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Flavia Corpas
Quando se escreve podemos muito bem tocar o real, mas não o verdadeiro.
Lacan (1975-76)
Reflexão
1
Curadoria desenvolvida juntamente com Alberto Saraiva e com a intensa e fundamental participação
do artista.
respeito da obra de Iran. Eles nos remetem às problemáticas do real e da realidade.
Mas como abordá-las? Procurei trilhar aqui um percurso diferente através da
psicanálise.2
De que realidade se trata? A marca, ou o choque, das contingências sobre a
realidade de nossa experiência no mundo, sejam tais contingências políticas, sociais,
econômicas ou estéticas, nos coloca, muitas vezes, diante do que o psicanalista francês
Jacques Lacan nomeou de real, aquilo que é impossível de suportar (Lacan, 1977, p. 8).
Isso dá ao real do léxico lacaniano as cores de um acontecimento traumático,3
disruptivo. Devemos ficar paralisados diante dele?
Sem fórmulas infalíveis ou pensamentos messiânicos, tão comuns ao nosso
tempo, a arte – assim como a psicanálise, guardadas as devidas diferenças entre elas –
parece ser uma das maneiras possíveis de lidar com isso que nos surge como
insuportável, irrepresentável, mas que pode ser, de alguma forma, incluído e tratado
no curso da vida. E, nos dias de hoje, não será ainda essa a maior virtualidade da arte:
sua potência e capacidade em nos instigar, nos provocar novas formas de vida na
realidade e diante do real?4
2
Para reflexões no campo da arte que incluem a perspectiva psicanalítica, ainda que cada uma delas
possua pressupostos e desdobramentos muito próprios e distintos entre si, gostaria de citar Hal Foster
(2014) em O retorno do real e Georges Didi-Huberman (2010) em O que vemos, o que nos olha.
3
É importante lembrar que aqui estamos usando tal termo em seu sentido psicanalítico. Já em Freud o
traumático não deve ser reduzido a um evento ruim que pode ter ocorrido na vida de um sujeito.
Também não deve estar limitado à teoria da sedução, com a qual Freud trabalhou no início de suas
elaborações, mas que cedo também abandou (FREUD, 1897, p. 265; 1925, p. 96) em prol da noção de
realidade psíquica. Com Lacan, vemos que o traumático está relacionado à linguagem e ao real, na
medida em que este é o impossível de representar, aquilo que é definido pela exclusão do sentido.
4
Historicizadas e colocadas em perspectiva com outras obras, as produções artísticas nos relançam às
suas próprias potências interpelativas. Como isso se atualiza? Essa é a realidade que interessa. Esta
realidade atravessada pelo real “nosso de cada dia”, menos por ser corriqueiro, e mais por ser inerente
à condição do ser falante.
diversos museus no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos, fazendo parte também de
importantes coleções institucionais e privadas, nacionais e internacionais.
Será que essa obra que percorre e habita o mundo, ocupando seu lugar em
diferentes espaços e contextos, poderia ter seu poder de deslocamento atribuído ao
fato de refletir, na polissemia que damos a esse termo, a realidade e, com isso, fazer
alguma frente ao real?
“Entrem! Sintam-se à vontade, mas nem tanto...” Foi assim que concebi a
última frase do texto curatorial que, por motivos legítimos, teve outro desfecho. Mas
agora é preciso retornar a ela. O paradoxo no qual aposta revela a tensão mesma da
obra.
Um artista em risco
Me ocorreu pensar que Iran flerta com algo que pode nos remeter à morte, um
dos nomes possíveis para o real, segundo Lacan.5 Ele se coloca em risco nos
procedimentos de produção de seus trabalhos. Nenhum perigo físico, é verdade. Mas
por trás de sua obra, sistematicamente calculada e controlada em sua feitura, há
também um enorme risco assumido pelo artista: a exposição à luz determinada por
frações de segundos em Sem título (Fotograma I – vertical) ou diferenças ínfimas de
quantidade de corante em Três sombras. A extrema exatidão necessária ao cálculo do
olho e da mão revela tanto a precisão quanto a vertigem mesma que estrutura a obra.
Assim, é também a iminência de um acidente que organiza, em obra, o vazio
que é seu centro, com um vacúolo, ou mesmo como uma força centrípeta, como no
caso de Iran. Ressaltei esse risco em uma breve conversa com o artista durante a
montagem de Reflexivos. Sua resposta foi: “Enorme, um risco enorme.” Suas palavras
me marcaram.
Iran flerta com a morte, mas não se trata de sucumbir a ela, e sim de incluir
algo disso na equação mesma da vida e da obra.
5
Lacan (1974-75, p. 56), aula de 8 de abril de 1975; Lacan (1975-76, p. 121). “A pulsão de morte é o real
na medida em que ele só pode ser pensado como impossível. Quer dizer que, sempre que ele mostra a
ponta do nariz, ele é impensável. Abordar esse impossível não poderia constituir uma esperança, posto
que é impensável, é a morte – e o fato de a morte não poder ser pensada é o fundamento do real”
(ibidem).
O real e a realidade
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2020. É na realidade impactada pelo vírus SARS-CoV-2 e pelos sintomas da Covid-19 que encontramos
com o real, e isso retira tudo dos seus devidos lugares. A realidade compartilhada em que vivíamos, e
acreditávamos estar garantida, mudou: se impõem, agora para todos, e não mais só para alguns, o
isolamento, a limitação, a morte. A forma como se lida com isso que é imposto, seja aderindo ou não ao
isolamento, por exemplo, não elimina a morte do horizonte real e isso tem efeitos diversos nos sujeitos,
independentemente da posição social, política e econômica. Uma realidade se apresenta hoje e ela nos
coloca diante do real, em um encontro com o real. Como argumenta o psicanalista Miquel Bassols
(2020) em “A lei da natureza e o real sem lei”, não é propriamente o vírus que promove tal encontro.
Contudo, sua irrupção ainda incontrolável faz com que tenhamos que lidar com o real do tempo (não
sabemos quanto tempo teremos que esperar para sairmos do isolamento ou para que se descubra a
vacina); o real do espaço na experiência de confinamento; o real do tempo coletivo para atenuar a
propagação do vírus; o real de ter um corpo; o real da solidão de ser falante. “A experiência do real em
que nos encontramos, portanto, não é tanto a experiência da própria doença, mas a experiência desse
tempo subjetivo, que também é um tempo coletivo, estranhamente familiar, que acontece sem poder
se representar, sem poder se nomear, sem poder se contabilizar” (BASSOLS, 2020, p. 4).
7
É o que me faz pensar a frase “Não estou certo de que a distinção do real em relação a realidade se
confunda com o valor próprio que dou ao termo real” (LACAN, 1975-76, p. 131).
que está além dele, o real. É por isso que Lacan afirma que “o sistema da realidade,
por mais que se desenvolva, deixa prisioneira das redes do princípio do prazer uma
parte essencial do que é, no entanto, e muito bem, da ordem do real” (LACAN, 1964,
p. 57). E, como ressalta ainda Lacan, a realidade é concebida como espera. “A esta
exigência respondem esses pontos radicais no real que chamo de encontros” (ibidem),
que faz com que a realidade seja determinada por uma espera.
Quanto ao real, nos lembra o psicanalista Jacques-Alain Miller (2014, p. 22),
“Lacan faz um uso que lhe é próprio, que nem sempre foi o mesmo e que devemos
esclarecer, inclusive para nós mesmos [os psicanalistas]”.
Em sua conferência “A Terceira”, Lacan (1974) afirma que o real “é o que não
caminha, é o que cruza a frente da charrete, e mais, o que não cessa de se repetir para
impor um entrave a essa marcha” (idem, p. 16). Lacan localiza que, inicialmente, o real
foi dito por ele sob essa forma: “o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar. O
acento deve ser colocado sobre o que ‘retorna’. É o lugar que ele descobre, o lugar do
semblante” (ibidem). Num segundo momento, foi pelo impossível de uma modalidade
lógica que Lacan tenta apontá-lo: o que não cessa de não se escrever (LACAN, 1972-73,
p. 127). Trata-se do impossível de representar, pois não se pode atingir o real pela
representação, e do impossível do universal, já que é impossível universalizar o real.
Na sequência do texto, Lacan associa o real ao sintoma: “o sentido do sintoma é o real,
na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem” (idem, p. 4).
Em O Seminário, livro 23: o sinthoma, no qual trabalha a obra de James Joyce,
Lacan (1975-76, p. 63) define o real pela exclusão de sentido.
O real e a arte
Desenhar é preciso para Iran, uma vez que a origem do seu trabalho, do seu
interesse mesmo pela arte, está no desenho. Mas desenhar também interroga a
precisão. Assim, a questão do desenho parece configurar algo além no artista, além de
seu ponto de partida.
Apesar de se dedicar bastante à tridimensionalidade, Iran afirma que suas
esculturas e objetos estão “sempre muito calcados no desenho. E não só no desenho,
da prática do desenho, do registro gráfico sobre uma superfície, mas como desenho
mental” (ESPÍRITO SANTO, 2019).8
Os desenhos dos cilindros, Sem título (VI-X), trazem à tona um velho
questionamento seu sobre a dualidade entre concreção e abstração, algo que a tensão
entre desenho como registro gráfico e desenho mental já sugere, e que nos remete à
problemática da realidade a que já nos referimos anteriormente.
O artista afirma que essa dualidade o tem motivado a fazer coisas e também o
perturbado durante a vida toda, “e eu digo a vida toda mesmo, pois é algo desde a
infância” (idem). Algo que ele foi percebendo só depois, “o que era aquele negócio,
aquela dúvida, aquela angústia que eu percebia que tinha um mundo dentro da minha
8
Todas as citações das falas do artista presentes a partir daqui foram retiradas de áudios produzidos por
Iran, uma prática de reflexão adotada pelo artista e que ele gentilmente compartilhou comigo.
cabeça e outro fora, mas que um era dependente do outro” (idem). Existe algo que é
palpável e algo que não é palpável, afirma Iran. E, talvez, uma luta entre uma coisa e
outra também exista. Mas, talvez, arremata por fim o artista, se trate mais de uma
relação de oposição e complementaridade. Luta ou relação, a arte circunscreve, molda
esse mundo de dentro, nos diz Iran, mundo da dúvida, da angústia que o estar diante
da realidade e também do real – enquanto inerente à experiência do ser falante –
pode produzir.
E esse mundo interno, que no caso a arte, mas também não só a arte, a
ciência e outras atividades humanas, acaba moldando. Só que na arte a gente
consegue isolar, não tem algo, uma utilidade específica, a não ser o próprio
questionamento da percepção e a compreensão da percepção, não
necessariamente de forma científica, apesar de muitas vezes os artistas se
basearem em preceitos científicos, descobertas científicas, mas eu acho que
também contribuem para isso, com insights, com tantas coisas que podem ser
retiradas destas divagações dos artistas. (idem)
Eu fico olhando esses desenhos, parece que eu ouço um som, que não é um
som específico, é claro que não ouço de fato, mas posso imaginar um som
correspondente àquelas ondas, àquelas imagens ali, que me lembra o ruído
da própria indústria, quando a gente está ali fazendo, acompanhando, as
usinagens das esculturas. Então, tem essa vibração, que parte de um eixo
central e que se expande, se repete, que é imponderável, que é uma coisa
que não se planeja. (idem)
Traçando agora uma analogia entre o moiré dos cilindros e os padrões próprios
aos nós da madeira – que o artista perseguiu por bastante tempo, como na obra
Amostra –, Iran revela algo fundamental para este debate sobre o real, a realidade e a
arte a partir de sua produção. Há um padrão que faz com que reconheçamos os nós da
madeira como nós da madeira, e no moiré também, “você olha aquilo e você fala ‘isso
é moiré’, ‘isso é um fenômeno e tal’” (idem). Entretanto, aquilo que tem um padrão,
uma identidade de conjunto, que é conferido por uma repetição, ao mesmo tempo
nunca se repete, o que produz também uma identidade, ou, melhor dizendo, um
singular.
9
Em A câmara clara, Roland Barthes (1980, p. 46) define o punctum “como picada, pequeno buraco,
pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que,
nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”. Foster fará um paralelo entre tiquê em Lacan e
punctum em Barthes.
Algo diferente parece ocorrer nas obras de Iran. Nelas, o que diz respeito à
morte não faz figura, o que confere um outro modo de tratamento do real. É um risco
inerente ao próprio procedimento de construção da obra, que no limite poderia levá-la
à sua própria anulação, e tudo isso deixa marcas pujantes e sutis na obra, instaurando,
assim, uma tensão.
Há, nestas obras, portanto, uma tensão interna, potente em apontar para algo
a mais, além do que ali figura como imagem. E toda a reflexão do artista, suas palavras
transcritas e entremeadas em meu texto, deixa isso bastante evidente. Essa tensão
revelada desde o interior das interrogações e elaborações de Iran – questões
originárias da obra e também de retorno dela sobre o artista – possui paralelos com a
experiência do público? É justamente para isso, me parece, que esta obra nos convida.
É como se tais produções não coubessem naquilo que os olhos leem e
rapidamente nomeiam. Ou melhor, cabem e, depois, não cabem mais. A relação do
espectador com a obra que, num primeiro tempo, conduz ao sentido pode, em um
outro momento, desnaturalizá-lo. E isso é passível de produzir um a mais, de abrir um
tempo para a experiência com um vazio, um fora de sentido. Essa experiência é, em si,
a própria obra que se endereça à arte. Não apenas do ponto de vista do artista, mas
também como algo que poderá se dar para o espectador. Trata-se do que poderíamos
chamar, em Iran, de uma temporalidade própria da obra,10 na qual é essencial a
experiência do espectador, esse destino cumprido com a obra, além daquele, não
menos importante, produzido pelo artista.
Sem título (VI-X) e Amostra, mas também Porca e rosca 2, Caixa de fósforos e
Globo 01, expõem uma tensão entre o sentido visto – quando o objeto criado pelo
artista é instantaneamente relacionado a um objeto da vida cotidiana – e a
desnaturalização do sentido – quando a obra, por suas características específicas e/ou
formais, resiste a uma operação de integração entre símbolo e referente. Mas não se
trataria, na experiência da obra, a que a produz e a que ela produz no espectador, de
uma tensão entre o sentido já estabelecido e o mero sem sentido ou um outro sentido
possível. A desnaturalização do sentido conduz a uma exclusão de sentido, a um fora
de sentido, possibilidade de um tempo de abertura para o vazio que a obra
10
Essa ideia já estava presente, ainda que não evidente para mim na época, no próprio conceito da
exposição Reflexivos.
circunscreve. A experiência com esse vazio é da ordem de um encontro com o real, um
encontro que é, ele mesmo, um a mais, mas também essa outra coisa que é a própria
obra e que ela simultaneamente inaugura.
“Esse real, onde o encontramos?”, nos pergunta Lacan (1964, p. 55). Parece
que com Iran podemos confirmar que na arte se dá esse encontro essencial, “encontro
marcado, ao qual somos sempre chamados, com um real que escapole” (idem, p. 56).
Mas isso que define o real, o impossível, o não representável que escapole, não
determina que nada se possa fazer diante dele. Muito pelo contrário. Esse real que nos
acossa, do qual não se pode escapar, que surge como por acaso, a arte busca dar a ele
um tratamento específico. Mas isso não é tudo. Há ainda o tratamento singular dado
por cada artista, por cada obra, algo que, no caso de Iran, como tentei refletir, abre um
tempo outro, em que o real é, de alguma forma, incluído na realidade em espera, em
obra, na vida mesma que o desejo de cada um de nós insiste e insistirá em afirmar.
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