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A arte e o real: Iran do Espírito Santo e a realidade em obra

Flavia Corpas

Quando se escreve podemos muito bem tocar o real, mas não o verdadeiro.
Lacan (1975-76)

O ponto-chave, mais primário, e talvez por um lado mais complexo, apesar


de ser muito simples, é essa dualidade entre a concreção e a abstração.
Iran do Espírito Santo (2019)

Reflexão

Qual a natureza da nossa relação com o real? O que determina nossa


apreensão da realidade? As reverberações destas perguntas nos guiarão neste ensaio,
que nasce do encontro entre a obra de Iran do Espírito Santo e algumas inquietações
minhas a respeito da relação entre arte e vida, em uma leitura norteada pela
psicanálise de orientação lacaniana. Uma convergência que encontrou lugar no
trabalho de curadoria1 desenvolvido para a exposição Reflexivos, cujos registros se
encontram neste livro.
O título da exposição buscava abordar a ambiguidade que a palavra “reflexivos”
pode encontrar na produção deste artista: uma dimensão de espelhamento, facultada
pelos materiais usados, e que apontaria para o que é igual a si mesmo, mas que,
paradoxalmente, ao colocar o espectador na cena, o desloca de sua própria imagem,
projetando-o no mundo. Essa primeira dimensão é atravessada por uma outra, a da
reflexão, que, para se dar, precisa operar a partir de uma abertura à diferença, posta
em curso por esta produção em sua opção por trabalhar com imagens de objetos
ordinários e cotidianos, escolha que os retira de seus contextos habituais, dando-lhes
novos e diferentes lugares. Nesta tensão, promovida por espelhos que já não refletem
mais o mesmo, vemos localizadas, justamente, as questões correlatas da
representação e da relação entre sujeito e objeto nas artes visuais.
Objeto. Imagem. Ideia. Matéria. Visível. Virtual. Todos estes significantes,
quando investidos de sentidos filosóficos, bem como de seus usos pela crítica e/ou
pela história da arte, nos ajudam a produzir um pensamento, uma teorização, a

1
Curadoria desenvolvida juntamente com Alberto Saraiva e com a intensa e fundamental participação
do artista.
respeito da obra de Iran. Eles nos remetem às problemáticas do real e da realidade.
Mas como abordá-las? Procurei trilhar aqui um percurso diferente através da
psicanálise.2
De que realidade se trata? A marca, ou o choque, das contingências sobre a
realidade de nossa experiência no mundo, sejam tais contingências políticas, sociais,
econômicas ou estéticas, nos coloca, muitas vezes, diante do que o psicanalista francês
Jacques Lacan nomeou de real, aquilo que é impossível de suportar (Lacan, 1977, p. 8).
Isso dá ao real do léxico lacaniano as cores de um acontecimento traumático,3
disruptivo. Devemos ficar paralisados diante dele?
Sem fórmulas infalíveis ou pensamentos messiânicos, tão comuns ao nosso
tempo, a arte – assim como a psicanálise, guardadas as devidas diferenças entre elas –
parece ser uma das maneiras possíveis de lidar com isso que nos surge como
insuportável, irrepresentável, mas que pode ser, de alguma forma, incluído e tratado
no curso da vida. E, nos dias de hoje, não será ainda essa a maior virtualidade da arte:
sua potência e capacidade em nos instigar, nos provocar novas formas de vida na
realidade e diante do real?4

Iran do Espírito Santo

O artista paulista Iran do Espírito Santo, nascido em 1963 na cidade de Mococa,


mudou-se para São Paulo, no início da década de 1980, para cursar Artes Visuais na
Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Em 1986, começou uma série de
residências internacionais e as primeiras exibições de seus trabalhos. Já expôs em

2
Para reflexões no campo da arte que incluem a perspectiva psicanalítica, ainda que cada uma delas
possua pressupostos e desdobramentos muito próprios e distintos entre si, gostaria de citar Hal Foster
(2014) em O retorno do real e Georges Didi-Huberman (2010) em O que vemos, o que nos olha.
3
É importante lembrar que aqui estamos usando tal termo em seu sentido psicanalítico. Já em Freud o
traumático não deve ser reduzido a um evento ruim que pode ter ocorrido na vida de um sujeito.
Também não deve estar limitado à teoria da sedução, com a qual Freud trabalhou no início de suas
elaborações, mas que cedo também abandou (FREUD, 1897, p. 265; 1925, p. 96) em prol da noção de
realidade psíquica. Com Lacan, vemos que o traumático está relacionado à linguagem e ao real, na
medida em que este é o impossível de representar, aquilo que é definido pela exclusão do sentido.
4
Historicizadas e colocadas em perspectiva com outras obras, as produções artísticas nos relançam às
suas próprias potências interpelativas. Como isso se atualiza? Essa é a realidade que interessa. Esta
realidade atravessada pelo real “nosso de cada dia”, menos por ser corriqueiro, e mais por ser inerente
à condição do ser falante.
diversos museus no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, fazendo parte também de
importantes coleções institucionais e privadas, nacionais e internacionais.
Será que essa obra que percorre e habita o mundo, ocupando seu lugar em
diferentes espaços e contextos, poderia ter seu poder de deslocamento atribuído ao
fato de refletir, na polissemia que damos a esse termo, a realidade e, com isso, fazer
alguma frente ao real?
“Entrem! Sintam-se à vontade, mas nem tanto...” Foi assim que concebi a
última frase do texto curatorial que, por motivos legítimos, teve outro desfecho. Mas
agora é preciso retornar a ela. O paradoxo no qual aposta revela a tensão mesma da
obra.

Um artista em risco

Me ocorreu pensar que Iran flerta com algo que pode nos remeter à morte, um
dos nomes possíveis para o real, segundo Lacan.5 Ele se coloca em risco nos
procedimentos de produção de seus trabalhos. Nenhum perigo físico, é verdade. Mas
por trás de sua obra, sistematicamente calculada e controlada em sua feitura, há
também um enorme risco assumido pelo artista: a exposição à luz determinada por
frações de segundos em Sem título (Fotograma I – vertical) ou diferenças ínfimas de
quantidade de corante em Três sombras. A extrema exatidão necessária ao cálculo do
olho e da mão revela tanto a precisão quanto a vertigem mesma que estrutura a obra.
Assim, é também a iminência de um acidente que organiza, em obra, o vazio
que é seu centro, com um vacúolo, ou mesmo como uma força centrípeta, como no
caso de Iran. Ressaltei esse risco em uma breve conversa com o artista durante a
montagem de Reflexivos. Sua resposta foi: “Enorme, um risco enorme.” Suas palavras
me marcaram.
Iran flerta com a morte, mas não se trata de sucumbir a ela, e sim de incluir
algo disso na equação mesma da vida e da obra.

5
Lacan (1974-75, p. 56), aula de 8 de abril de 1975; Lacan (1975-76, p. 121). “A pulsão de morte é o real
na medida em que ele só pode ser pensado como impossível. Quer dizer que, sempre que ele mostra a
ponta do nariz, ele é impensável. Abordar esse impossível não poderia constituir uma esperança, posto
que é impensável, é a morte – e o fato de a morte não poder ser pensada é o fundamento do real”
(ibidem).
O real e a realidade

É na realidade que experimentamos o real impossível de suportar. Mas, como


nos lembra Lacan (1974, p. 16), “o real não é o mundo. Não há nenhuma esperança de
alcançá-lo por meio da representação”. Assim, é no acaso, nas contingências e nos
tropeços que se encarnam e constituem a realidade, que poderá haver um encontro
com o real. E isso transforma a realidade.6
Mas a arte também cria a realidade, mesmo que aposte na tentativa de
apresentar ou representar uma realidade tida como concreta, ou, ainda, que nada se
queira saber da realidade, objetiva ou subjetiva. Se aceitamos que a arte cria uma
realidade, podemos dizer também que a realidade não está dada, não está
simplesmente condicionada pela nossa percepção de fatos e objetos concretos da
experiência racional no mundo.
O que vem a ser a realidade? Estamos certos do que isso significa?
Para a psicanálise, realidade e real são noções distintas, mas nem por isso
inarticuláveis.7 O real para Lacan, como já dissemos, é o que é impossível de suportar e
representar, e a realidade é o que se busca moldar – e não algo ao qual o sujeito se
acomode, em termos de adaptação a uma realidade social ou exterior. Se a realidade é
moldada, ela se ajusta ao que Freud chamou de princípio do prazer, e não ao princípio
da realidade, que, na verdade, está condicionado pelo próprio princípio do prazer. E
mais: a realidade é acomodada ao princípio do prazer, mas em sua vinculação com o

6
2020. É na realidade impactada pelo vírus SARS-CoV-2 e pelos sintomas da Covid-19 que encontramos
com o real, e isso retira tudo dos seus devidos lugares. A realidade compartilhada em que vivíamos, e
acreditávamos estar garantida, mudou: se impõem, agora para todos, e não mais só para alguns, o
isolamento, a limitação, a morte. A forma como se lida com isso que é imposto, seja aderindo ou não ao
isolamento, por exemplo, não elimina a morte do horizonte real e isso tem efeitos diversos nos sujeitos,
independentemente da posição social, política e econômica. Uma realidade se apresenta hoje e ela nos
coloca diante do real, em um encontro com o real. Como argumenta o psicanalista Miquel Bassols
(2020) em “A lei da natureza e o real sem lei”, não é propriamente o vírus que promove tal encontro.
Contudo, sua irrupção ainda incontrolável faz com que tenhamos que lidar com o real do tempo (não
sabemos quanto tempo teremos que esperar para sairmos do isolamento ou para que se descubra a
vacina); o real do espaço na experiência de confinamento; o real do tempo coletivo para atenuar a
propagação do vírus; o real de ter um corpo; o real da solidão de ser falante. “A experiência do real em
que nos encontramos, portanto, não é tanto a experiência da própria doença, mas a experiência desse
tempo subjetivo, que também é um tempo coletivo, estranhamente familiar, que acontece sem poder
se representar, sem poder se nomear, sem poder se contabilizar” (BASSOLS, 2020, p. 4).
7
É o que me faz pensar a frase “Não estou certo de que a distinção do real em relação a realidade se
confunda com o valor próprio que dou ao termo real” (LACAN, 1975-76, p. 131).
que está além dele, o real. É por isso que Lacan afirma que “o sistema da realidade,
por mais que se desenvolva, deixa prisioneira das redes do princípio do prazer uma
parte essencial do que é, no entanto, e muito bem, da ordem do real” (LACAN, 1964,
p. 57). E, como ressalta ainda Lacan, a realidade é concebida como espera. “A esta
exigência respondem esses pontos radicais no real que chamo de encontros” (ibidem),
que faz com que a realidade seja determinada por uma espera.
Quanto ao real, nos lembra o psicanalista Jacques-Alain Miller (2014, p. 22),
“Lacan faz um uso que lhe é próprio, que nem sempre foi o mesmo e que devemos
esclarecer, inclusive para nós mesmos [os psicanalistas]”.
Em sua conferência “A Terceira”, Lacan (1974) afirma que o real “é o que não
caminha, é o que cruza a frente da charrete, e mais, o que não cessa de se repetir para
impor um entrave a essa marcha” (idem, p. 16). Lacan localiza que, inicialmente, o real
foi dito por ele sob essa forma: “o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar. O
acento deve ser colocado sobre o que ‘retorna’. É o lugar que ele descobre, o lugar do
semblante” (ibidem). Num segundo momento, foi pelo impossível de uma modalidade
lógica que Lacan tenta apontá-lo: o que não cessa de não se escrever (LACAN, 1972-73,
p. 127). Trata-se do impossível de representar, pois não se pode atingir o real pela
representação, e do impossível do universal, já que é impossível universalizar o real.
Na sequência do texto, Lacan associa o real ao sintoma: “o sentido do sintoma é o real,
na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem” (idem, p. 4).
Em O Seminário, livro 23: o sinthoma, no qual trabalha a obra de James Joyce,
Lacan (1975-76, p. 63) define o real pela exclusão de sentido.

O real e a arte

Percorrendo os seminários e escritos de Lacan, podemos dizer que a arte é uma


forma de tratar o real. Destacarei aqui dois momentos de seu ensino, embora não
sejam os únicos, que nos ajudam a pensar esta ideia.
A arte é uma operação que circunscreve o real, que o envolve, o contorna, pelo
par simbólico-imaginário que, por fim, tanto sugere o real, quanto o vela. Tal
perspectiva é trabalhada por Lacan (1959-60), em O Seminário, livro 7: a ética da
psicanálise, através da metáfora do oleiro, que cria o vaso a partir do vazio, e do amor
cortês, que gira em torno da dama inacessível. “Toda arte se caracteriza por um certo
modo de organização em torno desse vazio” (idem, p. 158), que no âmbito deste
momento do ensino de Lacan é das Ding, a Coisa freudiana, objeto para sempre
perdido, índice de um gozo impossível.
A arte possibilita também um encontro, sempre faltoso, com o real, no qual um
pedaço do real é exposto, por meio de uma imagem, que em O Seminário, livro 11: os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1964) é pensada através da
anamorfose no quadro Os embaixadores, de Hans Holbein. Nesta anamorfose, a morte
como que por acaso se torna exposta, caso o sujeito adote um determinado ângulo e
uma certa distância da imagem. Assim, neste quadro de Holbein, um crânio de caveira
deformado, distorcido, quando visto de frente, mostra sua face.
Como nem Freud nem Lacan produziram uma teoria da arte, o encontro,
sempre faltoso, entre os dois campos faculta uma abertura potente a novas
possibilidades de interseções, sempre marcadas pelo singular de cada artista e de cada
obra. E, justamente por isso, na psicanálise, coexistem diferentes formas de pensar a
arte. As coisas podem mudar, e de fato mudam, dependendo do momento em que
determinada reflexão se deu no desenvolvimento da psicanálise por Freud ou no
ensino de Lacan. E, sobretudo, mudam de acordo com o artista e com a obra
enfocados. E isso, ao invés de ser um problema, torna-se uma orientação, um norte de
trabalho.
Para Lacan, a obra de arte possibilita um tratamento do real, que não é
imaginável nem pode ser simbolizado. Mas real, simbólico e imaginário – estes três
registros da realidade humana (LACAN, 1953, p. 12), sobretudo pensados por Lacan
como modo essencial de ordenar nossa abordagem da experiência analítica (MILLER,
2002, p. 10) – se enodam borromeanamente, ou seja, um não é sem os outros. Tanto a
realidade, que não tem nenhuma existência garantida, quanto a arte, cada uma a sua
maneira específica, são como um “véu tecido de imaginário e simbólico que serve para
recobrir o real, no entanto, necessário para o ser falante, para o sujeito, para se
proteger desse real que escapa ao significante e à imagem, e que é, como tal,
insuportável” (SKRIABINE, 2007, p. 242). Logo, o recurso à arte foi uma das formas
possíveis, para Lacan, de abordar o real.
Circunscrever, bordear o real, sugerindo e velando-o; encontro faltoso com o
real, expondo dele um pedaço: formas de tratamento do real pelo simbólico e
imaginário. Mas a realidade nisso tudo também está enganchada, seja porque a obra,
em sua relação com o real, se mostra na realidade (no encontro do sujeito com a obra
em um determinado espaço e tempo), se nutre dela (na temática ou se apropriando de
seus objetos) ou a transforma (produz uma nova realidade).

A temporalidade da obra: um encontro com o real

Desenhar é preciso para Iran, uma vez que a origem do seu trabalho, do seu
interesse mesmo pela arte, está no desenho. Mas desenhar também interroga a
precisão. Assim, a questão do desenho parece configurar algo além no artista, além de
seu ponto de partida.
Apesar de se dedicar bastante à tridimensionalidade, Iran afirma que suas
esculturas e objetos estão “sempre muito calcados no desenho. E não só no desenho,
da prática do desenho, do registro gráfico sobre uma superfície, mas como desenho
mental” (ESPÍRITO SANTO, 2019).8
Os desenhos dos cilindros, Sem título (VI-X), trazem à tona um velho
questionamento seu sobre a dualidade entre concreção e abstração, algo que a tensão
entre desenho como registro gráfico e desenho mental já sugere, e que nos remete à
problemática da realidade a que já nos referimos anteriormente.

O ponto-chave, mais primário, e talvez por um lado mais complexo, apesar de


ser muito simples, é essa dualidade entre a concreção e a abstração. Então
tem esse trânsito, entre um e outro, que, para mim, é central na minha
produção, porque eu me dedico a isso, mas também acho que é algo central
na condição existencial da própria humanidade (idem).

O artista afirma que essa dualidade o tem motivado a fazer coisas e também o
perturbado durante a vida toda, “e eu digo a vida toda mesmo, pois é algo desde a
infância” (idem). Algo que ele foi percebendo só depois, “o que era aquele negócio,
aquela dúvida, aquela angústia que eu percebia que tinha um mundo dentro da minha

8
Todas as citações das falas do artista presentes a partir daqui foram retiradas de áudios produzidos por
Iran, uma prática de reflexão adotada pelo artista e que ele gentilmente compartilhou comigo.
cabeça e outro fora, mas que um era dependente do outro” (idem). Existe algo que é
palpável e algo que não é palpável, afirma Iran. E, talvez, uma luta entre uma coisa e
outra também exista. Mas, talvez, arremata por fim o artista, se trate mais de uma
relação de oposição e complementaridade. Luta ou relação, a arte circunscreve, molda
esse mundo de dentro, nos diz Iran, mundo da dúvida, da angústia que o estar diante
da realidade e também do real – enquanto inerente à experiência do ser falante –
pode produzir.

E esse mundo interno, que no caso a arte, mas também não só a arte, a
ciência e outras atividades humanas, acaba moldando. Só que na arte a gente
consegue isolar, não tem algo, uma utilidade específica, a não ser o próprio
questionamento da percepção e a compreensão da percepção, não
necessariamente de forma científica, apesar de muitas vezes os artistas se
basearem em preceitos científicos, descobertas científicas, mas eu acho que
também contribuem para isso, com insights, com tantas coisas que podem ser
retiradas destas divagações dos artistas. (idem)

Os desenhos da série dos cilindros representam, segundo Iran, “uma imagem


mental primordial de um movimento, de uma rotação de um objeto sobre si mesmo, e
que é algo muito presente na indústria” (idem). Existe, portanto, nestas abstrações –
enquanto desenhos mentais que extrapolam o registro gráfico sobre uma superfície –
uma projeção sobre o real de um objeto, “que forma/transforma o real com objetos
criados e que também deforma o real original que seria a natureza” (idem). Logo, a
visualidade do mundo que habitamos vai sendo moldada, criada, mas o mundo
também habita em nós, afetando nossos desenhos mentais. Trata-se mesmo de um
trânsito que interroga e produz a realidade, seja ela psíquica, social, política,
econômica, estética etc.
Outro aspecto bastante evidente nestes desenhos, revela o artista, é a criação
do moiré, “esse fenômeno óptico que acontece quando você sobrepõe dois padrões,
retículas, repetições de linhas, que criam essas espécies de ondas, que são
imprevisíveis, pelo menos quando é algo feito à mão, como é o caso destes desenhos”
(idem). Há aqui um acaso, uma contingência, um risco – algo de real nesta operação
vertiginosa do moiré em torno de um furo, de um vazio – que Iran reforça ainda mais a
partir do que chama de “vibração quase sonora desta obra” (idem).
Este aspecto sonoro localiza também a imponderabilidade do trabalho, que o
artista qualifica e articula a “uma relação bastante subjetiva”.

Eu fico olhando esses desenhos, parece que eu ouço um som, que não é um
som específico, é claro que não ouço de fato, mas posso imaginar um som
correspondente àquelas ondas, àquelas imagens ali, que me lembra o ruído
da própria indústria, quando a gente está ali fazendo, acompanhando, as
usinagens das esculturas. Então, tem essa vibração, que parte de um eixo
central e que se expande, se repete, que é imponderável, que é uma coisa
que não se planeja. (idem)

Traçando agora uma analogia entre o moiré dos cilindros e os padrões próprios
aos nós da madeira – que o artista perseguiu por bastante tempo, como na obra
Amostra –, Iran revela algo fundamental para este debate sobre o real, a realidade e a
arte a partir de sua produção. Há um padrão que faz com que reconheçamos os nós da
madeira como nós da madeira, e no moiré também, “você olha aquilo e você fala ‘isso
é moiré’, ‘isso é um fenômeno e tal’” (idem). Entretanto, aquilo que tem um padrão,
uma identidade de conjunto, que é conferido por uma repetição, ao mesmo tempo
nunca se repete, o que produz também uma identidade, ou, melhor dizendo, um
singular.

Tem a impossibilidade da representação/da repetição, como uma impressão


digital, como tantos padrões na natureza. Eles são eles, mas sempre outra
coisa, então torna aí um questionamento sobre a identidade que é algo que
sempre me interessou. (idem)

O que confere um padrão e uma denominação a esses fenômenos ópticos ou


da natureza ou do corpo é da ordem da repetição. E há ainda, nestes casos, uma
repetição que os constitui; uma espécie de movimento circular repetitivo ou algo que
remeta a ele. Há uma repetição que faz com que seja possível reconhecer um padrão
que se nomeia. E, paradoxalmente, o que essa repetição permite identificar como um
padrão, que confere uma identidade circunscrita sob um signo (moiré, nó da madeira,
impressão digital), é uma imagem marcada por uma singularidade radical, que escapa
à própria repetição como representação ou reprodução, mas que é constituída por
movimentos circulares repetitivos.
Também por analogia, como faz o artista, podemos pensar o paradoxo
apontado por Iran em diálogo com o que desenvolveu Lacan (1964) a respeito da
noção de repetição na psicanálise, no já aludido O Seminário, livro 11.
Para abordar a repetição, o psicanalista extrai do vocabulário de Aristóteles, em
sua busca pela função da causa (idem, p. 54 e p. 56), os termos autômaton e tiquê, a
fim de revisar a relação entre eles. O autômaton aponta para a repetição enquanto
retorno, volta, mas como insistência dos signos. Já a tiquê se traduz por encontro do
real, real que retorna sempre ao mesmo lugar, e que vige sempre por trás do
autômaton.
A repetição que produz o padrão, a identidade do moiré e do nó da madeira, é
da ordem da insistência dos signos, do autômaton e da busca por um sentido que se
fixe. Mas há algo a mais: “Eles são eles [moiré ou nó da madeira], mas sempre outra
coisa” [imagens radicalmente singulares e que problematizam o conjunto do sentido
moiré ou nó da madeira]. Essa outra coisa, não poderíamos tomá-la como efeito de um
encontro com o real? Não poderíamos associá-la ao lado tíquico de uma experiência?
Em Iran, não se trataria de um encontro nos moldes da anamorfose, suportada
pela exposição de um pedaço do real quando da obra tomamos distância, como aquilo
que figura mesmo no quadro Os embaixadores, de Hans Holbein, a caveira/morte.
Tampouco do que Hal Foster (2014, p. 129) ressalta sobre a repetição em White
Burning Car III [“Carro branco em chamas III”] (1963), de Andy Warhol, na qual se vê
repetida e intervencionada a cena violenta de um acidente de carro. Ainda que Foster
ressalte que o real que retorna nesta obra funcione menos por meio do conteúdo, que
se repete insistentemente, do que pela técnica, “especialmente pelos ‘raios flutuantes’
do processo do silkscreen, o escorregar e marcar, o alvejar e esvaziar, o repetir e
colorir das imagens” (ibidem), a morte ali figurada não pode ser desconsiderada. O
próprio autor a pontua ao dizer que há um punctum9 “na indiferença do transeunte”
(ibidem). A técnica por si só não poderia dar a esta obra seu efeito de punctum se não
houvesse ali toda uma relação direta com a morte. E esta reflexão sobre a morte que
figura na obra vale também para o quadro Os embaixadores.

9
Em A câmara clara, Roland Barthes (1980, p. 46) define o punctum “como picada, pequeno buraco,
pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que,
nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”. Foster fará um paralelo entre tiquê em Lacan e
punctum em Barthes.
Algo diferente parece ocorrer nas obras de Iran. Nelas, o que diz respeito à
morte não faz figura, o que confere um outro modo de tratamento do real. É um risco
inerente ao próprio procedimento de construção da obra, que no limite poderia levá-la
à sua própria anulação, e tudo isso deixa marcas pujantes e sutis na obra, instaurando,
assim, uma tensão.
Há, nestas obras, portanto, uma tensão interna, potente em apontar para algo
a mais, além do que ali figura como imagem. E toda a reflexão do artista, suas palavras
transcritas e entremeadas em meu texto, deixa isso bastante evidente. Essa tensão
revelada desde o interior das interrogações e elaborações de Iran – questões
originárias da obra e também de retorno dela sobre o artista – possui paralelos com a
experiência do público? É justamente para isso, me parece, que esta obra nos convida.
É como se tais produções não coubessem naquilo que os olhos leem e
rapidamente nomeiam. Ou melhor, cabem e, depois, não cabem mais. A relação do
espectador com a obra que, num primeiro tempo, conduz ao sentido pode, em um
outro momento, desnaturalizá-lo. E isso é passível de produzir um a mais, de abrir um
tempo para a experiência com um vazio, um fora de sentido. Essa experiência é, em si,
a própria obra que se endereça à arte. Não apenas do ponto de vista do artista, mas
também como algo que poderá se dar para o espectador. Trata-se do que poderíamos
chamar, em Iran, de uma temporalidade própria da obra,10 na qual é essencial a
experiência do espectador, esse destino cumprido com a obra, além daquele, não
menos importante, produzido pelo artista.
Sem título (VI-X) e Amostra, mas também Porca e rosca 2, Caixa de fósforos e
Globo 01, expõem uma tensão entre o sentido visto – quando o objeto criado pelo
artista é instantaneamente relacionado a um objeto da vida cotidiana – e a
desnaturalização do sentido – quando a obra, por suas características específicas e/ou
formais, resiste a uma operação de integração entre símbolo e referente. Mas não se
trataria, na experiência da obra, a que a produz e a que ela produz no espectador, de
uma tensão entre o sentido já estabelecido e o mero sem sentido ou um outro sentido
possível. A desnaturalização do sentido conduz a uma exclusão de sentido, a um fora
de sentido, possibilidade de um tempo de abertura para o vazio que a obra

10
Essa ideia já estava presente, ainda que não evidente para mim na época, no próprio conceito da
exposição Reflexivos.
circunscreve. A experiência com esse vazio é da ordem de um encontro com o real, um
encontro que é, ele mesmo, um a mais, mas também essa outra coisa que é a própria
obra e que ela simultaneamente inaugura.
“Esse real, onde o encontramos?”, nos pergunta Lacan (1964, p. 55). Parece
que com Iran podemos confirmar que na arte se dá esse encontro essencial, “encontro
marcado, ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole” (idem, p. 56).
Mas isso que define o real, o impossível, o não representável que escapole, não
determina que nada se possa fazer diante dele. Muito pelo contrário. Esse real que nos
acossa, do qual não se pode escapar, que surge como por acaso, a arte busca dar a ele
um tratamento específico. Mas isso não é tudo. Há ainda o tratamento singular dado
por cada artista, por cada obra, algo que, no caso de Iran, como tentei refletir, abre um
tempo outro, em que o real é, de alguma forma, incluído na realidade em espera, em
obra, na vida mesma que o desejo de cada um de nós insiste e insistirá em afirmar.
Referências bibliográficas

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