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O PLANO E O FLUXO
Curso Online de Cinema - AULA 088

INTRODUÇÃO

Esta aula aborda algumas tendências estéticas dos anos 90, mas já se debruçando mais
diretamente sobre a tendência do que ficou conhecido como Cinema de Fluxo.

As principais referências desta aula são dois textos de um crítico chamado Stéphane
Bouquet. Um texto de 98 e outro de 2002, chamados Da Maneira Que Tudo Se Comunica, e
Plano contra Fluxo, respectivamente.

Além destes, o texto de Thierry Jousse sobre A Estrada Perdida (1997), mencionado na
aula passada, também será relembrado.

A fim de facilitar a didática, o objetivo da aula é tentar criar uma cronologia destas
tendências durante determinados períodos na história do cinema contemporâneo.

ESTÉTICA DA CONTAMINAÇÃO - RELEMBRANDO O CONCEITO

Em seu texto de 1997 sobre Lost Highway (1997), Thierry Jousse comenta sobre uma
estética noventista em que a narrativa não está mais em primeiro plano, mas sim cumprindo
uma função rítmica e climática para fazer jus às experiências sensoriais que os símbolos e
figuras de determinada obra cinematográfica trazem.

Além dos simbolismos inventivos com estéticas elaboradas, o tempo das cenas é
trabalhado de forma bastante particular: como se possuísse um efeito de “sideração”, de
hipnotização, como um tempo de um sonho propriamente dito.

FILME INSTALAÇÃO

A partir destas reflexões, Jousse chega a comentar sobre uma possível definição de
“filme-instalação”.

Para contextualizar: “Instalação” é quando um artista ocupa um espaço - uma galeria de


arte, uma sala, um museu - transformando-o em uma obra de arte, criando uma experiência
de imersão.

Assim, é como se quem experienciasse a obra, naquele momento, estivesse habitando a


obra de fato. De tal maneira, a vivência com este tipo de abordagem artística torna-se muito
mais sensorial.

Essa ideia de instalação artística aplicada aos filmes que cita em seu artigo serve,
fundamentalmente, para dizer que, neste sentido, as obras criam um mundo de regras
próprias. Assim, a nossa função enquanto espectador não seria mais de apenas entender a
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história, de interpretar a narrativa, e sim ser impactado sensorialmente - habitar - de certa


forma, a obra.

Vale ressaltar que filmes anteriores a este período já tinham esta abordagem como algo
comum, como por exemplo no cinema experimental. Contudo, nessa fase, existe uma
experimentação mais direta em longas de ficção. Alguns críticos passam a usar o termo
“cineastas artistas” para falar de determinadas obras e seus diretores.

O que também ajuda a reforçar a diferenciação da experimentação num geral versus esta
tendência mais marcante e abrangente é a própria relação com a arte contemporânea, vide
o exemplo inspirado nas instalações artísticas.

Em uma cena de Crash: Estranhos Prazeres, onde ocorreu um acidente envolvendo vários
carros, a abordagem do local assume uma espécie de instalação: a organização dos
elementos em cena está de tal maneira que as personagens contemplam o ambiente, como
se fosse uma obra de arte, enquanto estão ali presentes e imersos ao mesmo tempo.

O FILME FECHADO EM SI

Thierry Jousse chega a usar o termo “film boíte” (em tradução livre, “filme caixa”) no sentido
do filme ser fechado em si mesmo, em seus próprios conceitos, dispositivos e regras. Um
circuito sem motivações evidentes na trama - o que importa são as situações sensoriais ao
longo da obra.

Um ano depois do artigo de Thierry Jousse, Stéphane Bouquet publica o artigo Da Maneira
Que Tudo Se Comunica (1998) refletindo sobre os cineastas artistas, mas agora citando
também referências como Andy Warhol e Marguerite Duras.

Segundo Stéphane, o que estaria sendo feito por estes cineastas artistas contemporâneos,
seria uma espécie de resgate de experimentações, que já existiam na época de Warhol e
Duras. O autor vai além de Lynch e Cronenberg para mencionar Tsai Ming-Liang, Wong
Kar-Wai, Abel Ferrara, Michael Haneke, entre outros presentes nesta tendência.

OS FILMES PRISÃO DE MICHAEL HANEKE

Ao se debruçar mais profundamente sobre a ideia de “filme dispositivo”, Stéphane chama as


obras de Haneke, por exemplo, de “filmes prisão”.

De fato, suas obras - mesmo as mais recentes - se apropriam dessa ideia de que o mundo
é um local de vigilância permanente em espaços urbanos, enquanto transmite a sensação
de espaços domésticos que atuam como prisões. Podemos citar como exemplo as obras O
Sétimo Continente (1989) e Caché (2005).
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ARTISTAS DE PERFORMANCE

Ainda neste texto, Stéphane Bouquet fala também sobre como tais obras remetem a
“artistas da performance” como Joseph Beuys

Ele fala como estas propõem uma relação mais performática com a realidade. Não é mais
importante acreditar em uma atuação verossímil, mas constatar que o ator está caminhando
para uma “zona de novas experiências”.

É possível perceber este tipo de convenção em Crash: Estranhos Prazeres. Ao observar as


cenas, o elenco parece declamar as falas como em uma peça de teatro. Os personagens
possuem uma relação performática com a realidade.

Nas obras de Tsai Ming-Liang também é possível perceber uma atuação corporal muito
marcante. Em O Rio (1997), o ator passa boa parte da obra com o pescoço torto devido a
uma dor inexplicada que o personagem sente.

Na prática, a dor está relacionada a um estado físico de estranheza devido à ausência do


“outro” no mundo do personagem. Ela é a representação física para uma sensação de
incompletude emocional. Uma proposta que também remete a uma relação performática
com a realidade.

PLANO x FLUXO

Diante desta ideia de imagens com regras muito próprias em contraponto a uma ideia de
decupagem mais convencional, Bouquet reconhece uma oposição entre o plano e o que ele
chama de fluxo.

Isso se dá no sentido de que a decupagem, em diversos desses filmes citados, não tem o
interesse de organizar as imagens de modo tradicional (como, por exemplo, criar relações
de plano e contraplano) a fim de localizar o espectador em uma cena para que uma história
seja contada.

A decupagem está interessada, segundo o autor, em “circular as imagens”. Se usarmos


como exemplo um plano de Blackout (1997), de Abel Ferrara, as imagens se comportam
como uma espécie de fluxo; circulando, não necessariamente com uma abordagem
organizada.

No final de seu artigo de 1998, Bouquet começa então a trabalhar nesta possível oposição
entre uma estética “tradicional” e mais organizadora do plano em comparação a uma
estética do fluxo, da qual as imagens circulam, escoam.

Assim, em 2002, Stéphane Bouquet publica seu artigo Plano Contra Fluxo, no qual o autor
discorre mais profundamente sobre isso. Propõe, inclusive, uma possível oposição de
cineastas do Plano e cineastas do Fluxo.
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Ao primeiro grupo pertenceriam aqueles cineastas que se utilizam de uma lógica de


decupagem mais clássica e tradicional. Ou seja, as cenas são decupadas de acordo com
suas convenções tradicionais - cenas cobertas por diversos ângulos para organizar e trazer
forma ao real, como por exemplo em A Garota Exemplar (2014).

Já um cineasta do fluxo usaria a decupagem para desenvolver ou uma estética mais


“contaminada” e dinâmica, como Abel Ferrara e Claire Denis; ou uma decupagem de planos
longos que intensificam zonas do real como Hou Hsiao-Hsien e Apichatpong
Weerasethakul.

CONCLUSÃO: DA AUTOCONSCIÊNCIA SATURADA AO RETORNO AOS PRINCÍPIOS

É interessante pensarmos em como tais obras contemporâneas do fluxo (principalmente as


que se utilizam dessa estética de planos longos e realistas), remetem às atitudes dos
cineastas pioneiros do cinema.

Mesmo que, nos primórdios do cinema, o objetivo final de um plano aberto e longo fosse
meramente demonstrar que uma câmera funcionava, existe essa mesma fascinação mais
direta pela realidade. Existe, até mesmo, um encantamento mais ingênuo.

Neste sentido, é bastante marcante dentro da perspectiva histórica do cinema


contemporâneo este ponto de inflexão: enquanto existiam cineastas saturados, procurando
diferentes maneiras de retratar aquilo que, de certa forma, já havia sido feito antes (como no
maneirismo dos anos 80), para outros como Hou Hsiao-Hsien e Apichatpong Weerasethakul
era como se o cinema acabara de ser inventado.

Luiz Júnior, em sua dissertação já comentada nas aulas anteriores, cita uma frase de
Clement Greenberg que cristaliza seu argumento sobre esta teoria: “Quando se leva uma
coisa tão longe quanto ela pode ir, muitas vezes se volta ao ponto de partida”.

É importante lembrar que cineastas como Hou Hsiao-Hsien e Jim Jarmusch, ainda na
década de 80, já possuíam tal abordagem em suas obras. Portanto, não existe uma
cronologia definida que pontue de fato quando foram os pontos de transformação de tais
abordagens.

CITAÇÕES DA AULA

ARTIGOS
Thierry Jousse - Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch (1997)
Stéphane Bouquet - Da Maneira Que Tudo Se Comunica (1998)
Stéphane Bouquet - Plano Contra Fluxo (2002)

DISSERTAÇÃO
Luiz Carlos Oliveira Júnior - O Cinema de Fluxo e a mise en scène (2010)
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FILMES
Crash: Estranhos Prazeres (1996) - David Cronenberg
Stellar (1994) - Stan Brakhage
Tramas do Entardecer (1943) - Maya Deren, Alexander Hammid
Sleep (1964) - Andy Warhol
L’homme Atlantique (1981) - Marguerite Duras
O Sétimo Continente (1989) - Michael Haneke
Caché (2005) - Michael Haneke
O Doce Amanhã (1997) - Atom Egoyan
Exótica (1994) - Atom Egoyan
O Rio (1997) - Tsai Ming-Liang
Vive L’Amour (1994) - Tsai Ming-Liang
Blackout - Sentiu a Minha Falta (1997) - Abel Ferrara
A Garota Exemplar (2014) - David Fincher
O Tempo e a Maré (2000) - Tsui Hark
Bom Trabalho (1999) - Claire Denis
Gosto de Cereja (2007) - Abbas Kiarostami
Adeus, ao Sul (1996) - Hou Hsiao-Hsien
Eternamente Sua (2002) - Apichatpong Weerasethakul
Nostalgia (1983) - Andrei Tarkovsky
Café Lumière (2003) - Hou Hsiao-Hsien
13 Lakes (2004) - James Benning
Empire (1964) - Andy Warhol, John Palmer

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