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Guimarães
DOSSIÊ
INTRODUÇÃO
Sonia K. Guimarães*
A organização deste dossiê resultou da boa inovação – conceitos que dominam não apenas as
receptividade da Mesa Redonda Produção do Co- análises de estudiosos, mas também os discursos
nhecimento e Inovação, apresentada na ANPOCS, de formuladores de políticas públicas, de empresá-
em 2010. A referida Mesa visava a debater ques- rios e dos demais atores sociais preocupados em
tões sobre o novo modo de produção científica, a intervir na nova dinâmica de desenvolvimento –,
relação entre ciência, tecnologia, inovação, univer- buscou-se ampliar a discussão, incluindo estudos
sidade e atores externos, considerando a configu- que analisassem outras realidades, oferecendo uma
ração social definida pela chamada economia do perspectiva comparativa e permtindo uma visão mais
conhecimento e suas implicações sobre a concep- completa do fenômeno em questão.
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IES federais (REUNI), Lei de Inovação, Lei do Bem ele tivesse sido absorvido pelo mercado. A Apple
e Fundos Setoriais, o de Barbosa sobre os siste- redefiniu suas características de design e de interface
mas de bolsas como o Programa Universidade para com o usuário, e o resto, já sabemos (Kubota;
Todos (ProUni) e financiamentos como o Fundo Salerno, 2008). Essa possibilidade constitui-se em
de Financiamento ao Estudante do Ensino Supe- janela de oportunidade para os países em desen-
rior (FIES); c) apresentam resultados de experiên- volvimento, desde que disponham de capacidade
cias concretas de empresas intensivas em conhe- para utilizar o conhecimento de forma criativa.
cimento no Brasil, cujos perfis se encaixariam nas O fenômeno acima descrito é traduzido por
tendências que emergem como características de alguns através da expressão “desmaterialização da
empresas da chamada sociedade do conhecimen- produção”, ou seja, a importância econômica dos
to, como o de Guimarães. bens tangíveis se transfere para os bens intangí-
Os artigos têm em comum a discussão so- veis, que passam a dinamizar a produção através
bre o novo modo de conhecimento e suas implica- de transmissão virtual (indústrias financeira e cul-
ções sociais, considerando-se, em especial, as no- tural, comércio, serviços administrativos), ou por
vas demandas da sociedade e do desenvolvimen- condensação e incorporação de informação (medi-
to econômico e social. Sabemos que conhecimen- camentos, sementes geneticamente modificadas).
to e inovações acompanham a humanidade desde Nesse contexto, a produção de bens e serviços
sempre: do machado às células-tronco, como bem depende de permanente inovação, cujo valor é
afirmam Kubota e Salerno (2008). Entretanto, há definido pela aceitação do mercado.
praticamente consenso entre os estudiosos sobre Diante do novo cenário – em que conheci-
o fato de que, hoje, o conhecimento1 é a fonte prin- mento e inovação são concebidos como fatores cen-
cipal para a criação de riqueza e, portanto, para trais para o crescimento e o desenvolvimento eco-
crescimento e competitividade econômica susten- nômicos sustentáveis –, impõe-se o argumento que
táveis. Conhecimento substitui o capital físico, sustenta a necessidade de cooperação mais estrei-
determinante para a organização da produção, no ta entre ciência, tecnologia e inovação, ou seja,
século XX. Paul M. Romer, o renomado economis- universidade, sociedade e sistema produtivo.
ta americano, explica por que conhecimento é o A interdependência entre ciência e tecnologia
fator determinante do modelo sustentável de de- já se verifica desde o início do século XX,2 sendo
senvolvimento: “(it) is assumed to be an input in que os períodos da I e da II Guerra Mundial constitu-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 63, p. 461-466, Set./Dez. 2011
production that has increasing marginal em casos exemplares de intensa cooperação entre
productivity” (1986, p.1002). Romer afirma, como ciência e tecnologia, ou entre universidades e empre-
citado por Guimarães em seu artigo, que a nova sas, em especial na Inglaterra e nos Estados Unidos,
economia se baseia em ideias mais do que em ob- respectivamente. No caso dos Estados Unidos, na II
jetos...” (Time Magazine, abril 21,1997). “Ideias”, Guerra, houve o envolvimento de grandes universi-
nesse caso, significa, entre outras coisas, a capaci- dades como o Massachusets Institute of Technology
dade de alterar certas características, como modo e a Universidade de Harvard, entre outras, e de em-
de utilização, desempenho e design, de um pro- presas como AT&T, General Electric,Westinghouse,
duto ou conhecimento já disponíveis. Por exem- RCA e Raytheon (Mendonça et al., 2008). Segundo
plo, antes do lançamento da Apple, já existia um Mendonça et al. (2008), na Alemanha, a mobilização
produto com o princípio do atual Ipod, sem que dos cientistas foi tardia e reduzida; no Japão, ela foi
1
“Conhecimento: conjunto de afirmações organizadas igualmente reduzida e pouco eficiente. Ainda segun-
sobre fatos ou ideias, apresentando julgamento racional
ou resultados experimentais, transmitidos aos demais 2
através de algum meio de comunicação, de alguma for- Para uma análise detalhada do modelo e de seu significa-
ma sistemática.” Daniel Bell, The coming of post-in- do para as políticas de C&T, vide STOKES, Donald E.
dustrial society: a venture in social forecasting. 1976. Pasteur’s quadrant: basic science and technological
New York: Basic Books; (1st ed 1973), p.173 apud innovation. Washington: Brookings Institutions Press,
Castells, 1996, p. 17). Traduzido por SKG. 1997 (apud Viotti, 2008) e Mendonça et al. 2008.
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do os mesmos autores, a contribuição das ciências de aproximação entre ciência e sua aplicação, como
física e eletrônica foi fundamental para a produção afirma Balbachevsky em seu artigo, neste dossiê:
de armamentos que definiram a estratégia militar na “o momento do conhecimento e da observação se
II guerra mundial. confunde com o design de novos artefatos [...], ou
No Brasil, a Petrobrás é um caso exemplar, com a modelagem de intervenções deliberadas so-
mantendo milhares de contratos de pesquisa com bre a realidade.”. Há ainda a potencialidade comer-
universidades, que contribuem para desenvolvi- cial imediata de algumas tecnologias, como ocorre,
mento de seu centro de pesquisa. Há os que di- por exemplo, na engenharia genética – intervenção
zem que a Petrobrás não seria o que é não fosse sobre genes de organismos vivos com o objetivo de
sua parceria com as universidades brasileiras. modificá-los – e a produção de medicamentos.
Outro exemplo é o da Embraer, que se consolidou A perspectiva neo-schumpeteriana percebeu
com o apoio do Instituto Tecnológico da Aeronáu- o caráter social e sistêmico-interativo do processo
tica (ITA) para a formação de recursos humanos e de inovação: ao mesmo tempo em que valoriza o
o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA). papel da empresa como agente principal da inova-
Apesar da existência de colaboração, ainda ção, considera-a apenas uma parte de um sistema
que conjuntural, sustentava-se que a inovação re- mais amplo, concebido como uma rede de rela-
sultaria do trabalho solitário ou isolado de cientis- ções entre agentes sociais, própria de um país ou
tas em laboratório (pesquisa básica), o que região, incluindo relações entre empresas e entre
condicionaria, de forma linear, as demais etapas instituições de ensino e pesquisa, existência de
do processo, transformando-se em inovação infraestrutura pública e (ou) privada, economia
tecnológica a ser transferida à empresa – concebi- nacional e internacional, assim como aspectos só-
da como usuária no processo –, a responsável pela cio-histórico-culturais locais, em que se incluem,
produção de bens a serem ofertados no mercado. dentre outros, características organizacionais, le-
Essa visão foi amplamente difundida pelo relató- gais e normativas (Freeman, 1991; Lundvall, 1992).
rio de Vannevar Bush (Science, The Endless Frontier. A empresa deixa de ser apenas consumidora de
A Report to the President, July 1945), diretor do tecnologia, tornando-se também produtora, en-
Office of Scientific Research and Development, nos quanto a inovação é concebida como processo de
Estados Unidos. risco, tanto no que se refere a recursos necessári-
No entanto, estudos sobre a relação entre os, quanto a resultados técnicos e mercadológicos.
produção do conhecimento e inovação evidenci- Essa é a chave do debate de que se ocupam
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cipal geradora e transmissora de conhecimento sem governamental efetivo à atividade de P&D (enco-
submeter-se às pressões externas. O pressuposto mendas do governo, incentivos fiscais, apoio à
seria de que universidade e os demais atores atu- infraestrutura, proteção para a propriedade inte-
em em conjunto, visando a atingir propósitos so- lectual) e carência de recursos humanos qualifica-
ciais mais amplos, sem comprometer seus interes- dos impõem dificuldades adicionais às empresas.
ses e missões originais, buscando alcançar o equi- Aspectos da contribuição dos autores deste
líbrio entre independência e interdependência dossiê para a discussão em pauta poderia ser bre-
(Etzkowitz, 2009). Como afirma Sobral em seu arti- vemente resumida, como é feito a seguir.
go neste dossiê, citando Nowotny (2006), “não há O artigo de Lyytinen e Hölttä analisa o de-
incompatibilidade entre ciência real e ciência exce- senvolvimento recente de uma parte do ensino
lente [...] a ciência responde às várias pressões pro- superior na Finlândia, baseando-se no estudo de
venientes do Estado, da indústria e da sociedade e, caso de quatro institutos politécnicos. O artigo tem
de forma crescente, do mundo globalizado, sem como objetivo avaliar a natureza e o grau de
diminuir a excelência...” Esse é também o pressu- envolvimento desses institutos com atividades que
posto de que partem os argumentos dos autores de contribuissem para o desenvolvimento econômi-
artigos apresentados neste Dossiê. co e social do país, através de colaboração com
A ação conjugada dos atores referidos não é, atores externos. Os resultados do estudo eviden-
contudo, algo simples e consensual, em especial ciam que as parcerias com atores externos estavam
com relação à interação entre universidades e em- menos voltadas para a captação de recursos finan-
presas, cujas culturas são bastante diversas, especi- ceiros e mais para a consecução de valores simbó-
almente, no Brasil. Como afirmam Neves e Neves, licos, como garantir prestígio para a instituição,
através de estímulo a atividades acadêmicas, troca
... muitas dificuldades emergem, desde incapa- de informações e transferência de conhecimento.
cidades dos atores universitários de lidar com as
empresas, alegando riscos de privatização das É interessante notar que os resultados do estudo
instituições públicas, até falta de iniciativa dos de Balbachevsky indicam praticamente o oposto,
empresários, na medida em que o investimento
em C&T é visto por eles como responsabilidade em relação ao Brasil e à América Latina. Ou seja, a
do governo, e se isentam de assumir compromis-
sos privados com C,T&I. adesão dos pesquisadores ao novo padrão de
interação com o ambiente externo ocorreu, princi-
Castro também chama a atenção para os palmente, em razão da possibilidade de obtenção
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 63, p. 461-466, Set./Dez. 2011
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