo”,
expressão que soa quase como um afago. Esse cuidado é explicitado inclusive na
507
forma como as correções foram feitas, conforme pudemos verificar nos exemplos
aqui analisados.
Na entrevista concedida pelo pastor Silas Malafaia, por sua vez, há um clima
de tensão. Há inúmeros conflitos, opiniões divergentes e, em vários momentos,
interrompem um ao outro. Para isso, uma das estratégias empregadas foram as
correções. Houve o predomínio da heterocorreção com o intuito de evidenciar o erro
e, consequentemente, desqualificar os argumentos apresentados.
Os objetivos das correções serão determinados, portanto, não apenas pelo
gênero entrevista em si, mas pelas condições de produção da conversação. O tipo
de correção, o modo como se corrige e suas funções evidenciam as posições
ideológicas bem como os papéis sociais desempenhados pelos interlocutores. Por
essa razão, em nosso corpus, identificamos estratégias de correção tão díspares.
REFERÊNCIAS
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PRETI, Dino (org.). Análise de textos orais. 4. ed. São Paulo: Humanitas
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CASTILHO, Ataliba Teixeira de. A língua falada no ensino de português. 7. ed. São
Paulo: Contexto, 2009 [1998].
508
São Paulo: Humanitas Publicações – FFLCH/USP, 1999 [1997]. (Projetos Paralelos,
Vol. 2) (p. 141-159)
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Unicamp, 2006 (Vol. 1. Construção do texto falado). (p. 255-273)
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. 5. ed. São Paulo: Ática, 2003
[1986].
509
O DISCURSO DA MARCA FOLHA DE S. PAULO: UMA ANÁLISE
SEMIÓTICA DAS INTERAÇÕES OFF-LINE E ON-LINE COM OS LEITORES
Considerações Iniciais
194
Mestrado em Administração de Empresas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brasil
195
Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Professor Adjunto I da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
510
metodológicas da Semiótica discursiva de linha francesa (GREIMAS; COURTÉS,
2008) para a análise das manifestações da marca. A fim de aprofundar a
compreensão das interações que se dão entre a Folha de S. Paulo e os seus
consumidores/leitores, recorre-se ao modelo preconizado por Eric Landowski
(2014), segundo o qual as interações podem se inserir em quatro regimes:
programação, manipulação, ajustamento e acidente.
Corpus
511
A coleta consistia no armazenamento da primeira página da edição impressa,
cujo primeiro contato era na edição de papel e, posteriormente, o arquivamento do
fac-símile da capa, disponível para assinantes no website; a captura de imagens da
página inicial do website da Folha de S. Paulo (www.folha.uol.com.br), em diferentes
momentos do dia (manhã e noite) e finalmente, a captura de imagens do perfil do
Facebook, também em diferentes momentos do dia, a fim de acompanhar a
totalidade de posts ao longo do dia. Vale destacar que não foram objeto da análise
links compartilhados no Facebook da Folha de S. Paulo, mas apenas posts
realizados pelo jornal (ainda que fosse um redirecionamento para o seu website).
No mesmo período, realizou-se, também, a captura das cartas dos leitores,
publicadas diariamente na seção Painel do Leitor, na página A2 do jornal impresso;
dos dez primeiros comentários de leitores publicados no website, em dez matérias
diárias, selecionadas aleatoriamente, e dos 20 primeiros comentários publicados
pelo leitor em cada uma dos posts disponíveis no Facebook.
Resultados da Análise
512
e até uma alteração nas características da marca, o que pode sugerir um risco para
seus valores fundamentais.
No nível fundamental, repousam os valores do projeto de marca da Folha de
S. Paulo, com suas características fundamentais norteadoras do trabalho da
publicação. São essas as características fundamentais da marca, configurando-se
em seu nível mais abstrato de significação.
Na sequência, a análise das edições do jornal impresso sugere que o nível
narrativo se dá em uma espécie de monólogo do jornal, que será tratado neste
estudo como narrativa fundadora. Por ela, entende-se o discurso do enunciador bem
definido, no caso, o jornal, que pressupõe a leitura feita por um enunciatário também
definido, no caso, o leitor. Um processo de comunicação fundado no
estabelecimento claro desses dois papeis e em um nível de interação ainda muito
pequeno.
Esse processo da comunicação, marcado por um distanciamento entre jornal
e leitor, e materializa no nível discursivo, por meio da seleção das pautas, diferenças
de tamanhos das letras, cores, fotografias, infográficos, vozes dissonantes e todas
as demais marcas de enunciação, como os dados de circulação, marcas de tradição,
slogan, símbolos, tipografia, debreagens da enunciação e pouco estímulo às
interações. Todas as marcas da enunciação geram um sentido para o enunciatário-
leitor e, no caso da edição impressa, reforçam os próprios valores da marca.
A narrativa fundadora se dá em uma sequência canônica (FIORIN, 2010), de
fazer-saber para um fazer-crer, desempenhando a função não apenas de informar
o seu receptor sobre determinada notícia, mas também formar opinião ou conceito
acerca de um tema. O voto de confiança dado pelo leitor ao jornal e a credibilidade
de que a publicação goza, fruto da tradição, do alcance e da construção de uma
marca forte no seu mercado, aliado às próprias condições interacionais limitantes
oferecidas pelo meio off-line, garantem ao jornal uma posição hierárquica do
detentor do conhecimento.
O processo da comunicação sugerido pela análise do website da Folha de S.
Paulo é marcado por uma maior aproximação entre jornal e leitor e concretizado no
nível discursivo, por meio da presença de novos elementos, como o maior estímulo
513
e mais facilidade para a interação, presença dos comentários do leitores nas
matérias, espaço fixo para pautas e textos enviados pelo leitor, área para
reclamações dos leitores, enquetes e com o maior uso de fórmulas enunciativas na
linguagem, dirigindo-se diretamente ao leitor em exemplos como “A cidade é sua”,
“Envie sua reclamação”, “Colabore com a folha”, entre outros.
Assim, a narrativa de transição começa a deslocar para a esfera da aventura
(LANDOWSKI, 2014), conforme nota-se uma maior participação do leitor na
construção da enunciação. A sequência anteriormente percebida do fazer-saber
para fazer-crer, promovida pela edição impressa, em que as hierarquias eram mais
definidas e havia maior distanciamento entre jornal e leitores, portanto na esfera da
prudência, se desloca para o quadrante da aventura. Este nível narrativo,
classificado no trabalho como a narrativa de transição, começa a se afastar da
programação, relacionada ao fazer-ser, e da manipulação, relacionada ao fazer-
fazer, para dar lugar ao risco dos novos regimes propostos por Landowski (2014).
A participação do leitor já está presente no website. A interferência, no
entanto, ainda é frágil e se dá mediante uma tutela constante do enunciador, no
caso o jornal. Ainda é prematuro afirmar que se trata de um regime de risco puro,
em que o leitor age de forma livre e sem interferências. Logo, percebe-se no website
da Folha de S. Paulo a presença muito maior da multimidialidade, com fotos, vídeos
e áudios, do que da interatividade. Nota-se, também, novos valores no nível
fundamental, com destaque para a atualização e o dinamismo, materializados pela
mudança constante da página e das matérias publicadas, e a descontração
presente, especialmente, na linguagem, tendendo a uma aproximação com o leitor.
No nível discursivo, algumas marcas da enunciação aparecem de forma
bastante intensa na análise do perfil do Facebook, a começar pela ausência da
identidade visual da marca – slogan, cores e logomarca. Em um primeiro contato
visual com a página da rede social, o leitor não identifica diretamente que se trata
de uma página vinculada ao jornal que ele já conhece das manifestações impressa
e on-line. Por outro lado, a página parece estar preocupada com a sua tradição,
uma preocupação também da edição impressa, com a publicação de dados de sua
fundação e momentos históricos importantes em sua linha do tempo.
514
Outra característica relevante é a linguagem utilizada não apenas nos posts
feitos pelo jornal, mas também nas respostas dada pelo jornal aos comentários dos
leitores. Ao contrário da linguagem formal e com respeito à norma culta, percebidas,
por exemplo, na edição impressa, no Facebook há uma concessão à linguagem oral,
às piadas e às brincadeiras típicas da Internet, como os memes, por exemplo.
Intensificada já no website do jornal, a participação do leitor ganha ainda mais
espaço no Facebook que, conforme enuncia a própria descrição da página da Folha
de S. Paulo na rede social, “foi feito para receber a sua opinião”. Ali, torna-se, então,
o espaço do compartilhamento de discursos, opiniões, visões, enunciações, no qual
as relações hierárquicas bem marcadas nas relações com a edição impressa e já
esmaecidas no website, parecem desaparecer.
A multiplicidade de vozes sobrepostas na página do Facebook constrói o que
pode ser classificada como uma narrativa compartilhada. O uso de linguagens mais
coloquiais, com concessões ao registro oral geram uma aproximação entre jornal e
leitor – ou enunciador e enunciatário – fazendo com que esse diálogo entre ambos
seja também potencializado.
Recuperando a análise realizada do nível narrativo das três manifestações e
reconfigurando as narrativas para a classificação proposta por Landowski (2014),
tem-se que a narrativa fundadora, percebida nas edições impressas do jornal são
também uma narrativa da prudência e as interações aí percebidas estão no
quadrante da manipulação e programação. A participação do leitor no processo
interacional é controlada pelo enunciador, com hierarquias bem definidas e posições
bastante definidas entre os actantes: o que enuncia e o que recebe a informação.
Mesmo os estímulos às interações, neste caso, são realizados de forma comedida
e todas as interações são mediadas pelo enunciador, que as aprova ou não e, ainda,
edita, recorta e publica de acordo com sua intencionalidade, utilizando-se até
mesmo, de respostas.
Na segunda manifestação analisada, o website da Folha de S. Paulo, em que
o nível narrativo foi classificado como uma narrativa de transição, o que se percebe
é uma abertura maior às interações, com a facilidade à participação do leitor, mas
ainda uma participação mediada e editada pelo enunciador, tal como acontece na
515
edição impressa. Aqui, nota-se já um ensaio ao risco e ao acidente, porém ainda
não é possível dizer que as interações estão no regime da aventura uma vez que
ainda há uma forte presença e um controle nítido do enunciador nas relações.
Finalmente, as interações analisadas no perfil do Facebook, some a
mediação do enunciador em relação ao discurso do enunciatário, que passa a se
confundir com o próprio enunciador, em uma esfera de papeis menos definidos entre
os dois participantes do fenômeno da comunicação. Tem-se neste ambiente um
regime de risco puro, em que novos sentidos podem surgir fora do controle do
enunciador.
Para facilitar o entendimento deste caminho da narrativa fundadora para a
narrativa compartilhada, ou da narrativa da prudência para a narrativa da aventura,
é possível estabelecer um esquema, a partir do modelo de Landowski (2014). Neste
caminho, parte-se das interações no jornal impresso, na esfera da programação e
manipulação, com o controle do destinador, indo até o perfil no Facebook, em que
as interações estão na esfera do acidente e do ajustamento. Não há mais controle
prévio do enunciador sobre o que está sendo dito e, ainda que este queira exercer
o controle, apagando um comentário, por exemplo, ele estará sujeito às novas
críticas que surgirão em resposta a esta ação.
Os resultados da análise sugerem que as divergências aumentam conforme
também aumentam as interações entre marca e consumidor ou, ainda, conforme a
marca vai perdendo sua hierarquia e o controle sobre o enunciado e dividindo esse
poder de fala com o enunciatário. Desse modo, fica claro que a versão impressa é
a que guarda com mais rigor as características fundamentais do projeto de marca,
o que esse trabalho classificou como narrativa fundadora, e a página no Facebook
como o local em que os sentidos gerados pela enunciação mais divergem dos valore
fundamentais da marca, classificado como narrativa compartilhada, passando por
um nível intermediário de enunciação, o website, classificado como narrativa de
transição.
Sob o regime das interações proposto por Landowski (2014), pode-se dizer
que o caminho parte do quadrante da manipulação e a programação, em que o
enunciador (jornal) tem o controle das interações e dos discursos produzidos sobre
516
a marca, concentrando-se em uma narrativa da prudência. Por outro lado, no
quadrante oposto, está a página do Facebook, em um regime de risco puro, em que
o acidente e o ajustamento dão o tom das interações. É o que se entende neste
trabalho como a narrativa da aventura, em que a geração de novos sentidos e o
contágio entre actantes são a marca fundamental.
Considerações Finais
517
distribuída por meio de uma variedade de novos meios, não sendo mais
exclusividade dos meios tradicionais, a ideia cristalizada em alguns estudos da
Comunicação Social, que encaram o mercado e suas ferramentas de administração
como algo pernicioso que compromete a produção jornalística, deve ser relativizada.
Torna-se necessário refletir sobre a convivência entre os princípios clássicos do
jornalismo, que continuam sendo fundamentais, os processos de geração de
sentidos e o ambiente de mercado, que não mais pode ser negado.
Por outro lado, entendendo a comunicação não apenas como uma troca de
informações, como durante muito tempo ela foi entendida, mas como uma troca de
significados, vislumbra-se um produtivo espaço de pesquisas relacionadas à área
da Administração, com aplicação em questões concretas da comunicação
organizacional, divulgação de produtos e relações públicas de uma forma geral.
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JORNAL do futuro. Direção: Fernando Grostein Andrade. Spray Filmes.18 min. Cor.
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dezembro de 2014>
519
FLUXO DE CONSCIÊNCIA E VOZ-OVER EM CLUBE DA LUTA
Introdução
520
todos que o cercam. Assim exposto, busca-se resolver, dentro do contexto
adaptativo aqui proposto, os questionamentos incessantes sobre a técnica em voz-
over, a saber: seu uso, suas proximidades com a literatura e sua real função nessa
adaptação.
Compreender uma fábula pós-moderna nem sempre é simples. Compreender
uma fábula pós-moderna em que a voz do narrador é interrompida por uma outra
voz torna-se um desafio ainda mais complexo. Imagine, então, se essa voz narrativa
se interromper por uma “vertente” da voz desse mesmo narrador? Indiscutível é o
fato de que, ao romper-se com a fluidez natural que se pressupõe integrante de
qualquer narrativa cria-se, obrigatoriamente, a necessidade de repensar o papel
dessa voz (literária e fílmica). Tendo como aporte os corpora Clube da Luta –
romance de Chuck Palahniuk (1996); adaptação dirigida por David Fincher e
roteirizada por Jim Uhls (1999) – busca-se, neste breve estudo, nomear e estudar a
função dessas vozes nas narrativas.
Já no primeiro capítulo de Clube da Luta, o narrador-personagem sem nome
diz: “[...] por muito tempo, Tyler e eu fomos melhores amigos. As pessoas sempre
me perguntam se conheço Tyler Durden” (PALAHNIUK: 2012, 9); o mesmo
narrador-personagem, no vigésimo-nono (e penúltimo) capítulo, explica-se: “sei
disso porque Tyler sabe disso. [...] Tyler desapareceu. Puf. Tyler é minha
alucinação, não dela. [...] E agora sou só um homem segurando a arma em minha
boca” (PALAHNIUK: 2012, 252-253). É neste derradeiro capítulo que a revelação
de que o Narrador e Tyler Durdan são, de fato, a mesma personagem acontece –
inclusive para o Narrador, que explica: “este é um momento de total epifania para
mim” (PALAHNIUK: 2012, 254). Antes disso, a narrativa é entrecortada por vozes
que nem sempre convergem.
O romance de estreia de Palahniuk traz, em sua essência, a figura do
narrador em primeira pessoa, um protagonista que acaba por gerar oscilações na
trama que tece, posto que sua voz nem sempre é reconhecida, sem hesitação, na
narrativa. Mesmo sem a explicitação dessa duplicidade de vozes, é esse Narrador
o responsável por conduzir uma fábula pós-moderna em que a sua voz mistura-se
à voz de seu eu projetado (Tyler, aquele que também interrompe a fluidez narrativa).
521
Encarada à luz da pós-modernidade como “[...] uma resolução de contradições
estéticas não [...] gratuita, pois a contradição formal em si tem sua significância
simbológica social e histórica” (JAMESON: 1997, 287, tradução nossa), a
instabilidade desse narrador acaba justificada por esse ser um representante do
liquefeito tempo histórico chamado pós-modernidade.
Dentre as tantas características responsáveis por delinear as narrativas pós-
modernas, destaca-se, para este estudo, aquilo que Robert Humphrey classifica
como fluxo de consciência. Para o estudioso (1976, 2), “a consciência é toda área
de atenção mental, a partir da pré-consciência, atravessando os níveis da mente e
incluindo o mais elevado de todos, a área de apreensão racional e comunicável”.
Razão e comunicação são questionados ao deparar-se com o Narrador que
descreve sequências inusitadas em que expõe (sempre em um parágrafo único) a
seguinte informação: “sei disso porque Tyler sabe disso”. Em se tratando de um
narrador personagem, sua ir-racionalidade acaba justificada quando se considera
que “a exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade
de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico de personagens”
(HUMPHREY:1976, 4).
Quase confessando seu próprio estado psíquico, a voz do Narrador, via fluxo
de consciência, acaba por revelar, ao longo da narrativa, o descontentamento desse
protagonista que toma o outro como aquele que o livrará daquilo que tanto o sufoca:
Ligo para Tyler.
O telefone toca na casa alugada de Tyler na Paper street.
Por favor, Tyler, me livre dessa roubada.[...]
Preciso que me resgate, Tyler, por favor. [...]
E o telefone chama outra vez e Tyler atende. [...]
Me salve, Tyler, de ser completo e perfeito. (PALAHNIUK: 2012, 52).
522
interagir quase que exclusivamente com o Narrador. Essa interação acontece, por
exemplo, na sequência do sétimo capítulo em que é o Narrador que relata o
encontro amoroso entre Tyler e Marla, “Tyler e Marla ficaram acordados quase a
noite toda no quarto ao lado do meu. Quando Tyler acordou, Marla já tinha
desaparecido e voltado ao Regent Hotel”. (PALAHNIUK: 2012, 74).
Diante desse panorama questiona-se, então, a reação do leitor que se vê
enredado em um emaranhado de vozes, vozes ora dialogadas – “ - Preciso que me
faça outro favor - Tyler diz. É sobre Marla, não é? - Nunca fale de mim para ela. Não
fale de mim pelas costas. Promete?” (PALAHNIUK: 2012, 86) – , ora entrecortadas
– “No hospital, Tyler diz que eu caí. Às vezes, Tyler fala por mim” (PALAHNIUK:
2012, 61). Dialogadas, entrecortadas, misturadas, as vozes do Narrador e de Tyler
são quase incompreensíveis, logo fica complexo distinguir o que é, de fato, diálogo
entre as personagens ou o que é apenas representação daquilo que se desenvolve
exclusivamente na mente do Narrador. Aqui retoma-se o teórico Robert Humphrey
(1976, 22) e suas considerações acerca do fluxo de consciência e do monólogo
interior:
523
teórico Robert Humphrey explica que a montagem cinematográfica, sob seu prisma,
funciona quase como um “[...] método para mostrar pontos de vista compostos ou
diversos sobre um mesmo assunto, em suma, para mostrar multiplicidade" (1976,
44). Indiscutivelmente múltiplo, o longa-metragem que se cria a partir do romance
tem, em sua essência, um mecanismo da adaptação bastante específico, a
chamada voz-over.
Isenta de fórmulas que a expliquem, a técnica do narrador em voz-over é
empregada toda vez que se objetiva, na narrativa fílmica, apresentar um paradigma
distinto sob uma ótica menos neutra do que a do narrador convencional, em terceira
pessoa. Justifica-se seu uso uma vez que “[...] essa forma de narração pode servir
a muitos propósitos, incluindo recriar/referir-se à uma voz narrativa do romance,
transmitindo informações expositivas, e auxiliando na apresentação de cronologias
complexas”. (KOZLOFF:1988, 41, tradução nossa).
No caso da adaptação em questão, a complexidade da narrativa original está
no fato de, como já exposto aqui, o protagonista bipartir-se em duas vozes que, em
muitos momentos narrativos, se sobrepõem (ou substituem) sem dar ao leitor a
sensação de compreensão completa daquela fábula. É interessante refletir como,
no processo de adaptação, David Fincher obteve êxito ao tomar como fio condutor
a sobreposição das vozes de Edward Norton e Brad Pitt, vozes que somente são
desamarradas no desfecho do filme.
Essa intermitente voz-over do Narrador denota o quão confusa pode ser a
compreensão de uma fábula quando esta é interrompida por essa voz que
constantemente obstruí sua fluidez natural. O roteiro de Jim Uhls, por sua vez,
colabora por primar em manter viva a ideia das duas vozes do narrador, vozes essas
“[...] capazes de levar o estranho e complicado fardo da consciência humana aos
domínios da legítima ficção em prosa” (HUMPHREY, 1976, p. 37). Esse primor
possibilita que o espectador experiencie a mesma sensação de desconforto que o
leitor tem ao ser recorrentemente interrompido pelos rompantes de fluxo de
consciência do Narrador literário.
Por não ser possível calar a voz do Narrador da adaptação, a trama
cinematográfica se desenrola impregnada de suas considerações acerca de tudo e
524
de todos que o cercam. Trata-se de “[...] um narrador em primeira pessoa em voz-
over [que] fala intermitentemente [...]não tem o controle de sua história no mesmo
nível, ou da mesma maneira, que um narrador literário” (KOZLOFF: 1988, 43,
tradução nossa). Aqui cabe uma ressalva, pois sendo quase que uma cópia do
Narrador no qual se inspira, o Narrador fílmico também obtém êxito em manter-se
alheio à narrativa que apresenta ao espectador.
É bastante relevante o fato de esse Narrador em voz-over (nomeado Jack,
no roteiro), que atua como uma espécie de nova personagem, não se manter fiel ao
seu tom natural quando fala diretamente com a câmera; pelo contrário, ao
apresentar seus pensamentos e/ou suas considerações, como na sequência em
que o Narrador apresenta Bob, seu “colega” do grupo de apoio de Câncer de
Testículos, ouve-se uma nova voz,
BOB
Eu tinha minha própria academia. Eu tinha minha própria marca.
JACK
Você foi seis vezes campeão mundial.
JACK (voz-over) (continuidade)
Bob, o pão-de-queijo gigante. Sempre me contava a história de sua vida.
BOB
Ainda somos homens.
JACK
Sim. Somos homens. Homens é o que somos.
JACK (voz-over) (continuidade)
Bob chorava. Seis meses atrás, seus testículos foram removidos. Então,
terapia hormonal. Ele desenvolveu peitos de putinha porque sua
testosterona estava muito alta e seu corpo criou mais estrogênio. Era aí
que minha cabeça entrava – no meio de seus peitos enormes, tão grande
como imaginamos Deus. (UHLS: 2000, 4, tradução nossa).
A voz social do Narrador– que, nesse exemplo, se coloca tanto como vítima,
quanto como confidente – é conflitante com a voz-over do Narrador (interna) – que
ironiza aparência e situação de Bob. Esse conflito recorrente entre a voz social
(publicável) e voz interna (impublicável) é um aspecto estruturante da narrativa
fílmica, pois não é possível desvendar quem é, verdadeiramente, aquele Narrador.
Quando opta por construir uma adaptação alicerçada em voz-over, Fincher “[…]
afeta profundamente a experiência textual do espectador ao naturalizar o tipo de
narrativa, ao aumentar a identificação com as personagens, [...] e por reforçar a
individualidade e a subjetividade da percepção da história que se conta” (KOZLOFF,
525
1988, p.41, grifo da autora, tradução nossa). Essa naturalização está na
manutenção de uma voz bipartida, o que reforça a aproximação entre texto original
e sua versão adaptada.
Dentre os muitos trechos em que que se observam a técnica de voz-over,
destaca-se um relato do Narrador: “[...] tudo o que sei é o seguinte: a arma, a
anarquia e a explosão, isso tudo tem a ver com Marla Singer” (PALAHNIUK, 2012,
p.13). Adaptado aos 2 minutos e 55 segundos, a semelhança textual que se observa
é bastante relevante: “e de repente percebo que tudo isto: a arma, as bombas, a
revolução ... tem algo a ver com uma moça chamada Marla Singer” (tradução
nossa). Ao ouvir apenas a voz-over que habita a mente do Narrador, o espectador
depara-se com a mesma dúvida (recorrente também ao longo da adaptação) do
leitor: essa voz-over do Narrador esboça realidade ou irrealidade?
Outro exemplo do emprego da voz-over é observado no oitavo capítulo.
Originalmente têm-se “Escrevo pequenos HAICAIS e passo por FAX para todo
mundo. Quando passo pelas pessoas no corredor do trabalho eu fico
completamente ZEN diante dessas CARAS hostis” (PALAHNIUK, 2012, p.75); sua
transposição se dá aos 52 minutos e 23 segundos da adaptação, em “eu me tornei
a calma, um pequeno centro no mundo. Eu era o mestre Zen. Escrevia pequenos
poemas haicais. Eu os enviava a todo mundo” (tradução nossa). Novamente muito
semelhantes em conteúdo, ouve-se a voz-over do Narrador, que ironiza aquela
situação.
Essa oscilação entre as vozes do Narrador, que causa recorrente desconforto
por parte do público, se consolida como desconfortante quando, no desfecho fílmico,
o espectador percebe que Tyler Durden também é o Narrador. O fato é que, sendo
protagonista em ambos corpora, não é possível calar as vozes dessa personagem
duplicada em nenhuma das narrativas; essas vozes intermitentes fazem com que
ambas as narrativas se desenrolem impregnadas de considerações múltiplas (e
deveras conflitantes) acerca de tudo o que acontece e de todas as personagens
com quem convive o Narrador (e, consequentemente, Tyler).
As cenas aqui destacadas são apenas algumas das inúmeras cenas que
comprovam a adaptação de Fincher como um exemplo efetivo de fluxo de
526
consciência adaptado em voz-over. Dentro do contexto adaptativo aqui proposto,
revelam-se o fluxo de consciência e o voz-over como possíveis respostas aos
questionamentos acerca dessa intermitência de vozes, que tanto atravanca a
compreensão global de tramas pós-modernas.
527
Referências Bibliográficas
CLUBE DA LUTA. Direção: David Fincher. Produção: Art Linson; Ceán Chaffin;
Ross Grayson Bell. Estados Unidos: Fox 2000 Pictures; Regency Enterprises;
Linson Film; Atman Entertainment; Knickerbocker Films; Taurus Film, 1999. (139
min).
HUMPHREY, Robert. O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce,
Virginia Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. Tradução de Gert
Meyer, revisão técnica de Afrânio Coutinho. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
HUTCHEON, Linda; O’FLYNN, Siobhan. A theory of adaptation. Second edition.
New York: Routledge, 2013.
JAMESON, Fredric. Postmodernism or the cultural logic of the late Capitalism.
Durham: Duke University Press, 1997.
KOZLOFF, Sarah. Invisible Storytellers. Berkley, Los Angeles, London: Berkeley,
1988.
PALAHNIUK, Chuck. Clube da luta. Trad. Cassius Medauar. São Paulo: Leya, 2012.
____________. Fight Club. New York: W. W. Norton,1996.
REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
UHLS, Jim. Fight Club. Estados Unidos: Fox 2000 Pictures; Regency Enterprises;
Linson Film; Atman Entertainment; Knickerbocker Films; Taurus Film, 1999.
Disponível em:
http://www.screenplay.com/resources/research/scripts/scripts_f.html#Fig. Acesso
em: 10 jan. 2015.
528
UM DIÁLOGO ENTRE O CLÁSSICO E O CONTEMPORÂNEO:
RELEITURAS DA OBRA ANFITRIÃO, DE PLAUTO
Introdução
197
Doutoranda, com bolsa CAPES, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo.
529
Um Deus dormiu lá em casa, peça teatral de Guilherme de Oliveira Figueiredo
(1970), escrita originariamente em 1949, e Quero ser John Malkovich, filme de
Charlie Kaufman (1999). Considerando-se que dentre as principais características
de Anfitrião, o traço que se salienta é a questão identitária, busca-se,
especificamente, observar o uso desse recurso (a troca de identidade) nas obras
contemporâneas em análise. O que se pretende, por fim, é evidenciar que “novas
criações” do mundo contemporâneo podem, em geral, ser influenciadas por
manifestações culturais que nasceram na Antiguidade Clássica.
Para efeito de contextualização serão explicitadas a seguir, com base
nos apontamentos de Brandão (1984) e Cardoso (2008), algumas informações
referentes à consolidação do teatro clássico, aos gêneros literários que o
constituíam, com especial atenção à comédia, e ao autor latino cuja a obra clássica
é objeto de análise desta proposta.
O Teatro Clássico
A história do teatro grego começou, segundo Fischer (2011), na praça do
velho mercado de Atenas, entre os séculos VI e V a.C. Nessa época, a cidade vivia
um momento de fortunas e vitórias conquistadas nas guerras com outros povos da
Antiguidade. Por essa razão, destacava-se como uma das mais importantes cidades
gregas.
O povo ateniense costumava ir às ruas para participar dos rituais a Dionísio,
deus das festas, das uvas e da vegetação. Essas festas duravam em média cinco
dias. Nelas, os jovens cantavam e dançavam em homenagem a esse deus
(BRANDÃO, 1984). Aos poucos, esses rituais evoluíram para blocos de
apresentações cênicas, que eram representadas na arena da cidade de Atenas
(ROBERT, 1987). Essa mudança estimulou os escritores a desenvolverem textos
criativos para serem apresentados durante as festas dionisíacas. A partir de então,
Dionísio passou a ser também o deus do teatro (BRANDÃO, 1984).
O teatro grego compreende, segundo Brandão (1984), a tragédia
(considerada o mais nobre gênero literário da época) e a comédia – na qual este
trabalho está fixado –, sendo esta última dividida em comédia antiga e comédia
530
nova. Os autores que queriam emocionar e arrancar lágrimas do público escreviam
textos que se encaixavam na tragédia, dentre eles, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes
(NOVAK, 1999). Por outro lado, aqueles que queriam arrancar gargalhadas do
público, como Aristófanes e Menandro, dedicavam-se às comédias (HUNTER,
2010).
A comédia antiga – cujo representante mais importante, segundo Cardoso
(2008), é Aristófanes – surgiu quase cinquenta anos após a existência da tragédia
(BRANDÃO, 1984). As histórias que eram encenadas reuniam, em geral, elementos
diferentes, tais como a dança, o canto, e algumas farsas literárias. O tema principal
dessa fase era a crítica aos políticos e à sociedade da época (KURY, 1995).
Segundo o autor, como a cidade de Atenas vivia um período democrático, as ações
dos políticos contribuíam muito para o desenvolvimento da proposta cômica. Com o
fim do regime ocorreu também o fim da comédia antiga e da própria cidade
ateniense.
Por algum tempo, a comédia esteve fixada à mitologia, tendo como tema
básico a paródia. Esse período ficou conhecido como comédia média, uma fase de
transição entre a comédia antiga e a comédia nova (CARDOSO, 2008).
A comédia nova ou Néa Komoidía, como era chamada pelos gregos, era
apaixonante, pois retratava a vida privada, “buscando a intimidade dos cidadãos,
fixando-se nos aspectos mais prosaicos e comuns da existência: o amor, os
prazeres, as intrigas sentimentais” (LYRIO: 2010, 17).
Nesse período, segundo Cardoso (2008), o ideal da sátira política e social foi
substituído pelo amor e pela relação familiar. As peças teatrais tornaram-se mais
leves e atraentes, pois deixaram de tratar de maneira séria os assuntos da
sociedade, apresentando uma sátira refinada e racional. Um dos autores que mais
se destacou nessa fase foi Menandro, autor que usava, em seus trabalhos, a
singeleza e a suavidade, sem deixar de lado a ironia cômica e o humor (BRANDÃO,
1984). Não por acaso, Menandro foi o autor que mais influenciou Plauto, um dos
grandes nomes da comédia latina (HUNTER, 2010). Em Anfitrião, peça teatral que
serve como um dos objetos de estudo deste trabalho, é possível observar essa
influência recebida pelo autor, pois ele escreve um texto – no qual brinca com a
531
imagem e as características de alguns deuses do Olimpo – leve, irônico, repleto de
surpresas e de humor, bem ao estilo de Menandro.
A comédia latina
Segundo Novak (1999), Lívio Andrônico foi um dos primeiros autores a
traduzir (para o latim) e a apresentar ao público romano as duas modalidades
cênicas da época: uma tragédia e uma comédia. O povo romano, diferentemente do
público grego, demonstrou grande preferência pela comédia, afinal, ela os deixava
descontraídos e felizes.
As comédias produzidas para a classe média utilizavam, de forma bem
humorada, as situações cotidianas e o amor como temas constantes, mas
conseguiam somente arrancar sorrisos discretos do público. Por outro lado, os
comediógrafos, que escreviam para as massas populares, exageravam na dose de
humor, pois esperavam como resposta aos seus trabalhos o riso solto e satisfeito
(RIBEIRO JR., 1999). O resultado, neste último caso, era plateias lotadas, altas
risadas e muitos aplausos. Dentre os autores que se destacaram na comédia latina,
Plauto foi um dos que ganhou maior popularidade (CARDOSO, 2008). Visivelmente
influenciado pela comédia nova e, como já dito anteriormente, pelas características
de Menandro, ele escrevia textos que, muito provavelmente, arrancavam
gargalhadas de seu público.
Plauto
Titus Maccius Plautus ou Tito Mácio Plauto nasceu em Sarcina, uma região
da Itália, aproximadamente por volta do ano 254 a.C. (CARDOSO: 2008, 16). A
autora nota que os dados sobre a vida do autor não são precisos, assim como ocorre
com outras personagens que ajudaram a construir a história antiga. Sabe-se que
ele, quando jovem, trabalhou como cenógrafo e carpinteiro, o que teria despertado
a paixão pelo teatro. Ele atuou, por algum tempo, como ator (HUNTER, 2010),
porém as necessidades financeiras o afastaram da carreira, mas não do sonho. O
amor por essa arte persistiu em sua companhia, tanto que, independentemente de
ter continuado ou não atuando nessa profissão – de acordo com os estudiosos de
532
sua vida e de sua obra –, ele continuou, ao menos durante algum período de sua
vida, a estudar o teatro grego, em especial a obra de Menandro. Esses estudos
foram importantes para transformar, em pouco tempo, o jovem sonhador em um dos
homens mais importantes do teatro latino (HUNTER, 2010). Seu trabalho inspirou
autores de várias épocas, dentre eles, Camões, Shakespeare e Molière.
Cardoso (2008) mostra que o autor utilizava em seus textos recursos como
danças, canções e a Farsa, uma modalidade teatral na qual participam poucos
atores. Além disso, pondera a autora, costumava associar suas personagens às
figuras dos deuses (assim como ocorre em Anfitrião), às vezes para engrandecê-
los, outras para ridicularizá-los, misturando o universo celeste aos fatos reais. A
linguagem usada pelo autor fluía naturalmente, repleta de trocadilhos e figuras de
estilo, essenciais à comédia grega ou à comédia latina.
O principal objetivo desse gênero, como se mostrou, era divertir o público
sem se preocupar com a realidade. Isso, provavelmente, permitiu ao autor
apresentar o amor e a troca de identidade de maneira leve e cômica. Segundo
Hunter (2010), Plauto explorava, em seus textos, cada oportunidade de humor e
isso refletia na reação da plateia, que, muitas vezes, se reconhecia em algumas
personagens.
Ao que se sabe, o autor escreveu aproximadamente 130 peças, dessas,
apenas 21 chegaram à atualidade (CARDOSO, 2008), dentre elas, Anfitrião, texto
observado neste trabalho.
533
também no cinema e na literatura. Muito desse sucesso se deve a forma inteligente
com a qual o autor introduz a paródia mitológica.
Na história latina, Júpiter, um deus muito namorador, que não mede esforços
para conquistar as mulheres que o atrai, aproveita a ausência de Anfitrião para ficar
com sua mulher, Alcmena. Para realizar seu desejo pessoal e convencer a mulher
a aceitá-lo, Júpiter se faz passar por Anfitrião (o marido) e pede ao seu filho,
Mercúrio, que se transforme em Sósia, um escravo da casa que também está
ausente, pois assim ele teria um cúmplice para acobertar suas armações, sem que
ninguém desconfiasse. Com a fisionomia de Anfitrião, Júpiter consegue realizar o
seu desejo. Quando a farsa é descoberta, o marido traído perdoa a mulher, pois
Júpiter lhe diz que só agiu de tal forma porque havia escolhido Alcmena para gerar
um semideus (Hércules) e isso, naquele contexto, era uma honra para qualquer
mortal.
No decorrer da trama, Anfitrião e Júpiter não ficam frente a frente quando o
deus está com a fisionomia de Anfitrião. O mesmo não ocorre com Sósia e Mercúrio,
que se encontram quando o deus está com a mesma fisionomia do escravo. Esse
encontro desperta muitas confusões e dúvidas na mente de Sósia, fazendo com que
ele se questione até o final da trama sobre sua verdadeira identidade, afinal, ele se
deparou com uma pessoa que era sua imagem e semelhança.
Dessa armação, muito bem bolada, decorrem os conflitos e os desencontros
que envolvem as personagens da trama (Júpiter, Anfitrião, Alcmena, Mercúrio, e os
escravos Sósia, Tessála e Brômia) em situações altamente engraçadas.
Ao que tudo indica, esse texto de Plauto foi um dos primeiros a tratar a
questão da identidade. É justamente o uso desse recurso (a duplicidade) que
consolida tanto a comicidade, quanto a sátira aos deuses mitológicos da Grécia
Antiga.
Observam-se, no texto, além dos artifícios cômicos, outras questões que
surgem em decorrência do duplo, tais como os desvios de caráter e os vícios,
sobretudo no que diz respeito aos deuses Júpiter e Mercúrio, ainda que este atue
apenas como cúmplice, que assumem identidades alheias para consolidar um
desejo pessoal de Júpiter: possuir a mulher do próximo. Além disso, notam-se
534
também os aspectos confusos e perturbados da mente humana, a pluralidade
interior do indivíduo e, principalmente, a busca da identidade, que é uma questão
muito presente na modernidade. Essas três últimas características ficam bastante
evidentes em Sósia, sobretudo depois de ele ficar frente a frente com a sua cópia
(Mercúrio).
Possivelmente, por apresentar esses artifícios, Anfitrião é um dos textos
clássicos mais adaptados de todos os tempos. As releituras são tantas que para
descrevê-las seria necessário um estudo bastante amplo, o que não é o caso deste
trabalho, que se restringe a dois exemplos contemporâneos que evidenciam as
influências dessa obra latina: a peça teatral Um dormiu lá em casa, de Guilherme
de Oliveira Figueiredo (1970), e o filme Quero ser John Malkovich, de Charlie
Kaufman (1999).
As obras contemporâneas
Muitos séculos depois de Plauto ter escrito Anfitrião, em 1949, um autor
brasileiro, Guilherme de Oliveira Figueiredo, adaptou a peça latina, dando-lhe como
título Um Deus dormiu lá em casa. Os papéis de Anfitrião e Alcmena foram
interpretados pelos atores Paulo Autran e Tônia Carrero, que estrearam como
atores nesse trabalho. Esse espetáculo aproximou o autor do universo mitológico,
que a partir de então, passou a fazer parte de seus trabalhos, sempre voltados à
comédia198.
A estreia do espetáculo, dirigido por Silveira Sampaio, foi no dia 13 de
dezembro de 1949, no Teatro Copacabana, Rio de Janeiro. Figueiredo adaptou,
com muita qualidade e irreverência, o texto do dramaturgo latino, criando uma
habilidosa paródia. Além de resgatar personagens da tragédia grega como Creonte
e Tirésias, eliminou Brômia, deu à Tessala o status de mulher de Sósia, e criou
demagogos cujas vozes podem ser ouvidas ao início e ao final do espetáculo,
contracenando com Anfitrião.
535
Embora Um Deus dormiu lá em casa seja uma releitura contemporânea na
qual é evidente a proximidade com a obra latina, a questão da identidade (o duplo)
ocorre de maneira diferente, pois os deuses Júpiter e Mercúrio não aparecem como
no original, ou seja, transformando-se nas figuras de Anfitrião e Sósia. Os
espectadores da obra brasileira conseguem visualizar apenas os atores, que
interpretam as respectivas personagens, disfarçando-se de Júpiter e Mercúrio para
testar a fidelidade de Alcmena e Tessala (suas esposas) e, ao mesmo tempo, tentar
impedir que a profecia de Tirésias (de que um homem habitaria casa deles enquanto
ambos estivessem lutando na guerra) se realizasse. Essa mudança não altera a
qualidade da comédia, muito pelo contrário, pois as personagens, ao se
disfarçarem, criam um jogo cênico de encontros e desencontros que prende a
atenção dos interlocutores e mantém a comicidade da obra.
Ao utilizar o artifício da duplicidade, o autor consegue não só provocar o riso,
como também mostrar o quanto pode ser útil se fazer passar por outra pessoa, tanto
para conseguir o que se quer, como para se livrar do que não se quer.
As influências do texto latino podem também ser observadas no filme Quero
ser John Malkovich, escrito em 1999, por Charlie Kaufman, com título original Being
John Malkovich. O filme contou com as interpretações dos atores John Cusack,
Cameron Diaz, Catherine Keener e John Malkovich.
No filme, Cusack interpreta Craig Schwartz, um manipulador de marionetes
desempregado que se candidata e é aceito para uma vaga temporária como
arquivista, no andar sete e meio de uma estranha empresa americana. Após alguns
dias de trabalho, ele descobre, atrás de um arquivo, uma passagem para a mente
de John Malkovich. Depois de embarcar nessa viagem, que considera uma
experiência sensacional, resolve alugá-la para outras pessoas, para que elas
também possam experimentar a sensação de ser John Malkovich por 15 minutos.
Craig vive uma crise de identidade desde o início da trama: perde o emprego,
não tem um bom relacionamento com a mulher, além de, como sugere a própria
personagem, não encontrar “o seu lugar no mundo”. Quando descobre a
possibilidade de ser outra pessoa (o ator John Malkovich), mesmo que por 15
minutos, ele experimenta uma sensação inexplicável de viver, ainda que por pouco
536
tempo, a vida de uma pessoa rica e famosa, que lhe permitiria encontrar uma
“identidade sólida” e repleta de sensações diferentes daquelas que ele estava
acostumado a viver. Além disso, poderia, se possível, viver um novo amor, pois
sendo um homem rico e com uma carreira consolidada (fatores que, muitas vezes,
contribuem para que se encontre um “amor”) ficaria mais fácil encontrá-lo.
Não se trata de uma releitura diretamente relacionada à obra latina, como
ocorre em Um Deus dormiu lá em casa, mas de um produto contemporâneo que
cabe muito bem à proposta deste trabalho, pois também evidencia a influência da
obra clássica em seu tema central: a questão da identidade.
O desenrolar dessa história, como não poderia deixar de ser, envolve as
personagens da trama – Craig, sua esposa, vivida por Cameron Diaz, Maxine
(Catherine Keener), amiga de trabalho, e, principalmente, o ator John Malkovich,
que tem sua mente invadida e controlada por diferentes pessoas durante o filme –
em situações intrigantes e cômicas, mas, sobretudo, evidencia uma outra
característica presente no texto latino: o desvio de caráter (assim como também
ocorre em Um Deus dormiu lá em casa), afinal de contas, Craig não só usa a sua
descoberta para fugir da realidade e viver momentos de prazer, como também a
transforma em um negócio possivelmente vantajoso para ele.
As três obras aqui observadas mostram que assumir a personalidade e a
fisionomia de outra pessoa, além de, em qualquer época, provocar o riso no espectador
(dentro do gênero em análise, a comédia), funciona como subterfúgio para isolar-se da
realidade, seja uma fuga por dificuldades pessoais ou emocionais, seja simplesmente
um escape por vaidade. O que fica evidente é que o uso da duplicidade, desde a
Antiguidade Clássica até os dias atuais, expõe de forma irônica a fragilidade de caráter
daqueles que decidem assumir a personalidade do outro.
Considerações finais
Embora a questão identitária pareça ser um questionamento bastante atual –
que acompanha o crescente desenvolvimento da modernidade –, não se pode
deixar de considerar, observando-se a obra de Plauto, que ela nasceu há milhares
537
de anos atrás, quando, provavelmente, não se pensava nela com o mesmo ímpeto
de hoje.
O artifício da duplicidade – que põe em evidência a questão da identidade –
utilizado por Plauto em Anfitrião foi aproveitado posteriormente por muitos artistas.
Isso indica que a necessidade de ser o outro perdurou no tempo e continua cada
vez mais atuante nas sociedades contemporâneas, como se pôde verificar nos dois
exemplos selecionados para este trabalho, Um Deus dormiu lá em casa e Quero ser
John Malkovich, nos quais as influências do texto clássico são evidentes, embora
passem despercebidas pelos olhos desatentos da maioria das pessoas que
consomem esses novos produtos.
Obviamente, a questão identitária ocorre de forma diferente em cada
manifestação cultural, no entanto, em todas elas, foi possível notar que a busca de
uma nova identidade (já tratada Antiguidade Clássica) está associada ao desejo de
viver de maneiras diferentes as situações do dia a dia, seja para firmar-se como
indivíduo participante da sociedade, seja para realizar desejos íntimos ou,
simplesmente, pelo fato de a vida alheia parecer mais interessante do que a própria
vida.
É possível que a maioria das pessoas, por razões distintas, já tenha se
imaginado, pelo menos em algum momento da vida, sendo outra pessoa. Foi assim
na Antiguidade Clássica, é assim no mundo contemporâneo e, provavelmente, será
assim na posteridade, sobretudo, considerando-se a evolução da sociedade.
Referências bibliográficas
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia e comédia. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1984.
CARDOSO, Zélia de Almeida. O Anfitrião, de Plauto: uma tragicomédia. Itinerários.
Araraquara, v. 26, pp. 15-34, 2008.
FIGUEIREDO, Guilherme de Oliveira. A rapôsa e as uvas; Um Deus dormiu lá em
casa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.
538
FISCHER, Lionel. História do teatro de sua criação até o final do século XIX, 2011.
Disponível em: < http://lionel-fischer.blogspot.com.br/2009/02/historia-do-teatro-de-
sua-criacao-ateo.html>. Acesso em: 12 jul. 2015.
HUNTER, Richard Lawrence. A Comédia Nova da Grécia e de Roma. Organizador
da tradução: Rodrigo Tadeu Gonçalves. Paraná: Editora Universidade Federal do
Paraná, 2010.
KURY, Mário da Gama. Introdução. In: ARISTÓFANES. As nuvens. Só para
mulheres. Um deus chamado dinheiro. Tradução: Mário da Gama Kury. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1995.
LYRIO, Fernanda Maia. Nos Meandros da Comédia Nova do Menandro. Contexto -
Revista semestral do Programa de Pós-graduação em Letras. Espírito Santo, v. 17,
pp. 10- 41, 2010.
NOVAK, Maria da Glória. Medeia de Sêneca. Letras Clássicas. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, nº 3, pp. 147-
162, 1999.
PLAUTO. Anfitrião. Tradução: Carlos Alberto Louro Fonseca. 2ª ed. Coimbra:
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986.
PRAZ, Mário. Literatura e Artes Visuais. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo:
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Charlie Kaufman. EUA: Single Cell Pictures, 1999. DVD.
RIBEIRO JR., Wilson Alves. Do sorriso grego à gargalhada romana. In: Plauto, O
Soldado Fanfarrão. Tradução: J. D. Dezotti. Araraquara: FCLAr-UNESP, p. 7-8,
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ROBERT, Fernand. A literatura grega. Tradução: Gilson César Cardoso de Souza.
1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
Sites consultados:
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539
HISTÓRIAS E PERSONAGENS NA IMPRENSA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO
– O JORNALISMO DO ESCRITOR ALUÍSIO AZEVEDO
199 Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora em
cursos de graduação e licenciatura na Faculdade Paschoal Dantas, São Paulo – SP.
200 O conteúdo de Pacotilha foi consultado em microfilmes disponibilizados pela Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Os números consultados vão de dezembro de 1880 a setembro de 1881 e serão aqui indicados pela sigla
MF.
540
maranhenses e chegou a alcançar a tiragem de 1500 exemplares diários. No
período entre 12 de dezembro de 1880 e 06 de setembro de 1881 é possível verificar
os escritos de Aluísio sob os pseudônimos Lhinho e Giroflê, assim como atestam os
estudiosos Jean-Yves Mérian, Josué Montello e os próprios artigos do jornal católico
Civilização.
Os escritos publicados na Pacotilha eram um dos canais utilizados por
Aluísio para, não só atacar o clero, mas divulgar seus ideais positivistas para o
público. Esse posicionamento revela que o autor possuía uma visão da literatura
como sistema, pois sem um público consumidor de romances não haveria motivos
para escrevê-los. Portanto, era essencial, naquele momento específico da vida na
província em que a atividade intelectual estava longe de ter a mesma intensidade
que a Corte possuía, investir na promoção não só de seu romance, mas de todo um
modo de pensar e encarar a realidade.
A intenção do romancista era inserir-se numa tradição literária, assim como
comenta Antonio Candido:
541
[...] à tardinha, um grupo de meninotes, em bizarras fardas, ganha a rua, a
sobraçar enormes pacotes de jornais, ainda com a tinta fresca. Berram,
como loucos, pelas ladeiras abaixo:
- Olha a Pacotilha! A Pacotilha!
A acolhida é surpreendente. Não há quem, curioso da novidade da venda
da nova gazeta, em pregões pelas ruas (até então era entregue a
domicílio), não se apresse em adquirir um exemplar por 40 reis
(MENEZES: 1958, 98).
542
Na seção “Os jornais”, Aluísio sob o pseudônimo Lhinho, apresentou
diversos jornais e, por vezes, emitiu sua opinião sobre notícias e jornalistas. Nessa
seção, também, estiveram presentes vários comentários sobre o jornal católico
Civilização, além de promover outras folhas progressistas como O Futuro e
defender os escritos de Giroflê. Aluísio defendeu sua obra literária e divulgou
supostas cartas sobre O Mulato. Tais cartas, segundo Josué Montello, eram fruto
da própria imaginação do artista, usadas como recurso para chamar a atenção do
público leitor. Em 07 de junho, Aluísio, com as palavras de Lhinho, escreve:
A ideia das cartas, com certeza, aguçava a curiosidade daqueles que ainda
não conheciam o livro, além de apresentar uma defesa em favor das obras realistas
em detrimento dos romances românticos vistos como portadores de todos os vícios.
Assumindo uma identidade ficcional, Aluísio, na voz de Lhinho, agradece às
leitoras pelo autor Aluísio Azevedo. Ainda um outro recurso utilizado por ele para
divulgar sua obra foi a exposição de desenhos das personagens que se
encontravam na redação da Pacotilha:
ANÚNCIO
Prevenimos aos leitores da Pacotilha que a partir de amanhã, estará em
exposição no nosso escritório um quadro com desenhos representando
vários episódios do romance de costumes maranhenses – O Mulato – por
Aluísio Azevedo, cujo retrato, tirado em ponto grande pela fotografia
Soares, ocupa o centro do quadro.
Os que já leram e os que ainda não leram – O Mulato – devem ter
curiosidade em ver o quadro, estes para fazerem uma ideia do que é o livro
e aqueles para verificarem a realidade da impressão que lhes causou a
leitura (MF, 25/04/1881).
543
positivistas na folha O Pensador, quanto a propaganda e os comentários de
Pacotilha, serviram de estímulo para curiosidade do leitorado maranhense.
A escolha que Azevedo faz em seus artigos jornalísticos revela sua intenção
educar o olhar de seu público para uma nova forma romanesca, em que a defesa
de uma tese era a base fundamental da obra de arte. É o que ele próprio afirma em
um momento metalinguístico de seu romance-folhetim Mattos, Malta ou Matta?
Romance ao correr da pena, de 1884. Em determinado momento da narrativa, o
autor assume a voz do narrador e explica seu método de construção romanesca:
[...] Diremos logo com franqueza que todo nosso fim é encaminhar o leitor
para o verdadeiro romance moderno. Mas [...] sem que ele dê pela tramoia.
[...] É preciso ir dando a cousa em pequenas doses [...] Um pouco de
enredo de vez em quando, uma ou outra situação dramática [...] para
engordar, mas sem nunca esquecer o verdadeiro ponto de partida – a
observação e o respeito à verdade (AZEVEDO apud MEYER: 1996, 306-
307).
544
de caricaturista, atividade que empreendeu e aprimorou no período em que esteve
na Corte (entre 1876 e 1878), foi, também, ferramenta fundamental para o
desenvolvimento de seus julgamentos a respeito da sociedade maranhense e da
influência religiosa exercida pelo clero.
A observação desses escritos jornalísticos nos direciona para o trabalho que
Azevedo realizou com as fronteiras entre realidade e ficção inseridas em uma
estrutura textual – o jornal – onde, citando Umberto Eco (1994), são relatados os
fatos cotidianos verdadeiros.
Em sua reflexão sobre o que é fictício e o que é real, Wolfgang Iser, lança
uma questão que está inteiramente relacionada com a prática de escrita de Aluísio:
“Os textos ficcionados serão, de fato, tão ficcionais e os que assim não se dizem
serão, de fato, isento de ficções?” (ISER, apud LIMA: 1983, 384).
Do ponto de vista de Iser, a construção ficcional cria três condições básicas
para a apreensão do texto: 1) representa a condição para a reformulação do mundo
ou da realidade que cerca o autor e o leitor; 2) possibilita a compreensão de um
mundo reformulado – mundo ficcional e; 3) permite que tal acontecimento seja
experimentado no momento da leitura. São os vários atos de fingir que compõem
uma produção literária e implicam a seleção e combinação de dados fornecidos pela
realidade empírica. Essa relação é de natureza sociocultural e revela o enfoque que
cada autor deseja dar à sua obra. Relacionando esse conceito com a teoria
naturalista, as escolhas autorais representam a expressão pessoal, ou seja, o
recorte da realidade que o artista usará em seu trabalho e a maneira como irá
configura-lo numa nova forma transgressora do material empírico.
Um exemplo dessa relação entre ficção e realidade no contexto das crônicas
de Aluísio é o artigo publicado na folha Pacotilha de 27 de junho de 1881. Em carta
à redação da Civilização, Aluísio relata o fato de o jornal católico ter insultado os
jovens livres-pensadores da folha cuja edição está sob sua responsabilidade. Antes
de relatar os insultos publicados pelos religiosos, o cronista descreve a situação em
que se encontra a folha católica:
Causou-nos verdadeiro dó ver ontem a desgraçada bater com a cabeça
pelas paredes, esmurrar-se toda, morder a língua e afinal atirar-se ao chão,
roxa, apoplética, fula, a estrebuchar como uma coisa perdida, a enroscar-
545
se como uma lombriga e a vazar por entre os dentes podres uma gosma
de mau caráter.
Pobre Traviata! Quem te viu e quem te vê!
[...]
Causa-nos dó, velha besta desdentada, ver-te aparecer aos sábados, feia,
tísica, aguardentada, com os pés estalados de frieiras, as sobrancelhas
comidas de sífilis, arrastando tua miséria pela rua a tentar divertir um
público que te cospe na cara e que te repele com os pés.
[...]
Um dia te encontramos na porta de uma igreja, a pedir esmola. Como
tinhas o nariz muito vermelho, o olho vazado, um dente arrebitando o beiço
superior, como era muito feia e caricata, e como nós éramos rapazes –
achamos-te graça e rimos.
Tu te maçaste e chamaste-nos nomes feios.
Nós continuamos a rir e tu disseste no teu sopro nasal que nós pagaríamos
o que fizemos – com meia dúzia de galvazes no pescoço.
Coitada! Aquilo não é maldade – é desespero! É desvario! Também como
não há de estar ela nesse pobre estado, se todos a tomaram a seu debique
– se já não há por aí quem não lhe meta os pés e quem não lhe cuspa nas
ventas?!
Ah! Mas nós a defenderemos – a verdadeira desgraça encontrará sempre
proteção neste escritório – quando tu, pobre Civilização, te vires por aí
completamente perdida, enxotada pelos homens e pelos cães, quando tu
não tiveres um trapo para te embrulhares e um pedaço de pão para
matares a fome – vem por cá – nós somos bons rapazes e te faremos
recolher aí no corredor debaixo da escada e te mandaremos lá o resto do
jantar.
[...]
Aparece! (AZEVEDO, MF, 27/06/1881; grifos nossos).
546
seu estatuto de verossimilhança instaurado de modo a desmascarar as verdadeiras
intenções do jornal católico.
O cronista, nesse caso, coloca-se contra uma instituição que possui prestígio
social, a despeito de seus ataques satíricos. A Igreja é representada como uma
figura decrépita e decadente que busca sem aparente sucesso atingir um antigo
público que lhe fora fiel. Aluísio ignora, propositalmente, o fato de ainda existirem os
apoiadores da folha religiosa, pois assume uma postura subversiva e transgressora.
Quando escreve, Aluísio tem em mente o leitor implícito, que, segundo Iser
não é o leitor real, empírico, mas um tipo ideal que agiria como um colaborador ao
texto e, portanto, ajudaria a criá-lo. O leitor, dessa maneira, representa um papel de
fundamental importância para a realização do texto ficcional, jornalístico ou uma
mistura de ambos os estilos. Ele se funda na estrutura do texto, por isso “a
concepção do leitor implícito designa, então, uma estrutura do texto que antecipa a
presença do receptor” (ISER: 1996, 73). O autor utiliza sinais de gênero, ou seja,
recursos linguísticos específicos ou o conjunto de orientações textuais para orientar
o leitor. Sendo assim, o leitor implícito nasce com o texto, pois é uma criação do
próprio autor.
No caso do público maranhense, nos parece claro que Aluísio lançou mão
de recursos ficcionais na construção de suas crônicas jornalísticas – e, então
caminhou entre as fronteiras da realidade e ficção – pois reconhecia a preferência
do público por narrativas. Conseguia, assim, realizar uma dupla função – manter a
atenção do leitor empírico e divulgar o seu ideário positivista.
Podemos, ainda, recorrer a um outro exemplo para verificar a
ficcionalização de elementos da realidade observada. Trata-se da publicação da
seção “Os jornais” de 22 de junho de 1881. Naquela seção, o cronista comenta o
fato de ser perseguido pelo Padre Fonseca por ser um suposto quebrador de
lampiões que ronda a cidade. Com tom irônico, o autor revela ter a paz ameaçada
pela presença do padre que o segue com o objetivo de pegar-lhe em flagrante. A
seguir, temos a cena:
547
Oh! Coisa má e dolorosa! Oh! Tormento de nossa vida! – o espectro do
padre não nos deixa! Ainda outro dia vagávamos pela rua, acabrunhados
pelo fardo imenso de nossos terrores, quando esbarramos de encontro a
um lampião.
[...]
E os vendavais chilravam nas folhas dos arvoredos, e a noite se estorcia
no espaço como um pensamento negro e o céu crivado de estrelas, parecia
uma enorme escumadeira suspensa sobre nossas cabeças.
Foi então que nós subimos a torre de Santo Antonio, arremessamos o
chapéu, levantamos os braços, sacudimos a cabeleira e exclamamos afinal
com todo o ardor de nossa alma:
Quem nos livra
Quem nos livra do Fonseca!
Do Fonseca!
Perna fina e cara seca!
Tristes de nós – tínhamos enlouquecido! (AZEVEDO, MF, 22/06/1881).
548
O Maranhão é apresentado como aquele que deve reunir todos os
representantes políticos para discutir assuntos da mais séria importância: a
necessidade de redes na câmara de reuniões. Os participantes não pediriam a
palavra, mas o bocejo. A narrativa, mais uma vez, serve para caracterizar uma
situação que, na opinião de Azevedo, demonstra a real condição do povo
maranhense. Realidade e ficção, assim, caminham lado a lado na elaboração da
denúncia.
Aluísio Azevedo assumia ao máximo a liberdade que a imprensa lhe
proporcionava, e por isso foi capaz de oferecer ao público sua visão sobre os fatos
e ainda formar o futuro público de seu primeiro romance naturalista. Um dos
recursos dessa liberdade de imprensa foi o emprego de diversos pseudônimos que
garantia ao autor a oportunidade de assumir várias figuras ficcionais e experimentar
os mais variados estilos de escrita, desde os mais graves e reflexivos até os mais
irônicos e repletos de episódios ficcionais. Na medida em que transitava nas
fronteiras entre realidade e ficção, os textos jornalísticos de Aluísio trazem uma
realidade empírica que pode ser comprovada por documentação histórica, mas, por
outro lado, apresenta marcas profundas de sua expressão pessoal que, como forma
de extrapolar os limites do naturalismo no jornal, tornou sua obra única dentre os
seus contemporâneos.
Referências:
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CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos) primeiro
volume (1750-1836). São Paulo: Martins 1971.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist.
São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional IN LIMA, Luiz
da Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Livraria Francisco
Alves, 1983.
MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo. Uma vida de romance. São Paulo:
Livraria Martins, 1958.
549
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913): o verdadeiro Brasil
do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
MONTELLO, Josué. Aluísio Azevedo e a polêmica de "O Mulato". Rio de Janeiro:
José Olympio, 1975.
550
(DES)CAMINHOS DO FANTÁSTICO EM A HORA DO DIABO,
DE FERNANDO PESSOA
Luciano de Souza
Introdução
“Diga-me o que comes e eu te direi quem és” (Pessoa: 1986, 41) é o curioso
adágio, de autoria indefinida, que consta como epígrafe do conto “A Very Original
Dinner”, escrito por Fernando Pessoa em 1907 e atribuído a uma de suas primeiras
personalidades literárias, Alexander Search201. Tivesse sido objeto das filosóficas
ilações do criador daquele adágio, a relação entre os hábitos de leitura de um
escritor e o teor de seus textos poderia, da mesma forma, ter inspirado um axioma
como “Diga-me o que lês e eu te direi o que escreves”, o qual poderia mesmo figurar,
epigrafado ou não, como mote inicial de um texto ficcional ou, quiçá, de alguma
análise crítica sobre as práticas literárias de um dado autor.
Tome-se, por exemplo, a afeição de Fernando Pessoa, enquanto prosador,
“pelo estranho, pelo enigmático, pelo intersticial” (Segolin in Pessoa: 1986, 10).
Ainda pouco conceituada fora dos estudos pessoanos, essa propensão pode de fato
ser explicada pelo interesse que o autor português reconhecidamente nutria, desde
os anos de sua formação literária, por narrativas de cunho fantástico, como bem
nota Maria de Lurdes Sampaio (2012), no comentário que oferece ao conto “The
Door”, e Maria Leonor Machado de Sousa, em seu livro Fernando Pessoa e a
201
Esse texto foi publicado, no original inglês e em uma tradução realizada por Fernando Segolin e Maria da
Graça Abreu Segolin, em uma coletânea de breves narrativas ficcionais de Fernando Pessoa, editada em 1986.
Embora o autor português não tenha fornecido qualquer indício quanto à procedência da citação epigráfica, é
possível que sua inspiração tenha sido uma máxima utilizada pelo “gastrônomo-filósofo” francês Brillat-
Savarin: “Dis-moi ce que tu manges, je te dirai qui tu es” (Wartofsky: 1982, 451). Também o filósofo alemão
Feuerbach expressou um conceito semelhante – ainda que de maneira muito mais engenhosa, como lhe foi
permitido por seu idioma nativo – ao dizer que “O homem é aquilo que ele come” [“Der Mensch ist was er
isst”], mas as palavras de Savarin parecem mais condizentes com a epígrafe utilizada por Pessoa: “Tell me what
thou eatest and I”ll tell thee what thou art”.
551
literatura de ficção (1978). Nesse sentido, é cabível aventar que o pendor de Pessoa
pela escrita fantástica, aliado à sua atração pelo satânico 202, imprimiu na prosa de
A Hora do Diabo as marcas que levariam esse fragmentário conto a ser publicado,
pela primeira vez, justamente em uma coleção dedicada a contos fantásticos de
escritores portugueses, entre eles Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida e Eça
de Queiroz203.
Ausente do espectro da literatura pessoana reputada como canônica, A Hora
do Diabo relata o encontro, em uma dimensão além do tempo e do espaço,
entre uma mulher chamada Maria, grávida de três meses, e Satã, figura
relativamente assídua na produção juvenil de Fernando Pessoa. Estruturado,
editado e comentado por Teresa Rita Lopes, profunda conhecedora da obra do
poeta, A Hora... é, por certo, um dos textos mais intrigantes de Pessoa, sobretudo
pelas numerosas referências a diferentes tópicos relacionados ao esoterismo
ocidental, um tema reconhecidamente preponderante em boa parte de seus
escritos.
Todavia, tendo em vista que a mera ocorrência daquilo que transcende a
realidade humana não é suficiente para qualificar um texto literário como fantástico,
como concordam David Roas (2013: 31) e Tzvetan Todorov (2007: 40), quais seriam
os elementos que efetivamente justificariam uma tal compreensão daquela
hermética narrativa para além da óbvia instância sobrenatural evocada pelo
satânico? Afinal, quando Teresa Rita Lopes, já no início da nota posfacial que
compôs para a primeira edição d’A Hora do Diabo, chama a atenção do leitor para
a inclusão de um texto de Fernando Pessoa numa “colecção de histórias fantásticas”
(Lopes in PESSOA: 1988, 39), ela não parece conferir ao adjetivo “fantástico” um
sentido literário específico, inserindo-o antes naquela “grande categoria geral”
(CESERANI: 2006, 9) ou “concepção ‘unitária’” (Roas: 2013, 43) onde se aloca tudo
202
O satanismo pessoano será explorado na tese In sorte Diaboli: Satã e satanismo(s) em Fernando Pessoa, a
ser concluída em 2016. O artigo “O Diabo em Pessoa: retratos da figura de Satã nos escritos de Fernando
Pessoa” (Souza: 2009) pode ser lido como uma introdução ao assunto.
203
A Hora do Diabo foi dado ao público por duas editoras diferentes, sendo que a primeira edição, de 1988,
coube às Edições Rolim, enquanto as posteriores, de 1997 e 2004, foram publicadas pela Assírio e Alvim. As
duas edições constam das referências bibliográficas deste estudo porque, mesmo não havendo variações no texto
de Pessoa em cada uma delas, os comentários de Teresa Rita Lopes diferem em alguns pontos no que tange ao
seu teor e estrutura.
552
aquilo que “é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o
fabuloso” (Rodrigues: 1988, 9). Considerando, assim, a necessidade de um viés
teórico apropriado para investigar os mecanismos que instauram o fantástico na
diabólica prosa de Pessoa, a primeira investida nesse horizonte optou pela
utilização do consagrado sistema desenvolvido por Tzvetan Todorov em sua
Introdução à literatura fantástica, iniciativa essa que originou o artigo “A Hora do
Diabo: fragmentos de uma narrativa fantástica?” (SOUZA: 2014).
O presente estudo, por sua vez, ao seguir os (des)caminhos do fantástico no
conto de Fernando Pessoa, configura um retorno àquele especulativo exercício
exegético por meio da inclusão, na discussão realizada anteriormente, de alguns
conceitos pensados por David Roas e Remo Ceserani, especialistas que, sem
deixar de atestar a importância do trabalho de Todorov, preconizam, cada qual a
seu modo, reflexões sobre o fantástico que ultrapassam as balizas estabelecidas
pelo ensaísta franco-búlgaro. Há de se frisar que o objetivo aqui não é propor uma
nova interpretação para os fragmentos examinados no referido artigo ou refutar as
conclusões ali vigentes, mas sim avultar aquela apreciação inaugural com a
contribuição de vozes que não foram ouvidas à ocasião.
Convém lembrar neste ponto que, para Todorov (2007: 36), o ponto fulcral de
uma narrativa fantástica está assentado na incerteza do leitor, condição essa que
se sustenta ao menos em duas de três premissas elementares:
[...] é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um
mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente
experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a
uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas
da obra; [...]. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará
tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação poética (TODOROV: 2007, 39)
553
E o essencial para que tal conflito gere um efeito fantástico não é a vacilação ou
incerteza [...], e sim a inexplicabilidade do fênomeno” (Roas: 2013, 89). Roas (2013:
42) acrescenta ainda, ao discorrer sobre sua percepção do fantástico, que “a
transgressão que define o fantástico só pode ser produzida em narrativas
ambientadas em nosso mundo, narrativas em que os narradores se esforçam por
criar um espaço semelhante ao do leitor”.
Estando, pois, decretadas as concepções de Todorov e Roas para o
fantástico, resta examinar os fragmentos que seguem a fim de averiguar de que
forma A Hora do Diabo pode ser vista como uma narrativa fantástica pelas lentes
daqueles investigadores.
Notar-se-á, já de início, que a necessidade de inserir a trama em um ambiente
familiar à realidade do leitor, conforme defende Roas, é perfeitamente atendida no
texto de Pessoa, ainda que o fantástico se manifeste não mediante a ruptura dessa
realidade, mas a partir do momento em que ela é restaurada:
Saíram do terminus, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria
rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás,
para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém.
Estava a rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer
ser um terminus de estação de comboios.
Tonta, sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa. Entrou,
subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no escritório,
e, quando ela entrou, depôs o livro.
“Então?” perguntou ele.
E ela, “Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante”. E acrescentou,
antes que ele perguntasse: “Uma gente que estava lá no baile trouxe-me de
automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí ali
mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou!”
E, num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar
(PESSOA: 2004, 41).
Embora em uma via inversa, pode-se ver aí um exemplo daquilo que Remo
Ceserani (2006: 73) chama de “passagem de limite ou de fronteira”, um dos
procedimentos narrativos que, para aquele teórico, caracterizam o fantástico:
“Várias vezes encontramos, nos contos fantásticos que lemos, exemplos de
passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do
inexplicável e do perturbador”. Ceserani (2006: 77) também observa, ao tratar de
temas frequentes na narrativa fantástica, que “a ambientação preferida pelo
554
fantástico é aquela que remete ao mundo noturno”, não por acaso outro recurso
empregado por Pessoa em seu texto, como revela a imagem da “rua, lunar e
deserta”.
E é em um cenário onde a noite guarda o limiar entre o heimlich e o
unheimlich de Freud (Roas: 2013, 59) que Maria se vê aturdida ao constatar, ao final
de sua viagem, que a saída da estação era a rua em que residia e que, às suas
costas, já não havia sinal de nenhum terminal e tampouco da figura que a
acompanhava. A referência a um “companheiro” e a forma plural do verbo sair
indicam, entretanto, a presença anterior de uma segunda personagem. Deve-se
notar aqui que, sendo esse o primeiro fragmento do conto, estão ainda velados ao
leitor os mistérios da jornada de Maria e a identidade de seu acompanhante. Logo,
a repentina solidão da mulher e o surgimento e subsequente desaparecimento da
estação de comboios nas cercanias de sua casa, nas condições descritas, são
fatores que podem legitimamente suscitar no leitor a hesitação característica da
primeira condição da teoria todoroviana e, também, confrontá-lo com a
inexplicabilidade que, para David Roas, é inerente ao fantástico.
Essa impressão se acentua, ainda, pela completa ausência de referências
feitas por Maria, quando recepcionada pelo marido com um vago questionamento,
a qualquer um dos insólitos eventos por ela testemunhados em seu retorno. De fato,
a mulher simplesmente presta contas de como regressou ao lar graças a uma
carona oferecida e faz um comentário sucinto sobre um baile onde supostamente
estivera. No leitor, todavia, o cotejo de tais informações com o relato do narrador
planta a dúvida sobre o caráter sobrenatural dos acontecimentos descritos no início
da narrativa. Teria Maria deliberadamente urdido as omissões e inverdades ditas na
conversa com o marido, talvez a fim de preservar-se da desconfiança de um
companheiro que não veria em sua experiência sobrenatural nada além de sinais
de adultério ou insanidade? Ou o misterioso companheiro e as visões da estação
fantasma não passaram de imagens sonhadas pela mulher no banco do automóvel
que lhe deixou em casa após um baile? Se a realização máxima do fantástico é
“provocar – e, portanto, refletir – a incerteza na percepção do real” (ROAS: 2013:
111), não se pode negar que esse efeito tenha sido alcançado no fragmento acima,
555
o que corrobora novamente, note-se, os fundamentos de Tzvetan Todorov e David
Roas.
Com algumas pequenas variações, aqueles arranjos contextuais que
introduzem o fantástico no conto aparecerão ainda em dois fragmentos que,
prenunciando o término da narrativa, reproduzem a cena de abertura.
Destaca-se, no primeiro deles, a revelação de detalhes, até então ignorados
pelo leitor, que determinam a abrupta solitude que recai sobre Maria no desfecho
de sua viagem ao lado de Satã:
“Não imagina quanto apreciei a sua conversa. Nunca ouvi falar assim.”
Tinham saído para a rua, cheia de luar, na qual ela não reparara. Ela calou-se um
momento.
“Mas, sabe – é curioso – sabe realmente, e no fim de tudo, o que sinto?”
“O quê?” perguntou o Diabo.
Ela voltou para ele olhos subitamente marejados.
“Uma grande pena de si!...”
Uma expressão de angústia, como ninguém julgaria que pudesse haver, passou
pelo rosto e pelos olhos do homem vermelho. Deixou cair de súbito o braço que
enlaçava o dela. Parou. Ela deus uns passos, constrangida. Depois voltou-se
para trás para dizer qualquer coisa ― não sabia o quê porque nada percebera ―
para se desculpar da mágoa que viu que causara (PESSOA: 2004, 60, 61).
556
“Vim com gente conhecida. Como vinham para os mesmos lados...”
“E como vieste? A pé?!”
“Não. Vim de automóvel.”
“Essa é boa! Não ouvi.”
“Não até a porta”, disse ela sem hesitação. “Passaram ali à esquina, e eu pedi
que me não trouxessem até aqui, porque queria andar este bocado de rua com
este luar tão lindo. E está lindo... Olha, vou-me deitar. Boa noite...”
E foi, sorrindo, mas sem lhe dar um beijo – o do costume, que ninguém ao dar
sabe se é costume se é beijo.
Nenhum deles reparou que se não tinham beijado (PESSOA: 2007, 63).
“Diga-me uma coisa, mãe... Dizem que certas memórias maternas se podem
transmitir aos filhos. Há uma coisa que constantemente me aparece em sonhos
e que não posso relacionar com coisa alguma que me houvesse sucedido. É uma
memória de uma viagem estranha, em que aparece um homem de vermelho que
fala muito. É, primeiro, um automóvel, e depois um comboio, e nessa viagem em
comboio passa-se sobre uma ponte altíssima, que parece dominar toda a terra.
Depois há um abismo, e uma voz que diz muitas coisas, que, se eu as ouvisse,
talvez me dissessem a verdade. Depois sai-se à luz, isto é, ao luar, como se
saíssemos de um subterrâneo, e é exactamente aqui no fim da rua... Ah, é
verdade, no fundo ou princípio de tudo há uma espécie de baile, ou festa, em que
esse homem de vermelho aparece...” (PESSOA: 2004, 65).
557
Ao atribuir seus inusitados sonhos204 a possíveis lembranças da mãe, o rapaz
de certa forma sugestiona o leitor a acreditar na veracidade dos eventos relatados
pelo narrador nos excertos acima, pois, ainda que se possa guardar reminiscências
de sonhos, como o próprio filho demonstra em seu relato, o termo “memória” tende
a estar mais comumente associado à revisitação de experiências vividas do que a
episódios oníricos. Além disso, parece não haver dúvidas de que, ao mencionar
“memórias maternas”, o rapaz esteja se referindo a recordações de situações
ocorridas antes de seu nascimento.
Reconduzida àquele estranho dia pelas palavras de seu filho, Maria,
entretanto, não dá sinais de se recordar daquela “conversa interessantíssima”
(Pessoa: 2004, 59) que mantivera com Satã e tampouco dos cenários por onde
passaram, atendo-se, antes, aos mesmos fatos que relatara ao esposo quando de
seu retorno naquela noite:
204
As imagens que povoam os sonhos do filho de Maria remetem a todo o percurso a que a mulher fora
conduzida por Satã, incluindo as passagens onde predominam os solilóquios do Tentador sobre temas que vão
de sua real incumbência na tentação a Cristo (Pessoa: 2004, 43) até ao seu dilema existencial como “um pobre
mito” (Pessoa: 2004, 59).
558
sobrenatural nesse Mefisto que, de resto, não passaria de um “rapaz qualquer”
diabolicamente trajado para um baile de Carnaval.
Delineia-se já a esta altura uma tênue, porém relevante, contraposição entre
a sobrenaturalidade dos eventos descritos nas passagens onde prevalecem as
vozes do narrador e do filho e a trivialidade das situações relatadas em uníssono
por Maria e Antónia, já que esta acaba por corroborar as explanações e justificativas
da amiga: “Oh, filha, lembro-me perfeitamente... Nós queríamos vir até à porta de
casa, aqui, e tu não quiseste. Disseste que gostavas de andar este bocadito ao
luar...” (Ibidem). E é tal polarização de discursos que consolida na narrativa, uma
vez mais, a primeira condição do fantástico segundo Todorov, ou seja, a dúvida
experimentada pelo leitor como resultado do que é representado no texto.
Considerado facultativo por Todorov (2007, 37), também o segundo atributo
de um enredo fantástico pelos critérios de sua teoria, a saber, a hesitação
manifestada no próprio plano ficcional, faz-se reconhecer, em termos, na última fala
de Maria:
“Isso mesmo... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas
que estou certa que nunca te contei. É claro, não têm importância nenhuma...
Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma
história, em que há coisas verdadeiras — e que a própria pessoa não podia
adivinhar — e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte e o
subterrâneo?” (Ibidem).
559
A afluência de diferentes visões teóricas voltadas ao fantástico na literatura
sem dúvida abre um caminho para o eterno retorno ao tema, como se deu, aliás, no
caso desta concisa incursão nos obscuros domínios do fantástico pessoano, que
agora se encerra. E se a empreitada inicial, dedicada unicamente a interpretar A
Hora do Diabo conforme a sistematização estabelecida por Tzvetan Todorov, já
permitia reconhecer na prosa de Fernando Pessoa o estatuto do fantástico, este
trabalho, ao guiar-se também pelas perspectivas exegéticas de Remo Ceserani e
David Roas, corrobora aquela percepção. Apresentado por Teresa Rita Lopes como
uma narrativa fantástica “genérica”, o conto de Pessoa não somente se insere em
um gênero literário de indiscutível relevância, como amplia ainda mais o horizonte
dos estudos pessoanos ao mostrar ao leitor que tão importante quanto revisitar
Lisboa é deixar-se levar pelo Diabo em uma viagem “sem termo real nem propósito
útil” (PESSOA: 2004, 46).
Referências bibliográficas:
560
SOUZA, Luciano de. A Hora do Diabo: fragmentos de uma narrativa fantástica?.
Revista Desassossego, s/l, s/v, número 11, p. 20-31, junho, 2014.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara
Correa Castello. São Paulo. Perspectiva, 2007.
WARTOFSKY, Marx W. Feuerbach. 1 ed. Cambridge, New York, Melbourne:
Cambridge University Press, 1977.
561
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA DÉCADA DE 1970 : POR
UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA
Introdução
205 Doutor em Letras na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é professor dos cursos de Letras e Jornalismo
na mesma instituição.
206 Doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo, é professor no Programa de Pós-Graduação em
562
inserem - e veiculam formações discursivas que delineiam formas de saber que
cada autor assume como válidas em um momento histórico. O manual, por meio da
linguagem adotada em sua redação (em diálogo de continuidade ou de ruptura com
os saberes validados em determinada circunscrição histórica e social), pela adoção
de metalinguagem em tratamentos de fenômenos e aspectos linguísticos e pelas
suas formas de apresentação, organiza e difunde uma imagem ideal, projetando
para seus usuários uma visão que difunde uma imagem (um éthos nesse sentido)
universal, integral e praticamente inquestionável para o texto produzido, que, por
ser objeto do processo pedagógico, cria um espaço atemporal, não consciente da
história e das formulações e reformulações pelas quais o conhecimento passa.
Sendo assim, a proposta materializada em um livro didático ganha ares de
legitimidade exatamente pelo que apontamos.
Assim, a publicação de um livro didático constrói por si só um espaço de
atuação e também uma caracterização do que seus autores consideravam como
válido para o ensino de língua portuguesa em sua época, levando em conta,
naturalmente, um contexto mais amplo, inclusive político, que determinava modos
de atuação para a prática de ensino de língua. Há, nos termos de Bourdieu (2004),
a presença de um capital simbólico legitimando posicionamentos dos autores, via,
principalmente, a publicação de um texto que, por sua própria caracterização,
constitui-se com valor de autoridade na esfera social em que especificamente atua,
o processo de ensino-aprendizagem e a formação de professores.
Levando em conta os aspectos anteriormente apontados, escolhemos como
objeto de análise o livro didático Encontro com a linguagem, publicado por Beth
Brait, José Aguiar Negrini e Nina Rosa Lourenço, em 1977, pela Editora Atual.
Especificamente vamos considerar para a análise o volume 1 de uma coleção de
três volumes para o que na época se denominava ensino de 2 o. grau (o que
atualmente se considera como Ensino Médio). A escolha para o volume 1 se deve
ao fato de que esse volume especificamente apresenta tópicos que demonstram de
que modo uma perspectiva linguística de tratamento da linguagem começava a se
fazer presente de forma destaca na educação básica. Os outros dois volumes da
coleção apresentam tópicos mais tradicionais de revisão gramatical (em todos os
563
níveis de análise linguística) e de história literária. Como nosso objetivo central é
apresentar uma análise da presença da dimensão comunicativa da linguagem no
ensino de língua portuguesa, partimos do pressuposto de que o volume selecionado
nos fornece os elementos necessários para a interpretação historiográfica
pretendida. Na próxima seção, indicamos as diretrizes teórico-metodológicas de
nossa análise. E na sequência, apresentamos a análise do material.
564
própria natureza e configuração social e temporal, isto é, analisar o
pensamento linguístico tal como ele se define.
Princípio de adequação: Após a observação dos dois primeiros
princípios, o historiógrafo encontra-se em condições de realizar análises,
aproximações, avaliações críticas que iniciam a construção da narrativa
historiográfica, em que relações são esboçadas, e esforços
interpretativos passam a ser os primeiros passos de uma reflexão a
respeito da proposição, do desenvolvimento e da recepção de saberes
linguísticos em contextos históricos traçados e já analisados.
A seguir, propomos uma análise do material indicado, tendo em mente que a
produção, como dissemos, de um material didático está inserida em um complexo
histórico e social, que, ao mesmo tempo em que permite a produção e difusão de
conhecimentos e práticas de ensino, valida essa mesma produção, difusão e
práticas.
565
que deram à escola e ao ensino um novo posicionamento da linguagem frente a
alunos pertencentes às classes sociais desfavorecidas, os avanços da Teoria da
Literatura e da Linguística nos anos 1970 muito influenciaram o ensino de língua e
de literatura nas aulas de português, além do fato de as ciências humanas no Brasil
estarem fortemente influenciadas pelo paradigma metodológico do estruturalismo.
Essa nova tendência metodológica influenciou visivelmente o ensino de língua
materna no Brasil, fato claramente depreendido pela análise de exercícios
estruturais ou por atividades que propunham a identificação dos elementos de
comunicação (emissor – receptor – canal – código).
Dessa forma, Encontro com a linguagem (BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO,
1977, p. 75-95) dedica uma lição aos componentes e mecanismos dos atos de fala,
tais quais propostos pelo linguista Roman Jakobson, embora em nenhum momento
da unidade se dê a ele os créditos das citações teóricas apontadas. Um estudo
minucioso das funções da linguagem por meio de exemplos de textos variados leva
o aluno ao conhecimento da variedade de funções, além de fazê-lo atentar para o
fato de que os elementos constitutivos de todo ato de comunicação (emissor –
receptor – referente - código – mensagem - canal) são predominantes em alguns
casos, mas não exclusivos. Reflexões dos autores corroboram a concepção de
língua em voga nos anos 1970, em que a linguagem é vista como instrumento de
comunicação, como meio objetivo para a comunicação: “diante da necessidade de
comunicar o real”; “[...] demonstram que o emissor não fez mais do que testar o
canal, tentando manter o contato, promover a comunicação [...]”; “diariamente
elaboramos mensagens com a finalidade única de iniciar ou manter o contato”.
(Encontro com a linguagem, Brait, Negrini, Lourenço, 1977, p.77, grifos no original).
Completam a definição dos atos de fala e de seus mecanismos geradores o que
Jakobson caracterizou como os dois tipos básicos de arranjos utilizados no
processo de seleção verbal: a seleção e a combinação (Brait, Negrini, Lourenço,
1977, p. 75), além dos conceitos de denotação e conotação, tratados, no entanto,
do ponto de vista abstrato do signo linguístico (significante X significado), como
ilustra o exemplo: “na conotação, a relação entre significante e significado se
566
estabelece quando um signo (significante + significado denotado) se torna o
significante de um novo significado”. (BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO, 1977, p. 83).
Embora as funções de linguagem não tenham sido definidas por meio de
cientistas que buscaram compreender e definir o tratamento da linguagem como
fenômeno de comunicação e expressão, como Roman Jakobson, faz-se, em
Encontro com a linguagem, a alusão tanto a linguistas que ajudaram, cada um a seu
modo, a construir as bases da Linguística enquanto ciência - André Martinet, Louis
Hjelmslev, Algirdas Julien Greimas - quanto a obras que foram expressivas na
difusão da linguística de base saussuriana, tais como: Elementos de Linguística
Geral (de MARTINT), Prolegômenos a uma teoria da linguagem (de Hjelmslev) e
Semântica estrutural (de GREIMAS).
Encontram-se em meio a essa gama de renomados linguistas, autores
diversos da literatura brasileira, como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond
de Andrade, Manuel Bandeira, João Guimarães Rosa, Cecília Meireles, entre
outros. Deduz-se da variada seleção de autores literários a perspectiva linguística
vigente, sobretudo, nas teorias tradicionais de ensino de língua, de que a literatura
é o lugar por excelência da língua e sobre a língua. Dessa maneira, é constante em
Encontro com a linguagem a presença de textos literários nas duas seções
destinadas ao ensino da língua portuguesa, justamente por se acreditar que a
convocação da literatura em sala de aula ajuda, por um lado, a reunir um corpo de
obras altamente legitimadas e, por outro lado, estabelecer um corpus linguístico
autorizado, que define e descreve a língua literária e cede, então, os melhores
modelos para o uso da língua.
Importante dizer que a obra, embora tenha sido publicada no final dos anos
1970 e esteja de acordo com as correntes estruturalistas e funcionalistas da
linguagem, mantém também estreita relação com teorias tradicionais para o ensino
de língua, para as quais a linguagem é, fundamentalmente, a expressão do
pensamento. Segundo essas teorias, presume-se que existem regras a serem
seguidas para a organização lógica do pensamento e, consequentemente, da
linguagem. Essas regras se constituem nas normas gramaticais do “bem” falar e do
“bem” escrever, daí a importância da literatura encontrada na obra como corpus de
567
consulta para que o aluno possa se tornar usuário de “prestígio”. Essa íntima relação
é confirmada pelos autores nas observações e recomendações conferidas aos
professores, na primeira página da obra: “ainda que pensamento e linguagem não
se confundam, é inegável o papel da linguagem como suporte do pensamento”
(Encontro com a linguagem, 1977, p. 01).
A língua valorizada como elemento de comunicação não dava espaço ao
“ensino da gramática” como na perspectiva tradicional anterior. Não se acham em
Encontro com a linguagem (nos outros dois volumes esse tratamento é presente)
lições de gramática normativa, que têm por objetivo apresentar a norma ou a
variedade culta da língua (análise de estruturas, classificações morfológicas e
sintáticas, etc); ao contrário, o aluno é livre na obra para escrever como deseja:
“sem nenhuma preocupação de ser corrigido ou de corrigir-se, escreva livremente.
Você é um escritor de sala de aula” (Encontro com a linguagem 2º grau volume 1,
1977, p. 02). Destaca-se, no livro didático, a concepção estrutural de gramática em
estreita relação com a concepção saussuriana de sistema, como na explicação a
seguir: “A linguagem [...] consiste na possibilidade de selecionar elementos e
combiná-los segundo regras. [...] é universal, podendo ser comparada a um jogo. A
capacidade de jogar também repousa na possibilidade de selecionar elementos e
combiná-los” (Encontro com a linguagem 2º grau volume 1, 1977, p. 57, grifos no
original).
Além da descrição da estrutura e do funcionamento da língua, de sua forma
e função, é também característica da gramática descritiva de cunho estrutural a
preocupação com que o falante seja capaz de distinguir expressões da língua e
explicá-las como são faladas. É o caso de numerosos exercícios encontrados no
livro didático analisado, como por exemplo: “construa uma frase explicando o
significado da expressão ‘to na minha’; “qual o significado que você daria agora à
frase: entre coisas e palavras (...) circulamos”?; “como você resumiria essa
mensagem”?; “o que significa a expressão ‘chegue aos 80’”? (Encontro com a
linguagem, 1977).
A intervenção militar instaurada em 1964 também afetou o ensino de língua
portuguesa, como todas as demais disciplinas curriculares nos anos 1970. Nesse
568
novo contexto, cuja esteira teórico-metodológica estava baseada na teoria da
comunicação, como já afirmado, os objetivos do ensino de português nas escolas
brasileiras eram pragmáticos e utilitários (cf. SOARES, 1998, p. 56-57). Já não se
tratava mais de levar o conhecimento do sistema linguístico, ao saber a respeito da
língua, mas ao desenvolvimento de habilidades de compreensão e expressão de
mensagens, ao uso da língua.
Voltando novamente o olhar a Encontro com a linguagem, além de
observarmos a presença minimizada dos estudos gramaticais, uma outra novidade
é a inserção de “outros” textos – informativos, jornalísticos, publicitários - que não
aqueles escolhidos por critérios exclusivamente literários. Reforçam-se, nessas
escolhas, a partir de então, critérios de intensidade de presença nos textos em
práticas sociais de comunicação.
Não é de se estranhar, portanto, que uma unidade de Encontro com a
linguagem 2º grau volume 1 (1977, p. 27-34) tenha sido destinada ao estudo do
gênero propaganda, e também da antipropaganda. Ainda distante do projeto gráfico
dos livros didáticos do mesmo período, profundamente ilustrados e coloridos graças
ao desenvolvimento da indústria gráfica brasileira, o livro didático analisado dá seus
primeiros passos na análise de textos não-verbais, em preto e branco, que em nada
lembram, ao menos na forma imagética, os anúncios publicitários que buscam
representar.
As atividades, além de explorar alguns recursos de interpretação do texto
não-verbal, também levam o aluno a uma reflexão sobre as características
linguísticas e discursivas desses textos, comparando-os com os lidos na unidade
anterior, todos literários: “existem diferenças entre os textos lidos até aqui e os
anúncios dessa unidade. Estas diferenças residem na relação autor-leitor-texto”
(BRAIT, NEGRINI, LOURENÇO, 1977, p. 28). São as primeiras manifestações, se
assim se pode afirmar, do trabalho com a concepção interacional dialógica da
língua, em que os sujeitos não só constroem de maneira ativa seus textos, como
também são construídos por eles. Uma publicidade em preto e branco (BRAIT,
NEGRINI, LOURENÇO, 1977, p. 29) convida os alunos a refletir sobre o consumidor
em potencial que existe em cada leitor, além de relacionar seus elementos
569
linguísticos (títulos, emprego do vocabulário, uso do imperativo, expressões
familiares) à qualidade do produto em questão.
Ainda de maneira bastante tímida, começa-se a delinear na obra, por meio
das atividades didáticas sobre gêneros discursivos diversos, a ideia de que o sentido
do texto é construído na interação texto-sujeito e não preexiste a essa relação, e
que a leitura é, então, uma atividade interativa complexa de produção de sentidos,
que não apenas se baseia nas informações linguísticas presentes na superfície
textual, mas também nos saberes que circulam no interior do evento comunicativo.
Outra inovação trazida por Encontro com a linguagem são três lições
direcionadas ao estreitamento de laços entre língua, sociedade e cultura. Nessa
perspectiva, a obra apresenta textos variados de antropólogos, jornalistas e
cientistas que associaram os estudos culturais às questões sociais, em um primeiro
momento, e às questões linguísticas, posteriormente. Discutem-se, no primeiro
caso, questões relacionadas aos conceitos de sociedade, de grupos considerados
marginais, de padronização de comportamentos, entre outras. Já em relação ao
binômio linguagem-cultura, o livro didático sugere uma reflexão, por meio de um
texto escrito por um antropólogo, para a importância do papel da linguagem na
cultura de um povo. Inicialmente, o objetivo maior é atentar o aluno para o fato de
que a linguagem responde a uma necessidade natural da espécie humana, a de
comunicar-se. Reforça-se a questão de que a linguagem verbal, diferentemente dos
atos de comer, dormir, respirar etc., não se manifesta de maneira natural e deve,
portanto, ser aprendida, sob a forma de uma língua, a fim de se manifestar por meio
de atos de fala.
Essa reflexão de base linguística dá passagem a um momento posterior em
que se discutem as diferenças entre a linguagem humana e a linguagem animal,
outro assunto frequentemente abordado em manuais de Linguística a partir do
clássico texto do linguista francês Emile Benveniste intitulado “Comunicação animal
e linguagem humana” (2006). Por meio da corriqueira comparação entre homens e
macacos, Encontro com a linguagem (1977, p. 49-51) propõe como exercícios
discussões a respeito das consequências sociais da não aquisição da linguagem,
do retrocesso das sociedades humanas se desprovidas de linguagem e, ainda, o
570
que chama bastante a atenção, desenvolve uma explicação teórica sobre o aparelho
fonador do ser humano, uma descrição dos órgãos e uma reflexão sobre a natureza
da linguagem.
Salientamos, por fim, que Encontro com a linguagem é um livro didático que
reproduz, por meio de suas escolhas teórico-metodológicas, a concepção de
linguagem vigente nos anos 70, em que a língua é vista como um conjunto de signos
que se combinam segundo regras e buscam, então, transmitir uma mensagem,
informações de um emissor a um receptor. É natural, portanto, que encontremos em
suas páginas o acesso a ciências, como a Linguística, por exemplo, que elucidem o
funcionamento da linguagem humana, descrevendo e explicando a estrutura e o uso
das diferentes línguas, neste caso específico, da língua portuguesa.
Considerações finais
Os três princípios de Koerner apontados anteriormente permitem que o
historiógrafo da linguística situe seu material de análise como um documento
histórico, na medida em que define um clima de opinião específico que gerou esse
documento, em que direciona o pesquisador para um tratamento de natureza,
podemos assim dizer, filológica desse documento (uma vez que o procura entender
em sua natureza específica), em que estabelece possibilidades de circunscrição do
documento em uma corrente histórica de relações em torno de continuidades e
descontinuidades. Empregamos esses três princípios nas considerações sobre
ensino de língua nas décadas de 1960 e 1970 (contextualizando um clima de opinião
específico), no tratamento do material em sua imanência como documento histórico
e, por fim, em interpretações que estabeleceram um diálogo de continuidade entre
o material didático analisado, seu contexto de produção e divulgação e teorias que
seriam algumas décadas mais tarde difundidas e amplamente adotadas no ensino
de língua portuguesa.
Desse modo, um determinado material de análise pode ser circunscrito a um
espaço social e histórico específico que lhe permitiu não só sua produção, mas
também sua circulação em uma esfera de saberes, que o validou, da mesma forma,
como um veiculador de um tipo de conhecimento que alcançou seu capital simbólico
571
em sua época. Assim é que se pode falar que o livro didático é um reflexo material
de seu tempo histórico.
Referências Bibliográficas
BENVENISTE, E. Comunicação animal e linguagem humana. In: Problemas de
Linguística Geral 1. Campinas: Pontes, 2006. p. 60-67.
BRAIT, E.; NEGRINI, J.L. ; LOURENÇO, N.R. Encontro com a linguagem 2º grau
volume 1. São Paulo: Atual Editora, 1977.
KOERNER, E.F.K. Quatro décadas de historiografia linguística: estudos
selecionados. Sel. e ed. de textos Rolf Kemmler e Cristina Altman. Vila Real: Centro
de Estudos em Letras, 2014.
SOARES, M. Concepções de linguagem e o ensino da Língua Portuguesa. In:
Bastos, N.B. (org.). Língua Portuguesa: história, perspectivas, ensino. São Paulo:
Educ, 1998. p. 53-60
572
___________. Português na escola: história de uma disciplina curricular. In: Bagno,
M. (org.). Linguística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 155-177.
573
A MEMÓRIA E A HISTÓRIA DO 25 DE ABRIL A PARTIR DOS RELATOS DE
MÚSICOS E ESCRITORES PORTUGUESES
207
Doutoranda da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo – Bolsista da Capes-PROSUP
574
da nação portuguesa sem a possibilidade de se desvencilharem delas. Na década
de cinquenta Salazar começou a ter problemas com a questão colonial: Além da
Índia, com a pressão pela posse das terras de Goa, Damão e Diu, grupos
independentistas de Guiné, Cabo Verde, Moçambique e Angola começaram a
surgir. A partir de 1961, começa a guerra colonial e seu governo começou a
enfraquecer. Para Portugal “a guerra representou um esforço humano enorme: 800
mil recrutados entre 1961-74, 6340 mortos, 112.205 feridos ou incapacitados;
49.422 combatentes em 1961, 149.090 em 1973)” (GOMEZ, 2011, p. 86). A guerra
colonial tomava até 40% do orçamento do estado, e muitos jovens protestaram pelo
país, sendo em grande parte representados por músicos, escritores e jornalistas,
que, muitas vezes eram perseguidos, advertidos ou ainda, presos pela PIDE.
Foi nesse período, no fim da década de 60 e no início dos anos 70, que a
música começou a ser utilizada como um instrumento de resistência contra tudo
aquilo que o povo não concordava. Dois grandes músicos foram precursores do
Canto de Intervenção: José Afonso, conhecido como Zeca Afonso, cuja canção mais
importante foi a utilizada como senha para o Golpe Militar de 1974, “Grândola, Vila
Morena” e também Adriano Correia de Oliveira, ao lançar “Trova do Vento que
Passa” em 1963. As canções tiveram um papel fundamental de espalhar as críticas
e conscientizar o povo das injustiças do governo, e o poder de unir as pessoas para
um mesmo ideal, o que fazia com que o governo se preocupasse com a repercussão
e muitas vezes proibiam a circulação de discos que continham letras que
difamassem o regime. “As canções de intervenção fizeram parte de uma revolução
silenciosa que ajudou a preparar a revolução militar que haveria de despoletar em
Abril de 1974” (VISEU, 2014). Outros músicos e cantores também conhecidos na
época que usaram suas vozes para criticar o sistema político, e que serão tratados
no presente trabalho são José Jorge Letria, Sérgio Godinho e Francisco Fanhais.
Estes três cantores foram entrevistados pela pesquisadora no ano de 2014, em
Portugal, com o objetivo de reunir informações sobre a visão deles da época e suas
expectativas.
575
Os Cantores Entrevistados
José Jorge Letria foi um dos mais novos cantores de intervenção da época.
Nascido em Cascais, formou-se em teatro, é jornalista desde 1970, e já trabalhou
em jornais como Diário de Lisboa, República, Musicalíssimo, o diário e JL. É também
escritor, com muitos livros publicados, inclusive para crianças e adolescentes e
atualmente é presidente da Sociedade Portuguesa dos Autores. Foi quando entrou
na faculdade que começou a ter consciência política, por influência dos amigos e da
situação que o país vivia no momento, em 1968. Quando começou a cantar, na
adolescência, suas músicas eram variadas, mas em seguida, sob a influência de
amigos, começou a compor suas próprias letras, sendo algumas delas de cunho
político e social. Foram nessas composições que os cantores denunciavam os
problemas políticos, o governo e a vontade de mudança, sendo muitas vezes,
perseguidos e interrogados pela PIDE e Letria, foi interrogado pela polícia política
uma vez e tinha vários processos nos arquivos da PIDE. Em uma entrevista para
Eduardo Raposo (2014), Letria afirma que o regime começou a perceber, nessa
época, que eles surgiram como “porta-vozes” da mudança, e de como a canção foi
“um instrumento poderoso de consciencialização política” (RAPOSO, 2014, p. 125).
Letria teve grande importância não só no papel da música, como também foi um dos
poucos a se preparar realmente para o 25 de abril, o que lhe trouxe uma certa
ansiedade e incertezas. Como jornalista do República, ele sabia do plano do golpe
militar e da canção-senha a ser tocada naquela noite, e o disco “Cantigas de Maio”
de Zeca Afonso, foi arranjado por ele, visto que na Rádio o disco estava inacessível.
Sérgio Godinho sempre se dedicou à música, área que até hoje faz sucesso.
Nasceu em Porto em uma família que já era crítica do governo salazarista. Quando
mais jovem, entre os anos 60 e 70, mudou-se para Genebra para estudar, mas
nunca chegou a concluir nenhum curso. Seu primeiro álbum, “Os Sobreviventes”, é
lançado em 1971, juntamente com o Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e
José Mário Branco. Uma de suas músicas da época mais conhecidas é “Liberdade”,
do disco “À Queima Roupa”, lançado em 1974, e tem o seguinte refrão: “Só há
liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação; só há
576
liberdade a sério quando houver liberdade de mudar e decidir, quando pertencer ao
povo o que o povo quer produzir”. Godinho continuou se dedicando à música
enquanto esteve fora de Portugal, e por ter ficado tantos anos fora de seu país, se
interessou muito pelas músicas estrangeiras e raramente pelas portuguesas. Voltou
ao país após a queda do regime, e a partir daí esteve livre para continuar sua
profissão de músico também dentro de Portugal, profissão que até hoje exerce com
muito sucesso, fazendo shows por todo o país.
O último cantor desta pesquisa, Francisco Fanhais, nasceu em 1941 na
Praia do Ribatejo, filho de médico que apoiava o regime salazarista. A partir dos 10
anos começou a frequentar os Seminários de Santarém e Almada e em 1965 foi
ordenado padre. Foi também professor no Colégio Diocesano de Torres Novas e no
Seminário Liceal de Penafirme. Foi na época de 1968 que ele começou a ter
consciência política, e percebeu a injustiça da realidade social e da guerra. Nesse
período ele conheceu os cantores como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira,
José Jorge Letria, José Barata-Moura, etc, e juntou-se a eles em suas músicas e
canções de intervenção. Ele participou, com Zeca Afonso, da gravação de Grândola,
Vila Morena, canção que foi senha para o golpe militar do 25 de abril. Outros padres,
assim como ele, também denunciavam em suas funções a falta de liberdade, porém,
não o fizeram de maneira preparada e combinada; faziam porque acreditavam que
esse ato era o certo perante suas crenças, fazendo com que as pessoas tomassem
consciência dos malefícios que o governo trazia ao país. Como padre que tomou
posição contra a guerra e a falta de liberdade, suas ações foram denunciadas pela
PIDE/DGS e em seguida, ficou impedido de exercer as suas funções de padre, de
professor e músico. Para Fanhais, a canção de intervenção teve “um papel bastante
agregador pelo seu aspecto lúdico e capacidade de mobilização na luta pelo fim da
ditadura” (RAPOSO, 2014, p. 71). Com a proibição, ele mudou-se para a França e
lá permaneceu até o fim do regime e ao regressar a Portugal, voltou a ser professor
e atualmente, é presidente da Associação José Afonso (AJA), associação erguida
em memória do cantor, morto em 1987.
A reconstrução da memória
577
Para trazer à memória a fase da ditadura e o 25 de abril, esta parte do artigo
contará com trechos retirados em obras documentadas, autobiografias e entrevistas
feitas com os cantores Francisco Fanhais, Sérgio Godinho e o também jornalista e
escritor José Jorge Letria. É importante assinalar que as entrevistas, tanto orais
como escritas, ocorreram em grande parte mais de quarenta anos após a revolução,
a memória de cada um deles não pode ser dada como algo totalmente “fiel” ao que
de fato aconteceu. Além disso, verifica-se a diferença entre a idade deles durante
os anos 70, e, por serem tão jovens, seus pensamentos, sentimentos e impressões
acerca do momento certamente mudaram ao longo desses anos ou foram afetados
por outros tantos acontecimentos que sucederam no país ou na vida pessoal de
cada um. Ainda assim, é possível ter uma ideia do que eles vivenciaram e almejaram
enquanto jovens que lutavam pela liberdade de seu país. Como indivíduos inseridos
em “grupos de referência” suas memórias foram construídas em grupo, sendo um
trabalho tanto do sujeito como coletivo. Esses grupos são grupos os quais os
cantores pertenciam na época em que participavam, ativamente, do processo de
críticas ao governo, compartilhando pensamentos, sentimentos, e vivenciando
situações em grupo, por estarem engajados em um mesmo processo de luta. Dessa
forma, esses pensamentos podem ser compartilhados, construídos em conjunto,
embora, como sujeitos individuais, muitos pontos de vistas podem ser diferentes.
Como nas palavras de Halbwachs, reproduzidas por Schmidt e Mahfoud (1993),
se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança,
mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de nossa
evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada,
não somente pela mesma pessoa, mas por várias. (p. 25)
578
A memória, para cada um deles, é a imagem que eles têm do passado, cada
um à sua maneira, sendo diferentes os pontos de vista e a perspectiva da realidade
que eles enfrentam. É na memória que eles guardam suas verdades, suas
percepções e as histórias vividas de uma forma diferente da que é contada pelos
historiadores. Contudo, é preciso identificar em que medida a memória possa ter
sido afetada pelas ocorrências posteriores na vida de cada um deles, ou ainda, se
o tempo possa ter apagado alguns detalhes sobre o passado. Traverso (2009)
assinala que “a memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos
adquiridos posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por
experiências que se sobrepõem à primeira e modificam a recordação. ” (p. 23); e se
caracteriza como algo que está em constante modificação, não sendo nunca
cristalizada. Dessa forma, conclui-se que qualquer material, documento ou uma
autobiografia que se utilize apenas resquícios da memória para reconstruir um
evento, uma fase acontecida num passado distante ou recente, ele será afetado
pelas ocorrências posteriores, e estarão sujeitos à uma representação não
totalmente fiel do que realmente aconteceu. Por esse motivo, Letria, ao reescrever
sobre o 25 de abril a partir de suas memórias vividas na época, quando tinha em
torno de 20 anos, mostra claramente em seus relatos, que a sua memória, com o
passar dos anos, pode ter falhado em algumas situações. Em seu livro “E Tudo Era
Possível” (2013) logo nas primeiras páginas ele ressalta o “problema” de se
documentar algo apenas por meio da memória:
A memória, nesse exercício de expurgo e preservação, tornou-se seletiva,
o que não significa que o tempo a tenha mantido absolutamente fiel. Mas
a memória, não sendo um cão, não tem o dever de ser fiel. Basta-lhe ser
coerente e limpa, sem vocação para adulterar ou fantasiar.[...] Não são
memórias literárias, musicais ou jornalísticas. São, ao mesmo tempo, muito
mais e muito menos do que isso, por paradoxal que pareça, pois quem tão
intensamente viveu tantas coisas ao mesmo tempo acaba sempre por
omitir muito mais do que poderia revelar (pp. 15, 18)
579
científicos e documentos, com datas, nomes e desdobramentos da história sem
expressarem emoções, sonhos, sentimentos de nenhuma figura política ou alguém
que tenha sido parte do acontecimento, por estarem foram do alcance e do tempo
do historiador. Precisam manter o distanciamento e a imparcialidade requerida por
ele para que, de certa forma, possa mostrar credibilidade no seu trabalho. Quando
os relatos são feitos por pessoas que foram vítimas ou testemunhas de um
importante acontecimento, são feitos por meio da memória, e todas as emoções, as
experiências e sentimentos estão sendo mostrados, dando uma ideia de
proximidade com o leitor. Além disso, são relatos subjetivos, visto por uma pessoa,
mostrando apenas um lado da história, que talvez possa ser diferente de outros que
também participaram de tal acontecimento, trazendo, dessa forma, diferentes
emoções, experiências, pontos de vista referentes a um único assunto. É importante
que o historiador leve em consideração os relatos de uma vítima ou testemunha,
mas não deve transformá-los numa perspectiva da escrita da História (TRAVERSO,
2009). Ainda é muito difícil para um Historiador separar esses dois aspectos na hora
de escrever: “É normalmente muito difícil, para os historiadores que trabalham sobre
fontes orais, encontrar o equilíbrio justo entre empatia e distanciação e entre o
reconhecimento das singularidades e a perspectiva em geral” (p. 28). Para Catroga
(2009), a memória tem o objetivo de atestar a veracidade de que é narrado,
enquanto a história é movida por uma finalidade veritativa que precisa de
comprovação para confirmar suas interpretações. Nora (2003) atesta que a memória
“é a vida”, é singular, subjetiva, e a história é objetiva – pode ser ainda uma
representação incompleta do passado; tem uma visão secular. São essas emoções
e sensações não vistas pela História que podemos perceber nas entrevistas orais e
nos relatos que Letria, Godinho e Fanhais demonstraram ao contar suas
experiências. Para facilitar a visualização segue uma tabela feita com as principais
declarações dadas sobre três períodos da história pelos três cantores em diferentes
veículos de informação:
580
PORTUGAL Antes da Revolução 25 de abril Após a Queda do
Regime
581
duro lutar contra uma parede de cimento, tentar destruir a cabeçada, não é? Nós
ficamos com a testa ferida e a parede não mexe um milímetro.” Quando ele entrou
para o grupo de cantores de intervenção, após cantar em um programa chamado
Zip Zip no lugar de José Afonso, que não pôde ir, ele percebeu que tinha começado
a adentrar em um “caminho arriscado”:
Eu sabia que estava a entrar num caminho arriscado, mas pensei comigo:
eles [amigos cantores] têm família, mulher e filhos e não se recolhem; eu
não tenho nada a perder, não tenho mulher, nem filhos, então porque eu
não ia andar com eles, a trabalhar com a música que eu tanto gosto?
(Entrevista)
Fanhais e Godinho foram dois que precisaram emigrar para que pudessem
ter uma perspectiva diferente de vida. Enquanto Godinho procurava ter liberdade,
trabalhar e viajar por países como Suíça, França, Holanda e Canadá, e fugir da
convocação para a guerra colonial, Fanhais foi obrigado a sair do país, após ter suas
atividades proibidas pela PIDE, para conseguir outra forma de sustento.
Já sobre o 25 de Abril, Letria tem relatos em duas de suas obras e revela o
quanto esse dia foi marcante para ele. Parte dessa felicidade, deve-se ao fato de
ele saber com antecedência o que poderia se passar naquela madrugada:
Uma noite incendiada pelas dúvidas de que não sabia se alguma vez
chegaria a ter tempo para ter certezas. [...] Era a madrugada de uma quinta-
feira que parecia estar talhada para não ver a história. [...] Medo? Não, não
tinha medo. Não tinha idade para ter medo. (LETRIA, 1999, p. 21)
582
Letria explica que o 25 de abril representou a “concretização de um sonho”,
“o dia mais feliz” da sua vida, sendo o grande objetivo acabar com a guerra colonial
e ter possibilidade de se viver sem precisar fazer uma guerra. Na parte final de sua
entrevista oral, ele sustenta a importância da música como forma de denúncia do
governo, e que seria fundamental que as canções voltassem a ser um estandarte
de luta, de combate, a serem usadas como forma de transformar um país. Neste dia
histórico e festivo para Portugal, Fanhais, que já estava vivendo na França, relembra
que só ficou sabendo do 25 de abril através de amigos, o que foi um “choque”:
“Amigo, já sabe o que se passa lá em Portugal? Uma revolução... está tudo do
avesso!”. Atordoado com a notícia, ficou desconfiado de que não fosse ainda a tão
sonhada por eles: “seria uma revolução de esquerda ou de direita? Quem está por
trás de tudo isso?” Mas relembra a “dupla alegria” que sentiu ao ligar o rádio para
saber de mais detalhes, e perceber que, além da queda do regime, as músicas de
seus “amigos cantores” estavam tocando, e ainda, a canção utilizada como “senha”
tinha sido a do Zeca Afonso, o qual ele próprio ajudou a gravar. “Peguei o comboio
já no dia 28 e dia 29 já estava em Portugal”.
Após o 25 de abril, os cantores também têm lembranças parecidas com o que
veio depois: “uma febre”. Sérgio Godinho explica numa entrevista a sensação
parecida com o que ocorreu em maio de 68, com o movimento estudantil em Paris:
Foi um abanão nas estruturas e tudo tão espontâneo, cresceu tão depressa
e que ao mesmo tempo se diluiu tão depressa, embora tenha deixado
marcas perenes, a maneira de estar na sociedade, sobretudo a europeia.
Quando vim e assisti ao entusiasmo no 25 de abril e ao sentimento de que
as conquistas eram irreversíveis, lembrei-me muito das certezas que havia
no Maio de 68 (RAPOSO, 2014, p.229).
Ele ainda dizia: “a liberdade só faz sentido se for preenchida com conteúdo,
por isso que só há liberdade quando houver ‘pão’”. A liberdade também traz
“responsabilidade individual e coletiva” (entrevista). Francisco Fanhais se recorda
das inúmeras manifestações pelo país e ressalta o desânimo quando percebeu que
tudo aquilo que tinham sonhado com o 25 abril não se concretizou: “pouco a pouco
fomos percebendo o retrocesso de tudo o que sonhamos”. José Jorge Letria afima
que seria importante que as canções voltassem com este carácter de transformar e
mobilizar o país, que tivessem ainda esse papel de luta de combate. Sérgio Godinho
583
afirma que uma das canções que se relacionaria com os tempos atuais seria
“Vampiros” de Zeca Afonso.
É interessante perceber, após a leitura e as entrevistas, que muitos cantores
compartilham os mesmos sentimentos e as mesmas sensações, embora tenham
passado por histórias diferentes ao longo desses anos. Letria, por ter permanecido
em Portugal durante os anos que antecederam o 25 de abril e ter vivido
intensamente a madrugada do dia 25, foi o que mais mostrou suas sensações ao
longo de todas as entrevistas e relatos feitos sobre o dia. O fato de ser escritor e
documentar desde 1999 o que ocorreu, parte de sua memória está também
registrada com mais intensidade, a ponto de levar o leitor a compreender os medos,
as sensações, as frustrações e as emoções que os jovens da época carregaram
nesses dias. Os três revelaram também a frustração sobre o fato de Portugal não
ter se desenvolvido da maneira que tanto esperavam naquele dia 25 de abril. A
memória de cada um deles hoje reflete também o que atualmente vem fazendo para
preservá-la: Letria reconstruiu sua memória ao escrever livros sobre sua trajetória
no 25 de abril, sendo o último deles lançado em 2013 e Fanhais, logo após a morte
do cantor e amigo José Afonso, reergueu uma associação onde são realizadas as
exposições, apresentações, lançamento de livros e CDs para que a memória
daquele tempo e do grande nome do 25 de abril nunca seja esquecida.
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TRAVERSO, Enzo. O Passado, Modos de Usar. Lisboa: Ed. Unipop, 2009.
VISEU, Albano. Simbologia das Palavras. Lisboa: Chiado Editora, 2014
585
A NOSTALGIA NO DISCURSO MERCADOLÓGICO: UMA ANÁLISE CRÍTICA À
LUZ DA SEMIÓTICA DISCURSIVA DE LINHA FRANCESA
Introdução
208
Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Professor Adjunto I da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
209
Doutorado em Doutorado em Administração pela EBAPE - Fundação Getulio Vargas, Brasil. Colaborador
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração
586
Neste contexto, Stephen Brown, Robert V. Kozinets e John F. Sherry Jr.
publicaram, em 2003, no Journal of Marketing, o artigo Teaching Old Brands New
Tricks: Retro Branding and the Revival of Brand Meaning, texto fundamental para o
campo de estudos denominado como marketing nostálgico. No trabalho em
questão, os autores propõem o composto de marketing para a gestão de “marcas
retrô ou nostálgicas” (Allegory, Arcadia, Aura e Antinomy), baseados, em especial,
em uma leitura/adaptação de conceitos apresentados na obra de Walter Benjamin,
pensador vinculado à escola de Frankfurt.
Tendo em vista o pano de fundo apresentado, o presente artigo – no
momento de sua apresentação no Congresso Letras em Rede 2015, ainda em fase
de desenvolvimento - tem como objetivos: a) discutir a apropriação dos conceitos
de Benjamin por Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003), apontando possíveis
problemas na transposição feita pelos autores do pensamento do filósofo alemão
para o contexto contemporâneo de mercado; e b) apresentar o “marketing
nostálgico”, na perspectiva da semiótica discursiva de linha francesa, como um
discurso mítico que constrói sentido a partir da oposição de base tradição vs.
modernidade. A reflexão desenvolvida neste trabalho, situada na fronteira entre os
estudos de Linguística, Comunicação Social e Marketing, espera enriquecer o
diálogo existente entre as áreas e, sobretudo, contribuir para a leitura crítica dos
discursos publicitário e de marketing.
O presente trabalho enquadra-se no projeto “História, memória e tradição no
discurso publicitário”, coordenado pelos autores deste artigo e apoiado pelo CNPq,
pela FAPERJ e pela PUC-Rio, sob a forma de bolsas de iniciação científica e verbas
para pesquisa. Iniciada em 2012, a pesquisa apresenta diversos produtos e
desdobramentos. O presente texto abordará apenas o contexto teórico e as futuras
etapas do processo de pesquisa em andamento.
587
Mídia de Massa, Discurso Publicitário e História
588
e desmaterializado de uma parte crescente do consumo contemporâneo encontra
nas marcas e na comunicação publicitária seu meio natural de expressão. Uma das
principais propriedades da marca é sustentar uma rede de atributos cognitivos e
simbólicos no interior da qual o produto pode encontrar um sentido e um vetor de
projeção.
Pode-se, portanto, falar de um “mercado de mitos” (HOLT, 2005),
caracterizado nem tanto pela competição entre produtos (e, portanto, satisfação de
necessidades funcionais), mas pela competição entre identidades de marcas que
oferecem ao consumidor mitos que resolvem contradições culturais. Essa mediação
simbólica, uma construção linguística, é aceita como natural pelos indivíduos, o que
facilita a absorção da mitologia criada ou reproduzida pela publicidade, conforme
ensina Barthes (1980):
Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não
ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma
equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante e o significado mantêm,
para ele, relações naturais. Pode-se exprimir esta confusão de um outro modo: todo o
sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a
significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema factual, ao
passo que é apenas um sistema semiológico (BARTHES, 1980, p.223).
589
É a partir desse quadro teórico que o projeto de pesquisa analisa a
apropriação dos temas história, memória e tradição pelo discurso publicitário das
organizações; neste trabalho especificamente, tomando como objeto a nostalgia nos
discursos publicitários e de marketing. Na perspectiva de Rowlinson et al (2010,
p.13), as corporações recorrentemente se apropriam de várias formas de memória
social e coletiva da sociedade, lembrando, relembrando e legitimando o passado
"em uma série de documentos e eventos organizacionais disponíveis publicamente,
tais como relatórios anuais, comunicados de imprensa, páginas da web, revistas,
eventos corporativos, comemorações de centenário, artefatos, produtos,
lembranças, decoração e edifícios". Assim, ao veicular, na mídia de massa,
campanhas publicitárias que materializam o seu passado, as organizações
contribuem para os processos de construção da memória social e, também, de
legitimação dos meios de comunicação como lugares de memória.
590
reprodutibilidade técnica, publicado originalmente em 1936. Ainda que Brown,
Kozinets e Sherry Jr (2003) tenham observado e respeitado a grande distância entre
os contextos enunciativos da obra de Benjamin e sua proposição de composto do
marketing nostálgico, haveriam os autores cometido o erro de descontextualizar o
pensamento do filósofo alemão?
A análise em questão apresenta-se complexa, pois, além das “obras de arte”,
os objetos cotidianos, os bens de consumo, as tecnologias ultrapassadas e mesmo
certos modismos esquecidos, também foram alvo da atenção de Benjamin.
Considerando-se o pensamento de Benjamin como representativo das primeiras
décadas do Séc. XX (o autor nasceu em 1892 e suicidou-se em 1940), quando o
capitalismo já apresentava parte de sua configuração atual, os autores do presente
trabalho pretendem analisar a transposição conceitual evitando a tentação da
“crítica fácil” de que Benjamin foi um crítico severo do capitalismo que teve suas
ideias apropriadas por autores contemporâneos de marketing. O que se pretende é,
para aquém ou além da ideologia dos autores, avaliar a pertinência teórica da
proposição do composto de marketing nostálgico.
O segundo objetivo do trabalho é apresentar o “marketing nostálgico”, na
perspectiva da semiótica discursiva de linha francesa, como um discurso mítico que
constrói sentido a partir da oposição de base tradição vs. modernidade.
Para entender a proposta, é necessário retomar a definição dos termos do
composto do marketing nostálgico segundo Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003):
- Alegoria: alegorias de marca (ou de marketing) são narrativas simbólicas
ou metáforas estendidas. A alegoria é frequentemente usada em publicidade ao
promover histórias didáticas que evocam e oferecem resoluções para estados de
conflito moral do consumidor. As alegorias são dinâmicas, se alteram em resposta
aos gostos e tendências populares.
- Arcadia: evocação de um sentido “quase utópico” em relação a mundos e
comunidades do passado. A ideia do passado como um tempo especial, um “lugar”
mágico, ainda que atualizado pela mais recente tecnologia, é parte integrante do
marketing nostálgico.
591
- Aura: diz respeito à presença de um poderoso sentido de “autenticidade” da
marca. De maneira geral, a busca dos consumidores por autenticidade é um dos
pilares do marketing contemporâneo, sendo a essência das marcas percebida pelos
consumidores por seus atributos considerados únicos, algo que faz parte do “DNA
distintivo” de uma marca. No marketing nostálgico, a aura se apresenta na forma
como o consumidor dialoga e confronta as marcas nostálgicas com sua
autenticidade, seu passado e sua essência.
- Antinomia: paradoxo não passível de solução “que repousa no coração da
filosofia de Benjamin”. O filósofo considerava o progresso científico e tecnológico
inexorável como a causa fundamental do desejo humano de retornar a tempos mais
simples, mais lentos e menos estressantes. No marketing nostálgico, este paradoxo
inerente se reflete na presença simultânea do novo e do velho, da tradição e da
tecnologia, do primitivismo e do progresso, do igual e do diferente.
O conceito central para a leitura semiótica do marketing nostálgico seria a
“Antinomia”. Ainda que se possa argumentar a favor da proposição de um paradoxo
não passível de solução no pensamento de Benjamin, o discurso publicitário – sob
o prisma da semiótica greimasiana – não raro se apresenta como um discurso
mítico, no sentido proposto por Claude Lévi-Strauss, e utilizado por Greimas, de um
discurso no qual a lógica narrativa visa a estabelecer a conciliação de dois termos
contrários de uma categoria. Portanto, os autores do presente texto defendem que
o marketing nostálgico, entendido como discurso, conciliaria a tradição e a
modernidade, resolvendo o paradoxo apontado por Brown, Kozinets e Sherry Jr
(2003).
Tal interpretação dialoga com outros trabalhos. Floch (1990), em seu estudo
da publicidade francesa de automóveis apresenta exemplo cabal dessa lógica. Mais
recentemente, Pessôa (2013), inspirado em Floch (1990), discute o caso da
publicidade brasileira de seguros.
A dificuldade dessa etapa do trabalho está na “separação metodológica”
entre o pensamento de Benjamin (que supostamente apontaria para o paradoxo
insolúvel), a interpretação dessas ideias por Brown, Kozinets e Sherry Jr (2003) e,
finalmente, o entendimento do marketing nostálgico como um discurso mítico.
592
Tendo em vista que os autores de marketing citados não adotam a perspectiva da
semiótica greimasiana, deve-se tomar as devidas precauções para que os mesmos
não sejam criticados a partir de um pressuposto epistemológico estranho ao seu
trabalho, apontando para um vício de “descontextualização”.
Finalmente, vale observar que a oposição tradição vs. modernidade é
fundamental no debate das ciências sociais e humanas, tema que será aprofundado
na presente pesquisa.
Considerações finais
Os autores agradecem aos organizadores do Congresso Letras em Rede
2015 pela oportunidade de apresentar este trabalho ainda em fase de
desenvolvimento. O debate em torno das ideias aqui apresentadas foi muito rico e
esperamos apresentar avanços e conclusões em futuras edições do evento.
Referências Bibliográficas
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contemporânea. São Paulo: Estação das Letras, 2006.
594
A REVELAÇÃO DO AMA-DOR NAS FOTOGRAFIAS DE GEORGES PEREC E
ÉDOUARD LEVÉ210
Manlio M. Speranzini211
Introdução
O Amador Protocolar
Como sentido-primeiro da palavra ‘amador’ adotamos aquilo que Roland Barthes
(2004, p. 208) explica em ‘Réquichot e Seu Corpo’:
O amador não é aquele que tem um saber menor, uma técnica imperfeita
[...], define-se melhor assim: é aquele que não exibe, aquele que não se
faz ouvir. O sentido desta ocultação é o seguinte: o amador só busca
produzir seu próprio prazer (nada impedindo que, além disso, esse
prazer seja também o nosso, sem que ele o saiba), e esse prazer não é
desviado para nenhuma histeria... Além do Amador, termina o prazer puro
(livre de qualquer neurose) e começa o imaginário, isto é, o artista: o artista
goza, sem dúvida mas sob a condição de ser visto, de ser ouvido, sob
a condição de ter um público, seu prazer deve compor uma imago, que
é o discurso do Outro sobre o que o artista faz. (grifos nossos)
210
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - Brasil.
211
Pós-Doutor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), FALE/ UFMG, Linha de
pesquisa: Literatura, outras artes e mídias. Supervisão Profa. Dra. Márcia Arbex.
595
Nessa definição, Barthes contrapõe a figura do amador à do artista, aquele que age
e se mobiliza em função de uma demanda externa a ele, regida pela exibição e por
protocolos, desejos e necessidades que não são necessariamente seus. Em sendo
‘aquele que não se mostra’ – o que de certa forma configura o ‘anônimo’ - e que ‘só
busca produzir seu próprio prazer’, o amador protocolar só pode nos interessar
enquanto ideia, conceito, já que não podendo nomeá-lo e não tendo acesso à sua
produção, seus estímulos e referências, não dispomos de informações para
contextualizações, análises e comparações. Para localizar o amador que interessa
à pesquisa é que pensamos a figura do ‘amador exemplar’ – que continuaria a ser
‘aquele que é guiado pelo próprio prazer e não se exibe’ - e que nos é revelado pela
obra de ficção.
O Amador Exemplar
A manifestação mais importante da figura do ‘amador exemplar’ – aquele que produz
por e para seu bel prazer e nos é apresentado pela ficção – se apresenta na obra
perecquiana através de Percival Bartlebooth de La vie mode d’emploi [A Vida
manual do usuário] e que poderia servir de paradigma para a noção proposta.
Bartlebooth é um milionário inglês que decide ainda jovem se dedicar a um projeto
artístico que o ocuparia por cinquenta anos212. Mas ainda que seu processo de
trabalho seja descrito em minúcias ao longo do livro de Perec e não haja dúvidas
quanto ao ‘amadorismo’ do seu empreendimento, o resultado desse esforço e o que
lhe serve de estímulo não é apresentado ao leitor. Por essa razão recorremos à obra
de Édouard Levé, artista que, embora com uma carreira muito curta, teve uma
produção híbrida entre literatura e fotografia que dialoga de diversas maneiras com
a de Perec.
Em 2002 Levé publicou Œuvres [Obras] – livro que enumera e apresenta a descrição
de obras de arte que ‘seu autor teve a ideia, mas que não realizou’, compondo assim
596
um Catálogo de Arte utópico, ou, como Levé afirma numa entrevista: ‘um programa
de vida por realizar’213.
Se as ações de Levé se restringissem unicamente a esse livro, sua iniciativa poderia
se igualar à de Bartlebooth, mas ele ampliou a potencialidade do que listou em
Œuvres ao tomar algumas das 533 obras descritas para executá-las. Encontramos
assim na obra de nº 55 a descrição de um grande livro de fotografias que
apresentaria a entrada de 739 cidades francesas que tem por nome um substantivo
que é ao mesmo tempo próprio e comum.
No livro ‘Angoisse. Reconstitutions’214 [Angústia. Reconstituições], Édouard Levé
efetiva parcialmente o projeto descrito em Œuvres e visita unicamente a cidade de
Angoisse. Sem qualquer texto, o ensaio fotográfico Angoisse divide o espaço do
livro com outro ensaio – Reconstitutions -, e é composto por 17 imagens de páginas
inteiras e uma lista de legendas ao final. A primeira fotografia – que também aparece
na capa – exibe a placa com o nome da cidade de Angoisse. Tudo na imagem é
fixo, dando a impressão de uma composição cenográfica. A atenção do observador
pula da placa central para o entorno e vice-versa sem que isso unifique a imagem
(difícil imaginar/aceitar que a palavra ‘angoisse’ (fr.) disposta numa placa no centro
da imagem possa designar outra coisa que não ela mesma: a angústia!). Já, nas
outras imagens (sem a placa da primeira imagem), a placidez e o estado cenográfico
permanecem nos lembrando o que Barthes, em A Câmara Clara (1997, p. 66),
entende por ‘fotografia unária’: aquela que tem tudo para ser banal, sem qualquer
distúrbio, emoção ou surpresa, apenas informação. Aquilo que unifica essas
imagens neutras e impessoais (quase anônimas) do ensaio só se efetiva ao final
quando se percebe na lista das legendas (LEVÉ, 2008, s/ nº) que o elemento comum
a elas é exatamente a palavra que está no centro da primeira imagem, e que é
usada para nomear a cidade e ‘qualificar’ tudo o que a compõe:
213 Para entender a amplitude da relação da obra desse artista com a de Perec e conhecer as obras de Levé
citadas nesta comunicação, cf. SPERANZINI, Manlio M.. A pesquisa (in)finita das coisas. Georges Perec e a arte
do desimportante. 2011. Tese de Doutorado, (inédita). FFLCH/USP, São Paulo, 2011. Capítulo 3.2.1. Édouard
Levé e o neutro, pp. 151-159. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8146/tde-
26032012-175238/pt-br.php.> Acesso em 20 agosto 2015.
214 Ibid., Capítulo 3.4.2. Angústia: uma fotografia literária, pp. 190-198.
597
Entrada de Angústia
Casa de Angústia. Mercearia de Angústia
Casa de Angústia
Escola de Angústia. Monumento aos mortos de Angústia
Discoteca de Angústia
Campo de esportes de Angústia
Prefeitura de Angústia. Igreja de Angústia
Bar de Angústia
Restaurante de Angústia
Cemitério de Angústia. Túmulo de Angústia
Angústia à noite
Saída de Angústia 215
O Amador de fato
Em abril de 1979 Georges Perec embarca num navio cargueiro que o levaria da
França a Nova York. Ele havia decidido fazer essa viagem de navio como forma de
preparação para o documentário que ele filmaria a seguir com Robert Bober: “Récits
d’Ellis Island, Histoires d’errance et d’espoir”216 [Narrativas da Ilha de Ellis, Histórias
de Errância e de Esperança]. Durante o trajeto Perec pensava tomar conhecimento
da documentação levantada para a elaboração do filme, concluir o roteiro e ainda
experimentar o sentido de deslocamento dos imigrantes que, no final do século XIX
e início do XX, abandonavam seus países de origem para começar vida nova do
215Entrée d’Angoisse / Maison d’Angoisse. Épicerie d’Angoisse / Maison d’Angoisse / École d’Angoisse.
Monument aux morts d’Angoisse / Discothèque d’Angoisse / Terrain de sports d’Angoisse / Mairie
d’Angoisse. Église d’Angoisse / Bar d’Angoisse / Restaurant d’Angoisse / Cimetière d’Angoisse. Tombe
d’Angoisse / Angoisse de nuit / Sortie d’Angoisse.
216 PEREC, Georges. Récits d’Ellis Island. Les Lieux d’une Fugue. Vol. 1. 2 DVD’s e 1 CD. Paris : INA, 2007.
598
outro lado do Atlântico 217. Perec, muito provavelmente pela primeira vez, começou
a tirar polaroides já no segundo dia de viagem, produzindo em torno de 50 imagens.
Christelle Reggiani, em ‘L’Écriture photographique de Georges Perec’, salienta que
a fotografia está presente na obra de Perec desde seu primeiro livro, Les choses, e
que ela desempenha diversos papéis ao longo de toda a sua obra: de simples objeto
que marca uma posição no texto até referência importante para descrições
minuciosas que estimulam sua memória a recuperar fatos perdidos – como ocorre,
por exemplo, em W ou le souvenir d’enfance. Para todas essas iniciativas Perec
sempre havia recorrido a acervos pessoais, revistas ou a parcerias que estabelecia
com fotógrafos. Dito isso, entendemos o conjunto de polaroides feitas durante a
travessia do Atlântico como a atividade de um ‘amador de fato’ – aquela que se
efetiva por vontade própria e que é conduzida por um prazer incerto.
O tempo compartilhado
Reconhecida por Henri Van Lier em ‘Philosophie de la Photographie’ (1983) como
‘uma fábrica química em miniatura’, a máquina fotográfica Polaroide não utilizava
filme e sensibilizava diretamente um papel quimicamente preparado, fazendo com
que a máquina produzisse, segundos após o disparo da foto, uma cópia padrão com
a imagem de 8 x 8 cm. Pedro Vasques, em ‘Polaroid – O domínio do imaginário’
(1986), destaca o deslumbramento que era para o público amador ver surgir diante
dos olhos e à luz do dia – como se fosse do nada -, uma imagem tomando corpo.
Isso permitia àquele que fotografava algo totalmente novo enquanto sensação: se a
fotografia analógica só podia ser comparada com a lembrança que o fotógrafo tinha
do momento em que fizera a fotografia, a polaroide era comparada imediatamente
com o real fotografado. Além disso, a polaroide não exigia uma grande expertise:
segundo o mesmo Pedro Vasquez, a polaroide era uma ‘câmera à prova de idiotas’
que oferecia um produto acabado a todo operador, mesmo àqueles avessos à
tecnologia. É importante também salientar que a fotografia instantânea tinha
599
adquirido um potencial estético equivalente ao desenho e à pintura, já que ela podia
acompanhar ‘o tempo compartilhado’ do fazer do artista. Sabendo disso, podemos
supor que Perec, em seu processo de trabalho durante a viagem, escrevia ao
mesmo tempo em que fotografava, e vice-versa, se aproveitando do estímulo das
imagens que produzia para se lembrar (sua história pessoal), imaginar (a vida em
Ellis Island), projetar (o roteiro do documentário que faria com Robert Bober) e
pensar na natureza da representação (as relações entre a palavra, a imagem e o
plano do real).
218 Cf. Jacques Poli. De 11 x (11 + 11) + 11 à l’Aître Saint-Maclou. In : TEM, 1997, pp. 9-10.
219 Perec daria logo depois a Jacques Poli um álbum contendo a série de 39 polaroides, numeradas e ordenadas
sequencialmente.
600
Quinta-feira, 26 de abril de 1979 / Acordei às 7 horas. [...] Tirei três fotos: a
1ª completamente branca, a segunda levada pelo vento. A 3ª está correta,
mas é preciso olhar bem de perto para ver uma terra no horizonte. [...] Foto
nº 6 tirada de frente para o sol (mesmo assim interessante, por causa dos
containers). 220
220Levé à sept heures. [...] Pris trois photos: la 1ère complètement blanche, la seconde emportée par le vent. La
3e est correcte, mais il faut vraiment la regarder de près pour voir une terre à l’horizon. […] Photo Nº 6 prise
face au soleil (intéressante q[uan]d m[ême] à cause des containers).
221 Cette brume insensée où s’agitent des ombres, / comment pourrais-je l’éclaircir?
222 Cette brume insensée où s’agitent des ombres, / - est-ce donc là mon avenir?
601
O sentido exato dessa série de
polaroides é do universo da
intimidade do seu autor, fazendo
pensar no que Henri Van Lier (op.
cit., p. 81) escreve sobre esse tipo
de fotografia: enquanto que a
fotografia analógica, que era
registrada em filme, permitia
ampliações, efeitos de reprodução
e tiragens infinitas que não
alteravam a matriz inicial,
representando assim as
possibilidades de uma ‘vida
aberta’, a polaroide era um objeto
único, pequeno, acanhado, Figura 1 – Simulação. (Foto do autor).
223 Je sais que ce qui est important c’est qu’au milieu de W il y ait ceci... le signe de l’absence, qui est la
séparation de mes parents, ça perte… […]. Effectivement, tout le temps, il y a ce type de figure qui revient, mais
ça, c’est une chose qui se trouve dans les livres mais… Je ne sais pas comment dire… c’est pour ça que j’écris.
Entretien Georges Perec/Bernard Pous. (1981). In : PEREC, 2003b, p. 193.
602
[...] no meio de W há três pontinhos que são o que eu nunca direi, porque
outras palavras virão a seguir, substituí-lo. 224
Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Réquichot e Seu Corpo. In: O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2004, pp. 189-213.
_____. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
LEVÉ, Édouard. Reconstitutions. Angoisse. Paris: Nicolas Chaudun, 2008.
______. Œuvres. Paris: P.O.L, 2002.
PEREC, Georges. 39 polaroïds. In : regarde de tous tes yeux, regarde, L’art
contemporain de G. Perec. Nantes: Joseph K, 2008, pp. 67-73.
______. Ellis Island. Paris: P.O.L., 2005.
______. W ou le souvenir d’enfance. Paris: Denoël, 2003a.
______. Entretiens et Conférences, v. 2. Édition critique établie par Dominique
Bertelli et Mireille Ribière. Nantes: Joseph K, 2003b.
REGGIANI, Christelle. Perec : une poétique de la photographie. In: Littérature,
N°129, 2003. Matières du roman, pp. 77-106.
______. L’écriture photographique de Georges Perec. In : regarde de tous tes yeux,
regarde, L’art contemporain de G. Perec. Nantes: Joseph K, 2008, pp. 60-66.
224[…] au milieu de W, il y a trois petits points qui sont ce que jamais je ne dirai, parce que d’autres paroles
viendront ensuite, le remplacer. Georges Perec. « À propos de la description ». (1981). In : PEREC, 2003b, p.
239.
603
TEM. Texte en main, nº 12. Perec, Polaroïds. Printemps 1997. École Régional de
Beaux-Arts de Rouen.
VAN LIER, Henri. Le polaroïd SX 70 : le retour du corps. In : Philosophie de la
Photographie. In : Les Cahiers de la Photographie, 1983, pp. 30-32. Disponível em:
http://www.anthropogenie.com/anthropogenie_locale/semiotique/philosophie_photo
graphie.pdf. Acesso em 20 agosto 2015.
VASQUEZ, Pedro. Polaroid – O domínio do imaginário. In: Fotografia. Reflexos e
Reflexões. Porto Alegre: L&PM, 1986, pp. 87-112.
604
BENJAMIM EM LIVRO E FILME:
A PERSONAGEM PÓS-MODERNA E SUA REPRESENTAÇÃO
Introdução
605
adaptação fílmica homônima, dirigida por Monique Gardenberg 2004, objeto desse
estudo.
Apesar de sua prosa multifacetada e nada convencional, em pelo menos um
aspecto parece não haver discordância: as personagens de Chico Buarque vivem
uma desestabilização identitária, resultando em sua constante inquietação, o que
cria uma impressão de que elas vivem aprisionadas em uma “camisa de força” e em
busca contínua de liberdade, a qual se revela sempre tardia e muitas vezes
impossível. Ao entrar em contato com o universo dessas personagens, percebemos
o quanto o autor investe na desorganização de seus mundos, na complexidade de
vozes, na multiplicidade de suas ações, não raras vezes sem sentido.
Nas obras de Chico Buarque, notamos indivíduos agindo, mesmo que
contrariados, em consonância com tudo aquilo que a sociedade e sua dinâmica
impõem. Esse mosaico identitário tem forte nuances decorrentes das identidades
fragmentadas contemporâneas, instaurando a chamada crise de identidade,
considerada, segundo Stuart Hall, "parte de um processo mais amplo da mudança,
que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas
e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem
estável no mundo social” (HALL, 2003, p. 7).
As personagens e até o espaço nas obras de Chico Buarque parecem
caminhar ao encontro do nada: cada passo, cada decisão, cada lugar se multiplica,
não há um único lugar, um único espaço, pois a própria narrativa parece também
levar o leitor para esse universo instável, o universo do não-lugar, que, por
congregar em si todos os lugares, acarreta, de certo modo, na anulação do próprio
lugar e na instauração de seu avesso (AUGÉ, 1994 p. 36).
606
O objetivo deste trabalho é, assim, analisar como a personagem principal da
obra Benjamim é retratada no filme de mesmo nome. Na narrativa literária,
Benjamim Zambraia, nome do protagonista, é um indivíduo com sérias dificuldades
em relacionar seu presente e seu passado; o protagonista vive numa sociedade pós-
trauma, buscando, a partir de um dado acontecimento, reparar, de algum modo,
questões que não foram bem resolvidas em seu passado. Tanto em Benjamim-livro
como em Benjamim-filme, as personagens estão “sempre em trânsito”, seus
espaços são moventes, há uma busca incessante para definir e delinear qual é seu
território. Neste estudo, limitar-nos-emos a analisar apenas à adaptação da
personagem principal, na passagem da narrativa literária para a narrativa fílmica.
607
Personagem em Benjamim(s)
608
No filme, a sequência de acontecimentos, não são exatamente com a
sequência do livro, mas foram realizadas de acordo com a obra: no trecho acima
citado, a adaptação foi fiel ao encontro entre Benjamim e doutor Campoceleste,
havendo apenas uma pequena mudança para dar mais dramaticidade à cena (o
doutor pega na mão de Benjamin e é ele mesmo quem sussurra aquelas palavras
ao protagonista); já no livro, foi uma enfermeira quem transmitiu o recado. Na cena
há, ainda, na chegada de Benjamim ao quarto do enfermo, uma sequência de
transição do plano geral para o primeiro plano (entre Benjamin e doutor
Campoceleste): ao responder sobre o paradeiro de Castana, Benjamin fica em
primeiríssimo plano, com uma música "comovente" de fundo, dando ênfase à
dramaticidade e gravidade do momento, o que faz com que o protagonista adquira
uma dimensão dramática ainda maior; na sequência, o que confere expressividade
ao pedido de doutor Campoceleste é a mudança de câmera para o plano de detalhe,
focando o aperto de mão do doente, e em seguida, sua morte, assim como no livro.
609
personagem tipicamente pós-moderna. Na narrativa literária, temos o tempo todo, a
impressão de que há uma "câmera fora dele filmando seus movimentos" (MELLO,
2010, s.p.), fato que o filme consegue transmitir com precisão, pois as sequências
de cenas foram elaboradas a partir desse mesmo prisma.
610
No filme, as sequência de cenas acima transcritas foi composta por
adições e reduções: há uma redução, por exemplo, da cena em que Benjami
,procura Castana: diferentemente do que ocorre no livro, o espectador assiste à
cena em que o taxista leva Benjamim ao cinema, mas não àquela em que ele
passeia com o protagonista na praça; em seguida, há um corte de cena onde já
aparece Castana descendo do ônibus e Benjamim seguindo-a, no táxi. Interessante
e expressivo é notar, por todo filme, que quando há cenas do passado de Benjamim,
as cores são todas "vivas", mais fortes do que as cenas do presente, talvez porque
o protagonista tenha resistência em viver seu presente, já que o passado lhe surge
de modo mais "vivo" e intenso.
611
se, assim, ambos fossem o culpado pela morte de Castana. O espelho fica turvo,
embaçado, sujo, e a câmera projeta, lentamente, ainda através do espelho,
Benjamim atirando alguns objetos e o deixando em pedaços, assim como ele
próprio. O espelho fica estilhaçado, reproduzindo metaforicamente tanto o efeito
produzido nos corpos fuzilados quanto a condição emocional e psicológica de
Benjamim, tomado pela dor e pela culpa. A câmera, através do espelho, reflete
Benjamim: ambos estão "quebrados" em vários pedaços; com um giro panorâmico
para a direita, a câmera mostra Benjamim, agora sem a imagem do espelho,
sofrendo, atirado ao chão. A câmera volta ao plano geral e, nesse momento, vemos
que as cores do quarto são vermelho e branco... guerra e paz: a cena é sonorizada
por uma música dos anos 60 e, na sequência, por um choro de bebê. Há uma
mudança de cena, trazendo Benjamin para o presente, na mesma casa de tons
brancos, limpando as lágrimas com uma echarpe vermelha que foi de Castana. Aqui,
a câmera faz um travelling, acentuando a dor no rosto de Benjamin, que relembra
que seus amigos o abandonaram por o considerarem um traidor. A sobreposição
dessas imagens no filme faz com que o espectador sinta ou, pelo menos, se comova
com a agonia de Benjamim, pois, como lembra Bernardet , “ternura ou tristeza não
são expressas pela pelo filme; elas resultam da reação do espectador diante da
justaposição de duas imagens” (BERNARDET, 1984 p. 49).
612
que é o desfecho do livro e do filme, o quanto o futuro de Benjamim era dominado
pelo efeito da culpa.
Conclusão
613
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
614
A FÁBULA TRADICIONAL COMO UM SILOGISMO INDUTIVO
Márcio Thamos226
1. Introdução
Do ponto de vista sintáxico, a fábula pode ser definida como uma figura de
linguagem ou, poderíamos dizer, como uma espécie de macrofigura, já que se trata,
226
Professor da Área de Latim do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP,
Câmpus de Araraquara, credenciado no PPG em Estudos Literários da mesma Instituição.
615
conforme demonstra A. D. Lima (1984), de um recurso de expressão composto de
maneira peculiar, a partir da relação formal de três discursos: um figurativo, a
historieta narrada, um temático, a moral inferida, e ainda um outro a que o autor
denomina metalinguístico, a conexão sintáxica entre os dois primeiros, para o qual
reclama a devida atenção.
A comum explicitação dos discursos figurativo e temático nos textos de
fábula, ou seja, sua manifestação inequívoca no enunciado, bem como a
preocupação voltada apenas a questões relativas ao conteúdo, fez com que o
discurso metalinguístico fosse deixado de lado ou simplesmente não percebido nas
análises tradicionais de fábulas. Compreende-se que isso assim seja, dada a
relativamente pequena extensão do discurso metalinguístico, quando se manifesta
em frases do tipo “esta fábula ensina que” ou tão somente “moral:”, e sobretudo
quando se exprime apenas em termos suprassegmentais, no caso, a natural
mudança de tom na passagem da história para a moral ou vice-versa.
Assim, virtualmente, o discurso moral vem sempre acompanhado do
metalinguístico, que estabelece a conexão interpretativa entre aquele e o discurso
narrativo. Esse arranjo sintáxico tridiscursivo estará sempre presente na estrutura
da fábula, pois, sendo de natureza formal, reconstrói-se logicamente, isto é, por
implicação, ainda que nem todos os seus termos constituintes estejam explicitados
no corpo do enunciado.
Apesar disso, ou talvez se devesse dizer, por isso mesmo, a sintaxe
discursiva não constitui a especificidade da fábula como texto literário. Afinal,
Um tal arranjo discursivo não determina uma espécie narrativa, mas sim, uma
espécie de figura retórica composta, uma macrofigura de linguagem, que pode ser
usada como recurso expressivo em qualquer contexto, pois a justaposição de um
616
discurso figurativo e um temático é procedimento comum na construção discursiva
em geral.
617
apresenta uma configuração lógico-discursiva própria, que lhe confere também
certa especificidade, construindo-se a partir de um argumento silogístico. Nessa
estruturação, como se verá, o discurso metalinguístico desempenha um papel
fundamental.
O silogismo é um procedimento básico de lógica formal. Apresenta-se como
um raciocínio composto por três proposições organizadas de tal modo que a
terceira, chamada conclusão, é inferida logicamente das duas primeiras, chamadas
premissas maior e menor. Essa atividade cognitiva que se exprime explicitamente
por palavras deve associar ou reunir por relação lógica dois termos extremos, o
maior e o menor, através de um termo médio. A conclusão ou dedução, nesse caso,
é uma proposição que estava implícita na relação entre um termo de maior extensão
e outro de menor extensão.
De acordo com Nicola Abbagnano,
618
Na premissa maior, o termo médio, representado pela noção “homem”,
sujeito da proposição, recebe como atributo o termo maior, representado pela noção
“mortal”; e na premissa menor, o mesmo termo médio torna-se predicado do termo
menor, representado pelo nome próprio “Fedro”. Assim, na conclusão, conduzida
por essa mediação, o termo maior se associa como atributo ao termo menor. Nesse
exemplo, ser “homem”, noção que desempenha o papel de termo médio, é a
substância de Fedro e, portanto, a causa ou razão de sua “mortalidade”.
O processo de conhecimento que assim se instaura com o desenvolvimento
do silogismo é de tipo dedutivo. Trata-se de um raciocínio que vai do universal ao
particular, de tal modo que uma proposição mais restrita deriva de outra mais geral,
na qual, por inferência, ela já estava contida. Por isso, pode-se afirmar que “A
definição aristotélica de silogismo coincide com a definição geral de dedução”
(ABBAGNANO, 2007, p. 233 – “dedução”).
A teoria aristotélica do silogismo foi revista, incorporada ou questionada por
diversos pensadores desde a Antiguidade, mantendo sempre seu prestígio no
campo da lógica. Somente já nos tempos modernos, perderá a supremacia para a
lógica matemática, que passa a dominar desde a segunda metade do século XIX,
prevalendo assim a famosa crítica de John Locke (1632-1704), segundo a qual o
silogismo
não descobre nem ideias nem a correlação entre ideias, que só a mente
pode perceber, mas "demonstra apenas que, se a ideia do meio concorda
com as outras a que se refere imediatamente de ambos os lados, então
essas duas ideias distantes (ou das extremidades) certamente concordam"
(ABBAGNANO, 2007, p. 899 – “silogismo”).
619
A fim de verificar esse procedimento, vejam-se a seguir, como exemplos,
duas famosas fábulas de Fedro, autor romano da época imperial. Apresentam-se
aqui as traduções de José Dejalma Dezotti que constam do livro A tradição da fábula
(DEZOTTI, 2003):
A raposa e as uvas
Forçada pela fome, uma raposa tentava apanhar um cacho de uva
numa alta videira, saltando com todas as suas forças.
Como não conseguisse alcançá-lo, afastando-se, diz:
“Ainda não estás maduro; não quero comer-te verde.”
Os que desdenham com palavras as coisas que não conseguem fazer,
deverão aplicar a si este exemplo.
(DEZOTTI, 2003, p. 87).
A RAPOSA E AS UVAS
Quem despreza com palavras aquilo que não pode fazer é ridículo.
A raposa (é quem) despreza com palavras aquilo que não pode fazer.
Logo, a raposa é ridícula.
620
Logo, o cão perde o próprio.
A RAPOSA E AS UVAS
A raposa (é quem) despreza com palavras aquilo que não pode fazer.
A raposa é ridícula.
Logo, quem despreza com palavras aquilo que não pode fazer é ridículo.
621
que acompanha a conclusão de qualquer silogismo. Assim como o discurso
metalinguístico pode assumir nas manifestações fabulísticas concretas as mais
diversas expressões, variantes da fórmula “esta fábula ensina que”, também o
conectivo “logo” que antecede a proposição conclusiva do silogismo poderia
exprimir-se por enunciados do tipo “portanto”, “por conseguinte”, “assim conclui-se
que”.
Como aponta A. D. Lima (1984, p. 64), o discurso metalinguístico
622
é o que leva Aristóteles, na teoria do conhecimento, a dizer que a ordem
da investigação é diferente da ordem da exposição ou demonstração: a
investigação se faz por indução e a demonstração, por dedução.
Referências bibliográficas
623
O DISCURSO MESSIÂNICO DE EDIR MACEDO SOB UMA PERSPECTIVA
MIDIÁTICA: EU NÃO ACEITO A INJUSTIÇA DE JESUS!
Para tanto, tem como objetivo geral contribuir com os estudos do Discurso
Religioso e, ancorados neste, os específicos, que buscam: desvendar como o
discurso iurdiano é veiculado na internet para converter a população; situar a
proposta messiânica de Edir Macedo no seu Discurso Religioso e; mostrar a
contribuição do discurso da fé para promover uma experiência religiosa
transformadora de vidas.
227
Faculdade Martha Falcão – DeVry Brasil
624
O aporte teórico compõe-se de resultados apresentados pela Análise Crítica
do Discurso - ACD, que exige inter e multidisciplinaridade; portanto, além das suas
vertentes Sociocognitiva, com van Dijk (1997), e Social, com Fairclough (2001) e
Thompson (2011), ampara-se na Sociologia de Max Weber (2002), que, nessa
dialética, contribui com a Teoria da Ação Social e a Tipologia Ideal de dominação.
Para fins deste artigo, o corpus escolhido para análise foi o vídeo do culto da
Igreja Universal publicado na internet no dia 17 de dezembro de 2012 228, onde
Macedo expõe seu pensamento sobre o milagre da transformação da água em
vinho, também conhecido como o milagre das bodas de Canaã.
Nessa direção, por estar o corpus dentro do contexto midiático, com apelo
jornalístico, recorre-se a Catunda (2014), para retratar o texto jornalístico:
228
https://www.youtube.com/watch?v=o_GZM_ug8xk
625
focalizado no mundo, ocorre apagamento do processo histórico (com a
modificação do discurso). Dessa maneira, a representação do fato
noticioso apresenta características sociais e ideológicas capazes de
influenciar a formação da opinião do leitor. (CATUNDA, 2014, P. 3).
626
fé na prosperidade e no messianismo, colocando-se como o salvador. Dessa forma,
o referente é tematizado, onde é o tema que cria um estado de coisa diferente para
o referente.
627
bíblico, colocando-se como alternativa para os milagres efetivamente eficientes e
úteis aos fiéis.
O bispo Edir Macedo, porém, usa a passagem das Bodas de Canaã para
desacreditar Jesus e se apresentar como o verdadeiro messias, como mostra a
transcrição do culto iurdiano:
[...] O primeiro milagre que Jesus realizou foi num dia de casamento, foi
numa festa de casamento, quando Ele transformou a água em vinho. Eu
fiquei perguntando... meu Deus, o primeiro milagre que o Senhor faz não é
a cura de um enfermo, não é a libertação de um oprimido, não é a salvação
de um ser humano... o Senhor transformou água em vinho. E essa água
em vinho quê que fez? Alegrou apenas os convidados daquela festa de
casamento. Mais nada! Não fez mais nada! Ou fez?
Qual foi o benefício que a transformação de água para vinho trouxe para o
reino de Deus? Qual foi? Fala, pessoal! Houve algum benefício? Não! Aí
628
eu fiquei pensando... meu Deus! É justo que o Senhor tenha transformado
água em vinho sem beneficiar qualquer pessoa para o reino de Deus,
enquanto há pessoas cujas vidas se mantêm como águas poluídas,
podres, na realidade, e que, apesar de crerem em Ti, ainda continuam com
a mesma qualidade de vida, a mesma que tinham, miserável, mesquinha,
infeliz, triste, mal humorada? É justo isso? É justo que o Senhor tenha
transformado água em vinho e não tenha transformado a vida de uma
pessoa para uma nova criatura?
Então! É sobre isso que nós queremos que você entenda. Nós temos uma
proposta: Amanhã, às seis da tarde nós estaremos falando sobre isso.
Amanhã às seis da tarde nós vamos ter a Santa Ceia, a primeira Santa
Ceia do ano e nós estaremos fazendo uma proposta: A proposta de
transformação de vida. Não e nada com respeito a... Eu quero realizar meu
sonho de casamento, eu quero ganhar mais dinheiro, eu quero passar no
vestibular, eu quero isso, eu quero... Nada disso! Essa não é a proposta.
Isso nós não estaremos focando. Nós vamos focar a transformação total
da vida das pessoas que continuam, mesmo crendo em Deus, vivendo uma
vida desgraçada. Essa é a minha proposta. Então, eu estou convidando,
convocando todas as pessoas, todas as pessoas que me ouvem eu estou
convocando para que juntos nós venhamos fazer um desafio com Deus,
porque não é justo, não é aceitável que nós creiamos, aceitemos Jesus
transformando água em vinho e não transforme a vida das pessoas que
estão vivendo avida desgraçada.
629
atribuindo a Cristo, levando à compreensão de que o milagre feito por Jesus tem
pouca importância, sugerindo tratar-se de “simples” modificação de água em vinho.
3.2 Estratégia II: Lançar dúvidas sobre a extensão e o valor divino do milagre de
Cristo
Neste ponto, por mais uma vez, o pastor questiona o nível de importância do
milagre, envolvendo a plateia em um ambiente de mais dúvidas e introduzindo em
sua fala mais perguntas retóricas, que levam o público a ter a sensação de
participação em um diálogo ideologicamente convergente para os objetivos do
Bispo:
[...] E essa água em vinho, quê que fez? Alegrou apenas os convidados
daquela festa de casamento. Mais nada! Não fez mais nada! Ou fez?
Qual foi o benefício que a transformação de água para vinho trouxe para o
reino de Deus? Qual foi? Fala, pessoal! Houve algum benefício? Não! [...]
630
segundo Edir, enquanto o Nazareno transforma água em vinho, existem pessoas
que se mantêm como estão, ou seja, com as vidas em ruina, apesar de crerem Nele:
[...] Eu não aceito isso. Eu não aceito essa situação. A minha inteligência
se nega a aceitar essa situação [...]
Com aparente ar de respeito (ou temor?), o locutor já não direciona sua fala
somente ao auditório (segunda pessoa), mas também a Jesus (terceira pessoa),
criando um momento de trégua, sobriedade e aparente submissão:
[...] Mas foi o Senhor quem fez isso, eu sei que o Senhor fez isso [...]
631
[...] mas, particularmente, o meu coração, diante do conhecimento que nós
temos da Tua palavra, da justiça de Deus... não passa na minha cabeça
uma coisa que... eu não aceito. É inaceitável que Ele tenha transformado
água em vinho e não tenha transformado a vida das pessoas que têm crido
nEle. Sejamos honestos... sim ou não? Concordam comigo?
3.7 Estratégia VII: Apresentar sua proposta de transformação de vida, sem fazer
menção a Jesus
Então! É sobre isso que nós queremos que você entenda[...] Nós temos
uma proposta: Amanhã, às seis da tarde nós estaremos falando sobre isso.
Amanhã às seis da tarde nós vamos ter a Santa Ceia, a primeira Santa
Ceia do ano e nós estaremos fazendo uma proposta: A proposta de
transformação de vida [...]
3.8 Estratégia VIII: Enfatizar que sua proposta não é a de uma simples mudança,
mas sim a transformação total da vida das pessoas
229A Santa Ceia é uma das reuniões mais aguardadas e significativas para os frequentadores de igrejas cristãs,
dado o seu simbolismo. No caso da Igreja Universal, é onde ocorrem as maiores frequências dos fiéis. Trata-
se de um evento grandioso e aguardado por todos.
632
Após a desconstrução da figura de Jesus, usa a primeira pessoa do singular
para convidar e convocar (repetindo as palavras convocando e todas) o auditório
a, juntamente com ele, desafiarem Deus a retificar o Seu milagre, transformando a
vida dos que se fizerem presentes na reunião da Santa Ceia:
[...] Nós vamos focar a transformação total da vida das pessoas que
continuam, mesmo crendo em Deus230, vivendo uma vida desgraçada.
Essa é a minha proposta[...]
3.9 Estratégia IX: Deixar evidente aos que o ouvem o poder que tem, já que não
só é capaz de questionar Jesus, mas também de repreendê-lo, pôr em
dúvida a Sua justiça, desafiá-lo e submete-lo às suas determinações
O orador, aqui, deixa claro aos que o ouvem o seu poder divino, já que
questiona Jesus, O repreende, põe em dúvida a Sua justiça, O desafia e, finalmente,
O submete às suas determinações:
Considerações finais
230Agora, Macedo usa a palavra Deus (já desacreditado) em oposição ao Nós (o Macedo Messias), que ganha
reforço no Minha, antecedendo proposta.
633
desconstruindo a deidade de Jesus Cristo. Com isso, legitima o discurso da fé, que
orienta a conversão das massas e transforma vidas.
Referências
DIJK, Teun A. Van. Racism y análisis crítico de los medios. Paidós Comunicación:
Barcelona, Espanha, 1997.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
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WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia. São Paulo: Centauro, 2002.
634
O ENSINO DE LEITURA LITERÁRIA E A DEMOCRATIZAÇÃO
DA ESCOLA PÚBLICA
Introdução
231
UFMS/UPM
635
A “crise” do ensino de leitura e de literatura: em busca de respostas
possíveis
636
Os especialistas citados analisam cada um a seu modo o que compreendem
pela “crise” do ensino de língua e de literatura. Por meio dessas análises, podemos
compreendê-la como: (i) uma transformação sócio-cultural, em que novos
paradigmas surgem, voltados à construção do conhecimento científico nas áreas
das ciências da linguagem e das ciências humanas, interferindo na forma de
conceber o ensino da leitura/literatura e o ensino de língua portuguesa no Brasil; (ii)
um efeito da aceleração do processo de democratização da educação às camadas
populares no país; (iii) resultado da transformação dos valores culturais atribuídos à
leitura literária por um novo público (leitor), que entra para a escola pública; (iv)
consequência das condições materiais de acesso à obra literária. Neste caso,
principalmente alunos da escola básica das classes populares não tiveram acesso
à leitura literária pela condição socioeconômica em que se encontravam.
637
as classes populares, também, começam a ter acesso à escola pública, quando se
acelera o processo de democratização da educação.
Desse modo, constatamos que, na verdade, não se trata de uma crise do
ensino de língua e de literatura, mas de uma transformação dos valores
culturais/ideológicos, antes de um grupo dominante, agora em redimensionamento,
já que destinado a um novo público, o qual não frequentava a escola pública. Outra
explicação é a transformação dos paradigmas inerentes à construção do
conhecimento científico nas áreas das Ciências da Linguagem (concepções de
língua, leitura e de literatura) e nas Ciências Humanas e Sociais (concepções de
educação, homem e de sociedade) que vão interferir no modo de pensar o ensino
de língua e de literatura no Brasil.
Ao revisitarmos partes da história da “produção da escola pública” no país e
os novos paradigmas das Ciências da Linguagem e das Ciências Humanas e
Sociais, podemos confirmar a tese exposta.
Encontramos um dos marcos de luta, que deu início à proposição de
democratização da escola pública, no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
cujas reivindicações configuravam-se na busca de uma escola laica, gratuita e para
todos e, representou um evento fundador do discurso de democratização do ensino,
no país, a partir do ano de 1932.
O Manifesto e suas proposições trazem novos ideais à educação brasileira,
luta-se por uma escola pública, questiona-se a educação tradicional, no lugar desta
se propõe uma “Escola Nova”. Nessa expressão, conforme Vidal (2013, p. 582),
estavam diferentes métodos como centros de interesse, métodos de projetos,
sistema platoon ou qualquer outra proposta educativa que se associasse ao
interesse e à experiência da criança, bem como à sua participação ativa na
construção do conhecimento. “Sob o signo do novo, a fórmula capitalizava o anseio
de rompimento com as práticas sociais, políticas e educacionais instaladas até
então na República, ancorando-se em um desejo disseminado de mudança.”
(VIDAL, 2013, p. 582)
Diante das mudanças política, ideológica e pedagógica que se propunham a
partir das manifestações dos Pioneiros da Educação, em 1932, inicia-se no Brasil
638
uma lenta conquista do povo ao acesso à escola pública, para ter o direito à
cidadania, à alfabetização, à leitura, também, da literatura.
Bittar e Bittar (2012, p. 163), em análises a respeito da consolidação da
escola pública brasileira a partir de 1930 aos anos 2000, apresentam-nos que houve
expansão física dela, no período de 1964-1985 (Ditatura Militar), todavia, essa
escola é “Sem dúvidas, das crianças das camadas populares; a escola em que
funcionava o turno intermediário, com pouco mais de três horas de permanência na
sala de aula, mal aparelhada, mal mobiliada, sem biblioteca, precariamente
construída [...]”. Diferente de uma escola anterior à década de 1930, que era
destinada, principalmente, à elite e que, portanto, funcionava em diferentes
condições.
Com a Constituição brasileira de 1988, a educação se torna “direito público
subjetivo” de todo cidadão, um passo importante para consolidar a democratização
da escola pública no país. A partir dessa época, vamos acompanhar a crescente
oferta de vagas, nessa escola, a crianças, a jovens e a adultos analfabetos.
Em 2008, 97,9% de crianças de 7 a 14 anos estavam frequentando a escola,
segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD),
todavia, até hoje, não atingimos a universalização do direito à alfabetização, pois
ainda temos que considerar o alto índice de alfabetismo funcional existente no país.
Apesar da expansão quantitativa de vagas, atualmente, discute-se no Brasil, a
qualidade dessa educação ofertada a tantos brasileiros.
Diante do exposto, não há como negar que a escola pública brasileira é
popular, pois se destina à maioria da população. Já a escola particular, esta está
destinada a outra clientela, que pode pagar por sua educação.
A mudança de perfil de leitor-aluno das classes populares vai influenciar no
gosto ou não pela leitura do texto literário, porque esse público pode atribuir valores
diferentes ao que é literatura, ao que é a leitura literária. Ele deverá aprender a
valorizá-las. E a escola é um dos principais lugares onde se dá o acesso à leitura
do texto literário a esse leitor.
639
A “crise” no ensino de leitura literária e no ensino de linguagem na escola: as
transformações dos paradigmas de conhecimentos
640
literatura no país e o fato de, por meio dessas transformações, fazerem a crítica a
esse ensino a partir do final da década de 1970.
No final do século XIX e início do século XX, nos estudos da literatura, tem
início, segundo Souza (2011, p. 36)
641
autor (romantismo e séc. XIX); uma preocupação exclusiva com o texto (Nova
Crítica) e uma acentuada transferência de atenção para o leitor [...]”.
Numa perspectiva sociológica, para pensar o valor humanizador e estético
da leitura literária, lançamos mão do pensamento de Candido (1995) e de Jauss
(2002) por meio dos pressupostos da estética da recepção. Humanização em
Candido (1995) é
[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos e
essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa
disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura
desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna
mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante
(CANDIDO, 1995, p. 249).
Desse modo, o para quê ensinar a leitura literária na escola atual passa pela
oportunidade de os alunos lerem, pelo conhecimento e pelo prazer, para se
constituírem em seres humanos mais reflexivos e críticos, sensíveis às causas da
natureza, da sociedade e do outro.
Considerações finais
642
anos de 1980, de 1990 até os anos 2000. Mas o que fazer com a crítica ao ensino
da leitura literária na escola brasileira? A utopia de uma escola pública de qualidade
e de um ensino de língua e de literatura como direito é mais forte. É possível
transformar a crítica em propostas para a mudança dessa realidade tão complexa,
como já fizeram tantos especialistas, como Geraldi (2004); Bordini e Aguiar (1988);
Cosson (2012); Soares (2005); Mortatti (2014); Zilberman (1988); Lajolo (1988;
1994), dentre outros importantes pensadores.
Referências
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ZILBERMAN, Regina (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do
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645
LUSOFONIA E OBRIGATORIEDADE DO ENSINO DA HISTÓRIA DA
CULTURA AFROBRASILEIRA (LEI 11.645)
Introdução
232
Doutora em Letras\ Universidade de Ribeirão Preto
646
evidencia o papel simbólico e político da língua, e por tabela da literatura, como
constituintes de peso na construção da identidade nacional.
O meu desejo de levar-lhe pessoalmente um forte abraço pelo prazer que me deu
a leitura de “Sagarana”, não foi realizado ainda. O atraso atormenta-me
diariamente a culpa, embora involuntária, mas o abraço há de ser dado para
tranquilizar-me a consciência, e, estou certo, de que o meu amigo irá
compreender-me e desculpar-me. [...]. Acabo de ler a crítica do Eloy Pontes sobre
o seu livro, e tive o prazer de ver o autor de “Sagarana” julgado pelo nosso melhor
comentarista, que o classificou como um dos grandes escritores brasileiros que –
“... se contam pelos dedos e... ainda sobram dedos...” Mas há para mim no seu
livro um mérito que há dias fiz ressaltar em conversa com amigos – citei-o como
exemplo do que é nosso, como atestado inconfundível da nossa literatura
brasileira, do vocabulário brasileiro e de tudo quanto podemos oferecer para
provar que nos emancipamos há muito do português criando e usando um idioma
nosso. Sempre me insurgi contra a idéia da convenção esdrúxula que a nossa
Academia assinou com a de Portugal, no sentido de unificar a língua portuguesa.
Porque se, já nos afastamos em tudo e por tudo de nossos colonizadores,
superando-os até na linguagem? Por isso senti-me com a leitura de “Sagarana”
inteiramente num ambiente brasileiro, vivi nas suas páginas a vida simples do
Brasil com sua índole própria completamente afastado e divorciado de tudo
quanto cheira a estrangeiro. Muito bem disse Eloy Pontes, que um português ao
ler “Sagarana” muito vagamente o entenderia. É isso mesmo meu amigo, seu livro
é brasileiro puro, nada tem de reminiscência do velho Portugal. (Arq JGR-
IEB/USP Cx4cp24).
647
multiétnico, justifica-se apenas se concebido como comunidade supranacional em
que não cabe ao aspecto linguístico
648
Incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir do estudo desses dois grupos
étnicos, como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos
negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira
e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história
do Brasil.
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
acesso em 06/102012)
Tabela 1
649
Editora Número Número Número de títulos
de de títulos sobre países
títulos com temática africanos
africana lusófonos
Brasil 235 2 1
Cia das Letrinhas 467 17 0
FTD 571 9 2
Global 425 1 0
Larousse Jr 209 4 2
Melhoramentos 281 5 0
Moderna 571 8 2
Paulinas 394 6 1
Saraiva 313 4 0
TABELA 2
TÍTULO AUTOR ILUSTRADOR EDITORA
África Eterna Rui de Oliveira Rui de Oliveira FTD
Rogério
Em Angola tem? No
Andrade Jô Oliveira FTD
Brasil também!
Barbosa
Rogério
Não chore ainda não Andrade Ciça Fittipaldi Larousse Jr
Barbosa
650
Moderna
Moçambique Júlio Emílio Braz Cárcamo
Avelino Guedes e
Bia na África Ricardo Dreguer Moderna
Rogério Borges
Karingana Wa
Karingana:histórias que Rogério A.
Maurício Veneza Paulinas
me contaram em Barbosa
Moçambique
Beto e Carminha são primos que moram muito longe um do outro – ele no Brasil,
ela em Portugal. Ambos falam o mesmo idioma, mas vivem se provocando por
conta das diferenças entre as variantes europeia e brasileira da Língua
Portuguesa. Em uma emocionante viagem pelos países que falam português,
esses dois lelés da cuca, ou giras, irão protagonizar uma narrativa que é bué da
fixe, ou seja, muito legal! Os leitores se divertirão com as pistas e brincadeiras do
livro, além de aprender um pouco mais sobre a lusofonia e o principal elemento
que nos une a tantos outros países no mundo: o idioma português (CATÁLOGO
Editora Brasil 2012, p.10).
651
exclusivamente a Portugal ou valorizar aspectos lusitanizantes da língua, haja vista
o destaque dado a expressões como “lelé da cuca”, “gira” e “ bué da fixe”.
Voltando para o subgrupo dos títulos cuja temática são os países africanos
de língua oficial portuguesa, verifica-se que apenas dois livros trazem no título o
nome dos países: Em Angola tem? No Brasil também! (CATÁLOGO Editora FTD
2012 p.134) e Moçambique (CATÁLOGO Editora Moderna, 2012 p. 23
No resumo do livro Em Angola tem? No Brasil também! (Catálogo Editora
FTD 2012, p. 134) não é mencionado o fato de que em Angola também se fala
português. Contudo, isto fica implícito por conta do gênero epistolar, escolhido pelo
autor para informar sobre as trocas culturais entre os dois países.
Aqui, o pacto epistolar que consiste em ler e responder a carta, pressupondo
pois uma troca, dialoga perfeitamente com o tema do livro que são as trocas
culturais entre Brasil e Angola, com destaque para a religiões afro-brasileiras, ainda
hoje alvo de preconceitos.
Nesse sentido, é importante observar que além da língua, outro legado
cultural europeu importante, a religião cristã, também aparece de modo indireto: é
no natal, que os dois personagens trocam presentes, não sem motivo, camisas das
seleções de futebol de Angola e do Brasil. Tal desfecho faz lembrar o final do filme
Entre os muros da escola de autoria de Laurent Cantet, em que o choque entre as
culturas francesa, e de suas ex-colônias, parece ter sido amortizada, quando no
final, todos, professores franceses e alunos oriundos das ex-colônias, jogam uma
animada pelada.
O segundo livro cujo título nomeia o país é Moçambique (Catálogo Editora
Moderna, 2012 p.23), que, ao contrário do anterior, menciona o fato de no país se
falar português, sugerindo que talvez esse dado possa não ser conhecido pelo leitor.
Justifica também a escolha do país pelo fato de ele não ser banhado pelo oceano
Atlântico, o que em princípio dificultaria o intercâmbio cultural com o Brasil.
Moçambique também é contemplado com outro título que se debruça
exclusivamente sobre o país: Karingana Wa Karingana (CATÁLOGO Edições
Paulinas, 2012 p.8). Trata-se de dois contos cuja recolha aconteceu nas escolas
moçambicanas, e cujo relato oral partiu das próprias crianças.
652
Tal contexto permite ao leitor do resumo supor que os contos foram relatados
em português. Contudo, ao escolher uma das muitas línguas moçambicanas -
possivelmente uma língua materna -, para dar título ao livro, o autor parece sinalizar
para o futuro leitor do livro, a importância das línguas autóctones, cujo peso na
construção da identidade cultural moçambicana, não pode ser menosprezado.
Embora não trate exclusivamente de Angola, uma vez que a personagem
principal viaja também pelo Egito e pelo Quênia, o livro Bia na África (CATÁLOGO
Editora Moderna p. 41), da série Viagens de Bia, enfatiza os fortes laços culturais
que unem os dois países. Embora o resumo não mencione que em Angola também
se fala português, o fato de a personagem central morar um ano nesse país, ao
contrário do Egito e do Quênia, onde a protagonista parece ter feito apenas viagens
de recreio, apontam para importância dos laços culturais Brasil- Angola, que
ombreariam a grandiosidade da civilização egípcia e a exuberância da flora e fauna
quenianas.
BIA NA ÁFRICA
Série viagens de Bia
Um passeio pelo Egito: pirâmides, múmias e influência árabe
Um passeio pelo Quênia: conhecendo um lugar muito especial
Morando um ano em Angola: origens e costumes de nossos antepassados, que
vieram como escravos para o Brasil. (CATÁLOGO Editora Moderna p. 41).
Verificou-se até aqui que foram dedicados dois livros a Angola, outros dois
para Moçambique e um para a Guiné-Bissau. Ficam faltando portanto Cabo Verde
e São Tomé e Príncipe, que, possivelmente apareçam em passant no livro África
eterna cujo objetivo é proporcionar “um panorama do continente africano: as
regiões; as florestas e a fauna; os aspectos humanos econômicos e culturais; o
idioma português na África e o legado da África no Brasil” (CATÁLOGO Editora FTD,
2012 p. 24).
653
É preciso remarcar que o professor que quiser trabalhar com livros
paradidáticos cujo tema são os países africanos de língua oficial portuguesa, nem
sempre poderá guiar-se pelos resumos dos livros publicados nos catálogos. Este é
o caso de pelo menos dois livros, um de Ruth Rocha e outro de Rogério Barbosa
Andrade cujos títulos ... Que eu vou para Angola... e outras histórias e Histórias que
nos contaram em Luanda indicam que o conteúdo dos mesmos é o país africano.
Mas, após a leitura dos resumos, fica a dúvida se realmente os livros são sobre
Angola, uma vez que nos resumos, ao contrário dos títulos, não há nenhuma
referência ao país, apenas ao enredo das narrativas.
Um dos aspectos que mais chamam a atenção nos catálogos é o destaque
dado `a competência dos autores. Dos seis títulos cuja temática são os países
africanos de língua oficial portuguesa, quatro destacam esse aspecto.
África eterna apresenta um panorama do continente africano [...] Fruto de
minuciosa pesquisa e cotejamento de fontes, por vezes divergentes, a obra
mostra a diversidade do continente, contrapondo-as a visões simplistas e
estereotipadas. (CATÁLOGO Editora FTD, 2012 p. 24).
Rogério Barbosa, especialista em literatura africana, traz aos leitores uma lenda
originária da Guiné-Bissau. (CATÁLOGO Editora Larousse Jr, 2012 p.40)
Moçambique fez parte durante muito tempo de um dos maiores interesses de
Júlio Emílio Braz: a África como um todo e a África que fala português, em
particular. (CATÁLOGO Editora Moderna, 2012 p. 23).
Estudioso da literatura oral de vários povos do continente africano, Rogério
apresenta dois contos recolhidos do relato oral de crianças moçambicanas na
escola. (CATÁLOGO Edições Paulinas, 2012 p.8)
654
conceito pouco conhecido, e, talvez só venha a sê-lo tal qual a história da África e
sua influência na formação do Brasil, por força de uma lei.
Por outro lado, é inegável que a lei 11645, embora timidamente, está
começando a difundir a cultura dos países africanos de língua oficial portuguesa nas
escolas brasileiras, embora, como já mencionado, até o momento, livros sobre Cabo
Verde e São Tomé e Príncipe continuem ausentes dos catálogos de livros
paradidáticos das grandes editoras brasileiras...
REFERÊNCIAS
655
Melhoramentos. Catálogo Juvenil Ensino Fundamental II e Ensino Médio
2012/2013.
Moderna Ensino Fundamental II, Ensino Médio 2012.
Paulinas. Literatura infanto-juvenil 2012.
Saraiva. Literatura juvenil Ensino Fundamental II 2012.
656
ENTRE A PALAVRA E A IMAGEM: INTERSECÇÕES MACHADIANAS
INTRODUÇÃO
233
Doutora em Letras,Estudos Literários, pela UPM, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/SP.
Professora titular do Curso de Letras e outros do Centro Universitário Municipal de Franca (Uni-FACEF).
657
pois uma obra só existe verdadeiramente por meio das leituras que dela são feitas.
São essas leituras que vão atualizar de maneira específica – em função da
atualidade e dos conhecimentos dos leitores – os sentidos dessa obra e suas
relações com o mundo.
Nesse contexto, é notável as constantes discussões em torno da leitura e da
formação de leitores críticos; o que oferecer a esse leitor, quanto oferecer, como
oferecer são questionamentos frequentes no âmbito do ensino e da pesquisa.
Assim, com o avanço das novas tecnologias e das diferentes mídias visuais e
digitais, é compreensível que novas formas de leitura se apresentem e que a
imagem se destaque como importante elo entre leitura e leitor, principalmente no
que se refere às adaptações de obras literárias clássicas para HQ. E é do diálogo
dessa nova linguagem com o clássico Machado de Assis que apresentamos nossas
reflexões, pois as constantes releituras do texto machadiano, por diferentes mídias,
ratificam sua modernidade e propõem ao leitor uma reflexão para o que está para
além da linha, buscando os sentidos velados nas entrelinhas do texto, ratificando a
contemporaneidade e universalidade do texto machadiano e a sua capacidade para
manter viva uma conversa com o leitor atual.
Desse modo, este trabalho tem como objetivo apresentar uma leitura
comparada do conto O alienista (1882), de Machado de Assis, objeto de estudo
desta pesquisa, e de sua versão adaptada para HQ (2008), por Cesar Lobo e Luiz
Antonio Aguiar. Essa abordagem parte de um viés dos estudos dos gêneros
discursivos e das reflexões bakhtinianas acerca do dialogismo, estilo,
intertextualidade e interdiscursividade, bem como das discussões propostas por
Jauss na teoria da Estética da Recepção.
658
“O ALIENISTA” EM HQ: UMA LEITURA COMPARADA
Bakhtin (2002), nas páginas iniciais do capítulo em que fala sobre o discurso
em Dostoiévski, comenta que a linguagem só vive na comunicação dialógica
daqueles que a usam, afirmando que é precisamente nessa comunicação dialógica
que se constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. “[...] Toda a vida da
linguagem seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática,
a científica, a artística, etc) está impregnada de relações dialógicas [...]” (BAKHTIN,
2002, p. 183).
Para Bakhtin (2003), é no contato, na interação da linguagem que se
realizam as diferentes formas de enunciação e, por conseguinte, os gêneros:
Machado (2005) destaca que Bakhtin concebe o gênero como algo que não
pode ser pensado fora da dimensão espacio-temporal, logo, todas as formas de
discursos são orientadas por esses dois elementos. O gênero adquire, então, nessa
perspectiva, uma existência cultural, como Bakhtin procura demonstrar na sua teoria
do cronotopo, pois o gênero da teoria do dialogismo está inserido na cultura em
relação a qual se manifesta como “memória criativa”.
Nesse sentido, podemos dizer que as obras como todos os sistemas da
cultura, são fenômenos marcados pela mobilidade no tempo e no espaço. Bakhtin
entende que as obras vivem num grande tempo porque são capazes de romper os
limites do presente onde surgem e mais, reportam-se tanto ao passado quanto ao
futuro: “ É no processo de sua vida póstuma que as obras se enriquecem com novos
significados, novos sentidos: assim as obras deixam de ser o que eram na época
de sua criação [...]” (BAKHTIN, apud MACHADO, 2005,p. 160).
659
Para nossa abordagem, é necessário que se destaque, ainda, dentro
das reflexões de Bakhtin, o conceito de estilo. E na obra Estética da criação verbal,
encontramos importantes reflexões do filósofo da linguagem acerca de estilo. Para
definir os gêneros discursivos, um dos aspectos destacados pelo pensador da
linguagem é o fato de que eles transitam por todas as atividades humanas e devem
ser pensados, culturalmente, a partir de temas, formas de composição e estilo.
660
clássico e um maior número de leitores. A adaptação em HQ de “O alienista”, feita
por Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar, foi publicada em 2008, pela Editora Ática e
compõe a série Clássicos Brasileiros em HQ.
Nesta adaptação, os autores produzem uma versão autoral, e em vez de
reproduzirem o texto e ilustrá-lo mecanicamente, recriam-no vertido para a
linguagem e ação exigidas pelos quadrinhos, justamente por se tratar de um novo
suporte, recriando a história de maneira que as cenas de ação e também o humor
corrosivo de Machado de Assis ganhem emoção em cores.
Segundo os adaptadores, a elaboração de HQs exige que se estabeleça um
diálogo muito bem trabalhado entre roteiro e desenho, respeitando as exigências do
gênero e, numa adaptação como esta, há, ainda, um terceiro elemento bastante
importante: o texto original. Lobo e Aguiar (2008) comentam que para buscar a
linguagem dos quadrinhos, ou seja, para fazer uma boa história em quadrinhos, o
texto deve ficar mais curto e acessível e, pensando nisso, os autores criaram um
personagem especial que abre a história e é revelado nas duas primeiras páginas,
que aparecem em preto-e-branco. Para os autores, trata-se de um “duplo” do próprio
Simão Bacamarte, com a intenção de melhor interpretar o espírito que entendiam
haver na história e no personagem. No roteiro, ele ganhou um nome: Alienista
Alienado, ou AA.
No que se refere a Machado de Assis, podemos dizer que a figura do duplo
não é novidade, já tendo aparecido em contos como “O espelho”, ou ainda sendo
representado na figura do narrador intruso que mantém um diálogo intenso com o
leitor. O conto “O alienista” (1881/1882) compõe a coletânea Papéis avulsos e é um
dos mais representativos na produção do autor. A coletânea representa para o
gênero a mesma revolução que, para o romance, significaram as Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881). A temática central do conto é a loucura, que
conduz o leitor a uma eterna reflexão sobre os limites entre a insanidade e a razão.
Preocupação constante da temática machadiana, a loucura surge em “O
alienista” também como uma forma de provocação ao contexto vigente em que
imperavam as ideias cientificistas que procuravam explicar todo o comportamento
humano por meio da ciência. A refinada ironia machadiana se materializa tanto no
661
discurso do narrador heterodiegético, como no discurso do protagonista, Simão
Bacarmarte, que resolve construir uma Casa de Orates para abrigar todos os loucos
da pequena Itaguaí. Investido do poder absoluto e tirano conferido pela ciência,
Simão Bacamarte tenta manter uma cidade inteira sob seus comandos alienados.
O conto “O alienista” (1882) estabelece várias relações dialógicas, com
diferentes textos e discursos, contudo, para este estudo, por questões estruturais
de limite de páginas, destacamos apenas três cenas em que demonstramos a leitura
comparada entre a versão em HQ e o texto machadiano.
Partindo do pressuposto de que uma obra literária opera não somente no
momento em que surge, mas segue relacionando-se com o passado e daí opera-se
a mudança de horizonte, não podemos deixar de relacionar “O alienista” (1882) com
o momento político-histórico e social em que surge.
Conforme já dissemos, a temática central do conto propõe ao leitor a eterna
reflexão sobre os limites entre a insanidade e a razão; mas, também o poder da
palavra, o poder exercido pela ciência e as relações estabelecidas na sociedade são
questionamentos os quais podem ser vistos no texto. As personagens do conto
machadiano retratam, por meio de bajulação, clientelismo e oportunismos o
contexto político do Brasil do final do século XIX e que permanece tão atual em
nossos tempos. Também é evidente no conto o poder das teorias científico-
evolucionistas, positivistas e sócio-darwinistas trazidas da Europa que, naquele
contexto, indicariam as respostas para todos os males de uma civilização em busca
do progresso.
Logo no início do conto, o ceticismo machadiano em relação à ciência é
materializado pela voz do narrador heterodiegético, pois na cena em que o médico
Simão Bacamarte faz a escolha de sua esposa, não a escolhe por suas virtudes
interiores, mas sim por seus atributos fisiológicos:
662
A ironia se revela uma vez mais como importante recurso estilístico do
discurso machadiano; Simão Bacamarte escolhe como sua mulher D. Evarista, com
a finalidade de procriação, e ela, por sua vez, não é capaz de lhe conceder o filho
desejado; diante do fato, o médico afirma que a ciência poderá curar o fato de que
a dinastia dos Bacamartes se extinguirá: “[...] Mas a ciência tem o inefável dom de
curar todas as mágoas; o médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da
medicina [..]” (ASSIS, 1988, p. 10).
Em relação aos aspectos estruturais da HQ, Vanoye (1998) afirma que
a relação entre as palavras e as imagens são bastante complexas, pois a história
em quadrinhos envolve uma técnica narrativa que consiste em contar uma estória,
que comunica uma mensagem por meio de dois canais: a imagem e o texto, assim,
pode-se dizer que na história em quadrinhos são veiculadas duas mensagens: uma
icônia e outra linguística, o relacionamento dessas duas mensagens constitui a
mensagem global.
Na adaptação para a HQ da cena do conto machadiano acima
transcrita, temos Dona Evarista sendo apresentada como uma mulher que não
corresponde aos padrões de beleza da época, mas não é tão mal afeiçoada assim,
revelando um certo ar de sedução e contentamento nos olhos da mulher vestida de
noiva; por meio das cores e das expressões conferidas às imagens o rigor do
discurso do narrador machadiano é, em certa medida, diluído; quanto ao discurso
do narrador, este é representado pelas falas das personagens, nos balões típicos
da fala, que também compõem a estrutura da HQ e servem como importante recurso
para dar dinamicidade ao texto.
Ainda do capítulo I, destacamos a cena em que Simão Bacamarte, médico
ilustre, casado e sem filhos, resolve entregar-se de corpo e alma aos estudos da
ciência e reflete sobre a situação dos loucos da cidade, que eram trancafiados em
suas casas. Bacamarte resolve, então, construir uma casa de Orates e para tal feito
vai até a Câmara de Vereadores defender sua ideia, esta que é aceita e aprovada
pelos governantes, desde que para isso fosse deliberada criação de um novo
imposto.
663
Dali foi à câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a
com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-la ao que pedira,
votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento,
alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi
fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí [..] Uma vez empoçado da
licença começou logo a construir a casa (ASSIS, 1988, p. 11).
664
entender tal personagem como o oportunista e aquele que busca a ascensão ao
poder a qualquer preço. É a representação do que podemos identificar no cenário
político atual das alianças políticas, aquele que se alia a certas pessoas para a
tomada de poder e quando está investido dele alia-se a outras pessoas que lhe
sejam mais vantajosas. Porfírio liderou uma rebelião contra o poder vigente, visando
à tomada de poder pelo povo, queria a derrubada da Casa Verde: “ [...] O barbeiro
depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um
mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde
– “essa Bastilha da razão humana” (ASSIS, 1988, p. 31).
Neste capítulo, percebemos que ao mesmo tempo em que há a crítica ao
poder sem limites e ditatorial representado por Bacamarte, o Alienista, estabelece
uma relação dialógica com o contexto da Revolução Francesa, assim, por analogia,
podemos entender que a Casa Verde é a representação da Bastilha tomada pelos
franceses na época da revolução, sendo evidente a relação intertextual estabelecida
entre o conto e esse contexto histórico.
Na versão apresentada pela Ática, há uma nota de rodapé explicativa que
situa o leitor acerca desse momento da história mundial. Nessa nota, é explicado ao
leitor que “essa Bastilha da razão humana” é um convite à derrubada da Casa
Verde, porque a Bastilha, assim como a Casa Verde, fora transformada em prisão
e assim tornara-se o símbolo da tirania e da opressão monárquica, “a queda da
Bastilha” marca o início da Revolução Francesa.
Especialmente nesses capítulos do conto em que ocorrem a revolução e a
tomada do poder, podemos verificar que os adaptadores, na HQ, exploram,
sobremaneira, o recurso das imagens, tanto que em vez das notas de rodapé, o
narrador explica o que foi a queda da Bastilha por meio das imagens, destacando-
se a representação do quadro “A Liberdade Guiando o Povo”, de 1830, do pintor
francês Eugène Delacroix , estabelecendo a relação intertextual e, portanto,
interdiscursiva com a Revolução Francesa. A intertextualidade presente na HQ é
explícita, pois há trechos em que aparecem palavras de ordem em língua francesa,
típicas da Revolução, enquanto no texto machadiano não aparecem – “Allons!
665
Enfants de la patrie! Le jour de gloire est arrivé! Contre nous de la tyrannie” (LOBO;
AGUIAR, 2008, p. 26).
O leitor, por meio do discurso aliado às imagens, pode ter a dimensão do que
foi a revolução dos canjicas; isso porque os adaptadores souberam explorar com
originalidade os recursos da linguagem escrita e integrar essa linguagem em uma
mensagem específica que é a da HQ.
Considerações finais
Reiterando o discurso machadiano e sua constante discussão em
relação à condição humana, O alienista (1882) é obra que desperta diversos
questionamentos e conduz o leitor à reflexão, a desejar mais. Dele, como da obra
machadiana como um todo, saímos com a sensação de que algo ficou por dizer e
que é preciso debruçar-se sobre essa palavra plurissignificativa.
Para nós, a adaptação para a HQ cumpre seu papel ao manter-se fiel ao seu
estilo, ao seu gênero, oferecendo ao leitor uma arranjo bem construído e por que
não dizer provocador; por meio das imagens, oferece ao leitor um outro suporte de
leitura. Acreditamos sim que as linguagens verbal e a verbo-visual evidenciam a
desterritorialização das mídias em nosso cotidiano e revelam os efeitos de sentido
criados por esse novo texto/discurso machadiano, provocando no leitor o interesse
em conhecer o clássico Machado de Assis.
Acreditamos ser papel do professor levar ao conhecimento do aluno as
versões adaptadas não apenas do conto em pauta, como também dos outros
clássicos da Literatura Brasileira. Contudo, deve aproximar o aluno do texto original,
pois, conforme já dito, trata-se de um clássico e como tal proporciona o alargamento
de horizontes do leitor e sua leitura passa a ser consequência de um processo de
interação entre a magia da poesia e a vida do homem comum, modernamente
desprovido de heroísmo, mas ainda à procura do sonho e da fantasia.
Referências
ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
666
BRAIT, Beth. Estilo. In:_______(Org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:
Contexto, 2008.
CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In:______Vários escritos. São
Paulo: Duas Cidades, 1977.
667
LITERATURA E CINEMA
INTRODUÇÃO
A compreensão da adaptação como reescrita da história com as técnicas do cinema
e a comparação com as técnicas e a magia da narrativa literária, objeto de análise
da pesquisa, representam o norte da investigação que se pretende policêntrica e
multiperspectiva, isto é, há entre literatura e cinema uma relação intertextual
explícita, vínculos declarados, ainda que no filme a narrativa apresente certo
aspecto de autonomia, isso porque cada uma das manifestações linguísticas ocupa
e conduz a narrativa a seu modo, com estilo que lhes é próprio.
Quanto à estrutura textual, organizamos o texto em duas partes. Na primeira,
cuidamos de registrar flashes da história do cinema, cuidando para apresentar o
cinema e sua especificidade, na segunda, a relação entre cinema e literatura,
fazendo registros de conceitos importantes para compreender que tanto literatura
quanto cinema são, ao mesmo tempo, manifestações, linguísticas, culturais e
artísticas.
A orientação metodológica da análise é o da literatura comparada, nos termos de
Nitrini (2010), porque esta consiste num conjunto de estudos que versam sobre
revisitação à história original, retomada de discussões acerca de conceitos
fundamentais sobre uma e outra manifestação artística (no caso, literatura e
cinema), pontuando a influência, imitação e originalidade.
Terminado o estudo, esperamos ter registradas as características importantes
dessa relação – literatura e cinema - os recursos da adaptação, de modo particular
a linguagem, o espaço, o tempo e as ações próprias da renovação da arte literária
escrita.
668
História do cinema
Segundo Sirino (2004), o nascimento oficial do cinema foi em 28 de dezembro de
1895, no subsolo do Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris, onde o
industrial Lionês Antonie Lumière promoveu a primeira exibição pública do filme de
seus filhos Auguste e Louis Lumière: “A chegada do trem na estação de Ciotat”.
Apesar de uma sequência simples, a cena de um trem vindo na direção da câmera,
na época, causou espanto entre os espectadores, assustando-os de tal forma que
reagiram como se o trem fosse atravessar a tela e atropelá-los.
A autora nos traz ainda que os irmãos Lumière talvez, inconscientemente, criaram
um meio de expressão importante que, no final do século XIX, começa a ser
trabalhado como arte pelas mãos do francês Georges Mièles, um ilusionista que
percebeu a potencialidade que tinha uma câmera de filmar. Entretanto, através de
um acidente no momento de uma filmagem, a câmera parou. Ao voltou a funcionar,
Mièles continuou a filmar normalmente e, quando do filme concluído, constatou que
os objetos e as pessoas não ocupavam mais as mesmas posições. Como ilusionista
que era, percebeu que fazendo paradas sistemáticas, poderia substituir e
desaparecer certos elementos. Assim, Mièles criou as trucagens, que possibilitaram
fazer de seus filmes espetáculos de pura magia (SIRINO, 2004).
Percebemos que a ilusão foi e é o ponto forte do cinema, que une magia e vários
truques registrados pelas câmeras, e que o seu funcionamento data do século XIX,
daí ficou conhecido como a sétima arte, a forma de expressão simultânea à vida,
isto é, a vida passa da realidade às telas como num piscar de olhos.
O cinema evoluiu rapidamente. Em pouco mais de um século, desde sua primeira
exibição, tornou-se uma indústria forte, estando presente e atuando em muitos
momentos históricos da humanidade. Foram relevantes para a elaboração da
linguagem cinematográfica, o desenvolvimento de estruturas narrativas e a sua
relação com o espaço e com a montagem, que tem o sentido de dar a síntese ao
produto final (SIRINO, 2004).
Segundo a autora, o ritmo do cinema se justifica no fato de registrar os movimentos
históricos importantes, o que tornou o cinema uma forte indústria. As características
669
da linguagem, narrativa, o tempo e o espaço, assim como na literatura foram
relevantes para o sucesso dessa indústria de contar histórias.
Salientamos que, embora o cinema atualmente possa ser visto como um veículo
predominantemente de entretenimento, prevalece, ainda, seu caráter da busca
daquela sociedade burguesa que procura desenvolver máquinas e técnicas que
pudessem expressar um universo cultural a sua imagem, impondo às demais
sociedades o domínio cultural, ideológico, estético (SIRINO, 2004).
A priori, sabemos que um filme é uma história ou estória contada através de
imagens. O cinema, nesse sentido, pode ser considerado como a arte do real, já
que a realidade é imposta com toda força, não importando se esta realidade seja
apenas uma ilusão da verdade, o fato é que se tem a impressão de que é
verdadeiro o que se vê na tela (SIRINO, 2004).
É o jogo de imagens no ato de contar uma história que encanta no cinema, hoje com
muitos outros recursos do que os do seu início. Além dos movimentos, tem-se a
trilha sonora, os efeitos reais – como retorno ao tempo, construção de cidades
cinematográficas, há a iluminação e toda um estudo de falas e figurino de épocas.
Essa arte ocupa no mundo um espaço inimaginável entre as diversas sociedades.
No final do século XIX, em praticamente todos os países da Europa e dos Estados
Unidos, houve estudos e pesquisas para a produção de imagens em movimento.
Nesse período, já havia a pintura figurativa e a fotografia que davam conta de
mostrar imagens como se fossem reais. Esse período é também o ícone da
ascensão da burguesia, quando a Revolução Industrial transformava a produção,
as relações de trabalho, a sociedade. O cinema, especificamente, foi um veículo
que ganhou muito com os avanços industriais desse período histórico,
principalmente com a implantação da energia elétrica, do telefone, do avião. A partir
dos anos sessenta do século XX, a história, que até então só se fazia com
documentos através de escritos sobre a reconstrução do fato histórico, passa a se
afirmar e a admitir a utilização do cinema como documento (SIRINO, 2004).
É natural que o surgimento de um evento como o cinema esteja relacionado à
história da Revolução Industrial e da “nova” classe social da época – a burguesia,
cujos interesses econômicos eram o de participar, mais efetivamente, das decisões
670
políticas, o de pertencer a uma classe com poder e, consequentemente, o de ter
seus espaços ampliados.
Na França, o movimento pelo cinema foi liderado por Marc Ferro historiador da
Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa. O historiador passou a observar o
filme como agente transformador da história e como registro histórico. Salienta-se
que, atualmente, o cinema é visto como um produto da Indústria Cultural,
predominantemente de entretenimento (SIRINO, 2004).
A partir dessa época, o cinema passou a representar mais uma forma de registro,
de guardar na “memória” episódios. O suporte papel não era mais a única forma de
registros de acontecimentos. O cinema também armazenava ideias, com um
fantástico diferencial, o de repetir cenas, o de mostrar imagens e fatos no momento
em que aconteceram, com riqueza de detalhes que o papel não conseguia guardar.
O surgimento do cinema permitiu e ampliou o acesso de uma parte da sociedade
menos privilegiada a uma arte de natureza mais popular, uma vez que o mercado
cinematográfico se direcionava democraticamente, como espetáculo, a um grande
público. Um aspecto importante advindo da democratização das técnicas
fotográficas e depois das cinematográficas consiste no “crescimento do patrimônio
das imagens: a fotografia permite ver um grande número de coisas que escapam
não só à percepção, mas também à atenção visual” (ARGAN, 2000, p. 79-80). A
urgência dos tempos modernos trouxe, assim, o aprimoramento da tecnologia na
apreensão das imagens e derivada delas são as técnicas que deram origem ao
cinema; mas não só o aprimoramento das técnicas de tratamento da imagem sofreu
alterações. O espectador também se tornou diferente, assim como sua percepção
do tempo e do espaço em que a narrativa fílmica surgia.
Em determinado momento da história cinematográfica, o cinema foi considerado por
alguns críticos como uma arte impura, pois apresentava aspectos de artes mais
antigas como a literatura, a pintura, o teatro, assim como a música. Stam (2009, p.
49), aponta ponta em seu livro “Introdução à Teoria do Cinema” que, “desde o
surgimento do cinema como meio, os analistas têm buscado por sua “essência”,
seus atributos exclusivos e distintos”.
Em meados dos anos 1950, Bazin (1991, p. 840), utilizou o termo
671
cinema impuro” ao considerar o diálogo do cinema com outras artes
intrinsecamente inevitável e de extrema importância para o
processo de evolução cinematográfica. Quando o autor escreveu
seu ensaio sobre o tema, a adaptação era considerada como “o
quebra-galho mais vergonhoso pela crítica moderna.
Literatura e cinema
Literatura e cinema são linguagens, cada uma com suas formas de expressão
constituindo-se agentes na promoção das leituras e interpretações sociais,
históricas e culturais. Salienta-se, contudo, que, no contexto de ensino de literatura,
a utilização de filmes complementa a compreensão e nunca a substituição da leitura
(CURADO, 2012).
O início do cinema está relacionado ao movimento de pessoas e veículos, ao
registro de cenas e à simultaneidade de fatos. É isso que difere a literatura do
cinema. Aquela deixa por conta do leitor a movimentação das cenas, a imaginação
e a construção de sentido, este apresenta real e concreta a movimentação, dá pouca
vazão à imaginação, trabalha ainda com cores, recursos sonoros e figurinistas.
Carrière (1995, p. 21) assente que o cinema é uma experiência aberta, em
permanente autodescoberta, uma linguagem que está sempre criando formas e se
enriquecendo, fugindo constantemente das regras que tentam aprisioná-la em
cânones que tendem à rigidez do dogmatismo cristalizado em conceitos.
Segundo Costa (1989, p. 27), o cinema é: “Uma linguagem com suas regras e suas
convenções. É uma linguagem que tem parentesco com a literatura, possuindo em
comum o uso da palavra das personagens e a finalidade de contar histórias [...]”.
O texto literário possui relação com o leitor de forma isolada e tem como matéria-
prima a linguagem e não a imagem, ao contrário do filme que é feito para projeções
672
em salas escuras, onde atinge um público determinado, porque o cinema “não pode
existir sem o mínimo de audiência imediata” (BAZIN, 1999, p. 100).
Convém salientar, contudo, que “a diferença dos dois meios não se reduz entre a
linguagem escrita e visual” [...]. Mas àquilo que é próprio de cada um deles.
Assim, se o cinema, com todo aparato que dispõe, tem “dificuldade em fazer
determinadas coisas que a literatura faz”, o inverso também é verdadeiro
(JOHNSON, 2003, p. 42).
Mitry (2002, p. 167), afirma:
Se o cinema e a literatura procuram criar mundos humanos, “temos
de sentir o cerne de cada criação [...] porque a literatura nos faz
sentir o mundo de modo abstrato, por meio de palavras e figuras do
discurso”, ao passo que o cinema “é um processo de percepção
bruta”.
673
amplo, que permite estabelecer relações com outras artes ou
mídias” (CAMARGO, 2003, p. 9, In: CURADO, 2012, p. 1).
Quando se faz um filme, na maioria dos casos, o realizador parte para a sua
organização, tendo como base um argumento escrito original ou, muito
frequentemente, adaptado de um texto literário - interessa, em particular, aos
estudos comparados esta última categoria -, que contém as linhas gerais da história
e os diálogos.
Nos estudos do texto literário, é habitual ter-se em conta uma, ou várias, das
instâncias ou dimensões da literatura, a saber: o autor, enquanto ser social, doador
e produtor do texto; o contexto; um período literário, um movimento - que é
identificador de uma forma natural da literatura ou um gênero -; o texto em cuja
dimensão está a temática, os modos de articulação entre tema e discurso; a cultura
ali representada e, por último, o leitor, que é o responsável pela produção de
sentidos. Esse um conjunto de envolvidos no texto literário abre possibilidades de
análise que possa servir, metodologicamente, como ponto de partida aos Estudos
de Literatura e Cinema.
Para Johnson (2003), as relações entre o cinema e a literatura são complexas
e se caracterizam, sobretudo, pela intertextualidade e, citando Avellar, diz que “o
que leva o cinema à literatura é uma quase certeza de que é impossível apanhar
aquilo que está no livro e colocá-lo, de forma literária, no filme” (AVELLAR apud
JOHNSON, 2003, p. 41, In: CURADO, 2012, p. 1).
Segundo Johnson (2003, p. 42, In: CURADO, 2012, p. 1), a “insistência à
fidelidade é um falso problema, porque ignora a dinâmica do campo de produção
em que os meios estão inseridos”. Isso, na nossa concepção se explica pela
literatura ser a arte da palavra, pelo seu material ser é a palavra. Partindo das
experiências pessoais e sociais que vivem o artista, ele transcreve ou recria a
realidade, dando origem a uma supra-realidade ou a uma realidade ficcional. Ao
transcrever a realidade se pode usar a imaginação, tanto o autor como o leitor, são
livres para recriar livremente a realidade ao escrever e ao ler o texto. Passar do
papel para o cinema “essa realidade” escrita pelo autor da literatura acarreta
alteração da forma de ver o real, uma vez que o cineasta é outro sujeito, pertence a
674
outro mundo e tem formas de ver as coisas diferenciadas do escritor do texto
original.
Aguiar (2003, p. 119) observa que grande parte das produções
cinematográficas do século XX “seguiu ou perseguiu enredos e personagens
consolidados primeiro na literatura”. O estudioso acredita que isso ocorra em razão
do prestígio de determinados autores e obras. Assim, estaria, em tese, assegurado
o sucesso das películas provenientes de textos já consagrados.
Ainda que pautados nas obras literárias, os diretores imprimem, na película,
suas crenças, seus objetivos e seus estilos. Assim, eles buscam ou aproximar, ou
traduzir, ou equivaler, ou dialogar, ou corresponder, ou adaptar o texto literário ao
cinematográfico, observando as possibilidades de imbricamento de um meio com o
outro, tendo em vista aquilo que desejam expressar. Nem sempre essa
sobreposição consegue “aproximar” as duas artes mantendo o enraizamento da
obra literária. O que parece acontecer, nesse caso, é que o cineasta, como se
estivesse com uma tesoura à mão, saísse fazendo recortes daquilo que lhe
interessa e, posteriormente, iniciasse o processo de colagem e, nessa atividade,
permitisse a si o descarte e/ou o acréscimo de partes na história.
Isso pode ser explicar nas palavras de Bazin (1999, p. 82-83) que defende
que os textos literários não devem ser tratados como “sinopses bem desenvolvidas”,
porque “seguir o livro página por página é algo diferente e outros valores estão em
jogo e que o objetivo do cineasta não deve ser o de transcrever para a tela uma obra
cuja transcendência ele reconhece a priori”.
O autor acima mencionado acredita que as afinidades com o cinema e a
literatura acontecem em virtude da convergência estética existente entre esses
meios de expressão. Para o crítico, por mais absurdas que sejam as adaptações,
“elas não podem causar danos ao original junto à minoria que o conhece e os
ignorantes, ou se contentarão com o filme ou terão vontade de conhecer o modelo,
e isso é um ganho para a literatura” (BAZIN, 1999, p. 93).
Diante da transformação do texto literário para o cinematográfico, Bazin
aponta que tanto a literatura quanto o cinema têm diferenças de “estruturas
estéticas” e tais diferenças “tornam mais delicadas a procura e equivalências do
675
cinema com o texto literário, [requerendo] mais invenção e imaginação por parte do
cineasta” (BAZIN, 1999, p. 95). O teórico observa que “há cineastas que se esforçam
por uma equivalência integral do texto literário e tentam não se inspirar no livro, mas
adaptá-lo ou traduzi-lo para a tela” (BAZIN, 1999, p. 93).
Sobre essa discussão, Xavier (2003, p. 62) afirma que a transformação do
texto literário para o cinematográfico tem várias dimensões, sendo uma delas a
“fidelidade” ao texto de origem. “Isso, entretanto, para o estudioso, é infundado, uma
vez que “o livro e o filme nele baseado são como dois extremos de um processo que
comporta alterações em função da encenação da palavra escrita e do silêncio da
leitura”.
A passagem de uma arte a outra, a chamada adaptação, de acordo com
Guimarães (2003, p. 111) coloca em discussão problemas ainda sem soluções entre
as expressões artísticas, visto que “os limites entre cultura de massa e erudita, o
original e a cópia são sempre redefinidos [porque] as adaptações estabelecem uma
zona de conflito entre formas culturais diferentes voltadas para públicos diferentes
e heterogêneos”. Nesse caso, Mitry (2002) é mais enfático. Para ele, o cinema é
contrário à literatura: enquanto esta se organiza no mundo, aquele é o mundo que
se organiza em uma narrativa. Indiferentemente ao nome que se dê ao transpor o
texto literário para o cinematográfico, é fato que as películas partem da palavra para
se redimensionarem em imagens.
O que está em jogo é que “o cinema tornou-se a forma de arte definidora da
experiência temporal da modernidade” (CHARNEY, 2000, p. 324. In: FILETTI, s/d,
p. 33). O homem do século XX foi suspenso pela fotografia e, logo depois, pela
imagem em movimento.
676
Enquanto Bazin se preocupava com a defesa da adaptação, Stam analisa como
acontece o diálogo entre o cinema e a literatura. Hoje em dia, não se questiona mais
a aceitação “influência” da literatura no cinema; e o uso do termo já foi descartado
pelos teóricos da atualidade (SCHLÖGL, 2011).
Stam (2008) não se preocupa com a questão da “influência”, muito menos da
fidelidade da adaptação em relação à sua obra de origem. O que o autor sugere é
que, eventualmente, um texto possa gerar diversas “leituras” ao abordar aspectos
diferentes de um romance. Assim, uma obra pode motivar variadas adaptações
(SCHLÖGL, 2011).
Considerações finais
A literatura em comparação ao cinema é muito mais pura e incentivadora do
imaginário humano e da plenitude emocional. O cinema, por sua vez, ocupa-se com
a transposição e a reescritura de obras originais com certo apelo ao visual, o que
nem sempre mantém conceitos e ideias. A alteração se dá por meio dos elementos
próprios da cinematografia como as montagens e as combinações de linguagens,
sobretudo o som, a luz, a imagem, as cores e ações. Nesse caso, pode se dizer que
o cinema não tem a obrigação com a fidelidade ao texto literário que é fruto de
adaptação.
A atuação do cinema e a imbricação com a literatura, entre os diversos teóricos, a
quem recorremos para a elaboração deste artigo, é assunto polêmico, mas é preciso
dizer que a discussão de cada um culmina na ideia de que o texto literário é arte
com pureza, já o cinema é arte com linguagem conativa, com recursos e
movimentos que atribuem à ficção poder real, principalmente pela capacidade de
movimentação.
Queremos destacar, neste estudo comparado, que com a adaptação de uma obra
literária ao cinema, outras e novas possibilidades de leitura de um texto ficam
garantidas e isso talvez baste para considerarmos o cinema como um porta voz,
como responsável por permitir à massa o acesso a uma arte – a literatura – tão
prejudicada por tantos recursos midiáticos que têm distanciados os estudantes da
leitura da boa literatura.
677
Referências
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São Paulo: Senac, Instituto Itaú Cultural, 2003.
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Proggeto e Destino. Tradução: Marcos Bagno.
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Paulo: Brasiliense. Texto Xerocopiado. 1999. p. 83-104.
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correspondência ou transformação? São Paulo: PUC, 2012.
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adaptação de Os Maias. In: PELLEGRINI, Tânia et all. (2003) Literatura, cinema e
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cinema: uma introdução. Tradução de Tereza Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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adaptações na história do cinema. (Comunicação) Guarapuava: Unicentro, 2011.
SIRINO, Salete Paulina Machado. Cinema Brasileiro: o Cinema Nacional produzido
a partir da Literatura Brasileira e uma reflexão sobre suas possibilidades educativas.
678
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XAVIER. Ismail. (Org.) A experiência do cinema: antologia. 4. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2003.
679
O ESTUDO DO SILÊNCIO E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA PERSONAGEM
MACABÉA: UMA REFLEXÃO
Introdução
680
Na interação o silêncio ocupa um espaço que pode remeter ao respeito, à prudência,
à cautela. Com base nas considerações expostas acima o problema de pesquisa
deste artigo se identifica com a seguinte pergunta: Como a materialidade discursiva
do silêncio produz sentido no texto literário? Assim, o presente artigo tem como
objetivo examinar as manifestações de silêncio em Macabéa, personagem principal
da obra A hora da estrela, Lispector (1997).
A escolha desta obra deu-se especificamente por se tratar de uma das mais
conhecidas da literatura brasileira em que a protagonista apresenta falta de
autonomia no uso com as palavras na relação de sentido entre: discurso, linguagem
e silêncio. As análises serão realizadas em conformidade com os estudos instituídos
conforme já citados anteriormente por: Pêcheux, Le Breton, e Orlandi, onde se
destaca a importância do sujeito e sua formação discursiva.
Com base nas teorias supracitadas a língua pode ser entendida como um sistema
homogêneo, um conjunto de signos exterior aos indivíduos que deve ser estudada
separada da fala e se constitui como um agente transformador da linguagem.
Gadet e Pêcheux (2004) teorizam a linguagem materializada na ideologia e como
essa última se manifesta na linguagem. Para eles, o discurso é um objeto sócio-
681
histórico concebido como efeito de sentido entre locutores, representa um lugar de
particularidade onde a interação se concretiza.
Nesse campo de investigação, os autores consideram a linguagem um sistema
sujeito à ambiguidade e compreende a discursividade como a inserção dos efeitos
da materialidade da língua na história e na relação sujeito linguagem. Em seu
estudo, Pêcheux sugere um novo suporte teórico para a ideologia. Esse suporte se
baseia na análise das formas materiais. Para tanto, a materialidade específica da
ideologia é o discurso e a materialidade deste é a língua.
O estudo da língua em Orlandi (1999) se ampara no saber que não há neutralidade
nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. Partindo dessa
perspectiva, a estudiosa da linguagem segue alguns critérios para explicar como a
língua se manifesta no discurso.
Essa manifestação indica palavra em movimento, prática de linguagem onde se
observa o homem falando. Nesse estudo, a linguagem é concebida como
manifestação entre o homem e a realidade natural e social. Deve se entender que
nessa teoria a língua é representada pela produção de sentido.
Orlandi (1999) orienta que a condição da linguagem é a incompletude visto que nem
sujeitos nem sentidos são completos. Essa incompletude atesta a abertura do
simbólico, pois a falta é também o lugar de possível descoberta. Nessa perspectiva
considera que dizer não é propriedade particular, dessa maneira, as palavras não
são só nossas. Elas significam pela história e pela língua. Portanto tomar a palavra
é um ato social com todas as implicações.
O ato de silenciar pode ser entendido como resistência. Nesse sentido, Le Breton
(1997) argumenta que o silêncio tem vestígio arqueológico na medida em que
estrangula um intruso: a palavra. Seu estudo aborda também como a linguagem e
a comunicação são as contrafaces do não dito, do pensado e do segredo, do calar-
se.
Em sua tese as palavras e o silêncio misturam-se para chegar a um intercambio. É
sabido que no universo da comunicação não existe lugar para o silêncio, visto que,
os sujeitos encontram-se o tempo todo coagidos a proferir uma palavra, a esboçar
um pensamento.
682
No discurso, cada palavra organiza o silêncio à sua maneira e dá um impulso próprio
à troca. Nessa direção teórica, para Le Breton (1997) nenhuma palavra é emitida
sem encontrar outro sujeito que a receba. Embora não haja resposta, não encontre
outro sujeito para recebê-la ou um sinal que foi percebida. A palavra uma vez dirigida
faz parte do mundo da subjetividade de cada sujeito e pode vir a representar parte
do seu mundo interior.
Nesse sentido, o silêncio é um modo de diferenciamento do encontro na altura de
situações incertas, acompanha uma observação difusa que mede a pertinência,
ou não, da palavra. É mais ou menos pesado conforme as circunstâncias, mas
apresenta-se como uma peneira, estabelecendo a transição entre dois mundos
(LE BRETON, 1997, p.35).
683
do outro. Seria, de acordo com Orlandi (1999, p.39), o lugar a partir do qual fala o
sujeito é constitutivo do que ele diz.
Outra consideração no tocante ao estudo do silêncio é a situação em que o calado
afasta-se da linguagem para escapar das obrigações do vínculo social. Nos estudos
de Orlandi (1997, p.12) há sentido no silêncio, mas esse, nos conceitos da autora,
foi relegado a uma posição secundária como excrescência como resto da
linguagem.
O imaginário social destinou lugar subalterno ao silêncio. A partir dessa reflexão o
imaginário social pode ser considerado tanto parte da retórica da dominação, como
parte da retórica do oprimido (ORLANDI, 1997, p.31).
Para compreensão da linguagem é necessário entender o silêncio para além da
dimensão política e considerar que o silêncio é fundante, é a matéria significante
por excelência, um continuum significante. Chega-se a conclusão que o real da
significação de acordo com Orlandi (1997) é o silêncio.
Através da observação de diferentes discursos é possível reconhecer fatos que
indicam a importância do silêncio e como compreendê-lo. Em suma, o silêncio faz
parte da constituição do sujeito e do sentido.
Finalmente, entende-se que encontrar o espaço do silêncio permite refletir
diferentes concepções para se entender como em determinadas situações de
comunicação o silêncio ocupa um lugar ambíguo nos hábitos culturais.
684
aqueles os quais o leitor os encontra na vida diária em formas textuais escritas ou
orais.
Quanto aos estudos a respeito de literatura, Bakhtin (2010, p.71) indica alguns
conceitos relacionados ao gênero romance. Suas contribuições orientam que, por
muito tempo, o romance foi somente objeto de análise abstratamente ideológica de
apreciação publicistas. Esses analistas costumavam fazer considerações sem
princípio valorativo quanto à importância do gênero. Nesse contexto, o romance é a
diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de língua e
de vozes individuais (BAKHTIN, 2010, p.75).
685
É sabido que os autores delegam voz às personagens e através de fragmentos
discursivos a linguagem circula no processo de constituição de sentido do sujeito,
da escrita e da própria história. Desse modo, examinaremos as manifestações de
silêncio em Macabéa, nos fragmentos236 escolhidos para este artigo.
...Ela que devia ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem
nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano
primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra
por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça
ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não
aprovasse na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda
do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada diria:
“desiguinar”.
236Para facilitar a compreensão, uma vez que se trata de um romance, denominaremos fragmentos utilizados
para o corpus. Convém notar, entretanto que escolhemos somente alguns fragmentos do romance A hora da
estrela.
686
Nos fragmentos escolhidos para esta análise, o narrador apresenta ao leitor a
fragilidade da protagonista.
Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem
nenhuma datilografia, já que escreve tão mal só tinha até o terceiro ano
primário. (LISPECTOR, 1998, p.15).
O olhar do narrador terce de maneira oblíqua, de relance uma personagem
esvaziada, construída por fios tênues. A condição de Macabéa cria um cruzamento
de ausência e forma um silenciar: é datilógrafa, essa conquista lhe confere um
condição de semi-alfabetizada que escreve muito mal. A falta de instrução nega-lhe
autonomia com as palavras e a obriga viver na ignorância, na ausência de
linguagem, no silêncio de maneira que o lugar ocupado por ela é nenhum.
Neste contexto de pobreza humana, vestido de chita, ...só tinha até o terceiro
ano primário (LISPECTOR, 1998, p.15). caracterizam um luxo na instabilidade, no
processo de constituição do sujeito. A construção fragmentada a falta de segurança
indicam uma linguagem desnuda, migrada como a própria personagem em letra por
letra, curso ralo (LISPECTOR, 1998, p.15).
Através desses exemplos confirma-se a angústia existencial de Macabéa, sua vida
marginalizada socialmente.
Gadet e Pêcheux (2004, p.29) argumentam que as palavras são imitações do
mundo. Nesse sentido, a experiência de Macabéa com a linguagem denota
inconsciência de sua condição desajustada na cidade grande. Quanto ao narrador,
apropria-se das palavras ironicamente para configurá-la:
...incompetente. Incompetente para a vida (LISPECTOR, 1998, p.24).
Torna-se subempregada e recebe crítica de seu chefe por apresentar péssimas
páginas datilografadas na linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda
e redonda do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada
diria:“desiguinar” (LISPECTOR, 1998, p.15).
Esta ousadia linguística que cerca a dificuldade da personagem com a linguagem
escrita indica sua limitação social, aponta uma vivência deslocada socialmente.
Le Breton (1997, p.57) postula “que o silêncio afasta-se do convívio social e não
deixa de incomodar, se a palavra é comum e circula com fluidez” Diante da
687
perspectiva do silêncio como manifestação para a leitura, verifica-se a incapacidade
da protagonista que vive clandestinamente de forma ínfima em si mesma, numa
espécie de pobreza mental e material. Só vagamente tomava conhecimento da
espécie de ausência que tinha de si mesma. (LISPECTOR, 1998, p.24).Faltava-lhe
o jeito de se ajeitar /ausência de... si mesma/ nada argumentou em seu próprio favor.
(LISPECTOR, 1998, p.24).
Em todos esses exemplos o interlocutor percebe um acúmulo de negação, um vazio,
de alguém com dificuldade em lidar com as palavras. A incapacidade de manifestar-
se. Em avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com
sua cara de tola, rosto que pedia tapa) (LISPECTOR, 1998, p.25).
Essa gratuidade que a personifica desligada do mundo, não apresenta memória no
passado, não existe presente ou dignidade.
Nos estudos de Orlandi (1997, p.31) o silêncio é o real no discurso. Esse argumento
indica as condições sociais que determinam os sentidos do sujeito, em A hora da
estrela, Macabéa necessita de um artifício de sobrevivência. Ela não tem espaço, é
minorizada, é clandestina em si mesma, não consegue chegar à compreensão,
conforme exemplo: nada argumentou em seu próprio favor (LISPECTOR, 1998,
p.24).
Macabéa representa sem retoque o empobrecimento cultural, o não ser, a
dificuldade em lidar com palavras. Por outro lado, todas essas características que a
colocam desprovida de pensamento, e de palavras, por um momento tornam-se
menores, quando a personagem se mostra cerimoniosa e com respeito.
Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e falou
cerimoniosa a seu escondidamente amado chefe. (LISPECTOR, 1998, p.25).
688
sua insegurança marginalizada e tem uma saída honrosa ao interagir, dialogar e
fazer uso da linguagem em: -Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1998,
p.25).
Para Orlandi (1997, p.35), a linguagem supõe a transformação da matéria por
excelência (silêncio) em significados apreensíveis verbalizáveis. Assim, Macabéa
ao fazer uso da linguagem se constrói de significado.
Considerações Finais
A relação discursiva das pessoas com o silêncio é um convite a se pensar o ato das
palavras como um espaço para o não dito. Nesse sentido, o anonimato da
personagem não é tocado pelo narrador, de modo que permanece o silêncio.
Conforme Orlandi (1997), o silêncio é o real do discurso, assim o silêncio de
Macabéa adquire sentidos diferentes. E pode ser interpretado de forma
contraditória.
Percebemos que o narrador se posiciona com uma linguagem negativa ao se referi
a personagem. E essa se mantém indiferente, uma vez que não tem habilidade com
o dizer, seu silêncio pode inclusive ser entendido como um ato de resistência e
apontar: rejeição ao mundo que a despreza.
É justamente no movimento da ausência de linguagem e nos múltiplos sentidos do
silêncio e da aparente fragilidade de Macabéa que se encontra a construção de
sentidos. Portanto, observa-se que a personagem não encontra um lugar de
existência e identidade nem no meio rural de origem nem na cidade grande. O
silêncio de Macabea pode ser interpretado como uma condição de sobrevivência
em um universo inóspito, no qual a personagem não se adapta.
Referências
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689
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SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Trad. de Antonio Chelini,
José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1995. P.17.
690
UMA ESCRITORA CONSAGRADA E UM LIVRO NÃO COMPREENDIDO:
NOTAS SOBRE O LUSTRE, DE CLARICE LISPECTOR
Mariângela Alonso237
Introdução
691
chamada literatura feminina. No que tange à visão de Lins, o potencial de lirismo e
narcisismo seriam os principais motes do livro, inerentes ao “temperamento
feminino” da literatura de Lispector. Embora a crítica de Álvaro Lins intua as
mudanças que estão no horizonte da escrita clariciana, não soube avaliá-las em sua
profundidade. Além disso, as leituras de Lins e Milliet abordam a segunda obra em
comparação com a primeira, ressaltando o aspecto de descontinuidade presente
nas categorias espaciais e temporais da narrativa. Diferentemente destes
apontamentos, as vozes de Antonio Candido e Oswald de Andrade destacaram o
inacabamento como um dos aspectos inovadores do romance, propiciando o
diálogo com as posições de Umberto Eco (2005) em torno das principais
características das obras de arte modernas.
Percebe-se, portanto, que a segunda narrativa não pôde ser compreendida
em sua totalidade, principalmente devido às injustas e lacônicas comparações com
a obra de estreia. Assim, pretendemos analisar o lugar de O lustre na produção
clariciana, procurando discutir as leituras dos críticos severos ou complacentes que
analisaram sua escrita, guiando-nos pelos estudos de Umberto Eco e Roland
Barthes (2007) em torno da obra moderna, sua resistência às totalizações e suas
configurações diante de um novo leitor.
Vozes da crítica
692
submissão e admiração; o irmão é o criador da Sociedade das Sombras, brincadeira
provinda de um pacto, sediada ao mesmo tempo na mata e no porão da casa, com
os propósitos de percorrer o campo e atingir a solidão das trevas da noite, entre
outras coisas. Ressalta-se ainda a figura da velha Cecília, a qual prevê a morte
trágica de Virgínia logo no início do enredo. Na cidade surgem Vicente, Adriano e
Miguel, homens com quem Virgínia tem amores conturbados e relações frustradas.
Embora seja constantemente comparado à trajetória de Joana, de Perto do
coração selvagem, o itinerário de Virgínia, diferentemente, é desintegrado. Os dois
romances guardam semelhanças por narrarem a história de personagens femininas,
desde a infância até a maturidade. Ao contrário de Joana, porém, Virgínia não
possui contornos psicológicos muito bem definidos, nem mesmo feições atuantes.
Em relação a este aspecto, concordamos com os apontamentos de Regina Pontieri
(1999), que observa aspectos de continuidade e ruptura em O lustre, tendo em vista
o percurso circular iniciado pela autora com a primeira obra: “Continuidade do
enfoque no sujeito. Ruptura porque Virgínia, a personagem a partir da qual a
realidade ficcional se constrói, já não tem fortes características próprias como ocorre
em Perto do coração selvagem com Joana” (Pontieri: 1999, 25).
Tal configuração psíquica de Virgínia é evidenciada logo no início do
romance, quando o narrador enuncia: “Ela seria fluida durante toda a vida”
(LISPECTOR: 1999, 9). A fluidez da protagonista foi exaustivamente discutida pela
crítica como aspecto indicador de sua pusilanimidade diante da vida prática, bem
como de sua inadaptação aos lugares e de seus desejos também fluidos.
A cena inicial é construída em torno da sugestão de um afogamento, uma vez
que Virgínia e o irmão Daniel observam do alto de uma ponte um chapéu arrastado
pela correnteza do rio e decidem calar-se a respeito, pactuando um segredo tão
bem guardado quanto à grafia da palavra no texto, a qual surge como “afog...”:
– Não podemos contar a ninguém, sussurrou finalmente Virgínia, a voz
distante e vertiginosa.
– Sim ... – mesmo Daniel se assustara e concordava ... as águas
continuavam correndo. – Nem que nos perguntem sobre o afog...
– Sim! Quase gritou Virgínia... calaram-se com força, os olhos
engrandecidos e ferozes. (LISPECTOR: 1999, 9-10)
693
Tem início, então, um processo vertiginoso vivido pela personagem, que,
debruçada sobre a ponte, experimenta em devaneios o conhecimento da morte
advinda das águas turvas. A cena é decisiva por consubstanciar no romance os
semas da água e do chapéu, ambos ligados à ideia de morte, os quais retornarão
em diversos momentos da trajetória de Virgínia, tais como no enterro da avó, no
fim do relacionamento com Vicente e na morte por atropelamento na cidade, entre
outros. Além disso, o lustre, que dá título à obra, “como um grande e trêmulo
cálice d’água” (LISPECTOR: 1999, 255) representa o que restara do passado
pomposo de outros tempos, na grande sala vazia e decadente do casarão de
Granja Quieta.
No entanto, Lins acaba por inaugurar, nos estudos claricianos, uma vertente
da fortuna crítica, instaurada sobremaneira no campo da chamada literatura
feminina.
Já Antonio Candido, acertadamente, apenas aponta para o inacabamento,
como um dos aspectos inovadores do primeiro romance: “Se não valesse por outros
motivos, o livro de Clarice Lispector valeria como tentativa, e é como tal que
devemos julgá-lo, porque nele a realização é nitidamente inferior ao propósito”
(CANDIDO: 1970, 128).
O que esse primeiro grupo aponta como defeito ou problema, ou seja, o
inacabamento, será o que posteriormente figurará como uma das principais
características das obras de arte modernas. Conforme indica Umberto Eco (2005)
sobre as obras modernas: “nenhuma obra de arte é realmente ‘fechada’, pois cada
uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de ‘leituras’
694
possíveis” (Eco: 2005, 88), uma vez que tal “abertura [...] funda-se na dúplice
natureza da organização comunicativa de uma forma estética e na típica natureza
transativa do processo de compreensão” (ECO: 2005, 88).
Em 1973 Benedito Nunes aposta na hipótese do inacabamento como algo
constitutivo e consciente do projeto de escrita da autora. Logo no primeiro capítulo,
Nunes constata: “Três são os aspectos fundamentais que se conjugam em Perto do
coração selvagem: o aprofundamento introspectivo, a alternância temporal dos
episódios e o caráter inacabado da narrativa” (NUNES: 1973, 3). No que tange ao
primeiro aspecto, salienta o estudioso:
238
Expressão utilizada por Olga de Sá em A escritura de Clarice Lispector (2000).
695
paginado). Para Lins, assim como o primeiro romance da autora, O lustre também
se revela como incompleto, ou “mutilado”:
696
Contestamos a posição do crítico, uma vez que a repetição sistemática surge
muitas vezes na obra clariciana como procedimento primordial para a escritora
pensar a própria escrita, como se pode notar na crônica Explicação que não se
explica239, texto de natureza metalinguística, em que tece reflexões em torno da
elaboração dos contos de Laços de família: “[...] a repetição me é agradável, e
repetição acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena
enjoada diz alguma coisa” (Lispector: 1999, 240). Nesse sentido, a repetição atua
como um dos desafios à narrativa clariciana, ao mesmo tempo em que invoca a
compreensão do texto, lançando a ele um olhar mais crítico e diferenciado. Como
bem observa Compagnon: “[...] interpretar um texto é sempre, inevitavelmente, com
a identidade, produzir a diferença, com o mesmo, produzir o outro: descobrimos
diferenças sobre um fundo de repetições” (Compagnon: 1999, 68). Portanto, a
argumentação de Sérgio Milliet aponta para “um persistente preconceito contra os
processos conscientes de experiência com a linguagem” (SÁ: 2000, 32), uma vez
que a repetição tem lugar privilegiado na obra de Clarice Lispector e seus
procedimentos corroboram uma ficção errática, em constante tecimento.
Em julho de 1946, é a vez de Gilda de Mello e Souza abordar o romance,
observando a “linguagem anímica” e os “processos poéticos” presentes em O lustre
como fatores comprometedores da escrita: “O empréstimo de processos de outros
gêneros raras vezes é enriquecimento. Esposando os processos poéticos, não teria
O lustre traído, de certa maneira, a característica principal do romance, que é ser
discursivo?” (SOUZA: 1989, 172).
Na visão de Gilda, o livro de Clarice Lispector faz parte da linhagem dos
“romances simbólicos”, na esteira das obras de Georges Bernanos (1888-1948) e
Franz Kafka (1883-1924), as quais “[...] corporificam, por assim dizer, os problemas
mais essenciais do indivíduo, de uma situação ou de uma época [...] atingindo
através dessa personalização uma força e um poder extraordinariamente mais
fortes” (SOUZA: 1989, 173).
A estudiosa atenta ainda para os qualificativos empregados em excesso pela
escritora, os quais tendem a desfuncionalizar a escrita, em claro sinal de
697
rebuscamento: “Nisso reside, aliás, a majestade barroca com que avança pelos
problemas mais complicados, tentando resolvê-los” (SOUZA: 1989, 173).
Semelhante à posição de Milliet, Gilda de Mello e Souza salienta o “abuso de
qualificativos”, além de não reconhecer o intercâmbio dos gêneros como
procedimento fértil para a escrita do romance.
É compreensível que os estudos acima mencionados respondam a uma
época ou contexto em que o trabalho crítico desejava avaliar e situar a escrita
clariciana a partir de certa rigidez normativa. Constantemente, a crítica atual tem
tomado por base a leitura canônica destes críticos, desconhecendo um grande
número de outros ensaios e artigos que dão corpo à fortuna crítica do romance, tal
como o texto intitulado O lustre: um romance não como os outros, de Maurício
Vasques para o jornal Dom Casmurro, em fevereiro de 1946. Para o crítico, a força
do livro de Lispector estaria na subversão das “regras da linguística” ao conciliar
qualidades e situações antagônicas no discurso, viabilizadas pela tentativa da
escrita quanto à “definição de situações indefinidas e incompreensíveis, mas das
quais está a vida cheia” (VASQUES: 1946, 2). Por explorar sentimentos
genericamente constantes da alma humana, Vasques denomina o segundo livro
como “romance universal” (VASQUES: 1946, 2).
Em março de 1946, Almeida Salles escreve um artigo no rodapé de crítica do
jornal carioca A manhã, contrariando as opiniões dos outros críticos ao posicionar-
se em relação ao uso excessivo dos adjetivos no romance: “Nunca na nossa
literatura usou-se o adjetivo com esse poder obsedante de perfuração das
aparências e de apreensão dos movimentos mais esquivos dos seres” (ALMEIDA
SALLES: 1946, 1). Considerando O lustre como obra propícia para discutir e otimizar
novas possibilidades de leitura do romance moderno brasileiro, Almeida Salles
envereda sua leitura pelos caminhos inenarráveis do texto de Lispector, valorizando,
na captação da realidade, os efeitos visuais e auditivos, os quais se afinam com o
intrigante silêncio da personagem Virgínia: “Não contar, não descrever, mas
registrar de dentro da personagem, com uma receptividade sensível e isenta de
prejuízo crítico, as sensações diretas, a gama das relações entre os sentidos e as
coisas” (ALMEIDA SALLES: 1946, 1).
698
Considerações finais
[...] somente a obra pode ser acabada, isto é, apresentar-se como uma
pergunta inteira: pois acabar uma obra não pode ser outra coisa senão a
deter no momento em que ela vai significar alguma coisa, no momento em
que, de pergunta, ela vai transformar-se em resposta; é preciso construir a
obra como um sistema completo de significação, e entretanto, que essa
significação seja desiludida (BARTHES: 2007, 75).
Comumente ligada à vida e ao nascimento, líquido amniótico 240, a água, tal como
um espelho deformante, propicia o encontro com a morte e o embate com a
linguagem em O lustre, na medida em que movimenta no discurso conexões
imprevistas da ordem do insólito. A autora desloca o plano da ação para a esfera
anímica, buscando captar as experiências sensíveis e inteligíveis da
personagem. O que resta desta escrita é a “visão de míope” (SOUZA: 1980, 79),
pormenorizada pelo apelo a nuances e miríades fragmentárias de informações e
vivências. Assim, o texto viabiliza-se por meio de longos períodos, com
paradoxos e parataxes, de modo a traduzir a dificuldade de existir de Virgínia.
Ainda que a vida da personagem seja descrita em etapas e progressões lineares,
o discurso apresenta-se de modo fragmentário e elíptico, cujas mudanças
bruscas, com fatos narrados de modo incompleto e lacunar, difundem no texto
uma espécie de dinâmica que tensiona a liquidez deformante da água, cujo signo
se acopla a imagens grotescas, gerando a convivência entre vida e morte, fluxo
e corte, fluidez e embate, claridade e sombreamento, e — por que não ? — Eros
e Thanatos. Tais imagens caracterizam-se por aspectos desagregadores, os
quais negam a essência líquida e/ou fluida do sema da água. Trata-se de uma
escrita que acena, em última análise, para uma falência situada no âmago da
240 Cf. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Vol. V. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 427-430.
699
própria linguagem, a pontos impossíveis e impronunciáveis, ainda que
desenhados e meramente circunscritos no discurso.
Segundo Plínio Prado Júnior, tal impossibilidade caracterizaria a “estética do
fracasso”, ou seja, uma escrita que procuraria dar forma ao incomensurável:
“através do esforço e do malogro de sua linguagem, ela [a escritura] faz sentir
que algo escapa e resta não determinado, não apresentado, ela inscreve uma
ausência, alude ao que se evola” (PRADO JÚNIOR: 1989, 24-25). Justifica-se aí
o aspecto de inacabamento observado na construção da personagem Virgínia,
bem como a ausência de meios de demarcação de sentido de muitas cenas do
romance.
Referências
700
NUNES, Benedito. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973.
PONTIERI, Regina Lúcia. Clarice Lispector: uma poética do olhar. Cotia: Ateliê
Editorial, 1999.
PRADO-JÚNIOR, Plínio. O impronunciável: notas sobre um fracasso sublime.
Remate de Males, Campinas, n.9, 1989. p. 21-29.
SOUZA, Gilda de Mello e. O lustre. Remate de males. n. 9. 1989. p. 171-175.
______. MELLO e SOUZA, Gilda de. O vertiginoso relance. In: MELLO e SOUZA,
Gilda de. O baile das quatro artes: exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades,
1980. p. 79-91.
VASQUES, Maurício. O lustre: um romance não como os outros. Dom Casmurro. 6
de abril de 1946. p. 2.
701
ARTE BRASILEIRA
Introdução
241Doutoranda em Letras- UPM. Orientada pela Professora Doutora Glória Carneiro do Amaral: Professora
livre-docente da Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
702
abandonar. O posicionamento de Euclides da Cunha em relação à geografia do
Sertão evidencia que apenas a ciência seria capaz de explicar as relações sociais,
psicológicas e econômicas do homem do sertanejo.
O termo “Terra ignota” foi cunhado pelo teórico Luis Costa Lima para se referir
ao sertão descrito por Euclides da Cunha. Segundo o teórico, a literatura aparece
em Os Sertões como “ornato”. Costa Lima destaca que a linguagem poética foi
utilizada por Euclides da Cunha como um “aliviar de tensões” diante da perplexidade
de se contemplar as agruras de uma “terra ignota”. O crítico literário explica como
se dá o exaurir de tensão diante das rudes paisagens sertanejas que Euclides da
Cunha precisa descrever: “pela torção literária, é esvaziada a tensão que quase se
torna insuportável - há uma ciência capaz de dizer de tão estranha terra sujeita a
tamanhas oscilações?” (sic) (COSTA LIMA, 1997, p. 153).
O autor de Os Sertões concebe o habitante do sertão como produto
resultante de inúmeros cruzamentos. Em sua visão, preponderantemente
positivista, o sertanejo é uma “sub-raça”, empecilho ao progresso civilizatório, uma
vez que a “mistura de portugueses, índios e negros constitui um problema
representativo de involução biológica. Para Euclides da Cunha, a religiosidade do
sertanejo era tão mestiça quanto o mesmo. O sertanejo era, por conseguinte,
desprovido da “capacidade orgânica de se afeiçoar a situação mais alta”, uma vez
que é “um caso de anacronismo psíquico ideativo”. Por isso, a respeito do sertanejo
o autor assegura: “deixa-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas”,
sua “religião mestiça” seria resultante do intercruzamento cultural-religioso feito a
partir do “antropismo selvagem, o animismo do africano e o aspecto emocional da
raça superior”. (CUNHA, 2009, p.135-136; p. 145-146).
Desse modo, ao manter estreito vínculo com as correntes científicas
emergentes nos finais do século XIX, Euclides da Cunha constrói seu pensamento
sob as leis do determinismo e da hereditariedade. Por isso, os seus delineamentos
positivistas o fazem compreender o sertanejo como um ser dotado de apego servil
a terra, alienado fatalmente a um ambiente de clima pouco receptivo ao homem que,
diante das agruras oferecidas pelo meio, se apega a: “todas as profecias esdrúxulas
de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões e as penitencias”.
703
Euclides da Cunha concebe estas “manifestações complexas de religiosidade
indefinida”, explicáveis biologicamente, a partir da “fraqueza de consciência” de um
povo que na sua concepção é o “resumo degenerativo de três raças”. (CUNHA,
2009, p. 198).
Na década de 1930, os sérios problemas sociais ocasionados pela seca e
pela falta de assistência política para as regiões do nordeste do Brasil, serão
explorados mais uma vez. Agora a partir das ficções de Graciliano Ramos em Vidas
Secas e Rachel de Queiros em O Quinze. Estas obras foram escritas na chamada
literatura modernista de segunda fase, denominada pela tradição literária como
romance social e/ou literatura engajada. As personagens Fabiano e Chico Bento,
respectivamente dos dois últimos autores supracitados, representam os muitos
sertanejos que ao longo da história do sertão nordestino brasileiro foram e ainda
são segregados social e politicamente. Eles representam os milhares de nordestinos
que a todo ano são varridos do sertão. Como diz o narrador de Vidas Secas a
respeito de Fabiano: “A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo,
à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca”. (RAMOS, 2009.
p. 8)
A narrativa de Graciliano evidencia que a fome, a miséria e a falta de
dignidade humana, não se configuram como uma exceção na vida do sertanejo,
antes, é uma realidade que o acompanha insistentemente. Quando o romance
começa, Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos e a cachorra Baleia estão se retirando
porque há um período de estiagem muito extenso na região em que vivem, conforme
a citação a seguir: “o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinha deixado os
caminhos cheios de espinhos seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a
lama seca e rachada que escaldava os pés”. (RAMOS, 2009. p 03.). Conforme
podemos verificar, Fabiano e a família saem errantes, em busca de água. No
desenrolar da narrativa, a chuva vem e os retirantes têm a oportunidade de plantar
em uma terra abandona.
Quando tudo parece sob controle e a família faz planos para melhorar a
sofrida vida, eis que aparece um suposto dono da terra que os explora por algum
período e depois os abandonam a própria sorte com a chegada do outro período de
704
estiagem. A narrativa de Graciliano Ramos deixa evidências de que a vida precária
do sertanejo não está condicionada apenas aos fatores climáticos, mas também aos
de ordem social.
O vaqueiro Chico Bento, por sua vez, experimenta a realidade da seca como
um agente desintegrador de sua família, quando membro a membro se dispersa do
grupo e são tangidos para lugares longínquos, entregues à própria sorte, em busca
da sobrevivência. O romance termina e a família de Chico Bento não é restaurada,
cada membro foi se perdendo pelas veredas do sertão assolado pela fome. O ponto
alto da tragédia na trama de Rachel de Queiros é a morte de Josias, um dos filhos
do casal. A criança morre após comer uma “manipepa”, mandioca brava, imprópria
para consumo humano:
Lá se tinha ficado Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz
de dois paus amarrados, feitas pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que
chorar de fome, estrada a fora, não tinha mais alguns anos de à frente da
vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz.
(QUEIROS, 1986, p 27)
Josias era um privilegiado, descansou das agruras da vida antes dos outros
miseráveis da família, provavelmente fadados ao mesmo destino: nascer, viver e
morrer como bicho.
Sob a ótica de Nelson Werneck Sodré, os anos decorrentes entre 1930 e
1935 tiveram “grandes criações literárias” às quais estavam imbuídas de
“imprescindível valor”, bem como de estudos sobre o Brasil cuja “variedade singular
de temas” estava ligada às questões políticas e sociais: “O tema político e social
figura como destaque, e as controvérsias surgem acaloradas [...] É a época da ficção
documentária e liberalista desvendando o terrível quadro da população abandonada
e explorada secularmente” (SODRÉ, 1987, p. 44-5).
No gênero musical, a temática do homem e suas relações com as
inclementes condições climáticas do Nordeste, também foram cantadas. Um dos
nomes de maior destaque é o cantor Luis Gonzaga; nas composições “Asa Branca”
(1947) e a Triste Partida, ele revela a angústia do homem que se vê obrigado a
705
deixar suas terras e muitas vezes, a família para ir “tentar a sorte’ em outras
paragens:
Como vemos, mais uma vez a seca é abordada na arte para retratar a vida
sertaneja assolada pela seca. A música de Luis Gonzaga é um misto de dor do eu
- lírico pela partida forçada de suas terras e também a esperança de que aquele
sofrimento é temporário. Em Asa Branca, o eu - lírico compara a terra seca e ardente
do Nordeste à fogueira de São João, mas resignado com a inevitável partida, só lhe
resta sonhar com o dia do regresso para sua “pátria”, o sertão:
Hoje longe muitas léguas
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra eu voltar pro meu sertão
706
As causas (desigualdade social/seca) nos direcionam à consequência
(morte). Os urubus que aparecem na parte de cima da tela, contrastando com o céu
sem nuvens e o chão com pequenas manchas brancas sugerindo ossos espalhados
pelo solo corroboram para entendermos que a iminente morte é um fato concreto
no futuro daquela família. Sendo assim, os elementos desigualdade social e fome
são contundentes para que na tela se perceba o horror de seres humanos
degradados a condição de mortos vivos. Esta sensação de deterioração humana,
sentida na tela, também pode ser notada nas outras obras supracitadas, sobretudo
em O Quinze. O cenário desumano transposto para a pintura lembra a
desafortunada família de Chico Bento sendo varrida pela seca e tragada pela morte:
[...] arquejando penosamente, estava um dos meninos de Chico Bento, o
Josias. O ventre lhe inchara como um balão. O rosto intumescera, os lábios
arroxeados e entreabertos deixavam passar um sopro cansado e angustioso
[...] A criança era só osso e pele: o relevo do ventre inchado formava quase
um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco de defunto,
empretecido e malcheiroso. (QUEIROS, 1986. p. 23-4)
707
constitui-se uma terra ignota divorciada do restante do país por muitos motivos que
são bem mais perniciosos que os fatores climáticos.
Fantasia Leiga para um rio Seco segue o modelo do poema épico e narra a
história de um retirante que depois de perder mulher e filho na “fome noventinha”
parte do sertão em direção à região denominada de mata-cipó. O poema narrado é
dividido em cinco cantos, a saber: a abertura intitulada “Incelença para a terra que
708
o sol matou”, 2º canto “tirana”, 3º canto “parcela” 4º cato “contradança” e 5º canto
“amarração”.
A obra apresenta todas as asperezas que o ser humano pode sofrer quando
privado da água, bem mais essencial à vida. Na abertura do poema já se tem o
canto fúnebre, “as incelença” para a terra.
Observem que o mesmo cenário que aparece nos versos acima, também
nos remete a imagens reproduzidas na tela de Candido Portinari, sobretudo “a
ossada branca/fulorano o chão” e a mobilização dos urubus de outros lugares que
serão convidados para o iminente banquete. Os únicos seres robustos naquele
cenário são estas aves. Elas são indícios de morte ou véspera de morte. O convite
para o manjar é feito pelo “passu- Rei, rei do manjá”, referência provável aos urubus
locais que diante de tanta morte, podem convidar outros companheiros, de regiões
mais longínquas, para se refestelarem também nas carcaças dos retirantes que
sucumbem no meio de suas jornadas.
Destrinchando as nuanças de Fantasia leiga para um seco é possível
perceber que o tom narrativo da obra estabelece um diálogo harmonioso com todas
as obras acima mencionadas que já abordaram da temática da seca. O próprio título
do álbum já dialoga com a retirada de Fabiano e a família que passam por um leito
de rio seco, conforme aparece na citação de Vidas Secas: “fazia horas que pisavam
a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés”. (RAMOS, 2009. p
03).
A religiosidade do sertanejo com seus ritos e mitos, apontada por Euclides
da Cunha como sinal de “fraqueza de consciência, também aparece no poema-
709
narrado. Obviamente, não com o mesmo posicionamento do autor de Os Sertões.
Quando Elomar Figueira Mello opta por inserir o ritual fúnebre na obra, ele
oportunamente resgata uma tradição secular que existe no sertão, a saber, o louvor
ao morto. Cantar o morto é a um só tempo lamentar sua partida e celebrar a sua
memória. Segundo a tradição popular nordestina, as “incelença” são lamentos
direcionados a quem ou está agonizando diante da morte, ou a alguém que acabou
de morrer.
Contrariando a tradição, no poema de Elomar Figueira Mello, o canto fúnebre,
é direcionado à terra aniquilada pelo sol que neste contexto se configura como um
implacável inimigo da mesma e de tudo que sobre ela está. Homens, vegetação e
animais, todos se tornam vítimas do carrasco astro:
O segundo canto por sua vez, narra a dor “tirana”, sentimento de perda e
saudade do lugar e das pessoas amadas. Neste canto, conhecemos a saga do
retirante que depois da morte da mulher e do filho sai sertão a fora ciente de que
sua sina é sucumbir perante a morte semelhante aos seus entes queridos. A
personagem é desprovida de esperança. Sabe que seu destino está fatalmente
traçado pela seca, uma vez que “todos qui fôro num voltaro tão nos ceus":
prú vai-num-torna
prá num voltá mais aqui
in terra istranha
e morrê longe do sertão
710
caminhada do sertanejo retirante, a debilidade física e moral de um sertanejo
“despatriado” do seu sertão é revelada apenas pelos sons eruditos que conseguem
revelar toda dramaticidade omitida em palavras neste canto. Somente no último
canto que sabemos que a sina do desafortunado retirante se cumpriu. Apesar de
esse último canto ter boa parte orquestrada, o refrão revela que o momento da morte
do retirante chegou. Ciente disso, ele se despede da vegetação do seu sertão:
Cadê os pé do imbuzêro
qui flora todo ano
nas baxada
e nas vereda
mana mia
cadê os pé d’imbu
meu mano
adeus pé dos imbuzêro
711
de mãos dadas que Elomar Figueira Mello dá vida as suas personagens, seja para
falar do sertão físico, seja para falar do sertão mítico.
REFERÊNCIAS
CUNHA, Euclides. Os Sertões. Campanha de Canudos. 3ª Edição São Paulo:
Editora Ediouro. 2009.
GONZAGA, Luiz. Triste Partida. 50 anos de Chão. Vol. 4. Disponível em:
http://letras.mus.br/luiz-gonzaga/82378/ (00h09min)
_________________. Asa Branca. gravadora RCA. 1989. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cWiJL0_yj9c (00h03min)
LIMA, Luiz Costa. A Construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1997.
MELLO. Elomar Figueira. Fantasia Leiga para um Rio Seco. Álbum/Disco vinil.
Orquestração e regência: Lindenbergue Cardoso. Direção de Produção: Carlos
Pitta. Edição: Fundação Cultural do Estado da Bahia. Gravadora do Rio Gavião,
1981. (46 min.)
_____________________. Porteira Oficial de Elomar. Disponível em:
http://www.elomar.com.br/index.html
PORTINARI, Cândido. Os Retirantes. 1942. 550x589cm. Disponível
em:https://www.google.com.br/search?q=portinari+os+retirantes&es_sm=93&tbm=i
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A%25. Acesso em: 15/04/2015 às 17h35min.
QUEIROZ, Raquel. O Quinze. 35º edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 107º edição. Rio de Janeiro. São Paulo: Record,
2009.
SODRÉ, Nelson Werneck. Literatura e História no Brasil Contemporâneo. Série
Revisão 28. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1987.
712
O LEITOR E O FANTÁSTICO EM A QUEDA DA CASA DE USHER:
LABIRÍNTICOS DE UMA NARRATIVA EM TRANSE
[...] não sou louco – e, com muita certeza não sonho... Talvez mais tarde
se encontre uma inteligência que reduza o meu fantasma ao estado de
lugar – comum – alguma inteligência mais calma, mais lógica e muito
menos excitável do que a minha, que não achará nas circunstâncias que
narro com terror senão uma comum sucessão de causas e efeitos muito
naturais.
EDGAR ALLAN POE
A literatura fantástica tem sido objeto de muitos estudos, por isso mesmo
chegar a uma definição do que ela seja é tão impreciso quanto à própria amplitude
do gênero. Estabelecer, portanto, uma relação limítrofe dos critérios que aproxima
um entendimento dessa literatura é experienciar o “jogo de representação”
construído pela projeção artística que a narrativa fantástica evidencia. Todorov
afirma que o “fantástico se define a partir do efeito de incerteza e da hesitação
provocada no leitor face a um acontecimento sobrenatural”. Edgar Allan Poe se
nutre dessa incerteza e hesitação quando dá forma a uma narrativa ambientada na
vaguidão e no impreciso, explorando o que de melhor o fantástico propõe: a “dupla
ruptura, o da ordem do cotidiano e a do sobrenatural”. (BESSIÉRE apud
CALASANS, 1988, p.27).
Dessa forma, ao considerar que para Edgar Allan Poe “escrever era compor”
a integralidade do efeito do conto de “A queda da Casa de Usher” vai além de um
plano de construção de uma mente inquieta como a de seu autor, cuja narrativa nos
seduzem não pela rede de intrigas, mas pelo silêncio fantasmagórico quando
percorridos pela ótica do narrador nas imagens lúgubres dos arredores da mansão
secular. Partindo desse pressuposto, as linhas de força da poética poeana tornam-
se indissociável os campos crítico-ficcional, uma vez que buscar os deslindes de
seu fazer poético tornar-se-á imprescindível uma aproximação de seu campo de
construção narrativa, uma vez que esta deve partir da intenção de obter certo efeito,
242 PUC-GO
713
para o qual o autor “inventará os incidentes, combinando-os da maneira que melhor
ajude a conseguir o efeito preconcebido” (POE, 1993, p. 72).
A narrativa ficcional abre suas primeiras páginas com o elemento fantástico,
onde logo de início Roderick Usher, opta por não enterrar o corpo da irmã e pede
ajuda ao seu amigo para manter o corpo de Madelene em um dos cômodos
subterrâneos da casa. Na sequencia o narrador começa a andar em círculo pelo
quarto estremecendo a cada rajada de vento da tempestade que principiava. De
repente ouve passos, era Usher que adentrava em seu quarto com uma lâmpada,
sua fisionomia sinistra era aterrorizante. Nesse instante o leitor percebe o
sentimento de angustia do narrador através da narrativa em meio aos
acontecimentos perturbadores produzidos por este.
Numa tentativa de acalma Roderick o narrador ler um de seus romances
preferidos intitulado Mad Trist, de Sir Launcelot Cunning243. Tem-se nessa iniciativa
uma interferência do autor ao leitor, por que lhe fornece subsídios intertextuais
suficientes a conduzi-lo ao deslinde da trama.
O fim da narrativa é uma evidencia desatenuante que lhe agrega as
características intrigantes da obra: a irmã de Usher que até então o leitor acreditava
estar morta, adentra na sala sinistra e sobrenatural; ela fixa o olhar no irmão
caminha em sua direção e atira-se sobre ele, que sucumbe num ataque fulminante.
Diante dessa dúbia realidade, o narrador desesperado foge da mansão e de longe,
ainda aturdido contempla-a ruir sob um forte estrondo, pondo fim a tudo e a todos.
Em “A queda da Casa de Usher244”, a relação de diálogo entre leitor e obra
ocorre de forma subjetiva e torna “inseparável a perspectiva da recepção da
1
Obra fictícia inventada pelo próprio Poe tão somente com o propósito de contribuir como um artifício narrativo
do conto em estudo.
2
Publicado em 1839, no Burton’s Gentleman’s Magazine com o título original Tales of the grotesque and
arabesque, foi revisada em 1840 para integrar o volume Histórias Extraordinárias. Segundo pesquisas,
“arabesco” apresenta duas definições: a primeira faz referência a uma elaborada combinação de formas
geométricas semelhantes às de animais e plantas. São elementos da arte islâmica, normalmente usados para
enfeitar as paredes das mesquitas. A segunda faz referência ao ato de rabiscar de forma pouco legível. C om
relação à obra de Edgar Allan Poe, o “grotesco” corresponderia às narrativas satíricas, e o “arabesco” às
narrativas de terror, que causam calafrios no leitor. A primeira definição de “arabesco” foi usada por Poe no
ensaio “Filosofia do mobiliário”, no qual discorre sobre arquitetura. Em sentido literário “arabesco”, significa
algo exótico e misterioso; no conto “A queda da casa de Usher”, foi usado para descrever a aparência do
aristocrata Roderick Usher.
714
perspectiva da produção”. Isto ocorre pela maneira como o leitor é conduzido a um
cenário místico e assombroso, produtor do medo e suspense, acentuando
sobremaneira a expectativa do produzindo uma interação dialógica da obra.
715
Usher, por exemplo, poderia parecer sobrenatural os elementos estéticos; a
ressurreição de Lady Madeleine, a queda da casa e a morte dos irmãos; no entanto
Poe explica de forma racional que tais acontecimentos são sugeridos. Já a segunda
origem mostra que os elementos que provocam a impressão de estranheza não
estão relacionados ao fantástico, mas ao que poderia desencadear uma
“experiência dos limites”, estando esta, portanto, dentro dos padrões da obra de
Edgar Allan Poe.
Assim sendo, é necessário notar que não só pelos temas que propôs como
pelas técnicas que elaborou Poe já se aproxima do fantástico, pois o “desenredo”
enigmático elaborado pelo autor provoca o sentimento de mistério e absurdo no
texto onde sua constituição faz-se primeiramente mediante uma alusão digressiva,
quando o narrador interrompe a narrativa para relembrar fatos reminiscentes à
infância ao lado de Usher e deixa claro ao leitor que pouco conhecia de seu amigo.
“Sua reserva sempre fora excessiva e constante”. (POE, 1965, p. 245). O narrador,
como melhor amigo de Usher, de alguma forma, lhe era distante, todavia
conhecedor de alguns acontecimentos importantes relacionados ao amigo.
Mencionar que “sabia” de outros fatos relacionados à família de seu amigo,
denota um “insight” ao leitor, que investido do papel de observador apenas espreita
a partir de sua percepção o desenrolar dos fatos. “Sabia, contudo, que sua família
das mais antigas, se tornara notada desde tempos imemoriais por uma particular
sensibilidade de temperamento, manifestando-se, através de longas eras” (POE,
1965, p.245).
O narrador, ao fazer menção aos acontecimentos dos antepassados de
Usher, induz o leitor, imprecisamente sobre outros episódios desencadeadores da
trama. Segundo Lúcia Santaella (1989), essa imprecisão em Poe ocorre pelo fato
de o contista não produzir enredos, mas “desenredos”, uma vez que o mesmo
propõe ao leitor um quebra-cabeça, um enigma para ser desvendado (p. 158).
Em outro momento, aguçando ainda mais o leitor, o narrador faz menção a
fatos decorrentes das enfermidades dos irmãos que poderão desencadear, ou não,
outras percepções do leitor a partir dos enigmas referidos estrategicamente no texto,
com o propósito de despertar o leitor para a revelação dos mesmos.
716
Eu conhecia também o fato, muito digno de nota, de que o tronco da família
Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer
época, um ramo duradouro; em outras palavras, a família inteira só se
perpetuava por descendência direta e assim permanecerá sempre, com
variações muito efêmeras e sem importância. Era essa deficiência,
pensava eu, enquanto a mente examinava a concordância perfeita do
aspecto da propriedade com o caráter exato de seus habitantes, e
enquanto especulava sobre a possível influência que aquela, no longo
decorrer dos séculos, poderia ter exercido sobre estes, era essa deficiência
talvez, de um ramo colateral, e a consequente transmissão em linha reta,
de pai a filho, do nome e do patrimônio, que afinal tanto identificaram
ambos. (POE, 1965, p. 245).
Devo morrer nesta loucura deplorável. Estarei perdido assim, assim e não
de outra maneira. Temo os acontecimentos do futuro, não por si mesmos,
mas por seus resultados. Estremeço ao pensar em algum incidente,
mesmo o mais trivial, que possa influir sobre essa intolerável agitação da
alma. Na verdade, não tenho horror ao perigo, exceto no seu efeito positivo:
o terror. Nessa situação enervante e lastimável, sinto que chegará, mais
cedo ou mais tarde, o período em que deverei abandonar, ao mesmo
tempo, a vida e a razão, em alguma luta com esse fantasma lúgubre: o
Medo. (POE, 1965, p.248).
Em face dos conflitos que assolam a alma de Roderick, seu temor aos
acontecimentos futuros dados às consequências de tais atos, quais seriam esses
acontecimentos e esses fatos? Ele já os premeditava? Tais indagações sinalizam a
curiosidade do narrador, que o vê como um ser enredado em sua própria inércia,
numa luta vã com seus próprios fantasmas.
717
Nesse momento Usher deixa entender ao narrador, por meio de frases
dispersas, outra característica peculiar de sua condição mental: é que o mesmo
estava preso a determinados atos supersticiosos com relação ao lugar em que
morava, do qual jamais se afastara, e alude acerca de uma influência dita
“tenebrosa” preferindo não a especificar, pois ela representa um sofrimento há muito
constituído, estando além da compreensão comum.
245
O palácio assombrado é composto por Edgar Allan Poe e publicado em abril de 1839 na revista Baltimore
Museum. No conto Roderick Usher também é poeta, o que pode ser compreendido como alter ego do autor
empírico. No limite da desrazão Usher declama o poema para o narrador ao som de uma guitarra, propiciando
fortes momentos na narrativa.
718
O fantástico se situa na experiência do leitor real, que deve ser a do medo,
da intensidade emocional provocada pela intriga. A atmosfera é a coisa
mais importante, pois o critério definitivo de autenticidade do fantástico não
é a estrutura da intriga, mas a criação de uma impressão específica. [...] o
conto fantástico não é julgado tanto em relação às intenções do autor e os
mecanismos da intriga, mas em função da intensidade emocional que ele
provoca [...] um conto é fantástico se o leitor experimenta um profundo
senso de pavor e o contato com potências e esferas desconhecidas
(LOVECRAFT, p. 18).
Por trás de cada escrito de Poe esconde-se a trama sutil (web-work, como
ele nos diz em “Usher”) de um narrador irônico que lá está a rir do leitor ou
para o leitor. Do leitor que ficou preso na armadilha do terror, enredado nas
suas teias, sem delas conseguir escapar, ou escapando por interpretações
mistificantes e fitichizantes de sua obra. Para o leitor que conseguir seguir
as pegadas do seu jogo, livrando-se do fetiche de uma leitura
contemplativa e de evasão, porque se lança ao desafio de decifrar os
719
meandros de um outro texto, formado por camadas subterrâneas e, ao
mesmo tempo, contidas de modo inverso na dimensão superficial do terror.
(SANTAELLA, 1987, p.188).
720
ponto central do método de Poe, qual seja, o de subordinar os incidentes à intenção
de obter um efeito único, ou seja, “o efeito obtido depende, em suma, de episódios
ou de atmosferas que escapam originariamente ao seu domínio” (Cortázar, 1993, p.
172).
A expressão “Que era”, exposta na citação acima reforça esse domínio
quando o narrador assegura o contato com o leitor ao despertá-lo por meio de suas
inquietações, conduzindo-o de certa forma através das impressões baseadas no
medo que a atmosfera da casa lhe provoca e que também são as do leitor, que a
princípio desconhece essas impressões construídas ao longo da narrativa e que
somados a outros acontecimentos conduzirão todo o deslinde da trama.
Desvendar o jogo do texto de Edgar Allan Poe requer um leitor atento, capaz
de inferir e mergulhar nas profundezas do outro, trazendo a lume o enigma
desvendado. Ao revelar o método de Poe, Cortázar (1993), diz que os incidentes
são subordinados à intenção de obter um efeito único e que tal prática se dá em
quase toda produção literária de Poe.
Assim, o conto “A queda da Casa de Usher” mais que um divisor de águas
traz as marcas de sua peculiaridade, a despeito daquilo que comumente almejam
manifestar no leitor. O texto é um quebra-cabeça e o que Poe quer do leitor é que
este decifre a trama.
A narrativa imputa características subjetivas, e testemunha os fatos a partir
do ponto de vista do narrador-testemunha, sem, contudo. deixar de influenciar a
interpretação do leitor, pois ainda que ao longo do texto sua visão seja um resultado
da visão do narrador não o impede de produzir sua própria interpretação. Ademais,
suas expectativas são constantemente mediadas pelas observações daquele que
assume claramente o papel de conhecedor e informante dos acontecimentos da
trama.
As expectativas produzidas pelo caráter espectral da obra são
constantemente sentidas quando sugerem a existência de forças psíquicas e
sobrenaturais capazes de despertar sentimentos e reações de terror, tanto pelo
narrador quanto pelo leitor. Esse horizonte de expectativas dos sujeitos agentes do
721
diálogo textual se completam inserindo-os no ambiente místico e misterioso do
conto como veremos.
Referências Bibliográficas
_____. Do conto breve e seus arredores. Valise de Cronópio. 2a ed. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
_____. Poe: o poeta, o narrador e o crítico. Valise de Cronópio. 2a ed. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
722
POE, Edgar Alan. A queda da casa de Usher. Ficção completa, poesia & ensaio.
Trad. Oscar Mendes. Rio de janeiro: Globo, 1987.
_____. Poemas e Ensaios. Traduzidos por Oscar Mendes e Milton Amado. 2ª ed.
Rio de Janeiro. Globo, 1987.
SANTAELLA, Lúcia. Edgar Allan Poe: o que em mim sonhou está pensando. In:
POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Tradução José Paulo
Paes. São Paulo: Circulo do livro, 1987.
723
CORPUS DE TEXTOS GRAMATICAIS DA LÍNGUA PORTUGUESA (CTGLP):
O COMPÊNDIO DA GRAMMATICA PHILOSOPHICA DA LINGUA
PORTUGUEZA DE ANTONIO DA COSTA DUARTE
Introdução
246 USP/CNPq
247 Mestrado/USP/CAPES
724
da literatura, bem como exemplos tomados da Grammatica Philosophica de Soares
Barbosa.
No que diz respeito às classes de palavras, Antonio da Costa Duarte refere-
se à cinco partes elementares da oração: nome substantivo, nome adjetivo, verbo,
preposição e conjunção. O gramático não considera a interjeição uma classe de
palavra porque esta, por si só, equivale a uma oração. Além disso, Costa Duarte
inclui o artigo, o pronome e o numeral na classe dos adjetivos. Quando à influência
exercida, essa obra inspirou gramáticas posteriores, como a Gramática elementar
da língua portuguesa, de Oliveira Conduru, cuja 1ª edição saiu dos prelos, no
Maranhão, em 1840.
Apresentamos a seguir uma ficha que será publicada em francês, no site
CTLF (Corpus de textes linguistiques fondamentaux), integrando uma base de
registros que descreve as principais obras de gramáticos e linguístas, da
antiguidade ao século XX. Na ficha aqui apresentada, inserimos informações que
dizem respeito à obra do padre diocesano Antonio da Costa Duarte, Compendio da
grammatica philosophica da lingua portugueza, publicada em 1877.
Ficha descritiva da obra
http://www.cultura.ma.gov.br/portal/bpbl/acervodigital/Main.ph
p?MagID=37&MagNo=126
Biografia do
Nasceu na capitania, depois província do Maranhão, no final do
autor século XVIII. Foi presbítero do hábito de São Pedro, lente de
725
gramática filosófica da língua portuguesa e análise dos
clássicos e escreveu o Compendio da Grammatica Portugueza
(1829) para uso das escolas de primeiras letras, ordenado,
segundo a doutrina dos melhores gramáticos, oferecido ao
presidente da província do Maranhão, Candido José de Araújo
Vianna e o Compendio da Grammatica Philosophica da Lingua
Portugueza (1840), escolhida pela congregação do liceu do
Maranhão para uso do mesmo liceu. (Blake, 1883)
Volumetria 1ª ed. 98 páginas mais uma folha sem número com parte do
índice e a errata.
19 x 12 cm
1962 caracteres por página
6ª ed. 146 páginas mais uma folha do índice sem número.
1536 caracteres por página
726
Seis edições
Edições e
difusão
Língua(s) Português
alvo(s)
Metalinguage Português
m
727
Objetivos do Ensino do idioma nas escolas de primeiras letras.
autor
Indicações
O Compendio de grammatica da lingua portugueza teve seis
complementar
edições. A partir da segunda edição, a gramática é intitulada de
es
“philosophica”, fazendo alusão a uma de suas mais importantes
fontes: a Grammatica philosophica da lingua portugueza ou
principios de grammatica geral applicados a nossa linguagem
de Jerônimo Soares Barbosa, 1822.
Referências
bibliográficas ARAÚJO, Antônio Martins de. A linguística portuguesa e o
grupo maranhense. In: Revista da Academia Brasileira de
728
Filologia. II (II). ISSN 1676-1545, Rio de Janeiro, 2003.
Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/2/012.pdf
Considerações finais
729
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Antônio Martins de. A linguística portuguesa e o grupo maranhense. In:
Revista da Academia Brasileira de Filologia. II (II). ISSN 1676-1545, Rio de Janeiro,
2003. Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/2/012.pdf
_______. As concepções linguísticas das duas primeiras gramáticas maranhenses.
In: Revista da Academia Brasileira de Filologia. III (III). ISSN 1676-1545, Rio de
Janeiro, 2004-2005.
Disponível em http://www.filologia.org.br/abf/rabf/3/026.pdf
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brazileiro.
vol. 1. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883. Disponível em
https://archive.org/stream/diccionariobibl02blakgoog#page/n168/mode/2up
730
DUAS FORÇAS (IN)CONGRUENTES: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER E O
DIREITO A PALAVRA EM MENINAS, DE MARIA TERESA HORTA
Mauro Dunder248
Nicole Guim de Oliveira249
Introdução
248 Professor Assistente do curso de Letras das Faculdades Metropolitanas Unidas. Doutor em Letras
(Literatura Portuguesa) pela USP; membro do Grupo de Pesquisa “Literatura Portuguesa de Autoria Feminina”
(USP/CNPq).
249 Mestranda em Letras (Literatura Portuguesa) pela USP; membro do Grupo de Pesquisa “Literatura
731
As palavras são responsáveis pela construção da realidade e pelos diferentes
modos como podemos enxergá-la e subvertê-la. No livro Meninas, como em grande
parte da obra de Maria Teresa Horta, deparamo-nos com um tópico constante: o
direito das mulheres à palavra num contexto de violência a que estão sujeitas a todo
momento.
A figura da mulher é frequente objeto do discurso masculino dominante. Esse
discurso implica delimitação de papéis, principalmente os que se consideram, via
de regra, femininos, que buscam aprisionar as mulheres em categorias estanques
e limitadas. “E a menina entra para dentro de cada palavra e existe mesmo antes
de nascer [...]” (Idem). Como sugerem as palavras de Maria Teresa Horta, a vivência
feminina é territorializada pelo sistema patriarcal antes que a mulher, como sujeito,
tenha entendimento sobre si e sobre suas inúmeras possibilidades de existência.
Em condição de objeto do discurso dominante, o qual carrega, muito mais do que
representação imagética, uma teia de conceitos e pressupostos comportamentais,
as palavras tornam-se jaulas e grades que condenam as mulheres à subalternidade.
“No início ela chorara muito. Ainda na barriga da mãe, porque isso é dado a
acontecer a quem como ela comporta a diversidade, a diferença; voraz, desacertada
no mundo que a pretenderá mudar, a sufocará e a acanhará tanto, que por vezes
parece querer tirar-lhe o ar do peitinho liso, de tão justa que a vida lhe fica.”. Para a
mulher, desde antes do nascimento, estar em posição de alteridade com relação ao
eixo central do patriarcado torna-se confronto. É estar sufocada por palavras não
ditas, guardadas para dentro, e imersa num universo de palavras limitadoras
impostas para si sem o seu consentimento.
Em primeira instância, a violência e silenciamento aos quais as mulheres
estão sujeitas no sistema patriarcal passam pelo corpo e pela sexualidade. Carole
S. Vance, em seu texto “El placer y el peligro: hacia una política de la sexualidad”
(1989), considera que a sexualidade feminina é, no contexto da vida em uma
sociedade em que comportamento e conjunto de valores são pautados pelo
masculino, uma esfera constantemente colocada entre o prazer e o perigo, visto que
na sociedade patriarcal a mulher não tem direito ao próprio corpo sem que esse fato
desencadeie uma condição de violência. O corpo feminino, para não ser violentado,
732
deveria seguir determinadas regras sociais, que não correspondem
necessariamente aos desejos da maioria das mulheres. No universo mapeado em
Meninas, essa questão torna-se crucial, especialmente no que tange à dinâmica das
palavras, como matéria e como objeto da representação literária; afinal, estereótipos
sociais são exatamente palavras que aprisionam a figura feminina e criam sentidos
estanques para uma existência que se deseja fluida e divergente do discurso
dominante.
“Depois das palavras vêm as palavras, os nomes, as expressões lídimas, a
dar forma e sentido a tudo, âmago, interioridade.” Nesse sentido, a condição da
mulher na ficção de Maria Teresa Horta consubstancia, ao mesmo tempo,
representação e instrumento de combate. Nela, não só a existência feminina
pretende ser oposta ao discurso que lhe é imposto, como também são opostas as
palavras que dão sentido a tudo, “pois, mesmo sendo proibida a árvore do
conhecimento, ela comeu o seu fruto, aquele que lhe dá a entender a sua condição”.
Apropriar-se da palavra, na obra de Horta, geralmente é um ato associado
não apenas ao direito que o sujeito feminino tem sobre si próprio. É também dar voz
a uma perspectiva que por tanto tempo ficou silenciada e apagada da História,
espaço quase que exclusivamente masculino. Nesse sentido, o conjunto de
narrativas de Meninas corresponde perfeitamente à ideia fundamental do conceito
de metaficção historiográfica, como o formulam Linda Hutcheon e Bella Josef: como
toda narrativa, a História constitui apenas uma possibilidade de narrar;
tradicionalmente, essa visão é pautada pela visão dominante do ponto de vista
masculino. À mulher resta a janela, "os cortinados", espaço de marginalização e
confinamento. Essa posição, porém, não a impede de reescrever a história a partir
de sua perspectiva e de sua condição: nesse sentido, em grande parte da literatura
de autoria feminina, a escrita ganha espaço quando a fala é silenciada.
É no universo literário que se criarão as linhas de fuga que ultrapassam o
limite imposto pelo sistema à existência e à voz da mulher. Por ser suscetível a - e
viabilizador de - transformações no ponto de vista pelo qual uma narrativa se
constitui, é a narrativa de ficção terreno fértil para o desafio da narrativa unilateral e
dominante - nesse caso, a voz feminina que se abriga na ficção literária contrapõe-
733
se ao oficial discurso sócio-histórico. Nas palavras da narradora de Maria Teresa
Horta, "Depois das palavras vêm as palavras dos versos, dos poemas, o universo
da escrita onde a menina se acoita, sabendo seu lugar de salvação e descobrindo
seu assombro."
Referências Bibliográficas
HORTA, Maria Teresa. Meninas. Lisboa: Leya, 2014.
VANCE, Carole. “El placer y el peligro: hacia una política de la sexualidad”. In Placer
y peligro. Madrid: Hablan las mujeres, 1989.
734
O SOM COMO IMAGEM:
A ORALIDADE COMO INSTRUMENTO PARA SE REFLETIR OS SENTIDOS
CONSTITUÍDOS PELA MEMÓRIA CULTURAL
Mirtes de Moraes250
Introdução
250
Doutora em História Social pela PUC-SP. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) do
Centro de Comunicação e Letras (CCL) nos cursos de Publicidade e Propaganda e Jornalismo.
735
procurando deste modo resgatar a tensão marcada pelo sentido transformativo da
cidade de São Paulo do começo do século XX.
Partindo ainda da ideia das sonoridades criativas o trabalho pretende também
transitar por uma forma de mensagem musicada, conhecida como jingle em que a
partir da memorização de um refrão simples a música e consequentemente o
produto é facilmente lembrado.
“O tempo passa, o tempo voa...”
Quem nasceu na década de 70, com certeza já ouviu o jingle acima e de
forma imediata é possível acrescentar sem que o uso da razão interfira ...“e a
poupança Bamerindus continua numa boa ...” 251 Passaram aproximadamente
quarenta anos e quando essa música é cantada sua letra é automaticamente
rememorada conectando por sua vez na imagem. O som dá forma ao objeto. Nesse
caso, a um serviço.
É com essa definição que o jingle trouxe sua mensagem publicitária de forma
musicada em que a base de sua elaboração se dá através de um refrão simples, de
curta duração, que é lembrado com facilidade.
Coloca-se dessa forma, um dispositivo usado através da linguagem e
sonorização que ganha representação imagética sem na verdade ter a presença da
imagem em si. Esse instrumento usado como forma de propaganda acompanhou a
entrada do rádio como veículo de comunicação social, aparelho que conduzia suas
mensagens por meio das sonoridades.
Na década de 30, Ademar Casé, precursor do rádio, criou o Programa Casé,
programa de variedades veiculou o primeiro jingle no Brasil anunciando a padaria
Bragança:
Oh, padeiro desta rua, tenha sempre na lembrança, não me traga outro
pão que não seja o pão Bragança;
Pão inimigo da fome. Fome inimiga do pão, enquanto os dois não se
matam, a gente não fica na mão;
251
O jingle fora criado originalmente para o banco no início da década de 1970, com letra de Teresa Souza e
música de Walter Santos, foi resgatado vinte anos depois para a interpretação do grupo “Os três do Rio”.
736
De noite, quando me deito e faço a oração, peço com todo o respeito
que nunca me falte o pão.
737
escovar os dentes) todas essas situações são verbalizadas por uma voz infantil que
traduz a necessidade de um acolhimento e ao mesmo tempo a satisfação de ter sido
protegida. A figura da mãe assume essa função através do cuidado e o carinho em
preparar o café. Lembrar momentos da infância se atrela a construção do processo
da memória social e isso pode ser acompanhado a uma forma de disseminação da
letra. Na década de setenta e oitenta o café seleto tornou-se hino das excursões de
ônibus da escola disseminando nas vozes a produção da imagem.
Sonoridades urbanas
A letra e a melodia entram num processo de rememoração, assim, tendo
como referência a oralidade como instrumento para se refletir os sentidos
constituídos pela memória cultural pode-se pensar a figura sonora do pregoeiro,
trabalhadores urbanos, que pela maneira ritmada anunciavam seus produtos nas
ruas
Survetinho, survetón,
Survetinho de limón
Quem não tem o dez tostão
Não toma sorvete não.
Sorvete Iaiá
(Lembranças do Sr. Abel – BOSI, 2010; p.131)
738
oficial, assim os barulhos provocados por vendedores com as falas musicadas,
ritmadas e engraçadas, assim como assobios, buzinas, apitos, gaitas, sinos entre
outros objetos que pudessem emitir sons, mostram o cotidiano urbano em ritmo
transformativo.
Às 6 horas da manhã bateu à porta seu José leiteiro. Tazia às costas a lata
de leite das vacas do estábulo. Vinham também duas vacas e dois
bezerros. Narcisa trouxe de dentro o copo de vidro graduado e o caldeirão.
Seu José fez o bezerro chupar a teta da vaca, e se pôs a mondá-lo,
jorrando o leite no copo graduado. Encheu o litro e despejou no caldeirão.
(AMERICANO,1957:p.111)
252Segundo a definição do dicionário Houaiss pregoeiro, s.m. é o que divulga alguma coisa, o que lança em
pregão, origina-se do verbo apregoar que se traduz em: divulgar alguma coisa dizer em alta voz, alardear.
739
Ó pizzaiolo , é cávora! Alitche e pomarola! (PENTEADO, 2003; p.208)
740
Para tanto buscou uma documentação pautada nos relatos registrados pelos
memorialistas, um material sonoro, e que por meio dele fosse realizado um estudo
dos processos históricos envolvendo a oralidade e memória.
Em 1927, o escritor Antônio de Alcântara Machado retrata conversas
centradas em acontecimentos miúdos da vida diária contadas no salão de barbearia
de Nicolino e do Sr. Salvador – “Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 réis. Cabelo:
600 réis. Serviço Garantido:
- Bom dia!
Nicolino Fior d’Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando
outro branco, se sentando no fundo à espera dos fregueses. Sem dar confiança.
Também seu Salvador nem ligou.
A navalha ia e vinha no couro esticado.
- São Paulo corre hoje! É o cem contos!
O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.
- Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado
o crime de ontem, Salvador? Banditismo indecente.
- Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.
- Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanhã
está solto. Privação de sentidos. Júri indecente, meu Deus do céu! Salvador,
Salvador... – cuidado aí que tem uma espinha – este país está perdido!
- Todos dizem.
Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza
(MACHADO,2001)
741
També si non fosse os intaliano non teria né u larghe Du Arrusá, né o Bó Retiro, né
as cumpaniadioperette do Vitale e né o Bertini Che també é u
miglioreingraziatoditutto o mundo interinho.
També o “garadura” furo os intalianocheindiscobriro (garadura, bonde elétrico)
Eh! Mache si pensa cheZanBaolo furo tuttavita como oggi? Stómoltosinganatus si
signore!
Primiere, quanominho avó xigó que inzima o Brasile só tenia a ladere do
Abaix’oPigues, o larghe Du Arrusá e o barro da Liberdá.
A Villa Buarca, a Barafunda, o Bó retiro stavotuttocopertoc’aomattavirgia [mata
virgem]. També a Luiz e també a Bixiga.
D’Abaix’o a ponte do viadutto era tutto gapino e teniamoltospassarignocheio Ivã
tuttosdidi magna cidignomatácostilingo. (Revista O Pirralho, 20/04/1912) 253
Assim pode-se perceber que sua escrita estava pautada na tentativa de imitar
a oralidade que ouvia dos italianos das ruas. Nota-se também como o cronista está
registrando processos transformativos da cidade de São Paulo, dessa forma sua
narrativa recorre ao tempo vivido, o tempo subjetivo da memória que entra em
tensão com um novo tempo, o tempo das novas tecnologias, dos monumentos
históricos, dos lugares da memória (NORA, 1993).
Juó Bananére mostra de forma singular a sonoridade seja ela marcada pela
sua caricatura verbal representada na mistura do idioma ítalo-brasileiro, mas
também se articula com os barulhos da cidade que se misturam entre os pregoeiros
na cidade.
Assim é possível perceber que a inspiração de JuóBananére estava nas ruas,
as falas urbanas sinalizam uma grande quantidade de trabalhadores ambulantes
que anunciavam e vendiam vários tipos de produtos nas ruas, tratam-se das
sonoridades urbanas popularmente conhecidos como pregões.
Percebe-se que o processo transformativo de cidade interage com os seus
movimentos e sons, por meio de relatos memorialistas é possível dar vozes a esses
personagens da história que muitas vezes ficaram marginalizados pela história
253 Eh! Nossa Senhora! Se não fossem os italianos, que esperança, não teria nenhuma casa chique como aquela
que fez agora o coronel na rua...
Também se não fossem os italianos não teria nem o Largo do Arouche, nem o Bom Retiro, nem as companhias
de ópera do Vitale e nem o Bertini que também é o melhor de todo o mundo. Também o bonde foram os
italianos que descobriram. Mas quem pensa que São Paulo sempre foi tudo como é hoje? Estão tudo enganados,
sim senhor! Primeiro quando minha vó chegou ao Brasil só tinha a ladeira do Piques, o largo do Arouche e o
bairro da Liberdade.
A Vila Buarque, a Barra Funda, o Bom Retiro, estavam cobertos pela mata virgem. Também a Luz e também o
Bexiga. Debaixo da ponte do viaduto era tudo capim e tinha muitos passarinhos que eu ia dar o que comer
cedinho e matá-los com estilingue.
742
oficial, assim os barulhos provocados por vendedores com a falas musicadas,
ritmadas e engraçadas, assim como assobios, buzinas, apitos, gaitas, sinos entre
outros objetos que pudessem emitir sons, mostram o cotidiano urbano em ritmo
transformativo.
Considerações Finais
Desta forma, esse artigo se objetivou a analisar expressões orais marcadas
pelas sonoridades, estabelecendo assim uma interface com a memória social.
Percebe-se que ao mesmo tempo em que a letra do jingle aparece de fácil
memorização por parte do ouvinte há também a participação do mesmo para
acompanhar a melodia ritmada promovendo desta forma uma maior assimilação da
letra e consequentemente a lembrança tanto da música como do produto.
Segundo o pesquisador da canção brasileira Luiz Tatit (1999), a regularidade
rítmica e melódica favorece o aparecimento de peças musicais que privilegiam o
refrão e os temas recorrentes. O refrão, elemento básico da canção popular
massiva, pode ser definido como um modelo melódico ou rítmico de fácil assimilação
que tem como objetivo principal sua memorização por parte do ouvinte e a
participação do receptor no ato de audição, sendo repetido várias vezes ao longo
da canção. Nesse ponto, é possível, por exemplo, perceber uma articulação entre
as estratégias técnicas, mercadológicas e plásticas do formato canção, uma vez que
a repetição ligada à memorização está conectada à circulação da música.
Do mesmo modo pode-se observar através da linguagem musicalizada dos
pregoeiros uma tentativa de associar o som ao vendedor, e por sua vez, o vendedor
ao produto a ser comercializado. Embora o trajeto aqui apresentado tenha tido esse
itinerário, não se pode esquecer que juntamente a esse percurso está a construção
e a formação da memória social.
Nos dias atuais, as mudanças são cada vez mais velozes dificultando desta
forma a cristalização do tempo. A melodia que enlaça a oralidade trabalha com um
processo de memorização em que é possível regressar a um tempo passado
através das sonoridades que são recordadas por meio dos registros sonoros,
contribuindo desta forma para a construção da memória cultural.
743
Referências Bibliográficas
AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). São Paulo: Carrenho
Editorial.2004.
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Nicolau Lescov. Textos escolhidos, São Paulo: Abril Cultural, 1975.
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BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2013.
BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1994.
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744
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745
DE ROUSSEAU A DRUMMOND: A BUSCA DA EXPRESSÃO DO EU
Introdução
Octavio Paz, em O arco e a lira (1956), define a poesia como uma operação
hábil a modificar o mundo. E Paz não termina por aí: discorre sobre poesia e sua
finalidade de criar outro mundo. Nessa perspectiva, intenta-se desenvolver, no
presente artigo, a pertinência do trabalho poético na arquitetura da personalidade
do filósofo de Genebra, Jean-Jacques Rousseau, especialmente, em sua derradeira
obra autobiográfica Les rêveries du promeneur solitaire (1782), bem como apontar
a função poética em sua vida social e em sua obra. Além disso, pretende-se
aproximar Carlos Drummond de Andrade ao precursor da modernidade, a fim de
obter uma visão singular da poesia moderna, sustentada a partir da interioridade e
da filosofia. É evidente que os textos de Rousseau se apresentam em discursos
filósofos, todavia, essa última obra rompe com os modelos clássicos vigentes e se
constrói em prosa poética.
Rousseau não é apenas o “pai da modernidade”, mas o fundador de uma
forma muito particular e inédita de imbricar prosa e poesia. Les rêveries du
promeneur solitaire, o último volume constituinte da trilogia autobiográfica do filósofo
iluminista, que compreende: Les confessions, Les dialogues, ou Rousseau juge de
Jean-Jacques e Les rêveries du promeneur solitaire, foi publicado postumamente,
em 1782, tendo em vista sua morte em Ermenonville (1778). Carlos Drummond de
Andrade, poeta moderno, a princípio parece distanciar-se de Jean-Jacques
Rousseau, porém o interesse de ambos em voltar à poesia sobre si, interrogando-
se como ser e como fazer, os aproxima e os define enquanto modernos.
254 Doutoranda em Estudos Literários. UNESP – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e
Letras – Pós-graduação em Estudos Literários. Araraquara- SP – Brasil. Bolsista do CNPQ.
746
Poesia e reflexão
747
mesmo, da infinitude da reflexão de origem romântica. (ARRIGUCCI JR,
2002, p.65).
748
desconcerto da psique, isto é, esse empecilho que incidiu na essência de
Drummond. Aqui, Drummond associa-se novamente a Rousseau, no que diz
respeito à ideia de caminhante solitário. Tanto um quanto o outro se deparam com
um contratempo que executa impulsivas modificações em suas condutas. “A pedra
é o que move o poeta à reflexão e à procura da poesia, que ela, entretanto, barra,
obrigando-o ao círculo infernal da busca sem fim, a retornar indefinidamente”.
(ARRIGUCCI JR, 2002, p.73).
O modo como Drummond tece sua poesia faz pensar na própria sensibilidade
do poeta. A dificuldade encontrada por ele em avançar devido à pedra no meio do
caminho nada mais é que o seu impedimento, a sua fraqueza face aos obstáculos
rotineiros. As palavras repetidas reforçam essa impassibilidade do escritor diante
das indagações metafísicas. Sentimento e reflexão, projetos da escola romântica,
são retomados por Carlos Drummond de Andrade em suas poesias que têm o Eu
como ideal de criação.
Vale ressaltar que não só o poemeto “No meio do caminho” segue a linha
romântica reflexiva: o “Poema de sete faces”, que abre o volume Alguma poesia
(1930), possui importância singular nesse veio de interpretação da poesia
drummondiana. Dediquemo-nos a ele:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem nas sombras
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
749
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo. (DRUMMOND, 2013, p.11)
Na verdade, o coração é lugar da falta (da “falta que ama”, a que o poeta
vai aludir muito mais tarde), pois se abre para o espaço da desmesura, da
infinitude, o sem-fim do sentimento, onde a linguagem (a poesia),
reconhecendo-se pela reflexão, dá com o seu limite.
750
estabelecido pelo sentimento, tema subjacente a todas as estrofes do poema.
Embora, a unidade do poema tenha sido construída em níveis antinômicos e a
poesia se aproxima do movimento modernista, porque se expressa em linguagem
coloquial, e não segue os preceitos clássicos de estilo, no desconexo e no diferente,
vemos um Drummond buscando a integração de si: “Sob a face vistosa das
variações, subjaz ainda algum desejo de uniformidade ou ordenação”. (ARRIGUCCI
JR, 2002, p.39).
Considerações finais
No decorrer deste artigo pretendeu-se refletir a possível ligação entre o
filósofo do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau, e o poeta modernista, Carlos
Drummond de Andrade. O entrelaçamento de Drummond ao Romantismo permitiu
associá-lo a Rousseau. Boa parte dos conflitos específicos da poesia
drummondiana é compreendida pela herança romântica perceptível em sua obra. A
dificuldade encontrada por Drummond, de transpor em palavras aquilo que é
peculiar ao coração, foi a mesma enfrentada por Rousseau no processo de escritura
das Rêveries: obra em que conjuga emoções e sentimentos, ao discurso filosófico
e racional do “Século das Luzes”. Com isso, a poesia, apesar de exteriorizar o
impulso interno, preocupa-se em representar o universal, aquilo que é sui generis
ao homem.
Sendo assim, o Eu cresce com a linguagem e a poesia na inconstante busca
de si reflete a procura dos autores de si próprios. O Eu coloca-se em reflexão sob a
escolha de palavras que possam exprimir seus quereres. Além do mais, observa-se
a necessidade de ambos os escritores em evidenciar a maldição que recai sobre
eles, basta lembrar que Rousseau nas Confissões (1782/1789) culpa-se por ter
custado à vida a sua mãe, já que ela teria falecido em seu parto e Drummond, de
maneira semelhante, afirma que seu nascimento teria sido anunciado por um “anjo
torto”.
Enfim, tudo isso nos pareceu pertinente para efetivar o enlace entre
Rousseau e Drummond, importantes articuladores do fazer poético. Coube à poesia,
primeira manifestação humana da linguagem, expressar esses momentos reflexivos
751
dos poetas, desconcertados frente ao mundo. O ideal romântico, mais uma vez,
contrapunha-se a realidade impetuosa. A saída era fazer da palavra o lugar de
mediação entre o ser e o querer ser.
Referências Bibliográficas
752
CONVERSA COM FERNANDO PESSOA, DE CARLOS FELIPE MOISÉS: O
POETA NO ENSINO MÉDIO
753
relativismo seriam os vetores do seu “pensamento” (MOISÉS, 2001,
pp.272-273).
754
pondo em xeque, uma a uma, as aparentes verdades e valores em que se
apoia a civilização que ainda é, substancialmente, a nossa. Dessa postura
brota uma poesia intelectualizada, cética e relativista, mas vazada em
linguagem clara, direta, repleta de paradoxos; uma poesia que nos induz a
pensar e a duvidar, ajudando-nos a conhecer melhor a nós mesmos e ao
mundo em que vivemos; uma poesia que abre caminhos insuspeitados,
oferecidos ao anseio comum de avaliar os limites da condição humana e
encontrar um sentido firme para a existência, tão mais digna quanto mais
lúcida e consciente (MOISÉS, 2001, p. 264).
755
A obra de Felipe Moisés foi elaborada para dialogar com o jovem leitor. O
autor cria um narrador-personagem, Marcos Siqueira, que acabou de ganhar o
primeiro lugar de um prêmio sobre uma pesquisa a respeito da vida e obra de
Fernando Pessoa. O prêmio a ser recebido é o direito de entrevistar o poeta! Sim, é
isso mesmo. O leitor de Fernando Pessoa sabe que isso seria impossível, já que
Pessoa morreu em 1935, portanto, a história do prêmio, que parece real, num
primeiro momento, já é ficção e essa artimanha, a nosso ver, é uma proximidade
primeira entre as poesias de Pessoa, que serão apresentadas na sequência da
obra, e o jovem leitor pouco afeito, na maioria das vezes, ao conteúdo dessas
poesias.
Marcos Siqueira, logo no primeiro parágrafo do texto, se aproxima do leitor
por sua linguagem descontraída e jovem. Vejamos: “A gente passou quase o ano
inteiro em cima do Fernando Pessoa, todo mundo aprendeu e curtiu pra caramba e
ninguém tem dúvida: valeu a pena demais! (Já sei: ‘Tudo vale a pena, se a alma
não é pequena’, certo?)” (MOISÉS, 2007, p.11). Um ano estudando a poesia de
Pessoa é uma proposta muito interessante e é o resultado disso, através de um bate
papo bastante descontraído com o poeta das múltiplas faces, que o jovem leitor
encontrará nas páginas que seguem da obra de Felipe Moisés. Se o jovem acha a
poesia de Pessoa difícil (e acha mesmo, pois ela é difícil inclusive para os adultos,
conforme lembrará o próprio Moisés ao final da obra, na parte “Ao Leitor” 257), Marcos
Siqueira também acha, entretanto vê nessa dificuldade um desafio que o levará ao
prazer de compreender um pouco mais a arte do poeta:
257
“Fernando Pessoa é um poeta difícil e complicado? É, não vou negar... Principalmente o Ricardo Reis e a
Mensagem... E isso não quer dizer que as outras partes da obra sejam fáceis, não é mesmo? Então, confirmo:
Pessoa é um poeta difícil. Mas, se não fosse assim, alguém estaria interessado nele a vida toda, como tantos
críticos e leitores? Além disso, qual poeta (bom poeta, quero dizer) não é pelo menos um pouco difícil? “
(MOISÉS, 2007, p. 180)
756
Cheguei a uma conclusão: se ler e entender poesia fosse fácil, não ia ter
graça nenhuma. Entender alguma coisa, depois ir aprofundando aos
poucos, foi um tremendo desafio. Eu gosto de desafio e, na turma, quem
não gostava passou a gostar. Pode crer, é um barato! (MOISÉS, 2007,
p.10, grifos nossos).
757
através do bate-papo que Siqueira trava com o poeta na tão esperada entrevista
que o rapaz recebeu como prêmio. Essa entrevista está dividida em capítulos que
dão conta das ideias gerais do poeta, sua vida, a origem de seus heterônimos
(“Navegar é preciso; viver não é preciso”); a seguir, capítulos dessa entrevista para
cada um dos três mais famosos heterônimos, incluindo o ortônimo Fernando Pessoa
como uma espécie de heterônimo de si mesmo (“Poemas de Alberto Caeiro”,
“Poemas de Ricardo Reis”, “Poemas de Fernando Pessoa Ele-mesmo”, “Poemas
de Álvaro de Campos”). Nesses capítulos temos, primeiro, a apresentação de uma
coletânea, sempre muito ricamente escolhida, de poesias dos heterônimos (e
apresentar o texto literário antes de qualquer crítica é sempre muito bem-vindo) e,
na sequência, a entrevista com o poeta a respeito da concepção das ideias
existentes nas figuras de cada heterônimo. Posterior a esses capítulos,
encontramos um segundo recado do narrador Marcos Siqueira (o primeiro abre o
livro, conforme já salientamos anteriormente) a respeito da obra Mensagem:
compreendê-la requer um esforço bastante grande e são necessárias, de acordo
com a entrevista à frente dada por Pessoa, apreender três condições previamente
apresentadas por Siqueira.
Esse “aviso” evita, por exemplo, o “desconcerto” que a obra Mensagem gera
em um leitor pouco afeito à poesia. Não advogamos aqui que devemos ler qualquer
obra seguindo a “dicas”, apenas acreditamos que o texto de Moisés pode contribuir
para termos leitores, jovens, apaixonados pelos textos de Fernando Pessoa.
Finalmente, entramos em “Poemas de Mensagem” e na última parte da entrevista
que finaliza a obra.
Acreditamos que essa obra possa ser oferecida a alunos de Ensino Médio ou
ainda a alunos dos últimos anos do Fundamental, dependerá da proposta a ser
elaborada pelo professor e da maturidade da turma de alunos. Também pensamos
que a obra poderá servir de desfrute para o professor que quer conhecer melhor
Fernando Pessoa e que vai utilizá-la para montar projeto semelhante ao da trajetória
da professora de Marcos Siqueira ao propor um trabalho inicial de pesquisa aos
alunos a respeito do homem e do poeta Pessoa. Assim, os próprios alunos é que
descobrirão de quem se trata tal figura literária. Essa é uma possibilidade que o
758
professor tem de explorar o livro sem que os alunos o tenham, se houver, por
exemplo, dificuldades financeiras para que a sala toda adquira a obra.
Caso essa dificuldade não exista, ou seja, os alunos todos possam adquirir a
obra, o professor pode elaborar uma proposta que contemple a leitura do texto de
Moisés por etapas, ou seja, por heterônimo, detendo-se em cada um dos capítulos
específicos e esmiuçando a discussão oferecida pelo próprio Pessoa criado por
Moisés. Na verdade, na entrevista, o bate-papo entre Siqueira e Pessoa, o leitor
encontra a linguagem descontraída do jovem e suas sinceridades quando acha
muito difícil entender as ideias do poeta ao lado da linguagem mais reservada e
polida de um Pessoa sorumbático e ensimesmado. Felipe Moisés tem o cuidado de
manter as características de Pessoa na criação da personagem entrevistada
Fernando Pessoa. Fazemos questão de reproduzir aqui, trecho exemplificativo:
Pessoa pertence a uma categoria intermédia entre a dos jovens loucos que
queimam a vida (Kleist, Mozart, Rimbaud, Van Gogh) e a dos velhos sábios
que destilam a sua gota a gota, para recolher a essência do tempo
(Voltaire, Goethe). (BRÉCHON, 1999, p. 20)
759
Portugal e dos seus reis, as Grandes navegações, as origens de Lisboa), Geografia
(o espaço geográfico de Lisboa, a política portuguesa na época das grandes
navegações, as rotas marítimas, a política portuguesa no início do século XX, a
ditadura de Salazar, o Quinto Império), Matemática e Física (os instrumentos usados
nas navegações e as medidas), isso se pensarmos apenas na parte que discute
Mensagem, porque para as outras partes as discussões são infinitas e a literatura
funcionaria verdadeiramente como o “carro-chefe” de um projeto transdisciplinar,
cuja problemática-eixo poderia ser a complexidade do ser humano irradiada a partir
da obra poética de Fernando Pessoa.
Assim sendo, acreditamos que, independentemente de a obra de Moisés ser
utilizada apenas pelo professor ou pela turma toda de alunos, os resultados
advindos de sua leitura e posterior atividade será bastante enriquecedora tanto para
o professor como para os alunos. A chance de um aluno se sentir mais à vontade
com a obra de Pessoa depois de tê-la conhecido, inicialmente, pela de Felipe
Moisés, é muito grande e é para isso que serve um texto destinado ao público
infantojuvenil, para que, futuramente, os jovens cheguem com mais prazer aos
inúmeros outros textos de Pessoa e de poetas tão complexos como ele.
Considerações Finais
Muito da nossa herança literária não chega à escola, ou por desconhecimento
do professor ou porque esse profissional não sabe como apresentar o texto literário
ao aluno. Um dos autores em língua portuguesa praticamente esquecido nesse
contexto é Fernando Pessoa. Na tentativa de auxiliar o professor a apresentar esse
importante nome da literatura portuguesa é que sugerimos em nosso texto a leitura
e posterior atividade com a obra de Felipe Moisés Conversa com Fernando Pessoa:
entrevista e antologia. Acreditamos que essa obra, elaborada por um dos mais
significativos críticos brasileiros de Fernando Pessoa, venha a ajudar o professor a
conhecer um pouco mais da vida e das ideias do poeta português e a,
posteriormente, inserir as poesias de Pessoa na pessoa dos alunos do ensino
básico, mais especificamente do Ensino Médio. Assim, temos certeza de que, “se a
alma não é pequena”, vale a pena a leitura da antologia comentada de Felipe Moisés
760
e sua posterior inserção em sala de aula e, certamente, ela será apenas o início de
um prazer a ser descoberto pelos alunos, por um poeta que representou um caso
sui generis na literatura mundial porque, não se contentando com sua poesia, criou
personagens poéticas com plena autonomia de linguagem, estilo e temática,
conforme o poeta-heterônimo Álvaro de Campos nos lembra: “Multipliquei-me, para
me sentir,/ Para me sentir, precisei sentir tudo,/ Transbordei, não fiz senão
extravasar-me,/ Despi-me, entreguei-me,/ E há em cada canto da minha alma um
altar a um deus diferente” (PESSOA, 1965, p. 345). E é esse deleite pela poesia de
Pessoa que queremos que o aluno descubra, inicialmente, em Conversa com
Fernando Pessoa.
Referências Bibliográficas
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BRÉCHON, R. Fernando Pessoa, estranho estrangeiro: uma biografia. 2. ed. Rio de
Janeiro: Record, 1999.
MOISÉS, C. F. Conversa com Fernando Pessoa: entrevista e antologia. São Paulo:
Ática, 2007.
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Escrituras Editora, 2001.
PERRONE-MOISÉS, L. Aquém do eu, além do outro. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.
761
UNINVITED – O ENCONTRO DIALÓGICO ENTRE A MÚSICA E A LITERATURA
VAMPÍRICA DE BRAM STOKER
Patricia Hradec258
Introdução
O presente artigo tem por objetivo demonstrar o encontro dialógico entre duas
obras distintas: o romance de Bram Stoker, Drácula, escrito em 1897 e a música
Uninvited da cantora Alanis Morissette de 1998.
Partindo do pressuposto bakhtiniano que toda palavra dialoga com outra,
havendo uma relação de um discurso com outro inerente à constituição do próprio
discurso, não é descabido pensar em uma música dialogando com a literatura.
Através da interdiscursividade teremos o que Bakhtin chama de “orientação
dialógica” que “é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. [...]”
(BAKHTIN: 1988,88). Fenômeno este que é encontrado tanto na música quanto no
romance.
Bakhtin esclarece que “[...] o discurso escrito é de certa maneira parte
integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma
coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio,
etc. [...]” (BAKHTIN: 2006,126). Desta forma podemos entender que o texto escrito
está imbricado em uma discussão ideológica na medida em que a letra da música
pode se encaixar com o texto literário, constituindo-se assim uma resposta ao
romance.
[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda
palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,
defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à
coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os
outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se
sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do
interlocutor. (BAKHTIN: 2006,115 – grifo do autor)
762
O livro Drácula de Bram Stoker, escrito em 1897, relata a história de um casal
que de diferentes maneiras encontra-se com o conde Drácula, um vampiro
sanguinário. A narrativa é em forma de diários e relatos entre os personagens.
Jonathan Harker é um agente imobiliário inglês e tem a missão de ajudar o
conde na compra de uma propriedade e para organizar a transação viaja até o
castelo do conde situado em um distrito na fronteira de “[...] três estados –
Transilvânia, Moldávia e Bucóvina – entre os montes Cárpatos [...] uma das regiões
mais selvagens e inexploradas da Europa. [...]” (STOKER: 2012,227). Harker é
convidado a permanecer, mas depois percebe que é feito prisioneiro. Algum tempo
depois consegue fugir do castelo e volta para os braços de sua noiva, Mina. Mina
por sua vez também irá encontrar o vampiro, só que desta vez em Londres.
Já a música da cantora canadense Alanis Morissette intitulada Uninvited foi
escrita para compor a trilha sonora do filme “City of Angels” (Cidade dos Anjos)
lançado em 1998 estrelado pelos atores Nicholas Cage e Megan Ryan, uma
refilmagem de “Der Himmel über Berlin” (Asas do Desejo) de 1987 do diretor Win
Wenders.
O título da música nos chama a atenção pelo fato de que a tradução da
palavra uninvited é não convidado, ou ainda não aceito. Podemos pensar na obra
de Stoker, visto que o vampiro precisa ser convidado para entrar na casa ou mesmo
na vida de alguém.
Fazer o convite ao vampiro é uma reminiscência do vampiro grego
“Barabarlakos”, que saia de sua tumba e vagava de casa em casa, batendo para
verificar quem responderia ao seu chamado. Se a pessoa da casa não respondesse
imediatamente, o vampiro não perderia tempo e iria embora para bater em outra
casa. Por conta disso, é costumeiro na Grécia não abrir a porta ao primeiro toque
da campainha, deve-se esperar pelo segundo (BANE: 2010, 32).
O fato de a música ser intitulada uninvited demonstra esse impedimento, essa
não entrada do vampiro, é como se o poeta-locutor barrasse e não permitisse a
entrada do outro em sua vida.
Outro fato curioso é que o romance de Stoker iria se chamar “Undead” ou
seja, “não morto” indicando assim a condição de morto-vivo do vampiro. A partícula
763
inglesa “un-” indica contradição, negação e podemos observar no decorrer da
música várias palavras com esta partícula de negação como unfortunate,
unchartered, unworthy259. Temos ainda uma outra palavra na música strangely260
que também poderíamos substituir por unfamiliar261. Todas estas negativas criam
uma atmosfera negativa, tétrica que compõe não apenas a letra como também a
melodia composta por quatro notas de piano.
Na música temos um direcionamento do discurso e podemos dizer que é uma
estilização, porque segundo José Luiz Fiorin (1999) cita: “A estilização é a
reprodução do conjunto de procedimentos do “discurso do outrem”, isto é, do estilo
de outrem.” (BARROS e FIORIN: 1999, 31). É usado por diversas vezes o pronome
pessoal you (você) indicando que há uma referência, uma direção a um outro. É
como se fosse a resposta a uma outra pessoa. Fazendo um paralelo com o romance
de Stoker, temos relatos de Mina direcionados ao noivo Jonathan, portanto
podemos dizer que a música poderia muito bem preencher o espaço entre Mina e o
vampiro, poderia muito bem ser a resposta de Mina a este vampiro usurpador.
Outro conceito observado na música é o que Bakhtin explica como diatribe,
ou seja, “[...] gênero interno dialogado, construído habitualmente em forma de
diálogo com um interlocutor ausente, fato que levou a dialogização do próprio
processo de discurso e pensamento.” (BAKHTIN: 1997, 109). Observamos na
música este conceito na medida em que há uma exposição de ideias mas não há
uma resposta por parte do interlocutor, por exemplo: “Like anyone would be / I am
flattered by your fascination with me / [...] / But you / you’re not allowed / you’re
uninvited / an unfortunate slight / [...]”262. Há um direcionamento para alguém mas
não há uma resposta.
259
Infeliz, inexplorado, não valioso (Tradução livre)
260
Estranhamente (Tradução livre)
261
Não familiar (Tradução livre)
262
Como qualquer pessoa poderia estar / Eu estou lisonjeada pela sua fascinação em mim / [...] / Mas você /
Você não é aceito / Você não é convidado / Um infeliz insulto / (Tradução livre)
764
Ainda quando na música lemos: “I don’t think you unworthy / I need a moment
to deliberate”263 podemos entender que há alguém esperando uma resposta para a
decisão que será tomada, mas este alguém não se manifesta em momento algum.
Há ainda outra menção na música que podemos comparar com a obra
literária: “Must be strangely exciting / To watch the stoic squirm”264. A música fala de
uma satisfação em ver alguém que é firme ficar inquieto. Neste sentido, Mina Haker
escreve: “Durante toda a minha vida relembrarei com satisfação aquele momento
de dissolução final, pois, naquele instante, houve uma expressão de paz no rosto
do Conde, expressão esta que eu jamais imaginaria poder existir ali.” (STOKER:
2012, 532).
A música continua: “Must be somewhat heartening / To watch shepherd meet
shepherd”265. O fato de ser encorajante assistir um líder encontrar outro líder nos
remete a figura tanto de Drácula quanto do professor Van Helsing, figuras
antagônicas presentes no texto de Stoker.
Drácula é o líder de seu clã, formado por três mulheres vampiras que
apareceram para Jonathan Harker no castelo do conde. No “Memorando do dr. Van
Helsing” lemos: “Sabia que teria de encontrar pelo menos três túmulos habitados;
[...] Havia um grande túmulo, mais imponente do que os outros; [...] Aquele era o lar
do Rei-Vampiro, gerador de muitos outros. [...]” (STOKER: 2012, 528).
Já o professor Van Helsing é o erudito conhecedor de vampiros. No “Diário
de Mina Harker” lemos: “[...] O professor Van Helsing ocupou a cabeceira da mesa,
pois o dr. Seward lhe designara esse lugar quando o viu entrar na sala. [...]”
(STOKER: 2012, 419). O fato de Van Helsing ser colocado na cabeceira da mesa
indica uma posição privilegiada perante os demais, ele é a autoridade designada
inclusive por outro doutor para combater o vampiro. Ser nomeado professor indica
que é o indivíduo versado, perito e experiente, é o inquestionável líder da cruzada
instituída para aniquilar os vampiros. Lemos as palavras do professor Van Helsing:
263
Eu não acho que você não valha a pena / Eu preciso de um momento para considerar (a proposta) (Tradução
livre)
264 Deve ser estranhamente excitante / Assistir a inquietação de quem é firme (Tradução livre)
265
Deve ser de alguma forma encorajante / Assistir um líder encontrar (outro) líder (Tradução livre)
765
“Os vampiros realmente existem, e temos provas disso. Se durante longos anos não
tivesse ensinado o liberalismo à minha mente, só teria acreditado ao ver fatos
concretos. Ah, se soubesse antes o que agora sei, [...]” (STOKER: 2012, 420).
Na música temos também: “Like any unchartered territory / I must seem
greatly intriguing”266. Na música há a menção do ser intrigante pelo fato de ser uma
incógnita para o outro, um território inexplorado em termos simbólico. Podemos
lembrar que o conde Drácula era estrangeiro para Mina assim como ela constituía
costumes, ideias e vivências diferentes daquelas do conde, daí podemos pensar na
fascinação do conde por ela e vice-versa. No diário de Mina Harker lemos:
[…] A névoa tornou-se cada vez mais espessa, e percebi que não
penetrava pela janela, mas surgia pela fresta da porta, semelhante à
fumaça ou como vapor de água fervente. Intensificou-se cada vez mais e
pareceu se concentrar no quarto como uma nuven em forma de coluna,
acima da qual a chama do gás brilhava como um olho vermelho. [...] o fogo
estava no olho vermelho, que começou a me fascinar. [...] (STOKER: 2012,
437)
Há ainda um outro trecho da música que diz: "You speak of my Love / Like
you have experienced love like mine before”267. Temos aqui um amor como se já
tivesse sido vivido. E neste ponto podemos nos lembrar da figura de Drácula, pois
como ele mesmo comenta: “[...] já comandei nações, fiz intrigas e lutei por elas
centenas de anos antes [...]” (STOKER: 2012, p.460). Ser o vampiro a criatura a
atravessar séculos de existência deixa-nos margem para pensar neste amor
anterior, neste amor já experimentado antes.
Este amor é demonstrado ainda nas palavras de Drácula quando se dirige a
Mina: “agora me pertence; é carne da minha carne, sangue do meu sangue.
Pertence à minha família [...] mais tarde será minha companheira e ajudante [...]
todos eles terão de submeter-se à sua vontade. [...]” (STOKER: 2012, 460).
Notamos que é um amor possessivo, mas que em contra partida dará certo poder
para Mina, porque segundo o vampiro todos iriam submeter-se à sua vontade.
266 Como qualquer território inexplorado / Eu devo parecer bem intrigante (Tradução livre)
267 Você fala do meu amor / Como se já estivesse experimentado o amor como o meu antes (Tradução livre)
766
No encerramento da música temos: “I don’t think you unworthy / I need a
moment to deliberate”268. Isso corrobora com a ideia de que a proposta de Drácula
poderia ser cogitada, Mina poderia ter o poder vampírico caso quisesse.
Sendo assim, pudemos verificar como uma música pode estar em
consonância com a literatura, especificamente com uma obra clássica, mesmo
tendo sido escrita em épocas e contextos diferentes. A música pode muito bem
dialogar com o texto conforme já demonstrado, há pontos convergentes que
possibilitam este diálogo.
Estar sempre atento aos diálogos existentes e pensar em formas de observar
o mundo ao redor, seja por meio de uma obra literária, um quadro, uma música,
corrobora para o conceito bakhtiniano da reflexão e refração das obras. Um obra
está ligada a outra por diferentes maneiras e dialoga entre si, basta ficarmos atentos
aos diálogos.
Referências bibliográficas
268
Eu não acho que você não valha a pena / Eu preciso de um momento para considerar (a proposta)
(Tradução livre)
767
PRIVACIDADE E REDES SOCIAIS: ESPETÁCULO E VIGILÂNCIA
Patricio Dugnani269
Introdução
Não sei se me faço entender. Mas percebo meu corpo estendido por
distâncias que nunca poderia imaginar em minha infância de TV preto & branco,
seletor de canais e Bombril na antena do rádio. Percebo efeitos preconizados por
Mcluhan: a retribalização pelos meios de comunicação, a mensagem dos meios e
suas transformações na comunicação e na percepção do homem, enfim, já posso
mesmo vislumbrar a aldeia global. Percebo a clareza e capacidade visionária do
autor citado e vejo também a mentalidade por vezes limitada de certa fatia da
intelectualidade, que entorpecida pela crítica aos meios de comunicação, acabaram
deixando de lado um pensamento importante para se compreender as
transformações do século XX. Entendo, concordo por vezes e admiro: mesmo as
críticas aos meios de comunicação. Porém, não consigo embalar meus sonhos, e
não é por causa da violência que cerca, principalmente, as grandes cidades. Afinal,
são tantos os olhos que estão imbuídos em preservar a minha integridade física,
que posso até mesmo dormir iludidamente seguro. Não, não é a insegurança que
me preocupa, pelo contrário, são os muitos olhares que têm me incomodado.
A segurança tem criado uma estranha paranóia na percepção do homem.
São tantas câmeras e sistemas de segurança em constante vigilância, que já podem
fazer o homem sentir-se num Reality Show contínuo, mas sem direito a prêmio. E o
pior está por vir, o poder que esse saber confere à sociedade: “o poder
disciplinador”, as “microfísicas do poder”. Penso em Michel Foucault, principalmente
em seu Vigiar e Punir e vejo o panoptismo tomando conta de nossas vidas, com o
nosso consentimento e benção, tudo em nome da segurança e, também, pelo amor
a um hedonismo espetacular. Alguém assistiu ao filme V de vingança (2006)?
Sempre em nome de um bem e de uma promessa de liberdade, se cometem as
768
piores atrocidades (desculpe pelo chavão, mas ele se encaixa a esse discurso). Por
tudo isso, ando um pouco inquieto, em meus sonhos, em meus dias.
Por tudo isso, nesse texto, pretende-se refletir, não somente sobre a
vigilância tão presente em nossos dias, mas sobre a perda da privacidade,
conseqüência que vem emaranhada nas à questão da segurança. Pretende-se
também, analisar o consentimento social quanto à questão dessa perda do espaço
pessoal, em contraposição à extravagante postura de escancarar as intimidades por
meio de blogs, redes sociais e reality shows. Esse deslumbramento por aparecer,
por tornar-se visível, o hedonismo espetacular característico de nossa pós-
modernidade, nos faz lembrar do deslumbramento fatal que Narciso diante à sua
imagem refletida. Essas relações criam, assim, um espetáculo da vida privada, uma
“Sociedade do Espetáculo”, como afirmou Guy Debord (2007), essa transformação
de tudo em mercadoria total. A partir dessas reflexões pretende-se traçar um perfil
do sujeito pós-moderno, relacionando a privacidade, o anonimato, o espaço
pessoal, com a obsessão contemporânea pelo espetáculo, pelo prazer, pela
aparência e as consequências desse processo na construção do espaço pós-
moderno.
O sujeito pós-moderno
Para iniciar as reflexões, cabe, antes de tudo, alicerçar alguns conceitos,
definindo a origem e influências que se farão presentes nesse texto. Primeiramente,
partiremos do conceito de sujeito pós-moderno esboçado por Stuart Hall, onde se
verifica essa tendência descentralizada que o sujeito contemporâneo apresenta.
Tendência que nasceu das complexidades e transformações dinâmicas que a
velocidade e a fragmentação moderna desenvolveram com a sociedade:
769
Ou seja, a construção da identidade cultural contemporânea não se pretende
mais fixa e imutável, apoiada em estruturas racionais fantasiosamente imutáveis,
mas sim uma construção dinâmica, mais flexível, adaptada à velocidade das
transformações complexas que nos são apresentadas diariamente. Toda essa rede
de transformações sígnicas, tem uma relação íntima com o avanço tecnológico e os
novos meios de comunicação – meios de comunicação em massa e mais
recentemente a internet - que despejam novos conceitos sobre o sujeito,
principalmente no século XX, modificando a sua percepção do mundo. Pois os
“efeitos da tecnologia não ocorrem aos níveis das opiniões e dos conceitos: eles se
manifestam nas relações entre os sentidos e nas estruturas da percepção (...).”
(MCLUHAN, 1974, p. 34).
A partir desse conceito de identidade cultural na pós-modernidade e do
sujeito pós-moderno, analisaremos a sua relação com as questões crescentes de
vigilância, falta de privacidade e espetáculo.
Vigilância e privacidade
“Controlo o computador e o celular do meu gato para ver com quem ele conversa.
Assim me sinto segura de que não apronta por aí. Estou paranóica?”
Revista Nova, edição 450, ano 35, nº 22, novembro de 2007
A partir desse relato, retirado de uma revista, percebe-se que esse modelo
de vigilância e sua relação com o poder já está acomodado em nosso imaginário, o
que faz com que essa invasão de privacidade se torne comum e, totalmente
justificável. Essa naturalização da lógica social cria um mito (BARTHES, 1999) que
nos é apresentado como aparentemente óbvio, podendo, mesmo, ser vista em uma
revista de grande circulação sem o menor constrangimento. Essa construção
ideológica de um mito, essa naturalização da história que empresta significados de
outros signos de maneira arbitrária é muito bem observada por Roland Barthes, em
sua obra Mitologias (1999) e reflete muito bem esse processo descrito de achar que
a vigilância do privado é natural. Terry Eagleton descreve esse processo das
Mitologias de Barthes da seguinte maneira:
770
Vimos que muitas vezes se sente que a ideologia implica uma
“naturalização” da realidade social, e esta é outra área em que a
contribuição semiótica foi especialmente esclarecedora. Para o
Roland Barthes de Mitologias (1957), o mito (ou ideologia) é o que
transforma a história em Natureza emprestando a signos arbitrários
um conjunto de conotações aparentemente óbvio, inalterável
(EAGLETON, p.176, 1997).
771
e afeta os nossos mais, outrora, escondidos segredos, delegando poder às funções
disciplinadoras, a partir do saber íntimo de cada pessoa.
Ao mesmo tempo, essa devassidão dos segredos, aparentemente já não é
repreensível, pois, de forma espetacular, os freqüentadores dessa aldeia global
virtual já não se preocupam com seu anonimato, escancarando suas intimidades
para milhões de internautas. Porém essa atitude parece não se tornar uma reflexão
social. Funes, o memorioso (BORGES, p.105, 1999 ) e toda a sua informação
parece não continuar transformando essa informação em uma forma de pensar
sobre os fenômenos atuais, mas apenas acumulação de centenas, quiçá milhares
de arquivos amontoados nos bits de memória de um computador.
Com isso, essa devassidão de intimidades deverá provocar alguns efeitos
que já começam a serem sentidos em nossos dias. Na próxima unidade refletiremos
sobre alguns efeitos que a perda do anonimato, a vigilância virtual constante e o
deslumbramento pelo espetáculo poderão causar nas relações pessoais de nossa
sociedade.
Espetáculo e privacidade
Não desconfiando da sinceridade do isolamento de Greta Garbo, que buscou
o anonimato e fez a escolha mais estranha que uma pessoa pública e venerada
como deusa, um mito cinematográfico, poderia fazer: a solidão, o esquecimento.
Esse ato não parece nem passar pela cabeça da maior parte das celebridades e
dos milhões de anônimos que querem ser ouvidos a qualquer preço. Como o suicida
que grita do alto do edifício, para chamar a atenção, os anônimos contemporâneos
esvaziam a sua patética vida – e a dos outros - nas páginas dos blogs, credes
sociais, ou em vídeos do Youtube, para fazer parte do grande espetáculo circense
que se tornou a vida privada. Parece que a capacidade de adaptação e “celebração
móvel” (HALL, 2004, p.13) do sujeito pós-moderno, tornou-o um exibicionismo,
exercendo seu voyerismo para se destacar dos iguais. Essa ação acaba
construindo, assim, a identidade do sujeito pós-moderno por uma diferença –
lembrando que, mesmo a diferença na contemporaneidade, não passa de um
padrão, um produto, de uma mercadoria, uma “(...) revolta puramente espetacular:
772
isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria”, (DEBORD, 2007,
p.40).
Essa diferença é, aparentemente, apenas conseguida pelos holofotes e fotos
em qualquer revista de fofocas das celebridades, ou pelas vidas apresentadas na
rede. Toda essa celebração do vazio, dos gestos superficiais e da coisificação da
vida, não passa de uma tentativa de se tornar visível, se tornar notável. Nunca o
“querer ser” da sociedade teve tanta gula. Após transformarem tudo em mercadoria,
agora se avança sobre a intimidade, fazendo com que se torne um produto
admirável e espetacular.
O anonimato parece ser pior que o escárnio mundial. Ou ainda não se
percebeu que já não se pode estar só, fisicamente, mesmo mantendo-se o homem
simbolicamente sozinho.
“Condenaram a privacidade à morte” (SIQUEIRA, 2008, p.90) e por um ato
exibicionista pode-se pagar um alto preço:
773
onde cada um pode ser autor de sua programação, é ao mesmo tempo
aparentemente livre, porém incapaz de fugir da padronização, da alienação onde
todos estão mergulhados: “[...] toda realidade individual tornou-se social,
diretamente dependente da força social, moldada por ela.” (DEBORD, 2006, p.18)
Nesse processo de identificação, busca-se compensar o estilhaçamento, a
fragmentação que as especializações trouxeram ao humano pós-moderno. O mais
estranho é que, poucos querem se preservar desse escancarar da vida privada, na
verdade, ao que parecem, todos querem participar desse espetáculo, ser engolido
por ele, tornar-se produto, mercadoria superficial e padronizada.
O poder e a privacidade
Pretende-se, nesse ato do espetáculo, traçar um paralelo do funcionamento
da vigilância pelas câmeras de filmagem e pela rede, com o Panóptico de Benthan,
apresentado por Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2005).
O Panóptico foi um centro penitenciário planejado por Jeremy Bentham, em
1791, que visava criar um local ideal para se manter os condenados em permanente
vigilância. Ele consiste basicamente em uma torre central, cercada por celas
retangulares, onde os presos ficariam confinados. Nessa torre, o vigia, teria total
acesso às ações de todos que estivessem nas selas, mas impediria que os mesmos
soubessem se estão sendo observados. Basicamente, os presos, sem saber se
estão sendo vigiados, ou quando estão sob os olhares atentos dos guardas,
manteriam a ordem, pela simples suposição de uma vigilância constante. Essa
presença constante do olhar disciplinador conferiria poder aos que estão na posição
de vigias.
O panóptico tem um funcionamento de vigilância constante e invisibilidade,
semelhante ao olho do Grande Irmão, do livro 1984, de George Orwell; também faz
lembrar muito o funcionamento do reality shows, e equivale aos milhares de
câmeras espalhadas, que escancaram a vida privada e compõem-se como sendo
os olhos sempre atentos de Argos.
774
aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder,
descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as
superfícies onde este se exerça. (FOUCAULT, 2005, p. 169)
775
de acessar a internet, ou alguma câmera de vigilância. Mais eficiente que o Big
Brother, seria o Little Brother.
776
obtidos para um objetivo são facilmente usados com outro fim.
(BAUMAN, 2013, p. 10)
Conclusão
777
Referências bibliográficas
BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
BAUMAN. Z. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BAUMAN. Z. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BORGES, J. L. Ficções. São Paulo: Globo, 1999.
DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
DYSON, E. Reflexões sobre a Privacidade. Portugal: Revista Scientific American
Brasil, Outubro de 2008. ano 6, nº 77, p.32 a 37.
EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Boitempo: UNESP, 1997.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2005.
GARCIA, R. Big Brother no Varejo. São Paulo: Folha de São Paulo. Postado em
25/05/2009. Acessado em 04/03/2010.
GARFINKEL, S. L. Informações do Mundo Unificadas. Portugal: Revista Scientific
American Brasil, Outubro de 2008. ano 6, nº 77, p.64 a 69.
HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
MCLUHAN, M. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo:
Cultrix, 1974.
SIQUEIRA, E. A Privacidade está Morrendo. Ou já Morreu? Portugal: Revista
Scientific American Brasil, Outubro de 2008. ano 6, nº 77, p.88 a 91.
STRINATI, D. Cultura Popular. São Paulo: Hedra, 1999.
SOLOVE, D. J. Fim da Privacidade. Portugal: Revista Scientific American Brasil,
Outubro de 2008. ano 6, nº 77, p.83 a 87.
778
GÊNEROS E IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUA: FERRAMENTAS
DIDÁTICAS NA ESCRITA/REESCRITA DO GÊNERO RESENHA
Introdução
270 UFMA
779
processo de ensino-aprendizagem e transformar esses conhecimentos em algo
coerente com os propósitos de ensino.
Em nosso caso, nos pautamos na pesquisa de Machado et al. (2004) que
afirmam ser a resenha um gênero que:
Pode ser chamado por outros nomes como resenha crítica, e que exige
que os textos que a ele pertençam tragam as informações centrais sobre
os conteúdos e sobre outros aspectos de outro(s) texto(s) lido(s) – como
por exemplo, sobre seu contexto de produção e recepção, sua organização
global, suas relações com outros textos etc. – , e que, além disso, tragam
comentários do resenhista não apenas sobre os conteúdos, mas também
sobre todos esses aspectos (MACHADO et al. 2004, p. 14).
Contextualização da pesquisa
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa-ação que desenvolvemos no
ano de 2013, entre os meses de abril e maio, em uma escola pública da cidade de
Marabá-PA, com 32 alunos do 2º ano do Ensino Médio. Para isso, contamos com a
colaboração de um professor que nos cedeu uma turma para realizar uma proposta
de produção textual (gênero resenha), por meio da ferramenta Sequência Didática
(SD). É importante mencionar que para a correção dos textos tomamos como base
uma lista de constatações/controle que trazia as principais características do
gênero.
780
No entendimento de Dolz et al. (2010), a SD é uma ferramenta didática capaz
de proporcionar um trabalho com a oralidade ou a escrita de forma sistemática,
podendo levar os alunos a desenvolverem com mais proficiência as capacidades de
linguagem inerentes ao gênero tomado como objeto de ensino. Esse, portanto, foi
nosso objetivo principal, buscar meios para auxiliar os estudantes na produção do
referido gênero de forma proficiente dentro de um contexto de produção.
Vale ressaltar que para o referido autor e seus colaboradores qualquer
trabalho com a produção textual só faz sentido se, de fato, houver uma produção de
linguagem efetiva, ou seja, é preciso que ao final desse procedimento didático as
produções dos estudantes sejam lidas, na escola ou fora dela, efetivando uma ação
de linguagem. Em nosso trabalho, procuramos realizar isso, já que no final da SD
os alunos tiveram suas resenhas expostas no mural da escola e publicadas no blog
da Faculdade de Estudos da Linguagem (FAEL-UFPA).
781
público e a crítica com seus desempenhos Sua resenha apresenta organizadores
brilhantes, sua história arrebatadora e sua lógicos que guiam o leitor na organização do
grande produção. discurso: Quando; e; com; mas; se; até;
Dramático, poético e sensível do início ao Procurou ser polido em suas críticas,
fim, o filme “Sociedade Dos Poetas Mortos” foi evitando agressões ao diretor do filme:
nomeado como um dos melhores filmes poderia ter ficado ótimo se o diretor...;
realizados na década de noventa. Narra um Sua subjetividade é expressa com a
drama que se desenrola em meados de 1959, utilização de expressões em 1ª pessoa:
num internato masculino chamado Academia para mim; seu fosse dar uma nota. O uso da
de Welton. O início da história é marcado por primeira pessoa do singular pode causar um
uma solenidade, na qual podemos assistir a efeito de opinião particular e não uma
entrada dos alunos, impecavelmente vestidos característica do filme. Isso pode não
de forma clássica e austera. Esses entram garantir maior veracidade ao discurso;
empunhando estandartes com brasão da Você evitou a repetição desnecessária de
instituição e as palavras que compõem os algumas palavras, mas poderia ter
princípios da escola: tradição, honra, disciplina substituído (ótimo) na linha 26 por (melhor)
e excelência. e no penúltimo parágrafo há uso excessivo
O filme foi bom, poderia dizer otimo, mas da palavra filme;
poderia ter ficado otimo se o diretor do filme Há verbos traduzindo o que o diretor do filme
Peter Weir muda-se alguns roteiros do filme, produziu na obra (emocionou o público; foi
como na parte de que o aluno Neil Perry não nomeado; O início da história é marcado);
estive-se morrido, mais para mim o filme foi Há frase truncada com uso indevido de (de)
bom como já havia dito, e se eu fosse dar uma ao invés de (em) na linha 31. Falta acentuar
nota para o filme seria 9,5. a palavra (otimo) nas linhas 25 e 26. Usa
No começo não gostei muito do filme, mas indevidamente a flexão verbal no pretérito
a cada capítulo que passava eu achava o filme imperfeito do subjuntivo (muda-se; estive-
cada vez mais interessante, e um filme que se). Existe erro de ortografia em (mais –
ajuda até agente um pouco. linha 29), deveria ser (mas). O último
período fica incompleto, pois não se sabe
em que o filme ajuda seus telespectadores.
A sociedade dos Poetas Mortos de: Peter Você selecionou algumas informações
Weir principais, de forma que o leitor possa
avaliar sua compreensão global do filme.
Sociedade dos Poetas Mortos. Produção de Conseguiu passar a imagem de alguém que
Peter Weir. EUA: Abril Video, 1989. Filme (128 compreendeu adequadamente a obra.
min). Você apresenta algumas apreciações sobre
O filme Sociedade dos Poetas Mortos se o filme por meio de adjetivos, substantivos,
passa em uma escola/internato masculino mas não explora isso com mais veemência.
chamado Welton. Esse internato tem um Seu texto pode ser considerado uma
modelo marcado por tempo determinado para resenha. Há indicações do filme, do diretor,
cada função e espaço racionalizado, tendo temática e contextualização.
como finalidade a educação tradicional, Está adequado aos leitores e ao veículo de
baseada nos princípios da Tradição, Honra, publicação.
Disciplina e Excelência. Sua resenha apresenta organizadores
São esses princípios que levam os pais a lógicos (por, para, como, e, que, até, Devido
escolherem o internato como uma condição de a, assim, etc.) que guiam o leitor
que seus filhos ingressem nas melhores organizando o discurso e estabelecendo
universidades. O estilo pedagógico adotado é relações (sintático-semânticas) entre frases
de saber especifico: o cientifico. Os cursos e entre parágrafos.
mais valorizados são Medicina, Direito e
782
Engenharia: já a Literatura e a Arte Dramática Você procurou ser polido em suas críticas,
não são de tanta importância. Isso fica bem evitando agressões ao diretor do filme e,
visível numa cena em que o aluno Neil não com isso, assegurar neutralidade emocional
consegue convencer o pai, que exige que ele ao texto.
deixe suas atividades como redator do anuário Você conseguiu expressar sua
escolar, e até quando o pai aborda-o depois de subjetividade sem utilizar expressões em 1ª
descobrir que esta participando de uma peça pessoa (eu acho, eu acredito),
teatral. demonstrando não uma opinião particular,
O que a gente nota muito também é que a mas uma característica do filme.
imagem feminina é prevalecida pela razão Você evitou a repetição desnecessária de
masculina. Prova disso é quando o pai de Neil algumas palavras utilizando para isso
fala sobre a decepção e tristeza que ele irá recursos coesivos distintos (esse internato,
causa à sua mãe se insistir nas ideias de esse princípios, Isso, etc.).
abandonar o ingresso na Medicina pra cursar Há verbos traduzindo o que o diretor do filme
Arte Dramática. O que fica marcado é que o produziu na obra. Tais verbos mostram a
sexo feminino possui um poder menor que o estrutura e organização do filme (se passa,
oposto. Devido a essa opressão por parte do tem um modelo, levam os pais, Neil não
pai, e a omissão materna, Neil comete suicídio consegue convencer o pai, etc.).
por se sentir impossibilitado de realizar seus Há problemas de acentuação nas linhas (14,
sonhos. Indo de frente assim com as idéias do 21) e do uso do verbo no infinitivo na linha
professor Keating. Esses atos fazem com que (26).
o professor Keating se torne um novo modelo
de educação, não seguindo assim o currículo
padronizado e ensinando os alunos a
pensarem por si mesmos.
É por isso que Sociedade dos Poetas
Mortos é considerado um filme brilhante, já
que nos faz perceber o quanto o papel do
professor perante os alunos é importante, pois
como educador este deve estimular a
formação dos cidadãos, em mais que isso: que
sejamos críticos, criativos e pensadores.
783
o autor cita partes do filme, tentando representar o sistema pedagógico da academia
Welton (São esses princípios que levam os pais a escolherem o internato/Os cursos
mais valorizados são Medicina, Direito e Engenharia/ já a Literatura e a Arte
dramática não são de tanta importância).
No terceiro parágrafo, há uma avaliação do agente-produtor, afirmando que
na obra a figura feminina é sucumbida pela masculina e para sustentar sua posição,
descreve partes do filme como em (quando o pai de Neil fala sobre a decepção e
tristeza que irá causar a sua mãe se insistir nas ideias...). Em seguida emite mais
uma avalição sobre isso ao mencionar (O que fica marcado é que o sexo feminino
possui um poder menor que o oposto). Ainda nesse parágrafo relata que devido à
opressão dos pais o garoto acaba cometendo suicídio. No final dessa parte é feita
uma referência ao professor Keating e seu método de ensino que vai de encontro
às formas tradicionais de educação.
No último parágrafo, o autor faz uma avaliação do filme, ao asseverar que
este é considerado uma obra brilhante e que mostra a importância da figura do
professor na vida dos alunos. Isso corrobora o que afirma Machado (2003), ao dizer
que na resenha as avaliações costumam ser feitas por meio de adjetivos e verbos,
fato que ocorre em nosso texto de análise (filme brilhante/ nos faz perceber o
quanto). No final há mais uma avaliação sobre o longa, estratégia utilizada para
persuadir os leitores e convencê-los a assistir ao filme (mais que isso: que sejamos
críticos, criativos e pensadores).
Como se observa na resenha, diferentemente do que aconteceu no primeiro
texto, não há unidades linguísticas remetendo ao momento de produção e ao
agente-produtor/destinatário. No entanto, há o uso de a gente, no sentido de nós
inclusivo, que representa os telespectadores da obra em geral e não o produtor da
resenha e um leitor/telespectador particular.
Assim como na primeira produção, a segunda é composta por sequências
que apresentam as partes do filme julgadas pelo produtor como adequadas para
levar o leitor a se interessar pelo longa. Por isso, o primeiro parágrafo é construído
por meio de sequências descritivas que apresentam algumas características da
obra. Para isso são usados verbos no tempo presente, pois uma das qualidades
784
dessa tipologia textual é ser construída de forma concreta e estática, sem
progressão temporal. Isso se nota em (O filme se passa/ Esse internato tem um
modelo).
O início do segundo parágrafo também é marcado por uma sequência
descritiva, usada para dar detalhes sobre a academia Welton e guiar o leitor pelas
partes do texto, dando a este um panorama do filme. Isso acontece em (São esses
princípios que levam os pais a escolherem o internato/ O estilo pedagógico adotado
é de saber específico: científico). Há também uma sequência descritiva usada para
retratar o fato de o internato não dar valor à Literatura e à Arte Dramática. Para isso
o resenhista menciona algumas cenas do filme (Isso fica bem visível numa cena em
que o aluno Neil...). Nesse parágrafo, as sequências descritivas são construídas
com a predominância de verbos de estado e no presente, sem marcar uma
progressão temporal (São, que levam, fica, consegue, exige, aborda-o).
No terceiro parágrafo encontramos sequências argumentativas seguidas de
descritivas, já que estas são usadas como prova do que é asseverado pelo autor a
respeito da obra. Isso é posto em trechos como (O que a gente nota também é que
a figura feminina é prevalecida pela razão masculina. Prova disso é quando o pai
de Neil fala sobre...). Nesse excerto, tanto no primeiro como segundo período,
percebe-se o uso de verbos de estado e no tempo presente, característica essa
dessas tipologias textuais. Além disso, observa-se que a sequência descritiva
apresenta o marcador narrativo-descritivo (quando).
Há nesse parágrafo ainda outra sequência argumentativa (O que fica
marcado é que o sexo feminino possui um poder menor que o oposto) que serve
como uma avaliação do autor da resenha. Nesse parágrafo também há duas
sequências explicativas, uma que mostra o porquê do personagem Neil ter se
suicidado (Neil comete suicídio por se sentir impossibilitado de realizar seus sonhos)
e outra que explana o fato de o professor Keating ser considerado um novo modelo
de educação (Esses fatos fazem com que o professor Keating se torne um novo
modelo de educação, não seguindo assim o currículo padronizado...).
No último parágrafo há uma avaliação introduzida por meio de uma sequência
argumentativa, cujo objetivo é fazer o leitor convencer-se de que o filme realmente
785
é interessante e vale a pena assisti-lo (É por isso que Sociedade dos poetas mortos
é considerado um filme brilhante, já que nos faz perceber o quanto... ).
Com relação às capacidades linguístico-discursivas, pode-se identificar no
texto que o processo de referenciação no primeiro parágrafo é estabelecido por meio
de anáfora nominal e elipse (Esse internato/ tendo como), recuperando o objeto de
discurso uma escola/internato. No segundo parágrafo existem as anáforas nominais
(esses princípios) remetendo aos termos Tradição, Honra, Disciplina e Excelência,
(seus filhos) recuperando pais. Há também anáforas pronominais como (Isso),
fazendo referência à prioridade que se dá na escola a disciplinas voltadas para o
Direito, à Medicina e à Engenharia, (que) como pronome relativo, fazendo remissão
a pai, (ele) e (aborda-o) recuperando Neil. Há ainda anáforas nominais que se ligam
ao objeto-de-discurso o internato como (Os cursos mais valorizados/ O estilo
pedagógico) e uma repetição do mesmo termo em (o pai).
No terceiro parágrafo o processo de referenciação se dá por meio de
anáforas pronominais e nominais como: (disso/ ele/ seus sonhos/ essa opressão/
esses atos/ sua mãe/ Neil/ o professor Keating). No último parágrafo a referenciação
é feita pelo uso das anáforas nominais (Sociedade dos poetas mortos/ um filme
brilhante), do pronome dêitico intratextual (este), do pronome (isso) e da elipse (que
sejamos).
No que diz respeito ao processo de conexão, observa-se que as séries
isotópicas são ligadas por meio de nexos lógicos, estabelecendo a coesão e
coerência do texto. Isso se nota no primeiro parágrafo em (determinado para cada
função e espaço tradicional, tendo como finalidade). No segundo parágrafo
encontramos o nexo (de que) com função de finalidade em (uma condição de que
seus filhos ingressem nas melhores universidades). Há a inserção do (que) como
conjunção integrante em (que exige que ele deixe suas atividades). O operador
argumentativo (até) é posto na função de escala argumentativa, ou seja, como
elemento que marca um argumento mais forte (e até quando o pai aborda-o depois
de descobrir...). Nesse excerto há também a presença dos marcadores descritivo-
narrativos quando e depois de que guiam o leitor nas partes que descrevem a obra.
786
No penúltimo parágrafo encontra-se o que como conjunção integrante (O que
a gente nota também é que a imagem feminina é prevalecida), o quando na função
de marcador temporal (Prova disso é quando o pai), o se com função de
condicionalidade (sobre a decepção que ele irá causar a sua mãe se insistir nas
ideias...). Nesse terceiro parágrafo também o operador devido aparece com função
de causa e consequência em (Devido a essa opressão por parte do pai, e a omissão
materna, Neil comete suicídio por se sentir impossibilitado...). O assim é usado para
conclusão de ideias em (Indo de frente assim com as ideias do professor/ não
seguindo assim o currículo padronizado e ensinando os alunos...). Neste exemplo,
o e serve como nexo que liga argumentos para uma mesma conclusão.
No último parágrafo o elemento por isso é usado para introduzir uma
conclusão relacionada a argumentos apresentados anteriormente (É por isso que
Sociedade dos poetas mortos é considerado...), em seguida a inserção de já que
com função de explicação relativa ao argumento anterior (é considerado um filme
brilhante, já que nos faz perceber...). Na parte final da resenha o pois e o que
também são utilizados com a função de conclusão em (pois como educador este
deve estimular/ em mais que isso: que sejamos críticos, criativos e pensadores.).
No que diz respeito aos mecanismos enunciativos, pôde-se depreender no
texto que existem modalizações que servem como mecanismos avaliativos da obra
resenhada. Isso pode ser notado no terceiro parágrafo quando o resenhista, por
meio de a gente (nós inclusivo: telespectadores do filme em geral), afirma que na
história a imagem masculina se sobrepõe à feminina (O que a gente nota muito
também é que a imagem feminina é prevalecida pela razão masculina). Nesse caso
temos uma modalização lógica, já que um elemento do conteúdo temático é avaliado
com base no mundo objetivo, sendo essa apreciação da obra considerada como
algo certo ou atestado. Pode-se considerar também nessa parte da resenha que o
trecho (Esses atos fazem com que o professor Keating se torne um novo modelo de
educação, não seguindo assim o currículo padronizado) é uma modalização
pragmática, pois contribui para a explicitação de um aspecto da responsabilidade
de um personagem do filme em relação às ações que ele mesmo é agente.
787
No último parágrafo há uma modalização lógica usada para emitir um juízo
de valor sobre o filme, ancorando-se no mundo objetivo e apresentando o elemento
avaliado como certo. Isso é identificado em (É por isso que Sociedade dos poetas
mortos é considerado um filme brilhante, já que nos faz perceber o quanto o papel
do professor perante os alunos é importante). Além disso, existe uma modalização
deôntica que avalia um elemento do conteúdo temático com base em valores
constitutivos do mundo social (pois como educador este deve estimular a formação
dos cidadãos). Nesse excerto tem-se um juízo de valor que afirma que o professor
tem a obrigação social de estimular seus alunos a se tornarem verdadeiros
cidadãos.
Com relação às vozes enunciativas, identifica-se, no terceiro parágrafo, a voz
do próprio autor diluída por meio do nós inclusivo, causando um efeito de sentido
no qual a voz assumida em 1ª pessoa do plural atenua a subjetividade, pois quem
fala não é o locutor empírico, mas os telespectadores do drama de forma geral (O
que a gente nota muito também é que). Há também nessa parte da resenha a voz
do personagem Neil emitida por meio de um verbo dicendi (Neil fala sobre a
decepção e tristeza que ele). No último parágrafo encontramos dois casos em que
a voz do resenhista, por meio de expressões em 1ª pessoa do plural, atenua a
subjetividade de quem é autor empírico do texto (já que nos faz perceber/ que
sejamos criativos).
Considerações finais
788
terem sido publicadas no blog da FAEL. Com isso, procuramos seguir as
orientações dos PCN, já que nestes se apregoa que o texto se torne um mecanismo
enunciativo/dialógico no contexto escolar ou em outras instâncias.
Na análise das resenhas, pôde-se verificar a importância da avaliação
formativa no processo de produção textual, pois em muitos casos nessa atividade o
professor se prende apenas aos problemas microestruturais, ou seja, somente se
propõe a corrigir as questões de natureza gramatical sem que isso represente algo
significativo no processo de reescrita. Assim, ao propormos uma correção com base
na lista de constatações, criamos uma forma de interagir com o aluno a respeito de
seu texto. Por isso, em nossa intervenção levamos em consideração não somente
as questões gramaticais, mas também outras de ordem macroestruturais. Além
disso, é necessário que o estudante sinta-se um autor que escreve para um leitor
real e que veja o professor como um parceiro em todas as etapas que envolvam a
produção de um texto.
Referências Bibliográficas
ADAM, J-M. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São
Paulo: Cortez, 2008.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
BARROS, D. L.P. Interação em anúncios publicitários. In: PRETI, Dino (org.).
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BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Fundamental. Brasília: MEC,
1998.
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interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 2007.
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procedimento. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim (orgs.). Gêneros orais e
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Mercado de Letras, 2010.
789
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Parábola Editorial, 2004.
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GONÇALVES, A. V. & BAZARIM, M. (Orgs). Interação, gêneros e letramento: a (re)
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LIMA, P. da S. A lista de constatações como instrumento de regulação da
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v. 01, n. 01, p. 26-40, jan./jun. 2012.
RUIZ, E. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010.
790
BUZZMARKETING
Introdução
791
Diferentes tipos de marketing
792
fazer com que os próprios consumidores se transformem em veículos de
comunicação.
Ainda segundo o mesmo autor o buzzmarketing é um marketing de permissão
em que os clientes passam as informações de um para outro, fazendo um zumbido
(buzz), como fazem as abelhas, quando se deslocam de flor em flor. Para que isso
aconteça é preciso que haja alguma coisa importante ou curiosa a comentar em
relação a um produto ou serviço. Essa ação encontra mais facilidade nos dias atuais,
pois pode se utilizar de meios como a internet, o telefone celular e as redes sociais.
Buzzmarketing
793
processo, pois sem o boca-a-boca não há buzzmarketing, mas dessa vez com base
em evangelistas.
A palavra evangelista, de acordo com (MCCONNEL e HUBA, 2006, p. 3), tem
como base “naquele que traz as boas novas”.
A ideia-vírus
Para Godin (2000), a ideia-vírus consiste em uma ideia intrigante, irresistível,
que chama muito a atenção e, que conduz ao desejo de ser compartilhada com
conhecidos, amigos, parentes e até pessoas em um primeiro encontro que estejam,
por exemplo, em um lugar de compras e que as pessoas começam a conversar
sobre as qualidades ou vantagens de determinados produtos ou serviços.
A ideia-virus por surpreender é logo passada para uma ou várias pessoas,
criando um “buchicho” que leva ao contagio de outras pessoas, porém essa ideia
deve ser fácil de entender e retransmitir, suave, pois não deve haver agressividade
e deve ser passada muito rapidamente para não haver perda do interesse do
receptor, além disso, deve ser contagiosa, deve ser tão interessante e divertida que
o receptor se sinta motivado a repassá-la para outras pessoas.
Fatores de fixação
Consistem em palavras e imagens que provocam influência, que defendem
ou ressaltam a qualidade do produto ou serviço e são o gancho e o contágio.
O Gancho
É a palavra, termo ou situação que permite ao evangelista iniciar a conversa
sobre o produto ou serviço que ele quer comentar. O gancho deve ser constituído
794
por uma qualidade ou aspecto que tem a capacidade de surpreender levando as
pessoas a querer saber mais sobre o produto, serviço ou ideia.
O Contágio
Como numa doença a transmissão do vírus para ser feita precisa contar com
uma série de fatores, dentre os quais se destacam: o vetor; o meio; o contexto; o
alvo; o modelo de desenvolvimento do contágio.
O Vetor
O significado biológico de vetor é “ser vivo que pode transmitir parasitas,
bactérias ou vírus a outro ser vivo”.
Em marketing considera-se vetor a pessoa ou grupo de pessoas que
divulgam uma mensagem tornando conhecido por outro grupo de pessoas o
benefício, a qualidade e/ou as vantagens de determinado produto ou serviço.
O meio
Considera-se o meio de acordo com o Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa “o ambiente onde se vive”.
Chetochine (2006, 28), considera que em “buzzmarketing e evangelização,
fala-se em comunidade como sendo o lugar onde se pode produzir evangelização”.
Atualmente são consideradas quatro tipos de comunidades, quais sejam: a)
comunidades de objeto - são consideradas aquelas em que o vetor realiza suas
atividades com frequência; b) comunidades formais - consideram-se neste caso as
associações, as organizações e outros locais onde os participantes trocam ideias e
opiniões e onde são discutidos diversos assuntos em reuniões comemorativas,
almoços ou outras atividades festivas; c) comunidades de circunstâncias -
consistem em locais em que as pessoas se encontram circunstancialmente, como
nos supermercados, escolas, cultos, estações de trens ou metro, onde discutem
diversos assuntos; d) comunidades on-line - comunidades mais recentes compostas
por pessoas que pertencem a associações ou utilizam-se da web para trocar ideias
e obter informações.
795
O contexto
De acordo com o Aurélio, Dicionário da Língua Portuguesa, contexto é um
“conjunto de circunstâncias que acompanham um acontecimento: julgar um fato em
seu contexto histórico”.
São considerados quatro contextos: a) contextos naturais ou de calendário -
estão ligados a eventos determinados, como por exemplo, dia dos namorados, dia
das mães, dia das crianças, entre outros; b) contextos institucionais - estes estão
relacionados a eventos muito importantes como a copa do mundo de futebol, a
formula 1 do automobilismo; c) contextos de atualidade - contam-se entre os
contextos mais marcantes e cobertos pela mídia, entre eles as catástrofes naturais,
como ciclones, tsunamis, inundações, entre outras; d) contextos artificiais - são
situações criadas artificialmente pelas empresas interessadas no buzzmarketing,
gerando condições para os evangelistas realizarem seu trabalho de divulgação.
O alvo
O alvo a ser atingido pelo buzzmarketing é fazer com que os evangelistas,
isto é consumidores de um determinado produto, serviço ou defensores de uma
ideia possam repassá-la com sucesso a outras pessoas interessadas em adquirir
um produto ou serviço do mesmo tipo que o evangelista consome ou uma ideia
defendida pelo evangelista.
No caso do Buzzmarketing os evangelistas ou vetores são os consumidores
de determinado produto, serviço ou ideia e podem ser classificados quando
considerados em função do seu comportamento de compra em: a) inovadores -
consumidores que gostam de ser os primeiros a desfrutarem de um novo produto
ou serviço; b) adotantes imediatos – são considerados importantes para a
influência de outras pessoas, pois são respeitados e suas sugestões
consideradas; c) maioria imediata – é constituída por consumidores cuidadosos,
que só adquirem o produto ou serviço após ser comprovado pelos adotantes
imediatos; d) maioria tardia – é composta por consumidores cautelosos e que não
gostam de correr riscos. São conservadores e tem dificuldade em mudar seus
hábitos; e) retardatários – são consumidores conservadores que não gostam de
796
inovações e só vão adquirir o produto ou serviço quando a maioria já está fazendo
uso dele.
Características do evangelista
Evangelista é aquela pessoa que está sempre comentando sobre aquele
filme, produto, serviço ou até político e consegue convencer o interlocutor das
vantagens de ser um consumidor como ele. Como não ganha nada em convencer
o interlocutor nem está vendendo qualquer coisa, mas apenas apresenta
recomendações sinceras ele é considerado extremamente confiável.
Um evangelista pode ser reconhecido com facilidade, pois a maioria
apresenta comumente as seguintes características: a) acreditam nos produtos ou
serviços que compram; b) recomendam os produtos ou serviços que adquiriram
para colegas, amigos ou parentes; c) elogiam as qualidades dos produtos ou
serviços livremente, não aceitam imposições do fornecedor, pois eles creem no que
afirmam; d) reclamam diretamente com o fornecedor quando percebem que a
qualidade do produto mudou ou está deixando a desejar, mas não deixam de
adquirir o produto ou serviço; e) são altruístas, divulgam pelo prazer de divulgar,
pois creem no que divulgam; f) são emotivos, todo o seu ser transmite o que querem
797
dizer de tal forma que o ouvinte se sente participante na história contada e com isso
encantam os ouvintes.
798
A empresa que quer se utilizar desse tipo de marketing deve: a) descobrir
quem são os formadores de opinião e atuar por meio deles; b) apresentar sempre,
qualquer produto ou serviço novo ou modificações introduzidas nos produtos ou
serviços existentes, primeiramente a esses evangelistas; c) realizar reuniões onde
os evangelistas podem se reunir e trazer outras pessoas de forma a ampliar o grupo
de evangelistas e de pessoas interessadas na empresa, produtos e serviços; d)
presentear utilizadores de seus produtos formadores de opinião para mantê-los
sempre do lado da empresa; e) levar em conta que as pessoas compram mais
quando estão se divertindo; f) envolver-se com causas que apresentam os valores
da organização; g) premiar os funcionários pelo bom atendimento dos clientes e não
pela quantidade vendida; h) prover para que as políticas da organização estejam
em sintonia com as prioridades da clientela.
Considerações finais
799
ideia é personalizado para o potencial cliente; e) o evangelista explica para o
potencial cliente o valor do produto, serviço ou ideia da melhor forma para que seja
totalmente entendido pelo receptor, utilizando para isso a linguagem adequada a
aquela pessoa de forma inquestionável.
A transmissão de mensagem do evangelista elimina os ruídos da
propaganda, individualiza a mensagem e além do mais é favorecida pela
proximidade entre o emissor e o receptor, pois é sabido que amigos, conhecidos ou
familiares se influenciam mutuamente.
Outra situação vantajosa para o evangelista que o torna melhor vendedor e
que ele pode encontrar pessoas com as mesmas necessidades ou desejos que os
dele com maior facilidade e rapidez.
Os evangelistas têm conhecimentos diferenciados, pois sabem onde seus
potenciais clientes moram e trabalham e, também conseguem apresentar uma
proposta de valor na linguagem adequada ao potencial cliente por todos os
conhecimentos anteriormente apresentados. Além disso, de acordo com McConnel
e Huba (2006) o “evangelismo é baseado na lealdade às pessoas e não as coisas”.
Referências Bibliográficas
800
ESPIRAL DO SILÊNCIO E EDUCAÇÃO BANCÁRIA: UMA ANÁLISE DAS
APROXIMAÇÃOES ENTRE EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO
272
Doutorando e mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Jornalismo pela
mesma instituição, na qual também leciona nos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda.
273
Doutorando em Letras e mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
801
Paulo Freire, talvez o maior educador brasileiro, defende a educação como
promoção do sujeito, como instrumento de mudança pessoal e social. Para ele, a
educação tem que promover a conscientização do educando, o que gera crítica
social (mudança na opinião pública) e, consequentemente, mudança social. O ato
de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo. (FREIRE, 2011, p.12).
Paulo Freire preocupa-se, por toda sua obra, em despertar uma possibilidade
de educação dialógica e libertadora. Dialógica porque a educação deve ser
construída a partir da troca de experiências entre o educador e o educando.
Libertadora porque, para ele, a sociedade brasileira vive em um sistema dicotômico,
dividido em opressores e oprimidos (daí sua obra mais conhecida intitular-se
“Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 1987)) e a educação em seu ver é elemento-
chave para transformação dessa estratificação.
O bom jornalismo é também elemento-chave para essa transformação. Com
o avanço das populações e das complexidades sociais, o jornalismo assume um
papel que a comunicação interpessoal direta já não era capaz de suprir. Assim, ele
abraça a função de amplificador coletivo da educação que se dá no âmbito
particular. Há definições que dão conta da notícia como aquilo que o público precisa
conhecer. Dessa maneira, pode-se traduzir o jornalista não apenas como emissor
de notícias, mas como próprio meio pelo qual a mensagem chega ao seu receptor.
Se essa mensagem é conscientizadora, intrigante e formadora da criticidade do
802
receptor, então o jornalismo cumpriu seu papel comunicacional de transformação
social. Torna-se possível, por intermédio dos veículos de comunicação de massa,
por exemplo, ter acesso no Brasil a avanços científicos que se dão no Japão, ou
aos mais novos conceitos filosófico-políticos levantados na Alemanha.
Por outro lado, ainda dentro desta perspectiva, o jornalismo pode funcionar
como instrumento de dominação. Pode ser uma ferramenta de manutenção do
poder e não de contestação. O opressor, quando domina o processo
comunicacional do jornalismo, usa-se deste poder para manter ou aumentar sua
opressão. O resultado, nesse cenário, é o da desinformação, em que o leitor
(receptor da mensagem) não apreende ou não recebe em sua totalidade a
informação almejada.
No melhor dos casos (escreve Schulz) ele é informado superficialmente sobre os
fatos, personagens e temas em destaque que dominam as discussões dos
assuntos atuais. Não está capacitado a elaborar um conhecimento acumulativo e
uma compreensão duradoura dos contextos políticos. (KUNCZIK, 2001, p.326).
274
“A teoria da espiral do silêncio se apoia na suposição de que a sociedade – e não apenas os grupos em que
os membros se conhecem mutuamente – corre o risco de isolamento e de exclusão dos indivíduos que se desviem
803
A teoria da Espiral do Silêncio baseia-se na observação de que quando um
determinado assunto é amplamente difundido nos meios de comunicação de massa,
ele uniformiza a opinião pública e faz com que opiniões contrárias percam força,
esvaindo-se até que caiam em uma espiral de silêncio. A razão principal desse
processo, segundo Noelle-Neumann, é o medo da rejeição que assume o controle
das mentes opositoras, forçando-as a se calarem.
do consenso. Os indivíduos, por sua vez, têm um medo em grande medida subconsciente do isolamento,
provavelmente determinado geneticamente. Este medo do isolamento faz com que as pessoas tentem comprovar
constantemente quais opiniões e modos de comportamento são aprovados ou desaprovados em seu meio, e quais
opiniões e formas de comportamento estão ganhando ou perdendo força” (tradução minha).
804
Em contraposição a essa educação positiva, há a que Freire chamou de
educação bancária. Neste modelo, a escola é um mecanismo mantenedor do status
do sistema de mais-valia, em que o aluno é apenas recebe o que se “deposita” de
conhecimento nele, a fim de “retirar” (exigir) depois de um determinado tempo que
ele tenha aprendido todo o conteúdo. Sob esse panorama, educação bancária e
jornalismo dominado pela elite opressora caminham juntos.
Transformação possível
Pensar nos vértices da educação com o jornalismo é pensar nas relações
sociais de poder. Vê-se a urgência da discussão acerca dos caminhos que a
sociedade brasileira tomou para suas salas de aula, bem como dos que percorreu
nas redações. Levantar questionamentos sobre a práxis de ambas as áreas é crucial
para o desenvolvimento de um país mais justo. Dar voz ao povo (uma das definições
do próprio jornalismo) se mostrou um possível caminho para libertação dos
oprimidos. Entretanto, só é possível dar voz ao povo a partir de uma mudança
radical dos métodos escolares.
Interessante notar que, tanto para Paulo Freire quanto para Noelle-Neuman,
o silêncio é uma ferramenta de opressão e massificação da opinião pública. O
silêncio se torna, por isso, um ponto convergente de dominação nas duas áreas.
Permitir, capacitar e incentivar o grito dos oprimidos é tarefa impreterível.
Naturalmente, numa linha profética, a educação se instauraria como método de
ação transformadora. Como práxis política a serviço da permanente libertação
dos seres humanos, que não se dá, repitamos, nas suas consciências apenas,
mas na radical modificação das estruturas em cujo processo se transformam as
consciências. (FREIRE, 2011, p.204-205);
A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão mais verdadeira
quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres
humanos, a de sua expressividade. (FREIRE, 2011, p.33).
805
Referências Bibliográficas
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FREIRE, Paulo. Ação Cultura Para Liberdade e Outros Escritos. 14ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2011.
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2ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. La espiral del silencio. Paidós, 1995.
806
ASTROBIOLOGIA E LITERATURA – A FICÇÃO CIENTÍFICA COMO UMA
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR NA DIVULGAÇÃO DA CIÊNCIA E NO
INCENTIVO À LEITURA
807
questionamentos pode ser levantada. Por que os seres vivos necessitam de água?
Como um planeta pode reter água líquida? Em que condições a água se encontra
líquida? Por que alguns planetas têm atmosfera e outros não? Somente essas
perguntas, deixa óbvio que para responde-las é necessário abordar temas de
Química, Biologia, Física em suas mais diversas subáreas. Não sendo, também
irreal, considerar uma possível interface com as disciplinas das ciências mais
“humanas” como História, Geografia e Filosofia, em questões como, por exemplo,
“como uma civilização se desenvolveria sob circunstâncias diferentes da que a
humanidade se desenvolveu?”.
Assim, a Astrobiologia possui intrinsecamente um caráter interdisciplinar.
Não é necessário assumir ou impor, ela simplesmente é. E como explorar todas
essas potencialidades como uma forma de divulgar a ciência? A proposta deste
trabalho é pautada em um ponto ainda dentro do contexto da interdisciplinaridade:
a relação entre a ciência e a arte. Jacob Bronowski, um poeta e também matemático,
argumenta que a ciência e a literatura têm a imaginação como uma raiz comum, da
qual se desenvolvem e florescem juntas (Bronowski, 1998). O autor argumenta
ainda que é falaciosa a noção de que a ciência é feita puramente da razão,
desprovida de imaginação; nas palavras dele “prejudicamos a educação das
crianças quando as habituamos a separar a razão da imaginação, apenas pela
conveniência do horário escolar” (abid, p. 38).
Assim, se pudermos explorar as ciências através das artes, estaremos
conduzindo o aprendizado pelos trilhos da imaginação e, por isso, concebendo-as
em um nível mais fundamental. Com o intuito de estabelecer essa relação entre
ciência e arte, este projeto idealiza a utilização da literatura no gênero Ficção
Científica como a ferramenta de trabalho.
Dentro desse contexto, de valorar tanto a ciência quanto a arte, um dos
aspectos mais interessantes da Ficção Científica (FC) é o que se chama de
estranhamento cognitivo, expressão formada por duas palavras que apresentam
dois conceitos distintos, mas que são indissociáveis em uma obra de FC. O
estranhamento surge daquilo que está fora da esfera do tangível, do que é
experimentado e esperado normalmente, é uma sensação que provém daquilo que
808
causa um impacto por não ser familiar. A fantasia, os mitos, as lendas, as fábulas
também apresentam esse estranhamento; porém, na FC, está associado a uma
cognição, ou seja, ele é justificado dentro de um discurso científico que,
independentemente de fornecer uma justificativa válida ou não, baseia-se nos
métodos e nas premissas da ciência para torna-lo aceitável (SUVIN, 1979).
O estranhamento cognitivo é também sedutor, instigante, capaz de impingir
um encanto profundo, um sentimento que os críticos de FC costumam chamar de
“sense of wonder” (sentido de maravilhoso) (e.g. SUVIN, 1979; GILLETT, 1998;
CAUSO, 2003). Ítalo Calvino, escritor que considerava Galileu como um dos
fundadores da literatura italiana, expressa esse sentimento de encanto na seguinte
passagem:
Não é só o que os olhos veem que gera o encantamento, mas como o objeto
de observação é descrito. É nessa relação entre a arte como expressão dos
sentimentos humanos e da ciência como uma forma de entender a natureza que a
FC é capaz de trazer um deleite profundo, de “quase levitação”.
Torna-se claro nesse ponto que a FC pode ser uma porta de entrada para um
interesse mais agudo na ciência, ao laureá-la pelos olhos imaginativos dos
escritores. Calvino, na citação transcrita acima, deixa claro que não foi somente a
lua vista por um telescópio que o encantava, mas principalmente o modo como
Galileu foi capaz de descrevê-la. Mas essa porta não é de mão-única, Bronowski
dizia que a arte e a ciência possuem uma raiz em comum e não que uma está na
raiz da outra. Desse modo, se a literatura pode ser um grande incentivo ao
conhecimento científico, não há porque não pensar o contrário, que a ciência pode
também ser um convite para o mundo da literatura.
809
O projeto LUCIA
O principal objetivo da pesquisa aqui apresentada foi entender a
potencialidade que a Astrobiologia associada à literatura pela FC pode ter na
divulgação a ciência e no incentivo à leitura. Para aproximar teoria e prática,
algumas atividades foram preparadas para serem aplicadas em um Clube de Leitura
(CL).
O CL é um espaço que foi criado para discutir literatura e ciências. Ele foi
organizado pelo nosso grupo de pesquisa e pela escola municipal Arquiteto Luís
Saia. Foi desenvolvida e idealizada a partir de um modelo norte-americano
denominado Literature Circle (Daniels, 2002) e de um modelo brasileiro, mais
comumente referido como Clube do Livro (Reis, 2009). O público alvo foi os
estudantes das séries finais do Ensino Fundamental (8º e 9º ano, estudantes com
idades entre 12 e 14 anos) em uma escola municipal da cidade de São Paulo (SP –
Brasil). Os encontros do clube ocorreram no 1º semestre de 2015, eram semanais
e no contraturno das aulas, às sextas-feiras das 12:00 às 13:30. Foram trabalhados
com dois grupos de estudantes, um no primeiro bimestre e outro no segundo.
Idealizado inicialmente para atender até 25 estudantes, a média de estudantes
participantes girou em torno de dez alunos.
Embora os encontros tenham ocorrido em território da educação formal, as
atividades podem ser classificadas como “intervenções não-formais em um
ambiente formal”, pois, apesar de terem sido realizadas em sala de aula, com a
participação dos alunos e professores da escola, a adesão dos participantes foi
voluntária, houve liberdade na escolha do conteúdo e da forma de exposição por
parte dos aplicadores.
Além dos alunos, professores da escola e dos idealizadores do projeto, o CL
contou também com a participação de um grupo de monitores, formado por
estudantes de graduação. Esses monitores, tiveram uma participação ativa tanto no
desenvolvimento das atividades, como em sua aplicação, fazendo o papel de
mediadores nos encontros do clube e exercendo papel importante na coleta de
dados.
As atividades foram propostas em três frentes com temas sempre
810
relacionados à ciência, mas com focos distintos. Uma das frentes trabalhou mais a
questão do humor, com o uso do livro “O Guia do Mochileiro das Galáxias” de
Douglas Adams, outra frente teve como foco a relação entre ciência e fantasia, e
usou o livro “O Ladrão de Raios” de Rick Riordan. A frente no qual este trabalho se
insere, focou-se mais em livros Hard Science Fiction, em especial aqueles que
continham planetas fictícios. “Duna”, livro de Frank Herbert e “O Cair da Noite” de
Robert Silverberg e Isaac Asimov, foram dois livros utilizados nessa frente.
811
monitores refutavam e discutiam as possíveis soluções. Nessa dinâmica, foi
possível conduzir a partir da leitura uma discussão descontraída e bastante
profunda sobre temas científicos que abordavam principalmente a questão da
sobrevivência e da adaptação. Houve participação da maioria dos estudantes, que
deram ideias, discutiram e apresentaram em seus discursos tanto referências ao
trecho do livro como indagações e informações científicas. A interdisciplinaridade
ficou bastante evidente nessas discussões. Como exemplo, pode-se citar que a
Biologia foi mencionada quando um estudante se pôs a explicar espontaneamente
por que os cactos possuem espinhos, enfatizando que não é só para proteção, mas
para evitar a transpiração. A Ecologia (e também assunto da Química e da
Meteorologia) foi mencionada quando foi discutida a origem do oxigênio em um
planeta que não tem oceanos (como na Terra, cuja maior parte do oxigênio da
atmosfera vem das algas marinhas). Na Física, os alunos indagaram de onde
poderiam obter energia (dos ventos, da água em movimento, das fezes). E houve
até um pouco de História, quando um dos monitores mencionou que em alguns
bunkers da Alemanha, construídos durante a Segunda Guerra eram providos de
sistemas de geração de energia a partir do biogás.
No livro “O Cair da Noite” a história se passa em um planeta fictício chamado
Kalgash. Esse planeta é rodeado por seis sóis que rodeiam os céus de tal forma
que os seus habitantes dificilmente veem a escuridão da noite. Tal evento ocorre
apenas a cada 2049 anos em uma combinação improvável da configuração dos
astros no céu. Em um mundo onde as pessoas não conhecem a noite, a escuridão
pode trazer pânico e loucura. É sob essa tensão que a história se desenrola, onde
cientistas confrontam o fanatismo religioso e o senso comum para tentar evitar que
uma catástrofe aconteça. Assinado por Robert Silverberg e com a marca indelével
de Isaac Asimov, o livro representa a ciência com fidelidade, tanto em seus
conceitos científicos, como na representação da vida acadêmica.
Na atividade apresentada no CL, a leitura do “O Cair da Noite” foi feita pelos
monitores que buscaram trazer à narrativa um tom mais dramático. Cabe relatar que
tal objetivo não se cumpriu, o nervosismo dos monitores prejudicou a intenção inicial
e a leitura foi mais mecânica e monótona do que se pretendia. Amparada pela
812
leitura, foi feita uma roda de discussões cujo tema dessa vez eram os exoplanetas
(planetas fora do sistema solar). A turma de alunos se mostrou interessada, mas
interagiu menos, com poucas perguntas e colocações espontâneas. Foram
discutidos temas como sistemas planetários com configurações alternativas,
movimentos de rotação e translação, habitabilidade (em que condições seres
humanos podem viver? Em um planeta com tantos sóis não seria quente demais?).
O objetivo das atividades relatadas era testar o potencial da FC e a
atratividade da Astrobiologia no incentivo à ciência. Visto também que o tema é
chamativo, havia a expectativa de que a discussão científica também despertasse
o interesse dos alunos na leitura dos livros, cuja leitura no encontro se restringiu a
algumas páginas. Os dois livros foram adquiridos pela escola e foram
disponibilizados para empréstimo. O “Duna” a princípio não foi retirado por nenhum
aluno, o principal motivo pode ser resumido na frase proferida por uma das
estudantes: “eu precisaria de um ano pra ler esse livro inteiro”. No final do semestre,
uma aluna pediu para levar o livro para as férias. No entanto, até a presente data
não tivemos um retorno de suas impressões. O “Cair da Noite” foi retirado por três
alunos diferentes. Um deles retornou o livro logo após a leitura dos primeiros
capítulos alegando que “não tinha gostado muito”. Dois, no entanto, leram o livro na
íntegra e souberam explicar com bastante desenvoltura do que o livro se tratava e
souberam enaltecer aspectos científicos como “o livro fala também de Arqueologia,
foi inesperado, mais muito interessante”.
813
Não apresentamos aqui um sistema consistente de coleta e análise de dados,
algo que deve ser feito mais adiante com uma observação mais planejada e acurada
e um montante maior de dados. No entanto, apenas pela observação do
comportamento dos estudantes e pelo desenvolvimento do material de trabalho, foi
possível verificar que de fato a Astrobiologia carrega em si um enorme potencial
educativo, tanto no que diz respeito a instigar a curiosidade como em seu tratamento
interdisciplinar. Pautadas na espontaneidade, as rodas de discussões passaram por
vários assuntos de diferentes ramos do saber, com um especial destaque para a
Astronomia e Biologia, mas também abarcando Geologia, Física, Meteorologia e até
mesmo, em um relance, um pouco de História.
A retirada de livros, principalmente o “O Cair da Noite” também foi uma mostra
de que abordar a ciência fazendo uso da Ficção Científica pode ser um
impulsionador da vontade de ler.
O Clube de Leitura está em seu primeiro ano e tem sido melhorado a cada
momento, com uma autorreflexão constante. Em trabalhos futuros, outros livros
podem ser utilizados como o “Perdido em Marte” de Andy Weir, a série Lucky Starr
de Isaac Asimov. Uma coleta de dados mais consistente e quantificada também
deve ser empregada em atividades futuras.
Obras Citadas
O Cair da Noite
SILVERBERG, R e ASIMOV, I.. O Cair da Noite, Rio de Janeiro: Record, 1992.
Duna
HERBERT, F. Duna, São Paulo: Aleph, 2010.
O Guia do Mochileiro das Galáxias
ADAMS, D., O Guia dos Mochileiros das Galáxias, Rio de Janeiro: Sextante, 2010.
O Ladrão de Raios
RIORDAN, R., O Ladrão de Raios, Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2008.
Perdido em Marte
WEIR, A., Perdido em Marte, São Paulo: Arqueiro, 2014.
Lucky Starr
814
ASIMOV, I., O Robô de Júpiter, São Paulo: Hemus, 1987.
Referências Bibliográficas
815
O FRASCO ABERTO: ANÁLISE DE CONTOS DE JAIME BAYLY E CAIO
FERNANDO ABREU
Introdução
816
Contextualizando o homem pós-moderno na narrativa de Bayly e Abreu
O escritor chileno José Donoso dizia que o escritor não é uma pessoa comum
qualquer. É sempre um marginalizado com poder: o poder de aceitar a dor de suas
limitações e convertê-las em literatura (apud PACHECO, 2005, p. 312). É
justamente essa a abordagem feita por Bayly e Abreu em seus contos, olhar o
mundo e traduzi-lo por meio das palavras. Os personagens dos autores vagueiam
por metrópoles feias, super-povoadas, invadidas por mensagens publicitárias. São
seres em busca de uma identidade e, nessa busca, são humanamente
contraditórios. Infelizmente, “a identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia” (HALL, 2004, p.13). As sociedades pós-modernas estão
em constante mudança. Essa rapidez de transformação e de aniquilamento do que
até ontem era tido como certo, transformou o homem em um individuo que relativiza
tudo. Já nada mais é concreto, imutável ou duradouro.
817
intertextualidade presente, assim como a do cinema e de ícones da cultura pop;
fundamentais para dialogar com a contemporaneidade e para delinear o perfil das
personagens dos contos. Para este estudo, definimos intertextualidade segundo
Roland Barthes: […]“se trata, en efecto, de esa idea de hacer anónimo al autor, de
divorciarlo de su texto, que puede considerarse como la proyección de textos
anteriores en virtud de derivaciones, de transformaciones y hasta de parodias y
plagios” (apud CALVET, 2001, p. 194)
Conto e intertextualidade
818
nós através de relações intertextuais (cinema, música). Na última parte do conto
temos o clímax e o desfecho.
Ambos os contos possuem particularidades que Rios aponta como
fundamentais na estrutura de um conto: a unidade de sentido e um núcleo sólido.
Ainda que os dois autores dialoguem com a contemporaneidade e com as
referências culturais, elas estão a serviço da construção do conto, de desenhar as
personagens, de descrever melhor a trama. Não existem quebras ou ruídos que
desconstruam a narrativa. Nesse sentido, os dois contos seguem uma linha
tradicional.
A narração do conto “Extrañando a Diego” é feita em primeira pessoa, o
narrador (Felipe) é a personagem principal. Ele realiza as ações que relata: “El
primer recuerdo que tengo de Diego es una vez, hace años, que lo vi montando
bicicleta por el malecón de Miraflores” (BAYLY, 1996, p. 223).
819
redemocratização fez com que ativistas pudessem lutar pelos direitos gays longe da
clandestinidade. Na análise dos contos de Bayly e Abreu estabeleceu-se adotar a
palavra homoerótico ao invés de homossexual. A definição homoerótica é dada pelo
psicanalista e professor Jurandir Freire Costa (1992). Segundo ele, a palavra
homossexualismo está vinculada a valores oitocentistas (como alusão a doença,
desvio, anormalidade e perversão), enquanto homoerotismo se distancia desses
conceitos porque procura descrever melhor as práticas e desejos dos homens que
fazem sexo com homens. E é justamente esse matiz que os respectivos autores,
Bayly e Abreu, quiseram abordar. Não se trata de uma literatura engajada ou
militante pelas minorias sexuais, no sentido tradicional da palavra, mas têm como
eixo central a perspectiva homossexual masculina. É nela que os autores se apoiam
para descrever a sociedade à qual pertencem, e são seu pretexto para explorá-la
de modo critico.
Um terceiro ponto é fundamental para a compreensão dos contos: o
crescimento desenfreado das cidades. Ainda durante a vigência das ditaduras, as
grandes cidades latino-americanas se tornaram verdadeiras metrópoles. O fato
merece atenção: em muitas cidades o êxodo rural é promovido pelo emprego nas
indústrias e melhores condições de vida e trabalho na cidade. Contudo, e apesar
disso, o que muitos encontram ao chegar nelas é o oposto: o desemprego e a
marginalidade. O inchaço das cidades promove abismos sociais intransponíveis: de
um lado, uma minoria branca, donos do poder e do dinheiro; do outro, uma massa
de miseráveis analfabetos que procurar sobreviver no caos urbano.
A metrópole acaba por tornar-se um local inóspito, cruel e solitário. Cientes
desse fato, Abreu e Bayly encontrarão nesse cenário o local certo para desfilar suas
personagens e suas angústias e, por meio dessas, fazer críticas sociais. É também
o cenário adequado para retratar o homem pós-moderno, fragmentado, órfão de
uma identidade integradora, segura e impermeável.
Finalmente, os dois contos à sua maneira procuram a ruptura com a tradição
literária, de modo especial com o chamado Boom da literatura latino-americana e
seu Realismo Mágico que revelou ao mundo o talento de autores como Gabriel
García Márquez. Se por um lado o Boom latino-americano tornou a literatura do
820
continente evidente no mundo inteiro, por outro aprisionou nesse rótulo a geração
que publicaria nas décadas de 1980 e 1990.
Contudo, as realidades que o continente apresentava (derrocada das
ditaduras, inflação em alta, endividamento das nações americanas com o FMI –
Fundo Monetário Mundial, explosão demográfica, processo de redemocratização,
crescimento das cidades, etc) impeliram os novos autores literários a rechaçar a
fusão de realidade com a suposta mágica do continente. Outras preocupações
permeavam os autores como o desemprego, a violência e a vivência do homem
urbano num espaço claustrofóbico. Essas inquietações levaram à publicação de
obras que dialogaram com essa nova realidade. Uma delas foi a emblemática
coletânea McOndo (organizada por Alberto Fuguet e Sergio Gómez, 1996), onde foi
originalmente publicado “Esperando a Diego” de Bayly. Para Fuguet a geração
McOndo “es una nueva generación literaria que es post-todo: post-modernismo,
post-yuppie, post-comunismo, post-babyboom [sic], post-capa de ozono. Aquí no
hay realismo mágico, hay realismo virtual” (FUGUET, 1996, 12).
821
televisivo, o leitor encontra-se, entre uma linha e outra, em vários ambientes: a
academia de ginástica, a discoteca, o quarto, a praia, Miami etc.
Ao escrever o conto, Bayly nos situou numa realidade peruana que não tem
escapatória. Lima é uma cidade claustrofobia que asfixia seus personagens.
Nesse cenário, retrata uma burguesia limenha, suscitando no leitor o riso nervoso
e a indignação diante das atitudes individualistas de seus personagens. Felipe e
Diego, os protagonistas, são desprezíveis, sendo quase impossível simpatizar com
eles. Irresponsáveis e alienados, eles correspondem ao perfeito perfil desenhado
pela hipermodernidade: hedonistas, niilistas, narcisistas. Em “Extrañando a Diego”,
Bayly faz referências à cultura pop para construir e definir seus personagens
principais: “Era un dios. Parecía Brando (hace cuarenta años)” (BAYLY, 1996, p.
224).
822
Na análise da trama percebe-se como o autor constrói suas personagens
através de referências culturais: música, arte, cinema e literatura. Dessa forma, Raul
e Saul revelam uma delicadeza e sensibilidade artística que os aproximará. Raul
cantava boleros e tinha um sabiá chamado Carlos Gardel; Saul tinha cadernos de
desenho e um livro de reproduções de Van Gogh, além de uma reprodução do
mesmo pintor na parede. Ambos gostavam de cinema. A solidão dos personagens
se constrói a partir desses objetos e habilidades artísticas: Raul tem a companhia
do sabiá, companheiro que ouve em silêncio os boleros que ele toca e canta no
violão, revelando um personagem romântico; Saul tem a reprodução de Van Gogh
na parede. Tal descrição revela um personagem sensível, um homem capaz de ver
num quadro o espelho do seu quarto.
O que começou como uma apresentação formal entre ambos aos poucos foi
crescendo, principalmente quando a conversa sobre o filme Infâmia e a paixão em
comum pelo cinema os aproximou. Altos, belos e jovens, eram assediados pelas
moças da repartição, mas o frio e feio ambiente de trabalho, o desencanto com as
mulheres e a descoberta de afinidades entre eles foi tecendo “uma estranha e
secreta harmonia” (ABREU, 1989, p.148).
823
verdadeiros sentimentos dos protagonistas. Caio seduz com sua linguagem de
suave fluidez e com a intertextualidade presente no conto, que permite ao leitor fazer
outras leituras. Ainda que a linguagem virulenta de Bayly tenha sua justificativa e
seja ela mesma uma marca de seu autor, é inevitável a comparação uma vez que
este estudo pretende aproximar e examinar particularidades de cada conto.
Considerações finais
Referências Bibliográficas
824
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826
CULTURAS EM CONTATO: BRASIL E EUA, VARGAS E ROOSEVELT
Introdução
827
até a sua morte. Seu primeiro mandato foi marcado pelo entusiasmo gerado pela
franca e rápida recuperação econômica do país após momentos econômicos tão
penosos. Já seu segundo mandato se viu marcado pela entrada dos EUA na II
Guerra Mundial e pela Política do New Deal, ou uma Nova Conduta, na prática, uma
política de amplas dimensões, que visava a infusão cultural norte-americana nas
Américas, e dar início a uma nova postura no continente para fazer com que os EUA
se tornassem o novo centro econômico mundial. Esta política foi feita com um
cuidadoso planejamento de penetração ideológico-econômico-cultural de conquista
de mercado, que nada teve de aleatória ou despropositada.
O interesse dos EUA em diminuir a influência europeia em todo o continente
das Américas, em especial no Brasil, se deu devido ao difícil contexto econômico
enfrentado pelo país e pelo mundo antes, durante e pós-guerra, havendo a
necessidade de se encontrar alternativas econômicas que gerassem a reconstrução
financeira após o crash. O Brasil na época era um país essencialmente agrário,
exportador de café, que passava por momentos econômicos turbulentos devido ao
declínio do preço internacional desta commodity.
Getúlio Vargas foi presidente do Brasil entre 1930 - 1945 e novamente entre
1951 e 1954, quando cometeu suicídio. No total foram 24 anos de governo. Seu
governo foi dividido em quatro grandes fases: o Governo Provisório (1930-1934); o
Governo Constitucional (1934-1937); o Estado Novo (1937-1945) e o Segundo
Governo (1951-1954). Foi presidente eleito pela Constituinte de 1934, ditador entre
1937 e 1945, no momento histórico conhecido por Estado Novo. Foi chefe civil da
revolução que assolou o Brasil conhecida por Revolução de 1930. Não concluiu seu
último mandato por ter sido praticamente deposto em agosto de 1954 pelos
militares. Vargas jogou com os dois lados, o germânico e o americano: o Brasil
comprava armas e máquinas alemãs pelo sistema de compensação que
incomodava os EUA; já em meados dos anos 40, em 1935, o governo brasileiro fez
um acordo para uma compensação informal com a Alemanha, apesar de ter
assinado um tratado de comércio bilateral com os Estados Unidos.
Roosevelt combateu esse comércio de compensação proposto pela
Alemanha com sua Nova Conduta – que combatia a troca de produtos por produtos,
828
sem a necessidade de intermediação de moedas fortes como a libra ou o dólar, aliás
escassas tanto na América Latina como na própria Alemanha -, instituiu o livre-
comércio; realizou um trabalho político-diplomático no continente por meio de
conferências interamericanas, além de procurar concordância com militares latino-
americanos para seus planos de defesa das Américas.
Seu segundo mandato viu o programa doméstico de recuperação econômica
eclipsado por um novo perigo pouco percebido pela maioria dos americanos: os
planos expansionistas dos regimes totalitários no Japão, Itália e Alemanha, o que
fez com que em 1940, na campanha presidencial, se evidenciasse que havia no
país poucos seguidores da posição isolacionista. No mesmo ano, em agosto,
Roosevelt criou um Bureau, ou um Birô. Inicialmente com o nome de Escritório para
a Coordenação de Relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas
Americanas (Office for Coordinations of Commercial and Cultural Relations between
the American Republics), teve depois seu nome simplificado para Escritório de
Coordenação de Assuntos Interamericanos (Office of the Coordinator of Inter-
American Affairs), chefiado pelo jovem norte-americano Nelson Rockefeller, tal
Bureau era munido de instrumentos para atingir os fins de enfrentar o desafio do
Eixo no plano internacional e consolidar o Estado norte-americano como grande
potência.
Rockefeller foi designado para o cargo devido a sua influência política e por
ter conhecimento de que o sucesso econômico de uma empresa se dá por causa
de uma base ideológica consistente de acordo com as ideias de Antonio Pedro Tota,
autor que investiga as bases do intercâmbio cultural Brasil/EUA em seu livro O
Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da segunda guerra.
Devido ao citado flerte de Vargas com o Eixo, o autor alega que Rockefeller articulou
um serviço de inteligência para investigar as ações brasileiras:
829
Tanto a organização, quanto as capacidades de empreender e planejar suas
ações são características que os demais povos do mundo constantemente
destacam como genuinamente norte-americanas, ou simplesmente “americanas”
como eles mesmos se intitulam. Com o Bureau não foi diferente, ele comportava
quatro divisões básicas: a de comunicações, a de relações culturais, a de saúde e
a comercial/financeira, em três áreas interligadas de informações, saúde e
alimentação. A divisão de informações era a mais importante do ponto de vista da
penetração cultural e ideológica e compreendia as seguintes seções: imprensa,
rádio, filmes, análises de opinião publica e ciência/educação. A divisão de saúde
planejava ajudar nos problemas de saúde do hemisfério, tais como controle da
malária, prover assistência médica aos trabalhadores, treinamento de médicos e
enfermeiras, distribuição de literatura médica e bolsas de treinamento nos EUA.
Tais ações tinham como propósito a defesa dos interesses norte-americanos,
pois os planejadores americanos sabiam que seu governo iria provavelmente enviar
forças militares para certos lugares da América Latina que não teriam boas
condições sanitárias, e era preciso assegurar a saúde de seus soldados. Além do
mais, algumas regiões latino-americanas seriam decisivas do ponto de vista do
fornecimento de materiais estratégicos, como borracha, ferro, manganês, cristais de
quartzo etc.; e era vital assegurar as melhores condições de trabalho nessas
regiões, isso incluiria também a divisão dos alimentos que ao fim e a cabo, ficaram
restritas à distribuição de sementes e produção direta de alimentos (verduras,
legumes, ovos e carne) em áreas selecionadas do continente com o mesmo intuito
de assegurar às unidades militares americanas, e dos outros países, alimentação
em áreas estratégicas, como na Amazônia e no nordeste brasileiro, mais
precisamente em Natal.
As atividades da agência criada por Rockefeller tinham duas importantes
incumbências: difundir entre os americanos uma imagem positiva dos países latino-
americanos, em especial do Brasil, e convencer os brasileiros de que os EUA
sempre foram amigos do Brasil, pelos meios de comunicação de massa, que se
consolidavam nos anos 40. Nos EUA esta propaganda era direta, nas rádios havia
comerciais que diziam: “Sempre que você tomar um café brasileiro, você estará
830
comprando a Política da Boa Vizinhança. Compre café brasileiro... se você for a
favor da Política da Boa Vizinhança.” (TOTA, 2000: 109). A Política da Boa
Vizinhança (Good Neighbor Policy) era um dos desdobramentos da New Deal Policy
e, como bons vizinhos, o socorro em caso de invasão era uma das práticas vigentes
da época. Em resposta a uma pesquisa que perguntava exatamente se os EUA
deveriam socorrer o Brasil em caso de ameaça por uma potência, em 1939, 27,1%
dos entrevistados disseram que sim e 53,7% que não; já em 1940, 36,3% disseram
que sim e 40% que não, o que significa que boa parte dos americanos aderiu à
Política da Boa Vizinhança (TOTA, 2000: 110) e que as técnicas adotadas de
convencimento da opinião pública estavam se consolidando.
No ano de 1941, os EUA ainda não estavam ativamente envolvidos na
guerra, a situação mudou com o episódio de Pearl Harbor – em que uma base norte-
americana ali situada foi atacada pelos japoneses, danificando 21 navios e 347
aviões, matando 2403 pessoas em média e feriando outras 1178 - em dezembro
desse ano. Como mencionado, a influência germânica na América Latina
preocupava os EUA o que fez o país adotar uma outra política conhecida por
“porrete grande” (big stick), que relacionava a ideia de que as potências europeias
não tinham o direito de intervir ou de tentar recolonizar a América, ou “Doutrina
Monroe” – “América para os americanos” -, com a política exterior feita pelo
presidente George Washington quando presidente dos EUA (1789 -1797), que
apesar de isolacionista, defendia a ideia de que os EUA tinham um papel protetor
em relação ao conjunto das Américas.
Com a constatação por parte dos políticos norte-americanos de que as
grandes nações europeias estavam conquistando rapidamente os locais
desocupados do planeta, começou a haver a necessidade de modificação da
posição isolacionista da nação, o que levou aos Estados Unidos intervirem política
e militarmente várias vezes em países do continente sempre que julgaram estar
ameaçados seus interesses políticos ou econômicos. Moura assim define a política
big stick: “Esse intervencionismo declarado foi chamado de big stick, inspirado numa
frase famosa do presidente Theodore Roosevelt sobre a política americana para o
continente. ” (MOURA, 1986: 16).
831
Os ataques à base de Pearl Harbor fizeram parte de um momento decisivo
(turning point) nessa mudança de postura e de opinião pública quanto à quebra da
postura isolacionista do país. Jornais da época reportam que os ataques foram
transmitidos pelas rádios americanas e mobilizaram a opinião pública que começava
de fato a abandonar a posição isolacionista de tantos séculos. O ataque permitiu
uma mobilização militar acelerada gerando reações extremas na população norte-
americana, cuja opinião pública via-se claramente transformada:
Outro incidente (TOTA, 2000: 42) que pode ter contribuído para a mudança
da opinião pública norte-americana com relação à política isolacionista foi um em
que Roosevelt enviou, em março de 1939, uma mensagem a Hitler, pedindo que a
Alemanha não invadisse cerca de vinte países, nomeados um a um. Imagens da
época mostram Hitler lendo a mensagem no Reichstag e alta cúpula nazista rindo,
às gargalhadas, do presidente americano.
Já Gerson Moura, historiador e cientista político brasileiro privilegia a
perspectiva da penetração cultural norte-americana em seus estudos, em especial
no livro Tio Sam chega ao Brasil, de 1986. Moura recolhe evidências em sua obra
que defendem a hipótese de que houve um planejamento e uma estratégia adotada
pelos EUA para essa difusão cultural, como vemos no excerto: “[...] esse processo
de exportação cultural era parte integrante de uma estratégia mais ampla, que
procurava assegurar no plano internacional o alinhamento do Brasil (e da América
Latina) aos EUA [...] centro de um novo sistema de poder no plano internacional.”
(MOURA, 1986: 11-12). A década de 1940 foi marcada pela presença cultural
maciça dos EUA no Brasil e pela infusão do American way of life (“o jeito de viver
norte-americano”) em nossas vidas. A presença econômica já se fazia presente
pelas ações e estratégias traçadas pelo Bureau, algumas das quais aqui pontuadas,
além dos muitos produtos culturais como filmes e músicas que aqui chegavam e
832
insuflavam os valores culturais daquele povo em nós. Tal conjunto de ações acabou
por modificar nossa maneira de ver, sentir e nos expressar no mundo, em outras
palavras, modificou nossa cultura:
A presença econômica, menos visível, era bem anterior e certas
manifestações culturais, como o cinema de Hollywood, já inculcavam
valores e ampliavam mercados no Brasil. Mas a década de 40 é notável
pela presença cultural maciça dos Estados Unidos, entendendo-se
cultura no sentido amplo dos padrões de comportamento, das
substância dos veículos de comunicação social, das expressões
artísticas e dos modelos de conhecimento técnico e saber científico. O
traço comum às mudanças que então ocorriam no Brasil na maneira de
ver, sentir, explicar e expressar o mundo era a marcante influência que
aquelas mudanças recebiam do “American way of life”. (MOURA, 1986:
8).
833
(SILVA; CACHAPUZ e LAMARÃO, 2004:13). Ainda segundo publicação oficial do
BNDS (Banco Nacional do Desenvolvimento Social) de 2004 do Governo Lula,
Vargas era amado e odiado com a mesma paixão, pois personificou o nacionalismo,
o trabalhismo e a ideia de um Estado forte:
Vargas simplesmente fez o povo brasileiro acreditar em si mesmo.
Autoestima e serena percepção de identidade nacional são ingredientes
vitais para a construção do futuro como projeto. Representou na política
a coroação do Movimento de Arte Moderna, que descobriu o Brasil para
si mesmo. (SILVA; CACHAPUZ e LAMARÃO, 2004:11).
834
financeira conservadora até os anos 1945. Há destaque também ao fato de Vargas
ter, em 1930, baixado um decreto em que exigia que as empresas nacionais
tivessem em seus quadros dois terços de trabalhadores nacionais em uma época
de intensos contingentes imigrantes provocados pelas guerras. Houve, então, a
centralização do poder no plano institucional, a dissolução do Congresso e dos
legislativos estaduais e municipais e as muitas substituições de governantes eleitos
por interventores federais nomeados.
Já no campo ideológico, há a ênfase dos autores para o caráter nacionalista
do governante que defendia o objetivo de ampliar a siderurgia, nacionalizar a
exploração de riquezas naturais, e defender a soberania e complexo problema da
defesa nacional. As atuações de Vargas no campo trabalhista e social foram
intensas. Em 1930, ainda no Governo Provisório, criou o Ministério do Trabalho; em
1937, já no Estado Novo, uma nova lei de sindicalização; em 1940, instituiu o salário
mínimo garantido pelo Estado; em 1942, o imposto sindical compulsório e o SENAI
(Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), subordinado à CNI (Confederação
Nacional da Indústria) - voltada para o aperfeiçoamento profissional dos
trabalhadores brasileiros. O ápice desta política trabalhista se deu em 1943 com a
CLT – Consolidação das Leis de Trabalho.
Fausto destaca as medidas assecuratórias de direitos e o enquadramento
das organizações sindicais em medidas regulatórias, entre 1931 e 1932, foram
estabelecidas as modalidades de concessão de férias, houve a criação da Carteira
Profissional, a regulamentação da carga horária do trabalho no comércio e na
indústria, além do próprio trabalho de mulheres e dos menores. A Justiça do
Trabalho foi prevista na Constituição de 1934, mas sua regulamentação só se deu
em 1941, já no Estado Novo.
Pontuamos neste artigo, brevemente, os episódios, ações, medidas, práticas
culturais, políticas públicas etc. dos contextos histórico-culturais vividos no início do
século XX nos EUA e no Brasil com a finalidade de tentarmos entender o que
ocorreu no momento do contato entre as duas culturas e como se deu a mudança
de paradigma que colocou os EUA e sua forma de viver no centro de nossa
realidade. Como passamos a ser mais como eles e deixamos de ser tão
835
genuinamente nós? Como houve uma transformação em nossa cultura, uma trans-
culturalidade.
Quando tomamos os Estudos Culturais como base teórica de investigação,
nos deparamos com a escorregadia ideia de transculturalismo, que pode ser
entendida, dentre várias outras maneiras, como uma problemática em torno das
culturas contemporâneas em termos de relacionamento, produção de sentido, etc.
O transculturalismo visa a iluminar os gradientes de cultura e as maneiras que os
grupos sociais “criam” e “distribuem” seus sentidos, as formas de interação entre os
grupos sociais e como esses experienciam suas tensões. Em outras palavras, o
transculturalismo enfatiza a natureza transitória da cultura, assim como o seu poder
de transformação. Em particular, ele considera as formas em que as intituladas
“guerras da língua” (language wars) são moldadas e conduzidas historicamente.
Essas guerras criam as condições de estabilidade e de instabilidade, enquanto os
indivíduos e grupos congregam, se comunicam e procuram afirmar seus interesses
materiais e semióticos sobre os demais (LEWIS, 2002: 13).
Poderíamos assumir que as culturas são formadas em torno destas
“guerras”, que operam em meio a todos os níveis sociais e podem ser mais ou
menos severas em termos de resultados semióticos, pessoais e materiais. As
guerras, parte inevitável do engajamento humano, são constituídas por “lutas para
significar” (“struggle to signify”): os indivíduos e os grupos sociais se engajam em
guerras ao tentarem se comunicar, formar comunidades, ao maximizarem
gratificações pessoais e até ao criarem limites (LEWIS, 2002: 13). Em suma, as
estratégias linguísticas são implementadas com a finalidade de constituir
associações pessoais ou sociais, ou com a finalidade de atacarem outros indivíduos
e associações para controlar, gerenciar ou destruir os demais.
O transculturalismo, por essa visão, aceita que a linguagem e a materialidade
interagem continuamente dentro de um locus instável de condições históricas
específicas. Jeff Lewis adverte, no entanto, que o nosso acesso e nosso
conhecimento acerca desse material e de suas condições de produção são
definidos historicamente e necessariamente filtrados pelo nosso grau de
comprometimento com a linguagem e com as “guerras da língua” que ali se
836
instauram. A isso, Lewis acrescenta que as guerras da língua tornam-se mais
fecundas e intensas de acordo com a proximidade entre os grupos sociais, o que
faz com que o transculturalismo se encaixe claramente nos debates atuais acerca
de globalização e internacionalização (LEWIS, 2002: 14).
Devido ao planejamento e ao conhecimento de que para o sucesso da
conquista de um novo mercado deve-se ter um cuidadoso plano de dominação
ideológica, ao fim e ao cabo, pelo menos naquele momento histórico, houve,
praticamente, uma infusão de valore culturais e econômicos norte-americanos,
como também conclui Moura em seu texto:
A boa vizinhança se apresentava como uma avenida larga e de mão
dupla, isto é, um intercâmbio de valores culturais entre as duas
sociedades. Na prática, a fantástica diferença de recursos de difusão
cultural dos dois países produziu uma influência de direção
praticamente única, de lá para cá. (MOURA, 1986: 9).
Referências Bibliográficas
CINCOTTA, H. Perfil da História dos EUA. (trad. Márcia Biato). Washington: Editora
Departamento de Estado dos EUA, 1994.
FAUSTO, B. Getúlio Vargas. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
837
LEWIS, J. From Culturalism to Transculturalism. In: Iowa Journal of Cultural Studies
1: University of Iowa, 2002.
MOURA, G. Tio Sam chega ao Brasil. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SILVA, R. M; CACHAPUZ, P. B.; LAMARÃO, S. (org.) Getúlio Vargas e seu tempo.
Rio de Janeiro: BNDS, 2005.
TOTA, A. P. O Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da
segunda guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
838
A ESCRITA DE SI E OS BASTIDORES DA CRIAÇÃO LITERÁRIA EM CARTAS
A UN JOVEM POETA, DE RAINER MARIA RILKE, E CARTAS A UN JOVEN
NOVELISTA, DE MARIO VARGAS LLOSA: APROXIMAÇÕES
Regina Kohlrausch279
279 Professora titular da Faculdade de Letras da PUCRS, com atuação na Graduação e Pós-Graduação. Mestre
e Doutora em Letras, Teoria da Literatura, pela PUCRS. Realizou se estágio pós-doutoral na Universidade de
Vigo, Espanha, em 2010-2011, com bolsa CAPES-Fundación Carolina. Desenvolve projetos de pesquisa junto
aos DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS e desde 2012 coordena o Grupo de
Pesquisa Escritores Sulinos.
280
Apresentação da primeira edição da obra Cartas a un jovnm poeta, datada “Berlim, junio de 1929”, que
acompanha a edição traduzida por José María Valverde, da Alianza editorial de 1980.
281
KAPPUS, 1929 (1980), p. 15-16.
839
se forman, para los que mañana se formarán. Pero cuando un príncipe va a hablar,
hay que hacer silencio”.
A sequência organizada começa com a carta do dia 17 de fevereiro de 1903,
situada em Paris, a primeira, seguida da carta do dia 05 de abril, a segunda, escrita
em Viareggio, Pisa, Itália, em resposta à carta enviada por Kappus em 24 de
fevereiro de 1903; a terceira carta é de 23 de abril também em resposta à carta
recebida, enviada também da Itália; a quarta carta data de 16 de julho de 1903,
situada “provisoriamente em Worpswede (Bremen)” respondendo à carta do dia 02
de maio de 1903; a quinta carta é de 29 de outubro de 1903, escrita em Roma,
respondendo à carta de 29 de agosto; a sexta carta é do dia 23 de dezembro de
1903, também de Roma, escrita com a intenção de desejar Feliz Natal e Ano Novo;
a sétima carta é de 14 de maio de 1904, escrita também em Roma, respondendo a
uma carta anterior, sem mencionar a data, cujo atraso deve-se ao estado de saúde
de Rilke; a oitava carta é de 12 de agosto de 1904, escrita em Borgeby Gard, Suécia,
com a intenção de falar ao senhor Kappus e confortá-lo sobre algo não muito claro
no texto; a nona carta é de 04 de novembro de 1904, escrita em Furuborg, Suécia,
em resposta a uma carta anterior, bastante curta, porque o remetente diz estar
cansado porque já escreveu muitas cartas nesse dia; a décima e última carta
publicada é de 26 de dezembro de 1908, também respondendo a uma carta anterior,
felicitando a Kappus pelo local onde se encontra naquele ano. Destaca-se que o
espaçamento de quatro anos entre a nona e a décima carta publicadas não tem
nenhuma nota explicativa sobre tal situação, mas é possível inferir que esse
distanciamento se deve não porque ocorreu uma pausa na troca de cartas, mas pela
própria seleção do conjunto de correspondência recebida por Franz Xaver Kappus,
ou seja, ele publicou algumas e não o conjunto. Salienta-se também que estamos
diante somente de uma correspondência recebida e não da enviada, fato este que
não prejudica a compreensão do conteúdo da carta enviada, pois, como é próprio
do gênero carta, há as referências sobre a carta recebida ou há menções que
permitem inferir o conteúdo da correspondência anterior.
Cartas a un joven novelista, de Mario Vargas Llosa, publicada em 2011,
compõe-se de doze cartas, todas elas tituladas, sem data de localização,
840
antecedidas de um prólogo e finalizadas com um índice onomástico de autores.
“Una discreta autobiografia”, que abre a sequência de cartas, Vargas Llosa
esclarece:
Llosa explica ainda que essa obra foi escrita “a sugerencia de un editor que
se proponía publicar una colección en la que practicantes veteranos de diversas
disciplinas se dirigían a un supuesto discípulos para confiarle los secretos de suo
oficio” (2011, p. 09). No entanto, o projeto não se efetivou, mas Vargas Llosa gostou
da ideia porque “me llevó a reflexionar sobre o que venía haciendo desde hacía
muchos años – contar historias – y éste es el resultado” (Ibidem). Ao concluir sua
apresentação, afirma: escribí todos estos capítulos en pocos meses, aprovechando
notas y apuntes que me habían servido para dar conferencias o seminarios sobre
mis autores favoritos. Se trata, pues, de un libro muy personal y, en cierto modo, de
una discreta autobiografia” (VARGAS LLOSA, p. 1-10).
Convém destacar que ao afirmar que “se trata de una discreta autobiografia”,
Llosa autoriza que se leia e se caracterize seu texto como autobiográfico, ou seja,
as experiências relatadas nas cartas são originárias de sua experiência diária como
escritor, confirmando a possibilidade de se ler a correspondência como “escrita de
si”, porque revela o próprio eu nessa escrita. Por outro lado, no início do texto, ao
afirmar que o livro é “un ensayo” sobre a maneira como nascem e se escrevem os
romances, de acordo com sua experiência pessoal, sugere um caráter mais
acadêmico sobre seu processo de criação literária, seguindo, mesmo assim, o
caráter confessional, ou seja, a escrita de si.
As cartas que compõe o livro, da primeira à última, doze ao todo, estão
direcionadas a um amigo “querido” ou “estimado”, tendo como ponto de partida a
carta recebida anteriormente, isto é, são cartas respostas encerradas sempre com
“un abrazo”, “un abrazo y hasta pronto, espero”, “un cordial saludo y hasta pronto”,
841
“un fuerte abrazo”, “hasta pronto”, “un abrazo y hasta la próxima”, “mucha suerte”,
revelando uma relação cordial entre emissor e destinatário.
Partindo dessa apresentação das obras, a presente comunicação volta-se
para a análise comparativa dos textos, mais especificamente para a primeira carta
de cada um dos livros, visando identificar os processos intertextuais, com destaque
às diferenças e às semelhanças no que se refere ao processo de criação literária,
levando em conta o período de produção e o destinatário das respectivas cartas.
Tal proposição tem como base o texto “A escrita de si”, de Michel Foucault (1969),
e a possibilidade de estudo da correspondência a partir de três perspectivas
sinalizadas por Marcos Antonio de Moraes (2007) em “Epistolografia e crítica
genética”.
Para Foucault (2006, p. 149-159), a carta “é algo mais do que um
adestramento de si próprio pela escrita, por intermédio dos conselhos e opiniões
que se dão ao outro”, porque “ela constitui também uma certa maneira de cada um
se manifestar a si próprio e aos outros”. Afirma ainda que a carta, “faz o escritor
“presente” àquele a quem a dirige”, porque escrever é “mostrar-se, dar-se a ver,
fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro”, ela é, por isso, “simultaneamente um
olhar que se volta para o destinatário e uma maneira de o remetente se oferecer ao
seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz”. Por meio dela, “abrimo-nos ao olhar dos
outros e instalamos o nosso correspondente no lugar do deus interior”. Seguindo tal
raciocínio, Foucault explica que o trabalho que a carta opera sobre o destinatário,
que também é efetuado sobre o escritor pela própria carta que envia, implica uma
“introspecção” entendida como “uma abertura de si que se dá ao outro”.
No âmbito do estudo do gênero epistolar, Moraes (2007, p. 30), diz que a
correspondência de escritores, artistas plásticos, músicos e intelectuais das
diversas áreas de conhecimento abre-se para “três perspectivas de estudo”. A
primeira possibilidade de exploração do gênero epistolar consiste em “recuperar na
carta a expressão testemunhal que define um perfil biográfico” porque, segundo
Moraes, “confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um
artista, contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que
ajudam a compreender os meandros da criação literária”. A segunda perspectiva é
842
a que oportuniza “apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um
determinado período”, porque “as estratégias de divulgação de um projeto estético,
as dissensões nos grupos e os comentários acerca da produção contemporânea
aos diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística tem
raízes profundas nos ‘bastidores’, onde, muitas vezes, situam-se as linhas de força
do movimento”, explica Moraes. A terceira possibilidade interpretativa é a que “vê o
gênero epistolar como ‘arquivo de criação’, espaço onde se encontram fixadas a
gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião
do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo a sua eventual
reelaboração”.
Como dito anteriormente, as cartas publicadas em cada um dos livros têm
como ponto de partida uma carta recebida, ou seja, trata-se de uma carta-resposta.
Em Rilke, a resposta começa “Su carta me ha alcanzado hace sólo pocos días”,
seguida de agradecimento pela confiança depositada e de uma advertência sobre a
dificuldade de avaliar adequadamente os versos enviados porque
Las cosas no son tan todas tan palpables y decibles como nos querrían
hacer creer casi siempre la mayor parte de los hechos son indecibles, se
cumplen en un âmbito que nunca ha hollado una palabra; y lo más indecible
de todo son las obras de arte, realidades misteriosas, cuya existencia
perdura junto a la nuestra, que desaparece (p. 21).
Sus versos no tienen una manera de ser propia, pero sí son callados y
escondidos arranques hacia lo personal. Con máxima claridad lo percebo
esto en la última poesía, Mi alma. Ahí, algo propio quiere llegar a ser
palabra y melodía. Y en la hermosa poesía A Leopardi crece quizá una
especie de parentesco com aquel gran solitario. Apesar de eso, estos
poemas todavís no son nada por sí mismos, nada independiente, ni aun el
último y el dedicado a Leopardi. La amable carta que usted acompaña no
deja de explicarme algunos defectos que noté en la lectura de sus versos,
sin poder darle su nombre propio. (p. 22)
843
aconsejarle ni ayudarle, nadie”, apresentando sugestões sobre onde buscar ou
encontrar o conteúdo poético pretendido. A primeira coisa a fazer é buscar dentro
de si a necessidade de escrever:
Hay sólo un medio. Entre en usted. Examine ese fundamento que usted
llama escribir; ponga a prueba si extiende sus raíces hasta el lugar más
profundo de su corazón; reconozca si se morirá usted si se le privara de
escribir. Esto, sobre todo: pregúntese en la hora más silenciosa de su
noche: ¿debo escribir? Excave en sí mismo, en busca de una respuesta
profunda. (p. 22).
844
Reitera, então, que ele não saberia dar outro conselho a não ser este: “entrar en sí
mismo y examinar las profundidades de que brota su vida: en ese manantial
encontrará usted la respuesta a la pregunta si debe crear. (...) Pues el creador debe
ser un mundo para sí mismo, y encontrarlo todo en sí y en la naturaleza a que se ha
adherido”, (p. 24).
Em direção ao fechamento da carta, Rilke comenta sobre a possibilidade de
uma resposta contrária, ou seja, se depois de voltar-se para dentro de si e perceber
que poderia viver sem escrever, a viagem não terá sido em vão, porque a partir daí
“su vida encontrará caminhos propios, y le deseo que sean buenos, ricos y amplios,
mucho más de lo que puedo decir”. Para terminar, escreve Rilke,
Afirma que sempre teve vontade de escrever para alguns deles e pedir
orientação sobre como ser escritor, mas que nunca escreveu
845
por timidez, o, acaso, por esse pesimismo inhibitorio – ¿para qué
escribirles, si sé que ninguno se dignará a contestarme? – que suele
frustrar las vocaciones de muchos jóvenes en países donde la literatura no
significa gran cosa para la mayoría y sobrevive las márgenes de la vida
social, como quehacer casi clandestino (VARGAS LLOSA, 2011, p. 11).
Após explicar porque nunca escreveu aos autores, diz ao seu interlocutor que
ter escrito a ele é um bom começo para a aventura que ele almeja empreender e da
qual espera, mesmo sem ter dito na carta, tantas maravilhas. Alerta ainda para que
“no cuente demasiado con ello, ni se haga muchas ilusiones en cuanto al éxito”,
porque, segundo Llosa, quien ve en el éxito el estímulo esencial de su vocación es
probable que vea frustrado su sueño y confunda la vocación literaria con la vocación
por el relumbron y los beneficios económicos que a ciertos escritores (muy
contados) depara la literatura (p. 12).
Na sequência, esclarece que entre as muitas incertezas, tem como certo que
o escritor “siente íntimamente que escribir es lo mejor que le ha pasado y puede
pasarle, pues escribir significa para él la mejor manera posible de vivir, con
prescindencia de las consecuencias sociales, políticas o económicas que puede
lograr mediante lo que escribe (Ibidem). Prossegue falando sobre a vocação como
ponto de partida para a produção artística, aproveitando para refletir sobre essa
predisposição ao exercício literário e o momento da decisão de tornar-se escritor,
como deve ser o caso do seu correspondente:
846
ponto de vista e sugerindo leituras que poderão auxiliar seu destinatário, entre elas
a correspondência de Flaubert, da mesma forma que ajudou a ele quando escrevia
seus primeiros livros.
Para finalizar, chamando seu correspondente de “mi amigo” se despede,
porque “esta carta se ha prolongado más de lo recomendable, para un género – el
epistolar – cuya virtud principal debería ser precisamente la brevedad, así que me
despido. Un abrazo.
Levando, portanto, em consideração as duas cartas apresentadas acima,
verifica-se a presença da intertextualidade entre as duas obras: há um texto primeiro
que serve de modelo para o texto segundo, no sentido não de rebaixar o modelo,
mas de validar um formato, neste caso, o gênero epistolar. Ao usar como ponto de
partida a resposta a uma carta recebida, ambos remetentes assumem para si a
posição de orientador ou conselheiro sobre a criação literária, mais especificamente,
no que se refere à decisão de ser um escritor: Rilke é mais direto, porque diz que a
primeira coisa a fazer é refletir se realmente esse é o desejo, enquanto que Llosa
diz que sabe que seu correspondente está passando por este momento decisivo e
que depende dele esta decisão. Tal postura está em consonância com a afirmação
de Foucault de que a carta constitui uma forma de cada um manifestar a si próprio
e aos outros, ou seja, ao sugerir a reflexão sobre a importância da escrita para o
outro, serve como reforço para o próprio convencimento e validação daquilo que
está fazendo. Confirma também sua presença para aquele a quem se dirige
oferecendo-se ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz.
Convém, salientar, no entanto, que em nenhuma das cartas há a revelação
da vida individual, mas a expressão acerca do ato de escrever, em concordância
com a possibilidade de explorar o gênero epistolar como um modo de compreender
e/ou conhecer os meandros da criação literária do(s) autor(es), postulado por
Moraes.
No que concerne às diferenças entre Rilke e Vargas Llosa, partindo apenas
da primeira carta, pode-se apontar o fato de que Rilke está mais envolvido com a
avaliação dos textos ou dos versos enviados, com o aconselhamento sobre a
importância da reflexão para definir se é isso que realmente seu destinatário almeja
847
como futuro de vida e sobre onde buscar a matéria para a sua obra poética. Vargas
Llosa, por outro lado, assume um papel mais formal, no sentido de apresentar uma
série de referências para sinalizar, como uma das condições, a vocação para
ingressar ou seguir a carreira de escritor, atendendo aquilo que é seu propósito com
esse livro: um ensaio sobre a maneira como nascem e se escrevem os romances,
de acordo com sua experiência pessoal.
Nesse sentido, à guisa de uma conclusão parcial, pode-se dizer que a carta
de Rilke, publicada por decisão do destinatário das cartas, é mais pessoal, é mais
pontual e nomeadamente direcionada, pois seu correspondente é um sujeito real,
enquanto que Llosa, cujo texto foi formatado, a partir de uma decisão pessoal, no
gênero epistolar, como alternativa para relatar seu processo de criação literária e
assim assumir para si um papel de conselheiro literário, criando uma espécie de
“arquivo literário”, sugerido por Moraes, como espaço onde se encontram fixadas
processos e etapas de produção literária, situando-se, por isso, numa relação
menos pessoal com seu destinatário, um sujeito desconhecido, na linha de um
Leitor-Modelo, postulado por Umberto Eco, criado exclusivamente para essa obra.
Ao proceder dessa forma, ou seja, como um formato para escrever sobre os
bastidores da criação literária, Llosa atualiza e valida o gênero epistolar como
espaço da escrita de si.
Referências Bibliográficas
GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro:
Editora da FGV, 2004.
848
MORAES, Marcos Antonio de. “Epistolografia e crítica genética”. Ciência e Cultura
(SBPC). São Paulo, v. 59, n. 1, jan-mar. 2007, p. 30-32.
MORAES, Marcos Antonio de. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de
Mário de Andrade. São Paulo: EDUSP / FAPESP, 2007.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a un joven poeta. Traucción y nota preliminar de José
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VARGAS LLOSA, Mario. Cartas a un joven novelista. Buenos Aires: Alfagara, 2011.
TERESA Revista de Literatura Brasileira / área de Literatura Brasileira.
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, n. 8/9. São Paulo: Ed. 34, 2008.
849
A IDENTIDADE BRASILEIRA NO DISCURSO PORTUGUÊS DO
MORGADO DE MATEUS
Introdução
O período entre os anos de 1765 e 1775, em que Dom Luís António de Sousa
Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, atuou como Governador e Capitão-General
da capitania de São Paulo, representa importante marco para a configuração da
identidade linguística brasileira. Sua gestão administrativa tem grande relevância
por dois motivos precípuos. Em primeiro lugar, sua nomeação a Governador visava
a restaurar a autonomia política da capitania de São Paulo, extinta desde 1748. Em
segundo lugar, a administração do Morgado de Mateus visava a aplicar a política
pombalina em terras brasileiras. Tal política portuguesa foi a responsável pela
implantação oficial da Língua Portuguesa no Brasil colonial, em detrimento da
“Língua Geral”, empregada por grande parte da população no período.
A adoção da Língua Portuguesa foi, portanto, o resultado de uma medida
política, com vistas à manutenção do colonialismo na América Portuguesa. Esse
esforço administrativo deve ser entendido mais pelo viés econômico, uma vez que
o Brasil representava a principal fonte de riquezas da metrópole portuguesa, do que
cultural. Portugal, no final do século XVIII, encontrava-se em situação de decadência
econômica devido do ouro brasileiro que já não era tão abundante na região mineira.
Para tratar da implantação oficial da Língua Portuguesa na capitania de São
Paulo, serão trabalhados documentos administrativos originais trocados entre o
Morgado de Mateus, enquanto representante da Coroa portuguesa no ultramar, e
seus superiores no Reino.
282 FFLCH/USP
850
Os primórdios da identidade linguística brasileira
851
menos poderosa for uma pessoa, menos o seu acesso às formas de escrita.” (VAN
DIJK, 2012, p. 44).
Cabe retomar brevemente a contextualização histórica mencionando que, de
acordo com Salgado (1985, p. 45), na segunda metade do século XVIII a economia
portuguesa apresentava quadro de decadência desde 1762, como consequência da
crise do ouro brasileiro. Assim, durante o reinado de D. José I, Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, assumiu como primeiro ministro a
administração colonial portuguesa, em busca de fortalecer a estrutura militar e
econômica colonial. Como menciona Bellotto (2007, p. 24), São Paulo sobrevivia a
um enfraquecimento demográfico, econômico e político, resultante da perda das
zonas mineiras e de sua subordinação desde 1748 à capitania do Rio de Janeiro.
Por isso, em 1765, teve restaurada sua autonomia com a nomeação do Morgado de
Mateus para Governador, a fim de combater o domínio espanhol, propor a
militarização, a exploração territorial e o fomento patente na política econômica e na
urbanização.
Dessa forma, o Morgado de Mateus governou São Paulo entre os anos de
1765 e 1775 e, apoiado nos princípios racionalistas em voga no seu tempo, além de
exímio administrador de seus bens pessoais, foi um exemplo de esforço na
ordenação e na descrição documental, o que ainda hoje se reflete na maneira e no
estado de conservação dos documentos arquivados.
O domínio da escrita representava o poder em um tempo em que o analfabetismo
era fator dominante na sociedade. “Quando quase toda a Europa era iletrada,
dividida e subalimentada, não escapava a ninguém que escrever é prescrever;
instruir, conduzir; e transmitir, submeter.” (DEBRAY, 1983, p. 23). Devido ao
caráter oficial e à formação dos interlocutores (o Morgado de Mateus teve sua
formação, desde a infância, no Castelo de Viana sob a influência da linhagem
nobre e da tradição militar do avô materno, D. Luís António de Sousa Botelho
Mourão), a documentação administrativa mantém a marca da formalidade,
exigida na esfera da correspondência pública, com fórmulas diplomáticas e
tratativas honoríficas. Isso porque, segundo Van Dijk (2012, p. 119), além do
852
status social garantido pelas posições políticas, a base de poder é representada
pelos recursos simbólicos do acesso à comunicação e ao discurso público.
Sendo assim, do mesmo modo que o Morgado de Mateus, o Conde de Oeiras
empregava a norma culta da Língua Portuguesa com vistas à “hipercorreção
estratégica daqueles que se ‘colocam na altura’, tirando um proveito suplementar
da distância que eles adquirem, com a estrita correção” (BOURDIEU, 1983, p. 167).
Como critério adicional, a exemplo dos demais governantes, empregava a polidez,
entendida “como um conjunto de normas sociais, estabelecidas por cada sociedade,
que regulam o comportamento adequado de seus membros, proibindo algumas
formas de conduta e favorecendo outras” (MARCOTULIO, 2008, p. 61).
O notável reforço conferido pelo Morgado de Mateus ao estabelecimento da
Língua Portuguesa na região configurou-se, pois, de acordo com as medidas
políticas impostas por seu superior, o Marquês de Pombal, homem forte do reinado
de Dom José I. Diluída na proposta de civilização dos índios do Diretório283
(ALMEIDA, 1997) está a obrigatoriedade da Língua Portuguesa284 em todo o
território do Brasil, a chamada “América Portuguesa”.
Para tanto, o primeiro parágrafo do Diretório orienta que o Diretor responsável
pelo trabalho de “aldeamento” dos índios teria de ter, dentre outras características
como “bons costumes, zelo, prudência e verdade”, a ciência da língua.
O conhecimento da Língua Portuguesa representava necessidade tão
impositiva no combate ao uso da “língua geral” 285, que se abria uma exceção de
gênero:
283
“Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade
não mandar o contrário”, publicado em 3 de maio de 1757 e transformado em lei em 17 de agosto de 1758.
Como lei, vigorou até 1798 a fim de orientar o comportamento dos colonizadores em relação aos indígenas.
284
“[...] será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da
Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às
Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua própria das suas
Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado
em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado.”
(Parágrafo 6).
285
De acordo com Freire (2004), a “língua geral” representou o que pode ser entendido como o “dialeto
colonial” da América Portuguesa. Seria um conjunto de línguas oriundas do tupi-guarani com traços regionais
específicos.
853
No caso porém de não haver nas Povoações Pessoa alguma, que possa
ser Mestra de Meninas, poderão estas até a idade de dez anos serem
instruídas na Escola dos Meninos, onde aprenderão a Doutrina Cristã, a
ler, e escrever, para que juntamente com as infalíveis verdades da nossa
Sagrada Religião adquiram com maior facilidade o uso da Língua
Portuguesa. (Parágrafo 8 do Diretório)
286
“[...] escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo talvez com a infâmia, e vileza deste nome,
persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a
respeito dos Pretos da Costa da África. E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios
este abominável abuso, seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns homens, que o
mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo
o emprego honorífico: Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma chame Negros aos
Índios, nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam” (Parágrafo 10).
854
Para que a cultura e língua presentes nos documentos manuscritos possam
ser preservadas, empregam-se os conhecimentos filológicos em busca da
transcrição que, segundo Cambraia (2005, p. 19), “é uma maneira de resguardar a
memória de uma sociedade através da restituição, conservação e fixação dos textos
escritos ao longo do tempo”. Assim, no intuito de permitir e facilitar a leitura da carta
manuscrita selecionada para análise, apresenta-se sua edição “semidiplomática”
justalinear, em que se mantém a grafia original, desenvolvendo-se as abreviaturas,
ao lado de sua reprodução fac-similar:
Illustríssimo eExcelentíssimoSenhor
AVossaExcelência henotorio, como prevarica=
raõ os meos creados depois que vim para estaCapitania,
evendome pre
cizado aos apartar do meo Serviço, fiquei na necessidade de
comprar
dous mulatos, para me servirem na Cuzinha, ena Copa; naõ
será di=
ficultoso de expressar aVossaExcelência, o quanto me
custaria aos fazer apren=
der nestas alturas paraficarem habeis depoder remediar
aquella falta:
hoje estouja acostumado com elles, enaõ hefacil achar outros
creados, que
substituaõ este ministerio, por que absolutamente os naõ ha,
por serem os
comeres, deque se alimentaõ nestas terras, muito diferentes
dos que se uzaõ
nesse Reyno
Nestes termos ExcelentíssimoSenhor me heide
achar muito imbaraçado,
na occasiaõ, em que VossaExcelência quizer mandarme
recolher; porque naõ haven=
do outros creados, para que apelar, sevender estes escravos,
fico sem ter quẽ
mesirva, ese os levar na minha comitiva, perderei igualmente
os mesmos
escravos, eo seoServiço; porque de ordinario, ficandoforros,
nunca gostaõ
deservir aseo Senhor.
SoVossaExcelência nesta duvida he quem pode dar algu͂
remedio por aquelle modo, que lheparecer, naõ servirá de
exemplo, nem
desconveniente aoReal Serviço, nem contrario as piissimas
intençoens de
Sua MagestadeDeos guarde aVossaExcelência muitos
annos Saõ Paulo a7 deIu=
lho de1770
Illustríssimo e ExcelentíssimoSenhor Conde deOeyras
DeVossaExcelência
Cativo emenor Creado DomLuis Antonio deSouza
855
em três tópicos principais com ramificações secundárias: Atitude (Afeto,
Julgamento e Apreciação), Gradação (Força e Foco) e Engajamento (Expansão
e Contração dialógica). Ao longo da breve análise discursiva, o texto será
mapeado nessas categorias a fim de que fim de que se compreendam aspectos
da ideologia vigente no momento da produção documental, bem como a
perspectiva da (inter)subjetividade no discurso. Entende-se “ideologia” de acordo
com Van Dijk (2012, p. 28), como o conjunto dos sistemas de representações
mentais socialmente partilhadas que controlam os modelos mentais de cada
indivíduo. A intersubjetividade, por sua vez, “mostra a relação estabelecida entre
o sujeito enunciador e um outro sujeito em relação ao conteúdo proposicional.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 336).
Após a fórmula de saudação inicial com a tratativa honorífica “Ilustríssimo e
Excelentíssimo Senhor”, o autor inicia seu texto com o Engajamento de
Contração dialógica de Afirmação “A Vossa Excelência é notório” a introduzir sua
tese. A ordem indireta da proposição comprova o destaque atribuído ao
interlocutor, colocando-o à frente do que será dito. Por meio da afirmação, o autor
evita posicionamentos contrários de seu leitor, demonstrando que seu dizer é
algo evidente e verificável na realidade.
Apesar da grafia do verbo “prevaricar” aparentando significar futuro, seu tempo
é o pretérito, indicando que seus criados passaram a comportar-se dessa forma
após sua vinda à capitania. Como pressuposto está o fato de que antes
comportavam-se bem e que as condições do novo local teriam alterado essa
postura.
As atitudes dos antigos criados justificaram a compra de dois escravos a quem
afirma ter tido trabalho em ensinar os ofícios na cozinha. Por meio do
Engajamento de Contração dialógica de Negação, “naõ é fácil achar outros
criados que substituam este ministério”, invoca a possibilidade de substituição
para comprovar sua dificuldade. Explica, a seguir, o motivo da dificuldade:
“porque absolutamente os não há, por serem os comeres de que se alimentam
nestas terras muito diferentes dos que se usam nesse Reino”. Novamente fecha
o escopo da crença de existirem outros escravos capazes de trabalharem na
856
cozinha pela Negação “os não há”. O autor emprega o termo “absolutamente”,
Gradação de Foco, em que prototipifica os habitantes, atribuindo-lhes o
Julgamento negativo de Capacidade como não aptos a cozinharem da maneira
desejada.
Entretanto, a culpa não é de todo atribuída aos habitantes. Afinal, são “os
comeres, de que se alimentam nestas terras, muito diferentes dos que se usam
nesse Reino.” A marca de ideologia evidencia-se pela comparação entre a forma
como se alimentam na capitania e no Reino. Mesmo sem juízo explícito de valor,
a Apreciação “diferentes” intensificada pela Gradação de Força “muito” denota o
patamar superior em que a alimentação dos portugueses é colocada.
O autor vislumbra que no futuro, quando tiver de retornar a Portugal, achar-se-á
“muito embaraçado”. Essa marca de Julgamento de Estima Social negativo que
o autor atribui a si mesmo não é de sua responsabilidade. O motivo da situação
é o conflito que observa em relação a seus escravos: “não havendo outros
creados para que apelar, se vender estes escravos, fico sem ter quem me sirva;
e, se os levar na minha comitiva, perderei igualmente os mesmos escravos e o
seu serviço”. Ao ratificar a ausência de criadagem na capitania, reforça a
dificuldade de empreender a longa viagem de volta a Portugal sem ter criados.
Apresenta o motivo central de sua carta, o pedido de conselho sobre como agir
com seus escravos. Tratava-se das possibilidades de vendê-los aqui e viajar sem
criados, ou manter o investimento e os perder quando se tornassem livres ao
adentrarem em Portugal, onde a escravidão fora abolida em 1761. A dúvida
fundamenta-se no Julgamento de Estima Social negativo atribuído, mais uma
vez, aos escravos: “ficando forros, nunca gostam de servir a seu Senhor.” Nota-
se que ao tornarem-se “forros”, seus antigos “donos” não seriam mais seus
“senhores”. Apesar disso, o autor organiza sua proposição de modo a
subentender que permaneceria senhor de seus antigos escravos, atribuindo a
eles a falta de vontade de servir pelo Julgamento de Estima Social de Tenacidade
negativo. Embora o conceito não seja afirmado de maneira categórica, sendo
antecedido pela ponderação “de ordinário”, indicava-se a alta probabilidade do
fato. Essa probabilidade é reforçada pelo termo “nunca” a indicar o grau mais
857
baixo da frequência. Dessa maneira, os escravos nunca gostavam de
permanecer servindo por livre vontade. A ideologia escravocrata evidencia-se,
pois, nesta carta.
Encerra-se a correspondência com o Julgamento de Estima Social de
Capacidade de seu interlocutor, ao afirmar que “Só Vossa Excelência nesta
dúvida é quem pode dar algum remédio”. Colocado acima dos demais e do
próprio autor, que se rebaixa diante de seu correspondente, o Conde de Oeiras
é definido pela Gradação de Foco como o único de quem se pode esperar uma
solução ao dilema.
Para manter seu ethos de prestatividade e isenção de interesses pessoais, o
autor afirma que não deseja agir de modo “desconveniente ao Real Serviço, nem
contrário às piíssimas intenções de Sua Majestade”. A essa conclusão, emenda-
se o fecho da carta, com a fórmula de saudação final “Deus guarde a Vossa
Excelência muitos anos” com o qual se encerram grande parte das espécies
diplomáticas reservadas ao trâmite administrativo no período, tais como cartas e
ofícios.
Considerações finais
Diante das profícuas possibilidades de análise dos discursos oficiais
setecentistas, intencionou-se apontar como se construiu a identidade linguística no
território do Brasil, a partir da segunda metade do século XVIII. Para tanto,
apresentaram-se, embora sucintamente, características que auxiliam a
compreensão do discurso produzido no período.
Selecionaram-se marcas de avaliatividade por permitirem que se construa com
mais propriedade a análise do discurso construído no documento administrativo
oficial, entendendo-se “análise do discurso” sucintamente enquanto “a relação entre
texto e contexto” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 44).
Assim, o presente trabalho visou a analisar a linguagem empregada na carta
setecentista, de modo a estabelecê-la como um “tecido”, apontando a complexidade
do entrelaçamento de fatores como “as condições de sua instauração, o seu
858
contexto social e, em particular, a estrutura do grupo no qual se realiza”
(BOURDIEU, 1983, p. 163).
Em uma carta de um único fólio, que trata de assunto cotidiano, apresentam-
se ideologias como a monárquica de veio escravocrata. Ao veicular tais ideologias,
o autor trabalha a intersubjetividade, com a manutenção de seu ethos frente ao
interlocutor.
Por se tratar de documentação oficial, é certo que se tratava da linguagem e
do discurso legitimados e tidos como modelares no período. Entende-se, portanto,
que esse tipo de registro linguístico, marcadamente ideológico, serviu de suporte à
construção da identidade linguística brasileira, sobretudo no momento de
implantação oficial da Língua Portuguesa no Brasil.
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859
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imagem no discurso político do marquês do Lavradio: as formas de tratamento como
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VAN DIJK, Teun Adrianus. Discurso e Poder. São Paulo: Editora Contexto, 2012.
860
ASPECTOS COGNITIVOS DA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NA
INTERAÇÃO VIRTUAL
Renata Palumbo287
Solange Ugo Luques288
Introdução
287 FMU
288 USP
289 Grifos nossos.
861
papel importante do jogo interacional nos processamentos cognitivos. Neste
trabalho, selecionamos também os estudos de Fauconnier e Turner (2002),
Fauconnier (2005), dentre os existentes290, em razão de acreditarmos que eles nos
possam fornecer subsídios para examinarmos o processamento interacional-
discursivo em um Fórum online de conteúdo público, a negociação de sentidos e a
compreensão das informações veiculadas.
O fórum do qual foi retirado nosso corpus trata-se do ‘Portal do Professor’,
ambiente que faz parte do site oficial do MEC, Ministério de Educação e Cultura.
Esse fórum, ativo no momento da coleta, em 15/02/2015, é assíncrono e aberto a
participantes que se cadastram no site. Faz parte da seção em que se propõe o
tópico ‘Tecnologias Educacionais’ e o subtópico “Uso ético e responsável da
internet”. 291
A abertura da discussão ocorreu em 02/06/2011 por Rodrigo Nejm, psicólogo
na Safernet Brasil, que apresentou a proposta do ambiente via discurso escrito,
acompanhado de um vídeo explicativo de 13min10s de duração. Especificamente,
atentamo-nos para o discurso escrito e as ocorrências de formulações linguísticas,
indicativas de inputs e mesclas, das quais partiu o encaminhamento de alguns
segmentos da interação.
Ainda a respeito do lugar da produção do corpus sob análise, salientamos
que para o internauta participar da discussão, disponibilizou-se um vídeo, na seção
FÓRUNS, no qual foi informada a necessidade de cadastro no portal, da escolha de
um fórum e da modalidade de participação: comentar postagens de outros usuários
ou responder ao tópico sob um dos títulos: Argumentação, Contra-argumentação,
Contribuição, Dúvida, Explicação, Questionamento, Relato ou Solicitação.
290 Van Dijk (2010) também propõe uma abordagem na qual se integram linguagem, cognição e sociedade a
partir das noções de Modelos Mentais e Modelos de Contexto, partindo de outra perspectiva.
291 Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/ListarMensagensForum.html?idTopico=118>
862
As novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs) estão
provocando significativas transformações nas sociedades, em seus modos de
organização, de produção e comercialização de bens, de diversão e, ainda, de
ensino-aprendizagem. Sobre este último ponto, Passarelli (1995), Braga (2013),
Marcuschi e Xavier (2010) afirmam que a escola não pode ignorar a nova
configuração que se apresenta nos ambientes virtuais, devido, sobretudo, às suas
características de interatividade e multimodalidade, que trazem para a prática
pedagógica “formas mais dinâmicas de implementar modos colaborativos ou
reflexivos de ensinar e aprender”. (Braga, 2013, p. 58). Nessa direção, tem-se que
conhecer e explorar criativa e planejadamente os novos recursos da internet se
torna significativo às práticas educativas e à produção do conhecimento na
atualidade.
Em especial, a possibilidade de se constituírem espaços de debate e
discussão via Fórum online trouxe mecanismos peculiares ao processamento
discursivo e interacional tanto para professores quanto alunos, sobremaneira no que
corresponde às regras circunscritas na interação tradicional e às criadas em alguns
ambientes em que os papéis sociais e o modo de ação / reação recebem influência
da configuração do ambiente virtual.
Nesse viés, dada a criação de novos meios de interagir a distância, é possível
afirmar que os espaços interacionais online vêm (re)significando maneiras de agir
na mídia e, consecutivamente, no modo de lidar com o conhecimento ou mesmo
construí-lo nas e pelas linguagens, já que esses ambientes propiciam que os
participantes procedam ativamente no momento em que acessam, discutem,
arquivam e recuperam informações, em tempos e espaços diversos. É nesse
sentido que o processamento interacional-discursivo dado em diversos ambientes
virtuais merece atenção no campo da pesquisa, já que está em constante mudança
devido a se ajustar às diferentes situações sociais promovidas pela rede por conta
de ter tomado parte do caráter dinâmico da atual sociedade conectada.
Pode-se dizer que algumas especificidades da interação virtual aproximam-
se daquelas que ocorrem em situações face a face, em razão de haver um contexto
863
situacional específico, um campo de ação comum e indivíduos atuantes. Para
Fávero, Andrade e Aquino (1998), a interação caracteriza-se:
864
rever um vídeo, a disposição da página (layout), o acesso à informação divulgada
há mais tempo.
Além do mais, pode-se dizer que a configuração que se dá à dada interação
efetivada em um Fórum Educativo aberto e online – regras estabelecidas, perfis
heterogêneos dos participantes, leitura não linear das informações, conversas
assíncronas etc. – permite um campo de ação discursiva e de construção do
conhecimento peculiar, se comparada a situações de troca verbal em que os
participantes se encontram in praesentia também pelo fato de haver nessas últimas
situações interativas mecanismos de intervenções, utilizados para que o
envolvimento interpessoal ocorra de maneira alinhada aos objetivos previstos, os
quais são diferentes daqueles estabelecidos no Fórum online.
A respeito desses mecanismos de intervenção, pode-se afirmar que
determinadas formulações linguísticas e procedimentos interacionais, no Fórum
online, cumprem o papel de chamar a atenção dos participantes para a necessidade
de se voltar ao debate sugerido. No corpus sob análise, observamos alguns
procedimentos, enunciados em (1) e (2):
(1)
R. N.
Membro
Re: Uso ético e responsável da internet
Contribuição
Olá, Gostaria de retomar as discussões e aproveitar para ampliar o convite sobre as
oficinas de formação de multiplicadores que a SaferNet está inciando em 10 capitais em
cooperação com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, COnanda
e com apoio da SECAD/MEC. [...]
11/04/2012
(2)
R. N.
Re: Uso ético e responsável da internet
Contribuição
Olá, muito interessante o relato dos usos éticos que fazem das tecnologias no âmbito
escolar. Gostaráimos de aproveitar para comunicar a estamos agora com um novo canal
de Orientação Psicológica para situações relacionada à internet.[...]
12/09/2012
865
espécie de mediador. A seleção lexical “retomar as discussões” (1) evidencia o
objetivo de retornar ao tópico proposto: “Uso ético e responsável da internet”, o qual
o participante faz questão de lembrar sempre que se manifesta, diferentemente dos
demais.
Interessante examinar, também, o papel da cortesia nesses momentos em
que o mediador enuncia, a fim de intervir no debate. Utilizaram-se formas verbais
no futuro do pretérito, como “Gostaria de retomar” (1) e “Gostaráimos [sic] de
aproveitar” (2), respectivamente, em primeira pessoa do singular e do plural. No
último caso, R.N. faz menção à “SaferNet”- uma associação civil que desenvolve
projetos sociais voltados ao combate da pornografia infantil – e ‘aproveita’ para
anunciar um novo meio online de orientação psicológica referente ao uso da
internet.
Também constitui uma estratégia cortês de intervir o segmento “Olá, muito
interessante o relato dos usos éticos que fazem das tecnologias no âmbito escolar”
(2). Como a interação online não se dá por meio de gestos físicos de apresentação,
pode-se dizer que enaltecer a contribuição dos demais membros é uma forma de
criar empatia e ganhar a atenção deles antes de cumprir o propósito de divulgar a
informação sobre o canal www.HelpLine.org.br, lançado pela associação que R.N.
representa.
Tais análises dos procedimentos de intervenção fazem-no reforçar a ideia de
que, durante o processamento interativo-discursivo – o qual pode ser tomado como
uma prática fundada na manutenção de acordos por meio de negociações – os
participantes agem e reagem conforme o que cada qual compreende do
procedimento linguístico do outro, fazendo que o responsável pelo fórum online
tenha de monitorar a interação e fazer as intervenções necessárias. A fim de se
entender melhor a respeito desse processo de compreensão e (re) ação discursiva
localmente situada e inerente ao desenvolvimento da interação, buscamos
relacionar os conceitos da Teoria da Mesclagem (Faconnier e Turner, 2002) aos da
interação e discurso. Tal discussão é apresentada na sequência.
866
Teoria da Mesclagem aplicada ao jogo interacional online
867
Importa-nos salientar que, na TM, as mesclagens constituem novos espaços
mentais (espaços de mesclas) a partir da combinação entre entidades de no mínimo
dois espaços mentais ou construtos mentais efêmeros292 (espaços de input293ou
espaços primários 1 e 2), estruturados tipicamente por frames/modelos cognitivos –
conhecimento esquematizado a longo prazo – e interconectados. Caso seja ativado
o frame, “Fazendo uma trilha”, uma pessoa pode lembrar-se de quando ela fez uma
trilha em determinado lugar e tempo, a partir de um conhecimento de longo prazo
específico e esquematizado - espaço mental (Facounnier, Turner, 2002). Tal
memória pode ser ativada em outras ocasiões, a partir de outros frames, tomando
parte de outros processos de compreensão de fatos locais.
De natureza semântico-pragmática, esses espaços são constituintes do
discurso e, concomitantemente, da referenciação. Nas palavras de Fauconnier
(2005, p. 291): “Os espaços mentais são pequenos conjuntos de memória de
trabalho que construímos enquanto pensamos e falamos. Nós os conectamos entre
si e também os relacionamos a conhecimentos mais estáveis”. Os domínios
conceituais propostos (estáveis e locais) pela TM consistem de conhecimentos
prévios estruturados no escopo social. Os estáveis correspondem às memórias
sociais e individuais a partir das quais conhecimentos locais são estruturados.
Existem, na primeira categoria, os Modelos Cognitivos Idealizados (MCI),
delineados, reproduzidos e renegociados na sociedade, e as Molduras
Comunicativas, relacionadas aos elementos da interação, tais como os papéis
sociais, as identidades, o encontro, etc.
Nesse processo cognitivo associativo, incluem-se projeções de cerca de
quinze ou dezesseis relações vitais – entre as quais estão incluídos situação social,
tempo e espaço, causa-efeito, parte-todo, identidade e representação – que levam
292Na Teoria da Mesclagem Conceitual, pressupõe-se que há uma conexão neuronal estruturada, que foi
denominada espaço mental.
293 Para Feltes (2009, p.156), os espaços de mesclas “substituem, de certo modo, as expressões ‘domínio-
fonte’ e ‘domínio-alvo’ no modelo bidimensional proposto por Lakoff e Johnson (1980) e Lakoff (1987)”. Grady,
Oakley e Soulson (1999), por sua vez, afirmam que esses espaços mentais não correspondem exatamente aos
domínios de Lakoff e Johnson, em razão de as estruturas dos espaços de input servirem ao espaço de mescla,
diferentemente da tese da unidirecionalidade dos autores da Teoria da Metáfora Conceptual.
868
a acabamentos de sentido, não estáticos, à compreensão daquilo com o qual nos
deparamos em nossas trocas sociais. Há, portanto, um conjunto de memórias
prontas, que pode ser ativado localmente e relacionado às informações postas em
discurso.
No que diz respeito aos encontros em Fóruns educativos via internet, as
atitudes responsivas de seus participantes devem-se à noção que eles têm sobre
interações dessa ordem (Molduras Comunicativas) e às memórias sociais e
individuais correspondentes ao tópico discutido. Tendo em vista que se tende a
estabelecer um debate de ideias nessas situações, o modo pelo qual cada um
apresenta seu posicionamento pode levar a certas mesclagens ou reforçar
conjuntos de conceitos genéricos, preexistentes acerca da questão levantada. Mais
do que isso, os inputs e os espaços de mescla ativados pelos participantes
conduzem a dinâmica evolutiva da interação verbal.
Nessa acepção, postula-se que seleções lexicais cumprem o papel de
operadores dos construtos/espaços mentais. É na situação interacional que se
selecionam formulações as quais agem como ativadores de acesso e de
identificação das informações postas no discurso. Como também, a apresentação
de dadas seleções lexicais pode ser pista indicativa de espaços mentais ativados,
assim como diz Fauconnier (2005, p.291): “[...] conhecimentos linguísticos e
gramaticais fornecem muitas evidências para essas atividades mentais implícitas e
para as conexões dos espaços mentais”.
Em específico, no corpus sob análise, na abertura do Fórum, há um vídeo e
um discurso escrito nos quais se apresentam os objetivos da interação, assim como
é possível observar em (03) nas partes destacadas:
869
reportagens e sugestões de aulas disponíveis no Portal do Professor), desejando estimular
a criação de novos recursos e projetos a partir deste Fórum.
(05)
Contra-argumentação – C.P. – 31-10-2014
A., olá! Pedir a autorização dos país é dever, pois existe lei acerca disso. Na verdade, creio
que o risco maior seja quando os próprios alunos - mesmo os menores - fazem um uso
inadequado das redes sociais e eles mesmos fazem a exposição deles e de outros.
870
medida que associações cognitivas da participante (conhecimentos social e local)
são realizadas.
Fauconnier (2005) aponta para o fato de que os espaços mentais tomam
parte da dinâmica completa das situações comunicativas, inclusive, dos falares dos
participantes. Afirma que nos ajustamos ao desdobramento do discurso, de maneira
a procedermos a mudanças de espaços mentais – atitudes de ativação, desativação
e relações. Nessa direção, o autor assinala que “enquanto pensa ou fala, você está
metaforicamente se movendo de um espaço mental para outro e mudando de
pontos”.
No segmento (5), examina-se que o procedimento anterior, de (2), opera
como condutor do jogo interacional. Nesta parte, selecionada como contra-
argumentação, ativam-se os inputs “perigo”, “internet”, “lei sobre a exposição da
imagem da criança”, os quais fundamentam sua argumentação. Nessa direção, há
pistas das relações vitais no processo cognitivo associativo, propostas pelos autores
da TM (situação social, tempo e espaço, causa-efeito, parte-todo, identidade e
representação), pelas quais o encaminhamento da interação do fórum é conduzido.
Primeiramente, a réplica ocorre dois anos após o posicionamento de (4), de 2012
para 2014. Neste ano, pode-se dizer que a discussão acerca da segurança na
internet está mais propagada mundialmente, por exemplo, houve o encontro de
chefes de Estado que culminou na criação do Marco Civil da Internet em abril de
2014. Assim é que o contexto histórico-social influencia as relações de causa e
efeito, de identidade, de representação etc, fazendo que, do ponto de vista
sociocognitivo e discursivo, o processamento de interações assíncronas dessa
ordem está submetido a mudanças constantes de espaços mentais e a mesclas dos
participantes.
Militão (2009) cita-nos algumas seleções lexicais indicativas da ativação de
um novo espaço mental por introduzirem uma nova rede de representação, tais
como os verbos dicendi, sintagmas nominais que se correlacionam a verbos,
formulações de tempo e de espaço, além de outras marcas, como parênteses,
aspas, travessão. No processamento discursivo, tais seleções permitem que haja
relações entre os espaços de input, a permitir que se crie um terceiro, em outras
871
palavras, pode ocorrer “uma mescla dos espaços que lhe serviram de input” (op.cit.,
p. 311).
Em relação à construção de sentido implicada na atividade de
compreensão, tem-se que ocorre um mapeamento parcial de no mínimo dois
espaços de input, de modo a projetar o que é comum para um terceiro espaço, o de
mescla. A estrutura compartilhada dos inputs passa por um processo de
compressão, em que perpassam as relações vitais já citadas neste trabalho, a gerar
um quarto espaço denominado genérico. Assim é que se cria uma rede de
integração conceitual, de no mínimo quatro espaços, por meio de equiparações e
projeções.
Os pressupostos discutidos ajudam-nos a entender como se dá a interação
e a prática discursiva no fórum online. Temos que, em (4) e (5), foi-se negociando
sentido acerca do papel do professor – incluir fotos de alunos ou não, pedir
autorização, ter cautela. O processo de compressão possui, portanto, um caráter
individual e dinâmico nessas interações, de maneira a intervir no foco referencial do
debate e, também, a criar e recriar os referentes ativados, podendo chegar a um
espaço genérico coletivo ou não.
Para Fauconnier (2005), as compressões tornam as informações mais
acessíveis e inteligíveis, facilitando a criação de novas conexões. É como se os
participantes de uma interação não precisassem expor toda a complexidade de um
acontecimento para compreender, por exemplo, uma formulação metafórica, pois
há, entre outras, relações de tempo e espaço, causa e efeito, etc., que são reduzidas
em um evento único.
Interessa-nos salientar que, além de poder colaborar com os estudos de
ordem discursiva, os postulados da TM vêm contribuindo no que se refere aos
processos de aprendizagem. Dreyfus, Gupta, Redish (2015), do departamento de
física da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, dizem que essa
perspectiva está sendo utilizada na educação de física para explicar os processos
pelos quais estudantes, por meio de analogias, aprendem ideias abstratas.
Nessa direção, tal como indicamos, tem-se que a atividade inerente ao ser
humano de (re)significar o mundo se realiza nas práticas discursivas, nas quais
872
objetos de discurso são (re)construídos na interação. Trata-se de uma atividade
dinâmica, adaptativa e contínua de construção de sentidos e não de uma
representação fixa, assim como já confirmaram teorias do discurso e da
referenciação (Cavalcante, Pinheiro, Lins, Lima, 2010; Marcuschi, 2007; entre
outros). Pode-se dizer que a noção de representação da TM vai ao encontro desse
postulado na medida em que se afirma que tais representações são resultantes da
articulação de domínios mais estáveis – como os Modelos Cognitivos Idealizados –
e de domínios locais, realizada pela linguagem, a qual é entendida como um
caminho para a construção de sentidos.
Conclusão
Após a discussão teórica e a análise de segmentos de um Fórum online,
pudemos observar que as seleções lexicais permitem identificação e servem como
condutores da ativação de espaços mentais, responsáveis pelo encaminhamento
da interação verbal. Sendo assim, a ação discursivo-cognitiva de um participante
opera como condutor do jogo interacional.
Nessa direção, examinamos também que o foco referencial do debate altera-
se à medida que associações cognitivas dos participantes (conhecimentos social e
local) são realizadas, o que nos faz entender que o processamento de interações
assíncronas, tal como a de um Fórum online, está submetido a mudanças
constantes de espaços mentais e a mesclas dos participantes inseridos em
momentos sócio-históricos distintos.
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875
PÍLADES E ORESTES, DE MACHADO DE ASSIS: UM ESTUDO DIALÓGICO.
Introdução
Para Leyla Perrone Moisés (1978), “Em todos os tempos, o texto literário
surgiu relacionado com outros textos anteriores ou contemporâneos, a literatura
sempre nasceu da e na literatura”. Esse recurso de referência é característica do
discurso literário. Desde sempre o escritor recorre às obras de outros tempos para
escrever, “beber na fonte” do berço cultural. Nessa perspectiva, este artigo propõe
analisar, tendo os referenciais teóricos sobre dialogismo e heteroglossia com base
nos estudos bakhtinianos, o conto Pílades e Orestes, do contador de história do
Cosme Velho, que era um assíduo leitor das obras clássicas.
O conto Pílades e Orestes pertence ao livro Relíquias de casa velha, de
Machado de Assis, seu penúltimo trabalho literário, publicado em 1906. Nele consta
além de contos, o famoso poema “A Carolina”, dedicado à mulher, já falecida;
Páginas críticas e comemorativas: “Gonçalves Dias”, “Um livro”, “Eduardo Prado”,
“Antônio José”; e ainda duas peças de teatro: “Não consultes médico” e “Lição de
Botânica”. Enfim, uma miscelânea, conforme declara Marta de Senna (2008),
conjunto de textos de gêneros diversos. Os dois últimos textos são os contos
Anedota do Cabriolé e Pílades e Orestes, ambos com temáticas de tabu social. O
primeiro sobre incesto e o segundo sobre homoafetividade.
Nota-se logo pelo título e em outros dois momentos da narrativa a referência
ao mito Pílades e Orestes, personagens das tragédias gregas Coéforas, de Ésquilo;
Electra, de Eurípedes; Electra, de Sófocles e Orestes, de Eurípedes, do século V
antes de Cristo.
Nestas obras gregas, Electra, irmã de Orestes, entrega-o com apenas dez
anos de idade a um antigo criado para que este o leve para Fócida, casa de seus
tios, Estófio e Anaxíbia, para ser criado e cuidado, devido aos desmandos e
876
maltratos de Clitemnestra, sua mãe, e Egisto, que assassinaram seu pai
Agamêmnon. Quando adulto, retorna a Argos, juntamente com o primo e amigo
inseparável Pílades a fim de vingar a morte de seu pai. É ajudado por Electra que o
introduz no palácio e pelo amigo Pílades, que o anima a agir no momento em que
hesita cometer o matricídio, diante dos seios desnudos da mãe suplicante. Após a
execução, o primo continua ao seu lado para ajudá-lo a sobreviver e auxiliá-lo a
suportar as consequências de seus atos. Pílades representa o protótipo do amigo
fiel.
De modo sucinto a história de Machado é a seguinte: o narrador
heterodiegético conta a história de Quintanilha e Gonçalves, amigos formados em
Direito, que se reencontram depois de alguns anos, quando o primeiro desiste da
carreira de deputado provincial para receber e viver da herança deixada pelo tio.
Logo de início, sente-se indeciso e hesita a aceitar, mas o amigo o encoraja. A
amizade dos dois, as contribuições, os presentes, o carinho principalmente por parte
de Quintanilha é tamanha que causa comentários, como: “– Aí está, deixa os
parentes para se meter com estranhos; há de ver o fim que leva”. (2008, p. 226).
Percebe-se, nesta marca discursiva, que o próprio narrador antecipa para seu “leitor
sagaz” (2008, p. 234) o fim trágico da personagem.
Nessa rotina de doações, na volta de uma viagem patrocinada por
Quintanilha, a relação se abala, devido a um retrato de ambos, produzido por um
artista. Gonçalves não gostou do quadro e chamou-o de ignorante, por não perceber
a má qualidade do desenho. Com o falecimento da esposa de um parente,
Quintanilha aproxima-se da família e tem a possibilidade de casar-se com a filha do
parente. Mas outra vez Gonçalves consegue apoderar-se e destruir o intento do
parceiro, desse modo, se casa com a mulher que o parceiro desejava e ainda herda
os bens, que Quintanilha havia lhe deixado em testamento. Quintanilha morre em
virtude de uma bala perdida, alienado da realidade política (Revolta da Armada, de
1893), quando levava doces aos afilhados, filhos do amigo.
Segundo Mikhail Bakhtin, “toda linguagem, seja qual for o seu campo de
emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.) está
impregnada de relações dialógicas” (1997, p. 183). Observa-se então, que o
877
dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do
discurso. Os discursos estão “impregnados” de outros textos, mesmo que eles não
se manifestem no fio do discurso e, ainda que a neutralidade seja desejada, sempre
se traz marcas de outros discursos.
Constitui-se também como dialogismo a heteroglossia, caracterizada pela
diversidade de vozes com perspectivas individuais e sociais que entram em um
campo de tensão e reflexões. O discurso dialógico permite a heteroglossia e,
consequentemente, amplia o leque de significados da palavra. O diálogo entre as
diversas vozes promove o encontro do “eu” com o “outro’’ no processo em que o
discurso torna-se público (BARROS, 1994).
Dessas duas perspectivas dialógicas, parte-se à análise, a primeira sobre as
semelhanças e os distanciamentos promovidos por Machado ao basear-se na
tragédia grega e a segunda a heteroglossia: as vozes como forma de identificação
dos seres presentes no conto.
Como já foi mencionado, percebe-se a referência pelo título ao nomear o
conto com os nomes do mito, Pílades e Orestes, mas a narrativa de Machado
nomeia as personagens de Quintanilha e Gonçalves, respectivamente.
E em outros dois momentos da narrativa mostram-se os nomes das
personagens gregas a primeira ao caracterizar a amizade: “A união dos dois era tal
que uma senhora chamava-lhes os casadinhos de fresco, e um letrado, Pílades e
Orestes” (p. 230), designando à parceria incomum entre dois homens.
E no final da narrativa: “Orestes vive ainda, sem os remorsos do modelo
grego. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele”. (p. 240),
trecho que aponta de modo fidedigno à fonte de inspiração, uma vez que a
personagem Orestes comete o matricídio, vivendo sem remorsos, na história grega
e na de Machado sucumbe à esperança do amigo de tê-lo contigo, e Pílades que
praticamente não fala na tragédia grega, agora também se torna mudo ao ter
aniquilado seu desejo e também por sido baleado e morto.
O trágico presentifica-se em ambos os textos, sendo que no mito grego, o
herói estava condicionado frente às consequências esmagadoras em que não se
poderia evitar; na narrativa machadiana o herói mergulha para a destruição por
878
culpa de seus próprios atos e ações, o que torna inevitável um determinado fim. Na
narrativa grega o enfoque é na personagem Orestes, o que difere da machadiana,
que gravita em torno de Pílades.
A amizade entre ambas as personagens verifica-se nas duas narrativas. O
que distancia, da precedente, é que não há o não uso dessa aproximação, desse
relacionamento para um personagem se beneficiar do outro. No mito, eles são
primos e na história de Machado, são amigos.
Como se vê o escritor brasileiro usa a técnica de apropriação do mito para a
elaboração de um texto que exprime elementos de sua própria cultura, via
antropofagismo, pela ressignificação dos referenciais diegéticos, havendo assim,
pontos de convergência, mas principalmente de distanciamento, pois o intuito é
contar uma história a sua maneira.
O diálogo entre texto tratado pelos teóricos não se refere somente aos pontos
de convergências, naquilo que é idêntico ao texto precedente, é também o
distanciamento, divergência, embate, como pontua Bakhtin “Cada enunciado deve
ser visto como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado
campo: [...] ele os rejeita, confirma completa, baseia-se neles submetendo-os como
conhecidos, de certo modo os leva em conta” (2003, p. 297). Desse modo, a
narrativa em análise apresenta as temáticas de tragédia, mito e amizade de forma
dialógica aproximando e distanciando.
O autor utiliza como estratégia de composição da narrativa um narrador
heterodiegético que com distanciamento dos fatos narrados possui posição
privilegiada de observação e condição para refletir sobre a situação vivenciada pelas
personagens. Como se observa no fragmento:
879
Cabe a este narrador apresentar as características físicas e psicológicas das
personagens para o leitor. Como se observa, “Quintanilha tinha o rosto redondo,
Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e moreno, o segundo alto e claro”. Nota-
se na descrição a supremacia do estilo europeu de Gonçalves e a inferioridade de
Quintanilha pelo estilo latino, e o desejo deste em ter consigo o estilo valorizado
culturalmente.
Com o uso dessa perspectiva de construção, onde o narrador centraliza nele
as descrições e ações, um discurso autoritário, monofônico, pois não dá autonomia
de voz às personagens, como destaca Bakhtin: “o sentido total e conclusivo da vida
e da morte de cada personagem revela-se somente no campo de visão do autor e
apenas à custa de seu excedente sobre cada uma das personagens, vale dizer, à
custa daquilo que a própria personagem não pode ver nem entender” (BAKHTIN,
2008, p. 80).
Desse modo as personagens não falam por si mesmas, suas falas
expressando os desejos e angústias são revelados pelo narrador, na maioria das
vezes, por meio de um verbo dicendi.
O conto se inicia com o enunciado: “Quintanilha engendrou Gonçalves”, nele
se percebe o estilo controlador e conhecedor de toda ação do narrador e sua
inclinação em atribuir à culpa pela derrota da personagem central a ela mesma. O
verbo “engendrar” significa, segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua
Portuguesa, “dar origem a”, “gerar”, “produzir”, ou então, “inventar”, “imaginar”
(FERREIRA, 1986, p. 654), portanto de antemão antecipa para o leitor, que
Quintanilha agiu de forma a transformar Gonçalves em homem interesseiro, visto
sua fraqueza emocional e também pela subserviência ao parceiro.
Para suprir sua dependência emocional Quintanilha oferecia ao amigo uma
qualidade de vida que este não possuía por conta própria, bons charutos, bons
jantares, bons espetáculos, livros novos, viagens de férias, empréstimos. Esta
atitude ia além de uma simples amizade, como destaca o narrador: “Um pai não se
desfaria mais em carinho, cautelas e pensamentos” (2008, p. 225) e “Quintanilha
acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter como ele” (2008, p. 227).
880
Enquanto o companheiro Orestes é descrito como uma pessoa que deseja
se dar bem na vida, tanto financeiramente quanto emocionalmente, visualiza-se o
aniquilamento da autoestima de Quintanilha para satisfazer os desejos do outro.
Para tanto estimula o parceiro a aceitar a herança para obtê-la depois, e até ser
capaz de desposar a pretensa noiva do amigo.
Vê-se nessas caracterizações uma relação assimétrica enquanto um busca
uma relação homoafetiva o outro deseja ascender socialmente.
O narrador apesar de não nomear claramente a relação das duas
personagens, evidencia nas entrelinhas a homoafetividade: “A vida que viviam os
dous, era a mais unida deste mundo”, (2008, p. 227) e “casadinhos de fresco” (2008,
p. 230), deixa para o “leitor sagaz” a condição de fazer tal leitura.
Esta relação homoafetiva é pautada no interesse, na exploração do outro, ou
melhor, na “compra e venda”, prática de relacionamento corriqueira na sociedade
contemporânea, baseada exclusivamente no individualismo e na negação do
“outro”.
A representação do relacionamento de um casal que foge à norma da
sociedade, formado por pessoas com interesses diferentes e estruturado na
exploração do “outro”, longe do ideal e do heteronormativo se descortina por meio
das vozes presentes na narrativa, a do narrador e também das personagens
protagonistas, Quintanilha e Orestes. Como se observa o jogo de interesses no
fragmento em que Gonçalves insinua a acabar com a amizade para evitar os
comentários maldosos:
881
menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou
você está... está aborrecido de mim?
— Eu? Tinha graça.
— Pois então?
— Mas é ...
— Não é tal! (ASSIS, 2008, p. 227)
882
Desse modo, diante da circunstância temporal, moral e social e
principalmente a pessoal de Gonçalves, que deseja ascensão social, a qualquer
custo, instala-se a impossibilidade de concretização do relacionamento
homoafetivo.
Machado de Assis por meio do diálogo com a obra trágica grega compõe uma
narrativa à moda brasileira. Por meio de uma inversão de enfoque em relação à
referência, trata de modo sutil sobre a relação homoafetiva, baseada no jogo de
interesses e exploração do “outro”.
O que chama atenção é a impressão e o questionamento do nosso maior
escritor a respeito da temática, ao desvelar nas vozes discursivas da narrativa, o
drama vivenciado das “pessoas/personagens” envolvidas na relação. Um narrador,
às vezes, não confiável, que insinua a presença de um jogo de desejos; a
personagem central que sofre aniquilamento da autoestima pela idealização do
“outro”, e este se beneficia com a fraqueza daquele. Enfim, é um convite à leitura
do conto.
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CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos. São Paulo:
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Referências web
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Quintanilha em “Pílades e Orestes”. Disponível em:
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885
ASPECTOS DE INCOMPLETUDE E AMBIGUIDADE EM “O PIROTÉCNICO
ZACARIAS”, DE MURILO RUBIÃO
Introdução
Com este texto que nos serve de epígrafe, extraído do conto “O pirotécnico
Zacarias”296, de Murilo Rubião, iniciamos a nossa comunicação perguntando-nos: é
possível se compreender, como uma síntese, os mundos contrários da vida e da
morte? Até que ponto são passíveis de racionalização as afirmações de um homem
que confessa ter tido a vida interrompida por um atropelamento mas que, ainda
assim, defunto, “não perdera nenhum dos predicados geralmente atribuídos aos
vivos” (Rubião, 2010, p. 18)?
O escritor mineiro Murilo Rubião (1916–1991, MG) é considerado como
precursor da nossa literatura fantástica. Autor de uma obra singular, composta de
trinta e duas narrativas curtas já publicadas e uma “ainda inédita e numerosos textos
em fase de produção – rabiscados, rascunhados e inacabados” (Garcia, 2013, p,
11) – Murilo Rubião tinha como hábito reescrever insistentemente os seus contos
antes de publicá-los. Estudiosos afirmam que a opção pelo insólito assinala o
percurso criativo do escritor mineiro. Mas, que aspectos de sua contística
possibilitariam nomear como fantásticas as narrativas deste autor? Quais os
elementos estéticos que nos permitem visualizar em seus textos as substâncias
inabituais que configurariam o fantástico?
295Doutora em Literatura (UnB); Mestre em Letras: Estudos Literários (UFMG). Professora da Graduação em
Letras e dos Programas de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários e Mestrado Profissional em Letras da
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. Membro do GT Vertentes do Insólito Ficcional da
ANPOLL.
296 A versão que utilizamos integra as Obras completas do autor (Companhia das Letras, 2010).
886
E é a partir de algumas “considerações teóricas” (tomando, aqui,
emprestadas as expressões usadas por David Roas e Maria Cristina Batalha nos
títulos de seus trabalhos, os quais citaremos a seguir), que esta comunicação tem
como objetivo analisar algumas imagens insólitas do conto “O pirotécnico Zacarias”.
Tzvetan Todorov, em seu livro Introdução à literatura fantástica (Perspectiva,
2010), propõe a seguinte definição para o gênero fantástico:
887
cotidiana que ela mesma constrói com técnicas realistas e, ao mesmo tempo,
destrói, de forma a inserir nela outra realidade, incompreensível para a primeira –
técnicas que coincidem claramente com as fórmulas utilizadas em todos os textos
realistas para conferir verossimilhança à história narrada, para afirmar a
referencialidade do texto (Roas, 2014, p. 54). Nessa perspectiva, o fantástico é um
modo narrativo que provém do código realista, mas que ao mesmo tempo supõe
uma transformação, uma transgressão desse código:
888
em seu sentido amplo, ou seja, era percebido como sinônimo de maravilhoso. A
ensaísta declara, ainda, que “no relato fantástico, tanto o real explicável, como o
irreal não são excludentes entre si, mas sim representam duas ordens que se
mostram incapazes de dar conta do acontecimento estranho” (Batalha, 2012, p. 15.)
Assim, a partir dessas leituras, vejamos o que nos apresenta o texto de Murilo
Rubião:
889
nos a atenção, especialmente, o primeiro parágrafo do bloco dois e o último
parágrafo do bloco quatro, os quais passamos a citar:
297Lembramos que é nesta cidade de Belo Horizonte que o escritor escreve grande parte de sua ficção,
escolhendo, inclusive, os seus cenários para a elaboração narrativa.
890
atingindo o leitor – sobre o sentido da vida: “Sem cor jamais quis viver. Viver, cansar
bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente, ausente de homens.”
(Rubião, 2010, p. 16.) Ora, parece (dizer-nos o texto): o que importa o estar vivo ou
morto – quase vivo ou quase morto – se não é possível encontrar nessas extensões
da existência/não existência justificativas para o ser e o devir?
Destaca-se, também, uma outra imagem que corrobora a natureza insólita
desta narrativa: atropelado, o corpo ensanguentado, sem vida, não anula as
faculdades mentais e cognitivas do personagem narrador, e nem a sua consciência
das circunstâncias. Aliás, em um debate entre os jovens que o atropelaram sobre
que destino dariam ao corpo – o qual não poderia representar nenhum empecilho
ao programa daquela noite – Zacarias intromete-se, revelando preocupação (sim,
preocupação!) com o que aconteceria ao seu corpo, por exemplo, se fosse lançado
em um despenhadeiro: “ficar jogado em um buraco, no meio de pedras e ervas,
tornava-se para mim uma ideia insuportável” (RUBIÃO, 2010, p. 17).
O seu corpo poderia...
Pensemos, pois: se a um vivo, o que mais atemoriza é a morte, ou o risco de
morte, o que um morto temeria? Isso é, certamente, aterrador, uma vez que a morte
não lhe subtrai a consciência dos vivos (promovendo um desconforto, em função da
complexidade que essa situação poderia implicar).
Assim, ao final, Zacarias, o pirotécnico, o artista que arranja e organiza
metódica e tecnicamente fogos de artifício (ou de guerra) para provocar um
espetáculo, para iluminar um espaço com explosão de cores e luzes – apresenta-
se, ele próprio, como uma espécie de contemplação mágica, capaz de produzir em
nós, leitores, a sensação de engano dos nossos sentidos: “Teria morrido o
pirotécnico Zacarias?” (RUBIÃO, 2010, p. 14.)
Encontramo-nos, portanto, diante de uma metáfora ou metonímia das
dimensões, que aqui se apresentam intercambiáveis, da vida e da morte?
891
Considerações finais
Referências Bibliográficas
298Lembramos que a expressão “incompletude e ambiguidade”, que comparece em nosso título encontra-se
no ensaio da Maria Cristina Batalha – apesar de que, aqui, não nos debruçamos sobre o que a ensaísta discute
nesse aspecto.
892
A VIOLÊNCIA E O INSÓLITO EM EL MATERIAL HUMANO,
Introdução
893
condição humana devastada e perseguida pelas sombras de um passado recente
tenebroso. Assim, dentro deste panorama, encontram-se as obras do escritor
guatemalteco Rodrigo Rey Rosa.
Nascido na Guatemala em 1958, Rey Rosa é um dos novos nomes da
literatura centro-americana (e hispano-americana) contemporânea. É um autor que
traz uma perspectiva renovadora para a literatura do Istmo e busca novas temáticas
que se fazem presentes nesta parte do continente. Destaca-se por sua
originalidade, sobriedade e aparente transparência em seus escritos que buscam
trazer o sentimento que está presente na atualidade na América Central: os períodos
das guerras civis, o sofrimento, a desilusão e o desengano pós-guerra, entre outros
elementos que parecem ser retratados com maior grau em suas narrativas como a
violência e uma desesperança filosófica.
Sendo assim, esta breve pesquisa objetiva analisar a obra El Material
Humano ([2009] 2011) a fim de se evidenciar uma narrativa baseada na estética da
violência, a partir das imagens presentes no texto e na própria construção da
narrativa proposta pelo autor guatemalteco, buscando também propiciar um
possível diálogo com o gênero fantástico no tanger dos traços de um insólito
ocasionado pelo absurdo da realidade.
A perspectiva fantástica apresentada nesta pesquisa parece ser utilizada pelo
autor não só para se enfatizar as denúncias presentes na narrativa em relação à
história da Guatemala, mas também para proporcionar uma reflexão sobre a
pluralidade de sentidos ocasionada pelas construções imagéticas do insólito. Em El
Material Humano, Rey Rosa traz indícios de que a narrativa será autobiográfica
pelas semelhanças existentes entre a vida do autor e do narrador. Entretanto, com
o desenvolvimento da trama, o real e o ficcional mesclam-se nas ações e
indagações do protagonista, fazendo com que a aproximação com o real seja posta
em cheque pelo absurdo que se pode encontrar no cotidiano descrito no enredo.
894
Cultura e estética da violência
895
Assim, surge a ideia da cultura da violência e a estética da violência que se
propõe destacar neste artigo. Tem-se como definição da expressão cultura da
violência como o legado histórico da violência e sua consequente aceitação na
dinâmica cotidiana normal de um determinado lugar ou país. Aceitam-se a
impunidade generalizada, o autoritarismo vigente e constante, a militarização da
cultura cidadã, um sistema judiciário fraco e inoperante, que se manifesta a partir
das próprias ações do Estado e em sua relação com a população e que gera uma
“cultura do silêncio” exatamente pela ineficiência do sistema forense, pela violência
praticada pelo poder Executivo e pela resposta negativa da própria população a
todos esses acontecimentos (CUEVAS MOLINA, 2012: 147).
Nesta cultura se vê a violência como a única maneira viável como resposta
aos conflitos encontrados na sociedade. Assim, considera-se normal e aceitável
responder à violência cotidiana a que alguém está submetido com a própria violência
para se defender ou reagir à primeira violência exposta. Põem-se nos dois lados da
moeda a mesma marca e a exata igualdade entre os signos.
Seguindo este pensamento, pode-se dizer que as narrativas centro-
americanas vão se construindo por meio de diversos elementos que costumam
representar uma violência estrutural direta/indireta e que a dinâmica da produção
narrativa a partir da década de 1990 busca interagir profundamente com as os
exemplos de manifestações da violência cotidiana da região:
En forma directa y breve se muestran múltiples elementos que pueden ser
recorridos como constantes dentro de la producción narrativa
centroamericana que emerge a partir de la década de 1990 y que pueden
organizarse dinámicamente desde la interacción de al menos las siguientes
dimensiones: las representaciones de la violencia, las reacciones ante la
violencia, los desplazamientos de la violencia y la literatura como violencia.
(MACKENBACH e WALLNER, 2008: 82)
896
encomendou filmes sobre a Alemanha e sobre a SS, o Führer transformou os
aspectos estéticos existentes na política e incorporou uma nova definição ao termo
em questão.
O mesmo parecer ter acontecido com a estética da violência, pois a barbárie
se tornou natural e milhões puderam expor seus instintos selvagens sem
consciência de culpa. Atualmente, a estética da violência sobrevive e possui grande
força. Não mais como um ritual cruel de genocídios e extermínios ao som de
canções populares, mas também estetizados pelos media. A imprensa em geral e a
televisão “mercantilizam” a violência como um produto racionalmente vendável, da
mesma forma, sem consciência de culpa. O horror, a destruição, as mutilações, etc.
se tornaram um bom prato para um público sedente por sangue. Assim, na estética
da violência, a própria violência parece deslocar-se, segundo, Wallner (2003: 140):
Para o escritor alemão Ottmar Ette (2005), sobre a nova literatura como
experimentação de uma nova estética, existem as definições de “literatura de pós-
guerra”, “narrativa da violência”, “estética do terror e do cinismo” e a “literatura do
desencanto”.
Em suas narrativas, além do enigma presente, Rey Rosa trabalha a temática
da violência que transcende a realidade e se magnetiza na ficção focada na
circunstância da Guatemala em pós-guerra e o absurdo narrado em uma prosa de
grau zero que traduz a desesperança filosófica em seus contos e também em seus
romances (GUTIÉRREZ, 2008).
897
El Material Humano ([2009] 2011)
898
Nesta narrativa, ao construir seu narrador-protagonista e a história que o
involucra, Rey Rosa parece fazer com que se elimine a fronteira entre a realidade e
a ficção. A personagem principal, que não traz um nome próprio declarado,
apresenta semelhanças com o próprio autor: ambos recebem a permissão de
estudar os arquivos policiais da Polícia Nacional Guatemalteca encontrados no
porão de um hospital militar em 2006. A nota de abertura do livro também parece
buscar uma aproximação forte com a realidade: “Embora não pareça, embora não
queira parecer, esta é uma obra de ficção.” (REY ROSA, 2011: 7). A nota final,
porém, colocada no livro traz um caráter ambíguo e gera uma dúvida sobre a
veracidade do texto: “Alguns personagens pediram que seus nomes fossem
alterados.” (REY ROSA, 2011: 182).
Dividida em cadernetas e cadernos de anotações, a narrativa se produz,
aparentemente, como um relato das experiências e das descobertas do narrador-
protagonista no Arquivo do antigo Palácio da Polícia. Entretanto, os relatos sobre os
arquivos se misturam com experiências do cotidiano vividas além dos papéis
achados e do lugar que os guarda. O narrador intercala sonhos e situações em
sequências que, por serem apresentados em fragmentos de dias como em um diário
e não em um texto fluído, trazem uma perspectiva de alinearidade dentro da
realidade cosntruída na trama ao mesmo tempo em que a violência transborda nas
palavras escritas e nas próprias ações narradas:
Durante um dos intervalos (enquanto arquivistas e policiais jogam futebol
amistosamente), examino os restos de automóveis acumulados ali ao
longo de meio século. Um Renault partido ao meio me chama a atenção; e
a fuselagem de um teco-teco Cessna – que deve ter caído, imagino, dentro
do perímetro da cidade. O vento levanta um pequeno redemoinho de pó de
cor creme.
Um alarme contra roubo soa em algum lugar. (REY ROSA, 2009: 44)
899
narrado, por exemplo, nos motivos de fichamento de guatemaltecos nos arquivos
policiais por “delitos comuns”:
Sarceño O. Juan. Nasce em 1925. Jardineiro. Mora com sua irmã. Fichado
em 1945 (Governo da Revolução) por dançar tango na cervejaria «El
Gaucho», onde isso é proibido.
Rosales Vidal Francisco. Nasce em 1925. Tipógrafo. Fichado em 1940
por jogar bola em via pública.
Pineda C. Marta. Nasce em 1914. Sem domicílio fixo. Fichada em 1945
por exercer o amor livre clandestino. Outros dados: mulher insuportável e
insolente. Vive sozinha.
Carranza Ávila Rosa María. Nasce em 1920. Serviços domésticos.
Fichada em 1944 por cometer adultério em sua casa.
García Aceituno Francisca. Nasce em 1925. Profissão: seu sexo. Fichada
em 1940 por vender doces sem alvará.
Aceytuno Salvador Luis Fabio. Nasce em 1920 em Santa Cruz, El
Quiché. Fichado em 1939 por coabitar com uma porca.
Cabrera David (filho de Rómulo Zamora e Socorro Zamora). Nasce em
1925. Sem profissão. Fichado em 1934 por implorar a caridade pública.
Izil Yaguas José Juan. Nasce em (ignora a data). Vive sozinho e sem
domicílio fixo. Fichado em 1938 por não usar avental para vender pão.
Valdés P. Sergio Estuardo. Nasce em 1931. Fotógrafo. Fichado em 1952
por soltar um urubu dentro do Teatro Capitol.
Novales Dolores. Nasce em 1919. Hondurenha (Puerto Cortez). Fichada
em 1955 por desejar deixar a prostituição e submeter-se à vida honrada.
(REY ROSA, 2011: 25-36)
900
Quando seu estudo começa a trazer à tona a violência do Estado por meio
da polícia, suspendem o seu acesso aos arquivos por tempo indeterminado e sem
uma explicação plausível. Além disso, durante o período de sua investigação no
Arquivo, o narrador relata diversas vezes em que ligam para sua casa, porém
ninguém diz nada, a ponto de desenvolver o desejo do narrador em fugir para outro
país por medo de represálias mais fortes que lhe levem a perder a vida:
Após alguns meses trabalhando no Arquivo, penso que posso ser ouvido
cada vez que falo ao telefone (principalmente no celular). Uma coisa que o
chefe me disse outro dia, sobre não ser conveniente discutir minha
suspensão por telefone, reforça meu receio. (REY ROSA, 2011: 70)
[...] O telefone começou a tocar por volta das duas da manhã. Levantei-me
para atender, mas não havia ninguém na linha. Isso se repetiu pelo menos
cinco vezes. Pensei que se tratava de um engano, talvez a programação
equivocada de algum serviço de teledespertador. (2011: 76)
[...] Fiquei mais um tempo acordado lendo e-mails e depois fui para a cama.
Pouco depois o telefone tocou, levantei para atender, e nada. Deitei
novamente e dormi. (2011: 97)
[...] Um pouco mais tarde, o telefone tocou. No início, não se ouviu nada.
Depois, uma risadinha que parecia de uma velha, e só posso qualificar de
maligna. O número, “não identificado”. De repente, sinto ânsia e corro para
o banheiro. (2011: 145)
[...] O telefone toca. Atendo. “Não vá alvoroçar o formigueiro”, diz alguém.
Depois, click, a linha morta. (2001: 157)
[...] Telefonema silencioso ontem, por volta das duas da manhã. Pía estava
comigo, o que me inquieta ainda mais. (2011: 174)
[...] Quase meia-noite. Dois telefonemas, um imediatamente depois do
outro. No outro extremo da linha, silêncio, talvez barulho de chuva, mas
não está chovendo esta noite sobre a Cidade de Guatemala. (2011: 189)
901
O absurdo trazido por essa realidade violenta parece representar o que o
protagonista põe como explicação para tentar compreender as atrocidades
praticadas pelo ditador Ubico quando mandava matar pessoas primeiro e depois
averiguava se eram culpadas ou não: Sadismo histórico. Realismo sádico. (REY
ROSA, 2011: 53).
Portanto, pode-se concluir a partir desta breve análise sobre o romance
apresentado que Rey Rosa parece trazer seus textos dentro de contextos que
pretendem eliminar as barreiras entre o real e o imaginário, utilizando-se do absurdo
para mesclar estes dois mundos que parecem transbordar uma violência também
absurda, mas assustadoramente cotidiana. Sua escrita apresenta uma estrutura
narrativa engendrada a partir do jogo com as palavras e seus significados,
propiciando ao leitor um caminho construído por veredas múltiplas, além de um
processo de indagação sobre o aceitável e o normal a partir dos questionamentos
contidos em suas narrativas.
Referências Bibliográficas
902
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cultura en Centroamérica en tiempos de globalización neoliberal (1990 – 2010).
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WALLNER, Alexandra Ortiz. Trazar Un Itinerario De Lectura: (Des)Figuraciones De
La Violencia En Una Novela Guatemalteca. Costa Rica: Revista Inter Sedes, 2003.
903
ANALISE, SOBRE A ÓTICA PUBLICITÁRIA CONTEMPORÂNEA, DO ANUNCIO
IMPRESSO “DUPLA POMADA DAS SULTANAS E ÁGUA CARMINATIVA” NO
ROMANCE HISTÓRIA DA GRANDEZA E DA DECADÊNCIA DE CÉSAR
BIROTTEAU NA OBRA A COMÉDIA HUMANA DE HONORÉ DE BALZAC
904
A elaboração do estudo sobre o objeto-título deste trabalho está na peça
fictícia tipo alltype301 transcrita abaixo, criada por Balzac, pelas mãos de Birrotteau,
para divulgação desses revolucionários produtos de tratamento de clareamento da
derme:
DESCOBERTA MARAVILHOSA
APROVADA PELO INSTITUTO DA FRANÇA!
Há muito tempo que uma pomada para as mãos e uma água para o rosto que
dessem resultado superior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados da pele
vinham sendo geralmente desejados pelos dois sexos na Europa. Após ter
consagrado longas vigílias ao estudo da derme e da epiderme nos dois sexos, que,
tanto um como o outro, dão, com toda a razão, o maior apreço à suavidade, à
maciez, ao brilho, ao aveludado da pele, o sr. Biroteau, perfumista largamente
conhecido na capital e no estrangeiro, descobriu uma pomada e uma água
justamente denominadas, desde sua aparição, maravilhosas, pelos elegantes e
pelas elegantes de Paris. Com efeito, esta pomada e esta água possuem admiráveis
propriedades para agir sobre a pele sem enrugá-la prematuramente, consequência
infalível das drogas que inconsideradamente têm sido usadas até agora e
inventadas por ignorantes ambiciosos. Esta descoberta baseia-se na classificação
dos temperamentos, que se dividem em duas grandes categorias indicadas pela cor
da pomada e da água, que são cor-de-rosa para a derme e a epiderme das pessoas
de constituição linfática e brancas para as das pessoas de temperamento
sanguíneo.
Esta pomada é denominada Pomada das Sultanas porque já fora descoberta
por um medico árabe para uso nos serralhos. Foi aprovada pelo Instituto de acordo
301 Anúncio publicitário elaborado somente com texto para mídia impressa
905
com o parecer do nosso ilustre químico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmula
obedece aos mesmos princípios que ditaram a composição da pomada.
Esta preciosa Pomada, que exala os mais suaves perfumes, apaga as
sardas mais rebeldes, clareia as epidermes mais recalcitrantes e elimina os suores
das mãos de que tanto queixam as mulheres e os homens.
A Água Carminativa faz desaparecer essas pequenas espinhas que, em
certos momentos, acontecem inopinadamente as mulheres e contrariam seus
projetos de ir a um baile; refresca e reaviva as cores abrindo ou fechando os poros
segundo as exigências do temperamento; ela já é tão conhecida por sua
propriedade de deter os ultrajes do tempo que muitas damas, por gratidão, a
denominaram A Amiga da Beleza!
A água-de-colônia é pura e simplesmente um perfume banal sem eficácia
especial, ao passo que a Dupla Pomada das Sultanas e a Água Carminativa são
duas composições operantes, duma força motriz que age, sem perigo, sobre as
funções internas, secundando-as; seus odores, essencialmente balsâmicos e
dotados duma faculdade recreativa, alegram admiravelmente o coração e o cérebro,
dão encanto às ideias e as estimulam; são tão admiráveis por seu mérito como por
sua simplicidade, enfim, constituem um atrativo a mais oferecido às mulheres e um
meio de sedução colocados à disposição dos homens.
O uso diário da Água dissipa a ardência causada pela navalha; preserva,
igualmente, os lábios de gretas e os mantêm vermelhos; seu emprego continuado
apaga naturalmente as sardas e acaba restituindo o tom à pele. Esses resultados
traduzem sempre, no homem, um perfeito equilíbrio entre os humores, o que tende
a liberar as pessoas sujeitas à enxaqueca dessa terrível moléstia. Finalmente, a
Água Carminativa, que pode ser empregada pelas mulheres em todos os seus
cuidados da pele, evita as afecções cutâneas sem prejudicar a transpiração dos
tecidos, ao mesmo tempo que lhes comunica um aveludado persistente.
Os pedidos, livres de porte, devem ser dirigidos ao sr. César
Birotteau,sucessor de Ragon, antigo perfumista da rainha Maria Antonieta, na
Rainha das Rosas, Rue Saint-Honoré, em Paris, próximo à Place Vendôme.
906
O preço do pote de Pomada é de três francos e o do vidro de Água de seis
francos
O sr. César Birotteau, a fim de evitar as imitações, previne o publico de que
a Pomada vem envolta em papel com sua assinatura e que os vidros trazem seu
monograma gravado.
(BALZAC. 2012, p, 466 – 468)
Análise 1 - título.
907
Análise 2 - título.
DE CÉSAR BIROTTEAU
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) coloca a
obrigatoriedade de um responsável técnico assinar (e assumir) quaisquer
responsabilidades sobre o produto ofertado ao mercado no segmento médico-
farmacêutico, o que envolve a cosmetologia. Outrossim, o nome do proprietário logo
abaixo do título sugere a utilização de uma estratégia de “Marca Corporativa”, ou
seja, o reforço de um nome conhecido e forte avalizando à qualidade e procedência
do produto.
Análise 3 - título.
DESCOBERTA MARAVILHOSA
APROVADA PELO INSTITUTO DA FRANÇA!
Uma das funções estratégicas de da propaganda é a “informativa”. Sua
utilização é realizada quando de um lançamento de produto ou serviço, geralmente
com grande valor tecnológico agregado. Nesse sentido, a frase “Descoberta
Maravilhosa” dispõe-se a chamar a atenção do publico a uma novidade fantástica
em um novo produto. Outrossim, “Aprovada pelo Instituto da França”, traz a
908
chancela de permissão de um órgão oficial governamental que regulamenta a
utilização de produtos, antes da comercialização, similar ao órgão brasileiro
ANVISA.
Análise 4 - texto.
“Há muito tempo que uma pomada para as mãos e uma água para o rosto que
dessem resultado superior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados da pele
vinham sendo geralmente desejados pelos dois sexos na Europa.”
Neste trecho, podemos supor que, com base em Maslow, psicólogo
comportamental americano Abraham Maslow, que identificou as várias etapas
psicológicas motivacionais entre “Necessidades e Desejos”, desde a necessidade
básica fisiológica até o desejo de realização pessoal, os produtos anunciados
seguem a linha do conceito criativo de “há muito tempo você, consumidor ou
consumidora, não vê um produto que realmente satisfaça seus desejos de bem
estar”, visando produzir o desejo de compra sobre uma necessidade latente (ou
inexistente) de demanda.
909
(Fonte: NIVEA HAUS, online)
O primeiro espaço NIVEA HAUS, inaugurado em 2006 na cidade de
Hamburgo, posiciona-se como um local de bem-estar para fugas rápidas de lazer,
durante o dia-a-dia estressado da semana.
Análise 5 - texto.
Após ter consagrado longas vigílias ao estudo da derme e da epiderme nos dois
sexos, que, tanto um como o outro, dão, com toda a razão, o maior apreço à
suavidade, à maciez, ao brilho, ao aveludado da pele, o sr. Biroteau, perfumista
largamente conhecido na capital e no estrangeiro, descobriu uma pomada e uma
água justamente denominadas, desde sua aparição, maravilhosas, pelos elegantes
e pelas elegantes de Paris.
Aqui, o texto pode ser caracterizado com a utilização de estratégia de Brand
Equity302. Ou seja, Honoré de Balzac apresenta os produtos calcados em profundo
estudo de um renomado perfumista, sr. Biroteau, e focado nos atributos de cuidado
com a pele, trazendo os benefícios de suavidade, maciez, brilho e aveludamento.
Outro ponto interessante é a tentativa de aderência do produto com pessoas, sem
citar nomes, elegantes, tanto homens como mulheres, que já utilizam os produtos.
302 Termo que se refere a agregar valor pelo atributo da marca e/ou produto
910
(Fonte: CHANEL, online)
Análise 6 - texto.
Com efeito, esta pomada e esta água possuem admiráveis propriedades para agir
sobre a pele sem enrugá-la prematuramente, consequência infalível das drogas que
inconsideradamente têm sido usadas até agora e inventadas por ignorantes
ambiciosos. Esta descoberta baseia-se na classificação dos temperamentos, que
se dividem em duas grandes categorias indicadas pela cor da pomada e da água,
que são cor-de-rosa para a derme e a epiderme das pessoas de constituição linfática
e brancas para as das pessoas de temperamento sanguíneo.
Em um primeiro momento, há o alerta sobre a utilização de produtos
manufaturados com a utilização irresponsável de insumos agressivos a pele. Esse
trecho aponta, de maneira ética, a concorrência, pois não coloca nomes de outras
marcas. Ainda nesse parágrafo, a analogia com a estratégia de comunicação
publicitaria atual está no processo de “segmentação”, ou seja, focar na principal
parcela de compradores do grande público, para tornar mais eficaz a comunicação
com o mercado consumidor.
911
(Fonte: NATURA CHRONOS, online)
Análise 7 - texto.
Esta pomada é denominada Pomada das Sultanas porque já fora descoberta por
um medico árabe para uso nos serralhos. Foi aprovada pelo Instituto de acordo com
o parecer do nosso ilustre químico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmula
obedece aos mesmos princípios que ditaram a composição da pomada.
Além da ratificação de certificação do Instituto, por meio de um renomado
químico, há a informação de que a Pomada já fora descoberta por um médico fora
da França, o que naquela ocasião, assim como nos tempos atuais, busca pegar o
mote de que o produto estrangeiro (ou internacionalizado) é melhor e mais confiável.
912
Um grande exemplo na atualidade é o anúncio veiculado da marca de
cosméticos Anna Pegova, com o subtítulo “O cosmético funcional que virou febre
na Ásia, Europa e Estados Unidos”.
Análise 8 - texto.
Esta preciosa Pomada, que exala os mais suaves perfumes, apaga as sardas mais
rebeldes, clareia as epidermes mais recalcitrantes e elimina os suores das mãos de
que tanto queixam as mulheres e os homens.
A Água Carminativa faz desaparecer essas pequenas espinhas que, em certos
momentos, acontecem inopinadamente as mulheres e contrariam seus projetos de
ir a um baile; refresca e reaviva as cores abrindo ou fechando os poros segundo as
exigências do temperamento; ela já é tão conhecida por sua propriedade de deter
os ultrajes do tempo que muitas damas, por gratidão, a denominaram A Amiga da
Beleza!
Pode-se notar que, também, no século XVIII, o cuidado com a beleza e a
coloração da pele eram muito presentes na sociedade. Conforme sugere o texto,
desde aquela época, aparecimentos inoportunos de espinhas, olheiras etc., podem
afetar o intensamente a questão psicológica de quem está prestes a participar, por
exemplo, de um evento social.
913
Esta peça da L’oreal, representa exatamente essa melhor aparência de forma
instantânea, destacando a frase “pele perfeita imediatamente”, não só para eventos
sociais que surgem sem prévio aviso, mas para o dia-a-dia corrido da mulher de
hoje.
Análise 9 - texto.
914
Análise 10 - texto.
915
Análise 11 - texto.
Análise 12 - texto.
916
(Fonte: INFO.ABRIL, online)
917
Importadores de Perfumes, Cosméticos e Similares (ADIPEC), pode-se também
exemplificar essa questão com a chamada da montadora Volkswagen: Só use
peças originais VW. Atualmente, essa tentativa de persuasão publicitária é
empregada para diferenciar a empresa de sua concorrência e, principalmente, de
produtos “piratas” que assolam os mercados.
Conclusão
Além da observação de que prevalece a aplicação do modus operandi de
Balzac quanto à concepção de obra realística da sociedade, ao retratar as
necessidades reais de saúde e beleza das pessoas do século XVIII (exatamente
iguais as necessidades da atual sociedade), pode-se notar, nesta breve analise da
peça publicitária “Dupla Pomada das Sultanas e Água Carminativa”, que fica
evidente que foi concebida com técnicas de anúncios publicitários utilizados na
época, possivelmente aprendidos empiricamente, uma vez que, a princípio, não
existia bibliografia de teoria comunicacional mercadologia formal naquele período
do século XVIII.
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920
WEB EXPÕE CONTRADIÇÕES DA NARRATIVA HUMANA
Introdução
304Mestre em Integração Latino Americana, na área de História Econômica, pela USP. Coordenadora e
Professora do Curso de Pós-graduação em Assessoria de Comunicação e Mídias Sociais da Universidade
Anhembi Morumbi. É Professora de Pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Jornalista das
áreas de Comunicação Impressa e Digital, com ênfase em Jornalismo Econômico.
921
Ao permitir que nossos milhares de ‘amigos’ saibam o que fazemos,
pensamos, lemos, vemos e compramos, os produtos e serviços da web
fortalecem nossa era hipervisível de grande exibicionismo”. Isso nos permite
compreender que o entretenimento, a fotografia E, ATÉ MESMO, A
LEITURA ESTÃO TRANSFORMANDO-SE EM “ESPETÁCULOS SOCIAIS
(KEEN, 2012, pp. 47-52).
Em 2013, o CEO da marca de moda Abercrombie & Fitch declarou que não
fabricariam mais roupas para gente feia. Na web, a declaração se espalhou,
causando indignação e protestos. A intervenção dos públicos pelas redes provocou
queda de 30% nas ações da empresa, segundo veiculou o portal da revista Rolling
Stone, em 8 de novembro de 2013. O portal usou a Agência Reuters como fonte.
Durante as manifestações de junho de 2013, um promotor ficou parado no
trânsito da cidade de São Paulo. Furioso postou em seu Facebook mensagem
orientando a Tropa de Choque a matar os manifestantes. Como responsável da
Justiça na região, o promotor argumentou que os policiais não seriam punidos. Pelas
redes sociais, as pessoas denunciaram exaustivamente as palavras do promotor.
Resultado: o Ministério Público abriu ação para apurar o caso e, o promotor, que
também era professor universitário, foi demitido da universidade, segundo veiculou
a redação do portal Terra, em 13 de junho de 2013.
No início de 2014, uma professora da PUC-Rio usou a sua página no
Facebook para debochar do perfil do público que atualmente frequenta aeroportos.
A docente compartilhou sua opinião com dois outros colegas, um da Unirio e outra
da própria PUC. O post vazou pelas redes sociais e obrigou a professora a pedir
922
desculpas e fechar o acesso a suas publicações. O episódio foi pauta da colunista
do Jornal Folha de S. Paulo, Mônica Bergamo, em 10 de fevereiro de 2014. Bergamo
deu voz para um dos citados pela a professora.
Esses e outros casos similares no universo da web revelam que arraigados
preconceitos podem ser desnudados. Em geral, o resultado dessas intervenções
públicas nada cuidadosas tem sido violentamente negativo para a imagem das
marcas ou de indivíduos. O tempo em que alguns podiam expor produtos e ideias
sem qualidade e sem consistência social está cada vez mais fragilizado nesse
contexto. Para Hunt (2010), as redes sociais, além de espaços de relacionamento,
são geradoras de capital social. Este capital social dará a medida da reputação de
uma organização ou de uma pessoa. Para a autora esse valor intangível resultará
das ações positivas ou negativas percebidas pelos públicos em redes.
Hoje, o exército que se comunica pela web/internet pode causar danos
irreparáveis a todos que não processaram a importância da transparência, da
prestação de contas e da equidade nas relações humanas. Por conveniência ou
convicção, a necessidade de expandir as práticas de valores civilizatórios é um
desafio global.
Outra vertente nesse cenário está relacionada ao modelo produtivo vigente.
A indústria fonográfica é o exemplo explícito dessas transformações. Perdeu espaço
para softwares e meios que permitiram ao usuário distribuir e compartilhar músicas.
O modelo de negócio do segmento teve que buscar alternativas para sobreviver a
uma realidade na qual as pessoas também podem, mesmo que pontualmente,
controlar o meio de produção.
Em artigo publicado na revista Matrizes 7, jan/jun de 2013, da pós-graduação
da ECA/USP, as pesquisadoras Eugenia M. R. Barichello e Luciana M. Carvalho
afirmam que a participação dos interagentes nos processos de produção e/ou
distribuição de conteúdos faz parte das principais mudanças trazidas pela internet
e pelas tecnologias digitais. Para as pesquisadoras, as ferramentas de mídia social
digital envolvem um forte potencial para recriação, deixando em aberto
possibilidades de apropriação social de modo muito mais amplo do que ocorre com
os demais meios, menos abertos à reconfiguração social.
923
Em seu livro: A Cultura da Participação, Clay Shirky explica que as
ferramentas tecnológicas tornam a informação globalmente disponível e encontrável
por amadores, a custo marginal zero, representando assim um enorme choque
positivo para a combinabilidade do conhecimento. Shirky acredita que a produção
social pode agora ser muito mais efetiva do que já foi, tanto em termos absolutos
quanto em relação à produção formalmente gerenciada, porque o alcance e a vida
útil do esforço compartilhado saíram do âmbito doméstico para a escala global.
Todos esses elementos provocam constantemente debates nos meios de
comunicação tradicionais. Não são poucos os autores e críticos que se dedicam a
mostrar o lado, digamos “manipulador” das mídias sociais digitais. Denunciam como
algoritmos podem conduzir o usuário a compartilhar links, como procedimentos
nada civilizatórios são espalhados, como o cidadão pode ser controlado passo a
passo e outros. Tais fatores apontados por esses críticos denotam aquilo que
muitos já sabem: o mundo on-line reproduz as misérias do presencial.
Contudo, paralelamente e junto com esses elementos, o mundo da web e da
internet provoca uma liberação de forças similar ao que os tipos móveis da prensa
de Gutenberg introduziram no século XV. A partir desse período uma abundância
de livros passou a ser produzida, afetando profundamente o controle da sua
produção por parte da Igreja.
Naquele tempo, os controladores da produção de livros criticaram duramente
esse processo, alegando que o cuidado com a qualidade seria comprometido. Os
críticos da ascensão das mídias sociais por vezes repetem esse argumento,
adaptando-o a realidade do nosso tempo.
Shirky argumenta que o material de baixa qualidade que surge com a
liberdade crescente acompanha a experimentação que cria o que acabaremos
apreciando. Para Shirky, isso foi verdade na tipografia no século XV e é verdade na
mídia social de hoje.
Em comparação com a escassez de uma era anterior, a abundância acarreta
uma rápida queda da qualidade média, mas com o tempo a experimentação
traz resultados, a diversidade expande os limites do possível, e o melhor
trabalho se torna melhor do que o que havia antes. Depois da tipografia,
publicar passou a ter maior importância porque a expansão dos textos
literários, culturais e científicos beneficiou a sociedade, mesmo que tenha
sido acompanhado por um monte de lixo (Shirky, 2011, p. 50).
924
É nessa seara, com aspectos e elementos diversos, que todos estamos
expostos. Atravessar esse campo sem grandes prejuízos parece estar associado a
práticas que podem elevar o grau de respeito dos relacionamentos humanos. A
pergunta é: aonde se amparar diante de tanta vulnerabilidade? Os fatos do cotidiano
apontam que o amparo pode vir da expansão dos valores civilizatórios.
Em um tempo no qual o caos é ordem, o contraponto pode estar no exercício
ao respeito, ao diverso, ao adverso, na fraternidade, na equidade e na
transparência, corroborando quem sabe para as possibilidades de felicidade não
serem tão egoístas.
Referências Bibliográficas
925
ROLLING STONE, Revista.
http://rollingstone.uol.com.br/canal/fashion/depois-de-polemica-marca-resolve-
fazer-roupas-em-tamanhos-maiores
SHIRKY, CLAY. A Cultura da Participação. RJ, 2011. Zahar.
926
ONCE UPON A TIME: RELEITURA DO MARAVILHOSO
NA CONTEMPORANEIDADE
305
Pós-doutora em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, Doutora e Mestre em Literatura
Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo, graduada em Letras Inglês pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie e em Letras Português/Espanhol pela Universidade de São Paulo. Autora de livros e
artigos científicos, é docente dos cursos de Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo –
Brasil.
927
mundo”. Deste modo, todos os personagens são levados para um “lugar horrível”,
dominado pela Rainha, e lá, sem memória do passado, vivem o cotidiano de uma
cidade contemporânea no estado do Maine (EUA), a fictícia Storybrooke. A situação
só se altera com a chegada de Emma que, ao completar 28 anos, é procurada por
seu filho legítimo, Henry, que fora adotado ainda bebê por Regina, prefeita de
Storybrooke, que é, na verdade, a Rainha Má. O garoto Henry possui um livro
intitulado Once upon a time que conta os fatos ocorridos no passado e sabe que a
única pessoa capaz de resgatar os personagens e trazer de volta os finais felizes é
Emma, sua mãe biológica.
Tanto Horowitz como Kitsis possuem longa experiência na criação de
roteiros de séries de TV, consagrados com produções como Lost (2005-2010), Tron
(2012), Felicity (2001-2002) e, mais recentemente, como criadores da série Once
Upon a Time in Wonderland (2013-2014), derivada de OUAT. A parceria repete uma
das fórmulas bem-sucedidas em Lost: um mundo paralelo, semelhante a um mundo
real, vivido pelos personagens, sem que estes saibam onde estão e por que estão
lá. Como em Lost, o espectador de OUAT partilha da dúvida vivenciada pelos
personagens, pois a cada episódio é desvendada uma parte da história que compõe
o quebra-cabeça.
O roteirista Edward Kitsis traçou um paralelo entre as séries Lost e Once
Upon a Time: “For us, Lost was about redemption, and Once is about hope. Fairy
tales are a way to deal with our world, but also as dark as they are, they give us a
little bit of sunlight” (Rome, 2012). Ao refletir sobre a amplitude do termo "hope",
"esperança", o dicionário Houaiss elenca os seguintes significados:
928
elementos — fé, esperança e amor — é uma constante em oposição ao mal e à falta
de perspectivas que a maldição provoca. Prova disso é que em Storybrooke as
fadas transformam-se em freiras, pois, destituídas da magia, as fadas continuam
pregando a fé e fazendo a caridade: "a fé atua pelo amor" (Gálatas 5,6). Da
perspectiva sociopolítica, é possível pensar em OUAT como uma mensagem de
esperança voltada para o cidadão comum, para a família, que, à época do
lançamento da série, sentia o duro golpe da crise econômica que se abateu desde
2008 sobre a sociedade norte-americana, como informavam jornais e organizações
não-governamentais na época, situação comparada à grande depressão de 1929.
OUAT constitui sem dúvida uma adaptação dos contos de fada, no
entanto, o seu principal interesse é como tantas narrativas entrelaçadas desenham
um argumento novo, através do preenchimento das lacunas e do que os contos
não relatam, oferecendo uma ressignificação a tais elementos. Cahir (2006) define
o processo de adaptação da literatura para o filme da seguinte forma:
Like a work of literature, a film is the result of the proc ess of composition,
the meaning of which is "to make by putting together". Literature and filme
composition, unlike a painting, for example, both comprise a series of
constantly changing images. The compositional structure of both is created
from the splicing together of a sequence of smaller units: a paragraph (or
stanza) in literature and a shot in film. Paragraphs, stanzas, and shots
simultaneously function as both singular, separate units and as integrated,
inseparable parts of the entire work. The splicing together of the smaller
units creates the design-whole of the film or the book. (CAHIR, 2006, p 46-
47).
929
A maldição das trevas ("the dark curse") da Rainha Má, lançada durante o
casamento de Branca de Neve e do Príncipe Encantado, impõe aos personagens
dos contos maravilhosos e contos de fada uma vida cotidiana numa cidade comum
— Storybrooke —, onde não há magia e nem finais felizes, perdendo assim os
atributos mágicos que os diferencia da realidade comum dos mortais. Os
personagens amaldiçoados perdem a memória, tornam-se fracos e, por isso,
submetem-se sem reação aos desmandos da temida Rainha. Seu cúmplice,
Rumpelstiltskin, desempenha o papel de um segundo antagonista, que entra em
confronto tanto com a Rainha como com os demais personagens vitimados pela
maldição.
O piloto da série se inicia como um conto de fadas, introduzido pela
expressão “era uma vez”; a seguir, cada frase em caracteres brancos, surge na tela,
em fundo preto, sem qualquer som, criando um suspense para a sequência dos
acontecimentos a serem narrados:
Once upon a time
There was an enchanted forest filled with all the classic characters we
know.
Or think we know.
One day they found themselves trapped in a place where all their happy
endings were stolen.
Our world. (OUAT, letreiros iniciais, piloto)
930
de localidades distantes. Ao refletir sobre a instância narrativa que abre a série
OUAT, observamos um narrador onisciente próximo ao receptor, portanto, um
narrador "sedentário", que conhece integralmente a história por tê-la ouvido. Não há
indícios de que se trate de um narrador-personagem, mas de um narrador externo
às diegeses narrativas (BENJAMIN, 1985, p. 198-199).
O piloto de OUAT começa com a clássica do Príncipe Encantado, com sua
capa vermelha e sobre seu cavalo branco, que segue para salvar sua amada Branca
de Neve. Os elementos sonoros (galope e música) surgem com o fade-in da imagem
do Príncipe em seu cavalo galopando velozmente numa ponte sobre um lago, num
grande plano geral com a câmera se aproximando em dolly-in, atribuindo uma ação
intensa e dinamismo à imagem.
Na primeira cena, o grande plano geral de apresentação do espaço revela
uma estrada que passa sobre um lago, rodeado de montanhas, das quais uma parte
está coberta de vegetação e outra parte está coberta de neve. O Príncipe embrenha-
se numa fria floresta, com flocos de neve caindo, quando se dá o encontro dele com
os sete anões que estão ao redor de Branca de Neve, deitada em seu esquife de
cristal. Mestre, um dos sete anões, recebe o Príncipe com a frase: “Tarde de mais”.
O esquife é, então, aberto e o Príncipe beija a princesa, que desperta com um
suspiro, quebrando o feitiço que atinge todo o entorno, devolvendo a beleza e o
colorido à paisagem silvestre. Este seria o final feliz dos contos tradicionais,
sugerindo-se o início de um novo tempo de bem-aventurança. Toda a cena é uma
citação do longa-metragem animado, produzido pelos Estúdios Disney em 1937,
Snow White and the seven dwarfs. Considerando que a ABC, produtora de OUAT,
pertence aos Estúdios Disney, a série recria imagens e retoma trilhas musicais e
canções das produções Disney, como Heigh-Ho, assoviado por Leroy neste primeiro
episódio da série, e a presença do passarinho azul nas mãos de Branca de Neve.
Este é o único momento em que o seriado reproduz uma cena completa
extraída fielmente de um dos contos tradicionais usados como referência, embora
visualmente, esta seja uma paráfrase da animação da Disney.
A animação de Branca de Neve da Disney (1937) termina com a sequência
em que o Príncipe Encantado beija Branca de Neve que desperta; Branca despede-
931
se de um a um dos anões e dos animais da floresta e, por fim, num plano geral,
Branca de Neve, montada no cavalo branco, acompanha o Príncipe e ambos rumam
para o castelo ao longe, sugerindo que ambos ficarão juntos para sempre. Vale
observar que a imagem do castelo surge suspensa no céu, remetendo à morada
mitológica do monte Olimpo, que estaria nos céus, ao mesmo tempo que sua forma
ainda mantém o aspecto das fortalezas medievais, exibindo torres altas, que
exprimem a noção de segurança.
A música utilizada na cena do “beijo mágico e salvador” de Encantado em
Branca tanto na animação como em OUAT são similares, remetendo a um som de
caixa de música, de encantamento, através de frase musical semelhante; quando
Encantado observa a face de Branca, a música ganha ares de suspense em ambas
as produções. A cena do esquife apresenta-se espelhada com relação à da
animação, recurso imagético comumente usado quando um filme cita outro filme,
como escancarando o processo ao receptor.
A principal diferença entre as cenas de Branca aparentemente morta
encontra-se no caixão: na animação da Disney, a cobertura de vidro do caixão é
retirada pelos anões antes da chegada do príncipe; assim, quando Encantado
chega, o caixão está aberto, enquanto em OUAT o caixão está fechado, reforçando
a sensação claustrofóbica e prolongando a imagem da morte de Branca de Neve.
Pode-se pensar nessa diferença com relação ao público: a sensação asfixiante do
caixão fechado foi direcionada ao público adulto. Ao abrir o caixão, porém, observa-
se a citação de uma cena clássica na dramaturgia televisiva: a imagem do rosto de
Laura Palmer, a jovem assassinada na série Twin Peaks, de David Lynch e Mark
Frost, também produzida pela ABC Productions (1990), cujo enredo era a
investigação da morte dessa personagem.
Em OUAT, assim que Branca desperta, há uma elipse temporal e a próxima
cena já é o "sim" da cerimônia de casamento de Branca e de Encantado. No entanto,
o final feliz dos personagens é abalado durante essa cerimônia: Regina, a Rainha
Má, surge, sem ser convidada, e lança diante de todos a sua maldição sobre o futuro
dos noivos e demais habitantes da Floresta Encantada.
932
Nos contos tradicionais, lançar uma maldição constitui um motivo recorrente
em diversas narrativas. Exemplo dessa predestinação pode ser encontrada no conto
A Bela Adormecida, na versão dos irmãos Grimm (Grimm, 2012, p. 43). Ao ser
apresentada ao reino, a princesinha recém-nascida recebe visitas e bênçãos,
porém, inesperadamente a 13ª. fada, que sequer fora convidada para a festa,
adianta-se à 12ª. e preconiza a morte de Bela quando esta completar 15 anos. A
12ª. fada atenua a predestinação, determinando que a jovem não morreria, mas
ficaria adormecida por 100 anos.
A maldição da Rainha Má de OUAT e a da 13ª. fada de A Bela Adormecida
guardam semelhança, ao provocar a sensação de medo e a angústia pelos
acontecimentos futuros, em especial, nas figuras dos reis progenitores, que temem
pela segurança de suas respectivas filhas.
Como no conto dos irmãos Grimm, a Rainha Má, madrasta de Branca de
Neve, persegue a enteada. Porém, em OUAT, a ira da Rainha não é motivada pela
beleza de Branca, mas sim pela vingança: a Rainha culpa Branca pela morte
precoce de Daniel, seu amado, um jovem cuidador de cavalos com quem Regina
fugiria para viver um grande amor. Cora, mãe de Regina, personifica a mãe cruel,
uma bruxa truculenta, que coleciona o coração de suas vítimas e arquiteta a morte
da rainha mãe de Branca de Neve para que Regina despose o rei Leopold.
Aproveitando-se da ingenuidade de Branca, quando esta era ainda criança, Cora
descobre o plano de fuga de Regina e Daniel e, por isso, termina com o romance
da filha, extirpando magicamente o coração de Daniel.
Ao culpar Branca por seu infortúnio amoroso, Regina tornou-se amarga e
vingativa, e passa a dedicar sua vida para impedir a felicidade de Branca de Neve.
A vingança de Regina estende-se à própria mãe: Regina busca a ajuda de
Rumpelstilskin, que a introduz no mundo da bruxaria, ensinando-a como prender
Cora num mundo paralelo, ou seja, em outra diegese para além de Storybrooke e
da Floresta Encantada. Regina passa então a temer o retorno de sua mãe.
Com base nesse enredo, o medo do futuro envolve os protagonistas, no
entanto, esse sentimento é quebrado pela esperança, como afirmam os criadores
da série, sendo que a fé no amor sustenta todas as ações e tentativas de vencer a
933
maldição, como afirmaram os criadores da série. Quanto aos antagonistas, sua
motivação é o poder e a vingança.
Dentre as várias versões publicadas de Branca de Neve, encontram-se a
italiana de Giambattista Basile (1575-1632), intitulada “A jovem escrava”,
considerada a mais antiga; “Fábula da princesa morta e dos sete cavaleiros” (1833),
poema de Alexander Pushkin (apud Callari, 2012) e a mais popular, a versão dos
Irmãos Grimm, que compõe o livro Contos de fada para crianças e adultos,
publicado em 1812, e a que é mais utilizada em OUAT.
Na primeira versão manuscrita dos irmãos Grimm de Branca de Neve, de
1810, mas nunca publicada, quem inflige todo o sofrimento a Branca de Neve é a
sua própria mãe, por sentir inveja da filha. A decisão de matar a mãe de Branca de
Neve e fazer da antagonista sua madrasta, permite aos autores a associação da
figura materna à imagem religiosa da Família, vista como uma instituição ao ser
preservada. Assim, em OUAT, é Regina quem sofre com a maldade da mãe,
justificando de certo modo seu comportamento agressivo e assustador.
OUAT propõe tanto as figuras da mãe como da madrasta má. Numa
perspectiva da Psicologia, “a fantasia da madrasta perversa não só preserva a boa
mãe intacta, como também evita a necessidade de se sentir culpado devido aos
pensamentos e desejos zangados em relação a ela” (Bettelheim, 1980, p. 245).
A simples presença de Regina amedronta todos os personagens, com
exceção de Branca de Neve e do Príncipe. Todos os personagens presentes à
cerimônia evitam dirigir o olhar em direção a Regina. Segundo Chevalier e
Gheerbrant, “o olhar é o instrumento das ordens interiores: ele mata, fascina,
fulmina, seduz, assim como exprime” (Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 653). O
medo de observar o mal pode ser encontrado tanto no relato bíblico como no mito
de Orfeu: em ambos, a desobediência, o infortúnio e a relação com as entidades
ligadas à morte desencadeiam um mesmo fim: Orfeu voltou o olhar para Eurídice
antes de que ela saísse da morada dos mortos, o que causou seu desaparecimento,
o castigo imposto a Orfeu foi o sofrimento eterno pela perda da amada; no episódio
bíblico de Sodoma e Gomorra, foi a mulher de Ló olhou para trás, desobedecendo
934
aos mensageiros de Deus, transformando-se numa estátua de sal (Gênesis, 19:
17,26).
A invasão solitária de Regina constitui uma afronta ao sagrado, ao espaço
cerimonial de sentido místico onde se efetuam os votos matrimoniais. A festa
representada na imagem não pode ser consagrada a nenhuma religião ou seita
especificamente, contudo, o espaço em que ocorre assemelha-se a uma catedral
gótica, com grandes vitrais que permitem inundar o ambiente com a luz exterior,
sem que haja qualquer símbolo que possa ser atribuído a uma fé específica;
concorre também a presença de um celebrante, usando túnica e mitra.
As duas diegeses da série permitem identificar tendências literárias
bastante diversas. Enquanto a Floresta Encantada sustenta-se no espaço-tempo do
maravilhoso — constituído por narrativas que retomam contos, lendas e mitos
(Coelho, 2000, p. 158 e 160), Storybrooke é representada com elementos do
realismo mágico, visto que nela a fronteira entre realidade e imaginário se diluem, a
partir de situações centradas no cotidiano comum, em que irrompe algo estranho,
que é visto ou vivido com naturalidade pelas personagens. Storybrooke apresenta-
se como um espaço-tempo do entrelugares, isto é, um espaço intermediário entre a
realidade e a ficção: uma cidade aparentemente real e cotidiana dos Estados Unidos
torna-se um castigo, uma espécie de limbo para onde são lançados os personagens
dos contos de fada, pois ali o tempo não passa, não há memória, ninguém consegue
chegar ou sair da cidade, salvo aqueles que de alguma forma se relacionem à
maldição: "Repetir significa negar o tempo, é o signo de um 'não-tempo' que
caracteriza o concreto da vida cotidiana, o instante vivido" (Maffesoli, 1984, p. 82).
A instância narrativa em OUAT retoma o narrador tradicional, que recria as
narrativas tradicionais sem distinção de público. Embora os personagens principais
da série sejam a Rainha Má, Branca de Neve, o Príncipe Encantado e Rupelstiltskin,
Emma e Henry são os novos personagens extraídos do cotidiano do século XXI e
que se configuram nos novos heróis que voltam seus esforços para salvar os
personagens dos contos.
935
Referências Bibliográficas
CAHIR, Linda Costanzo. Literature into film. Theory and practical approaches. North
Carolina, USA: McFarland & Company Publishers, 2006.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
ONCE UPON A TIME. 1ª. temporada completa. EUA: ABC Studios/Walt Disney
Productions, 2011.
ROME, Emily. ‘Once Upon a Time’ team: We show women who aren’t afraid of
power. Disponível em < http://herocomplex.latimes.com/2012/02/12/once-upon-a-
time-team-we-show-women-who-arent-afraid-of-power/ > Acesso em 13/07/2012,
às 19h32. Emily Rome entrevista os roteiristas Adam Horowitz e Edward Kitsis.
SNOW WHITE AND THE SEVEN DWARFS. EUA: Disney Studios, 1937.
936
A PERSONAGEM E O ESPAÇO FICCIONAL: A CONFIGURAÇÃO DO HOMEM
CONTEMPORÂNEO EM O VOO DA MADRUGADA, DE SÉRGIO SANT’ANNA
A CONTEMPORANEIDADE
UNIBR-SP
937
mão-de-obra diversa e, além disso, exige-se o pagamento das mercadorias em
capital.
Dessa forma, pode-se dizer que, nesse processo, o Capitalismo trouxe à
sociedade o individualismo e a cisão da identidade humana, a partir do momento
que torna os homens apenas meros fabricantes de produtos, individualizados nos
diversos setores de uma indústria. Logo, o consumismo é resultado desse sistema,
exigindo do cidadão o consumo imediato de coisas supérfluas na busca pelo prazer
efêmero. Como consequência, os altos índices de desemprego crescem, devido às
máquinas que substituem o homem nos diversos ramos profissionais, enquanto a
violência urbana aumenta como forma de sobrevivência do indivíduo.
Ainda de acordo com Compagnon (2010), o pós-moderno passa a ser
incorporado nas Artes: primeiramente, na Arquitetura e, em seguida, nas demais
expressões artísticas. No caso da Literatura, muitas ficções ditas pós-modernas, ao
abordarem temáticas contemporâneas, como a banalização da violência e do sexo,
o consumo abusivo das drogas ilícitas ou as precárias condições da vida humana,
têm como propósito a experimentação estética. Observa-se esse caráter
experimental na construção de narrativas fragmentadas, por exemplo, ou na
incorporação das mídias no discurso literário, o que exige do público-leitor uma
participação ativa no decorrer de sua leitura.
Entretanto, essas experimentações na Literatura põem em xeque a
terminologia Pós-modernidade ao que se refere ao período contemporâneo. Uma
vez que as obras modernas também experimentavam novas formas poéticas e
diferentes estruturas narrativas, como cita Lipovetsky (2005, p. 76-77), “[...] toda a
arte moderna, devido às suas produções experimentais, está baseada no efeito de
distanciamento e provoca espanto, suspeita ou rejeição”.
Leem-se na Literatura contemporânea as representações das grandes
cidades, bem como as problemáticas do homem moderno (ou pós-moderno?),
mostrando, como um grandioso espetáculo, os vícios, os desejos, as crueldades e
os medos da humanidade. As narrativas mostram um retrato da atualidade,
refletindo uma escritura literária preocupada em expor as realidades da sociedade
atual.
938
Parece que tais narrativas indicam também que, num regime de visibilidade
total, o excesso de luz projetado na paisagem aberta da cidade pós-
moderna é revelador de seu aspecto obsceno. Oblitera-se a cena e diluem-
se as fronteiras entre palco e público. [O espetáculo] não subsiste sem a
separação entre o segredo da intimidade doméstica e o espaço público do
consumo significativo; ou melhor, enquanto sobrevive tal distância, que é a
da alienação, há o espetáculo. (GOMES, 1998, p. 02).
939
lugar físico, onde transitam e agem as personagens, o espaço pode levar em
consideração os contextos sociais (espaço social) em que se encontram os seres
ficcionais, bem como suas atmosferas interiores (espaço psicológico). Por isso que,
na articulação entre os espaços físicos, sociais e psicológicos, percebem-se os
conflitos das personagens.
Afirma Fiorin (1999, p. 259): “Quando a narrativa se ocupa do espaço, não se
interessa tanto em produzir uma sintaxe espacial, mas em criar [...] uma
ambientação [...]”. O termo ambientação ou ambiente designa a intersecção entre
os tipos de espaços citados, cujo objetivo é revelar as características psicológicas
das personagens, além de conceitos sociais, filosóficos ou religiosos, pertencentes
ao período em que acontece a narrativa. Ainda sobre essa ideia, complementa
Junior (1995, p. 48): “O ambiente pode refletir a atmosfera psicológica vivida pela
personagem [e, ao mesmo tempo,] pode estar em contraste com a atmosfera
psicológica da personagem, realçando suas carências [...]”.
No conto de Sérgio Sant’Anna, o narrador, classificado como autodiegético,
quer dizer, protagonista dos fatos que lhe acontecem na história, tem sua trajetória
narrada nos diferenciados espaços físicos, os quais mexem com suas ações, seu
interior e seus pensamentos. O próprio título do texto, O voo da madrugada, implica
um momento de transição ou passagem de um lugar para outro. No conto, o
deslocamento aéreo do narrador-personagem entre os Estados de Roraima e São
Paulo é ampliado com a “viagem” na qual passeiam os estados de espírito desse
ser ficcional.
A cidade de Boa Vista é o ponto inicial da narrativa, podendo ser tomada
como uma espécie de macro-espaço, por aglutinar os demais espaços pelos quais
o narrador passa a ter contato com outras personagens e com ele mesmo. O
encontro da voz narradora com uma realidade que se mostra faz com que sejam
dados predicados depreciativos à capital roraimense, classificada pelo narrador
como “fim do mundo”; “cidade perdida nos confins mais atrasados”; “lugar maldito”;
“cidade calorenta e opressiva”. No entanto, fazendo um trocadilho com o nome
dessa capital brasileira, Boa Vista pode metaforizar a “boa visão” do protagonista,
que passa a enxergar com outros olhos sua existência e a vida contemporânea.
940
A chegada dessa personagem viajante a São Paulo desloca o espaço amplo
da narrativa. O retorno do narrador a uma vida árida e sem graça é, como ele mesmo
cita, “[...] retornar a uma vida enfadonha e, pior do que isso, na cidade em que um
dia fui traído e abandonado por uma mulher [...]”. (SANT’ANNA, 2003, p. 07). Nesse
ponto final da viagem, surge a desilusão do narrador e retrata, da mesma forma que
os demais espaços ficcionais, o constante abandono do ser humano nas grandes
metrópoles.
Entretanto, antes de analisar os espaços presentes no conto de Sérgio
Sant’Anna, faz-se necessária a abordagem do conceito de não lugar de Marc Augé.
O teórico francês acredita que a contemporaneidade, para ele denominada
Supermodernidade, é produtora de não lugares. O que difere o lugar do não lugar é
que este pode determinar nenhum tipo de identificação do indivíduo que nele
transita, pois são, em grande parte, lugares coletivos, e, também, porque não há
neles a presença de relações humanas com algum vínculo afetivo. O não lugar
caracteriza-se por ser um ambiente de passagem ou negociação, como por
exemplo, os transportes coletivos, centros comerciais, instituições ou casas de
divertimento. O não lugar determina:
941
Aquele ambiente traduz a “solidão absoluta” desse narrador, que se inquieta
com sua imaginação e com as luzes, sons e vozes que vêm de fora. O quarto,
localizado no primeiro andar do prédio, de onde se tem a visão de outro espaço, a
rua, serve de “camarote” ao narrador, que excitado pela balbúrdia, passa a observar
a movimentação exterior, evidenciando o retrato de uma sociedade movida pelo
espetáculo.
Ao descrever o que vê de sua janela, a personagem central fascina-se com
o contato visual que tem com outro espaço, a rua à porta da boate Dancing Nights,
local permeado de bêbados, prostitutas, policiais corruptos, automóveis,
motocicletas. As cenas daquela vida noturna tornam aquele ambiente sedutor, um
verdadeiro convite àquela personagem solitária, o que, em relação à obra do
contista, “[abre] a possibilidade da cena ainda sobrecarregada de sentido parece[r]
ser traço marcante de narrativas urbanas de Sérgio Sant’Anna”. (GOMES, 1998, p.
2).
Decidido a manter um contato real com aquele ambiente aparentemente
descontraído e fascinante, o narrador sai em busca de prazer, mas antes é forçado
a passar pela portaria do hotel. Nesse novo espaço, ele questiona ao porteiro sobre
a possibilidade de levar acompanhantes ao seu quarto:
942
proibido, evidenciam a corrupção humana, fazendo com que o narrador negocie o
seu prazer.
Já na rua, à entrada de um beco, como é dito no conto, o narrador encontra-
se em um lugar sombrio, ambientação esta que antecipa uma situação
desagradável. Ele é abordado por outra personagem, uma menina aparentemente
de pouca idade e que lhe oferece seus “serviços” de acompanhante. Tal ocorrência
causa horror ao protagonista, ainda mais quando surge o rufião da garota, que é
visto por aquele como “[...] o que existe de mais odioso na espécie humana, mais
particularmente no sexo masculino [...]”. (SANT’ANNA, 2003, p. 12). A prostituição
infantil e a cafetinagem causam o estarrecimento do narrador, que controla suas
vontades e, imediatamente, retorna ao isolamento de seu quarto.
De volta ao espaço inicial, o narrador protagonista reflete sobre aquele
encontro inesperado. Sente horror, fascínio, comedimento, desejo pela menina da
rua. Sente-se confuso, o que é próprio do homem contemporâneo, e tentado pelo
prazer carnal, fazendo-lhe com que antecipe seu regresso a São Paulo.
No táxi, a caminho do aeroporto, continua sua reflexão a respeito do episódio
da menor prostituta: “Ao tomar um táxi, à porta do hotel, meu olhar foi
inevitavelmente atraído para o beco [...] e fui possuído por uma raiva intensa [...]
uma mistura de indignação e ressentimento”. (SANT’ANNA, 2003, p. 14). O táxi
evidencia sua condição de não lugar a partir desse momento reflexivo da
personagem, já que, pela teoria augeana, os não lugares colocam em evidência o
contato do indivíduo com ele mesmo.
No aeroporto de Boa Vista, que para o narrador nada mais é do que “um
grande galpão e uma pista de pouso”, descobre que estará em um voo de
emergência, no qual serão transportados os corpos das vítimas de um acidente
aéreo e os familiares delas. Toda uma ambientação fúnebre acontece com o contato
que o protagonista tem com pessoas trajando negro e de olhos avermelhados e com
a mulher negra e velha, cuja perna esquerda é amputada, demonstrando a
apreciação, por parte do narrador, acerca da transitoriedade da vida e da única
certeza humana: a morte. Sob esse contexto (a viagem), Augé (2010) afirma que
este é um momento de passagem e, ao mesmo tempo, o espetáculo às vistas de
943
um espectador solitário, que é obrigado a contemplar cenas que lhe proporcionam
prazer ou melancolia. Considerando essa perspectiva, note-se que a bordo do
avião, o narrador confessa: “Eu gostava de estar voando porque, em trânsito, não
me achava propriamente em lugar algum” (SANT’ANNA, 2003, p. 16), confissão
esta que atesta o avião como um não lugar.
Durante o voo, aparece uma mulher com quem o protagonista passa a ter um
contato amoroso. Ela senta-se ao lado dele, conversam e, ali mesmo, na poltrona
do avião, os dois passam a trocar carícias, abraçam-se e adormecem juntos. Essa
situação narrada no conto, a princípio, contradiz a teoria dos não lugares, pelo fato
destes serem caracterizados pela ausência de vínculos afetivos pelos indivíduos
que o frequentam. No entanto, tal acontecimento na vida do narrador do conto reflete
a efemeridade das relações afetivas na contemporaneidade, haja vista que, quando
ele acorda, não vê mais a mulher que amara, mas sente-se feliz por aqueles breves
momentos passionais.
Chegando a São Paulo, o narrador-personagem toma um táxi, onde torna a
refletir agora sobre quem seria aquela mulher. Cogita a hipótese de que ela era o
fantasma de um daqueles mortos que o avião transportava, confessando que foi a
redações de jornais em busca da verdade, a fim de encontrar algum indício de que
amara uma morta, contudo sem sucesso. Em seu prédio, descreve o elevador como
“velho e vagaroso”: outro não lugar onde ele planeja sua vida rotineira; por fim,
adentra seu apartamento, cujo ambiente é sombrio, dando a impressão de que “[...]
ao penetrar em seu interior, foi como se retornasse à noite”. (SANT’ANNA, 2003, p.
25). Outra vez, a antecipação de acontecimentos e a noite vista como imagem do
obscuro, do mistério e do prazer, uma vez que as “aventuras” da personagem, no
decorrer da história, se sucederam durante o período noturno.
Para a surpresa do narrador protagonista, quando entra em seu quarto, vê
um homem sentado em sua cama. Esse homem era ele mesmo, uma outra faceta
sua. Apesar de se encontrarem em um lugar de recolhimento e tranquilidade,
imediatamente o sossego daquele espaço é quebrado com as dúvidas que
aparecem naquele ambiente: quem seria realmente aquele outro sentado à beira da
944
cama? Seria sonho? Outro fantasma? Loucura? Reflexo do cansaço do narrador,
como ele próprio chega a pensar? As várias facetas do indivíduo contemporâneo?
Logo, considerando todas essas possibilidades que o final do conto em
questão suscita, pode-se relacioná-las com o que Lipovetsky (2005) teoriza acerca
da Arte na contemporaneidade:
945
espelho de si mesmo e a representação do homem real. Esse ser ficcional tenta
sobreviver no mundo caótico da contemporaneidade, mas sonha com a
possibilidade de encontrar o mínimo de afeto em seu semelhante. Portanto, em O
voo da madrugada, tanto no começo como no final, o estar frente à janela dá um
caráter cíclico à história: um ciclo em que se fundem o homem e a personagem, a
vida e a ficção. É o observar solitário do grandioso espetáculo do dia a dia através
de uma janela denunciadora de aparentes verdades, cujos “deslocamentos do olhar”
ampliam as manifestações do período atual da humanidade. A narrativa analisada,
assim como outras suas contemporâneas, ao se apropriarem dos diversos espaços
ficcionais “[...] constroem o cenário da cidade como espaço público [...] na medida
em que permitem detectar que a cidade determina nosso cotidiano [...] e é nosso
presente turbulento, nossos velhos medos” (GOMES, 1998, p. 05), ou seja, tais
narrativas configuram a frágil imagem do homem contemporâneo.
Referências Bibliográficas
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contemporânea. São Paulo: Mercado das letras, 2009. p. 24-62.
946
SANT’ANNA, Sérgio. O voo da madrugada. In: _____. O voo da madrugada. São
Paulo: Companhia das letras, 2003. p. 09-28.
947
A LITERATURA MASHUP: UM PRODUTO DO MERCADO EDITORIAL
Introdução
Definir o que é literatura não é uma tarefa fácil. Se, por um lado, ela pode ser
considerada como uma das grandes formas de arte, por outro, ela pode ser vista
como um produto de uma indústria cultural, vinculada a um mercado editorial com
profundos interesses mercadológicos.
Um texto literário pode ser reconhecido como uma obra de valor artístico, que
representa os anseios e questionamentos relativos às grandes questões universais
da humanidade, como, por exemplo, a dicotomia vida/morte, ou tratar até mesmo
das questões relativas ao lugar do homem no mundo e na sociedade a qual
pertence, e, como forma de arte, a literatura tem o poder de proporcionar ao leitor,
uma série de novas experiências, que o levam a vivenciar distintas realidades e
acontecimentos, sem a necessidade do experimento físico destas situações. Afinal,
como nos diz o escritor Mario Vargas Llosa, “Inventamos las ficciones para poder
vivir de alguna manera las muchas vidas que quisiéramos tener cuando apenas
disponemos de una sola” (2010, p.2).
Porém, quando do advento da criação da imprensa de tipos móveis por
Johannes Gutemberg, em 1455, instalou-se no Ocidente uma nova tecnologia que
permitiu a criação em maior quantidade e com maior rapidez de impressos que
podiam ser divulgados, e também ser comercializados, e, a partir de então,
intensificaram-se os interesses nas relações transacionais/comerciais envolvendo
materiais impressos por esse novo método, nascendo, assim, o que hoje denomina
de mercado editorial.
O mercado editorial, como qualquer outro mercado comercial, está em
constante busca de novos produtos para atender a demanda de seus consumidores,
948
de modo a sempre existir novidades para serem absorvidas pelo público leitor, fato
que, muitas vezes, gera a necessidade de se produzir um determinado material,
para responder a uma demanda do referido mercado.
A produção por demanda, ou encomenda, não é um conceito novo e também
está atrelada ao universo das artes. Para se atender aos desejos dos consumidores
de livros, muitos títulos foram escritos por encomenda de editoras, sendo possível
observar que autores de destaque na literatura brasileira já produziram obras dessa
forma, seja para a publicação em periódicos, como para a própria produção de
livros. Machado de Assis escrevia folhetins, como, por exemplo, Casa Velha, para
que fossem publicados na revista carioca A Estação e estabeleceu uma relação de
mais de vinte anos com a editora Garnier, que foi responsável por ampliar o mercado
editorial da época, uma vez que a editora buscava a consolidação de um projeto
comercial, com a criação de um catálogo de escritores e o autor tinha interesse de
alcançar o público leitor e a crítica. Já a escritora Clarice Lispector, teve várias
incursões no universo dos periódicos, como a publicação de crônicas no jornal
Última Hora, do Rio de Janeiro, de 1951 até 1961. Além de escritora, Clarice exercia
a função de tradutora e na década de 1970, trabalhava para a editora Artenova, que
então lhe fez uma encomenda de um texto de caráter erótico, de acordo com o que
estava na moda naquela época e, então, em 1974 é publicada, por essa editora, a
obra A via crucis do corpo.
Assim, torna-se interessante a observação dessa relação entre o mercado
editorial e a produção literária, a fim de que se possa compreender de que modo ela
afeta a literatura que é produzida em determinada época para atender aos anseios
mercadológicos, para tanto, será utilizada a coleção Clássicos Fantásticos, a qual é
formada das primeiras obras brasileiras de literatura mashup.
O mercado editorial pode ser compreendido como aquele do qual fazem
parte, e no qual estão relacionadas, as seguintes entidades: as editoras, os agentes
literários, o sistema educacional, as instituições de incentivo à produção literária e a
leitura, a crítica, os produtores de conteúdo editorial – como, por exemplo, os
escritores e os tradutores – e os leitores. Cada uma destas entidades acaba por
exercer uma influência sobre as outras, fato que torna este um mercado complexo.
949
O grande produto do mercado editorial é o objeto denominado livro, que pode
ser definido de várias formas. De acordo com a norma brasileira 6029 da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), um livro é definido como “publicação não
periódica que contém acima de 49 páginas, excluídas as capas, e que é objeto de
Número Internacional Normalizado para Livro (ISBN).” (2006, p.6), definição esta
que se encontra de acordo com a que foi proposta pela Conferência Geral da
UNESCO, realizada em 1964 e que buscava diferenciar o que eram folhetos e o que
eram livros. Já para o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), o livro é
qualquer publicação não periódica, sem fins publicitários. Um livro pode ser definido,
tecnicamente, como um volume transportável, uma reunião de folhas de papel (ou
outro material), que podem ser manuscritas, impressas ou não, podendo conter
textos e/ou imagens, e que são dobradas, cortadas e arranjadas de modo a
formarem cadernos que são presos por meio de cola, costura, etc., e formam um
volume recoberto por uma capa resistente.
Mas, por outro lado, o livro deve ser observado como portador de um
conteúdo, que pode ser desde uma obra literária, até conteúdos técnicos, científicos
e até mesmo documentais, sendo, portanto, um produto de resultado de um
processo intelectual, que apresenta e divulga conhecimentos e convicções de
caráter individual ou coletivo.
E, por fim, há que considerar-se que, o livro é um bem de consumo resultado
final de uma produção realizada por meios industriais de impressão e distribuição,
que envolve em seu processo de criação os elementos que compõe o mercado
editorial, sendo assim, um autor tem a tarefa de criar um determinado conteúdo, que
será transformado em um produto comercial por um editor, que normalmente
trabalha para uma editora, que é quem cuida da produção e distribuição dos livros
para os mais diversos canais de venda (livrarias, supermercados, etc.), a fim de que
a demanda dos leitores seja atendida.
Então, nesse contexto é que em primeiro de abril de 2009, é apresentado no
mercado editorial americano o livro Pride and prejudice and zombies, cujo título
traduzido para a língua portuguesa é Orgulho e preconceito e zumbis, considerada
a obra inaugural da literatura mashup. A autoria dessa obra é de Jane Austen e Seth
950
Grahame-Smith, um jovem autor, roteirista e produtor de filmes e séries televisivas,
que já contava com quatro obras publicadas, quando seu editor Jason Rekulak, da
editora Quirk Books, sugeriu que ele usasse a obra clássica, e de domínio público,
Orgulho e preconceito, de Jane Austen, como base para uma adaptação que
apresentasse uma atualização da obra e envolvesse a inserção de elementos
fantásticos. Até a presente data, a obra possui mais de um milhão de livros
comercializados em todo mundo, com traduções para vinte idiomas. Após três
semanas de seu lançamento, o livro atingiu um nível elevado de popularidade,
chegando a terceira posição na lista dos mais vendidos do New York Times, onde
permaneceu por oito semanas.
É, então, a partir do surgimento e do sucesso desse livro, que aparece o
interesse por esse novo tipo de literatura, que passa a ser denominada mashup,
uma vez que esse tipo de obra é reconhecido, nos Estados Unidos, como mashup
novels.
Pode-se, então, dizer que a literatura mashup é a que se propõe a efetuar
uma mistura, por meio da adição de um elemento novo, normalmente insólito, a uma
narrativa existente e já conhecida, o que acaba provocando um estranhamento no
leitor ao observar algo de novo em um texto já sacralizado. Os romances mashup
apresentam como características os seguintes pontos: são obras derivadas, pois
incluem elementos distintos em um texto original criado anteriormente; ocorre a
inserção de temas fantásticos para a execução dessa proposta de recriação e o
criador do texto atual e o autor do texto base são sempre apresentados como
coautores da nova obra. Outra característica que pode ser observada é a da
utilização como base de obras que estão em domínio público, com a finalidade de
serem evitados problemas com a cessão de direitos autorais.
Também é importante observar quando se trata de estudar sobre literatura
mashup é que as mashup novels, por inserirem sempre um objeto distinto nas
narrativas base, são distintas das obras de paródias conhecidas como parody
novels. As parody novels são textos de imitação criados para zombar, comentar, ou
banalizar um trabalho original, o seu assunto, autor, estilo, ou algum outro alvo, por
meio do humor, da sátira ou da ironia. Pode-se dizer que, enquanto a parody novel
951
busca quase que uma paráfrase do texto base com a finalidade de extrair o riso do
leitor, a literatura mashup, vai buscar inserir novos elementos no texto base, com a
finalidade de atualizá-lo.
No momento atual, vive-se em um mundo que permite que múltiplas misturas
ocorram. Hoje o passado e o presente mesclam-se, gerando um grande remix em
todos os campos da expressão humana, nas imagens, nas músicas, nas roupas,
nas artes em geral e geram novas formas híbridas de linguagens que são
proporcionadas devido, principalmente, às novas tecnologias que permitem o
desenvolvimento tecnológico, bem como o questionamento de suas mais distintas
utilizações.
Esse é o cenário, no qual surgem as obras de literatura mashup. Pode-se
verificar que elas aparecem como resposta ao anseio do público por histórias
antigas recontadas de uma nova forma, a qual as adeque ao tempo atual, ou seja,
de modo que fatores da tradição sejam trazidos para atualidade de forma a se
encaixarem no presente.
Também é importante a observação de que a produção desse tipo de
literatura acaba por ser interessante do ponto de vista mercadológico, pois devido
às novas tecnologias é possível produzi-lá em um curto intervalo de tempo e, por
meio dela, pode-se incentivar o consumo de pelo menos duas obras, a obra mashup
e o texto base.
Após uma vista sobre os pontos que levam à busca de uma compreensão do
porquê da existência da literatura mashup, cabe a partir de agora um olhar sobre
como esse tipo de literatura é visto e pensado como produto para o mercado
editorial. Para atender a essa finalidade, passar-se-á a uma análise da Coleção
Clássicos Fantásticos sob o ponto de vista mercadológico.
Esta coleção foi proposta para o selo editorial Lua de Papel, da editora LeYa,
pelo editor Pedro Almeida, que buscava uma atualização das obras clássicas,
principalmente de títulos, que são apresentados como leitura obrigatória durante o
processo de formação escolar. Outra finalidade dessa produção era a de se
apresentar os primeiros livros de literatura brasileira mashup do mercado editorial
brasileiro.
952
Como objeto, os quatro livros que compõe a coleção apresentam uma
dimensão de 14 (catorze) por 21 (vinte e um) centímetros, com uma quantidade de
páginas variando de 125 (cento e vinte e cinco) à 263 (duzentas e sessenta e três).
Os livros apresentam as seguintes capas:
953
Já os adendos ao título do texto base e os nomes dos autores das versões mashup
aparecem em minúsculas.
Já nas quartas capas das obras encontra-se a seguinte chamada:
UM CLÁSSICO DA LITERATURA
NACIONAL, INTEIRAMENTE NOVO!
954
desconfiança: a ligação entre a amada Capitu e seu melhor amigo
Escobar não é mesmo deste mundo. (ASSIS; MANFREDI, 2010)
Senhora, a bruxa
Aurélia Camargo é poderosa. Rica, linda e solteira, ela consegue
enfeitiçar todos os homens à sua volta. Uma mulher assim tinha que
esconder algum segredo. Em 1875, José de Alencar criou "Senhora",
essa destruidora de corações que comprou o único homem que se
atreveu abandoná-la. Nesta nova versão do romance clássico, feita por
Angélica Lopes , o folhetim de época vira uma trama sobrenatural , com
elementos de magia. A vingança de Aurélia contra o ex-namorado agora
é elaborada com a ajuda das misteriosas irmãs Blair - feiticeiras que há
mais trezentos anos semeiam a discórdia entre os pobres casais
apaixonados. (ALENCAR; LOPES, 2010)
955
ultrapassava os limites da vila, decidiu ficar e investir no forasteiro que, segundo seu
relato, fugiu tão logo foi usada a palavra compromisso” / “A vingança de Aurélia
contra o ex-namorado agora é elaborada com a ajuda das misteriosas irmãs Blair –
feiticeiras”, apresentando uma unidade característica para a coleção.
Internamente, as obras também apresentam características que as fazem
funcionar do ponto de vista de uma coleção, bem como inserem o leitor nesse novo
universo do mashup. Logo na abertura dos livros encontram-se ilustrações
referentes às obras e uma página com um aviso como demonstrado na próxima
figura:
Figura 5 – Páginas de
abertura da coleção
Clássicos Fantásticos
(fac-simile)
956
Nessas páginas apresenta-se um aviso para os leitores da seguinte
forma: “Warning – Aviso Essa é uma obra de ficção baseada na obra original.
Toda semelhança é proposital, e as diferenças também. Aqui você encontra uma
nova versão do clássico, com todos os elementos do imaginário que povoam
nossa literatura.”.Esse aviso dialoga com as advertências que normalmente
aparecem em obras de ficção, principalmente cinematográficas que dizem “Essa
é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais terá sido mera coincidência.”. Pode-se observar, dessa
forma, como ocorre desde o princípio das obras uma inserção de temas do
presente que vão alterando os elementos dos discursos tradicionais.
Vale ainda salientar que a utilização do papel pólen bold 90G/m², que
contém uma textura agradável e uma tonalidade amarelada, bem como o uso da
fonte serifada Garamond, que possui uma boa legibilidade, corroboram para uma
agradável leitura do texto impresso.
Assim, se for observado que inicialmente o público alvo dessa coleção
são os alunos que devem ler as obras clássicas no período escolar, é
perfeitamente aceitável essa diagramação, que preza pelo conforto e facilidade
para a execução do processo de leitura.
Sabendo-se que para a criação de uma literatura é necessária a
existência de um sistema literário que envolve os criadores das obras, um público
para a sua apreciação e um mecanismo de transmissão, que na atual sociedade
capitalista, na qual estamos inseridos, torna-se cada vez mais dependente das
leis mercadológicas de oferta e procura e o marketing, a divulgação e a
circulação das obrar passam a tomar o lugar do conteúdo literário propriamente
dito.
É dento desse cenário que foi pensada e desenvolvida a coleção
Clássicos Fantásticos. Ademais, como o sistema educacional brasileiro cobra a
leitura dos denominados clássicos da literatura brasileira, a busca por uma
criação literária que apresente uma nova versão desses clássicos com a adição
de elementos mais atuais e de interesse da denominada Geração Z, que é uma
957
parte integrante desse sistema no momento, torna-se interessante do ponto de
vista mercadológico.
Consequentemente, tem-se a produção de uma literatura específica para
atender a esses pontos que é a apresentada nos textos da coleção Clássicos
Fantásticos, produzida por redatores de televisão em um período de dois meses
de desenvolvimento.
Desse modo, o resultado apresentado é o de um texto literário, produzido
por encomenda para autores que tem uma experiência em redação para outro
tipo de mídia, a televisiva, e que acabam por trazer essa visão para o seu texto
literário com o intuito de responder a questão de como seriam os textos clássicos
se fossem escritos hoje. Vale ressaltar que todos os livros se apresentam
divididos em capítulos curtos, fato esse que gera um conforto e uma rapidez
maiorpara a leitura, uma vez que o leitor não fica preso durante muito tempo em
um s capítulo, algo interessante ao se pensar que os indivíduos componentes
do público-alvo, em geral, não costumam ater a sua atenção, por um grande
intervalo de tempo, em um determinado assunto.
Outro ponto a ser destacado é que com a adição dos elementos
fantásticos os textos acabam apresentando uma forma que se aproxima ao
conceito cinematográfico de terrir que “é a máscara do terror que assombra a
visão de Ivan Cardoso. Carnavaliza a própria paixão terrorífica, que diz terroriso,
mais do que terrir” (PIGNATARI, 2008, p.15). Neste conceito podem ser
inseridos os filmes da franquia cinematográfica Scared Movies, no Brasil
denominados de Todo mundo em pânico, que arrecadarm 800 (oitocentos)
milhões de dólares em todo o mundo. Essas obras de terror são criadas com o
intuito de se fazer rir, por meio de uma brincadeira com os medos recônditos do
homem. Porém, nos casos dos livros que compõe a coleção, é possível a
observação que tanto a característica da hesitação, quanto da ambiguidade
essenciais para a composição dos textos fantásticos estão presentes, uma vez
que não se pode atestar que existam de fato vampiros no Brasil, que alienígenas
andem no meio da população ou que as bruxas estão realizando conjuros por
958
aí, pode-se dizer que apesar de os livros não darem medo e sim fazerem rir,
ainda resta ao leitor um certo calafrio final, que faz com que realmente esteja de
acordo colocá-los como integrantes de uma coleção denominada Clássicos
Fantásticos.
Por fim, é possível verificar que o interesse mercadológico nesse tipo de
texto é alto uma vez que, conforme anteriormente destacado, o fascínio por criar
e recriar histórias e mundos diferentes, viver novas experiências é parte
integrante do ser humano e cada vez mais, na época atual vê-se o sucesso de
produtos que tragam essas características, como os seriados televisivos Once
upon a time atualizam os mais diversos personagens do chamado mundo da
fantasia, bem como a atualização do personagem Sherlock Holmes, que agora
é um detetive auxiliar da polícia de Nova Iorque nos dias de hoje, no seriado
Elementary.
Conforme visto, a produção de literatura por encomenda mercadológica,
não é um assunto novo, porém como a sociedade está inserida em um momento
histórico, no qual, as regras mercadológicas do capitalismo imperam, acredita-
se ser de interesse coletivo a verificação aqui proposta de como a literatura é
produzida para o mercado. Portanto foi verificado que é necessário que a
literatura seja vista e analisada, também, a partir do ponto de vista do porquê da
sua criação, encarada como um produto mercadológico e não apenas como uma
forma artística elevada e inacessível.
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961
A LEITURA COMO SALVAÇÃO
Introdução
962
como Marisa Lajolo. Outros já haviam de algum modo destacado a importância
da leitura na inserção do protestantismo no Brasil, como Júlio Andrade Ferreira
(1992) e Boanerges Ribeiro (1991). No entanto, fizeram uma apresentação dos
textos de forma breve e mais teológica e sociológica, sem aprofundar em
questões propostas pela História da Leitura.
A História da Leitura pode se juntar a algumas ideais de Pierre Bourdieu,
como o conceito de campo e o conceito de concorrência e transação. Os
protestantes se apresentavam à sociedade brasileira como os defensores do
verdadeiro cristianismo ou, ao menos, de um cristianismo mais puro. Na disputa
por espaço nesse campo as lideranças “podem lançar mão do capital religioso
na concorrência pelo monopólio da gestão dos bens de salvação e do exercício
legítimo do poder religioso” (BOURDIEU, 2005, p. 57). O capital religioso
acumulado depende da demanda e da oferta. Ora, o país passava por um
período em que as forças liberais e contrárias ao regalismo imperial e ao
padroado, ofereciam uma demanda que os protestantes quiseram preencher.
Além disso, aspectos do jansenismo e a circulação de livros da devoção
moderna também provocavam uma demanda que os protestantes quiseram
atender. A literatura foi uma das estratégias para alcançar os não protestantes e
manter os fiéis.
Este pequeno texto usará como fonte primária dois jornais presbiterianos:
o Imprensa Evangélica, primeiro jornal evangélico do país, talvez de toda a
América Latina. Criado em 1864 por Simonton, foi um importante instrumento
para a propagação das ideias de liberdade religiosa e dos princípios liberais que
nutriam o protestantismo missionário. O jornal ainda durou mais de duas
décadas após a morte prematura de Simonton, deixando de ser impresso em
1892. O outro jornal é O Estandarte, criado em 1893 por Eduardo Carlos Pereira
para ser o sucessor do primeiro. O periódico circula ainda hoje como órgão de
imprensa oficial da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Para fins desta
pesquisa entraremos nos primeiros anos do século XX, quando os presbiterianos
chegarão aos impasses que provocariam a divisão do grupo, em 1903, e o jornal
963
acabaria por entrar drasticamente nas disputas, o que não interessa para este
artigo. Buscaremos nos jornais as menções aos livros, pois ambos divulgavam
a literatura do mundo protestante com o claro intuito de educar os fiéis, fazer
proselitismo e se inserir em algumas das discussões nacionais consideradas
fundamentais para os presbiterianos como a liberdade religiosa, liberdade de
consciência, educação e separação entre Igreja e Estado.
Protestantismo e leitura
A necessidade da leitura sempre esteve muito presente entre os
protestantes. O jornal Imprensa Evangélica, declarava no século XIX, a
importância da imprensa do seguinte modo: “desde que foi instalada a imprensa
os cristãos viram logo os prodigiosos resultados que por ela se podiam colher”
(1 de abril de 1868, p 85). Um dos prodigiosos resultados e desejo ardente dos
protestantes foi a divulgação da Bíblia. Lutero traduziu a Bíblia para o alemão.
Olivetahn, parente de Calvino, publicou tradução da Bíblia para o francês um ano
antes da famosa Institutas do reformador francês de Genebra. Os ingleses,
desde o final do século XIV se empenhavam em traduzir a Bíblia para o seu
vernáculo, fundamental para o andamento das reformas que ocorreriam lá. O
protestante espanhol Casiodoro de Reina, que passou algum tempo em
Genebra, publicou a Bíblia em sua língua, em 1569. Há diferença importante
entre a postura protestante e a postura católica acerca da leitura. Aparecida
Paiva comenta assim:
É sabido que inúmeros estudiosos afirmaram, ao longo da história que a
Igreja Católica sempre considerou a leitura uma prática perigosa, e que um
dos desdobramentos desse pressuposto foi sua constante advertência aos
católicos quanto às poucas chances de salvação de suas almas, caso não se
acautelassem diante das armadilhas do texto escrito. E, como guardiã do
dogma da fé, ela delegou aos seus representantes oficiais a tarefa de arbitrar
sobre as boas e más leituras.
Esse estrito controle do escrito não é apenas considerado como direito da
Igreja, mas também como seu dever (PAIVA, 1999, P. 415).
964
os livros eram escritos para serem lidos em voz alta para que outros ouvissem e
nem todos precisavam saber ler para conhecer o conteúdo de um livro. Mas esta
é também uma transformação que está em processo no período da Reforma
Protestante: a leitura se tornará cada vez mais individual, silenciosa e
internalizada.
Esse protestantismo reformado só chegaria ao Brasil no século XIX,
embora outras incursões tenham ocorrido anteriormente sem significado para
este estudo. Até encontrar o solo brasileiro houve transportes, mudanças e
adaptações, passando pelo puritanismo inglês, presbiterianismo escocês e o
efervescente mundo religioso da América inglesa. Essas influências e as
transformações que o mundo a leitura passou tem um momento importante
nesse século da entrada do protestantismo no país. Chartier aponta para o fato
que o século XIX é quando despontam novas categorias de leitores como as
mulheres, os trabalhadores e as crianças e que nos anos setenta e oitenta do
século XIX se atinge uma “diversidade extrema de práticas de leitura e de
comércios de impressos” (1999, p. 26). O único Império das Américas estava
plenamente inserido neste contexto de leitores e leituras, com mudanças no
contexto social, ampliação da população leitora e propaganda da leitura como
necessária para a transformação do país. A população alfabetizada era ainda
muito pequena, porém, os protestantes visaram transformar a elite primeiro para,
de cima, transformar a sociedade. O primeiro censo, em 1872, apontou para uma
população de analfabetos de quase 80 % e o declínio, de fato, foi muito lento até
o início do século seguinte, período pelo qual o texto transita.
Em um dos primeiros números do primeiro jornal, o Imprensa Evangélica,
um artigo ensinava “Sobre o dever de ler e meditar nas Sagradas Escrituras” (4
de março de 1865, p. 4 – 5) declarando os editores que “dirigimo-nos à razão e
à consciência de nossos leitores”. “Razão” e “consciência” demonstram bem a
preocupação do jornal em se apresentar para a população letrada e esclarecida
da nação. Na disputa pelo espaço religioso nem sempre a estratégia deve ser o
confronto aberto, por isso anunciou-se a venda da Bíblia Sagrada, “traduzida em
965
português segundo a vulgata latina”, em texto “aprovado pelo Arcebispo da
Bahia”, feita pela tradicional casa do “Sr. Garnier”, elogiando o fato que “os altos
poderes eclesiásticos do Império podem e estão dispostos a acomodar-se com
o espírito do século” (1 de abril de 1865, p 6). Os protestantes se mostram
liberais e cristãos prontos para colaborarem com as transformações e o
progresso do país, mesmo com os católicos, quando se mostram esclarecidos.
Essa colaboração não seria, no entanto, sem críticas aos erros do catolicismo.
Nesse mesmo número do jornal promove-se a Encíclica papal Quanta Cura, da
qual deve “todo homem sincero ter conhecimento dela” (1 de abril de 1865, p 6),
mesmo que seja para fazer oposição leal. Buscando espaço no campo religioso,
busca também, delimitar as esferas de atuação. Um editor sempre tem intenções
ao propor um tipo de literatura. Isto vale também para a literatura jornalística. Os
livros anunciados têm a intenção proselitista do missionário que acredita ter
vindo de uma cultura superior com o destino manifesto pela Providência de levar
a salvação ao mundo que desconhece essa dádiva. A literatura propagada
queria edificar, corrigir, apresentar testemunhos de fé, da perseguição sofrida
pelos verdadeiros cristãos, dos quais os protestantes seriam os legítimos
descendentes e herdeiros. O controle sobre o que seria publicado, divulgado e
vendido limita o direito e a liberdade de escolha dos leitores. Chartier (1999, p.
30) nos lembra que
as estratégias de publicação sempre moldaram as práticas de leitura [...] a
liberdade de escolha dos leitores só poderia ser exercida dentro de um
conjunto previamente constituído com base em interesses e preferências que
não era necessariamente seus.
Outra editora citada foi a dos “senhores Laemmert”, constituída por dois
irmãos, filhos de pastor, que vieram para o Brasil a fim de trabalhar no mercado
de livros, sendo uma das primeiras e das mais importantes editoras no Brasil
durante o século XIX. O jornal divulga desta editora o livro “Da liberdade religiosa
no Brasil - estudo de Direito” (1 de abril de 1865, p 6).
966
A literatura jornalística no protestantismo
967
p. 8) aduzem que “para cada uma das comunidades de interpretação assim
identificadas, a relação com o escrito efetua-se com técnicas, gestos e maneira
de ser”. Isto é, deve-se considerar a recepção como algo ativo no processo de
leitura, embora existam certas limitações e reduções como os próprios autores
anteriores lembram acerca do calvinismo e do puritanismo que promoveram
práticas de leituras muito diferentes de outras já que tinham “a leitura do texto
sagrado como modelo de todas as leituras possíveis” (CAVALLO; CHARTIER,
1998, p. 35). Isto nos interessa particularmente, pois é a origem calvinista e
puritana no Brasil do que estamos tratando. Certamente, isso valerá tanto para
a literatura jornalística como para os livros.
968
seriada, pelo jornal presbiteriano até o exemplar vinte e cinco. Vemos que há
uma característica em comum com outros jornais brasileiros que era a
publicação de romances nas edições dos jornais. Fato este que não se limitou
ao Brasil que, quando o fez, já imitava o que ocorria em algumas partes da
Europa. Como se sabe alguns dos grandes escritores brasileiros ganharam
leitores e leitoras publicando periodicamente partes de seus romances.
Lucila ou Lucia é uma mulher preocupada com sua vida pessoal e
espiritual. Então, escreve para um sacerdote buscando ajuda na solução de seus
problemas. A troca de cartas entre os dois é o conteúdo do livro. Não é sem um
objetivo claro que o livro foi escolhido. A mulher vive a angústia de ter nascido
em lar protestante e, órfã cedo, acabou se vendo obrigada por circunstâncias a
se casar com um católico. Nesse conflito busca conforto e solução. Em um país
católico urge apresentar os problemas do catolicismo e as soluções dos
protestantes, especialmente com relação à Bíblia, a qual ela, Lucila, deseja
ardentemente ler, mas a Igreja Católica não lhe dá essa oportunidade. Apesar
disso, sua leitura bíblica a leva a rever os conceitos e a buscar melhor
conhecimento do Evangelho e da vida cristã, o que, obviamente só poderia ser
fornecido pelo protestantismo. Mais do que isso, a mulher havia feito uma leitura
solitária da Escritura e esse era o anseio protestante, que cada crente lesse e
Bíblia por si só. O público alvo era especialmente aquele que desfrutava um
pensamento liberal, defensor das liberdades individuais, especialmente a
liberdade de pensamento e de religião. Contra tais coisas o Concílio Vaticano
iria se pronunciar ao final dessa década.
Boanerges Ribeiro (1991, p. 265 – 285) oferece uma lista bastante
significativa dos “livros que os fiéis liam”, explicando brevemente os que
considerou mais importantes. Os protestantes sabiam que eram minoria,
discriminados, e a literatura fornecida procurava justificar qualquer perseguição
como motivada pela fé verdadeira, doutrina e condutas corretas. “Seu grande
tema: este mundo é um Vale de Lágrimas, tem de ser sofrido e vencido a golpes
969
de textos bíblicos onde se pode encontrar analogia entre a atitude de Jesus
Cristo e a que seus seguidores devem cultivar” (RIBEIRO, 1991, p. 266).
Além do livro Lucila, outros são anunciados nas páginas dos jornais. O
primeiro deles é “Thirza ou a força atrativa da cruz” (Imprensa Evangélica, 15 de
abril de 1865), informando que é tradução do alemão. Este livro, curiosamente,
não aparece na lista de Ribeiro, mas é a história de uma jovem de família judia,
fortemente apegada à tradição e à religião, mas a jovem se decide pelo
cristianismo. O livro é um grande sermão, começando com a mulher entrando
quase que ás escondidas em um templo cristão onde ouve um sermão, que é
apresentado no livro. A seguir a esposa do pastor tem uma longa conversa com
a jovem lhe explicando o evangelho, com muitas citações bíblicas. O pai,
encolerizado, declara não ter mais filha. No desenrolar da história o pai, mais
sereno, ouve muitas explicações sempre firmadas em textos bíblicos, até que
também se converte. O livro termina com um apelo ao leitor para orar por Israel
a fim de compreenderem a verdade do Evangelho e para que o leitor também a
compreenda.
O livro Donzela valdense fala da perseguição que sofreram os seguidores
e sucessores de Pedro Valdo, excomungado por defender a leitura individual e
interpretação pessoal da Bíblia, entre os séculos XII e XIII. Em Glaucia conta-se
a história de sofrimento de jovens que, ao aceitarem o cristianismo, são
abandonados pela família.
Além das narrativas e romances acima há propaganda de livros de caráter
mais teórico e dogmático com estudos bíblicos, históricos e sistemáticos. Esses
livros são a grande maioria dos livros anunciados nos jornais. Os títulos
praticamente são suficientes para indicar a preocupação em demarcar a
diferença entre o protestantismo e o catolicismo. Entre esses livros, destaco
alguns como A mulher e o confessionário (3 de abril de 1893, p. 1), que, no
entanto, deve ser O Padre, a mulher e o confessionário, escrito por Charles
Chiniquy, canadense, ex-sacerdote católico romano convertido ao
presbiterianismo. No livro são narradas diversas histórias em que se demonstra
970
a inconveniência da confissão auricular tanto para o sacerdote como para
mulher, que é aviltada em sua condição feminina.
São anunciadas diversas obras de História como História da Inquisição
na Itália, Espanha, Portugal e outros países com “perto de 700 páginas
distribuídos em fascículos semanais” (31 de outubro de 1901, p. 4), História da
Reforma, História da Reforma na França. Não se indicam dados das
publicações. Interessante na disputa com o catolicismo é O Syllabus, o
Evangelho e o Estado, indicado como no prelo e “assunto de magna importância”
[...] tratando de pontos em que a Igreja de Roma se acha afastada do Evangelho”
(26 de dezembro de 1901, p. 4). Provavelmente é o livro escrito por Ernesto de
Oliveira, pastor presbiteriano que faz um estudo das relações entre a Igreja e o
Estado, demonstrando que o protestantismo tem uma posição mais adequada.
Em três de janeiro de 1901 o Breve, de Clemente XIV, é anunciado como uma
das obras disponíveis na Livraria Evangélica. Nesse documento se trata da
extinção da Companhia de Jesus, em 1773. Anos antes, um artigo tecia elogios
ao Marquês de Pombal por sua ilustração e preocupação com o obscurantismo
da Igreja Católica expulsando os jesuítas das terras portuguesas (8 de abril de
1893).
O livro Em seus passos o que faria Jesus? de Charles Monroe Sheldon,
pastor congregacional merece uma longa série de artigos, publicados em sete
edições do jornal, sendo que no primeiro artigo Eduardo Carlos Pereira defende
a importância do livro como “uma sacudida forte para acordar os que dormem”
(29 de agosto de 1901, p. 1). Em outro artigo da série defende a prática de boas
obras como fundamental para a vida cristã (26 de setembro de 1901, p. 1).
Ribeiro comenta que “o fundamento, digamos epistemológico, de Em seus
passos é o do pentecostismo que explodiu 5 anos depois” (RIBEIRO, 1991, p.
269). No entanto, não se pode deixar de perceber que o livro é mais do que isso,
pois seus conceitos são retirados também das ideias de Walter Rauschenbusch
e de seu Evangelho Social, basicamente que o cristão tem o dever de
971
transformar a sociedade e as vidas dos que estão ao redor, principalmente os
mais necessitados, teologia que seria bastante criticada posteriormente.
A viagem do cristão (8 de abril de 1893) é o mesmo livro puritano O
Peregrino. João Leonel (2010) já analisou a importância dessa obra na formação
do leitor protestante brasileiro, concluindo que “O Peregrino formou e formatou
os primeiros protestantes brasileiros dentro de um espectro religioso puritano”
(LEONEL, 2010, p 61). A vida cristã é cheia de desafios e uma viagem perigosa
em direção ao lar celeste, pensamento que permaneceu no imaginário
protestante.
Um livro curioso é A alegria da casa, publicado em 1866 por Sara Kalley,
esposa do missionário escocês Robert Kalley. O texto versa sobre os cuidados
com o lar, medidas sanitárias e alimentares e coisas desse tipo. Os missionários
que vieram pregar o Evangelho também se preocuparam com a vida material.
Vindos de uma cultura superior queriam dar provas de como a salvação serve
para mudar até mesmo a vida material dos conversos.
Considerações finais
A pergunta que se faz é se essa literatura surtiu o efeito esperado.
Certamente não atingiu um público tão expressivo que provocasse grande
número de conversões. Há aquele distanciamento entre o emissor e o receptor.
Os editores protestantes não poderiam controlar quem e, principalmente, o modo
como o texto era compreendido e apreendido pelos leitores. Mendonça, falando
das escolas protestantes, nos ajuda a entender também a leitura: “a ideologia
americana, em expansão, procurava atingir, de modo indireto o por saturação,
as classes dirigentes, intelectuais e políticas. Mais precisamente, contribuir para
a construção de uma civilização cristã-protestante, no modelo anglo-saxão”
(MENDONÇA, 1984, p. 112). Esse já era um fator limitador do alcance da
literatura protestante nas primeiras décadas de inserção. Ademais, o jansenismo
e a leitura de textos da devoção moderna já deixaram parte da população
brasileira disposta a compreender a literatura que os protestantes ofereciam
972
como boa literatura cristã, mas que não era tão diferente do que já se vivia.
Nesse caso, a literatura pode ter sido bem recebido por católicos sinceros que
confirmaram sua fé, mas não mudaram de denominação.
Referência Bibliográfica
ABREU, Márcia (Org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado
das Letras, 1999. p. 19-31.
BOURDIEU, Pierre. As economias das trocas simbólicas. 6 ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
BRAGA, Erasmo & GRUBB G. , Kenneth. The Republic of Brazil: a survey of the
religious situation. London: World Dominion Press, 1932.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da Leitura no mundo
Ocidental. São Paulo: Editora Ática, 1998. (Volume 1).
CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura no Ocidente. In: ABREU, Márcia
(Org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado das Letras,
1999. p. 19-31.
CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Editora
Ática, 1999. p. 47-77. (Volume 2).
COUTROT, Aline. Religião e Política. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história
política. Trad.: Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
FERREIRA, Júlio Andrade. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1992.
GILMONT, Jean-François. Reformas protestantes e leitura. In: CAVALLO,
Guglielmo; LEONEL, João. História da leitura e protestantismo brasileiro. São
Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie e Paulinas Editora, 2010.
NOGUEIRA André Carreiro. PAIVA, Aparecida. A Leitura censurada. In:
ABREU, Márcia (Org.). Leitura, História e História da leitura. Campinas: Mercado
das Letras, 1999. p. 4119 - 426.
973
RIBEIRO, Boanerges. Igreja Evangélica e República brasileira. São Paulo. Casa
Editora Presbiteriana, 1991.
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo e cultura brasileira. São Paulo. Casa
Editora Presbiteriana, 1981.
Thirza or the attractive power of the cross. From the german by Elizabeth Maria
Lloyd, London: B. WERTHEIM, ALDINE CHAMBERS, 1842 (M.DCCC.XLII).
974
LETRAS COMPARTILHADAS NO MODERNISMO: A POSSIBILIDADE DE
EDIÇÃO CRÍTICA DA CORRESPONDÊNCIA DE ESCRITORES EM
FORMATO DIGITAL
975
casualidade. Ao editar correspondência, parte-se, muitas vezes, do manuscrito,
com rasuras, rasgamentos, dobramentos, enfim, marcas inscritas ao longo de
sua história. Sendo assim, a recolha e a preservação desses conjuntos
documentais dependem de uma série de fatores de ordem externa ao assunto
em pauta ou ao momento de sua produção. Ainda vale dizer que um conjunto de
correspondência nunca pode ser considerado fechado, pois sempre uma nova
peça pode aparecer e desafiar o prévio estabelecimento de um continuum
marcado por uma paradoxal “estabilidade transitória”.
Desse modo, se a própria forma epistolar é híbrida e fluida – por exemplo,
além dos fatores antes abordados, dialoga com diversos gêneros textuais e é
performática na medida em que depende do aqui e agora do discurso, portanto
sua edição leva a uma comunicação mediada e sempre diferida –, pensar a carta
na época modernista lança outras questões que permitem divagar num terreno
disciplinar extremamente heterogêneo. Por outro lado, como veremos, talvez
hoje tenhamos, mais do que antes, possibilidades de realizar um trabalho
frutífero com textos multidimensionais como a carta, com suas interconexões
várias. Uma coletânea, frise-se, não possui um centro unificador – podem-se
estabelecer, outrossim, teias de sentidos renovados, principalmente se
lançarmos mão de hiperlinks e de recursos hipermídia no caso de edições
digitais. Fisicamente situada em um lugar específico – arquivos, bibliotecas –,
pode estar virtualmente presente em outros pontos da rede onde seja convocada
se cogitarmos modos de divulgação em rede. Logo, considerar a edição de carta
na era digital nos leva a distinguir uma série de características de seu discurso
que, em alguma medida, parece se coadunar com as especificidades
descontínuas e múltiplas do texto em rede. Nesse sentido, pode ser interessante
observar esses elementos desafiadores na leitura de um conjunto epistolar,
como a seguir propomos com as cartas enviadas por Otto Maria Carpeaux a
Gilberto Freyre, ambos intelectuais que desempenharam papéis fundamentais
na vida pública brasileira do século XX.
976
Nos labirintos da epistolografia: Otto Maria Carpeaux escreve a Gilberto
Freyre
O ensaísta Gilberto Freyre (1900-1987) foi o intelectual público brasileiro
de maior projeção internacional no século XX. Interessa-me, no atual estágio de
minha pesquisa pós-doutoral, destacar cartas, em sua maior parte inéditas,
enviadas por intelectuais a Freyre, estudioso da formação patriarcal do país (é
autor, por exemplo, da trilogia Casa-grande & senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal, de 1933, Sobrados e mucambos:
decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano, de 1936, e Ordem
e progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e
semipatriarcal no Brasil, de 1957). Como afirmam Maria Lúcia Pallares-Burke e
Peter Burke, o lugar de Freyre na história está seguro por sua inovadora e mais
famosa interpretação do Brasil – ao lado de clássicos como Caio Prado Jr. e
Sérgio Buarque de Holanda. Mas há outras razões para revisitar sua obra:
primeiro, “Freyre era um dos melhores escritores de prosa em português do
século XX”; segundo, “era um dos mais brilhantes e originais historiadores
socioculturais” do seu tempo; terceiro, “suas ideias centrais sobre hibridismo e
tropicalização deram uma contribuição diferenciada e ainda valiosa ao
pensamento social” (PALLARES-BURKE: 2009, 311-312).
Neste momento, nos limites desse texto, focaremos a correspondência
enviada a Freyre por Carpeaux, estudioso de origem austríaca naturalizado
brasileiro, considerado por muitos o maior crítico literário e historiador da
literatura atuante no Brasil do século XX. Carpeaux é autor da ampla obra de
interpretação literária História da Literatura Ocidental (8 volumes, 1959-1966).
Segundo o crítico literário Alfredo Bosi, revisitar a obra de Carpeaux pode ser
um caminho confiável a um estudante por vários motivos: “Erudição ampla e
segura, método histórico-estilístico dialetizado; e crítica social e política: eis o
que aprendi – e que o estudante de hoje aprenderia – na obra de Carpeaux”.310
310
Alfredo Bosi, em entrevista sobre Otto Maria Carpeaux, foi perguntado por que um estudante brasileiro
de então leria Carpeaux. A citação acima é antecedida pelas seguintes palavras de Bosi: “Em primeiro lugar,
a riqueza de informação idônea, pois a erudição de Carpeaux era lastreada por um domínio de várias línguas
977
Apesar de sua importância estar assegurada no campo da Historiografia e da
Crítica Literária no Brasil e da certeza de que suas análises ainda podem
reverberar produtivamente no presente, tanto em ensino quando em pesquisa,
poucos são os trabalhos acadêmicos dedicados à interpretação de sua obra. As
cartas de Carpeaux levantadas foram remetidas a Gilberto Freyre entre 3 de abril
de 1941 e 16 de dezembro de 1950. Para um intelectual exilado e recém-
chegado, em busca de integração (sai da Europa rumo ao Brasil em 1939), o
contato com Freyre seria frutífero para aproximar-se da intelligentsia brasileira e
de obras que já nasceram clássicas dentro daquele contexto, como Casa-grande
& senzala:
e literaturas [...]; Junto com a erudição, e mais importante do que a mera informação, Carpeaux praticou a
arte da interpretação. [...] O estudante de hoje, literalmente perdido entre teorias e programas dispersos,
mergulhado nos espetáculos alienantes da indústria cultural, iria receber de Carpeaux o sentido agudo da
crítica social, em uma perspectiva democrática e anticapitalista, cada vez mais anti-imperialista.” (BOSI:
2013, 406-7).
311
Carta de 3 de abril de 1941, de Otto Maria Karpfen [Otto Maria Carpeaux] a Gilberto Freyre. Inédita.
Fonte: FGF. Original em francês. Tradução nossa.
978
Figura 1. ............................................................ Reprodução fac-similar de “Carta 1”
Notas: Carta enviada por Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre, com datação “Rio de Janeiro,
le 3 avril 1941”.
312
Cf. teoria dos campos de Bourdieu: BOURDIEU: 2008.
979
Figura 2.Reprodução fac-similar da pg.1 de “Carta 10”
Notas: Carta enviada por Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre, com datação “Rio de Janeiro,
8 de agosto de 1947
Amigo Gilberto,
desculpa a amolação com mais uma carta, serão em compensação
poucas linhas. Soube hoje pelo nosso excelente amigo Edson Nery da
Fonseca313 das boas palavras que Você escreveu a ele sobre meu
caso que é doloroso; ele, que assiste pessoalmente a tudo isso,
313
Edson Nery da Fonseca (1921-2014), escritor, bibliotecário e professor universitário, é um grande nome
na área de biblioteconomia no Brasil e um dos fundadores da UnB, onde, em 1995, foi condecorado com o
título de professor emérito. Foi um dos grandes estudiosos da obra de Gilberto Freyre e cuidadoso editor
de vários volumes de sua produção esparsa.
980
ainda vai explicar a situação. Além de contratempos e aborrecimentos
de toda ordem estou ameaçado de ficar sem emprego algum antes
do fim deste ano, e sem recursos. Ora, o ministro está apoiando
minha causa, assim como os oficiais de gabinete. Mas os obstáculos
da burocracia parecem intransponíveis. [...] Nem o Zé Lins pode fazer
isso, sendo sua voz insubstituível.[...]314
314
Carta de 8 de agosto de 1947, de Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre. Inédita. Fonte: FGF.
315
O livro de Gilberto Freyre Perfil de Euclides e outros perfis contou, até hoje, com três edições: a primeira
edição pela José Olympio é de 1944; a segunda, pela Record, é de 1987; e a terceira, pela Global, é de 2011.
O livro é dedicado aos seguintes nomes “A / José Olympio Pereira Filho / Otto Maria Carpeaux / Clarence
H. Haring / Alexandre Alves de Sousa”. Por sua vez, Carpeaux nomeou ou homenageou claramente
Gilberto Freyre, por exemplo, nos seguintes artigos: CARPEAUX: 1999, v.1, 463-473 (Primeira edição:
em Origens e fins, Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, 1943); CARPEAUX: 2005, v.2, 143-147
(Primeira edição: O jornal, 26 jan. 1947); CARPEAUX: 2005, v.2, 535-539 (Primeira edição: O Estado de
S. Paulo, 06 ago. 1960); CARPEAUX, 1965, 78-79.
316
Porém, chamo a atenção para o fato de que, no início da década de 1960, se lê, na imprensa periódica,
uma bela homenagem de Carpeaux ao sociólogo com o texto “O estilo de Gilberto Freyre”. Referido ensaio
saiu originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 6 ago. 1960 (vide rodapé anterior). Versão ampliada
do texto foi publicada em obra coletiva sobre Freyre: CARPEAUX: 1962, 150-157.
981
para sustentar a “política colonial de Portugal na África”, um Carpeaux avesso
a acordos temerários, de fortes convicções políticas, finaliza de maneira
extremamente pessimista o artigo intitulado “Boxer, Recife, Pombal e Salazar”,
em que menciona, com a ironia que se tornaria característica dos seus escritos
dessa época, Freyre: “E desse modo nossa viagem para a glória do passado tem
como ponto final a miséria do presente” – texto sintomaticamente publicado em 1964,
no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. 317
Não seria esse, porém, o tom da última carta de Carpeaux guardada na FGF, datada
de “Rio, 16 de dezembro de 1950”. Nela, ao tecer comentário sobre o livro Quase
Política, reitera uma sólida admiração que, no entanto, parecia se esfumaçar nos anos
seguintes:
317
Esse distanciamento entre os intelectuais ocorre num momento em que o próprio Carpeaux afasta a
imagem de reacionário – acusado de receber favores do governo estadonovista e de ter tendências fascistas,
como diriam escritores modernistas dos anos 1940 ligados ao PCB, como Jorge Amado. Aliás, Carpeaux
recorreu diversas vezes a Gilberto Freyre, na década de 1940, para dirimir suspeições nesse sentido, como
demonstram as cartas. Anos depois, assumiu papel ativo de combate aos governos militares, que, de outro
modo, contava com a colaboração intelectual de Gilberto Freyre. Sobre as relações acadêmicas e editoriais,
muitas vezes contraditórias, estabelecidas com a memória e a obra de Otto Maria Karpfen/Carpeaux, cf.:
SILVA: 2011, v.1, 1-15; e SILVA; WIIK: 2014, 131-148. Sobre a relação de Freyre com governos
militares, cf., por exemplo: REZENDE, 2008.
318
Carta de 16 de dezembro de 1950, de Otto Maria Carpeaux a Gilberto Freyre. Inédita. Fonte: FGF.
982
pela prática editorial crítica consciente e bem fundamentada. Como leitor
empenhado do material que edita, faz um criterioso trabalho de transcrição e de
anotação filológica; mas pode também apontar para novas hipóteses de
exploração hermenêutica, por meio da anotação exegética e de um ensaio
interpretativo que pode acompanhar as cartas rigorosamente editadas. A
plasticidade de sua tarefa e a riqueza dos materiais que convoca faz dele um
leitor ativo e crítico, cuja empreitada pode ganhar muito se o desenvolvimento
das edições acontecer em ambientes colaborativos. A formação de equipes com
uma abordagem multidisciplinar, 319 reunidas com um objetivo claro, qual seja,
editar um determinado corpus de correspondência, pode ser um caminho
promissor para o desenvolvimento da área no Brasil. Nesse sentido, o interesse
pelo documento como fonte primária combina-se com o empenho em obter
versões não mistificadas ou deformadas do texto-base, objetivo para o qual as
novas tecnologias podem contribuir de modo inequívoco:
319
Emprego o termo “multidisciplinar” consciente dos sentidos que a palavra pode abarcar: “Na
multidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade), várias disciplinas analisam um dado objeto, sem que haja
ligação necessária entre essas abordagens disciplinares. O que se faz é pôr em paralelo diferentes maneiras
de enfocar um tema, que são coordenadas com vistas ao conhecimento global de uma determinada matéria.”
(FIORIN: jan.-jun. 2009, 37).
983
zona de indiferenciação entre Crítica Literária, História, Antropologia, Sociologia
e outras áreas das Humanidades.
Nesse contexto, seria oportuno e de extrema relevância encaminharem-
se, sobretudo em âmbitos acadêmicos de ensino e pesquisa abertos à
multidisciplinaridade, projetos de edições crítico-genéticas de correspondência
em formato digital, como modo de se potencializarem os sentidos diversos que
a carta dinamiza, com suas várias redes intra e intertextuais, suas conexões em
múltiplas direções, sua legibilidade e sua abertura. Como afirma as editoras de
correspondência Cécile Dauphin e Danièle Poublan (CRH-EHESS), a edição
eletrônica é um lugar de experimentação, um lugar “provisoriamente ideal”, para
salvaguardar um texto, deixá-lo falar, apreender o social como uma experiência
singular, mas inscrita numa experiência coletiva” (DAUPHIN; POUBLAN: 2007,
120). Grupos de alunos e de pesquisadores podem unir-se com um objetivo claro
– divulgar um material de arquivo que, de outro modo, poderia permanecer
incógnito pelo grande público – para “aprender a investigar, trabalhar em grupo,
dominar diferentes formas de acesso às informações mais relevantes. É uma
metodologia que permite a apropriação do conhecimento e seu manejo criativo
e crítico”, aproveitando as palavras da pesquisadora em educação Maria
Candida Moraes (MORAES: abr/jun. 1996, 68). Sobressai, de um trabalho como
esse, a valorização do processo, da pesquisa e da relação dialética entre os
vários sujeitos que contribuem para investir sentidos ao material que está sendo
editado (Cf. tb. MACHADO: 2000).
Trazer à tona textos silenciados pelo tempo, que desafiam as margens
disciplinares e repropõem problemas ao cânone das grandes obras literárias,
históricas e sociológicas, seria um modo ativo e empenhado de superar o
paradigma tradicional e instrucionista que parece ainda prevalecer em muitos
núcleos da formação universitária em Humanidades. Desse modo, as redes
tecidas a partir do interior das peças dos conjuntos de correspondência,
irradiando para outros objetos, muitos deles dispersos, tais como artigos de
jornal, ensaios, perfis biográficos, iconografia e mesmo realizações
984
cinematográficas de época – que melhor podem ser convocados e
correlacionados em arquivo hipermídia –, apontam para a proficuidade de se
explorarem as Novas Tecnologias na edição de materiais multidimensionais
como a correspondência de escritores. O preparo de edições interativas e
dinâmicas, organizadas a partir de diversas intersecções em rede, poderia “dar
a ver” a complexidade que o gênero epistolar implica desde suas origens,
potencializando a pluralidade e a multiplicidade, muitas vezes flagrantemente
paradoxal, de cruzamentos estéticos e epistemológicos, sobremodo presentes
na correspondência e na obra de Freyre e de seus interlocutores, bem como em
outros escritos fundamentais do Modernismo brasileiro. 320
Referências bibliográficas
BOSI, A. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013.
_____. O estilo de Gilberto Freyre. In: _____. Ensaios reunidos (1946-1971). Rio
de Janeiro: UniverCidade; Topbooks, 2005. v.2. p.535-539.
320
Para lidar com maior segurança com aspectos jurídicos de direitos autorais, atualmente consideramos
realizar um e-book interativo, com imagens de fac-símiles das cartas, a ser devidamente catalogado. Assim
sendo, a proposta precisa ser também encampada pelos detentores dos direitos autorais dos documentos
selecionados para que seja realizada. O formato que está no horizonte é o ePub (Eletronic Publication,
versão mais atual ePub3), que permite trabalhar com conceitos como plasticidade, organicidade,
modularidade, interatividade e ubiquidade. (Cf. FLATSCHART: 2014). O desenvolvimento do ePub é
baseado na linguagem XML, livre e aberta, e, nesse sentido, tem como objetivos a padronização e a
democratização de acesso aos e-books.
985
_____. Tradições americanas. In: _____. Ensaios reunidos (1942-1978). Rio de
Janeiro: UniverCidade; Topbooks, 1999. v.1, p.463-473.
_____. Uma página de Gilberto Freyre. In: GILBERTO Freyre: sua ciência, sua
filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. p.150-157.
986
REZENDE, M. J. de. Cultura, política e engenharia social: revelando algumas
proximidades de Gilberto Freyre com governos militares. Fenix – Revista de
História e Estudos Culturais, v.5, ano V, n.3, p.1-27, jul.-set. 2008.
987
A GRANDE MARCHA DE 17 DE JUNHO DE 2013 CONCEBIDA COMO
DISCURSO: A CONFIGURAÇÃO DO ENUNCIADOR E DO ENUNCIATÁRIO,
SEGUNDO AS INFORMAÇÕES DA MÍDIA
Suporte teórico
321
Doutoranda em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Letras pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Membro do Grupo de Pesquisa: O discurso Pedagógico de Paulo Freire: uma
leitura. Professora Coordenadora Pedagógica aposentada da Rede Pública de Ensino do Estado de São
Paulo. Professora universitária. E-mail: tanexpotref@gmail.com
322
Nesse sentido, entende-se o texto como um signo, conforme concepção de Ferdinand de Saussure, que
define signo como a unidade formada por um significante (expressão) e um significado (conteúdo).
988
percurso gerativo de sentido. Cada um desses níveis é estruturado por uma
semântica e por uma sintaxe.
É no nível discursivo ou das estruturas discursivas, que a narrativa é assumida
pelo sujeito da enunciação. Também é neste mesmo nível “que a enunciação
mais se revela, nas projeções da sintaxe do discurso, nos procedimentos de
argumentação e na escolha dos temas e figuras, sustentadas por formações
ideológicas” (BARROS, 2011, p.82).
Segundo Fiorin (2012, p. 158) a enunciação é a instância linguística logicamente
pressuposta pela existência do enunciado. É no enunciado que se encontram as
marcas da enunciação em que se projetam do discurso os participantes da ação
enunciativa. Assim é que se constroem o éthos do enunciador e o páthos do
enunciatário.
Um sujeito produz seu discurso para um outro, tendo em vista a imagem que ele
tem desse outro. Essa imagem se constitui por qualquer elemento composicional
do discurso ou do texto, que consiste na modalização, na seleção de temas, na
escolha da norma linguística, na reiteração de traços semânticos, nas projeções
da enunciação no enunciado etc. No entanto, deve-se considerar que o
enunciatário não é um ser passivo, que apenas recebe as informações do
enunciador, ele também é um produtor do discurso. Na medida em que ele, o
enunciatário, “constrói, interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações” é
também um sujeito da enunciação (FIORIN, 2012, p.150).
Como base teórica para este artigo, serão utilizadas considerações da Semiótica
Discursiva, apontadas por Barros (2011) e Fiorin (2010, 2012). A principal
intenção deste trabalho é analisar como se configuram o éthos do enunciador e
o páthos do enunciatário da grande marcha de 17/06/2013, nos discursos dos
Jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
989
Contexto global das manifestações de junho de 2013
É assim que muitos brasileiros se viam até junho de 2013, como “José”,
personagem do Poema de Carlos Drummond de Andrade, sem esperança, com
um nó na garganta que já não podiam sufocar. Eram milhares de “Josés”, que
andavam pelas grandes capitais sem serem notados, ignorados nas suas
necessidades mais básicas: moradia, alimentação, saúde, transporte, segurança
e, principalmente, educação.
Diante deste cenário, é que se viu surgirem pequenas manifestações no estado
de São Paulo, a princípio, em torno de uma única reivindicação: a revogação de
R$ 0,20 das passagens de trem, metrô e ônibus que custavam R$ 3,00. No
entanto, essas manifestações, iniciadas por jovens que enfrentaram a Polícia
Militar e foram julgados como “vândalos” pelas autoridades e mídia, foram
tomando forma, mais e mais pessoas foram aderindo ao movimento, e o motivo
‘revogação do aumento da passagem’ foi trazendo na memória das pessoas
reflexão acerca de outros problemas enfrentados.
Assim, chegou-se ao dia 17 de junho de 2013, dia em que não só o estado de
São Paulo, mas o Brasil parou, e parou não mais para reivindicar a questão do
transporte público, mas para mostrar sua indignação à atuação de políticos e à
situação em que se encontra o país. Surgiu, então, o grande tema de nosso
estudo: as manifestações de junho de 2013. Especificamente à grande
manifestação popular realizada na cidade de São Paulo no dia 17 de junho de
2013. Procuramos em nossos estudos entender como a mídia impressa
configurou os pressupostos enunciador e enunciatário da grande manifestação
de junho de 2013.
990
O ethe dos jornais Folha de S. Paulo e o Estado de São Paulo
991
leitura. É pluralista.” [...] “é levemente blasé 323, tingido por uma certa ironia”
(FIORIN, 2004, p.26).
Maingueneau (2008) diz que “As “idéias” suscitam a adesão por meio de uma
maneira de dizer que é também uma maneira de ser.” Assim, ao escolher uma
maneira de dizer para enunciar as notícias, o jornal também apresenta sua
maneira de ser, que segundo o autor:
323
Blasé (fem.: blasée; pl.: blasés/blasées (fr.): adjetivo: que exprime completa indiferença pela novidade,
pelo que deve comover, chocar e etc. Exs.: ar b. atitude b. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
992
Apanhado num ethos envolvente e invisível, o co-enunciador faz mais
que decifrar conteúdos: ele participa do mundo configurado pela
enunciação, ele acede a uma identidade de algum modo encarnada,
permitindo ele próprio que um fiador encarne. O poder de persuasão
de um discurso deve-se, em parte, ao fato de ele constranger o
destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja ele
esquemático ou investido de valores historicamente especificados
(MAINGUENEAU, 2008, p. 29).
993
Assim, esses jovens assumem o papel de actantes da narrativa, que estão em
disjunção com um objeto-valor e buscam consegui-lo. Portanto, estão num
estado de disforia em relação ao que buscam. Para conseguir o objeto-valor
almejado, esses actantes precisam saber como fazer. Entra, então, na
construção da narrativa um coparticipante, na figura do MPL – Movimento Passe
Livre, um sujeito que têm conhecimento e vai capacitar os actantes/destinador a
‘querer’ e ‘poder-fazer’.
Ao estabelecer uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito
e um objeto em um enunciado, temos um enunciado de estado. Exatamente
como ocorre no texto analisado. O sujeito (manifestantes) está em disjunção com
o objeto-valor (o valor dos transportes sem o aumento (R$ 3,00) e quer entrar
em conjunção com ele, para sair do estado de disforia e entrar em um estado de
euforia.
Construída a narrativa como ‘espetáculo’, podemos também ver como o texto se
constrói no nível fundamental do plano de conteúdo. O nível fundamental é o que
abriga as categorias semânticas que estão na base da construção de um texto.
Assim, teríamos um sujeito que busca entrar em conjunção com um objeto-valor,
o que lhe permitirá usufruir do direito ir e vir, que poderia ser caraterizado por
uma oposição semântica, como: sujeição versus liberdade.
O sujeito em sujeição com o objeto-valor que busca, isto é, vendo o seu direito
de ir e vir tolhido, buscará conquistar esse objeto e assim, o tendo conquistado
continuará usufruindo de seu direito de liberdade.
Nesta primeira análise da construção dos níveis narrativo e fundamental, o
sujeito ficará ainda privado de conquistar o objeto-valor e permanecerá num
estado disfórico. Mas ele não desistirá da busca, ao contrário, buscará alcançar
competência para atingir seu objetivo. E quem dotará o actante/destinador
(manifestantes) com a competência necessária para o ‘poder-fazer’ será um
coparticipante da narrativa, representado pelo MPL – Movimento Passe Livre,
como se pôde confirmar neste enunciado “Manifestantes fazem ‘intercâmbio
994
para trocar experiências” (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano C5 de
16/06/13).
No entanto, o sujeito da narrativa precisa de um estímulo, de uma motivação
para poder agir, o que na semiótica se institui como classes de manipulação.
Essa manipulação pode se dar por: provocação, sedução, intimidação ou por
tentação. O actante da narrativa em questão, portanto, saiu às ruas porque foi
estimulado por uma das classes de manipulação: o da provocação, marcada por
sua imagem negativa frente a população. Afinal, este manifestante foi tratado
como ‘vândalo’ e ‘baderneiro’, que saiu às ruas para destruir o patrimônio público
e causar violência, segundo depoimento dado pelo coronel à Folha: “Essas
pessoas não estão a fim de se manifestar, mas sim de fazer baderna”, afirmou o
coronel Reynaldo Simões, Comandante da operação da Polícia Militar. (Giba
Bergamim Jr. E Eduardo Geraque) (Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano
C4 de 07/06/13).
Pela análise interpretativa realizada dos noticiários do jornal, o
actante/destinador melhorou sua performance na narrativa, provocado pela
violência policial, que o fez querer e adquirir novas habilidades para conquistar
o objeto-valor. Desta forma, a narrativa foi marcada por uma mudança de estado
com o protesto do dia 17 de junho de 2013.
Segundo Fiorin (2013, p.41), se no nível narrativo, analisamos o texto sob formas
abstratas, no nível discursivo, as formas abstratas serão revestidas de termos
que lhes darão concretude. O objeto-valor, representado pelo não aumento de
R$ 0,20 nos transportes públicos, com o qual o sujeito da narrativa quer entrar
em conjunção, no nível discursivo se concretiza com o direito de ir e vir. Isto é,
se os transportes sofrerem o aumento, as pessoas podem perder a liberdade de
andar pela cidade em busca de outros objetos-valor como cultura e lazer, pois
teriam que gastar mais com os transportes para o essencial de suas vidas: o
trabalho e o estudo.
Em face deste problema, quando este sujeito resolve sair às ruas para protestar,
ele constrói um enunciado e o dirige a alguém. Esse sujeito que enuncia não é
995
uma pessoa em carne e osso, mas sim trata-se de um ‘eu’ pressuposto
depreendido do enunciado: o enunciador. Da mesma forma, o ‘tu’ a quem o ‘eu’
se dirige no discurso, é um ‘tu’ pressuposto, também depreendido do enunciado:
o enunciatário. Esses sujeitos de comunicam ocupando um espaço e num
determinado tempo.
Ao construir um enunciado, o sujeito se vale de instâncias enunciativas e estas
são definidas por um ‘eu-aqui-agora’, isto é, todo o discurso se forma porque há
um ‘eu’ que se dirige a um ‘tu’, num determinado lugar ‘aqui’ e num determinado
tempo ‘agora’:
O “eu” realiza o ato de dizer num determinado tempo e num dado
espaço. “Aqui” é o espaço do “eu”, a partir do qual todos os espaços
são ordenados “aí”, “lá” etc.; “agora” é o momento em que o “eu” toma
a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade linguística é organizada.
A enunciação é a instância que povoa o enunciado de pessoas, de
tempos e de espaços. (FIORIN, 2004, p. 16).
Desta forma, nos enunciados das notícias das quatro primeiras manifestações
do mês de junho de 2013, que antecederam a grande passeata do dia 17 de
junho, o pressuposto enunciador é caracterizado por jovens, tratados como
‘vândalos’, que saíram às ruas da cidade São Paulo, para causar ‘atos de
vandalismo’, depredando patrimônio público e causando cenas de violência, ao
serem coibidos por Policiais Militares. E o pressuposto enunciatário é
representado pelos que governam a cidade. No caso do enunciatário,
996
representado pela figura do prefeito, temos um sujeito que parece não ter voz
ativa no discurso, pois se omite de dar opiniões ou as dá por outra pessoa
participante da narrativa. Já o ator, na figura do governador, opina e assume sua
posição no discurso. Assim, o pressuposto enunciatário do discurso é alguém
que oscila nas atitudes, que o leva a ‘entender e lamentar’ as cenas de violência;
e a obrigação de agir com firmeza e truculência, ao que acredita ser ‘atos de
vandalismo’; para manter a ordem e o direito das pessoas de irem e virem.
A narratividade é responsável pela estrutura de um enunciado que apresenta
uma situação inicial, a qual sofre transformações até chegar ao final, pertencente
à teoria do discurso. Na frase “As manifestações de 17 de junho no estado de
São Paulo foram pacíficas.” a narratividade deste enunciado pressupõe uma
situação inicial, que houve manifestações antes de 17 de junho e estas não
foram pacíficas e ainda que algo aconteceu para gerar a pacificidade desta
última.
Foi exatamente isso que aconteceu, houve um percurso narrativo em que o
actante da narrativa das primeiras manifestações sofreu uma transformação,
operada pelo sujeito destinador-manipulador, na figura do MPL que o fez adquirir
competência para executar uma dada ação, no caso o poder se manifestar.
Houve uma modalização deste sujeito manifestante da grande marcha em
relação ao ‘querer-fazer e ao poder-fazer. No início este sujeito buscava somente
pela revogação do aumento dos transportes públicos, mas depois de sofrer as
coerções que intentavam impedir o seu direito de manifestar, passou a buscar
por este último valor.
Desta forma, o éthos do enunciador deste grande discurso do 5º maior protesto
de 17 de junho de 2013, foi identificado por pressuposição, como sendo de um
‘herói’, que conseguiu levar às ruas da cidade de São Paulo 65 mil pessoas.
Pessoas essas, de todas as idades, de diversas classes sociais, seguidoras de
diversas ideologias, que resolveram reivindicar, não mais só pela revogação do
aumento dos transportes públicos, mas sim por uma condição digna de vida, que
só será possível com educação de qualidade, com um atendimento de saúde
997
digno a todos os cidadãos brasileiros, por direito e acesso à cultura e lazer.
Mostraram também que não aguentam mais a corrupção e má administração do
país que lhes tirou todos esses direitos.
Sendo assim, o pressuposto enunciatário a quem este enunciador se dirige não
se trata mais só do prefeito e do governador do Estado de São Paulo, a eles
também, mas juntam-se a eles, políticos de todas as esferas, municipais,
estaduais e federais, e principalmente, a presidente da República do Brasil,
como podemos no título do caderno Metrópole A11: “Protestos se espalham
pelas ruas do Brasil e põem governantes em alerta.”
O páthos deste enunciatário é de alguém negligente, que se
mostrou incompetente para executar o que lhe foi destinado, administrar o país.
Desta forma, perdeu a credibilidade do enunciador, e ainda o subestimou. O
contrato de veridicção firmado entre esse enunciador e esse enunciatário, por
ocasião da eleição, foi quebrado, porque o enunciatário mudou o dizer do
discurso, por ocasião da propaganda eleitoral.
Considerações finais
Não fossem as redes sociais que permitiram veicular, em tempo real, notícias,
imagens e vídeos sobre os protestos, talvez os leitores dos referidos jornais e a
população não tivessem mudado a opinião, a ponto de tomarem partido em favor
dos jovens manifestantes, saindo também às ruas no dia 17/06/2013. E para
reivindicarem não só a revogação do aumento de R$ 0,20 nos transportes
998
públicos, mas principalmente pelo direito de ‘protestar’. Isso também justificou a
mudança de enfoque dada pelos jornais às notícias veiculadas sobre as
manifestações.
Referências bibliográficas
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do texto. 5. ed. – São Paulo:
Ática, 2011.DISCINI, Norma. A imagem do enunciador na mídia. Língua
Portuguesa em calidoscópio / org. Neusa Barbosa Bastos. – São Paulo: EDUC,
2004. (Série Eventos).
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/galaxia/article/viewArticle/1410>
. Acesso em: 13/01/2015.
999
O CORPO FEMININO EM “A PROCURA DE UMA DIGNIDADE”, DE
CLARICE LISPECTOR: ENVELHECIMENTO, SEXUALIDADE E RELAÇÕES
COM OS SENTIDOS
Introdução
1000
Laços de Família (1960), mas que, principalmente, apresentam o conflito da
mulher idosa diante de sensações que se manifestam no corpo que se deteriora;
experiências significativas que desvelam, ou escondem, elementos que se
articulam e encerram conflitos de ordem existencial, mas que são reprimidas
pelas personagens que frequentemente retomam suas vidas rotineiras.
Destacamos o conto “A procura de uma dignidade” que abre a coletânea
de dezessete textos. Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa, cujo
narrador colado à personagem chega a identificar-se com ela. A protagonista
propositadamente não tem nome próprio, é identificada pelo nome do marido:
Sra. Jorge B. Xavier. A narrativa gira em torno de sua aventura ao procurar por
um local dos muitos eventos sociais que costumava frequentar, por engano,
perde-se dentro do Estádio do Maracanã. Caminha até a exaustão em busca da
porta de saída, enquanto, intimamente, reflete acerca da própria condição.
1001
Alguns estudiosos, ao analisarem o fenômeno da corporeidade,
consideram que o homem do século XX vive uma crise do corpo. Esta crise seria
reflexo de uma corporeidade perdida, pois na construção da história ocidental,
houve opção pelo discurso, isto é, ao invés de conceber-se o homem concreto
como corpo do ser-no-mundo, que se relaciona consigo mesmo, com os outros
e com as coisas, preferiu-se descrever e vivenciar a ideia de corpo. O homem
concreto foi suplantado pela evolução do cérebro e da mente.
No processo de constituição, invenção, rupturas e metamorfoses do
mundo, desde as narrativas míticas, o corpo funda uma forma de comunicação,
respondendo aos processos sociais. Não seria inadequado, portanto, afirmar
que em algumas sociedades produziu-se uma cultura para o corpo, mediador de
diversos sinais e valores culturais.
Considerar a história do corpo implica, portanto, tratar assuntos tanto
de comportamentos impostos pelos grupos sociais quanto de instintos, ou seja,
é impossível tratar do corpo sem tocar nas necessidades biológicas para
perpetuação da espécie e em regras inventadas pela cultura e civilização para
controlá-las.
Um recorte histórico permite que pensemos nas transformações
ocorridas, por exemplo, a partir do século XVII, quando o advento do capitalismo
e a definição da classe burguesa promovem uma nova imagem de compreensão
do corpo. O indivíduo, para se integrar à nova economia, precisou desenvolver
tarefas individualizadas e assim tolher a sensibilidade despertada nas relações
com pessoas e lugares. Isto é, a relação entre o corpo e o ambiente não foi mais
pensada como o corpo cristão, que procurava abandonar o lugar onde vivia, para
buscar o paraíso. Cada vez menos religiosa a sociedade construiu uma imagem
de corpo calcada na individualidade e na saúde. Esta, responsável por inúmeras
modificações nas cidades, como, por exemplo, o uso de vestimentas mais leves
por causa do calor e a construção de bueiros subterrâneos em substituição aos
existentes em céu aberto. O corpo limpo e saudável teria mais condições de
atuar nas relações sociais.
1002
Com a Revolução Industrial, a classe trabalhadora, formada de
homens e mulheres desconhecidos, que se encontravam e conviviam longe do
ambiente familiar e das vistas de parentes que os vigiavam, adotou novos
hábitos comportamentais, como se reunir em lugares para entretenimento; por
exemplo, parques de diversões.
As normas sociais passaram a ditar comportamentos relativos às
necessidades naturais do corpo, considerado, ainda, publicamente impróprio e,
por isso passível de permanecer secreto. O corpo, como as partes que o
compõem e o discurso para nomeá-las, sofrem, por conta disso, rígidas
restrições que se instalam no íntimo de cada um. Este corpo atuante na multidão,
em movimento nas cidades, contrastava com a apatia individual: o corpo passou
a ser posto à prova em meio à multidão, originando uma nova noção de solidão
e isolamento; permaneceu pensado apenas como imagem e, enquanto carne,
só percebido a partir da ruptura com o sujeito, que se dá, por exemplo, por meio
do sofrimento, da dor, da doença, ou de comportamentos que venham a agredir
a disciplina social, isto é, a partir do momento em que o corpo deixa de ser
perfeito aos olhos da sociedade.
A análise da constituição do sujeito moderno e as implicações com o
corpo fazem parte das reflexões de Maurice Merleau-Ponty. Em Fenomenologia
da Percepção (1945), ele afirma que “o corpo é o veículo do ser no mundo (...)
tenho consciência de meu corpo através do mundo (...) tenho consciência do
mundo por meio de meu corpo” (Merleau-Ponty: 1994, 122). Segundo ele, o
corpo é um meio para se ter o mundo: “é por meu corpo que compreendo o outro,
assim como é por meu corpo que percebo ‘coisas’,” (Merleau-Ponty: 1994, 253).
O filósofo faz longas reflexões a respeito do corpo: da psicologia
clássica às experiências com espacialidade, motricidade e sexualidade. Para ele
o corpo tem a função de atualizar a existência: “o corpo exprime existência total,
não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque a existência se
realiza nele.” (Merleau-Ponty, 1994: 229). Para ele, o corpo, devido sua natureza
1003
enigmática, tanto pode se abrir quanto se fechar para o mundo, isto é, tornar-se
um esconderijo da própria existência.
A esse corpo que se move e atua na realização de desejos, projetos e intenções, Merleau-Ponty
denominou corpo fenomenal, que difere do corpo objetivo, entendido por ele como organismo fisiológico, ou seja, o
corpo enquanto conjunto de órgãos que obedecem a leis físicas e fisiológicas.
Esse corpo fenomênico, também chamado de corpo-próprio, é um corpo sujeito de seus atos e que se
encontra aberto ou, às vezes fechado, para o mundo.
1004
traços culturais, ou seja, é definida pelo grupo social enquanto que a sexualidade
se liga ao mundo instintivo.
Essa característica especial e própria do ser humano faz com que
Bataille considere o erotismo não sob a ótica da genética, mas da religiosidade,
pois a semelhança tanto da experiência erótica quanto da religiosa está no fato
de que são de ordem pessoal e interior e responsável pelo desequilíbrio do ser.
O corpo e suas manifestações são questões recorrentes nos textos
de Clarice Lispector. Segundo ela, é nele que a percepção do mundo se
manifesta; por meio dele pode se expressar, tocar e sentir, isto é, perceber e ser
percebido. Para que as evidências se tornem reais e verdadeiras, devem ser
filtradas pelo corpo, que inscreve e assinala nossa humanidade; é um fragmento
da situação de ser do homem. É parte fundamental de um todo. Por isso, na
produção literária de Clarice Lispector, ele é destaque tanto nos romances
quanto em crônicas e contos.
1005
para sua condição de mulher de setenta anos que nunca tivera vontade própria
e sempre fora conduzida em todas as situações da vida.
O início do conto exibe uma idosa que, aparentemente mantem-se jovem
por meio de atividades culturais; ela desconhece o próprio corpo da mulher de
70 anos. Nessa fase da narrativa, o corpo se instaura como o elemento que dará
à personagem a revelação do próprio envelhecimento. O texto apresenta
alusões à questão em frases soltas desde o início da narrativa, como, por
exemplo: “tinha quase 70 anos, todos lhe davam 57”; “Mas agora, perdida nos
meandros internos e escuros do Maracanã, a senhora já arrastava pés pesados
de velha”; “Saúde física já agora arrebentada pois já rastejava os pés de muitos
anos.”; “As pernas lhe doíam, doíam ao peso da velha cruz.”(Lispector: 1994, 8
e 11). A Sra. B. Xavier tem uma perspectiva do que seria envelhecimento,
evidentemente a partir de seu disciplinamento, ou seja, o que as instituições
sociais determinam. Como mulher “disciplinada” pelo casamento, ocupa seu
tempo com atividades sociais, enquanto envelhece. O diferencial está no fato de
que ela usa essas atividades para “manter-se jovem por dentro”, isto é, não se
sente como deveria: uma mulher velha. O próprio corpo denuncia a aversão, pois
não aparenta 70, mas uns 57 anos.
A passagem dos anos que viveu, de modo completamente inconsciente,
é assinalada pela imagem do labirinto, cujos corredores “internos e escuros”
representam o desconhecimento da protagonista com a própria existência. Os
diversos corredores que percorre e a várias portas por onde passa não permitem
que ela encontre o que procura: a necessária porta de saída do local. O texto é
rico em imagens simbólicas, como as do labirinto. Também retoma outro
elemento marcante nos textos clariceanos: a água. Em publicações anteriores,
a água se faz presente como um elemento de renovação, isto é, promove a
dialética do fim e recomeço, ou seja, da vida e da morte. Nos textos de Clarice
Lispector, a morte às vezes se apresenta de modo real, às vezes por
simbologias, mas, frequentemente, é o verdadeiro problema com o qual as
personagens se deparam.
1006
A Sra. Xavier reflete acerca de sua condição a partir do elemento água.
Ao chegar à casa, adormeceu. “Quando acordou horas depois então viu que
chovia uma chuva fina e gelada, fazia um frio de lâmina de faca. Nua na cama
ela enregelava. Então achou muito curioso uma velha nua. (Lispector: 1994, 14).
Com a chuva dá-se a ruptura das relações da protagonista com o espaço – os
labirintos do Maracanã – e inicia-se a relação com as sensações do corpo.
Então percebeu que estava de quatro. Assim ficou um tempo, talvez
meditativa, talvez não. Quem sabe, a Sra. Xavier estivesse cansada de ser um
ente humano. Estava sendo uma cadela de quatro. Sem nobreza nenhuma.
Perdida a altivez última. De quatro, um pouco pensativa talvez. (LISPECTOR:
1994, 15)
Toda a ideia que tinha a respeito do envelhecimento desfaz-se. Há, a
partir daí, referências à sexualidade, que foram indiciadas ao longo da narrativa
pela palavra “aquilo”: “Sabia que o homem [o taxista] a julgava louca – e quem
dissera que não? pois não sentia aquela coisa que ela chamava de 'aquilo' por
vergonha?” (LISPECTOR: 1994, 10). Afinal, o “aquilo” desvela-se para o leitor:
“e aquilo veio com seus longos corredores sem saída. ’Aquilo’, agora sem
nenhum pudor, era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída
pelo inalcançável ídolo de televisão. (LISPECTOR: 1994,16)
No texto, a protagonista tenta ignorar o que denomina “aquilo”: desejos
sexuais considerados por ela mesma como impróprios: “desejo fora de estação”,
no seu entender, incomuns, pois “tinha quase setenta anos”; ela encontra-se
vinculada à ideia de que o sexo não faz parte da vida da mulher idosa. Por isso,
tenta, em vão, ignorar as sensações que se manifestam em seu corpo:
1007
escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e ratos”
(LISPECTOR: 1994, 18).
O interessante é que não há tomada de consciência do desejo sentido a
partir daquele momento, mas o terror de que ele sempre estivera escondido, sob
a “máscara” da mulher de setenta anos e que sempre existiria: “Por que as outras
velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer? Nos
homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não” (LISPECTOR:
1994, 18).
O conflito da personagem está na tomada de consciência de que ; “Por
fora - viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por
dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva
úmida, mole assim como gengiva desdentada” (LISPECTOR: 1994, 17).
O corpo objetivo da Sra. B. Xavier não condiz com o pensamento
tradicional: o corpo do idoso deveria, segundo sua própria concepção, ser isento
de sexualidade, ou seja, velhice e sexualidade seriam indissociáveis. Por isso o
conflito, ao deparar-se com manifestações de erotismo de seu corpo idoso,
ilustrado pela imagem da gengiva desdentada. Várias culturas têm narrativas
ilustradas por uma vagina com dentes, para alertar sobre o perigo das relações
sexuais. O texto apresenta-nos uma gengiva desdentada, clara alusão à perda
dos dentes, comum na velhice; as sensações experimentadas pela personagem
são experimentadas tardiamente. Até então, ela apenas ocupou seu papel de
esposa de Jorge B. Xavier. Sentir-se úmida e mole por dentro assinala a
consciência seu “destino” de mulher e, com ele, a condição feminina que é
manifestar o erotismo até a morte, isto é, embora os rígidos padrões morais da
sociedade tenham, ao longo dos tempos, atribuído à mulher idosa, proibição nas
manifestações e práticas eróticas, estas não terminam. O corpo feminino, seja
na juventude ou na velhice, é capaz de manifestar-se eroticamente.
Ao tomar contato com o “fundo do corpo”, A Sra. Xavier busca
“sentimentos bonitos e românticos”, encarnados na imagem do ídolo Roberto
Carlos. Mas, “a delicadeza dele apenas a levava para um corredor escuro de
1008
sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a
boca de Roberto Carlos. (LISPECTOR: 1994, 18).
Segundo George Bataille, o desejo erótico não está apenas nos
corpos, mas também envolve todo jogo de sedução, o que ocorre com a Sra.
Jorge B. Xavier que se sente erotizada: “Seus lábios levemente pintados ainda
seriam beijáveis? Ou por acaso era nojento beijar boca de velha?” (LISPECTOR:
1994, 19). O corpo feminino, embora idoso, mostra-se sexual e erotizado.
Na conclusão da narrativa, a personagem conscientiza-se, diante do
espelho, de que é refém dessa condição: “Foi então que a Sra. Jorge B. Xavier
bruscamente dobrou-se sobre a pia como se fosse vomitar as vísceras e
interrompeu sua vida com uma mudez estraçalhante: tem! Que! Haver! Uma!
Porta! De saííííííída!” (LISPECTOR: 1994, 20).
A imagem refletida no espelho possibilita que a personagem
contemple o que há de mais profundo em se âmago: o desejo – “gengiva mole”
– preso ao corpo – “figo seco” – que envelhece. Para ela, aquele desejo bestial
não deveria estar alí porque ela considerava inadequado que uma mulher idosa
o sentisse. Por isso a “porta de saída” é indiciada pela morte - talvez o suicídio
- que, como afirma Georges Bataille (1988), pode ser, como o ato sexual:
passagem que permite a suspensão dos limites.
A suspensão dos limites, dada pela perda no Estádio e,
posteriormente, pelas sensações de desejo por Roberto Carlos, revela à
personagem que sua condição de mulher e idosa não a exime da fatalidade de
toda condição humana: estar presa ao corpo físico e suas necessidades, como
o sexo.
Conclusão
O texto apresenta uma personagem diante da ruptura do seu sistema de
vida, cuja ordem previamente estabelecida a mantém em estado de suspensão,
ou seja, a vida que leva é a vida para outro, no caso, o marido; sua existência é
totalmente esvaziada de identidade própria, por isso o nome que usa é
1009
emprestado do cônjuge. Ao perder-se no labirinto do estádio, encontra-se
desiquilibrada diante de seu anonimato e sua condição feminina. O
estranhamento causado pela experiência do perder-se nos diversos caminhos
do Maracanã manifesta-se nas sensações de limitação, desejo e prazer, ou seja,
na “revolução do corpo”.
Podemos afirmar que A Sra. B. Xavier experimenta o que Bataille
considera “a aprovação da vida até na morte”, isto é, “a porta de saída” não
existe. Sua angústia vem do que não conseguirá livrar-se, pois o corpo nos faz
presentes no mundo e aos outros, ou seja, estar-no-mundo é estar-no-corpo e
fora dele não há libertação possível; a condição humana tem sua essencial
dimensão corpórea.
A dignidade buscada pela personagem dá-se porque ela esperava
um envelhecimento de acordo com os ditames da sociedade, isto é, construiu
uma ideia do envelhecer que não corresponde às manifestações do seu corpo.
Contudo, não é o que ocorre, pois os labirintos do Estádio do Maracanã
metaforizam com seus diversos “corredores escuros” as possíveis experiências
desconhecidas do seu corpo.
Clarice Lispector desconstrói no texto “Em busca de uma dignidade” o
ideário de velhice, estabelecidodo pela sociedade a partir das limitações
atribuídas ao corpo objetivo, que definem as possibilidades de experiência do
corpo fenomenal.
A experiência de desequilíbrio que vivenciou nos corredores do estádio
possibilitou que sensações antes desconhecidas, como o erotismo, se
manifestassem. Com elas, o desespero de perceber que, apesar de seu corpo
estar se deteriorando, tais sensações durariam para sempre, pois a única porta
de saída seria a morte, metaforizada no grito que encerra a narrativa.
Para Clarice Lispector, a morte é fatalidade da condição humana, por
isso não pode ser desconsiderada em suas reflexões; é considerada no texto de
duas maneiras: a morte do “eu”, que se dá em vida, por meio da solidão e
anulação pelo casamento, e a morte física, decorrência do desgaste do corpo
1010
que envelhece. Ambos os tipos de “morte” são vivenciadas pela personagem,
pois estão intimamente ligadas ao corpo, isto é, são acessíveis mediante as
experiências da vida terrestre. Por isso a autora frequentemente exibe em seus
escritos personagens cujos aspectos biológicos manifestam-se de maneira
inseparável do social e do cultural.
Referências Bibliográficas
1011
OS MULTIPLOS PAPÉIS DA PERSPECTIVA INTERCULTURAL NO ENSINO
DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
UM ESTUDO ETNOGRÁFICO NOS ESTADOS UNIDOS
Introdução
325
Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Doutoranda em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie
1012
Pensando em um ensino de língua associado às questões relativas à
cultura na constituição das representações de aprender e ensinar línguas como
práticas socioculturais, consideramos a perspectiva intercultural, parte inerente
do conhecimento linguístico acrescido da percepção de novas culturas, interação
com o outro e de novas concepções de vida.
As transformações culturais demandam uma implementação diferenciada
do ensino de línguas estrangeiras, objetivando a formação de indivíduos, o
desenvolvimento de consciência social, criatividade, mente aberta para novos
conhecimentos e uma reforma na maneira de pensar e ver o mundo.
De acordo com Lameiras (2006), o diálogo entre culturas possibilita uma
abertura que deve, naturalmente, afastar as pessoas de um comportamento
etnocêntrico além de favorecer o respeito às diferenças, sem creditar
supremacia ou sentimento de inferioridade a nenhuma cultura especificamente.
Enfatizamos que os termos cross-cultural e intercultural, termos
equivalentes em inglês, referem-se ao encontro e à comunicação entre pessoas
que não compartilham a mesma nacionalidade, origem social ou étnica, gênero,
idade, profissão; em outras palavras, a interação entre pessoas de diferentes
culturas e línguas. A noção de intercultura é baseada na premissa de um
encontro entre nações, culturas, línguas e na expectativa de que um choque
cultural possa ocorrer fora dos contornos de uma sociedade.
Esta pesquisa surge justamente desta constatação, uma vez que
acreditamos que, ao aprender uma nova língua, o indivíduo poderá ampliar sua
visão de mundo, uma vez que a aquisição de uma língua estrangeira pode
auxiliar na constituição da autopercepção do indivíduo como ser humano e como
cidadão. Conhecer uma cultura diferente é um preâmbulo para compreender e
respeitar as diferenças, tradições e ideais de outros povos. Além disso, ao
compreender o Outro, aprendemos mais sobre nós mesmos e sobre o que
significa a pluralidade de mundos, perspectivas literárias, sociais e ideológicas,
linguagens de profissões, épocas e períodos que estão impregnados no discurso
do Outro.
1013
Segundo os dados do estudo “Enrollments in Languages Other Than
English in United States Institutions of Higher Education, Fall 2013”326, realizado
pela Modern Language Association of America (MLA), divulgado em março de
2015, o ensino de Português nas universidades dos Estados Unidos cresceu
10,1% nos últimos cinco anos.
A pesquisa aponta que em outubro de 2013 o número de estudantes de
Língua Portuguesa era de 12.415, representando aumento superior a 50% em
relação ao ano de 1990. O número de instituições norte-americanas que
oferecem aulas de Português também apresenta aumento considerável: em
1990, o total era de 145 universidades e em 2013, o país conta com 238 centros
acadêmicos que ensinam Português como língua estrangeira. As palavras de
David Goldberg, Dennis Looney, and Natalia Lusin, autores da pesquisa, ecoam
sobre a ascensão da Língua Portuguesa “[...] notamos que o aumento
significativo do ensino de Português é paralelo ao aumento da atenção dada ao
Brasil” (2015, p.14).
Dentre as universidades analisadas elegemos a Brown University, em
Providence, Rhode Island, Estados Unidos, uma vez que suas propostas vêm
ao encontro das questões levantadas a respeito do ensino língua portuguesa
sob a perspectiva intercultural. Destacamos alguns pontos que despertaram
nosso interesse: a Brown University proporciona aos seus estudantes, desde o
bacharelado ao doutoramento, programas de estudos específicos da língua e da
cultura, com destaque ao The Department of Portuguese and Brazilian Studies
(POBS), que oferece programas acadêmicos interdisciplinares como Língua
Portuguesa, Literatura Brasileira, História e Cultura, Estudos Interculturais. Além
de promover uma diversidade de eventos culturais que incluem palestras,
concertos e simpósios, permitindo aos seus estudantes desenvolverem seus
interesses nas áreas de língua, literatura, educação, história, artes e ciências
sociais.
326 Matrículas em outras línguas além do Inglês em Instituições de Ensino Superior nos Estados Unidos, Outono 2013.
1014
Para desenvolvermos esta investigação, optamos por uma pesquisa
qualitativa de natureza etnográfica, que ocorreu por dois semestres (Fall 2013,
setembro a dezembro, Spring 2014, janeiro a maio), com acompanhamento
direto e intensivo das aulas de Língua Portuguesa do Department of Portuguese
and Brazilian Studies.
1015
além de favorecer o respeito às diferenças, sem creditar supremacia
ou sentimento de inferioridade a nenhuma cultura especificamente.
(LAMEIRAS, 2006, p.36)
1016
tem dominado 'método comunicativo' nos últimos anos. Porque até mesmo a
troca de informações dependerá da compreensão daquilo que se diz ou que se
escreve, pois será interpretado em outro contexto cultural; que por sua vez
dependerá da capacidade de descentralização e envolverá a perspectiva do
ouvinte ou o leitor.
Uma característica importante, no âmbito de ensinar e aprender língua e
cultura sob o conceito da interculturalidade, que precisa ser considerada é que
esta perspectiva não constitui um "método" de ensino de línguas. Não há um
único conjunto de práticas pedagógicas que possa ser considerado como
metodologia de ensino sob o enfoque intercultural.
Isto quer dizer que o ensino de língua por meio da perspectiva intercultural
é considerado mais como um conjunto de pressupostos compartilhados sobre a
natureza da língua, cultura e a aprendizagem que molda uma compreensão
global do que um sistema de ensino de língua de forma intercultural. É uma
abordagem a partir da qual os professores de língua constroem a prática, em
vez de um conjunto de práticas estabelecidas a serem adotadas. Desta forma, o
ensino de línguas intercultural pode ser considerado como um "pós-método"
(post-mehtod) de Kumaravadivelu (2005) em que consiste de uma orientação
teórica que enquadra as opções e os princípios que devem ser adaptados pelos
professores na sua própria prática.
De acordo com Byram (1994, p.41) as relações entre os diferentes
elementos cognitivos, afetivos, morais e seu uso em situações sociais
específicas são insuficientemente claras para qualificarmos a perspectiva
intercultural como metodologia e por outro lado, adotar o ecletismo sem
princípios, assim como intuição desenfreada pode ser igualmente perigoso.
Nossa pesquisa sobre o ensino de Português como língua estrangeira
fundamenta-se no construto de perspectiva intercultural ao se referir à cultura
baseando-se nas categorias de atitudes, conhecimentos e habilidades descritas
por Byram (1994, 1997, 2005), Kramsch (1995, 1998) Liddicoat (2011), entre
outros. Dentre elas, identificamos em nossa pesquisa sobre o ensino de
1017
Português como língua estrangeira, no Department of Portuguese and Brazilian
Studies, na Borwn University, o intercâmbio de informações sobre a vida
cotidiana no Brasil e nos demais países e comunidades lusófonas, para
desenvolver a relativização e descentralização do eu; conhecimentos de grupos
sociais, dos seus produtos e práticas, incluindo emblemas e mitos, marcas da
identidade nacional, para desenvolver o conhecimento do eu e do outro;
comparação de documentos escritos, do uso de gestos, das normas de
conversação, entre outros, a fim de estimular a capacidade de interpretar,
descobrir e interagir com a cultura do outro em situações reais de comunicação.
1018
As disciplinas do departamento são ministradas como apontado na seção
anterior, tanto por Doutores quanto pelos Teacher Assistants, assistentes de
professores, que são, normalmente, doutorandos do programa e que lecionam
em parte para cumprirem os créditos e manterem a bolsa de pós-graduação e
em parte para adquirirem práticas de ensino, construindo dessa forma
experiência na docência.
Durante os dois semestres de pesquisa na Brown University, observamos
258 aulas de Português como língua estrangeira, acompanhamos o
desenvolvimento de 118 alunos, compreendendo um total de 06 disciplinas.
Abaixo apresentamos em ordem crescente as disciplinas do POBS, que
realizamos nossa investigação, e breve descrição do conteúdo desenvolvido:
1019
como: crônicas, peças de teatro, filmes, vídeos, jornais, revistas, música popular,
fotografia, artesanato, dança e obras de arte.
1020
atividades, com foco na língua-alvo, são centradas nos estudantes e envolvem
imaginação e criatividade.
A perspectiva intercultural, no âmbito de ensinar e aprender línguas, pode
ser amplamente favorecida pela integração das artes. A integração das Artes no
processo de ensino e aprendizagem de língua fornece aos alunos uma
experiência rica na língua-alvo e cultura. Os alunos podem ser expostos ao vasto
leque de produção artística significativa em qualquer cultura através das artes
literárias, cênicas, visuais e digitais. Não só os alunos adquirem uma maior
consciência da cultura em questão, mas também são capazes de responder à
produção artística de maneiras significativas com trabalhos em sala de aula,
atividades, projetos e discussões baseadas na realidade da sociedade dos
países da língua-alvo (SOBRAL e JOUËT-PASTRÉ, 2014).
Ao estabelecer as Artes como uma o ponte para a aquisição da língua e
compreensão da cultura, o ensino de Português como língua estrangeira no
POBS tem como foco favorecer a competência comunicativa, proporcionar uma
imersão nos mais variados aspectos culturais dos países e comunidades
lusófonas e apresentar aos seus alunos diferentes perspectivas das artes e seu
impacto na vida dessas sociedades.
Considerações finais
Durante a nossa observação direta e intensiva das aulas de Português no
POBS compreendemos que a arte constitui um recurso versátil que potencializa
a aprendizagem integrada da língua estrangeira e cultura com base no
desenvolvimento do pensamento crítico e da capacidade analítica e de
interpretação do estudante. As artes proporcionam variedade à sala de aula e
aproxima os alunos das sociedades lusófonas, cultivando o interesse pelo outro.
Ao longo da nossa pesquisa etnográfica acompanhamos diversas atividades
artísticas relacionadas com as competências de compreensão e de produção
linguísticas, com aspetos gramaticais e culturais, considerando os conteúdos
programados, bem como o público-alvo – os estudantes.
1021
A arte contribui, não apenas para a aprendizagem linguística, como
também para a formação integral do indivíduo, através do exercício do espírito
crítico em face a aspectos pessoais, sociais e culturais, que favorecem o
conhecimento de si mesmo e do outro , da sua sociedade e da do outro.
Consideramos importante destacar que o ensino de Português como
língua estrangeira no Department of Portuguese and Brazilian Studies, na Brown
University, promove aula a aula o conhecimento pessoal, através do olhar atento
sobre o outro e descentrado da sua identidade pessoal e cultural, é frequente o
diálogo entre as culturas a do aluno e a do outro (países lusófonos), fatos estes
que consistem no princípio básico da interculturalidade apontado por Byram
(1997). Os planos de aula e desenvolvimento do conteúdo são pensados de
forma que promova a imersão do estudante tanto na língua-alvo quanto na
cultura e de forma não fragmentada.
Neste artigo apresentamos um pequeno recorte da nossa pesquisa de
doutorado e esperamos que o estudo realizado nestes quatro anos possa
contribuir com o ensino de língua estrangeira e cultura no Brasil. Um dos nossos
intuitos é propor a reflexão de que pode ser essencialmente simples e ao mesmo
tempo enriquecedor o ensino e a aprendizagem de língua por meio da
perspectiva intercultural, e que métodos tradicionais e elementos altamente
tecnológicos podem ser dispensáveis quando a arte se faz como ponte entre
língua e cultura.
Referências bibliográficas
1022
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New York: Cambridge University Press, 1998.
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língua estrangeira. Macau: Fundação Macau: Instituto Português do Oriente
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GOLDBERG,D.; LOONEY, D. e LUSIN, N. Enrollments in Languages Other Than
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LAMEIRAS, Maria Stela Torres Barros. Ensino de Língua x Cultura: em busca
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Teaching and Learning. New York, Routledge, 2011 (837-852)
1023
SOBRAL, P.I. e JOUËT-PASTRÉ, C. Mapeando a Língua Portuguesa Através
das Artes. Focus Publishing, MA, 2014.
1024
A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO NO CONTO MINHA MÃE, QUE LINDAS
TERRAS!, DE IRENE LISBOA
Introdução
O conto Minha mãe, que lindas terras!, da autora portuguesa Irene Lisboa,
da primeira metade do século XX, faz parte do livro de contos infantis Queres
ouvir ? Eu conto, publicado em 1958.
No nível da fábula, trata-se de uma história bastante simples, a de um
jovem rapaz – Tonito – que vivia com seus pais no campo e se dedicava a cuidar
de um pequeno rebanho de ovelhas. Um dia, ele vê um velho burro entrando em
um lago e, após mergulhar nele, saem de lá dois pombos voando e dois peixes
nadando contra a corrente. A partir daí, o jovem rapaz começa a sonhar com um
mundo fora da sua vila e a repetir para sua mãe a frase: “Minha mãe, que lindas
terras!”. Um dia ele também cria asas e sai para buscar conhecer tais terras que
povoavam a sua imaginação. Até que, anos mais tarde, como o filho pródigo dos
Evangelhos, ele retorna à casa natal, reencontra seus velhos pais e chega à
conclusão de que não há terra melhor do que a sua.
No entanto, se nos detivermos mais na leitura do conto, vamos perceber
que não se trata apenas de uma fábula com caráter pedagógico para ensinar
algo às crianças. Sua leitura mais atenta nos vem mostrar, através dos
elementos que compõem o espaço, significados mais profundos para a
mensagem que este quer passar ao leitor.
Primeiramente, analisemos o lago no qual o burro mergulha. Segundo
Bachelard (1997,30-31)
O lago, o tanque, a água dormente nos detêm em suas margens. Ele
diz ao querer: não irás mais longe; tens o dever de contemplar as
coisas distantes, coisas além! (...) O lago é um grande olho tranqüilo.
327
Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Literatura Portuguesa e
Brasileira e Teoria da Literatura no Claretiano Centro Universitário. Trabalha com a prosa contemporânea,
especialmente a obra de José Saramago.
1025
O lago recebe toda a luz e com ela faz um mundo. Por ele o mundo é
contemplado, o mundo é representado.
1026
desconhecido, um mundo no qual é possível viver outra vida, fruto de sua mente
perturbada pela visão que teve, da transformação que a água lhe propiciou.
O filósofo francês ainda nos diz em sua obra A água e os sonhos (1997,
36) que “o ser que sai da água é um reflexo que aos poucos se materializa: é
uma imagem antes de ser um ser, é um desejo antes de ser uma imagem”.
Sendo assim, esses dois seres que saem da água – pombo e peixe – após
a entrada do burro, podem ser tomados aqui como o desejo da personagem de
ver além do mundo sensível, do espaço conhecido, da vida vivida até o presente
momento. Eles representam a vontade de Tonito de se lançar a um espaço
desconhecido fisicamente, mas que lhe era latente na imaginação, por isso ele
afirma “mas com meus olhos é que eu vi” .
É importante aqui entendermos o significado arquetípico dos elementos
envolvidos nesse acontecimento do lago, mais especificamente, os animais que
compõem o espaço da narrativa: o burro, os pombos e os peixes.
O Livro dos símbolos nos diz acerca desses animais que “o burro [...] é
um símbolo de humildade” e que ele “sofreu as nossas próprias projecções
erradas de ‘teimosia e estupidez’, e com o modo brutal com que frequentemente
o tratamos” (2012, 316).
Vamos observar, pela leitura do conto, que o burro do Ti Joaquim – um
burro já velho, sem serventia para o trabalho – é abandonado por seu dono e
deixado à sua própria sorte. Então, o animal é apedrejado e, na tentativa de fugir
à violência, entra no lago.
O próprio simbolismo do burro é algo significante se nos remetermos às
duas passagens bíblicas importantes nas quais tal animal aparece: na viagem
de José e Maria para Belém, na ocasião do recenseamento, estando Maria
grávida de Jesus, tendo sido levada por um jumento. Também na entrada de
Jesus em Jerusalém, tendo sido aclamado como Rei dos Judeus com ramos,
conforme nos narra Marcos 11, 1-11.
O burro é, portanto, o animal que não só carrega cargas, mas também
que leva as pessoas para outros lugares. É um meio de transporte. No conto,
1027
vemos que o burro velho de Ti Joaquim teve a função de transportar o jovem
Tonito para o mundo da imaginação, um mundo no qual as terras são lindas,
diferentes das que ele conhecia.
No que diz respeito aos pombos, o livro de símbolos supracitado vem nos
dizer que tal animal, por sua beleza e simplicidade, são emblemas de bom
agouro e de paz.
A pomba alquímica, enquanto a alma que se ergue das águas caóticas
do nigredo ou descendo dos céus (...) é a mediadora do casamento
entre as nossas aspirações mais elevadas e a vida afectiva que
borbulha das profundezas até à superfície. (2012, 244).
1028
nascimento, uma vez que o batismo nas águas do lago simboliza o segundo
nascimento, um renascer para o novo. Quando o rapaz desaparece surgem os
comentários de que ele tinha partido num cavalo de ouro:
Correu, por estas e outras maneiras do Tonito, cheias de mistério, que
ele tinha achado o cavalinho de oiro moirisco, enterrado no monte do
Alfátema e que a cavalo nele, quando as ovelhas estavam ao rodeio,
dava um salto à Moirama. (Lisboa, 1958, 11)
1029
remete a outro trecho da história sagrada narrada nos Evangelhos: a de João
Batista, uma vez que o peregrino se apresenta aos pais dizendo: “Sou o dianteiro
daquele que há de chegar”, fazendo referência a Mc 1, 7, uma vez que percebeu
que seus pais não o reconheceram de imediato.
Com relação ao simbolismo da casa onírica, Bachelard vem dizer que:
A casa oniricamente completa é a única onde se pode viver os
devaneios de intimidade em toda a sua variedade. (...) Todo sonhador
tem necessidade de retornar à sua célula, é chamado por uma vida
verdadeiramente celular. (2003, 80)
Vemos aqui que o agora velho Tonito recorda todo o sofrimento pelo qual
passou longe do espaço de segurança do lar ao se referir ao pão caseiro. Tal
1030
qual o peregrino do relato do apóstolo Lucas que sentia falta da comida da casa
de seu pai ao dizer que ele queria matar a fome com as bolotas que os porcos
comiam, dizendo consigo mesmo: “Quantos empregados de meu pai têm pão
com fartura, e eu aqui morrendo de fome!” (Lc 15, 17), Tonito reconhece que é
na casa materna que ele tem toda a segurança e paz, elementos que são
representados pelo pão caseiro.
Considerações finais
Essa história bucólica contada pelo narrador de Irene Lisboa mostra-nos
a singeleza de sua narrativa. Massaud Moisés em sua coletânea sobre o conto
português, diz a respeito da prosa da autora:
1031
No conto em questão, só foi possível ao narrador construir sua fábula e à
personagem se desenvolver ao longo dela, devido ao espaço e aos elementos
que o compõem: a água como símbolo de purificação, de transformação, e a
terra natal – a casa materna – como espaço de proteção.
E assim vamos perceber que a função do conto vai muito além do simples
caráter pedagógico, como já salientamos no início, e nos traz elementos para
uma análise bem mais profunda quando nos atemos aos seus elementos
espaciais simbólicos.
Referências bibliográficas
BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria.
Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______________. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens
da intimidade. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BÍBLIA DE JERUSALÉM: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus,
2011.
CIRLOT, J. Dicionário de símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São
Paulo: Moraes LTDA, 1984.
LISBOA, I. Minha mãe, que lindas terras! In: Queres ouvir? Eu conto. Porto:
Livraria Figueirinhas, 1958.
MOISÉS, M. (Org.). O conto português. São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade
de São Paulo: 1975.
O LIVRO DOS SÍMBOLOS: reflexões sobre imagens arquetípicas. Chefe de
redação Ami Ronnenberg. Taschen: Colônia – Alemanha, 2012.
1032
LINGUAGEM AUDIOVISUAL E PUBLICIDADE SOCIAL
Introdução
O trabalho se insere numa linha de análise que nos últimos tempos vem
se desenvolvendo com maior frequência e força na área de Letras. A mesma
resulta da existência de objetos de estudo comuns – no caso, as linguagens – a
disciplinas afins. Desse modo, ela visa o exame de linguagens da área da
comunicação verbal, sonora e imagética de uma perspectiva interdisciplinar que
reúne, logicamente, Comunicação e Letras, mas também Educação, devido a
sua inserção “nos contextos de pesquisa acadêmica e de reflexão sobre práticas
pedagógicas do exercício docente da área de Letras.” (Guimarães: s/d, s/p).
Sob essa perspectiva, o trabalho tem por escopo a análise dos elementos
basilares de composição da sintaxe audiovisual e os efeitos de sentido criados
em três propagandas que abordam o tema da criança como fumante passiva.
Estas publicidades sociais partilham o mesmo objetivo – fazer com que os pais
percebam que fumar perto dos filhos torna a criança fumante passiva, com
graves consequências para sua saúde – e público alvo – pais fumantes com
crianças.
Com base na análise realizada, concluímos que os elementos basilares
de composição da sintaxe audiovisual contribuem para a construção do sentido
tanto quanto a própria mensagem subjacente, tornando as propagandas mais
persuasivas.
As peças não apenas possuem um fim comunicativo e público alvo em
comum, mas também uma estratégia persuasiva baseada no uso da emoção.
328
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São
Paulo/SP. E-mail: yglez2007@gmail.com
1033
Porém, procuram efeitos de sentido diferenciados: remorso, empatia ou nojo,
segundo o caso.
Apesar da força da imagem, elemento predominante na linguagem
audiovisual, observa-se a importância da linguagem sonora que, às vezes, pode
assumir o protagonismo na geração dos efeitos de sentido procurados.
Levando em consideração a função educativa da publicidade social, estas
propagandas podem, e devem, ser usadas em sala de aula. Lá elas passariam
de objetos de comunicação a objetos de análise, discussão e reflexão por parte
dos alunos. Inúmeras atividades podem resultar da experiência, dentre elas a
geração de variações para suportes diferentes – com o propósito de se
familiarizarem com outras linguagens – ou mesmo de novas propostas que,
mantendo o objetivo de comunicação e público alvo originais, sigam estratégias
persuasivas diferenciadas.
Considerações iniciais
Sob essa perspectiva, as páginas que seguem têm por escopo a análise
dos elementos basilares de composição da sintaxe audiovisual e os efeitos de
sentido criados em três propagandas que abordam o tema da criança como
fumante passiva. Indo além, tal objetivo coloca-nos na confluência da linguagem
audiovisual e a publicidade social e, mais especificamente, na discussão entre
determinismo tecnológico (McLuhan: s/d) versus condicionamento expressivo,
1034
questão que, embora superada teoricamente há tempo, ainda é possível
observar em muitos anúncios.
1035
destinado. El medio es el medio, y el mensaje debe respetar las reglas
del juego.329 (2001, 127) [g. n.]
329
Não vou discutir agora se o meio é a mensagem. Mas também não tenho admitido nunca um texto que
ignore as regras do meio ao que vai destinado. O meio é o meio, e a mensagem deve respeitar as regras do
jogo. (Tradução nossa).
1036
Resultaria muito difícil fazer um inventário completo de que usos dos
elementos de composição da sintaxe audiovisual se correspondem com que
efeito de sentido, inclusive porque aqueles podem assumir novos sentidos
conforme propostas expressivas que buscam inovar, alterando os sentidos
convencionalmente estabelecidos para um dado elemento de composição.
Quiçá seja por isso que manuais de Publicidade tão importantes quanto o
Kleppner (1994) ou o Wells (1996) considerem o comercial de televisão como o
rei dos formatos publicitários.
1037
Análise
a. b. c.
d. e. f.
Por sua vez, tanto o fundo preto, quanto o fato de não termos a presença
da entrevistadora, mas apenas sua voz, fazem com que nossa atenção se foque
no personagem. É para ele que o realizador quer direcionar nosso olhar.
330
Melhor não começar. (Tradução nossa).
1038
As transições por fade-in, ou seja, desvanecimento a preto, marcam as
perguntas e enquadram as reações. Vemos como a montagem, bem como a
trilha sonora in crescendo, determina um ritmo para a peça.
331
Pelo que você mais ama. (Tradução nossa).
1039
a. b.
c. d.
Fig. 2
1040
a. b.
c. d.
Fig. 3
332
Não prejudique os outros. (Tradução nossa).
1041
A trilha sonora contribui significativamente para o anterior. Além de indicar
a transição de cena – a primeira sem trilha –, a música escolhida, que remete
aos filmes de terror, reforça o sinal de perigo do interior (Fig. 4, imagem c.).
a. b. c.
d. e. f.
g. h. i.
Fig. 4
1042
A propósito do menino, vemos como a câmera acompanha seu olhar do
copo para a mãe (Fig. 4, imagem e.). O que ainda é mais relevante, na mesma
figura, imagem i., o pequeno olha para a câmera: o fato de o ator se dirigir
diretamente ao espectador, através da câmera, faz com que o espectador se
sinta chamado a intervir (Martin: 2005).
Considerações finais
1043
Referências bibliográficas
ALVARADO, María Cruz. La publicidad social: una modalidad emergente de
comunicación. 2003. 721 p. Tese (Doutorado em Comunicação Audiovisual,
Publicidade e Relações Públicas) – Universidade Complutense de Madri, Madri,
2003.
BASSAT, Luis. El libro rojo de la publicidad (ideas que mueven montañas).
Décima edição. Barcelona: Random House Mondadori, 2001.
GAGE, Leighton. D.; MEYER, Claudio. O filme publicitário. Primeira edição. São
Paulo: Atlas, 1991.
GREIMAS, Algirdas J.; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Terceira
edição. São Paulo: Cultrix, 1989.
GUIMARÃES, Alexandre H. T. Ementa da disciplina Linguagens: comunicação
e educação do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. São Paulo: UPM, s/d.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Primeira edição. Lisboa:
Dinalivro, 2005.
MURARO, Marlon Luiz Clasen. Propaganda de ideias e força do anúncio:
confluência de linguagens no discurso publicitário. 2009. 179 p. Tese (Doutorado
em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.
RUSSELL, J. T.; LANE, W. R. Otto Kleppner. Publicidad. Décimo segunda
edição. México: Prentice-Hall Hispanoamérica, 1994.
WELLS, W.; BURNETT, J.; MORIARTY, S. Publicidad, principios y prácticas.
Terceira edição. México: Prentice-Hall Hispanoamérica, 1996.
1044
A MODA E OS AGENCIAMENTOS DOS DESEJOS DE CONSUMIDORAS 333
INTRODUÇÃO
333 Trabalho apresentado 2o. Congresso Nacional Mackenzie – Letras em Rede - Simpósio 20: Ensaios
sobre publicidade, marketing e literatura.
334 Doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUSP. Docente no curso de Publicidade e
1045
moda presentes nas internet que são apresentados de forma imperativa as
consumidoras.
Para a autora, as pessoas adotam ou rejeitam a moda por diversas razões, pois
a relação entre a moda e a identidade social sofreu modificações através dos
séculos. Com o utilização das novas tecnologias pelos consumidores, a moda
passa a se relacionar com seu público a um toque dos dedos no celular.
Inúmeros perfis online são criados diariamente nas redes sociais que permitem
a divulgação e interação entre o curador de moda e seu público.
A interação online com usuários conectados, pode ser definida também como
uma forma de consumo, pois envolve, entre outras práticas, a recomendação,
sugestão, divulgação diária da foto com o look do dia em frente ao espelho, o
following de perfis de blogueiras no Instagram e o compartilhamento de lista de
desejos. Aqui, faz-se um traçado entre os agenciamento dos desejos e a
construção de estilos de vida promovidos pelos discursos comunicacionais de
curadores de moda.
1046
Os discursos midiáticos no campo da moda
A proliferação de discursos sobre moda e estilos de vida, nos convida a refletir
sobre a questão: de que forma os discursos comunicacionais dos curadores de
moda agenciam desejos?
O site Steal the Look é uma plataforma de moda desenvolvida e administrada
por especialistas da área. O termo “steal the look” traduzido do inglês para “roube
o look” surgiu em decorrência da atual cena de fashion/streetstyle blogs. O STL
não só apresenta tendências de moda, mas ajuda as consumidoras a encontrar
a peça desejada para montar o look de acordo com a ocasião. Por isso interligam
moda ao consumo num mesmo ambiente. No site, as consumidoras podem
acompanhar as últimas tendências do mundo da moda, visualizar looks
diferentes, inspirar-se e clicar no link de compra. A plataforma apresenta os looks
que considera interessante e indica peças similares que podem ser compradas
online, caso a consumidora goste da peça apresentada.
A partir de uma análise dos discursos utilizados pela STL, observa-se o uso de
termos imperativos como “precisa ter” ou “não pode faltar no seu guarda-roupas”.
Essa abordagem segue em direção ao estímulo dos desejos de quem quer
acompanhar tendências.
Ao observar os enunciados da plataforma Steal the Look, percebe-se uma
abordagem quase que obrigatória ao consumo por meio do estímulo ao desejo
de estar inserido em um grupo social fashion como exemplificado abaixo:
1047
Figura 1: Steal the Look
1048
Com a internet, a possibilidade de acesso as novidades, a busca de informações
de um tema específico e as ferramentas de filtros de conteúdos compõem a
atividade online colaborando para que o consumo de informações desse grande
acervo possa ser classificado de acordo com o os interesses do usuário. Alguns
usuários podem ser tanto especialistas num determinado assunto, quanto
pessoas que têm um olhar sobre o que é interessante. No campo da moda, eles
são os tastemakers, pessoa ou grupo que testa e avalia uma tendência de moda
e que possuem grande influência em sua base de seguidores.
Compreender o desejo como a falta de algo ou o desconforto que essa falta
nos causa e que nos conduz a uma busca desse preenchimento indica que o
desejo não está restrito ao objeto. Gilles Deleuze (1988), em sua entrevista
concedida a Claire Parnet intitulada “O abecedário de Deleuze 335”, propõe que
quando se fala em desejo, só se pode desejar em um conjunto, e com isso
sempre se deseja um todo. Quando a consumidora deseja um vestido novo,
ela não deseja somente a peça, o objeto e sim a aura, a paisagem envolta
daquele vestido e tudo o que ele representa em uma determinada situação ou
momento da vida. O autor discute o desejo como um sendo um motor, ou seja,
um impulso em direção ao objeto de desejo que é diferente da forma abstrata
filosófica. Nesse sentido, não há desejo que não seja levado em direção a um
agenciamento. Nisso, é necessário compreender “qual a natureza das relações
entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejáveis”
(DELEUZE, 1988).
1049
que se imagina. Diante disso, como podemos compreender as razões pelas
quais as pessoas vestem o que vestem, ou determinam sua imagem pessoal a
partir de um estilo? O ato da compra de uma blusa, por exemplo, não se limita
ao fato apenas do gosto da consumidora.
Observa-se um discurso ideológico e social por trás de uma camiseta Hering ou
de uma sandália Havaianas. Esse é um exemplo clássico, marca de chinelo mais
conhecida, depois de anos sendo estigmatizada como a sandália das classes C
e D, virou o chinelo fashion que “todo mundo usa”, e que podem inclusive compor
o look junto a outras marcas de luxo. Vestir uma sandália modelo clássico da
Havaianas pode comunicar que a consumidora se identificou com a marca e com
todo o seu discurso.
O mesmo acontece com marcas de luxo. Ao usar uma peça de roupa Chanel,
ou algumas de suas fragrâncias não significa que a consumidora “está na moda”
ou que possui poder aquisitivo para isso, mas pode passar a informação de que
essa consumidora se identifica com a imagem icônica da mulher Chanel, ou seja,
forte, elegante e clássica.
1050
Se as práticas de consumo contemporâneas são reveladoras de
uma mentalidade própria de um capitalismo tardio, podemos
sugerir que o sistema de mídia – incluindo a comunicação
publicitária – é tanto um difusor desta mentalidade quanto um
viabilizador da produção simbólica de sentidos.... o corpo consiste
num locus privilegiado de experimentação, na medida em que se
alteram os modos de se fazer e ver e de ser visto por meio das
narrativas publicitárias (HOFF, 2012. p.145).
Zygmunt Bauman, sociólogo francês autor de vasta obra sobre consumo (2008),
em seu livro “Vida para Consumo” definiu os indivíduos como “promotores das
mercadorias e as mercadorias que promovem” estabelecendo uma relação
mercadológica entre a pessoa e o produto. Nos tornamos um produto?
1051
período de coleta de dados, todos se reúnem e passam 3 dias em reuniões
brainstorming discutindo e compartilhando tudo o que foi coletado nesse período.
336 Documentário Influencers: how trends and creativity become contagious. Disponível em:
1052
a ser representado por sua imagem e palavra, principalmente nas revistas de
moda.
1053
uma nova forma de consumir. Há uma preocupação não mais e somente com
consumir o produto, mas sim em obter satisfação emocional, sensorial, corporal,
estética e lúdica. Nesse sentido, pode-se dizer que o consumo promove novas
experiências comunicativas, levando o indivíduo a investir em novos processos
de subjetivação (VILLAÇA, 2010 p. 55)337.
Entende-se que o consumo não está somente ligado à compra efetiva de um
determinado produto a partir da aquisição por meio de pagamento. A partir da
atividade online de usuários conectados, consumir envolve, entre outras e não
somente, o empréstimo, as práticas de recomendação, publicação nas redes
sociais digitais, o compartilhamento de informações, a recomendação, a
sugestão de um livro (podendo ocorrer de pessoa para pessoa ou de empresa
para pessoa) que se relacionam em rede. O sociólogo polonês radicado na
Inglaterra Zygmunt Bauman, em seu livro Vida para Consumo observa que na
Coréia do Sul, grande parte da vida social já é mediada eletronicamente. Para o
autor “a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida, e a maior
parte do tempo se passa na companhia de um computador, um iPod ou um
celular, e apenas secundariamente ao lado de seres de carne e osso” (BAUMAN,
2008, p. 8-9).
337Nizia Villaça é formada em Letras pela UFRJ. Mestre em Literatura Portuguesa, doutora em Teoria
Literária pela UFRJ com Pós-doutorado em Antropologia Cultural pela Sorbonne, Paris V. É
Coordenadora do Grupo ETHOS: Comunicação, Comportamento e Estratégias Corporais.
1054
alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas
obrigações sociais e proteger a autoestima – assim como serem vistos e
reconhecidos por fazerem tudo isso -, consumidores de ambos os sexos, todas
as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo
do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos. (BAUMAN,
2008, p. 74)
Bauman (2008, p. 74) aponta que, na sociedade de consumo, precisamos ser
aprovados no teste do consumidor para admissão na sociedade. Para o autor,
“consumir significa investir numa afiliação social de si mesmo, o que, numa
sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade”: obter qualidades
das quais já existe numa demanda de mercado, ou reciclar as que já se possui,
transformando-as em mercadorias para as quais a demanda pode continuar
sendo criada”. Indivíduos se tornam a própria mercadoria. “Os membros da
sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo”
(BAUMAN, 2008, p. 76). Ao consumir, o indivíduo investe no valor social e em
sua autoestima.
O consumo cultural composto por vertentes que envolvem os processos
comunicacionais da recepção e produção, as frentes culturais que
compreendem os aspectos culturais como pontos de força. Outra vertente
muito discutida é a influência cultural e a integração da audiência. E a vertente
ligada aos estudos de Jesus Martin-Barbero sobre o uso social dos meios
(JACKS, 1996, p. 46)338.
De acordo com esse pensamento, podemos analisar o caso das Lojas
Renner339 que conseguiu “driblar” a baixa economia aumentando suas vendas
em 2014, utilizando o Instagram como ferramenta de captura de tendências de
1055
moda e comportamento da consumidora como estratégia de observação da
moda das ruas.
Investimos muito em capital intelectual para aprender as
peculiaridades do cliente — o que vende e o que não vende. A
rua ficou muito importante. Os clientes vêm uma cantora famosa,
uma atriz com um look diferente e vão para a loja buscar esse
look, essa peça. Aprendemos a reagir de forma rápida, e isso é
uma mudança estrutural na companhia. Este é o novo varejo.
(Laurence Gomes, CFO da Renner – Veja Mercado).
O consumo de moda caminhou no sentido contrário. A moda antes ditada pelas
passarelas de Paris e Londres agora nasce no Instagram, nas blogueiras
adolescentes e nos festivais de música, ou seja, na rua.
Considerações
Os desejos impulsionados pelos discursos publicitários e por curadores de
tendências percorrem os caminhos dos agenciamentos como processo
influenciador do consumo.
Observa-se que ciclo das tendências – das passarelas às ruas – apresenta um
caminho de mão dupla com o surgimento das mídias sociais digitais. Quando
percebemos empresas repensando suas estratégias de mercado utilizando as
mídias sociais digitais como ferramenta de estudo das práticas de consumo
das ruas, pode-se pensar que a criação das tendências também surge do
consumidor final e não somente das passarelas.
E por fim, dos discursos publicitários adotados no campo da moda, como
observado em enunciados da Steal the Look, colocam o consumidor numa
posição de que ele tem que adquirir determinada peça de roupa para estar
inserido no contexto da moda vigente no momento.
Esse trabalho ainda está no início de uma tese de doutoramento e será parte
de uma pesquisa em andamento no campo da comunicação e do consumo.
1056
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Sistema da Moda. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
CRANE, Diana. Reflexões sobre a moda: o vestuário como fenômeno social. In:
BUENO, Maria Lucia; CAMARGO, Luiz Octávio de Lima (Orgs.). Cultura e Consumo.
Estilos de vida na contemporaneidade. São Paulo: Senac, 2008.
1057
CLARAH AVERBUCK, SUJEITO À MARGEM.
Roseli Gimenes
Introdução
1058
mergulhadas num universo mudo pela internet, surdo pela música altíssima e
cego pelas paredes dos shoppings, [...]” (Ruffato, 2004, p 16).
Só essa descrição já a deixaria de fora do cânone atribuído a escritores. Ao
menos, o paradigma que se tem de escritores. Ter iniciado sua escritura em
1990, faz de Averbuck um outro paradigma, o dos autores nascidos na década
de 70 em meio a questões políticas muito sérias no Brasil, como em outros
países da América do Sul.
De fato, Averbuck nasceu em Porto Alegre em 1979. Sempre considerou a
escola uma coisa chata o que a fez cursar um supletivo para finalmente ter
acesso à universidade. Cursou Letras e Jornalismo, mas acabou não concluindo
nenhuma graduação.
Em 2001, veio para São Paulo onde criou o blog brazileira!preta
Fonte: http://www.brazileirapreta.blogspot.com/
1059
biografemáticas da vida de Clarah. O que isso significa?
Sem serem autobiográficas, as obras de Averbuck sempre são narrativas em
que a própria autora, seus namorados, seu marido, sua filha, seus gatos estão
presentes. Como é o caso de:
Máquina de Pinball, editora Conrad, 2002
Das Coisas Esquecidas Atrás da Estante, editora 7Letras, 2003
Vida de Gato, editora Planeta, 2004
Nossa Senhora da Pequena Morte, editora do Bispo, 2008
Cidade Grande No Escuro, editora 7Letras, 2012
Eu quero ser eu, editora 7Letras, 2013
1060
Fernanda Benevides de Carvalho, quanto no de um ilusoriamente simples
como o de Ivana Arruda Leite. A frustração (basicamente a sexual), que leva
à solidão, encontramo-la em Livia Garcia-Roza, em Cintia Moscovich, em
Nilza Rezende. A morte como expiação sobrevoa os contos de Tatiana Salem
Levy, Adriana Lunardi e Paloma Vidal. Em Claudia Lage a redenção pelo
corpo; em Índigo, pela alma. O viés engajado encontra abrigo em Tércia
Montenegro e Rosa Amanda Strausz, com faturas diversas. O lado terrível da
amizade, expõe Cecília Costa; os pequenos cortes no cotidiano banal,
Adriana Lisboa; a paixão que arrebata, Heloísa Seixas. O fantástico habita
Augusta Faro. A inventividade marca Leticia Wierzchowski. (Ruffato: 2004, p
16-17)
Essas entre tantas mulheres que estão fazendo a literatura brasileira do século
XXI.
Elas e tantos jovens dessa geração como Daniel Galera, Michel Laub, Ricardo
Lísias, Júlian Fuks, entre outros que, como algumas autoras citadas, integram a
Granta (2012) e que fazem das letras brasileiras um novo paradigma literário:
Os textos aqui reunidos representam uma fatia importante dos escritores em
atividade no Brasil: autores com menos de 40 anos e com pelo menos um
conto já publicado. Alguns têm em seu currículo um número significativo de
obras lançadas. Michel Laub, o autor que abre esta edição está em seu quinto
romance e recebeu, em 2011, o Prêmio Bravo! de Literatura por seu livro mais
recente. Tatiana Salem Levy levou, por seu primeiro romance, o Prêmio São
Paulo de Literatura e foi traduzida em seis países. Daniel Galera tem três
romances, um volume de contos, uma graphic novel [...] (Granta: 2012, p 5 -
6)
Seria o caso de perguntar: por que Clarah Averbuck não entrou nessa lista em
que estão seu companheiro de Porto Alegre, Daniel Galera, ou sua companheira
da obra de Ruffato (2004), Tatiana Salem Levy? Qualidade literária não lhe falta.
Publicações, também não. Será a Granta (2012) um novo cânone ? Escolhas de
jurados. Mesmo Ruffato (2004) fez escolhas e explicou que muitas outras
mulheres poderiam estar em sua seleção.
Afinal, as mulheres conquistaram espaço também na literatura:
Como em Sherazade - a mulher que adiava a morte pelo talento com que
contava histórias ao sultão na Mil e uma Noites -, narração e sobrevivência
vêm juntas. A presença da mulher no romance – lendo-o, escrevendo-o ou
protagonizando-o – não apenas deu voz à metade da humanidade que
permanecia calda ao tempo em que as letras eram território exclusivamente
masculino (o que já não é pouco...), mas também deu vida e fôlego longo ao
romance, gênero por excelência da modernidade. (Lajolo: 2004, p 61)
A Literatura de Clarah Averbuck vai ao Cinema
1061
para o hibridismo da linguagem do cinema.
No caso do filme Nome Próprio, de Murilo Salles (2007), não se trata da
adaptação de uma única obra de Averbuck. Um desavisado leitor poderia pensar
que houve apropriação ou desapropriação da obra da autora.
Assim como fez Nélson Pereira dos Santos com o filme A terceira margem do
rio (1994) que transpos ao cinema vários contos da obra Primeiras Estórias
(1962), de Guimarães Rosa. O título do filme induz a pensar que seja apenas
uma adaptação do conto A terceira margem do rio, parte de Primeiras Estórias.
No caso de Nome Próprio, o cineasta acertou na leitura da obra de Clarah como
um todo. Impossível não relacionar esse título com a publicação recente da
escritora, Eu quero ser eu. Clarah é nome próprio literal e metaforicamente
falando, como veremos adiante na análise dessa obra.
Quem é Camila, a protagonista de Nome Próprio senão a própria Clarah
Averbuck de dentro de todas as suas obras? De dentro de seus romances Vida
de Gato (2004) e Máquina de Pinball (2002)?
Jair Santana (2008) definiu bem o filme apontando a relação frágil entre o
espectador e seu nome próprio, seu espelho no cinema, encarnado por Camila,
brilhantemente interpretada pela atriz Leandra Leal:
Apesar de ser um filme atual, jovem, e ter inúmeras qualidades, “Nome
Próprio” não tem sido um sucesso de público. Talvez pela personagem
difícil. Talvez pela baixa divulgação do filme, ou pelo preço do cinema, ou
ainda, porque o filme exija demais seu público. Talvez ainda, porque, grande
parte do público de cinema no país, seja exatamente como Camila. E o
incômodo de se ver na tela os fazem sentir como Camila se sente ao ser
criticada em seu blog.
O que fica para o para o público é um cinema de qualidade, “Nome
Próprio” tem cara de cineasta estreante. No melhor que isso possa
significar. Pois, como já foi dito, é um filme corajoso, ousado e barato. Filme
com cara de cinema brasileiro, cara de um bom cinema latino. Novo,
autêntico, visceral. “Nome Próprio” tem, acima de tudo, cara de cinema, e
posiciona bem nisso. Não quer ser visto como uma adaptação da literatura.
E em momento algum se propõe a se confundir em ser literatura, teatro ou
novela. É CINEMA. (Santana: 2014.)
Um leitor, assim como um espectador, se vê espelhado no que ouve, lê, vê.
Camila/ Clarah são espelhos, retratam o jovem como bem colocou Ruffato (2004,
p 16) ao dizer que são jovens deste tempo. Também por isso o público de cinema
identificou Nome Próprio e Cão sem dono como semelhantes. Semelhantes em
personagens, semelhantes ambos em personagens que se revelam em seus
próprios autores. Autores que vieram, Clarah e Daniel Galera, de Porto Alegre
para São Paulo e aqui fazem seus romances mantendo um vínculo, uma
irmandade.
Talvez, como seus jovens leitores, à margem.
1062
a tendência autobiográfica é suavizada pela maturidade da autora passados 15
anos ou mais de suas primeiras publicações. Clarah cresceu, é mãe e já não é
tão jovem como a Camila de Nome próprio.
Eu quero ser eu (2013), traz uma retrospectiva de como Camila (que está em
Vida de Gato e Máquina de pinball) chegou a ser Camila. Começa com a escola:
“[...] Eles praticamente ensinam que ser diferente é errado, então tchau, que
essa mancha no meu currículo sirva para a minha história”. (Averbuck: 2013, p.
9)
Ironicamente a personagem chave chama-se Ira (Iracema, mas todos a chamam
de Ira) e vive às voltas com questões diversas às dos adolescentes que a
rodeiam. Curiosamente, Ira tem pais muito bacanas:
Meus pais são legais. São os pais mais legais que eu conheço. Minha mãe é
minha amiga, é linda e inteligente e desenha os desenhos mais legais do
mundo e gosta de rock e me compra músicas legais e tem discos de vinil em
casa até hoje, uma coleção enorme, que era de um amigo do meu avô.
(Averbuck: 2013, p. 25)
Ao leitor fica a sensação de que, nessa obra, Clarah transferiu-se para sua filha.
Seria Ira a filha, então? Ou Ira é um espelho para Clarah contar a história de
uma adolescente que também poderia ser ela mesma em época adolescente?
Seja como for, Ira é tão diferente quanto a Camila de suas primeiras obras.
Eu quero ser eu é narrativa em primeira pessoa:
Adorei tudo. Adorei ele, adorei o jeito que ele falava, o jeito que ele se mexia,
o jeito que ele tratava os alunos não dando margem pra mimadinhos, adorei
aquele pedaço de tatuagem saindo pela camiseta, adorei que ele era sério e
não fazia piadinhas pra ganhar os aluninhos. Adorei. (Averbuck: 2013, p. 21)
Ira encontra em uma nova escola, fora convidada a sair da outra, um professor
que realmente se fazia respeitar, contrário ao que se vê nas escolas neste
momento difícil da educação brasileira. Significa que uma adolescente diferente
não quer dizer uma adolescente que não sabe valorizar um bom professor.
Segundo Ira, os “mimadinhos” é que não sabem, então.
A linguagem da narrativa é simples, sem ser simplista, empresta aos
personagens suas características etárias e contemporâneas de jovens urbanos.
Por mais que possamos inferir de essa obra de Averbuck tratar de uma
‘realidade’, como bem afirma Barthes (1973/1987), a representação é sempre
um outro, uma outra ‘realidade’:
Outra coisa se passa, ligada sem dúvida a um outro sentido da palavra
“representação”. Quando, num debate, alguém representa qualquer coisa a
seu interlocutor, não faz mais do que citar o último estado da realidade, o
intratável que existe nela. Do mesmo modo, talvez, o romancista ao citar, ao
nomear, ao notificar a alimentação (ao tratá-la como notável ), impõe ao leitor
o último estado da matéria, aquilo que, nela, não pode ser ultrapassado,
recuado (...). (Barthes: 1973/1987, p. 60-61)
Nesse sentido, o nome da personagem Ira pode representar a raiva adolescente
dela como também a rebeldia da autora para com aqueles que tratam diferentes
de maneira brusca. Possível também pensar que Ira abreviado de Iracema
aponte para a personagem de Alencar, ‘a virgem dos lábios de mel’, um certo
1063
modelo diferente da mulher europeia do século XIX. Ira, Iracema, é um
paradigma de adolescente diferente, mesmo em se tratando do século XXI.
Na dedicatória que Clarah fez a esta autora (Roseli Gimenes), enigmaticamente,
ela plantou um desconforto. ‘Pra Roseli que já sabe que pode ser o que quiser.’
Quem nos dera saber o que queremos ser, mas é possível perceber que
Averbuck vira Roseli como alguém que já atingiu um algo, ser professora,
escrever, falar sobre Clarah neste artigo. Ou, então, julgou Roseli sendo como
sempre quis ser, sem ter que se explicar do porquê ser. Será?
Será que ela sabia do prazer da autora com seu texto? Ela descobrira a análise
da leitura de sua obra de forma prazerosa, ainda que uma análise, como diria
Barthes (1973/1987):
Cada vez que tento “analisar” um texto que me deu prazer, não é a minha
“subjetividade” que volto a encontrar, mas o meu “indivíduo”, o dado que torna
meu corpo separado dos outros corpos e lhe apropria seu sofrimento e seu
prazer: é meu corpo de fruição que volto a encontrar. E esse corpo de fruição
é também meu sujeito histórico; pois é o termo de uma combinatória muito
delicada de elementos biográficos, históricos, sociológicos, neuróticos
(educação, classe social, configuração infantil, etc (sic) que regulo o jogo
contraditório do prazer (cultural) e da fruição (incultural), e que me escrevo
como um sujeito atualmente mal situado, vindo demasiado tarde ou
demasiado cedo (não designando este demasiado nem um pesar nem uma
falta nem um azar, mas apenas convidando a um lugar nulo): sujeito
anacrônico, à deriva. (Barthes: 1973/1987, p. 81)
Eu quero ser eu revela muito de eu sei que quis e que sou eu quando se lê uma
obra que pode revelar seu ser: Clarah e Roseli escritoras, mulheres, diferentes,
fazendo literatura no século XXI em um mundo, ainda, de homens escritores. Em
um mundo que trata cabelos crespos, corpo fora da anorexia, vozes que falam
sobre isso como à margem, em um outro lado do social. Assim é que Clarah e
Roseli confluem. Ambas como ‘reais’ indivíduos tirando prazer do texto e da
leitura como ficção:
Talvez então retorne o sujeito, não como ilusão, mas como ficção. Um certo
prazer é tirado de uma maneira da pessoa se imaginar como indivíduo, de
1064
inventar uma última ficção, das mais raras: o fictício da identidade. Esta ficção
não é mais ilusão de uma unidade; é ao contrário o teatro da sociedade onde
fazemos comparecer nosso plural: nosso prazer é individual - mas não
pessoal. (Barthes: 1973/1987, pp. 80-81)
Clarah Averbuck, participando de palestras para alunos de Letras, disse mais de
uma vez que se considera diferente e Ira, sua personagem de Eu quero ser eu,
também afirma isso na obra: “Eu não posso ser tão estranha só porque eu não
quero ser igual a todo mundo. Eu quero ser eu. Não pode ser tão estranho eu
querer ser eu e não outra pessoal.” (Averbuck: 2013, p. 19)
O que significa ser eu em relação a ser diferente e não ser igual a todos os
outros? Clarah está fiel ao mundo adolescente médio, da classe média, que de
alguma maneira segue padrões de consumo estilizados e que transformam os
seres em únicos, não em um único ser. Para incluir-se o jovem precisa ser igual
a todos os demais:
Um grupo de meninos bonitos cercados por tietes que chegavam pra falar
qualquer coisa, meninas que acreditavam que o mais importante na vida eram
roupas e cabelos, receber uma resposta digna de garoto de dezesseis anos,
fingir total ultraje e sair rindo de braços dados com as amigas, cochichando,
para dar lugar para a própria turma de tietes, que falaria qualquer coisa...E
depois eu que sou estranha por não querer fazer parte disso. (Averbuck:
2013, p 19)
A leitura desse trecho leva a questões antigas de considerar mulheres, as
meninas do texto, submissas às vontades masculinas que diferem de pensar as
mulheres como seres que leem, mas que também escrevem, que também
constroem o mundo social em que vivem. Marisa Lajolo (2004) fez uma excelente
análise de como o papel da mulher retratado na literatura brasileira a aponta
como mulher leitora, mulher cuja leitura a coloca em posição perigosa e mulheres
que começam a aparecer como escritoras:
Assim, não obstante o severo e magro regime de leitura e de escrita a que
eram submetidas as brasileiras – maiores e menores de idade -, na primeira
metade do século XIX, elas também viraram o jogo e o romance tornou-se,
efetivamente, um gênero feminino, inaugurando-se com uma história do tipo
perfil-de-mulher. (Lajolo: 2004, p. 48)
Em recente palestra, em curso de Letras de uma universidade privada, Clarah
Averbuch, ironicamente, provocou os alunos afirmando que detestara o curso de
Letras porque ele apenas trabalhava obras clássicas da literatura,
desprestigiando as contemporâneas, os novos autores como os da geração de
Averbuck. Citou, inclusive, que detestava a obra A Moreninha, de Macedo,
justamente porque a personagem central lhe era “desconhecida”. No entanto,
nesse caso, o contexto social e histórico do século XIX conferia papel difícil às
mulheres e a ‘moreninha’ do romance dá um salto à frente de seu tempo, ou
seja, à frente de seu tempo na literatura que traduzia os romances europeus com
suas heroínas bem distantes daquelas leitoras de obras do período do
Romantismo brasileiro, como bem explica Lajolo (2004):
A Moreninha permanece na cultura brasileira pelas suas adaptações para
outros media e pela sua presença no currículo escolar. Esta permanência
1065
talvez possa ser atribuída à tropicalização de sua heroína: será que uma
protagonista moreninha, em substituição às tradicionais pálidas e loiras, não
falava mais alto ao coração do leitorado brasileiro? (Lajolo: 2004, p 49 )
O que nos parece é que Clarah Averbuck, a autora e suas obras, personifica a
mulher culturalmente tropicalizada a que se refere Lajolo na citação acima, mas
que não encontra, ainda, par com outras mulheres ou com outras adolescentes
assim como sua personagem, Ira. Ambas ouvem vozes femininas em suas
cabeças, vozes que vêm de dentro, não de outro:
A voz da minha cabeça é muito alta. Eu não sei se a das outras pessoas é,
mas a minha é. Se as coisas começam a ficar entediantes à minha volta, ela
começa a aumentar e aumentar e quando me dou conta é só o que eu escuto.
A minha própria voz. Pelo menos é só uma. Isso deve querer dizer que eu
não sou louca. Mesmo quando eu sinto que tem duas pessoas brigando
dentro de mim, é a mesma voz. Então eu não estou no grupo das pessoas
que ouvem vozes. Eu só ouço a minha. (Averbuck: 2013, p. 27)
Considerações Finais
Eu quero ser eu, de Clarah Averbuck, sintetiza o eu quero ser eu, mulher,
escritora, leitora, editora, diferente, incluída, historiadora da literatura brasileira
como se vê na obra de organização de Muzart (2003). Enfim, eu quero ter nome
próprio.
Eu quero ser eu apresenta uma discussão, pelo viés da voz adolescente de Ira,
de como rótulos diminuem seres, colocam-nos à margem do social, do histórico,
do cultural.
A obra constrange exatamente por apontar que, passados séculos, embora
tenhamos escritoras mulheres falando de mulheres, a mulher ainda não se
desgarrou de uma cultura que as forma, em sua grande maioria, para agradar o
sexo oposto.
Mulheres, como Ira, esperam mudanças, como aponta Muzart (2003) que
‘esperar’ é o verbo que mais se usa, ainda que para a autora aqui o ‘esperar’ é
o tempo da pesquisa: “o verbo mais conjugado é o esperar: esperar por uma
informação bibliográfica, esperar o resultado de pedidos por carta a sebos e
antiquários, esperar por microfilmes de bibliotecas.” (Muzart: 2003, p. 24)
Clarah Averbuck também ‘espera’ por tomar um lugar na cultura, não
necessariamente um lugar feminino, mas uma visão- lugar de ser humano:
[...] Quem inventou que homem é assim, mulher é assado? Ninguém NASCE
sabendo como se portar, essas coisas são todas ensinadas, e olha, olha só,
eu acho que estão ensinando tudo muito errado, desde que as meninas e os
meninos nascem, desde o começo, desde o quarto rosa e azul, desde furar
a orelha da pobre menina recém-nascida, quem foi que determinou o que é
feminino e o que é masculino? Ouvi mil vezes que eu era uma “menina –
menino”, que droga isso significa? É porque eu gosto de música? É porque
eu não me visto igual às outras? É porque eu tenho opinião? (Averbuck:
2013, p 53)
Esperar pelo outro toma tempo. As escrituras, nesse sentido, vão se construindo
utópicas para encorajamento histórico e cultural. Falando sobre a força da
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literatura, Barthes (1964) confirma esse poder da escrita:
A multiplicação das escritas institui uma Literatura nova na medida em que
esta só inventa a sua linguagem para ser um projeto: a Literatura torna-se a
utopia da linguagem. (Barthes: 1964, p. 73)
A busca pela escrita é a busca de nossa Ira em ser eu, em poder ser aquela em
que Clarah também acredita, a que tem nome próprio:
[...] Mudei de novo de escola e nunca mais verei nenhum daqueles caras.
Espero que a próxima escola seja melhor. Não vai ser. Vai ser a mesma
coisa. Só sei, só espero que lá eu possa ser eu. Que eu mesma me permita
ser eu. E que eu nunca mais pegue ônibus pro lado errado por causa de
homem novamente. (Averbuck: 2013, p. 66)
E que eu nunca mais pegue ônibus pro lado errado por causa de homem
novamente, é literal no romance porque relembra ao leitor a mudança de atitude
que Ira toma. Ela se deixa levar por um jovem ‘mimadinho’ e belo que a esnoba
e a trata como ser de outra espécie que não a humana.
Por outro lado, Clarah nos deixa um pensamento para reflexão sobre o que é ter
vida, nome próprio, e não se sujeitar ao outro nesse sentido usurpador
masculino.
O texto neste ponto se encerra deixando escritura que se discute ainda em pleno
século XXI, mesmo depois de as mulheres terem sua emancipação no século
XX, de terem empreendido uma escrita, ainda que muitas vezes desconhecida,
no século XIX.
Quem é Clarah Averbuck? Esperamos tê-la tornado mais conhecida. De que
trata a narrativa Eu quero ser eu? Também. Que o prazer do texto de Clarah
aqui esboçado seja o de encontrar a obra da autora, de buscar o filme de Murilo
Salles sobre Camila, a rebelde personagem de vários romances da escritora. E
de ver, mesmo em meio a um mundo contemporâneo, as angústias da mulher
que ‘espera’, mas que opera a visibilidade por sua escrita.
Com Barthes (1973/1987, p. 68), mais uma vez, aqui encerramos: “Todo mundo
pode testemunhar que o prazer do texto não é seguro: nada nos diz que este
mesmo texto nos agradará uma segunda vez.”
Referências
AVERBUCK, Clarah. - Eu quero ser eu. Rio de Janeiro: Editora 7letras, 2013.
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Objetiva/ Alfaguara.
LAJOLO, Marisa. - Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004.
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