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A ESTÉTICA DO FLUXO
Curso Online de Cinema - AULA 089

INTRODUÇÃO

Ainda que não exista uma cronologia propriamente linear sobre as tendências do cinema
contemporâneo (trabalhadas da aula sobre Maneirismo até aqui), a proposta desta série de
aulas é traçar uma possível linha do tempo, a fim de tornar a compreensão mais didática.

Esta aula se foca principalmente em alguns filmes de 2002 e 2003 que se apresentam como
um possível ápice da estética do fluxo.

Nossas duas principais referências serão o texto “Que plano é esse?” de Jean Marc
Lalanne e o texto “Que plano é esse? (A continuação)” de Olivier Joyard. Ambos,
publicados na Cahiers do Cinéma, comentam sobre os filmes do festival de Cannes de 2002
e 2003

Cada um dos textos elenca determinadas obras cinematográficas para demonstrar uma
ideia central: os autores defendem que o plano cinematográfico ocupa um local
centralizador de subversão na decupagem.

CANNES 2002 - QUE PLANO É ESSE?

Segundo Lalanne, o festival foi marcado por obras que experimentaram, de diferentes
maneiras, com a duração dos planos. Estes, em vários casos, se recusam a exercer uma
relação direta e tradicional com a narrativa ou com os próprios planos entre si.

Ao citar O Filho (2002) de Jean-Pierre e Luc Dardenne, Lalanne descreve a câmera como
uma espécie de sismógrafo que acompanha os movimentos do ator.

É como se a câmera estivesse grudada à nuca do protagonista, orbitando seu corpo e


seguindo seus movimentos durante o filme, com planos longos que geram uma certa tensão
ao decorrer da obra.

Mais além, ao comentar sobre Irreversível (2002) de Gaspar Noé e Arca Russa (2002) de
Aleksandr Sokurov, o autor diz que os planos são concebidos como “fluxos ininterruptos
liberados da segmentação da montagem”. E, de fato, a força de ambos os filmes está no
plano-sequência.

Enquanto os planos instáveis de Gaspar Noé se adequam a uma atmosfera de estranheza,


Arca Russa é, literalmente, formado por um único plano-sequência. Gravado em um palácio
que hoje tornou-se um museu, a obra confronta a questão: “até onde pode ir um plano?”

O filme Prazeres Desconhecidos (2002) de Jia Zhangke também foi exibido nesta edição do
Festival de Cannes. Esta obra remete, de certa maneira, aos trabalhos do diretor Hou
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Hsiao-Hsien por ter uma decupagem com planos abertos e longos. Sua montagem é feita
por blocos de planos sem muitos cortes ao longo do filme.

Neste contexto, todos os filmes citados aqui estão interessados em uma certa força
independente do plano. Ou seja, não existe uma construção das cenas a partir de uma
lógica convencional de plano e contraplano e outras convenções formais. Existe uma
minimização do efeito da montagem enquanto se potencializa o efeito do plano.

Porém seria errado pensarmos que, por serem filmes com planos longos, não existe uma
decupagem. As obras podem ser decupadas de formas minimalistas e não convencionais,
mas a operação que as constrói é, por vezes, bastante complexa.

Na edição do Festival de Cannes de 2002 existiram outras obras que não dialogavam
diretamente com essa tendência. Lalanne discorre sobre a força do contraplano em Spider
(2002), de Cronenberg, por exemplo.

CANNES 2003 - QUE PLANO É ESSE? (A CONTINUAÇÃO)

Em 2003, durante a cobertura do Festival de Cannes, Olivier Joyard escreve sobre a


continuidade e certas ramificações das tendências observadas no ano anterior.

As duas obras mais marcantes neste sentido, e que o autor já começa citando, são Elefante
(2002) e Shara (2003). O crítico diz que enquanto nas obras de 2002 existia esta ideia do
“plano de fiação”, da câmera-sismógrafo que se adapta à cena, os filmes de 2003, em
especial os dois citados, já propõem um plano que não está submisso aos elementos em
cena e possui um caráter mais autônomo. Nenhum personagem ou situação está guiando a
câmera de modo direto.

Por outro lado, é como se a câmera, por si só, propusesse a sua própria radiografia do
ambiente, mostrando os lugares que ninguém vê. É como se o plano possuísse suas regras
próprias com escolhas mais arbitrárias. O plano decide seus movimentos e elipses, não
mais à mercê da história, do cenário ou do ator.

Joyard prossegue seu artigo comparando os planos fixos e longos dos filmes Brown Bunny
(2003)e Distante (2002). Ainda que ambas as obras possuam atmosferas densas e até
depressivas, a abordagem para tal é praticamente oposta.

Ambos utilizam planos fixos e longos na decupagem, porém Ceylan cria planos
esteticamente bonitos, até mais genéricos, que remetem a um cinema de arte. Vincent
Gallo, por sua vez, cria planos “feios”, que são abordados de forma crua. Os ambientes são
tratados de maneira ríspida e bruta, de tal maneira que o protagonista vai vagando como
um fantasma por estas paisagens.
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PLANO-CONCEITO SENTIMENTAL

Ao final de seu artigo, Joyard propõe um conceito conhecido como plano-conceito


sentimental. Alguns críticos, mais a frente, vão adotar este conceito para descrever obras
com planos e decupagens que se encaixam em tais características.

O conceito trata de caracterizar planos que, ao invés de seguirem convenções de


decupagem para organizar a cena, buscam um sentimento como guia para essa
construção.

Ou seja, ao invés de uma cena seguir convenções de plano e contraplano ou seguir regras
de eixo, a decupagem será mais livre, será guiada por um “sentimento”. Essa ideia pode ser
atribuída a vários outros filmes da história do cinema, mas o crítico percebe essa tendência
em obras contemporâneas específicas.

MONTAGEM-CONCEITO SENTIMENTAL

Em sua monografia intitulada “Cinema de Suspensão”, Raphael Mesquita fala sobre o fluxo,
o plano, e também uma possível ideia de “montagem-conceito sentimental”, quando
argumenta sobre filmes que também não são orientadas por convenções de continuidade e
eixo.

Mesquita usa como exemplo Novo Mundo (2005), de Terrence Malick. Uma obra que possui
uma montagem bastante não-linear em que os planos têm tempos descontínuos, alguns
são mais curtos, outros mais longos, com jump cuts e saltos no tempo. O que guia os cortes
de Malick não são convenções da montagem, mas um sentimento.

CONCLUSÃO

Todas as ideias citadas nesta aula não são exclusividade de tais filmes. Podemos perceber
várias dessas características em obras de cineastas modernos como Rogério Sganzerla,
Glauber Rocha e Jean-Luc Godard.

No entanto, existe essa tendência experimental específica em longas-metragens dessa


época que irá chamar a atenção dos críticos. Logo, os autores reconhecem um possível
“movimento” que ficou conhecido como Cinema de Fluxo.

Mesmo que esse não seja um movimento autoconsciente (os diretores não possuíam uma
ligação direta), a estética do fluxo ganha um aspecto global indiscutível.
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CITAÇÕES DA AULA

ARTIGOS
Plano Contra Fluxo - Stéphane Bouquet (2002)
Que plano é esse? - Jean-Marc Lalanne (2002)
Que plano é esse? (A Continuação) - Olivier Joyard (2003)

FILMES
O Filho (2002) - Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Rosetta (1999) - Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Irreversível (2002) - Gaspar Noé
Arca Russa (2002) - Aleksandr Sokurov
Eternamente Sua (2002) - Apichatpong Weerasethakul
Prazeres Desconhecidos (2002) - Jia Zhangke
Spider (2002) - David Cronenberg
Elefante (2003) - Gus Van Sant
Shara (2003) - Naomi Kawase
Brown Bunny (2003) - Vincent Gallo
Distante (2002) - Nuri Bilge Ceylan
O Novo Mundo (2005) - Terrence Malick
Madame Satã (2002) - Karim Aïnouz
O Céu de Suely (2006) - Karim Aïnouz

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