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O processo criativo

Sob o olhar crítico de Salles e Deleuze

Janai Reis
M11
João Gomes
M11927

Unidade Curricular de
Investigação em Artes
2.º Ciclo em Cinema

Docente
Manuela Penafria

8 de junho de 2022

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Introdução

No âmbito da Unidade Curricular de Investigação em Artes, lecionada pela


professora Manuela Penafria, foi-nos proposto relacionar os textos de Cecília Salles (“Da
Crítica Genética à Critica do Processo”) e de Gilles Deleuze (“O ato de criação”) com um
filme que explorasse, através da sua narrativa, o processo criativo em artes.
Para este ensaio, optámos pelo filme 8 ½ de Fellini enquanto objeto de estudo
comparativo por, em primeiro lugar, tratar o processo criativo de um realizador de
Cinema. Para além de ser enunciado, no próprio filme, o ato de fazer Cinema, é de
salientar, ainda, que a díade reunida para este trabalho se interessa intrinsecamente pela
área da realização em Cinema. Em segundo lugar, confiamos no filme para nos mostrar
este processo e todas as vicissitudes que lhes estão inerentes. Por último, e não menos
importante, 8 ½ de Fellini é, definitivamente, um filme digno de ser estudado; digno dos
mais experientes e inexperientes olhares, por se tratar de uma obra absolutamente
intemporal e obrigatória.
Em síntese, o filme retrata o percurso de um realizador, Guido Anselmi, em busca
de materializar o seu sonho – o imaginado e o vivido – através da criação de um filme
que explora este mesmo processo.
Em suma, com este trabalho, procuramos, através das nossas leituras e repetidas
visualizações do filme, conhecer e reconhecer aquilo que caracteriza o processo criativo
em artes.

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Sob o olhar de Deleuze: a forma do Cinema

Comecemos, então, por uma questão simples que Deleuze coloca: “O que é ter
uma ideia em alguma coisa?”. E antes disso, o que leva alguém a ter uma ideia sobre
algo? Partiremos do pressuposto de que uma ideia não surge propriamente do nada, do
vazio e que quando nasce, já traz em si uma forma, um modelo. O surgimento de uma
ideia para um filme, uma pintura ou uma música, tem já um pensamento de antemão,
diferente para cada área. Ou seja, quando uma ideia surge, surge sempre com um formato
associado à área em que a pensamos – quase como um conhecimento à priori. Um fator
fundamental para um criador poder criar é o fator “necessidade”. Na ideia de Deleuze
será impossível para o criador fazer algo de que não tenha absoluta necessidade.
Apoiando esta premissa, o realizador Werner Herzog, na sua Masterclass, menciona que
é preciso ter urgência em escrever um filme, em criar. Dito isto, o que é, então, ter uma
ideia em cinema? O que é criar algo em cinema? Qual é a característica dessa ideia, desse
pensamento? Esta invenção é a fabricação de um bloco de movimento/duração –
acrescentaria até que é bloco de espaço (onde se dá o movimento) e tempo (que organiza,
de forma contínua ou fragmentada, a duração), ou seja, ter uma ideia em cinema
pressupõe a existência de um bloco de movimento/duração. Tendo em conta este conceito
de Deleuze, é possível observar que, no filme 8 ½ de Fellini, o protagonista, realizador
de cinema Guido Anselmi, cria, inventa, pensa cinema – como não poderia deixar de ser
– em blocos de movimento/duração.
A primeira cena em que este ato da criação acontece dá-se quando Guido está na
fila para ir buscar água benzida na esperança de tratar do seu “organismo um pouco
debilitado”. A música e o som ambiente da cena desvanecem enquanto Guido baixa o
olhar, abaixa os óculos escuros e visiona uma rapariga de braços cruzados que começa a
caminhar, de pés descalços, quase em marcha, sem que os calcanhares toquem no chão,
de postura relaxada, leve, como uma dança angelical. Num close-up, denota-se o poder
do rosto, da afeção, do brilho do olhar da rapariga que parece deslizar, que parece voar
baixinho. A rapariga oferece-lhe um copo de água benzida. Guido agradece-lhe antes de
ser transportado novamente para a “realidade” por uma mulher que o chama – a mulher
que “realmente” lhe serve o copo de água.
Esta cena, deverá ser, portanto, o primeiro momento em que Guido tem uma ideia
para o seu filme. Se essa ideia tem de ser pensada como forma de cinema, deverá

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encontrar-se num bloco de movimento/duração – sem dúvida que esse conceito está
presente. Quando Guido pensa, está a pensar naquela rapariga, que se encontra num bloco
com movimento e com uma determinada duração. Ainda que Guido esteja a realizar o
próprio filme que está, simultaneamente, a desenrolar-se na tela, é notório que Guido
pensa sempre da mesma forma quando pensa cinema, pois não pode pensar cinema fora
da sua forma.

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Sob o olhar de Salles: a arte no processo criativo

Quando começa e quando acaba o processo criativo? Que metodologias podemos


usar para o estudar? De que forma o estudo do mesmo evoluiu ao longo do tempo? Eis as
questões levantadas por Cecília Salles no seu artigo “Da Crítica Genética à Critica do
Processo”.
Salles (2017) apresenta o processo criativo e o seu registo como assuntos
independentes entre si. Paralelamente, salienta o tipo de linguagem em que este nos é
apresentado. Desta feita, é possível conhecer o caminho do artista independentemente da
forma como o processo se manifesta, através dos seus “rastos”. Mais concretamente,
Salles (2017) afirma que “o processo de criação extravasa, em muitas propostas artísticas,
os bastidores e passa a integrar a malha dos objetos em criação” (p. 1).
Falando da evolução do método de estudo, a autora evidencia uma tendência para
traçar um caminho do mais específico para o mais geral. Por outras palavras, há cerca de
trinta décadas atrás, eram estudados casos gerais (do processo criativo, entenda-se) que
eram, posteriormente, transportados para situações específicas. Atualmente, o
procedimento comum é o oposto: utilizam-se casos particulares para procurar explicar o
geral. De acordo com Salles (2017), “o projeto do artista, que são princípios
direcionadores, de natureza ética e estética, presentes nas práticas criadoras, relacionados
à produção de uma obra específica e que atam a obra daquele criador, como um todo” (p.
49).
Após esta breve apreciação do artigo de Cecília Salles, passemos para a criação
do elo de ligação: Salles (2017) alega que o próprio processo criativo é tão (ou mais) obra
de arte quanto o seu produto final. Ou seja, a autora afirma que a arte não se encontra
apenas no que é apresentado (i.e., o seu resultado), mas também em tudo o que levou a
esse resultado. Cremos que 8 ½ de Fellini é um exemplo perfeito para se abordar essa
questão, dado que aborda o processo criativo e a constituição do mesmo. Tanto em 8 ½
como em arte de modo geral não é percetível quando o processo criativo termina, o filme
inicia e vice-versa. Segundo Salles (2017), trata-se do mesmo. A obra de arte é meramente
o produto da interação de todos os elementos que a antecedem e, como tal, não devemos
(nem podemos) desvalorizar todo esse processo. Pelo contrário, devemos apreciá-lo,
enaltecê-lo, enamorá-lo.

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No filme de Fellini, a procura do filme é o filme per se – trata-se de uma alegoria
não intencional à ideia de Salles. O filme, enquanto dispositivo, acaba com a cena final
do filme de Guido – que é, do ponto de vista do personagem Guido, o único momento
materializado do seu filme, o que, mais uma vez, reitera a relevância do processo descrita
por Salles (2017).
O percurso de construção da rede ou a “recompensa material” (Kandinsky, 1990,
citado por Salles, 2017, p. 50) inclui a sua dinâmica e está inserido no espaço e no tempo
da criação, que inevitavelmente afetam o agente criativo ou, no caso de 8 ½ em particular,
o realizador.

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Será sonhar fazer Cinema?
Tendo os conceitos de Deleuze e de Salles em conta, especialmente em
comparação com o 8 ½ de Fellini, surgem algumas questões. Se o processo criativo pode
ser arte, serão os sonhos de Guido também uma forma de arte? Ou seja, serão os sonhos
uma forma de criar cinema? Quando se sonha, não se sonha dentro de um bloco de
movimento/duração? Não é o sonho, também como o cinema, uma representação/mimese
da realidade?
O filme passa-se à volta deste realizador que busca por ideias para concretizar o
seu filme. Sendo puramente meta cinematográfico, digamos que 8 ½ não é o filme de
Fellini, mas sim de Guido Anselmi. Assim sendo, tudo que Guido observa ou imagina –
inclusive a aparição da rapariga referida anteriormente – faz parte do seu processo criativo
e, simultaneamente, do seu produto final. Seguindo esta máxima, ao ver o filme, é
possível observar muitas cenas que, tal como a aparição da rapariga, não só são fonte da
mera imaginação racional de Guido, assim como o filme mostra o seu lado mais profundo
do seu inconsciente: a abertura do filme que se passa no mundo onírico do personagem –
no processo criativo – e, simultaneamente na obra finalizada – o filme presente em tela,
8 ½. No caso do sonho ser invocado apenas no início do filme, talvez houvesse uma
margem maior para descartar os sonhos como processo criativo, contudo, esta não é a
única vez que Guido sonha e que, intrinsecamente, faz parte da obra materializada.
Posto isto, uma nova pergunta surge. Será o processo criativo apenas parte do lado
racional, ou, como Guido, o processo criativo parte também do mundo onírico?

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Conclusão

Estudar o processo criativo é aprender a valorizá-lo. Estudar o processo criativo


em artes é estar mais próximo de saber reinterpretar a obra de arte estudada através da
visão de quem sobre ela escreve. O seu estudo potencia a atualização ou redefinição de
conceitos, seja do conceito de Arte ou de Cinema, e com ele são adquiridas as
competências para poder expor a nova visão.

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Referências Bibliográficas
Sales, C. A. (2017). Da crítica genética à crítica de processo: Uma linha de
pesquisa em expensão, 20 (2), 41-52.

Deleuze, G. (1999). O ato de criação.

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