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O PODER DAS PLATAFORMAS DIGITAIS E IMPACTOS ECONÔMICOS E


POLÍTICOS SOBRE A AMÉRICA LATINA

Chapter · June 2022

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Jonas C L Valente
University of Oxford
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CAPÍTULO 7
O PODER DAS PLATAFORMAS
DIGITAIS E IMPACTOS ECONÔMICOS E

or
POLÍTICOS SOBRE A AMÉRICA LATINA

od V
aut
Jonas C. L. Valente109

R
o
Introdução
aC
As plataformas digitais vêm ganhando relevância como objeto de atenção
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tanto no debate público quanto na Academia nos últimos anos. Essas se tor-
naram a ponta de lança de um novo paradigma da informação e das diversas
visã
acepções associadas à digitalização, com robustos processos de coleta massiva
de dados, de processamento inteligente dessas informações e da oferta de
diferentes aplicações e serviços tanto nos mundos online quanto off-line. Esses
itor

sistemas tecnológicos assumiram a liderança do novo paradigma da informa-


a re

ção e avançaram nas pesquisas de ponta sobre soluções técnicas emergentes,


como computação quântica, inteligência artificial, algoritmos, Internet das
Coisas e realidade virtual e aumentada.
As plataformas ascenderam também como intermediários de novos
par

arranjos econômicos. Esses estão na esfera da produção tanto no uso de seus


serviços corporativos em indústrias consolidadas quanto na emergência de
Ed

novas plataformas voltadas ao agenciamento da força de trabalho em diversos


segmentos, do transporte privado e entrega de alimentos a tarefas específi-
cas que vêm sendo compreendidas sob a alcunha de “microtrabalho”. Esse
ão

processo, nominado de trabalho em plataforma por alguns autores, ou por


“uberização” por outros, vem se tornando uma alternativa de remuneração
s

para cada vez mais trabalhadores, especialmente no Sul Global.


ver

Ainda na esfera econômica, plataformas digitais também cresceram


como soluções na esfera da circulação, especialmente por meio do comércio

109 Mestre em políticas de comunicação e doutor em sociologia pela Universidade de Brasília, com tese sobre
plataformas digitais. É pesquisador do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB (LapCom-UnB),
do Laboratório de Tecnologia, Economia e Políticas da Comunicação da UFC (Telas-UFC) e do Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho da UnB (GEPT-UnB). É editor-assistente da Revista Eletrônica de
Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura (Eptic Online) e autor de livros sobre tecnologias
digitais, plataformas digitais, Internet e regulação da mídia.
198

eletrônico, e na promoção de bens e serviços com novas formas de publicidade


e anúncio de mercadorias. As finanças não escaparam à plataformização, com
esse modelo chegando tanto a transações envolvendo ações e criptomoedas
quanto em meios de pagamento digitais, como carteiras digitais.
Esses sistemas tecnológicos se tornaram alvo de preocupação pela sua

or
alta capacidade de mediadores chave dos fluxos de informação e de interações

od V
na Internet. Novas formas de desinformação (prática antiga mas que ascendeu

aut
a um novo patamar) receberam alertas, com afirmações de influência em pro-
cessos eleitorais e políticos em diversos países do mundo. A amplificação de

R
discursos de ódio, de notícias falsas e de conteúdos extremos por meio de seus
modelos de negócio e regras internas transformou tais agentes em ambientes

o
propícios aproveitados por forças políticas, especialmente de extrema-direita,
para a tentativa de disseminação de seus ideais e de combate a visões adver-
aC
sárias, indo além dos históricos ataques à esquerda e questionando aspectos
basilares da democracia liberal.

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Tais fenômenos não ocorreram isolados do desenvolvimento recente do
visã
capitalismo. Ao contrário, tomando a tecnologia em sua relação dialética com
a totalidade social, as plataformas foram impulsionadas pelas demandas do
sistema de esforços limitados de retomada após a crise de 2007-8 e deram um
itor

salto em seu uso com o advento da pandemia do novo coronavírus, quando


a re

passaram a mediar toda sorte de atividades, de aulas ao trabalho, passando


pelas compras do cotidiano. As plataformas digitais estão no centro também
de uma disputa geopolítica relacionada ao embate pela hegemonia global
entre Estados Unidos e China, que se materializa da camada da infraestrutura
nas tecnologias do 5G à camada de aplicações e conteúdos, onde plataformas
par

disputam o controle dos fluxos informacionais, interacionais e econômicos


Ed

na Internet.
Assim, as plataformas vêm contribuindo para influenciar campos diversos
da sociedade por meio de suas lógicas de funcionamento. Essa majoração de
ão

suas capacidades e escopo de mediação social vêm colocando esses agentes


sob escrutínio também no âmbito da Academia. Nesse sentido, países do Sul
Global veem cada vez mais atividades concentradas ou reguladas, direta ou
s

indiretamente, por agentes econômicos do Norte Global, sobretudo dos Esta-


ver

dos Unidos. Se a dependência é uma característica histórica, como mostram


no caso da América Latina autores da Teoria Marxista da Dependência como
Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e outros, esta é aprofundada a medida
que cada vez mais processos sociais são definidos e administrados por agentes
do Norte Global.
O presente capítulo tem por objetivo discutir a atuação das platafor-
mas digitais e seus diferentes modos de exercício de poder tendo como foco
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 199

os impactos sobre a América Latina, tomando a participação da região nos


mercados globais associados a ela e implicações em dois campos, na esfera
econômica no processo de plataformização do trabalho e na esfera política na
potencialização da desinformação nos países latino-americanos. Esses exem-
plos podem sugerir uma abordagem metodológica heterodoxa e de escopo

or
amplo, mas usamos essa circunscrição extensa do objeto exatamente para jogar

od V
luz, nos limites do desenvolvimento do argumento aqui, sobre o caráter social,

aut
político e econômico desses sistemas tecnológicos e sobre o exercício do poder
das plataformas, elencando problemáticas que merecem atenção, inclusive para

R
o desenvolvimento em trabalhos posteriores. Partindo deste intuito, o texto
é dividido em quatro partes. Na primeira, apresentaremos as bases teóricas e

o
conceituais do texto, tratando, sobretudo, das noções de plataformas digitais,
de sistemas tecnológicos e da teoria crítica da tecnologia. Na segunda parte,
aC
posicionaremos a América Latina nos mercados mundiais relacionados às
plataformas, sejam aqueles vinculados à Internet ou a segmentos específicos,
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problematizando assimetrias e a concentração e centralização de poder em


visã
suas diversas dimensões no Norte Global. Na terceira parte, o artigo discute o
primeiro exemplo das implicações da atuação das plataformas, nos processos
de trabalho. Na quarta, o texto irá se debruçar sobre outro exemplo, vinculado
itor

ao fenômeno da desinformação. Por fim, trará considerações conclusivas e


recomendações para trabalhos posteriores.
a re

1. Plataformas digitais como sistemas tecnológicos no capitalismo

A emergência da problemática pode ser vista nas nomenclaturas diver-


par

sas e em seu caráter interdisciplinar, bem como nos focos distintos. Entre os
vernáculos adotados, estão intermediários de Internet (MaCKINNON et al.,
Ed

2014), intermediários digitais (JIN, 2015), matchmakers (EVANS; SCHMA-


LENSEE, 2016), plataformas tecnológicas (GAWER, 2014), plataformas
online (HELBERG et al., 2018), plataformas (GILLESPIE, 2010) ou, o que
ão

adotamos no presente texto, plataformas digitais (HERSCOVICI, 2019)110.


Da mesma forma, as definições variam. Gillespie (2010) classifica as
s

plataformas como “sites e serviços que hospedam expressão pública, armaze-


ver

nam-na e utilizam-na da nuvem, organizam acesso a ela por meio de busca e


recomendação e a instalam em dispositivos móveis (s/p)”. A despeito da diver-
sidade existente de expressões deste fenômeno, segundo o autor o elemento em
comum entre serviços tão díspares como AirBnB, Apple Store e Kickstarter

110 Não será possível, nos limites desta apresentação, discutir cada uma destas contribuições, bem como as
demais apontadas ao longo do texto. O objetivo é combinar um panorama inicial da literatura com aspectos
chave para o entendimento crítico do objeto.
200

é a organização do conteúdo criado por terceiros para distribuição e acesso


por outras pessoas. Esses agentes buscam propagar um “mito da imparciali-
dade”, anunciando-se como espaços abertos à ação dos indivíduos. Helberg
et al. (2018, p. 1) entendem as plataformas como “arquiteturas sociotécnicas
que permitem e dirigem interações e comunicações entre usuários por meio

or
da coleta, processamento e circulação de dados de usuários”111. Andersson

od V
Schwarz (2017) demarca o conceito como sistemas que controlam, interagem

aut
e acumulam. Estas solidificam mercados, funcionam como redes sociais de
trocas e conformam arranjos materiais de “atividade rastreável”.

R
Parte da literatura propõe as plataformas como modelo ou paradigma
de arranjos societários mais amplos. Algumas abordagens lançam um aporte

o
mais descritivo das dinâmicas materiais desses agentes, no que vem sendo
chamado de “economia de plataforma” (KENNEY; ZYSMANN, 2016, p. 62),
aC
“um termo mais neutro que abrange um número crescente de atividades via-
bilizadas digitalmente em negócios, política e interação social”112. Em uma

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perspectiva mais crítica, Srnicek (2016) propõe esta ideia em um cenário
visã
no qual países ricos e de renda média são crescentemente dominados por
plataformas, pontuadas pelo autor como um novo modelo de negócio com
capacidade de extrair e controlar grandes quantidades de dados.
itor

Van Dijck et al. (2018) argumentam pela existência de uma “sociedade de


a re

plataforma”. Nesta, esses agentes estão inextricavelmente ligados às estrutu-


ras sociais, infiltrando-se em instituições e produzindo as suas novas formas.
Mas também são constructos não-neutros, compostos por valores e normas
em suas arquiteturas. Essa sociedade de plataforma é formada no nível micro
por “plataformas online”, arquiteturas digitais voltadas a organizar interações
par

entre usuários. Uma combinação dessas estruturas compõe o que os autores


Ed

chamam, no nível médio, de “ecossistemas de plataformas”, responsáveis por


uma infraestrutura núcleo central para os fluxos de dados.
Como apresentado em Valente (2019), as plataformas digitais podem ser
ão

compreendidas como sistemas tecnológicos (nos termos de Hughes [1993])


nos quais ocorrem atividades sobre uma base tecnológica, comandados por
proprietários (uma empresa, como no caso do Google, ou cooperativas, como
s

a plataforma de comércio europeia Fairmondo), mas das quais participam


ver

outros agentes (produtores, intermediários, usuários), cujos controle e gestão


jogam papel organizador chave e nos quais operam lógicas econômicas, prá-
ticas culturais e normas diversas (regulatórias e internas), a partir das quais

111 Tradução própria: “socio-technical architectures that enable and steer interaction and communication between
users through the collection, processing, and circulation of user data”.
112 Tradução própria: “more neutral term that encompasses a growing number of digitally enabled activities in
business, politics, and social interaction”.
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 201

esses sistemas promovem uma mediação ativa na realização dessas interações


e transações.
As plataformas digitais possuem como principal ativo a facilitação do
acesso entre diferentes agentes posicionados em distintos lados, conectando
usuários, vendedores, anunciantes e trabalhadores, entre outros, em diversos

or
arranjos. Um segundo elemento constitutivo é um papel de mediação ativa

od V
entre os diversos lados. Em que pese uma construção pelas plataformas de

aut
uma autorreferência para afirmar-se como espaços de facilitação desinteres-
sados, essas empresas estabelecem as regras do jogo, as lógicas por meio

R
das quais as interações e transações acontecem e os limites destas. Assim, as
plataformas digitais não são sistemas neutros. Ao contrário, buscam expandir

o
sua mediação ativa para cada vez mais esferas, de modo a controlar os fluxos
de informações, interações e transações operadas pelas distintas modalidades
aC
de usuários que participam do ecossistema que modelam. Em outras palavras,
as plataformas digitais são agentes que funcionam como mediadores ativos
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de interações, comunicações e transações entre indivíduos e organizações


visã
operando sobre uma base tecnológica digital conectada, especialmente no
âmbito da Internet, provendo serviços calcados nessas conexões, fortemente
lastreados na coleta e processamento de dados e marcados por efeitos de rede.
itor

A atuação desses sistemas tecnológicos a partir da diversificação de suas


a re

atividades ensejou um fenômeno da ascensão de agentes que serão denomi-


nados aqui de monopólios digitais. Estes são conglomerados que adquiriram
presença fortemente dominante em uma área, mas passaram a atuar para
além dela, assentados no exercício de poder a partir de sua base tecnológica,
que chamaremos aqui de “poder tecnológico”. O termo monopólios não é
par

empregado aqui como uma estrutura de mercado, como comumente utilizado


Ed

nas literaturas econômica e antitruste. O objeto deste debate tem observação


ancorada na perspectiva sociológica, mas com o intenso diálogo interdisci-
plinar característico do presente trabalho. Contudo, ele se refere a um fenô-
ão

meno que tem como protagonistas grandes plataformas digitais a partir de


seu movimento mais recente. São digitais, pois seus negócios são fortemente
centrados nas TIC e neste suporte de informação.
s

O fenômeno dos monopólios digitais é marcado por um conjunto de carac-


ver

terísticas. A primeira é um forte domínio de um nicho de mercado. Essas grandes


corporações alçam grandes voos assentadas em bases sólidas em um segmento
previamente dominado, no qual exercem uma condição monopolista. Asso-
ciada a esta, uma segunda característica é sua grande base de usuários. Esses
conglomerados atuam na marca de centenas de milhões ou de bilhões. Uma
quarta característica é a operação em escala global. Apesar de um ritmo menor
na internacionalização de algumas plataformas, como é o caso da Amazon,
202

outras já possuem atuação por todo o mundo. Uma quarta característica é o


espraiamento para outros segmentos além do nicho original. Este aspecto está
no núcleo do fenômeno, uma vez que diferencia esses agentes exatamente
pela sua capacidade de operar com qualidade e rapidez a estratégia de diver-
sificação de atividades.

or
Um quinto traço é o desenvolvimento de atividades intensivas em dados.

od V
A grande base de usuários, os serviços baseados em tecnologia, a lógica

aut
crescente de personalização e a importância do uso de dados para antecipar
demandas e reduzir as incertezas de realização dos produtos e serviços fizeram

R
com que esses grupos ampliassem a coleta dessas informações, em uma espiral
de vigilância de dados (dataveillance) sobre seus usuários. Uma sexta carac-

o
terística é o controle de um ecossistema de agentes que desenvolvem serviços
e bens mediados pelas suas plataformas e atividades. Se uma plataforma tem
aC
como traço distintivo o controle da intermediação das comunicações, inte-
rações e transações, o poder dos monopólios digitais está em tornar isso não

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apenas um recurso importante, mas em controlar e condicionar as relações
visã
no seu interior. Uma sétima e última característica envolve as estratégias
de aquisição ou controle acionário de concorrentes ou agentes do mercado.
A compreensão das plataformas passa, portanto, pelo entendimento de seu
itor

poder tecnológico e, mais especificamente, sobre o fenômeno da tecnologia e


a re

dos sistemas tecnológicos. Para Hughes (1993), esses são estruturas de “solu-
ção de problemas” formadas por componentes físicos (como transformadores,
postes e linhas elétricas em um sistema de distribuição de energia), de orga-
nizações (como seguradoras, empresas de manutenção ou bancos de investi-
mento), de conhecimentos científicos (como teorias preestabelecidas, testes de
par

laboratório e instrumentos de pesquisa) e normas legais (como leis, diretrizes


Ed

de órgãos reguladores e outras exigências). Seria fundamental acrescentar aqui


que além desses elementos, sistemas possuem trabalhadores e consumidores,
com formas de incidência distintas como já introduzido. “Um artefato tanto
ão

físico como não físico funcionando como um componente em um sistema


interage com outros artefatos, todos contribuindo diretamente ou por meio
de outros para objetivo comum do sistema” (HUGHES, 1993, p. 51). Estes
s

possuem, segundo o autor, tanto insumos (inputs) quanto produtos (outputs).


ver

O autor (1993) afirma que esses sistemas como “socialmente construídos”,


assim como com impactos no ambiente nos quais estão inseridos.
Essa construção social, conforme autores da Teoria Crítica da Tecnologia,
é forjada pelas relações sociais de produção capitalistas e assumem as suas
formas, lógicas de funcionamento e funções específicas dentro delas. Autores
como Feenberg (2002), Noble (2011), Winner (1986) e Trigueiro (2009) tra-
balham com essa perspectiva. A tecnologia é definida como a resultante dos
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novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 203

múltiplos vetores sociais em processos de disputa e soluções constituídas a


partir destes, ou “a soma de todas as determinações superiores que exibe em
seus vários estágios de desenvolvimento. Esta soma é suficientemente rica e
complexa para abranger numerosas possibilidades mediante trocas de ênfase e
exclusões” (FEENBERG, 1996, s.p.). “Tecnologia é uma construção política

or
e, assim, objeto de reconfigurações fundamentais dadas as mudanças no poder

od V
das partes envolvidas no design e implantação”113 (NOBLE, 2011, p. ix).

aut
Para Winner (1986, p. 22), os artefatos são “maiores ou menores peda-
ços de hardware de um tipo específico”, mas também podem ser lidos como
“formas de vida”114. Ele apresenta a provocação de assumir que os artefatos

R
“possuem política em si”. Trigueiro (2009, p. 51) vê a tecnologia como prática
humana socialmente contextualizada. “Tecnologia consiste em uma ativi-

o
dade humana, socialmente condicionada, que reúne um conjunto de meios
aC
– instrumentos e procedimentos – para a obtenção de um fim almejado”. A
“condição ontológica da tecnologia” é, para o autor, um espaço de múltiplas
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possibilidades, cuja realização se baseia em estruturas físicas, institucionais


e sociais, base que o autor vai chamar de “estrutura da práxis tecnológi-
visã
ca”)115. Em outra ocasião (VALENTE, 2019), buscamos complementar essa
abordagem propondo uma mirada processual que denominamos “regulação
tecnológica”, na qual a tecnologia se dá uma regulação sobre a tecnologia (os
itor

determinantes gerais e específicos do sistema), uma regulação DA tecnologia


a re

(no curso de seu desenvolvimento a partir do paradigma tecnológico e das


trajetórias tecnológicas) e uma regulação PELA tecnologia, em que os sistemas
tecnológicos impactam a sociedade de diferentes maneiras.
Tomar esses sistemas tecnológicos em sua relação dialética com a tota-
lidade do sistema capitalista implica reconhecer a forma social capitalista
par

da tecnologia e esses agentes como prestadores de bens e serviços atuando


em concorrência no mercado. No caso das plataformas, sua ampliação e o
Ed

fenômeno dos que chamamos aqui de monopólios digitais fez com que essa
análise de mercado venha se tornando cada vez mais complexa, pois um olhar
fragmentado sobre esses conglomerados pode ensejar uma mirada míope ou
ão

insuficiente. Assim, o exame da relevância e dos impactos das plataformas,


por meio, por exemplo, da já mencionada categoria de “poder de plataforma”
s

e do poder tecnológico das plataformas, torna-se desafiador tanto na circuns-


ver

crição do fenômeno quanto na coleta de dados acerca de como esse poder


se manifesta.

113 Tradução própria do original em inglês: ““technology is a political construct and, hence, subject to fundamental
reconfiguration given changes in the relative power of the parties involved in its design and deployment”.
114 O autor inspira-se em gramática adotada por Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas, mas também
em Marx e Engels a partir de sua Ideologia Alemã.
115 Esta fixa os limites e, ao mesmo tempo, as potencialidades da realização dessa prática. Este processo ocorre
de maneira dinâmica, dentro do qual esta ação interage com a estrutura, reforçando-a ou modificando-a.
204

2. A América Latina no novo paradigma da informação no


capitalismo neoliberal

As plataformas são a ponta de lança de um novo paradigma da informa-

or
ção ancorado no suporte digital, que se intensifica em determinadas áreas e se
espraia para novas, contribuindo para dar respostas a demandas de reprodução

od V
do capitalismo em sua fase neoliberal e atingido por uma crise sanitária e

aut
econômica causada pela pandemia do novo coronavírus. Como sistemas tec-
nológicos socialmente construídos, respondem às dinâmicas e vetores sociais

R
do capital, como apontado por Feenberg, Noble e Winner. Alinhamo-nos a
autores que caracterizam a atual etapa do capitalismo como neoliberalismo

o
(HARVEY, 2007; SPRINGER et al., 2016; SAAD FILHO, 2020) e nos afas-
tamos de visões laudatórias de uma transformação estrutural calcada nas tec-
aC
nologias digitais em termos como sociedade da informação, sociedade em
rede ou adjetivações diversas do sistema capitalista.

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Mas, se por um lado o sistema mantém-se estruturado sob as bases das
visã
relações sociais de produção capitalistas argutamente descritas por Marx, por
outro o nível de desenvolvimento de suas forças produtivas no campo das
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) assume uma configuração
itor

própria, em uma síntese daquilo que Feenberg chama de código técnico. Essa
a re

manifestação concreta, entre outros aspectos, é calcada em uma coleta massiva


de dados (que alguns autores chamam de Big Data e outros de datificação,
como Andrejevic [2013]), no processamento inteligente destes por algoritmos
(NOBLE, 2018) e sistemas de inteligência artificial (DYER-WHITEFORD
et al., 2019), gerando aplicações voltadas à predição e modulação de com-
par

portamentos a partir da criação de perfis. Esse paradigma surge como uma


esperança tecnosolucionista (como criticam os teóricos críticos da tecnolo-
Ed

gia) às limitações e crises do capital e ao desafio de retomada das taxas de


lucro, buscando formas de ampliação da produtividade e de racionalização
ão

dos processos produtivos e da circulação de mercadorias por meio do uso


dessas tecnologias, em articulação com o aprofundamento da financeirização
do sistema.
s

A relevância desse novo paradigma da informação do capitalismo neoli-


ver

beral do 1º quarto do século XXI elevou a centralidade dos agentes econômicos


associados a eles, como as plataformas. Desta forma, a divisão internacional do
trabalho passa, cada vez mais, pelas empresas capazes de converter conjuntos
robustos de dados em serviços a partir da exploração de força de trabalho que
vai de funcionários especializados (como engenheiros e desenvolvedores) a
trabalhadores jogados pela crise econômica para os precarizados modelos
de plataformas de mediação de trabalho. As plataformas conseguiram, pelas
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 205

características debatidas acima, assumir a condição de principais agentes


econômicos desse paradigma, embora por óbvio não sejam as únicas.
Essas operaram uma reconcentração desses mercados nos Estados Uni-
dos, na China e em outros países ricos (da Europa e da Ásia, como Japão),
promovendo novas formas de superexploração do trabalho no Sul Global.

or
Com a digitalização da produção e da circulação, plataformas conseguiram

od V
suplantar concorrentes de nações do Sul Global, beneficiando-se de efeitos

aut
de rede (EVANS; SCHMALANSEE, 2016) e de fortes barreiras à entrada116.
Jin (2015) chama a emergência desse fenômeno o nome de “imperialismo de

R
plataforma”, composto não somente pelos avanços materiais e de poder de
mercado desses agentes como por uma dimensão simbólica, de construção de
uma hegemonia cultural sob uma roupagem construída de conquistas pessoais

o
de empreendedores do Vale do Silício. “A ideia de imperialismo de plataforma
aC
se refere a uma relação assimétrica de interdependência em tecnologias e
cultural relacionadas a plataformas entre o Oeste, principalmente os Estados
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Unidos, e países em desenvolvimento”117 (JIN, 2015, p. 67). O peso dessas


visã
empresas contrasta com a baixa inserção da América Latina nos mercados
globais associados à Internet e às plataformas digitais.
Das 100 maiores firmas do mundo, 59 delas estão nos Estados Unidos,
18 estão sediadas na Europa e 14 têm suas operações baseadas na China, 7
itor

na Ásia, 1 na Arábia Saudita e 1 no Canadá. Tomados os dados dos Estados


a re

Unidos, o setor de tecnologia é o mais representativo em valores de mercado,


abarcando US$ 7,79 trilhões. Entre as companhias chinesas, essa área tam-
bém foi a com maior valor de mercado combinado, com US$ 1,51 trilhão. As
empresas com maiores capitalizações de mercado em 2021 eram Apple (US$
par

2,051 tri), Saudi Aramco (US$ 1,92 tri), Microsoft (US$ 1,77 bi), Amazon
(US$ 1558 bi), Alphabet (US$ 1,393 bi) e Facebook (US$ 839 bi) (WAL-
Ed

LACH, 2021). Segundo relatório da consultoria Atlântico (2020), em 2020 a


capitalização de mercado de firmas de tecnologia equivalia na América Latina
a 2,2% do Produto Interno Bruto da região. No mesmo ano, esse índice era de
ão

13% na Índia, de 27% na China e de 39% nos Estados Unidos. Na América


Latina, a ascensão das plataformas digitais ocorreu com a empresa de comér-
s

cio eletrônico Mercado Livre, que em 2020 atingiu o topo da valorização de


ver

mercado com US$ 59 bilhões, seguida por Vale (US$ 58 bilhões), Petrobrás
(US$ 55 bilhões) e Walmart Mexico y Centroamerica (US$ 43 bilhões). Dez

116 O mercado da publicidade digital é um dos exemplos. O Facebook e a Alphabet conseguiram constituir um
duopólio global da publicidade digital, angariando investimentos e retirando esses de empresas nacionais,
como veículos tradicionais mídia.
117 Tradução própria do original em inglês: “The idea of platform imperialism refers to an asymmetrical relationship
of interdependence in platform technologies and culture between the West, primarily the U.S., and many
developing countries”.
206

anos antes, as empresas no topo da lista eram Petrobrás (US$ 244 bilhões),
Vale (US$ 167 bilhões), Santander (US$ 100 bilhões) e Itaú (US$ 93 bilhões)
(ATLANTICO, 2020).
As desigualdades verificadas nas empresas de tecnologia e nas platafor-
mas entre nações mais ricas e o Sul Global podem ser identificada também

or
nos distintos graus de conectividade da sociedade nos diferentes continentes e

od V
regiões. Em 2021, 4,03 bilhões de pessoas estavam conectadas, o que corres-

aut
pondia a 51,4% da população (WE ARE SOCIAL, 2021). As desigualdades
de acesso eram evidentes. Enquanto os índices de conectividade chegavam a

R
90% na América do Norte e a 93% na Europa Ocidental, na América Latina
eles eram de 72%. Quando comparado com outras regiões do Sul Global, a

o
diferença aumentava. Na África do Leste a taxa era de 24% e no centro do
continente, 26%.
aC
Quando considerada a velocidade média de acessos móveis em um grupo
de países selecionados, os países com as maiores eram aqueles mais ricos,

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como os Emirados Árabes Unidos, Coreia do Sul, China, Austrália, Arábia
visã
Saudita, Holanda, Canadá, Suíça, Nova Zelândia e Dinamarca. Já na base
do ranking dos países analisados estavam Índia, Gana, Indonésia, Colômbia,
Egito, Filipinas, Rússia, Quênia, Malásia, Argentina e Brasil. As três nações
itor

latino-americanas com índices abaixo da média mundial, de 42,70 Mbps.


a re

No ranking de velocidade de conexões fixas em países selecionados, Brasil,


Argentina, México e Colômbia também ficaram abaixo da média mundial,
de 96,43 Mbps (WE ARE SOCIAL, 2021).
As plataformas, sobretudo as maiores e sediadas nos Estados Unidos,
assumiram a dominância dos mercados de aplicações e conteúdos na Internet.
par

Na lista de 20 sites mais acessados do mundo do ranking Similarweb, nenhum


Ed

deles é de países latino-americanos, 15 estavam sediados nos Estados Unidos,


dois eram russos, um na China, um no Japão e outro na França. As linguagens
mais comuns na Internet são o inglês (60,4%), Russo (8,5%), Espanhol (4%),
ão

Turco (3,7%) e Persa (3%) (WE ARE SOCIAL, 2021). O Google possuía em
2020 91,4% da participação de mercado.
No ranking de redes sociais mais utilizadas em 2021, quatro das cinco
s

primeiras são do Facebook (na ordem, Facebook App em 1o, Whatsapp em


ver

3o, Facebook Messenger em 4º e Instagramem 5o) e a 2ª estava o YouTube,


do conglomerado Alphabet, que também controla o Google. Quando consi-
derados os 10 primeiros, surgem redes sociais chinesas, como WeChata (6º),
TikTok (7º), QQ (8º) Douyin (9º) e Sina Weibo (10º) (WE ARE SOCIAL,
2021). Contudo, desses somente o TikTok tem uma penetração mais espraiada
por diferentes países, enquanto os demais possuem grande base de usuários
pelos números absolutos da grande população chinesa. A lista das aplicações
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 207

mais populares de streaming, domínio das plataformas e de empresas sobre-


tudo estadunidenses, tem YouTube em 1º (EUA), MXPlayer em 2º (Índia),
Netflix em 3º (EUA), HotStar em 4º (Índia) e Amazon Prime Vídeo (EUA)
(WE ARE SOCIAL, 2021). No ranking de países que pagam por conteúdo
digital, México, Brasil e Argentina tiveram em 2021 médias maiores do que

or
a mundial, registrada em 72,5% dos usuários de Internet.

od V
A América Latina, apesar de não ter nações com populações como China,

aut
Índia e Estados Unidos, tornou-se um grande mercado para as principais
plataformas. O Brasil é o 4º mercado do Facebook, com 130 milhões de

R
usuários, e o México é o 5º, com 93 milhões de usuários. O Espanhol é o 2º
idioma mais falado na plataforma, com 340 milhões de usuários, atrás apenas

o
do inglês, com 1,1 bilhão de usuários. No Instagram, o Brasil é o 3º mercado,
aC
com 99 milhões de usuários, e o México o 8º, com 32 milhões de usuários. Já
no YouTube o Brasil é 3º mercado, com 127 milhões de usuários, e o México
o 8º, com 74,1 milhões de usuários. No Twitter, o Brasil aparece em 5º, com
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

16,2 milhões de usuários, e o México em 9º, com 11 milhões. No segmento


visã
de comércio eletrônico, O Brasil possuía em 2020 5,8% da penetração de
compras e vendas online e o México, 5%. Os índices eram abaixo dos regis-
trados por exemplo, na Alemanha (11,7%), nos Estados Unidos (15,2%) e na
itor

China (28,2%) (ATLANTICO, 2020).


a re

Os dados indicam o papel periférico da América Latina nos mercados


associados à Internet e às plataformas digitais sob a ótica da inserção interna-
cional de seus capitais individuais. Por outro lado, evidenciam como a região
tem grandes penetrações dos monopólios digitais, alimentando a espiral inces-
sante de coleta de dados para produção de perfis e mapeamento de demandas.
par

No caso das plataformas de mediação de trabalho e de comércio eletrônico


Ed

(atividades também realizadas por Facebook, Google e Apple), essas aboca-


nham parte da mais-valia explorada por meio da taxação de tarefas e serviços
na esfera da produção e de transações na esfera da circulação.
ão

Como explanado ao longo do texto, o presente capítulo visa abordar o


poder de plataforma problematizando o crescimento do seu escopo em dife-
rentes atividades. Sem condições de desenvolver longamente o argumento118,
s

trabalharemos agora dois exemplos de impactos da atuação das plataformas na


ver

América Latina. O primeiro será o crescimento da plataformização do trabalho,


com suas consequências associadas à precarização e à redução da proteção dos
trabalhadores. O segundo será a disseminação da desinformação na região,
em um processo com atuação de grupos políticos locais mas potencializado
pelo modelo de negócio desses sistemas tecnológicos.

118 O que tentamos de forma mais completa em Valente (2020).


208

3. Impactos econômicos

A plataformização do trabalho é um fenômeno que vem crescendo


sobremaneira nos últimos anos (DE STEFANO; ALOISI, 2018). Adotamos
aqui o termo trabalho em plataforma, designando tanto aquelas relações de

or
funcionários diretos ou indiretos dessas empresas (que chamamos de traba-

od V
lho empregado por plataformas) como aquelas que ocorrem diretamente ou

aut
indiretamente entre seus usuários (que chamamos de trabalho mediado por
plataformas)119. Segundo Drahokoupil e Piasna (2017), as plataformas de

R
trabalho operam um agenciamento, conectando oferta e demanda de força
de trabalho. Elas desenvolvem este tipo de atividade de acordo com os prin-
cípios de mercado e reduzindo fricções, atuando sobre as falhas de mercado

o
e diminuindo os custos de transação. As plataformas conseguem operar uma
aC
coordenação da compra e venda da força de trabalho cuja flexibilidade e pre-
cisão permitem novas formas precárias, dispensando a fixação de contratos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


formais ou até mesmo a jornada por tempo, abrindo espaço para a jornada
visã
por peça (nos dizeres de Marx).
Relatório de OCDE et al. (2020) alertou para o cenário complexo diante
da crise econômica provocada pela pandemia da covid-19 que golpeou os
países em um momento de debilidades estruturais, levando os países a PIBs
itor

mínimos (com retração de 9% em 2020) e ampliando as desigualdades. No


a re

momento da pandemia, quase 60% dos trabalhadores da América Latina


eram informais.
Levantamentos mostram a disseminação dessa modalidade em países
da América Latina. Segundo a consultoria We Are Social (2021), em 2021
par

no Brasil 54,1% dos usuários utilizavam plataformas de transporte privado,


índice que foi de 49,5% no México, e 29,7% na Colômbia, os três países
Ed

acima da média mundial, que ficou em 28,3%. Já as plataformas de entrega


de refeições e alimentos eram acessadas no mesmo ano por 66,6% dos inter-
nautas no Brasil, 62,3% no México, 60,9% na Colômbia, todos índices acima
ão

da média mundial, registrada em 55,5%.


Conforme relatório da Comissão Econômica para América Latina e
s

Caribe (CEPAL) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2021), a


ver

pandemia gerou em 2020 uma queda na taxa de ocupação de -5,5%. O trabalho


em plataforma, se permite novas alternativas, tende a arranjos precários e com
menos direitos. Na América Latina, as áreas com maiores demanda e oferta
de trabalho em plataforma em 2019 eram design e meios de comunicação
(respectivamente, 39% e 30%), tradução e linguagem (20% nos dois casos),

119 Não nos aproximamos de acepções mais genéricas como “trabalho digital” (FUCHS, 2014) ou termos como
“uberização do trabalho” (ABÍLIO, 2019). Para as críticas a esses, ver Valente (2021).
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 209

TICs e software (20% e 18%), manejo de dados (5% e 8%) e contabilidade


e recursos humanos (3% e 5%). No levantamento da CEPAL e da OIT, as
vantagens principais apontadas por trabalhadores entrevistados são a possibi-
lidade de sair do desemprego (19% na Argentina, 27% na Colômbia e 30% na
Costa Rica). Entre os que buscam essa recolocação estão faixas mais jovens.

or
Em relação à remuneração, a média global de plataformas de trabalho

od V
(OIT, 2021) era de US$ 4,9 quando consideradas apenas as remuneradas e

aut
de US$ 3,4 quando consideradas as não remuneradas. A pesquisa identificou
na República Dominicana pagamentos menores do que os para funções com
o mesmo nível educacional. No Chile, os trabalhadores de entrega obtêm

R
menores ganhos. Na Colômbia, a média de remuneração considerando as horas
não remuneradas ficou em 71% do salário médio dos empregados. Na capital

o
equatoriana, Quito, foi constatada uma queda das receitas de entregadores a
aC
partir de 2019, o que se intensificou em 2020 com a chegada da pandemia
(CORDERO; DAZA, 2020b).
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Cortina (2020) caracteriza as plataformas como “agentes de sepultamento


de salário” ao incrementarem a concorrência entre a força de trabalho, redu-
visã
zindo as receitas por trabalhador, e por impor a esses custos que anteriormente
seriam dos empregadores. Ocorre o fato assim de que nesse arranjo os meios
de produção de cada trabalhador não são adquiridos pela plataforma, mas pelo
itor

próprio indivíduo, externalizando os custos de produção. Um levantamento


a re

na cidade de Santiago indicou que 70% dos entregadores tinham comprado


seu carro ou moto para essa finalidade.
O estudo da CEPAL e OIT (2021) também revelou que não há benefí-
cios a esses trabalhadores, com exceção de benefícios muito limitados e em
par

poucos casos. O modelo de negócio das plataformas tenta impor uma relação
de prestadores de serviço independentes como forma de evitar quaisquer
Ed

responsabilidades por condições de trabalho ou obrigações com seguridade


social para esses trabalhadores. Na Argentina, 54,5% de trabalhadores em
plataforma ouvidos contaram realizar algum tipo de contribuição para o sis-
ão

tema de seguridade social, como por meio de um tributo único previsto no


país para autônomos.
As jornadas em geral são muito longas, seja para maximizar os ganhos
s

ou para compensar os tempos não remunerados em que esperam a demanda


ver

de uma tarefa. Levantamento global da OIT (2021) apontou uma jornada


média de 65 horas de um motorista de plataformas de transporte privado.
Na média, 1/3 do tempo não é remunerado. Conforme o estudo da CEPAL
e OIT (2021), na Costa Rica, 68,1% dos trabalhadores de plataforma rela-
taram trabalhar mais de 40 horas por semana, e 47,7% mais de 50 horas. O
sistema de metas adotado por algumas plataformas impõe uma obrigação de
210

quantidade de tarefas a serem executadas, independentemente das horas em


um determinado período.
Outro problema está na estabilidade e segurança do trabalho. Em geral
as plataformas fixam um “contrato” pela inscrição do trabalhador no cadastro
de indivíduos que podem ser acionados para as tarefas sob demanda. Segundo

or
a OIT (2021), no mundo em média 19% dos motoristas de transporte privado

od V
e 15% dos entregadores já tiveram suas contas desativadas. No Brasil, os

aut
mecanismos sem transparência e sem justificativa de avaliação e desligamento
foram um dos pontos centrais das reivindicações das paralisações nacionais

R
de entregadores de plataformas em 2020 (VALENTE et al., 2020). Soma-se
a isso o risco associado aos trabalhos, como a acidentes e roubos. Na Cidade
do México, 40% de entregadores ouvidos relataram ter sofrido acidentes e

o
23% já haviam sido roubados (ALBA VEGA et al., 2021). Levantamento no
aC
Equador com entregadores revelou que 83,6% estavam descontentes com
as formas de funcionamento dos apps e 90,4% estavam insatisfeitos com a

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


remuneração oferecida (CORDERO; DAZA, 2020b).
visã
si bien estas modalidades representan nuevas oportunidades laborales,
tienden a contribuir a una precarización del mercado laboral. Esto no solo
implica un deterioro de la calidad del empleo, sino que también puede
itor

incidir en que por lo menos ciertos segmentos de la población perciban


a re

de manera creciente las condiciones laborales precarias como una carac-


terística normal de los mercados de trabajo de América Latina (CEPAL;
OIT, 2021, p. 38).

Para Cordero e Daza (2020a), as plataformas potencializam as debilida-


par

des dos mercados laborais da América Latina em suas características estrutu-


rais de informalidade, precariedade e desigualdades de gênero, classe e raça,
Ed

com vestígios coloniais. A pandemia fez ampliar essa alternativa, espraiando


seu modelo de negócio e seus arranjos precários e flexíveis em diversos seto-
ão

res. Nos países em desenvolvimento, onde as nações latino-americanas estão


incluídas, o trabalho em plataforma é a principal fonte de recursos para 44%
dos respondentes do levantamento global da OIT (2021).
s
ver

4. Impactos políticos e culturais

O segundo exemplo discutido nesse artigo trata dos impactos políticos e


sociais das plataformas digitais a partir da problematização das consequências
da desinformação na região. Como diversos autores alertam, o fenômeno não
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 211

é novo120, mas ganhou um novo patamar com as possibilidades de alcance,


velocidade e direcionamento, bem como com a transformação em uma prática
barata e lucrativa. Assim, a desinformação deixou de ser apenas uma estratégia
de disputa política e cultural, mas também um nicho de negócios diante dos
modelos de monetização das plataformas digitais. Embora haja um razoável

or
consenso sobre algumas de suas características, há ainda uma certa polissemia

od V
e diversidade conceitual acerca do fenômeno.

aut
Em documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), Botero (2017)

R
caracteriza as chamadas fake News como difusão de informação falsa sabi-
damente enganosa e com a intenção de enganar o público ou parte das pes-

o
soas. O conceito, assim, não abrange a sátira nem a propaganda ou outras
formas discursivas caracterizadas pela tentativa de convencimento. Cortés e
aC
Isaza (2017, p. 5) definem desinformação como “contenidos deliberadamente
falsos que se publican en sitios web cuya apariencia intenta ser formal y
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auténtica”. O seu objetivo é enganar o usuário e se difundem também em


visã
redes sociais com mensagens orgânicas ou pagas (por meio de métodos como
impulsionamento ou patrocínio).
As plataformas digitais elevaram seu alcance e velocidade a patamares
itor

impensáveis e se tornaram indispensáveis às novas táticas de desinformação


a re

(DELMAZZO; VALENTE, 2019). O modelo de negócios calcado na coleta


e processamento de dados é convertido em diversos mecanismos e estratégias
de estímulo ao engajamento, sistema onde os conteúdos falsos, extremos e
“virais” caem como uma luva, aproveitando as repercussões (positivas e nega-
tivas) para assumirem locais de destaque nos algoritmos de recomendação.
par

Estudos (TUFECKI, 2018) indicaram como plataformas como o YouTube


Ed

promovem conteúdos extremos e radicalizados, dando visibilidade a teorias


da conspiração.
As plataformas são desenhadas para manter os usuários no seu interior
ão

e para que esses “reajam” às publicações, razão pela qual, por exemplo, o
Facebook mudou de um botão de “like” para diferentes reações. As arquitetu-
ras e o design de plataformas como YouTube, Google, Facebook e Instagram
s

dificultam a compreensão das fontes das informações e da diferenciação entre


ver

conteúdo orgânico e patrocinado (uma das estratégias básica de desinforma-


ção). No Google, por exemplo, a rotulagem dos anúncios é pouco perceptível

120 Especialmente na América Latina, onde veículos de imprensa sempre se utilizaram desse expediente para
promover grupos políticos aliados e combater adversários, o que foi visto durante as ditaduras do Cone Sul
quanto no ascenso do neoliberalismo
212

e muitas vezes usuários clicam em anúncios achando que estão entrando em


sites “relevantes” (VALENTE, 2019).
A desinformação é amplificada por sua circulação em cadeia. Em redes
socais como Facebook ou em redes sociais de mensageria como Whatsapp,
a lógica de difusão por meio do compartilhamento adiciona uma espécie de

or
“endosso” às mensagens, fortalecendo sua visibilidade por laços de aproxi-

od V
mação e confiança. No caso das mensagerias onde a autoria original não é

aut
mantida, como no Whatsapp, torna-se ainda mais difícil distinguir entre quem
produziu e quem compartilhou o conteúdo (ALSUR, 2019). A construção de

R
redes de interação entre usuários faz, assim, com que as campanhas percam seu
tom oficialista, inclusive com materiais fabricados para parecerem “amadores”.

o
Outro mecanismo amplificado pelas redes sociais é a possibilidade de
uso de sistemas automatizados. Esses podem ser empregados para diversas
aC
finalidades. A mais conhecida são os bots, contas automatizadas que simu-
lam usuários humanos. Estas são instrumentos para artificialização do debate

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


público, para subir palavras chave (hashtags) ou para simular apoios ou crí-
visã
ticas a determinada pessoa, ideia ou publicação. Outro exemplo de sistemas
automatizados ou semiautomatizados são programas para disparo em massa,
utilizados juntamente a redes sociais de mensageria. Com isso, o contratante
itor

do serviço pode administrar uma quantidade de grupos e difundir conteúdos


a re

em escalas muito superiores ao que uma equipe de militantes ou integrantes


de campanhas podem fazer.
Outro fator chave na equação é a existência e atuação de organizações
políticas que aproveitam esse ambiente propício para empreender suas estraté-
gias políticas de defesa de seus projetos e ataques a adversários. Esses métodos
par

vêm sendo adotados sobretudo por grupos de extrema-direita, como pode ser
Ed

visto em diversos países do mundo (Estados Unidos, Hungria, Itália) e também


na América Latina, como no Brasil, na Bolívia e no Peru. Mas o fenômeno
não se restringe apenas à extrema-direita, como será visto, reconfigurando nas
ão

plataformas digitais as táticas históricas de propaganda antissocialista, anti-


progressista e antidemocrática que marcam a região ao longo de sua história.
O relatório do Joint Research Centre da União Europeia (LEWANDO-
s

WSKY; SMILLIE, 2020) sintetiza os efeitos das plataformas e outras tec-


ver

nologias digitais sobre o debate público e os processos políticos elencando


quatro pontos de pressão: 1) a mercantilização da atenção das pessoas para
fins econômicos a partir da modulação dos comportamentos humanos; 2) a
regulação promovida pelas arquiteturas informacionais e a maneira como
recursos, ferramentas e configurações determinam ou estimulam as esco-
lhas no interior desses sistemas tecnológicos; 3) a moderação de conteúdos
por meio de algoritmos, cujas lógicas e critérios de funcionamento são nada
TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 213

transparentes; e, por fim, 4) o crescimento da desinformação entre os conteú-


dos consumidos. A ação dessas novas dinâmicas traz sérios riscos de ataque
à democracia.
Assim, as plataformas digitais efetivam a dinâmica da regulação tec-
nológica. Construídas socialmente a partir das demandas gerais do sistema,

or
elas identificaram a demanda por formas de coleta e processamento de dados,

od V
sobretudo para publicidade e serviços personalizados, e incrementaram tais

aut
dinâmicas a patamares globais de bases de bilhões de usuários. Essas ferra-
mentas e serviços não ficaram restritos às finalidades comerciais. A capacidade

R
de segmentação e direcionamento de mensagens foi logo aproveitada por
grupos políticos com recursos para financiar campanhas baseadas em perfis

o
psicológicos com alto potencial de sucesso, como o escândalo da Cambridge
Analytica, as eleições dos Estados Unidos em 2016, o Brexit no mesmo ano
aC
e o uso em outros pleitos eleitorais evidenciam, inclusive na América Latina.
Nas eleições presidenciais do México em 2018, circularam pesquisas
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falsas atribuídas ao New York Times apontando um candidato como favorito,


visã
assim como vídeos de supostos apoios de Vladimir Putin e de Nicolás Maduro
ao candidato que viria a vencer o pleito, López Obrador. Na Colômbia, a
agência de checagem AFP Colômbia listou três mentiras mais virais contra
itor

os principais candidatos, Ivan Duque e Gustavo Petro. Uma delas dizia que a
a re

vitória de Duque levaria a um retorno das FARC à guerrilha. O candidato de


esquerda Gustavo Petro foi associado aos regimes de Cuba e da Venezuela,
acusado de tentar implementá-los no país. Uma mensagem falsa em uma
rede social foi compartilhada inclusive pelo ex-presidente de direita Álvaro
Uribe, que possuía cinco milhões de seguidores. Petro também foi vinculado
par

às FARC, com mensagens e fotos falsas. No pleito colombiano, também cir-


Ed

cularam mensagens sobre supostas fraudes eleitorais. Foi difundido um vídeo


manipulado supostamente atribuído à missão de observadores externos com
suspeitas que reforçavam a ideia da fraude eleitoral.
ão

No Chile, houve questionamentos sobre o papel da desinformação no


abate da candidatura de esquerda e na viabilização a vitória de candidato de
direita Sebastian Piñera à vitória em 2017 (HERNANDEZ, 2018). Correntes
s

difundidas por redes sociais novamente associavam o candidato de esquerda,


ver

Alejando Guillier, ao regime venezuelano. Uma mensagem falsa atribuída a


Nicolás Maduro foi forjada com apoio do postulante ao Palácio La Moneda.
Políticos e lideranças da direita difundiram a ideia de que o projeto de governo
do candidato da esquerda era transformar o Chile em uma Venezuela, fenô-
meno que ganhou o nome de “Chilezuela”. Um assessor de Piñera contribuiu
para difundir o discurso (HERNANDEZ, 2018).
214

As eleições presidenciais de 2018 também foram marcadas por desinfor-


mação. Pesquisadores em parceria com a agência de checagem Lupa (MARÉS;
BECKER, 2018) analisaram 347 grupos no Whatsapp durante o primeiro turno
do pleito e revelaram que apenas 8% das principais imagens compartilhadas
no período no aplicativo de mensageria eram verdadeiras. Um levantamento

or
(AVAAZ, 2018) concluiu que mais de 98% dos eleitores do candidato de

od V
extrema-direita que se sagrou vencedor, Jair Bolsonaro, foram expostos a

aut
uma ou mais notícias falsas durante a campanha – e que mais de 89% deles
acreditaram nas mentiras divulgadas. Outra pesquisa do Instituto Atlas Polí-

R
tico apontou que 36% do eleitorado entrevistado acreditara que o candidato
do PT, Fernando Haddad, havia distribuído um “kit gay” para crianças nas

o
escolas quando ocupou o Ministério da Educação durante a gestão de Luís
Inácio Lula da Silva (MENDONÇA, 2018). Após a eleição, a gestão de Jair
aC
Bolsonaro elevou a desinformação a estratégia de comunicação de governo.
Base de dados da agência de checagem Aos Fatos identificou até julho de

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2021 3.402 declarações falsas ou distorcidas em 931 dias como presidente121.
visã
A desinformação continuou presente em processos eleitorais, e ganhou
um novo peso com a chegada da pandemia do novo coronavírus. Levan-
tamento da consultoria Knewin (2020) elencou a ocorrência do fenômeno
itor

em quatro países latino-americanos em 2020: Brasil, Argentina, México e


a re

Colômbia, e a repercussão do problema, com reações de órgãos públicos,


sociedade civil e outros atores. Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fio-
cruz) brasileira (2020) mostrou que 73,7% das notícias falsas sobre o novo
coronavírus circularam pelo WhatsApp. Outros 10,5% foram publicadas no
Instagram e 15,8% no Facebook. No Brasil, a desinformação não ficou apenas
par

nas redes sociais, e mais uma vez surgiu como discurso oficial. O presidente
Ed

Jair Bolsonaro difundiu desinformação sobre tratamentos precoces, como na


promoção dos remédios cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina, além
de questionar as orientações de autoridades de saúde sobre o distanciamento
ão

social e a necessidade de máscara. Laguna (2020) indicou o crescimento do


fenômeno na Nicarágua durante a pandemia, também com uma postura do
presidente Daniel Ortega de negar ou desconsiderar as orientações das autori-
s

dades de saúde. Em um levantamento do Instituto Gallup sobre a capacidade


ver

de enfrentamento da pandemia identificou que 57% da população não tinha


confiança alguma na gestão do Executivo.
Tanto nos contextos eleitorais quando diante da difusão de conteúdos
desinformativos durante a pandemia, as plataformas adotaram um conjunto
de medidas com o discurso de tentar conter a difusão de desinformações

121 Informação disponível em: https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/.


TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO NAS AMÉRICAS:
novas fronteiras e dilemas do capitalismo contemporâneo
Coleção Américas Compartilhadas – v. 6 215

sobre temas diversos, conforme apontado anteriormente. Análise de Barbosa


et al. (2021) apontou a fragilidade dessas iniciativas, em geral descoordena-
das, pouco transparentes, com eficácia limitada e insuficientes, evidenciando
a indisposição óbvia das empresas alterar seu modelo de negócios mesmo
quando este pode contribuir para difundir o negacionismo contra vacinas ou

or
contramedidas de combate ao coronavírus.

od V
Ugarte (2020) analisa o papel da desinformação durante a pandemia do

aut
novo coronavírus, com foco na América Latina. O autor sugere uma relação
entre a desinformação e crises epistêmicas relacionadas à ciência e crises polí-

R
ticas relacionadas à democracia. O modelo de democracia do autor está nos
marcos do modelo liberal burguês, assim como em diversos documentos de

o
países do Norte Global, como no texto da Comissão Europeia (LEWANDO-
WSKY; SMILLIE, 2020) e em recomendações de relatorias para a liberdade
aC
de expressão da Organização das Nações Unidas. Não por acaso em geral
surgem recomendações como o fortalecimento do jornalismo e de mais infor-
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mações e receios de regulações estatais mais efetivas sobre as plataformas.


visã
Na América Latina, contudo, o histórico de dependência e de superexplo-
ração da classe trabalhadora a partir de uma aliança entre burguesia dos países
centrais e burguesias nacionais tem na desinformação, como já afirmado,
itor

uma prática histórica. O novo modelo dessa estratégia de luta política, com a
a re

emergência das plataformas digitais, confere às elites políticas e econômicas


dos países da regiões novos instrumentos poderosos para impor suas agendas
antipopulares, eleger seus candidatos, derrubar presidentes (como os casos de
Dilma Rousseff no Brasil e de Evo Morales mostram) e combater as mobiliza-
ções dos trabalhadores, mulheres, negros, indígenas e das classes populares,
par

como nos protestos do Chile em 2019, das revoltas na Bolívia após o golpe
Ed

contra Evo ou nas paralisações nacionais na Colômbia em 2021.

Considerações conclusivas
ão

O presente texto teve como objetivo discutir o poder das plataformas


digitais e seus impactos sobre a América Latina. A análise desses objetos
s

coloca uma série de desafios, pela diversidade de atividades desempenhadas.


ver

Optamos por fugir de uma abordagem temática específica tentando jogar luz
sobre o fenômeno da ascensão das plataformas como novas estruturas de
mediação social que espraiam suas capacidades de regulação das experiên-
cias sociais, sobretudo no ambiente online mas não somente. Partimos das
leituras da teoria crítica da tecnologia, que afirma o desenvolvimento dos
sistemas tecnológicos como atravessados por interesses e disputas sociais,
econômicos, políticos e culturais. Abordamos nosso modelo da Regulação
216

Tecnológica em que propomos uma síntese a partir de uma visão processual da


tecnologia sob o capitalismo em sua forma social e como produtos e serviços
em concorrência nos mercados.
Partindo dessas bases, tomamos o recorte do papel da América Latina nos
mercados associados às plataformas e dos impactos dessas na região. Foi pro-

or
blematizada a divisão internacional do trabalho no setor da informação e das

od V
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) que tem recentemente as

aut
plataformas como seus principais agentes econômicos e políticos. Nessa nova
divisão, a América Latina assume novas formas de dependência, não apenas

R
pela fragilidade de seus capitais nas disputas internacionais, mas sobretudo
pela sua condição de mercado consumidor e de parcela de fornecedores de

o
dados para as práticas de vigilância comercializada das plataformas digitais
para o processamento e oferta de aplicações e serviços personalizados, naquilo
aC
que Jin chamou de “imperialismo de plataforma”.
Nosso enquadramento metodológico primou por uma visão integrada, mas

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na última parte do texto, em que tratamos dos impactos, optamos por trazer dois
visã
exemplos que contribuíssem para a compreensão desses efeitos em esferas espe-
cíficas da sociedade. Neste sentido, apontamos o crescimento do trabalho em
plataforma na América Latina e como esse aprofunda e dá novos contornos às
estruturas laborais precárias e flexíveis nas nações da região, impondo uma sorte
itor

de novos desafios a partir da demanda do capital de ampliar e espraiar as dinâ-


a re

micas de superexploração características do capitalismo dependente da região.


Analisamos também como exemplo nas esferas política e cultural a ascen-
são de novos modos de desinformação impulsionados pelas lógicas de funcio-
namento das plataformas digitais, por seus modelos de negócio calcados em
par

massiva coleta de registros e processamento de dados, para o qual a promoção


do engajamento funciona como combustível aproveitado por grupos políticos
Ed

da direita e extrema-direita para novas estratégias de disputa de hegemonia


e imposição de agendas antipopulares nos países latino-americanos, o que se
refletiu tanto na eleição de candidatos de direita e extrema-direita quanto em
ão

golpes e na repressão de mobilizações e revoltas populares.


A compreensão do poder de plataforma e de seus impactos sobre o Sul
Global e, mais especificamente, sobre a América Latina é um elemento que
s

consideramos relevante para uma análise da atual etapa do capitalismo neoli-


ver

beral, em que o novo paradigma da informação surge como aposta e espalha-se


como base para novos arranjos nas esferas da produção e circulação, mas
também nos embates políticos e culturais. A construção de alternativas pelo
viés do Sul Global e da América Latina implica a apropriação dos obstáculos
nessas esferas para a superação das manifestações específicas e gerais das
formas de opressão no âmbito da luta de classes.
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